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A CONSTITUIÇÃO DA REALIDADE

SEGUNDO A PSICANÁLISE

Freud e Lacan
encontram Kant e Descartes
Marcos BULCÃO NASCIMENTO
MARCOS BULCÃO NASCIMENTO é doutor em Filosofia pela Universidade de São
Paulo, com doutorado-sanduíche pela University of South Carolina. Graduou-se em Filosofia também
pela USP, tendo feito seu mestrado em Teoria Psicanalítica na Université de Paris VIII. Fez pós-
doutoramento pela UFBA (PRODOC-CAPES) e pela USP (FAPESP), com estágio de pesquisa na
University of London - Birkbeck College. Atualmente ensina na Université du Québec (UQTR), no
Canadá, onde vive com sua esposa e duas filhas.
Bulcão publicou até aqui cinco livros na área acadêmica:
— La Constitution de la Réalité selon la Psychanalyse (Éditions Universitaires Européennes:
2017)
— Enigmas Freudianos: o problema da consciência e outros paradoxos (KBR: 2016)
— Freud and the problem of consciousness: solution (KDP: 2017)
— O Realismo Naturalista de Quine (UNICAMP/ CLE: 2008)
— A Filosofia de Quine e Outros Ensaios (KDP: 2017)
Estreou em literatura de não-ficção em 2014, com O Filósofo Peregrino, de Londres a Roma a pé –
2.000km na Via Francígena (Editora Record) e mantém um blog — “Penso, logo hesito”
(http://marcosbulcao.wordpress.com) — onde escreve sobre filosofia, psicanálise, viagem e esportes.
E-mail: mbulcao@gmail.com
Copyright @ 2017 by Marcos Bulcao Nascimento
Todos os direitos reservados.

_____________________
Esse livro foi originalmente publicado pela EDUFBA (2007), com o título “A Constituição da
Realidade no Sujeito: Psiquismo, Real e Epistemologia”.

_____________________
1. Realidade
2. Sujeito
3. Psicanálise
4. Epistemologia
5. Psiquismo
6. Princípio do prazer e da realidade
7. Aparelho psíquico
8. Lacan
9. Kant
10. Descartes
SUMÁRIO
PREFÁCIO: POR BENTO PRADO JUNIOR 7
INTRODUÇÃO 9
A realidade na teoria psicanalítica
A especificidade da psicanálise: o sujeito do inconsciente
O caminho lógico da exposição
I. O PSIQUISMO: ENTRE O REAL E O SIMBOLICO 22
Do inanimado à vida
Especificidade humana: a inadequação do objeto
OPERAÇÕES E TENDÊNCIAS PRIMORDIAIS 26
Ligação e psiquismo
As primeiras experiências humanas
O paradoxo do gozo
MEMÓRIA E LINGUAGEM. INTRODUÇÃO DO OUTRO 37
A Carta 52
O aparelho de linguagem
A retranscrição pré-consciente
Retomada da experiência de satisfação
O Outro e a entrada no Simbólico
REAL E SIMBÓLICO 51
Gozo: a satisfação real e o mais-de-gozar
Das Ding: um furo real no aparelho psíquico
II. A REALIDADE VACILANTE 64
Ligação e o eu
QUANDO O CRITÉRIO FALHA 69
Inibição e processo onírico
O problema da qualidade e da motricidade
A PRECARIEDADE IRREMEDIÁVEL 75
A realidade intolerável
A estrutura e seus mecanismos
III. EPISTEMOLOGIA E PSICANALISE 85
REAL X NOUMENON: A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE 86
AS DUAS VERDADES: DESCARTES COM LACAN 93
O OBJETO A PERDIDO ENTRE KANT E DESCARTES 102
A alienação e a desaparição do sujeito
O unário e o binário: S1 como fora da cadeia
CONSIDERAÇÕES FINAIS 113
BIBLIOGRAFIA 123
A Nina
e minhas duas filhas, Beatriz e Chloe
PREFÁCIO

Nesse livro, resultado da dissertação de mestrado do autor, é


exposta a importante questão da realidade na teoria psicanalítica. Sua leitura
revela trabalho erudito e finura na análise conceitual.
Podemos considerar que o esmero na análise dos conceitos de
sujeito e realidade revela-se, além de tudo, no respeito às ambiguidades
dessas noções no campo tratado. O autor trabalha a relação entre os dois
campos do saber, filosofia e psicanálise, passando pelas concepções
metafísicas e epistemológicas de Kant e de Descartes e estabelecendo os
limites entre a exigência do saber filosófico e da psicanálise. É a constituição
do sujeito que norteia essa comparação e delimitação.
A análise da filosofia kantiana enfoca as noções de coisa-em-si e
de causalidade, referindo-as ao conceito de das Ding e das cadeias
significantes em Lacan. O autor conclui pelo estabelecimento da divergência
constitutiva entre a psicanálise e o kantismo, tendo como centro a razão e a
universalidade kantianas e as concepções de sujeito e de pulsão lacanianas.
Do lado da análise da filosofia cartesiana, por sua vez, exibe-se a
correspondência entre as duas verdades postas por Descartes, a que emerge
da fase pré-cogito e dúvida, enquanto verdade do sujeito, e a verdade
garantida pelo Deus, como verdade do Outro.

Entendemos que é inegável o mérito do presente trabalho, sendo


notável, sobretudo, a clareza do texto e sua precisão conceitual num campo
— o dos ensaios na tradição lacaniana — onde tais qualidades são raras. Faz-
se notar ainda a largueza da bibliografia, tanto na vertente da teoria
psicanalítica como da filosofia. Por tudo isso, não temos dúvida de que o
leitor se beneficiará muito da leitura desse livro.

BENTO PRADO JUNIOR


Professor Titular do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências,
Universidade Federal de São Carlos
Professor Emérito, FFLCH, Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO

O objetivo geral deste trabalho é examinar a constituição da


realidade no sujeito, segundo a teoria psicanalítica. Esta primeira demarcação
de nosso campo de pesquisa implica já três importantes assunções ou
pressupostos, a saber: (1) a assunção de que há efetivamente um processo de
constituição da realidade, isto é, de que a realidade não é um conjunto de
dados imutáveis e evidentes, um conjunto pronto e que se oferece
imediatamente à percepção. Com efeito, a realidade se forma, se constrói, e
isto se passa no tempo. (2) Este processo concerne o sujeito humano, sendo
nele, portanto, que se devem procurar as condições e particularidades desta
constituição. (3) A investigação será feita segundo os conceitos
psicanalíticos, o que sugere que há particularidades nesta teoria que a
diferenciam das outras teorias que também têm a realidade como tema.
Com efeito, outras teorias além da psicanalítica (e antes dela)
abordaram a temática da realidade e o fizeram também questionando sua
imutabilidade suposta, seu acesso fácil e direto; em uma palavra, seu caráter
de assimilação imediata e sem equívoco. Trata-se efetivamente de um tema
epistemológico clássico e de grande importância, o qual concerne sobretudo
os limites e as possibilidades do conhecimento humano, interessando muito,
portanto, tanto a filosofia quanto a ciência.
Este tema diz respeito igualmente à psicanálise e, embora não
seja exatamente do conhecimento que esta teoria trata, ela não se mantém à
distância destes problemas epistemológicos. Ao contrário, desde seu início,
ela está mergulhada em tais reflexões. De fato, Freud faz sua formação
acadêmica num campo científico dominado por uma concepção que se
poderia chamar ‘positivista’, ‘naturalista’ da realidade, o que não cessou de
ter influência sobre ele, sobre seu método de trabalho e ideal de
conhecimento. Contudo, o progresso do pensamento freudiano vai, pouco a
pouco, conduzi-lo a questionar justamente alguns dos pressupostos
positivistas.
***
Segundo a posição positivista, por exemplo, a realidade pode
ser perfeitamente apreendida pelas percepções[1] e, desde que se saiba
proceder por métodos rigorosos e bem definidos, poder-se-á estender este
conhecimento tão longe quanto se queira. De uma forma super-simplificada,
nós podemos conceber a orientação metodológica positivista da seguinte
forma: a observação é a unidade de base para a pesquisa. As regularidades
encontradas nos fatos observados dão lugar a leis. A percepção não é
colocada em questão no seu papel de apreender a realidade. Ela é confiável, e
seus limites eventuais podem ser compensados pela criação de instrumentos.
Assim, fundados sobre o rigor da observação, o erro é evadido. Com a
ciência[2], nós podemos conhecer a realidade.
Freud partirá destas assunções empiristas partilhadas por seus
contemporâneos, apenas para subvertê-las em seguida. Com efeito, bem cedo
em sua carreira, Freud começa a ter pontos importantes de divergência
conceitual, o que faz com que ele termine por modificar significativamente
seu olhar sobre questões centrais, entre essas aquela da realidade.
Nós podemos indicar uma ruptura importante já por ocasião de
seu trabalho sobre as afasias[3]. Neste momento, Freud tinha como
interlocutores e adversários mais diretos Wernicke e Meynert, para os quais a
forma pela qual o homem captava o mundo se fazia através de impressões
elementares, as quais, associadas em grandes complexos, funcionariam como
cópias do mundo. Haveria uma relação ponto por ponto entre as estimulações
provenientes do mundo exterior e as representações (localizadas em pontos
determinados do córtex cerebral), o que garantia, por assim dizer, a fidelidade
da cópia[4]. Freud, no estudo já mencionado, vai colocar em questão a
validade de tal tese, propondo ao mesmo tempo uma outra concepção das
afasias.
Esta nova concepção vai trazer uma crítica severa às assunções
de base sustentadas por Meynert e Wernicke. Com efeito, Freud vai mostrar
que a constituição do campo representativo é tributária de um acesso indireto
ao mundo exterior, e que, desta maneira, as representações que nós temos do
mundo assumem sua significação não numa referência direta aos objetos do
mundo exterior, mas numa relação totalmente interna ao campo
representativo[5].
Estes dois pontos são já suficientes para comprometer os pilares
das teorias adversárias. Efetivamente, pelo primeiro, Freud descarta a
hipótese de uma correspondência ponto por ponto entre as estimulações e as
representações e mostra não somente que há uma triagem dos estímulos já no
nível dos sentidos, mas também que a representação do corpo no córtex
cerebral não pode ser senão parcial[6]. Ora, se o mundo não é representado
direta e exatamente no nosso cérebro, isto implica o segundo ponto, a saber,
que é necessário um “tratamento” dos dados dos sentidos a fim de que nós
possamos construir uma visão do mundo. Em outras palavras, os dados dos
sentidos não adquirirão significação e, portanto, valor psíquico senão na
medida em que eles se inscrevem numa rede articulada de representações.
A este respeito, Freud inova uma vez mais. Ao diferenciar
afasia assimbólica de agnosia, ele nos permite constatar no psiquismo a
diferenciação entre uma relação de significação e uma relação de signo, de
índice[7]. A relação de signo é aquela entre o referente — o objeto do mundo
exterior — e a representação-objeto que se forma a partir dele. A relação de
significação é aquela entre as representações-objeto e as representações-
palavra[8]. A primeira relação indica a presença de um objeto exterior, real,
mas ela não é capaz de nos dizer o que este objeto é. Ela indica assim um
fora do campo eminentemente representativo, simbólico. De outro lado, a
relação entre as representações é efetivamente a responsável da produção de
sentido, sendo então este campo representativo o lugar privilegiado onde os
atributos serão definidos e onde a realidade pode ser assimilada pelo
psiquismo.
Ora, essa espécie de autonomia da produção de sentido em
relação ao objeto exterior, real, terá consequências bastante importantes.
Efetivamente, na medida em que a significação é constituída no interior do
aparelho psíquico, as leis deste vão desempenhar um papel crucial na sua
formação. Por exemplo, a partir do momento em que a função principal do
aparelho psíquico é a de buscar a satisfação, acontece que todo o campo
representativo, sua constituição, será fortemente influenciado por nossos
processos desejantes.
Assim, vemos que isto que chamamos ‘nossa realidade’, a
realidade humana, longe de se oferecer direta e objetivamente ao nosso
conhecimento, não se apreende e não se constitui senão num processo
eminentemente indireto e subjetivo. Em uma palavra, a realidade que nos
concerne não se nos “revela” senão de uma forma extremamente precária.
A “realidade” na teoria psicanalítica
Talvez se deva a esta “precariedade” o fato de que o tema da
realidade se mostre tão recorrente na obra de Freud. Nós vemos, com efeito,
que se formam ao redor desta problemática algumas de suas noções
fundamentais. Por exemplo, Freud vai distinguir entre a realidade material e
a realidade psíquica, a primeira designando tudo o que é obtido a partir do
mundo exterior, a segunda designando ao mesmo tempo as construções
fantasmáticas do desejo e a apropriação que ele faz da realidade material. Ele
vai, de outra parte, opor o princípio do prazer ao princípio da realidade,
atribuindo a este o papel de princípio “corretivo” do primeiro[9]. E,
finalmente, não devemos esquecer que Freud definiu a neurose como uma
espécie de fuga de um fragmento insuportável da realidade[10] e a psicose
como a rejeição e um remodelamento dramático desta última.
Ora, o que nós constatamos é que estas definições e
diferenciações não são tão claras e tão nítidas quanto poderíamos supor à
primeira vista. De fato, se olhamos mais de perto, vemos por exemplo que o
princípio do prazer não se opõe verdadeiramente ao princípio da realidade,
este último não sendo mais do que, num certo sentido, um princípio do prazer
retardado[11]. Além disso, nós também percebemos que, desde o fracasso da
teoria freudiana da sedução, se enfraquece o império da realidade material em
relação ao da realidade psíquica, já que esta tem o poder não apenas de criar
um mundo independente daquela, mas também de estender seus efeitos sobre
a realidade material ela mesma. E é exatamente o que se vê na neurose e na
psicose.
Aqui, entretanto, há ainda um agravamento: com efeito, o que
significa uma fuga ou um remodelamento da realidade material, feitos por ou
a partir da realidade psíquica? Aqui é a ocasião de se perguntar se toda
realidade material não é já apreendida em termos de realidade psíquica. É o
momento de se perguntar se há efetivamente meios neutros e objetivos de
apreender a realidade, quer dizer, se a realidade não é já e sempre
contaminada pelos fantasmas e desejos do sujeito.
Este questionamento vai adquirir toda sua dimensão e alcance a
partir das novas categorias conceituais trazidas por Lacan, notadamente sua
diferenciação dos três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Mas que
não se pense que estes novos conceitos lacanianos nos vêm “salvar” da
precariedade revelada por Freud. Ao contrário, justamente a precisão e a
delimitação mais finas desta questão vão permitir-nos enxergar que tal
precariedade é inevitável, e mesmo de caráter estrutural. Com efeito, é a esta
conclusão que chega Lacan quando ele nos demonstra que não apenas nossa
apropriação do real por intermédio do simbólico e do imaginário é sempre e
necessariamente incompleta, mas que ela tem também necessárias
implicações de engano e mal-entendido.

A especificidade da psicanálise: o sujeito do inconsciente


Ora, falar de engano e de mal-entendido implica forçosamente
de falar de um sujeito e também de sua relação ao Outro. De fato, tais
problemas são fundamentalmente devidos à incompreensão do indivíduo de
sua própria mensagem (o que implica a diferenciação entre o sujeito do
enunciado e o sujeito da enunciação, entre o moi e o je), devidos ao fato de
que o sentido da mensagem do sujeito vem do Outro. O sujeito pode,
certamente, assumir a enunciação de um dizer, mas é o Outro que vai decidir,
determinar o seu sentido. “Em outros termos, o Outro é o lugar da verdade do
que diz o locutor”[12].
Aqui, nós encontramos a ocasião de retomar o diálogo com a
ciência e com a filosofia, já que a questão da verdade vai adquirir uma
dimensão especial na teoria psicanalítica, segundo ela esteja do lado do
sujeito ou do Outro. Este diálogo girará em torno sobretudo de dois pontos,
cada um deles marcando a especificidade da psicanálise em relação à
filosofia e à ciência.
Em primeiro lugar, é preciso mostrar que uma primeira
especificidade da psicanálise em relação à ciência e à filosofia consiste na
inclusão do inconsciente e do sujeito, este tomado em sua verdade singular.
Ora, dizer que a ciência e a filosofia os excluem de seus campos de pesquisa
implica dizer que a verdade da ciência é diferente da verdade do sujeito do
inconsciente e que, consequentemente, há duas formas possíveis de definição
de verdade: a verdade do sujeito do inconsciente é aquela que se revela ou se
desvela essencialmente na esfera do trabalho analítico, aquela que se conta
uma a uma e que é tão evanescente quanto o sujeito. A verdade da filosofia,
da ciência, ao contrário, é a verdade que se pretende eterna, que é válida para
todos os sujeitos, cuja corroboração pode ser assegurada através de testes
intersubjetivos. É a verdade cartesiana, a qual tem seu suporte supremo em
seu Deus veraz, função que é assumida pelo grande Outro, em termos
lacanianos[13]. A oposição entre as duas verdades será especialmente marcada
através da análise da inversão lacaniana do cogito, a qual nos permitirá
precisar o momento de disjunção das duas verdades[14].

Em segundo lugar, é preciso mostrar que uma outra


especificidade da psicanálise é o fato de que ela não está voltada
exclusivamente em direção ao real “exterior”, como o são todas as teorias
científicas e epistemológicas. Tomando desta vez Kant como contraponto,
nós mostraremos em que a teoria psicanalítica vai além das questões
puramente epistemológicas e o que permite manter o sujeito do inconsciente
no centro de suas preocupações teóricas. Com efeito, em fazendo a distinção
entre o real lacaniano e o noumenon kantiano, será possível ver como a
categoria psicanalítica de real pode servir para indicar não somente o nó
irredutível do conhecimento, mas também e sobretudo o nódulo causal último
do sujeito do inconsciente[15][*].

O caminho lógico da exposição

Todavia, o eixo central de nossa argumentação não será feito


em relação à questão epistemológica. Tão importante quanto ele seja, o
aspecto epistemológico não nos basta. O exame da constituição da realidade
se justifica per se no interior mesmo da teoria psicanalítica e merecerá assim
grande atenção. Além disso, em razão da amplitude do tema da realidade, o
qual compreenderia a teoria psicanalítica inteira, ser-nos-á necessário
delimitar ainda mais nossos propósitos e objetivos. De outro modo,
acabaríamos por nos perder numa tarefa virtualmente infinita, por cair na
ilusão de querer explicar todas as noções psicanalíticas em uma centena de
páginas.
Esta delimitação será obtida pela diferenciação entre o processo
de constituição da realidade e os resultados desta constituição. Em outras
palavras, nosso interesse será dirigido ao que se apresenta como causa da
constituição, e não ao que se apresenta como efeito da mesma. Dito
brevemente, é a realidade enquanto constituinte que nos interessa, e não
enquanto constituída. Em termos de contrapartida epistemológica, é a
diferença entre as condições de possibilidade do conhecimento e o
conhecimento enquanto adquirido. Com efeito, Kant, na Crítica da Razão
Pura, examina a possibilidade de conhecer com segurança, os mecanismos de
assimilação dos dados, as características destes mecanismos que fazem com
que sua apreensão se faça de uma maneira confiável, segura. É por isso que
ele examina justamente as categorias do entendimento e as formas da
sensibilidade, as quais vão desempenhar o papel de garantes da validade a
priori das leis das teorias científicas.
Nosso trabalho tenta seguir um esquema análogo. De fato, nós
examinaremos o aparelho psíquico, suas leis e procedimentos primordiais,
como ele pode fazer face ao real, como ele o assimila e faz dele a apropriação
em termos simbólicos. São as condições e os mecanismos de recorte do real
que nos interessam, e não o resultado efetivo que tal recorte traz[16]. Assim, é
o fato da prematuração humana, da inexistência de um objeto pré-definido de
satisfação, de sua inserção na linguagem que nos interessa. É o recalcamento
enquanto causa do sintoma que nós iremos investigar, e não o sintoma em si
mesmo. É a pulsão enquanto tal que nos será necessário definir, e não seus
destinos variáveis. Trata-se então de um trabalho que concerne os
fundamentos da teoria da psicanálise, os conceitos que estão na raiz da
formação dos demais.
***
Uma vez que o aparelho psíquico é o suporte de todos os
processos concernentes à constituição da realidade, nossa exposição lhe
dedicará atenção especial. É, afinal de contas, através dele que poderemos
mostrar que a forma pela qual se organizam os objetos do mundo exterior é
tributária da forma pela qual se organizam os modos de satisfação pulsional.
Toda esta problemática será desenvolvida no primeiro capítulo, o qual
elucidará a conexão entre estas duas ordens de conceitos: a ordem pulsional e
a ordem da linguagem. A primeira concerne o fato da fixação dos caminhos
de satisfação e a tendência à sua repetição; a segunda concerne a linguagem e
seu poder de (re)organizar os modos de percorrer estes caminhos. Pela
primeira, nós temos o substrato causal último — real — do posicionamento
do sujeito no mundo; pela segunda, temos o instrumento privilegiado —
simbólico — para até ele chegar e, de algum modo, “manipulá-lo”.
Isto definido, nós examinaremos propriamente a “credibilidade”
de uma realidade que se constitui a partir de tais bases. Assim, o capítulo
segundo se ocupará dos mecanismos psíquicos encarregados da correção ou
proteção do aparelho psíquico contra os distúrbios ou desvios eventuais a
partir da assimilação do real. Será a ocasião de ver a oposição entre o
princípio da realidade e o princípio do prazer, a importância e ao mesmo
tempo a precariedade do critério de distinção[17] e, finalmente, a necessidade
estrutural de uma apreensão incompleta e contaminada do real em razão
mesma dos dois mecanismos fundamentais desta apreensão, a saber, o
recalcamento e a foraclusão.
Não será senão no terceiro e último capítulo que o debate entre
psicanálise e epistemologia será feito. Como nós já o antecipamos, Kant e
Descartes serão nossos interlocutores, e será a partir do diálogo com suas
teorias que seremos capazes de tornar mais claras as diferenças entre ciência
ou filosofia e psicanálise, enfatizando sempre o sujeito do inconsciente.
Este será, portanto, o nosso percurso, e os conceitos que serão
examinados e desenvolvidos no curso deste trabalho não o serão senão à
medida que os objetos tais quais foram definidos o exijam estritamente.
-I-
O PSIQUISMO: ENTRE O REAL E O SIMBÓLICO

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Do inanimado à vida.

Antes de examinar certas características do aparelho psíquico


humano, como, por exemplo, a compulsão à repetição, é necessário colocar
em evidência certos pressupostos subjacentes, tais como a prematuração
humana e a inadequação ao objeto de satisfação e, antes mesmo disso, a
tendência a um retorno ao inanimado.
Freud, em Além do princípio do prazer, desenvolve uma longa
reflexão sobre os fundamentos da existência de uma compulsão à repetição
no homem. Seus pensamentos levam-no a encontrar um princípio que ele
chama “retorno ao inanimado”. A explicação de uma tal tendência seria
simples: todos os sistemas, sejam orgânicos, sejam inorgânicos, teriam como
lei mais primitiva a eliminação de toda energia que os invade. Num sistema
inorgânico, isto não coloca problema algum. Toda quantidade que nele entra
é eliminada imediatamente por uma espécie de ação reflexa ou de condução
mecânica direta. Freud chama esta lei que obriga a descarga completa
princípio de inércia. Contudo, um sistema orgânico vivo não pode funcionar
unicamente segundo este princípio. Obedecendo somente a ele, o organismo
pode eliminar as quantidades vindas de fora, mas isto não o livrará das
quantidades endógenas. A ação reflexa da descarga motora não elimina o
estímulo de fonte interna, de modo que o organismo deve encontrar uma
outra solução para se manter como um organismo vivo. Contra o estímulo
interno, não há fuga possível. A solução, segundo Freud, residiria na
possibilidade de suportar uma certa acumulação de quantidade (Q) no
sistema, o qual poderá assim realizar a ação adequada no mundo exterior para
fazer cessar em seguida a estimulação interna. Porém, não lhe será possível
eliminar toda a quantidade do organismo, reduzindo-a a um zero absoluto
(caso de um sistema inorgânico). A tarefa agora é a de mantê-la num nível
controlado, de modo que, desde que ela exceda um certo limite, ela possa ser
descarregada através de uma ação no mundo exterior. O princípio de inércia
do sistema primitivo deve ceder lugar ao princípio de constância[18]. O
retorno ao inanimado não pode ser então feito senão após um certo desvio
que se chama vida.

Especificidade humana: a inadequação do objeto

Todavia, este “desvio” da vida não basta naturalmente a


caracterizar o que é propriamente humano. Com efeito, vemos que o ser
humano, contrariamente a outros seres vivos, nasce completamente
desaparelhado para sobreviver. Quando ele faz sua aparição no mundo, ele se
encontra numa situação no mínimo delicada. Seu desenvolvimento motor é
extremamente precário — ele não pode deslocar-se por seus próprios meios
(e não poderá fazê-lo senão depois de alguns meses) — e seu processo de
mielinização cerebral tampouco está completo. Assim sendo, ele deverá
contar necessariamente com a ajuda de uma outra pessoa, seu próximo, para
sobreviver. Abandonado à sua própria sorte, ele morrerá indubitavelmente.
Sua sobrevivência está deste modo inteiramente dependente da intervenção
de um outro ser humano. Um tal estado de dependência é absolutamente
crucial no que diz respeito ao processo de constituição do sujeito e, por
consequência, de sua realidade psíquica.

No entanto, esta dependência não é tampouco suficiente à


delimitação da especificidade humana. De fato, em que exatamente o ser
humano diferiria de outros animais superiores, uma vez que se poderia dizer
que um chimpanzé recém-nascido também não teria a menor possibilidade de
sobreviver sem a ajuda de sua mãe, e o mesmo valeria para um gato, que
nasce mesmo com os olhos fechados? Isto quer dizer que não pode ser
somente esta dependência primordial do outro aquilo que exprimirá a
particularidade humana (embora ela tenha uma importância decisiva na sua
constituição posterior). Deve-se então procurar outros atributos para
estabelecer esta diferença.
A linguagem, a capacidade simbólica humana, apresenta-se
logo como a resposta mais provável. Realmente, o homem é o único animal
falante que existe, que possui um sistema simbólico altamente complexo,
capaz de criar cultura, o que lhe permite transmitir o saber adquirido de
geração em geração. Esta possibilidade de ‘acúmulo’ de saber é mesmo a
base para a constituição do que se chama civilização.
Contudo, ainda que nós possamos estar satisfeitos com este
aspecto de distinção — totalmente decisivo —, cremos que é necessário
ainda assim acrescentar a este um outro, uma vez que ele é a tela de fundo,
por assim dizer, sobre a qual a aquisição da linguagem faz sua aparição. Este
aspecto concerne à prematuração do ser humano, já mencionada, mas, desta
vez, esta será tratada não apenas ou exatamente no sentido de que ela implica
uma dependência do outro para sobreviver, senão no sentido mais preciso de
que o homem nasce sem ter um objeto pré-definido de satisfação.
Contrariamente aos outros animais que já nascem com instruções bem
precisas sobre seu objeto de satisfação, sobre o modo de reconhecê-lo e de
procurá-lo, o ser humano nasce desprovido de tais instruções, sendo-lhe
portanto necessário adquirir a partir da experiência, e principalmente por
intermédio dos outros homens, quase todas as informações necessárias à sua
sobrevivência e estada no mundo.
É assim, num panorama de indeterminação fundamental do
objeto primeiro de satisfação, que faremos nossa investigação. É importante
dizê-lo porque, estando a indeterminação na origem, não será difícil perceber
a razão da importância da linguagem na constituição do sujeito e da realidade
que lhe concerne. De fato, para um ser para quem tudo (ou quase tudo) está
ainda por se escrever — ou se inscrever —, a riqueza e a ambiguidade
essenciais da linguagem ao mesmo tempo definem e multiplicam
enormemente suas possibilidades.

OPERAÇÕES E TENDÊNCIAS PRIMORDIAIS


O aparelho psíquico humano deve ser considerado sob dois
aspectos: enquanto organismo vivo, ele deve ser capaz de acumular energia,
quantidade; enquanto organismo prematuro[19], ele deve aprender como obter
satisfação. A primeira exigência será satisfeita pela operação de ligação das
quantidades; a segunda implicará uma tendência à repetição da experiência de
satisfação originária, que ficará desde então como o modelo privilegiado de
toda satisfação futura.
A operação de ligação tem como noção subjacente a distinção
entre uma quantidade livre e uma quantidade ligada, uma distinção que
aparece bem cedo na obra de Freud, no Entwurf[20], de 1895[21], e que
permanece válida durante toda sua obra[22]. Esta insistência e permanência
nos darão ao mesmo tempo o estímulo e a legitimidade para empreender um
trabalho de depuração conceitual desta distinção, a ponto de transformá-la em
uma das noções cruciais de nossa exposição. Com efeito, através desta
distinção, nós conseguiremos articular e delimitar solidamente alguns
conceitos fundamentais da psicanálise. Isto nos permitirá, por exemplo,
eliminar da pulsão seu suposto caráter mítico e obscuro ao mostrar a
articulação das ordens pulsional e significante, do real e do simbólico.
Além disso, ao nos permitir chegar a uma definição mais clara
das leis e procedimentos primordiais do psiquismo, poderemos mesmo
conseguir resolver alguns paradoxos, como a oposição entre o princípio do
prazer e a tendência à repetição, a existência do gozo e sua relação ao
sofrimento.
A esta distinção de base, uma outra se acrescentará, o que nos
permitirá tornar mais finas as delimitações e as articulações esboçadas, uma
vez que ela nos servirá diretamente de ponte entre os produtos da memória (Q
ligada, identificada à articulação dos traços mnêmicos) e o universo
significante. Esta nova distinção será aquela entre representação-palavra e
representação-objeto, mas com um acréscimo: a representação-coisa[23]. Isto
quer dizer que nós pretendemos mostrar que há uma diferença conceitual
importante entre a representação-objeto, que pertence ao pré-consciente
(PCs), e a representação-coisa, que pertence ao sistema inconsciente (Ics). É
nossa intenção resolver as ambiguidades que cercam suas aparições na obra
de Freud e mostrar a utilidade desta distinção.

Ligação e psiquismo
O Entwurf é uma obra especialmente importante para nosso
propósito. Será a partir dele que nós tentaremos começar a estabelecer
algumas delimitações conceituais. Nele, sabemos, Freud não trabalha com o
conceito de pulsão, mas podemos ver na Qn um precursor legítimo deste
conceito. A pulsão, todavia, não pode ser inteiramente identificada à Qn,
sendo-nos necessário assim examinar onde estão as possíveis diferenças. E
estas, veremos, serão coextensivas à diferença entre Q livre e Q ligada[24].
Qn é vista por Freud como uma estimulação de caráter
endógeno, uma força constante, que, ela apenas, não é suficientemente forte
para despertar a atenção psíquica. Seu efeito no psiquismo se faz por
somação, isto é, é somente após um certo grau de excitação que haverá uma
tendência à descarga, uma urgência que é passível de ser liberada por via
motora. É somente após superado este limite que esta quantidade de excitação
é capturada pelo psiquismo.
Aqui já podemos estabelecer uma leve diferença entre pulsão e
Qn. Sabemos, através de sua definição clássica, que a pulsão é um conceito
limite que articula o psíquico e o somático. A pulsão não é, portanto, estímulo
psíquico. Ela é, antes, um estímulo para o psíquico, algo que, do exterior, faz
uma exigência de trabalho ao psiquismo[25]. Quer dizer, o que é da ordem do
psiquismo é não a pulsão, esta considerada em si mesma, mas o que se deverá
constituir como seus representantes. Contudo, Qn faz irrupção no psiquismo,
trata-se uma carga que circula também no interior do aparelho psíquico[26]. A
pulsão, assim, não poderia ser identificada a Qn a menos que se possa
diferenciar seus aspectos de existência dentro e fora do psiquismo. E isto
pode ser feito através do conceito de ligação e investimento.
Vimos que o aparelho psíquico, pertencendo a um organismo
vivo, é forçado a acumular energia. Não podendo evacuar toda a quantidade
por meio da via reflexa, ele deve capturar e transformar esta força que o
constrange até que a ação específica possa acontecer. Essa transformação
consiste na passagem de energia somática a energia psíquica[27]. A ligação é
equivalente a esta operação de captura e transformação[28].
O que se passa então? Segundo Freud, ligar energia é fazê-la
passar de energia livremente móvel a energia em repouso, estática. Isto quer
dizer que o que consistia num estado de pura dispersão das excitações
integra-se numa rede, num grupo de neurônios ou representações[29]
investidos. O investimento, de seu lado, não é mais do que o fato da Qn
ligada a um grupo de neurônios (ou a um grupo de representações[30]) ou
ainda o fato mesmo da articulação de traços mnêmicos. Ora, o efeito imediato
deste investimento é a ligação disto que até o momento era energia livre. A
partir daí, uma parte da Qn, ao invés de se dirigir à descarga, tem seu
percurso alterado em benefício de seu investimento, ficando aprisionada. A
ligação consiste propriamente em uma contenção ao livre processo de
escoamento das excitações.
Ocorre que esta operação significa também uma redução da
tensão no interior do aparelho psíquico, já que se diminui a quantidade de
movimento interno. Num organismo vivo, que tem necessidade de se
proteger da pressão interior, vemos que a operação de ligação é mesmo um
procedimento primordial de defesa. Ligar Q é a forma primeira e, portanto,
privilegiada de enfrentar o incômodo da tensão, reduzindo seus efeitos[31].
No entanto, isto instala um paradoxo: embora a ligação reduza
a tensão (pela diminuição da quantidade de movimento), ela acarreta também
um acúmulo de energia no aparelho psíquico (mesmo se há também a
intenção de descarga posterior).
Aqui, vemos então esboçado o que funda a antinomia entre o
princípio do prazer e a repetição, entre o gozo e o princípio do prazer[32]. Em
que sentido? Sabemos que o princípio do prazer não ordena somente a
redução da tensão por meio da ligação, mas ele o ordena preferencialmente
por meio da descarga motora (evacuação real de Q). Contudo, o princípio do
prazer não pode ser completamente obedecido, já que isto implicaria uma
satisfação alucinatória, insuficiente para fazer cessar a tensão interna. Deste
modo, é preciso esperar que se produzam novas percepções antes que se
autorize a descarga das quantidades. Ora, para esperá-las, é necessário
impedir o processo alucinatório e suportar o aumento da tensão interna. Os
dois requisitos são preenchidos pela operação de ligação. É então ela que
permitirá ao aparelho psíquico passar do processo primário ao processo
secundário, do princípio do prazer ao princípio de realidade[33].
Como se faz esta passagem? Para sabê-lo, é preciso investigar
um pouco mais a experiência de satisfação e as marcas que ela deixa no
psiquismo.

As primeiras experiências humanas.


Como já o vimos, o ser humano é um organismo que nasce
prematuramente. Assim, mal preparado para a vida, não resta à criança outra
possibilidade que aquela de gritar quando ela é incomodado por uma
estimulação interna ligada às necessidades corporais. Tal urgência vital,
contudo, não se interrompe por uma simples descarga motora. Tal conduta
não elimina a tensão interna, sendo necessária a vinda do outro a seu socorro
para suprir suas necessidades básicas. Não há senão esta ajuda do outro para
fazer cessar a estimulação endógena[34]. Tal eliminação da tensão interna dará
lugar então a uma experiência de satisfação (Befriedigungserlebnis), a qual
será gravada pela criança e será sua primeira instrução de sobrevivência.
Desde então, ela será o modelo fundamental para a obtenção de satisfação e
será interpretada pela criança como o caminho privilegiado de descarga,
aquele que poderá efetivamente desembaraçá-la das quantidades endógenas
perturbadoras.
A partir desta experiência, estabelece-se uma via facilitada
(Bahnung) entre os traços mnêmicos da excitação produzida pela necessidade
e os traços mnêmicos da percepção, de tal modo que, quando o estado de
necessidade se repetir, surgirá um impulso psíquico que procurará reinvestir a
imagem mnêmica do objeto (leite, seio) com a finalidade reproduzir a
satisfação original. Dito de outro modo, a experiência de satisfação gera uma
facilitação entre duas imagens mnêmicas (aquela do objeto de satisfação e
aquela da descarga pela ação específica), o que faz com que, o impulso tendo
ressurgido, o investimento passe às duas imagens mnêmicas, reativando-as.
Contudo, não estando presente o objeto externo, o que acontece é uma
alucinação, com a decepção subsequente, já que a estimulação permanece na
fonte. Esta alternativa “direta” — chamada de processo primário[35] —
mostra-se portanto insuficiente. Sem o objeto externo, a tensão não é
eliminada.
Ora, o fracasso da repetição da experiência de satisfação por
meio da alucinação mostra que o caminho preferencial para a obtenção de
satisfação futura deverá ser não a via mais curta, mas justamente a via
desviada, aumentada em extensão pelo mecanismo de ligação. E isto vai
reforçar de modo decisivo o papel da ligação no funcionamento do aparelho
psíquico. De fato, desde que há dois modos de diminuir a pressão de Q —
descarga e ligação — e sendo dado que o aparelho psíquico não é um
aparelho reflexo, ocorre que o primeiro modo só pode ser feito (sem que haja
dano para o aparelho) por meio do segundo, e assim o mecanismo de ligação
assume, ao mesmo tempo, o título de operação fundamental de defesa contra
Q e de organizador dos modos secundários de descarga.

Mas não nos enganemos: o fato de as ligações servirem aos


processos secundários não lhes retira seu caráter de operação de defesa
primordial e, num certo sentido, independente do fato da experiência de
satisfação. Invadido por um excesso de Q e a descarga sendo impossível, a
única solução para o aparelho psíquico é ligar esta quantidade excedente para
reduzir a tensão interna[36]. É neste sentido que Freud diz que este mecanismo
é independente do princípio do prazer, embora não lhe seja essencialmente
oposto. Assim, vemos bem em que o mecanismo de ligação difere do
princípio do prazer. O princípio do prazer não é mais do que uma tendência
(do aparelho psíquico a se livrar de Q), enquanto que a ligação é um
procedimento, uma operação efetiva que o aparelho psíquico não pode
dispensar.
Além disso, nós podemos fazer uma segunda distinção, desta
vez entre o princípio do prazer e a compulsão à repetição. A repetição é, ela
também, uma tendência, uma espécie de lei, e não um procedimento, uma
operação psíquica. Contudo, a repetição é uma tendência ainda mais
primitiva, num certo sentido, do que o princípio do prazer. Por quê? Porque,
no caso humano, não há objeto pré-determinado, objeto adequado à
satisfação. Ora, isto obriga o ser humano a aprender como obter satisfação, o
que será feito pela eleição da experiência de satisfação originária como
modelo privilegiado para as satisfações futuras. Ora, o modo de transformar
uma experiência singular num modelo se faz através de dois procedimentos:
(a) a gravação da experiência de satisfação (o que se faz via construção de
Bahnungen); (b) a repetição do percurso criado por esta via, por esta trilha. E
aqui assistimos ao estabelecimento de uma aliança praticamente inabalável:
a compulsão à repetição mais o mecanismo de ligação[37].
O paradoxo do gozo.
O casamento da compulsão à repetição com o mecanismo de
ligação, devemos dizê-lo, é um casamento potencialmente perigoso. Com
efeito, ligar é sobretudo reter Q no aparelho psíquico. É aumentar a
quantidade de energia no sistema (mesmo se ela está em repouso), é como
criar uma barreira de energia no interior do aparelho. Numa palavra, é elevar
a tensão, mesmo se em estado controlado, no psiquismo.

Acontece que, desde o fracasso da satisfação via alucinação, a


compulsão à repetição se fia no procedimento de ligação como garante da
satisfação futura. O que queria o princípio de repetição não era mais do que
eleger uma via de evacuação, ele não procurava mais do que garantir uma via
preferencial de gozo, um modo de satisfação, mas ele termina por eleger na
sequência um modo preferencial de operação (a ligação).
Isto dito, pouca coisa é necessária para tirar daí uma
justificação da existência de um masoquismo originário, do gozo da tensão: a
aliança entre repetição e ligação põe-se assim como a base de toda satisfação
que implica um acúmulo de tensão interna. E isto é uma consequência que se
mostra necessária, ainda que derivada, da constituição do aparelho
psíquico[38].
***

Resta-nos tirar ainda uma última consequência desta operação


de ligação, desta distinção entre Q livre e Q ligada. Algumas linhas acima,
nós fizemos uma tentativa para identificar a pulsão e a Qn livre. De fato,
como a pulsão, a Qn livre permanece fora do psiquismo, mas faz sentir seus
efeitos no psiquismo enquanto Q ligada. Assim, a pulsão pode ser
identificada à Qn livre, na medida em que ela também tem sua origem
somática, em que ela também se apresenta como força constante e faz
exigência de trabalho ao psiquismo. O psiquismo, de seu lado, pode ser
identificado ao território da Q ligada, já que toda energia, para ser por ele
assimilada e ter nele algum efeito, deve ser primeiramente ligada numa rede
que a contenha e a organize em caminhos, trilhas (Bahnungen) privilegiados.
É então a ligação da Qn que inaugura o psiquismo.
Mas o que é feito dos representantes da pulsão? Ou, em outros
termos, qual é a relação entre estes representantes e a Q ligada? Já dissemos
que o efeito da captura da Qn livre pelo psiquismo era sua articulação numa
rede de Bahnungen. Deste modo, devemos procurar agora a explicação de
como os dois representantes da pulsão (a Vorstellung e o afeto) se encontram
implicados, imbricados nesta ligação de Q, nesta formação de percursos
diferenciados que são as facilitações ou Bahnungen. Isto será explicado na
sequência, quando mostraremos que a rede de Bahnungen é propriamente
uma rede significante. Mas é preciso primeiramente examinar a constituição
do aparelho psíquico enquanto aparelho de linguagem.

MEMÓRIA E LINGUAGEM. INTRODUÇÃO DO OUTRO


Para Freud, o aparelho psíquico é antes de tudo um aparelho de
memória, capaz de gravar as experiências para utilizá-las depois como guia
de ação. Ora, acontece que a constituição deste aparelho se faz entre homens
que constituem uma comunidade falante, o que vai ‘transformar’ este
aparelho de memória num aparelho de linguagem. Isto implica já duas coisas:
(a) não há um aparelho de linguagem concebido isoladamente. Um aparelho
de linguagem está sempre em relação com outros aparelhos e depende desta
relação para se constituir; (b) o processo de aquisição da linguagem segue o
processo normal de memorização, isto é, trata-se de um processo de ligação e
associação que está na raiz da formação das palavras e da produção de
significações. É necessário então abordar as duas questões em bloco:
memória e linguagem.
Já dissemos que o registro da experiência de satisfação tem
como resultado a formação de Bahnungen, as quais se apresentam como uma
cadeia de percursos diferenciados ou privilegiados. Isto quer dizer que a
memória não é mais do que o conjunto destes trilhamentos, não é mais do que
sua articulação. Examinemos agora como estes trilhamentos se formam.
Inicialmente, nós devemos dizer que nem tudo o que é
percebido é gravado pelo aparelho psíquico. Com efeito, nós não gravamos
senão certos traços das impressões recebidas. A impressão, em si mesma, não
constitui memória. São seus traços que serão registrados e depois organizados
numa rede[39].
O traço é propriamente uma diferença entre as Bahnungen. Ele
vai constituir-se pela elevação de barreiras de contato[40] resistentes ao livre
escoamento da excitação, e sua formação dependerá fundamentalmente de
dois fatores: (a) da intensidade da impressão; (b) da repetição[41]. A
intensidade da impressão será responsável pela formação das barreiras de
contato, e a diferença entre elas dará lugar a um caminho preferencial. A
repetição será o percurso mesmo desses trilhamentos favorecidos, os quais
não são imutáveis, uma vez que de tempos em tempos os traços são
submetidos a retranscrições.

A Carta 52[42]
Na Carta 52, Freud comenta com Fliess sua hipótese de que
nosso aparelho psíquico se teria estabelecido por um processo de
estratificação sucessiva, pois “os materiais presentes sob forma de traços
mnêmicos se encontram de tempos em tempos reordenados segundo as novas
circunstâncias”. “O que há de essencialmente novo na minha teoria é a ideia
de que a memória é apresentada não uma só vez, mas muitas, e que ela se
compõe de diversos tipos de signos”[43].

Neste momento, Freud apresenta o seguinte esquema: em


primeiro lugar, haveria as percepções (Wahrnehmungen), às quais a
consciência se liga, mas que não conserva por elas mesmas nenhum traço do
que se passou (já que percepção e memória se excluem). Estas percepções se
fariam registrar, num primeiro tempo, enquanto Wahrnehmungszeichen
(traços de percepção), inacessíveis à consciência e articulados segundo uma
associação por simultaneidade. A partir daí, duas outras transcrições ainda
ocorrerão: (1) a transcrição relativa ao sistema inconsciente (Unbewusstsein),
que será ordenada segundo um sentido causal, sugere Freud, e igualmente
inacessível à consciência; e (2) a retranscrição que se faz a um nível pré-
consciente, mediante ou mediada por representações-palavra
[44]
(Wortvorstellungen) .
E isto nos conduz ao campo da linguagem propriamente dita.

O aparelho de linguagem
Até o momento, vimos que o homem é capaz de gravar os
eventos que o atingem através da criação de grandes complexos associativos
chamados Bahnungen. Ora, o que acontece é que, entre os múltiplos eventos
que serão gravados pela criança, há a experiência do discurso do outro.
Juntamente com o leite, o seio, o homem registra sons, sons de palavras, os
quais ele vai terminar por associar a certos objetos devido à regularidade com
que eles aparecem unidos.
A constituição do aparelho de linguagem se fará assim através
de um processo de associação, o qual vai unir dois grandes complexos
associativos: o complexo das associações de objeto e o complexo das
associações de palavras. Tal associação formará, de um lado, a
representação-objeto (Objektvorstellung) e, do outro, a representação-
palavra (Wortvorstellung)[45].
O que se produz por esta ligação tem consequências nos dois
sentidos: as associações de objeto vão adquirir unidade a partir de sua ligação
com a representação-palavra, formando a representação-objeto; por sua vez, a
representação-palavra obtém sentido através da sua ligação com a
representação-objeto. O aparelho de linguagem é assim um aparelho que
articula representações, e esta articulação tem um efeito de sentido.

Observemos, contudo, que o efeito de significação vai resultar


não da relação entre a representação-palavra e a coisa externa ou mundo
exterior ou o referente (ou entre este e a representação-objeto), mas da
relação entre a representação-palavra e a representação-objeto.
Isto fica claro desde o momento em que Freud faz a distinção
entre afasia assimbólica e agnosia. A agnosia é propriamente um problema
de reconhecimento de objetos, isto é, uma impossibilidade de se valer da
linguagem adequada uma vez que um eixo determinado da associação de
objetos foi rompido. A afasia assimbólica, de seu lado, diz respeito a um
problema na relação entre a representação-palavra e a representação-objeto,
relação que “me parece merecer mais a qualificação de ‘simbólica’ do que
aquela existente entre um objeto e uma representação-objeto”[46]. Além disso,
uma página antes, Freud já havia dito que “a palavra adquire sua significação
pela ligação com a ‘representação-objeto’”[47]. Quer dizer que Freud faz
nitidamente a distinção entre o campo representativo (que contém as
representações-palavra e as representações-objeto) e o terreno do objeto (o
mundo exterior), e diz assim que a relação simbólica se estabelece no interior
do campo representativo.
Para lançar um pouco mais de luz no assunto, é preciso
lembrar-se que é somente a partir da representação-palavra que a
representação-objeto pode ter unidade e desempenhar uma função de
conceito. Nós podemos então afirmar que, num certo sentido, é a
Wortvorstellung que cria a Objektvorstellung (e não o objeto exterior). Deste
modo, a representação-objeto não pode funcionar senão como índice do
objeto exterior (jamais como sua cópia), e os atributos da coisa exterior serão
então definidos no registro das representações, registro psíquico, sendo
necessária obediência às suas próprias leis.
Ora, aqui é inevitável fazer uma alusão tanto a Saussure quanto
a Lacan. Com efeito, não seria exagero dizer nem que Freud desenvolve aqui
um esboço de teoria linguística, nem que ele antecipa algumas das ideias
lacanianas. Façamos de início corresponder a representação-palavra freudiana
ao significante, e a representação-objeto ao significado saussurianos[48].
Assim, na medida em que Freud diz que o complexo de
associações de objeto não tem unidade senão através da representação-
palavra, ele diz, ao mesmo tempo, que a função de significado é dependente
da função de significante. Dito de outro modo, é a representação-palavra que
faz das associações de objeto uma representação-objeto, ou seja, que a cria[49].
A representação-palavra precede então logicamente a representação-objeto,
assim como o significante precede o significado, o que disse Lacan mais
tarde nos seus trabalhos.

A Retranscrição Pré-consciente[50]
Já dispomos neste momento de elementos suficientes para
examinar o que se passa no nível da retranscrição pré-consciente. Nesta, o
material mnêmico será ligado às representações-palavra e com isso ele
ganhará possibilidade de acesso à consciência.

Mas qual é exatamente este material mnêmico ao qual as


representações-palavra se vão associar? O registro das representações-palavra
é o registro do PCs. Temos então duas pistas: a primeira diz que o registro
mnêmico anterior é o registro do Inconsciente; a segunda diz que as palavras
vão vincular-se às associações de objeto, em lhes dando por esta ligação uma
unidade conceitual de objeto (Objektvorstellung). Parece então que não nos
resta outra solução senão afirmar que o material mnêmico do Ics é composto
por associações de objeto, restando para o registro do PCs a unidade
conceitual das representações-objeto, assim como as representações-palavra
que lhes são associadas.
Todavia, no seu artigo O Inconsciente, Freud vai dissecar os
conceitos. Lá ele nos diz que o que era até então designado sob o termo de
representação-objeto (Objektvorstellung) será decomposto em representação-
palavra (Wortvorstellung) e representação-coisa (Sachvorstellung)[51]. Com
isto, ele delimita o que ele entende ser a diferença entre uma representação
consciente e uma inconsciente: “a representação consciente compreende a
representação-coisa — mais a representação-palavra que lhe pertence — a
representação inconsciente é a representação-coisa apenas”[52].
Isto nos conduz, entretanto, a uma dificuldade conceitual. É a
Sachvorstellung sinônimo da Objektvorstellung, e então podem elas ser
utilizadas indiferentemente uma no lugar da outra? Ou tratar-se-ia antes de
conceitos diferentes? Tal distinção é de grande importância. Com efeito, as
Objektvorstellungen, quando elas se referem a seu casamento com as
Wortvorstellungen, podem naturalmente tornar-se conscientes. É
propriamente o que nós identificamos conscientemente como objetos. De
outro lado, as Sachvorstellungen, referidas ao sistema Ics, dificilmente
poderiam ser ditas susceptíveis de se tornarem conscientes (pois a
propriedade de tornar-se consciente é ligada aos conteúdos do PCs). Além
disso, Freud havia-nos dito que as associações de objeto só obtinham unidade
através da Wortvorstellung: como dizer agora que as Sachvorstellungen são
da ordem do Ics se neste não há Wortvorstellungen para lhes darem unidade?
O problema consiste então em definir de onde vem a possível unidade da
representação-coisa (Sachvorstellung), se o Ics não conta com as
representação-palavra para fazê-lo[53].
Ainda que Freud não seja totalmente cristalino a este respeito,
temos uma proposta de solução que pretende, ao mesmo tempo, respeitar a
letra do texto freudiano e lhe dar um maior rigor conceitual.
Retomemos a Carta 52. Lá, Freud nos fala inicialmente de um
primeiro registro dos Wahrnehmungszeichen (traços de percepção), cuja
‘regra’ de associação era simplesmente a simultaneidade. Estes
Wahrnehmungszeichen, então, nós poderemos pensá-los como sendo as
associações de objeto propriamente ditas, já que não há nada que as unifique
além de sua ocorrência simultânea[54]. É o material mnêmico mais primitivo,
não articulado em sistema, não articulado em Bahnungen. Após isto, haveria
a transcrição inconsciente, quando este material, este conjunto desordenado
de traços, seria organizado, articulado, segundo uma ordem causal. Seria
assim esta articulação causal que inauguraria propriamente o psiquismo, uma
vez que antes não havia senão traços mnêmicos gravados uns após os outros,
sem nenhuma relação especial ou duradoura entre eles. A unidade das
representações inconscientes seria dada então, segundo nossa hipótese, por
esta ligação causal.
É preciso, todavia, examinar de onde vem esta causalidade, de
onde vem o princípio de organização destas representações inconscientes.
Ora, para determinar isto, é absolutamente necessário não esquecer jamais as
características principais do sistema inconsciente. Em outras palavras, nossa
hipótese não seria válida se a causalidade de suas representações
contradissesse o fato de que tais representações têm a relação mais estreita
com a formação do desejo. A teoria do desejo inconsciente é crucial na
psicanálise, e, portanto, a causalidade de suas representações deve levar em
conta esse fato.
A questão que se coloca agora é: de onde vem o desejo e como
ele pode fazer-se representar nas inscrições e transcrições mnêmicas? A
resposta se deixa já adivinhar, e não há mesmo outra: evidentemente, da
experiência de satisfação primordial.
Retomada da experiência de satisfação (Befriedigungserlebnis)
Retomemos então nosso raciocínio a partir de outros conceitos.
O organismo prematuro sofre uma sensação corporal de dor, de tensão
(SC1); ele grita (numa vã tentativa de se livrar da quantidade Q); uma outra
pessoa (o próximo, o Nebenmensch) vem em seu socorro e realiza para ele a
ação específica, dando lugar em seguida à sensação corporal de satisfação
(SC2). Esta sequência de eventos é propriamente o primeiro objeto de
registro mnêmico para o ser humano, e por isso a passagem de SC1 a SC2
não pode ser gravada pela criança senão enquanto Wahrnehmungszeichen[55].
Mas como é isto possível, se a passagem da primeira sensação corporal à
segunda pareceria fazer referência antes a ordens distintas de eventos (que
não poderiam, portanto, ser pura e simplesmente registradas segundo uma
associação por simultaneidade) do que a um só evento? A razão é que o
registro não é possível senão pelo surgimento das percepções que acarretam a
satisfação, isto é, o que vai tornar possível a associação entre SC1 e SC2 são
essas percepções de satisfação e, portanto, para a criança, não se trata senão
de um e apenas um único evento. A prova disso é que, quando sobrevém de
novo SC1, a criança passa imediatamente a SC2, alucinando a satisfação. O
que equivale a dizer que não é senão num a posteriori que as duas sensações
corporais poderão ser separadas, exatamente por intermédio das ligações que
se interpõem entre elas. Neste momento, antes da intervenção das ligações,
não há ainda registro Ics, não há ainda sistemas psíquicos distintos, e, no
limite, não há ainda psiquismo.
O Outro e a entrada no Simbólico
É então no que se segue que tudo o que é especificamente
humano vai fundar-se. Por ocasião das ajudas subsequentes do Nebenmensch
(do Outro), o que era uma pura “secreção do organismo” — o grito — vai
transformar-se numa espécie de ação específica, a primeira e única do recém-
nascido. O grito vai experimentar uma “mutação significante” e tornar-se
apelo, isto é, vai adquirir uma função secundária de comunicação, uma
função significante[56]. A resposta do Outro vai assim tornar possível a
assunção, por parte da criança, de um primeiro significante para se fazer
representar junto aos outros significantes. Será então um significante do
Outro (S2 — o significante da resposta) que vai, num movimento a posteriori,
fazer do grito um significante, S1 (o significante que vai representar o sujeito
e também o significante da demanda)[57].
Com essa mutação significante, muitas consequências decisivas
terão lugar. O sujeito humano entra agora no terreno das trocas propriamente
simbólicas, o que implica que suas procuras de satisfação futura deverão daí
em diante ser feitas no interior dessa ordem. Com efeito, após o fracasso da
satisfação alucinatória, não resta à criança senão se fiar na satisfação trazida
pelo Outro. Além disso, se quisermos ser mais precisos no que concerne ao
vocabulário conceitual utilizado, a criança não se torna sujeito senão através
da apropriação significante. De fato, é quando o grito torna-se apelo, torna-se
demanda, que a criança se torna um sujeito, o apelo sendo seu gesto primeiro
e fundador. O apelo é uma demanda ao Outro, e sua resposta tem uma função
de reconhecimento. A partir dessa troca primordial, seus destinos — da
criança e do Outro — estarão intimamente imbricados, um no outro.
Ora, não é senão após a constituição do sujeito que se pode
verdadeiramente falar de um sistema inconsciente. Lembremo-nos que uma
das definições lacanianas para o Ics é justamente: “o inconsciente é o
discurso do Outro”. Quer dizer, não há inconsciente antes da entrada
irremediável do Outro na vida do sujeito. Não há inconsciente antes da
mutação significante.
A causalidade que concerne às representações inconscientes, as
Sachvorstellungen, será assim atravessada pela influência do Outro, pela
ordem simbólica. Dito de outra forma, as representações-coisa, na medida em
que elas não apenas articulam SC1 e SC2, mas também fixam as marcas, os
signos deixados pelo Outro nos caminhos de satisfação, estas representações
organizam-se desde já enquanto cadeia articulada, cadeia significante. Vemos
assim que a rede de Bahnungen, tal como sugeriu Lacan[58], é uma rede
significante e portanto construída segundo suas leis.
O círculo fecha-se então. As representações-coisa inconscientes
podem ser legitimamente chamadas de “representações” uma vez que elas
obtêm sua “unidade” através da articulação causal significante, isto é, através
do desejo[59] (o qual imbrica o Outro na experiência de satisfação). Deste
modo, diremos que as representações-coisa são, sim, do registro do Ics. De
sua parte, o registro do PCs conteria, efetivamente, numa certa medida, a
representação-coisa mais a correspondente representação-palavra (já que
seria esta a retranscrição pré-consciente: vínculo das representações-palavra
ao material psíquico do Ics). Contudo, não seria senão com o vínculo das
representações-palavra que as representações-coisa adquiririam uma unidade
conceitual, esta inexistente no inconsciente. Ora, as representações-coisa com
unidade conceitual são justamente as representações-objeto, as quais podem
tornar-se conscientes pelo intermédio das palavras.
Tem-se, desde então, uma dupla vantagem nesta distinção entre
Sachvorstellungen e Objektvorstellungen. A primeira é a delimitação de
pertencimento das representações a sistemas distintos e, a partir daí, a
segunda, a saber, a possibilidade de lhes vincular diferentes propriedades[60].
Com efeito, como se sabe pelo exame dos sonhos, as representações
inconscientes são muito mais maleáveis do que aquelas pré-conscientes. As
primeiras têm grande facilidade para se condensar umas nas outras, para
trocar elementos, enquanto que as representações pré-conscientes mantêm em
geral sua estrutura, seu caráter invariante adquirido por intermédio da
representação-palavra, do significante. É esta estrutura mais ou menos
“formal” que nós chamamos “unidade conceitual”[61].
Rigorosamente, então, as representações-coisa, essencialmente
inconscientes — após terem experimentado a retranscrição do PCs pelo
vínculo às representações-palavra — dão lugar às representações-objeto,
estas sendo dotadas de unidade conceitual e podendo tornar-se conscientes.
Além disso, para uma última distinção, nós poderíamos acrescentar que o
processo característico de descarga no nível inconsciente é o processo
primário, isto é, as representações-coisa teriam por fim a descarga através da
identidade de percepção[62]. Por sua vez, as representações-objeto, dotadas de
uma unidade conceitual, podem ser ligadas um processo de pensamento
judicativo e tentar proceder a uma descarga pela identidade de pensamento,
processo secundário portanto. Esta é nossa tentativa de solução, nossa
hipótese de trabalho.

REAL E SIMBÓLICO

Até o presente, servimo-nos praticamente apenas de conceitos


tomados à obra freudiana. A razão é que, após ter feito uma delimitação
rigorosa no interior do quadro conceitual freudiano, estamos agora em
posição de inserir os conceitos lacanianos de modo que eles também se
possam beneficiar das depurações precedentes. Com efeito, se se considera
que a obra lacaniana empreendeu um retorno aos conceitos freudianos, é
evidente que esclarecimentos feitos de um lado estendem-se forçosamente ao
outro.
Assim, é chegado o momento de estender as delimitações já
feitas ao universo conceitual lacaniano. Algumas linhas acima, vimos que a
formação do aparelho psíquico, sua divisão em diferentes sistemas, começa
propriamente após a mutação significante, após a entrada do sujeito na ordem
simbólica. Isto é correto, mas nos é necessário agora fazer a articulação deste
fato com a distinção anterior entre pulsão e psiquismo, entre os traços
mnêmicos enquanto Wahrnehmungszeichen e os traços mnêmicos enquanto
representações organizadas numa rede significante. Além disso, nos é
necessário articular tudo isto com o conceito de real, sem o qual o conceito
de simbólico não pode adquirir todo seu alcance. Ora, acontece que as
equivalências entre pulsão e Qn livre de um lado, e entre psiquismo e Qn
ligada (quer dizer, terreno das Bahnungen, campo significante) do outro, nos
permitem já avançar na direção de uma delimitação bastante rigorosa do real
em relação ao simbólico.
Definamos de início o real como o que está fora do simbólico,
isto é, o que resta de inassimilável pela linguagem, pela rede significante e,
portanto, pelo psiquismo. Além disso, caracterizemos a ordem simbólica
como o campo onde precisamente se articulam os significantes, como o
campo dos efeitos de linguagem.

Assim, o psiquismo, na medida em que sua constituição se faz


em termos de articulação significante, deve ser pensado como sendo
diretamente tributário da ordem simbólica[63]. E isto — lembremo-nos — é
totalmente coerente com nossa afirmação anterior que estabelecia que a
inauguração do psiquismo era concomitante à entrada do Outro, à assimilação
dos traços mnêmicos numa cadeia significante.
Inversamente, a pulsão[64] deve ser dita do lado do real, na
medida em que ela resta irredutível à articulação significante que toma lugar
no psiquismo, na medida em que ela lhe demanda trabalho e, ao mesmo
tempo, fica fora do psiquismo. Ora, se a pulsão é dita real, isto equivaleria a
dizer que nós não temos acesso direto a ela, mas só podemos tê-lo através de
seus representantes, o que é exatamente o que dizem Freud e Lacan a
propósito de sua definição[65]. E mais: podemos dizer que, se a pulsão é
identificada à Qn livre (quantidade inarticulada, portanto), seus
representantes não podem então ser dados senão pelo fato mesmo das
quantidades ligadas em rede. Com efeito, os dois representantes da pulsão —
tanto a representação propriamente dita (die Vorstellung) quanto o afeto —
são efetivamente dependentes desta captura, desta ligação em cadeia. Ora, se
o fato de ser capturada pelo psiquismo equivale a ser articulada nas
Bahnungen, e se as Bahnungen em conjunto não são senão cadeias
significantes, nós chegamos então à conclusão inevitável de que o verdadeiro
destino das pulsões, de seus representantes, antes mesmo de toda
possibilidade de descarga ser considerada, é tornar-se articulação significante,
é tornar-se linguagem.
E eis aqui construída a ponte entre os dois territórios tão
distintos como o são o simbólico e o real. Este — frequentemente tão difícil
de situar e definir — ganha agora sua primeira delimitação conceitual: o real
é o que é inassimilável, inarticulável pelo psiquismo. Ele não se pode tornar
articulação e, portanto, não se pode tornar representação: ele é assim o
impossível a dizer.
Gozo: a satisfação real e o mais-de-gozar
Nossa distinção entre real e simbólico pode ser agora aplicada à
questão da satisfação. Se tomamos a experiência de satisfação originária,
temos dois planos distintos a considerar: o eixo real, aquele que conduz
diretamente de SC1 a SC2[66]; e o eixo simbólico, aquele que acarreta um
desvio nos caminhos de descarga, um retardamento da satisfação e um
prolongamento dos trilhamentos.
O eixo SC1-SC2 pode ser pensado como comum aos homens e
aos animais. É o eixo da satisfação real, da descarga efetiva, evacuação real
da quantidade do organismo. Uma descarga completa de Q do organismo o
conduziria ao estado inorgânico, isto é, inanimado, morto. Deste modo, um
impulso que pede para se livrar de toda quantidade que existe no sistema
orgânico bem poderia ser chamado “instinto (ou pulsão) de morte”[67] ou
“tendência ao retorno ao inanimado”, como o descreveu Freud. Para
permanecer em vida, portanto, nenhum organismo pode eliminar toda a
quantidade, toda tensão interior.
No animal, a passagem de SC1 a SC2 faz-se por intermédio de
operações imaginárias. Isto quer dizer que o animal capta uma forma, uma
Gestalt na natureza, e isto desencadeia uma reação apropriada. Tanto a forma
quanto a reação, podemos dizer que elas estavam já preestabelecidas, pré-
codificadas (em grande parte) geneticamente. O animal conhece previamente
seu objeto adequado e sabe como agir diante dele. Além disso, devido ao fato
de que o mecanismo de desencadeamento está mais ou menos pronto, a
descarga de satisfação no animal é tão completa quanto possível, ela é
máxima. Ou seja, o animal pode livrar-se de toda quantidade que não se
conecta com a manutenção de suas funções vitais.
No caso do homem, tudo se passa diferentemente. Ao homem
falta o objeto adequado, pré-determinado. A passagem de SC1 a SC2 faz-se
assim ou diretamente, via alucinação, ou — no caso de fracasso desta via —
indiretamente, por intermédio do simbólico. Neste caso, há toda uma
construção de caminhos intermediários, caminhos que servem ao mesmo
tempo para reter a quantidade e para indicar as vias preferenciais de
satisfação[68].
A presença do simbólico implica já duas coisas muito
importantes. A primeira é que a satisfação humana não pode ser atingida
senão a partir de um longo desvio. Este desvio implica, por sua vez, retenção
de quantidade, de tensão e, em consequência, diminuição de parte das
possibilidades de descarga efetiva. Isto quer dizer que a descarga no homem é
grandemente incompleta, restando sempre uma tensão subjacente à
satisfação, o que mantém o aparelho psíquico em perpétuo movimento. Em
outros termos, a satisfação obtida através dos trilhamentos simbólicos é
sempre parcial, já que há sempre uma cota de energia que permanece
aprisionada[69] no psiquismo. Este resto que permanece ativo no psiquismo,
Lacan o elabora sob o conceito de objeto a. O objeto a vai ganhar várias
definições durante a obra de Lacan. Duas dentre elas nos interessam mais: o
objeto a como “causa do desejo” e o objeto a como “mais-de-gozar”.
Essas duas versões serão esclarecidas por intermédio desta
noção de “resto ativo” no psiquismo. Com efeito, na medida em que este
resto ativo indica uma insatisfação contínua[70], ele pode ser dito provocador
do desejo, o que mobiliza o aparelho psíquico à procura de novas satisfações,
de novos objetos no mundo exterior. De outro lado, o objeto a enquanto
mais-de-gozar pode ser melhor compreendido na medida em que se enfatiza
seu aspecto de excedente. De fato, é a Marx e a seu conceito de mais-valia
que Lacan faz referência e homenagem com seu “mais-de-gozar”. O que o
conceito marxista coloca em evidência é o fato de que, após toda operação
capitalista, há sempre um resto, um excedente que põe de novo em
movimento o sistema. Isto é, o proletário, através de seu trabalho, produz um
valor excedente que não lhe é restituído no seu salário. Este valor excedente é
apropriado pelo capitalista, que o reinveste no circuito de produção[71],
gerando ainda mais-valia. Ora, o objeto a enquanto mais-de-gozar enfatiza
justamente este movimento perpétuo e infinito desta quantidade que
permanece retida no psiquismo sem se poder evacuar completa e
adequadamente[72].
Esta “inadequação” está, evidentemente, ligada ao fato de que a
pulsão não tem objeto pré-definido de satisfação. Sem um objeto adequado a
priori, é preciso elegê-lo a partir da experiência originária de satisfação.
Assim, nosso primeiro objeto de satisfação será transformado no objeto
privilegiado, o qual deverá ser reencontrado nas satisfações futuras. A pulsão
ordena o reencontro do objeto primeiro, o reencontro de das Ding, para que a
satisfação primordial seja repetida. Contudo, esta repetição logo revela-se
impossível. Com efeito, da impressão de satisfação originária, não retemos
senão certos traços, os quais, além de serem organizados numa rede de
caminhos diferenciais, experimentam ainda remanejamentos sucessivos
segundo o desenvolvimento do aparelho psíquico. Com isto, entre o que se
procura repetir e o que se repete efetivamente, instaura-se um hiato
insuperável, hiato que vai mesmo fundar o fator pulsional[73].

Das Ding: um furo real no centro do aparelho psíquico

Mas por que é necessária a existência de um hiato ou de uma


defasagem entre o objeto procurado e o objeto encontrado? Uma vez mais, o
recurso ao Entwurf nos é de grande valia. Lá, Freud nos diz que a primeira
apreensão da realidade pelo sujeito é o Nebenmensch, o complexo do
próximo. Com efeito, é o Nebenmensch que toma a seu encargo a tarefa de
suprir as necessidades do recém-nascido, e portanto suas primeiras
percepções o incluem necessariamente. Este complexo do próximo, o sujeito
vai dividi-lo em duas partes: uma delas é inassimilável e se impõe por sua
constância (das Ding); enquanto a outra é variável e pode ser conhecida pelo
sujeito (pelo eu)[74].
Mais especificamente (utilizando o vocabulário fisicista do
Entwurf para nos ajudar neste primeiro momento), estas duas partes são o
neurônio a e o neurônio b. O primeiro pertence a ψ (PSI) núcleo, e o segundo a
ψ pallium. Esta indicação é importante, pois ela já indica por que o neurônio a
é inassimilável, incognoscível, enquanto que o neurônio b pode ser
conhecido, pode ser objeto de atribuição e comparação. De fato, o ψ pallium é
a parte do sistema ψ onde se vão formar as representações-palavra e, talvez
por sua proximidade a ϕ (PHI), onde se vão associar as quantidades vindas da
percepção. Ou seja, o que permite um conhecimento do neurônio b é seu
vínculo às qualidades que podem ser articuladas na rede significante. Do
outro lado, o ψ núcleo é o sistema que recebe os estímulos endógenos, que
recebe diretamente a pressão pulsional. É ele que tem a relação mais estreita
com o que se chamam sensações corporais, estas tidas enquanto “brutas”,
quer dizer, reais.
Isto dito, nós podemos retornar a um vocabulário menos
“fisiológico”, “fisicista”. A importância desta breve referência ao Entwurf,
contudo, está no sentido de indicar onde reside a irredutibilidade de das Ding,
sua impossibilidade de ser assimilada pelo psiquismo e de ser propriamente
conhecida. Ora, as consequências ou indicações que podemos tirar do
parágrafo acima é que das Ding deve ser situada no eixo das sensações
corporais (SC1-SC2), eixo real, portanto. Das Ding deve então ser vista
como o registro mnêmico real da satisfação ela mesma, traço inassimilável
porque não articulado em rede. De outro lado, a outra parte do complexo do
próximo situa-se no eixo simbólico, ou seja, no eixo das representações
qualitativas da experiência. Assim, é somente através dos traços mnêmicos
das qualidades das percepções que esta memória real de satisfação pode ser
associada às outras representações e tornar-se integrada, num certo sentido,
ao circuito simbólico.
Em outros termos: as qualidades das percepções vão associar-se
à sensação corporal de satisfação e vão dar lugar às representações-coisa
inconscientes. Estas, de seu lado, vão fornecer o material primário para os
futuros juízos de atribuição, já que a retranscrição pré-consciente se opera
precisamente sobre essas representações inconscientes. E, desde que as
representações-palavra são vinculadas a este material, o sujeito pode delas ter
consciência.
De outra parte, há das Ding, que é a parte da experiência de
satisfação que permanece isolada para o sujeito. Das Ding é, assim, o traço
real da experiência do Nebenmensch, e por isto ela resta sempre “como sendo
por sua natureza, estranha (Fremde)”[75]. É neste sentido que das Ding pode
ser dita a coisa mais íntima e próxima do sujeito e, ao mesmo tempo, a mais
misteriosa e desconhecida. De fato, enquanto ligada à experiência de
satisfação fundamental, ela é íntima ao sujeito; enquanto irredutível à
articulação significante, ela está fora do simbólico e portanto é
incognoscível[76]. Das Ding é assim um furo real[77] no interior do aparelho
psíquico, furo em torno do qual todas as representações, todas as
Vorstellungen, de um modo ou de outro, gravitam[78]. O sujeito tenta
encontrar das Ding, mas ele não encontrará senão die Sache, die
Sachvorstellungen[79].
Vemos agora a razão do caráter “necessário” do hiato, da
defasagem entre o objeto procurado e o objeto efetivamente encontrado: ele é
devido à heterogeneidade entre o registro do real e o registro do simbólico.
Este hiato, portanto, é o que dá nascimento ao objeto a e, a fortiori, ao
desejo. De fato, como vimos acima, a satisfação humana é sempre parcial e
grandemente incompleta, o que deixa atrás de cada descarga um resto
aprisionado no psiquismo que continua a exigir trabalho. Este resto ativo é o
objeto a, o mais-de-gozar, o objeto causa do desejo, o motivo mesmo da
existência de um desejo sempre insatisfeito. E, na verdade, a definição
mesma de desejo está ligada à sua insatisfação fundamental, já que o desejo
é, ele mesmo, esta espécie de “hiato” que existe entre sua causa e o objeto
desejado. Disto, podemos também concluir que, sendo o que causa o desejo,
o objeto a não é o verdadeiro objeto, mas o que implica sua procura[80].
Ora, uma vez que o acesso à Coisa real é impossível, nos será
necessário procurar objetos para a satisfação pulsional dentro da ordem
simbólica. Contudo, o que caracteriza o simbólico é justamente o fato de que
os objetos aí valem como significantes e se podem, portanto, permutar uns
com os outros (desde quando haja articulações que o justifiquem). Ou seja, a
ordem simbólica instaura um reino de oposições e de equivalências
significantes em que os elementos encontram seus atributos, valor e
importância na relação intrínseca que eles alimentam uns com os outros.
Assim, se a pulsão não tem um objeto (real) adequado e pleno, ela vai, por
outro lado, encontrar uma infinidade de objetos (simbólicos) parciais[81].
Evidentemente, estes objetos, uma vez que seu destino está ligado às leis da
linguagem, devem ser procurados sem cessar por entre os objetos do campo
discursivo, que são, afinal, os objetos do mundo humano, os objetos que
compõem sua (nossa) realidade. E eis explicitada a segunda importante
implicação da presença do simbólico, a saber, a multiplicação dos objetos e
dos modos de satisfação da pulsão.
Ora, se, além disso, pensarmos na tendência à repetição como a
lei subjacente a esta operação multiplicadora do simbólico, nós podemos
afirmar sem medo, com Lacan, que a função de repetição desempenha um
papel absolutamente fundamental na estruturação do mundo dos objetos
humanos[82]. Sendo assim, vê-se desde logo a necessidade de se articular esses
diferentes aspectos do aparelho psíquico, já que a constituição da realidade
para o sujeito humano daí deriva completamente. De fato, o que o homem
assume e vive como sendo sua realidade depende inexoravelmente do modo
pelo qual seu psiquismo assimila e interpreta o vivido de suas experiências.
Ora, assimilar as experiências é, sobretudo, articulá-las simbolicamente, é
operar um recorte simbólico do real. De fato, a realidade humana não é mais
do que isto: o fato de um recorte perpétuo do real pelo simbólico: de um real
que não cessa de se fazer inscrever, mas também e sobretudo de um real que
não cessa de não se deixar completamente inscrever.
- II -
A REALIDADE VACILANTE

Até o momento, examinamos o processo de constituição e


organização do aparelho psíquico nos seus aspectos mais gerais: examinamos
suas leis e procedimentos básicos assim como a forma pela qual ele articula
dois registros tão heterogêneos quanto o real e o simbólico. Vimos que,
embora o psiquismo possa ser dito estritamente simbólico — no sentido
lacaniano do termo, isto é, estruturado como uma linguagem —, um real está
sempre subjacente a esta estrutura simbólica, um real que a suporta e a causa.
De fato, o real pulsional é o que mantém irrigado o psiquismo, assim como é
também o real presente em das Ding que faz gravitar as Vorstellungen nas
suas tentativas eternamente fracassadas de reencontrá-la.
Contudo, é necessário agora investigar no detalhe as estruturas
internas do psiquismo, a inter-relação de suas instâncias no que diz respeito a
este recorte simbólico do real. É verdade que já falamos do abandono da via
alucinatória de satisfação e da ligação como a operação que torna isso
possível. Todavia, é necessário vermos como exatamente o aparelho psíquico
tem sucesso em fazê-lo, o que implica sobretudo a possibilidade de distinção
entre o objeto alucinado e o objeto real, o objeto percebido. Dizer que esta
distinção será possível graças à ligação não basta, já que há muitos outros
conceitos envolvidos e outros tantos problemas a resolver. Por exemplo, é
absolutamente indispensável fazer menção ao eu como a instância psíquica
que vai assumir esta função de inibição dos processos primários, na medida
em que ele surge como um dos resultados mais importantes desta operação de
ligação. Desta forma, ao controlar as vias de escoamento da energia psíquica,
o eu será capaz de direcioná-las privilegiadamente para as percepções, e não
para os traços mnêmicos, para as representações de desejo. Isto equivale a
dizer que pertence ao eu a tarefa de distinguir entre percepção e memória,
entre o mundo exterior e mundo interior. Esta tarefa, Freud a chama de prova
ou teste de realidade. É a partir daí que o princípio da realidade assume o
papel principal no funcionamento do aparelho psíquico[83].
Ora, acontece que esta prova de realidade não é completamente
confiável. Em muitas situações, o critério que a sustenta falha, e o aparelho
psíquico não tem sucesso em distinguir o real do alucinado. Isto pode mesmo
se passar tanto em um indivíduo normal — por exemplo, no sonho — quanto
num indivíduo patologicamente afetado — por exemplo, na psicose
alucinatória. Nós devemos então examinar como e se a prova de realidade
pode assegurar a função secundária e permitir que sujeito intervenha
adequadamente no mundo exterior[84]. Ora, para isto, nos será necessário
conhecer tanto seus pontos de apoio quanto seus pontos fracos. Este capítulo
será então consagrado a esclarecer todos esses aspectos concernentes à
influência do princípio de realidade no psiquismo.
Ligação e o eu
Freud, em seu Dois Princípios do Funcionamento Mental,
descreve com concisão e precisão o que implica o abandono da satisfação via
alucinação. Ele diz que a decepção diante da ausência de satisfação real faz
com que o aparelho decida “representar as circunstâncias reais do mundo
exterior e tender à sua modificação”[85]. A implicação desta decepção é dupla:
deve-se suportar um aumento da tensão até que a ação específica possa ter
lugar; deve-se aprender a distinguir o real do alucinado, o percebido do
rememorado. Esta distinção pode ser apreendida, segundo Freud, com a ajuda
da consciência e dos signos de qualidade que ela envia quando sobrevém
uma percepção[86]. Estes signos de qualidade funcionam então como signos de
realidade, uma vez que eles indicam ao eu a presença efetiva de um objeto
exterior. De outro lado, no que diz respeito ao aumento de tensão, já sabemos
que ele é tornado suportável graças ao mecanismo de ligação. Ora, o que não
foi dito até então é que o conceito de ligação está estreitamente relacionado
àquele de eu, justamente a instância psíquica que vai coordenar os esforços
de distinção entre o dito mundo exterior e o dito mundo interior.
Como então o eu se forma e como ele chega a desempenhar
essas funções?
Vimos que a quantidade interna que bombardeia o psíquico é
capturada através do mecanismo de ligação e investimento. Acontece que
esta contenção fará com que surja um conjunto articulado de traços
mnêmicos que é constantemente investido[87]. Será este conjunto, esta
primeira forma de organização, que Freud chamará de eu.
Todavia, o eu é, neste primeiro momento, somente um efeito da
ligação, e não um seu agente. Não é senão num segundo tempo que o eu
torna-se uma organização capaz de diferenciar — a partir das indicações de
qualidade recebidas da consciência[88] — as imagens de memória das imagens
de percepção. Em possessão deste critério de distinção, o eu pode orientar a
energia psíquica móvel (chamada atenção psíquica) em direção ao mundo
exterior, sem o que as indicações de realidade não poderiam ser observadas.
Quer dizer, não basta haver os meios de distinguir entre
percepção e memória para que o aparelho psíquico evite o processo primário.
Antes, para que as indicações de qualidade fornecidas pela consciência
possam realmente ter alguma utilidade, é preciso de início que o processo
primário já tenha sido inibido. Em outras palavras, antes mesmo de ter
havido as indicações provenientes da percepção, o processo primário teria
sido já desencadeado, com a consequente alucinação.
É neste momento que o eu entra em cena. Através do
mecanismo da atenção, o eu pode estender seu domínio de ação precisamente
aos trilhamentos que se interpõem entre SC1 e SC2, provocando um desvio
da energia móvel em direção às qualidades provenientes dos órgãos
sensoriais. Este desvio vai justamente impedir a passagem imediata de SC1 a
SC2 e evitar assim a alucinação, introduzindo o “império” do princípio da
realidade e do processo secundário.
É interessante notar que o sujeito humano aprende a distinguir o
objeto percebido do objeto alucinado bem antes de poder encarregar-se da
ação específica. De fato, sem o desenvolvimento motor apropriado, esta
permanece ainda algum tempo nas mãos de outrem. Por esta razão, um
terceiro momento[89] deve ser mencionado. É o momento em que o organismo
adquiriu não apenas o critério de distinção, mas também sua autonomia
motora. Nesta época, ele dispõe já de uma potente capacidade simbólica (a
partir da aprendizagem da linguagem), o que o conduz a substituir
efetivamente a procura de satisfação através da identidade de percepção por
aquela mediada por um processo judicativo (através da identidade de
pensamento). É o momento da retranscrição pré-consciente, quando o
material mnêmico do Ics (representação-coisa) é subsumido às categorias da
linguagem. O mundo cessa de ser composto unicamente por representações
“imagéticas” (Sachvorstellungen) para ser definitivamente habitado por
objetos conceitualmente estabelecidos (Objektvorstellungen) e por nomes
(Wortvorstellungen).
Esta aquisição da linguagem dá ao eu ainda uma outra
vantagem: ela lhe permite utilizar as indicações de descarga linguística (a
partir das quais o indivíduo pode tomar consciência dos processos de
pensamento) como substitutos das indicações de qualidade perceptivas.
Assim, em utilizando os signos linguísticos como verdadeiras percepções, o
eu ganha a possibilidade e a vantagem de premeditar ações antes de executá-
las, o que lhe dá uma segurança adicional no que concerne à utilização de seu
critério de distinção[90].
QUANDO O CRITÉRIO FALHA
Contudo, este critério não é tão seguro e onipresente assim. Há
situações em que ele não tem sucesso, e cabe a nós investigar em que
condições isso se dá, seja num indivíduo normal, seja num indivíduo
patologicamente afetado. O fenômeno privilegiado para examinar este
problema é o sonho. De fato, Freud pensa que o sonho é um fenômeno
psíquico que não apenas guarda semelhanças com os estados patológicos,
mas que também simula, de certa forma, a maneira primitiva de
funcionamento do aparelho psíquico. Seu exame nos permitirá, assim,
penetrar um pouco mais nos mistérios do psiquismo humano.

Inibição e processo onírico


Num indivíduo normal, há pelo menos duas circunstâncias em
que o critério de distinção não tem sucesso: um por excesso de investimento
do objeto de desejo; o outro no processo onírico. No primeiro caso, se o
objeto de desejo é investido em demasia, ele poderá ser ativado de maneira
alucinatória, produzindo então a mesma indicação de descarga ou de
realidade que no caso da realidade exterior. Assim, para que haja uma certa
segurança no critério de distinção, é preciso que haja uma inibição do
investimento do objeto, uma ação que retarde ou impeça o processo
alucinatório, permitindo que as indicações de realidade cheguem do aparelho
perceptivo. Esta inibição, vimos, é levada a cabo pelo eu. A prova de
realidade — e a consequente inibição dos processos primários — é então uma
de suas principais instituições[91].
Quando o indivíduo dorme, entretanto, o eu recolhe uma grande
parte de seus investimentos, os quais serão restabelecidos apenas no
despertar. Ora, na ausência de inibição da parte do eu, nada impede que as
representações oníricas tenham um caráter alucinatório, quer dizer, que elas
despertem a consciência (com qualidade de percepção) e sejam
acompanhadas de crença. O caráter alucinatório do sonho acaba assim por
mostrar (1) que é de fato o eu que funciona como suporte da diferença entre o
real e o irreal; e (2) que tal diferença é um pouco precária, pois basta que
alguma coisa faça com que o eu retraia seus investimentos para que a prova
de realidade tenha sua credibilidade fortemente ameaçada.
O problema da qualidade e da motricidade
Contudo, a análise do sonho coloca ainda outros problemas.
Com efeito, nós vimos que, para Freud, o ponto de apoio para diferenciar o
mundo exterior do mundo interior eram os signos de qualidade que a
consciência fornecia ao eu, o qual os utilizava como indicações de interação
com o mundo exterior. Entretanto, acontece que, no sonho, há a produção de
qualidade, a consciência é despertada e o eu acredita que ele está diante de
uma realidade efetiva.
Em outras palavras, o eu atribui verdade e crença à realidade de
vigília tanto quanto à realidade produzida no sonho. Ora, se ele vive ambas
como realidades, o que é que lhe permite decidir que, em uma delas, ele deve
(pode) intervir via ação motora e na outra ele não pode fazê-lo? A resposta
parece simples: quando o eu retrai seus investimentos, o PCs retira a
possibilidade de motricidade. Seria por isso que não intervimos pela ação
motora durante o sonho. Entretanto, esta resposta não é completamente
satisfatória. Com efeito, para justificar que é importante retirar a motricidade
durante o sonho, é preciso de início que tenhamos já aprendido que no sonho
se trata efetivamente de alucinações, e não de percepções reais. Ora, esse
critério repousava, até o momento, sobre a utilização das indicações de
qualidade fornecidas pela consciência para o eu, mas acontece precisamente
que no sonho a consciência produz tais indicações de qualidade. Portanto, o
critério não pode mais funcionar (com segurança). Mas se o critério não
funciona mais, como o eu poderia saber que nós estamos sonhando e impedir,
sem falha, o acesso à motricidade? Uma coisa parece certa: a resposta não
pode mais ser dada somente em termos das indicações de qualidade
fornecidas pela consciência.
***
Tal questão põe-se também no quadro da psicose. O psicótico é
tido como aquele para quem, precisamente, a prova de realidade não produz
os efeitos desejados. Em uma palavra, o psicótico não é mais capaz de
realizar de maneira satisfatória a inibição dos processos primários e alucina
mesmo durante a vigília. Contudo, mesmo se ele não conta com um bom
funcionamento de seu critério de distinção, o psicótico chega assim mesmo a
“saber” que ele está sonhando. De fato, embora ele seja incapaz de inibir os
processos primários durante a vigília, o fato é que ele paralisa sua
motricidade durante o sono e os sonhos. A questão é então a mesma: como o
eu do psicótico sabe que ele está sonhando? Como ele pode chegar a
distinguir a alucinação de vigília da alucinação onírica? Nossa única certeza é
de que ele efetivamente o sabe, já que ele bloqueia — assim como o normal
ou o neurótico — o acesso à motricidade. Resta-nos saber finalmente como.
O problema resume-se então à questão: se o critério de
distinção não funciona durante o sonho, como o eu pode aprender a bloquear
a motricidade?
De certa maneira, a solução já estava contida na questão, desde
que ela fosse feita de outra forma. De fato, se perguntarmos qual é a diferença
entre o estado de vigília e o estado onírico, responderemos imediatamente
que é a oclusão dos sentidos e a consequente interrupção dos estímulos
perceptivos. A diferença que parece essencial entre a vigília e o sono é,
portanto, a interrupção do envio de dados pelos sentidos, e não exatamente a
produção de qualidade ou o despertar da consciência. É preciso fazer bem a
diferença. É verdade que a cada vez que há percepção, há também
consciência. Mas a recíproca não é verdadeira, já que há consciência durante
o sonho, sem haver percepção. Assim, parece impor-se a conclusão seguinte:
o que vai verdadeiramente permitir ao eu distinguir a qualidade de vigília da
qualidade onírica é a ausência de comunicação entre os órgãos dos sentidos
(fonte dos estímulos exógenos) e o aparelho psíquico, portanto entre ϕ (PHI) e ω
(ÔMEGA)[92]. Está então aí aquilo que sustenta verdadeiramente o critério de
distinção entre percepção e memória: considerando ϕ-ω como o eixo de
comunicação entre os órgãos dos sentidos e a consciência (ω), nós podemos
simplesmente dizer que o eu bloqueará a motricidade quando a comunicação
entre ϕ e ω for interrompida[93].
Resta-nos apenas associar a paralisia motora durante o sonho
com a retração dos investimentos do eu, já que isto é, segundo Freud, uma
das pré-condições necessárias do sono. O liame é evidente. No sonho, o eu
retira seus investimentos e não mais pode manter a atenção dirigida para o
eixo ϕ-ω. Quer dizer, a retração de seus investimentos implica a
impossibilidade do eu de continuar a orientar a energia psíquica na direção
dos fatos perceptivos.
Portanto, o sonho compromete duplamente o bom
funcionamento do critério: no sono, (1) não há a intervenção de ϕ e, portanto,
a conexão perceptiva; e (2) com a retração dos investimentos do eu, o
mecanismo de atenção não está mais disponível como na vigília. Mantemos,
deste modo, a conclusão anterior de Freud, a saber, que é o mecanismo da
atenção que permite que as indicações de qualidade sejam levadas em
consideração e possam servir como indicações de realidade.
A resposta então se completa: o eu aprendeu a dar um valor
distintivo essencial ao eixo perceptivo, e é a partir desta aprendizagem que
ele poderá inibir o processo primário. Este aprendizado implica exatamente a
orientação da energia móvel através dos trilhamentos que se interpõem ao
caminho alucinatório em direção às indicações de qualidade que são geradas
a partir dos dados enviados de ϕ (já que é daí que poderá vir a percepção
desejada).
A PRECARIEDADE IRREMEDIÁVEL
Tudo parece perfeito agora. O homem teria um critério de
distinção válido e, no caso em que ele não funcionasse, como no sonho, ele
teria sabido proteger-se bem ao bloquear a motricidade. Perfeito demais,
diríamos nós, já que nos sujeitos neuróticos e psicóticos outras coisas se
passam que comprometem a eficácia do processo de apreensão da realidade.
Com efeito, Freud nos mostra que tanto na neurose quanto na psicose, o
sujeito pode ver-se confrontado a uma realidade indesejável, o que o obriga a
mascará-la de algum modo ou a dela fugir. Vê-se, assim, que o critério de
distinção tem mais ameaças ao seu bom funcionamento do que o que se
esperava.

A realidade intolerável
Com efeito, acontece que o eu encontra por vezes uma grande
dificuldade em conciliar as exigências pulsionais com a realidade que se
apresenta. Assim, estando na impossibilidade de satisfazer tais exigências, o
eu não encontra outra solução senão alterar a parte da realidade que não lhe é
conveniente. Ou seja, o eu procura — seja no neurótico, seja no psicótico —
substituir a realidade indesejável por uma outra mais conforme a seus
desejos.

Segundo Freud, o que acontece na neurose é que um fragmento


da realidade é evitado pelo modo da fuga. O neurótico não quer saber de nada
deste aspecto da realidade. Com este procedimento, o neurótico protege-se de
um encontro com este fragmento indesejável. Mas isto não basta, pois não era
somente este fragmento que o incomodava, mas havia também as exigências
do lado da pulsão. Então, é preciso não apenas evitar o que não lhe cai bem,
mas também substituí-lo de algum modo por uma realidade melhor. Isto é
possível através do recurso a um mundo fantasmático, “no qual o neurótico se
nutre do material adequado a suas novas formações de desejo”[94]. O que o
neurótico não chega a realizar por suas ações, ele o realiza através de suas
fantasias. Isto é, “a neurose implica a renúncia ao objeto real. A libido que é
retirada do objeto real volta sobre um objeto fantasmado e, a partir daí, sobre
um objeto recalcado”[95].
As coisas passam-se de outro modo na psicose. Segundo Freud,
o psicótico não evitaria simplesmente um fragmento da realidade, mas o
rejeitaria. Em outras palavras, na psicose, o eu rejeita uma representação
intolerável, o que faz com que ele termine por se separar assim, total ou
parcialmente, da realidade[96]. Para Freud, isto é “a reação a uma perda que a
realidade afirma, mas que o eu deve negar, porque insuportável. O eu então
rompe a relação com a realidade”[97]. “O eu se desviando assim da realidade,
a prova da realidade é colocada de lado, os fantasmas do desejo — não
recalcados e totalmente conscientes — podem penetrar no sistema e são, aí,
reconhecidos como uma melhor realidade”. Esta parte rejeitada, o psicótico
vai tentar compensar sua perda “criando uma nova realidade contra a qual o
indivíduo não se choque mais”. Contudo, é preciso notar que a substituição
psicótica é muito mais drástica do que aquela feita pelo neurótico. Se o
neurótico se contenta com suas formações fantasmáticas, fazendo delas uma
espécie de “refúgio psíquico”, o psicótico não é mais capaz de distinguir
entre o que é interior e o que é exterior. Em outras palavras, seu mundo
fantasmático é posto como real[98].
Para o momento, o mais importante a perceber é que, tanto na
neurose quanto na psicose, há uma perda essencial, e que “o que difere de
uma a outra é o mecanismo desta perda, constituindo a raiz de cada uma das
estruturas e condicionando as vias de retorno disto que é perdido”[99]. É a
partir daí que Lacan vai retomar estas questões, isto é, a partir do exame dos
diferentes mecanismos que caracterizam a neurose e a psicose. Estes
mecanismos são o recalcamento (die Verdrängung) e a foraclusão (die
Verwerfung).

As estruturas e seus mecanismos


Lacan, quando ele examina esta questão, se dá conta de que o
que está em jogo é um processo de simbolização da realidade percebida e de
que, neste processo, há sempre alguma coisa que permanece, de um modo ou
de outro, excluído, perdido. Ora, o que Lacan vai mostrar — e vai assim dar
novas forças ao texto freudiano — é que esta perda é a perda de um
significante. Na neurose, este significante é recalcado, enquanto que na
psicose ele é rejeitado. “No primeiro caso, sua ‘existência’ foi, num primeiro
tempo, reconhecida, inscrita no campo do psiquismo, das representações que
o sujeito admite, para logo ser colocada à parte da consciência em razão de
sua inconveniência. No outro caso, é a existência mesma que é recusada,
denegada. Um e outro caso supõem uma posição subjetiva que faz ato e
define a estrutura”[100].

A ideia é então a seguinte: já dissemos que a realidade do


sujeito é devida a uma apropriação que o aparelho psíquico faz do real. Isto
quer dizer que o sujeito experimenta o real e o simboliza, o assimila sob uma
forma simbólica. No caso do recalcamento, o que acontece é que há uma
primeira etapa, lógica, de admissão primordial daquilo que ele experimentou
do real e depois há uma espécie de separação, de isolamento deste conteúdo
das operações normais do psiquismo. Este conteúdo, este significante, é dito
recalcado, isto é, impedido de se integrar aos outros conteúdos psíquicos,
ficando então sem acesso à consciência. A razão do recalcamento é que este
significante, esta representação, se mostra inconveniente ao eu, o eu a
considera perigosa e provocadora em potencial de desprazer. Assim,
justamente para evitar o desprazer, o eu a isola e a impede de vir à
consciência[101].
Esta primeira etapa de admissão, de afirmação (Bejahung),
Lacan a postula como logicamente necessária precisamente porque ele se dá
conta de que ela pode não acontecer. De fato, e as psicoses o demonstram,
pode acontecer que uma parte da simbolização não se faça. “Pode acontecer
que o sujeito recuse o acesso, a seu mundo simbólico, de algo que entretanto
ele experimentou”[102]. Então, não tendo tido lugar a etapa de admissão, a
segunda etapa, aquela de expulsão ou isolamento, constitui o real enquanto
ele subsiste fora da simbolização.
E é aí que reside a diferença essencial, estrutural, entre a
psicose e a neurose: nesta última, uma vez que o que foi excluído pelo
recalcamento havia sido previamente admitido no registro simbólico, seu
retorno se fará então no seu interior mesmo. De fato, o retorno do recalcado
poderá articular-se inteiramente na cadeia significante, aí fazendo sentir seus
efeitos[103]. Ao contrário, nas psicoses, o que foi rejeitado, exatamente pelo
fato desta não admissão inicial no simbólico, não pode retornar senão no real.
Assim, o evento que não foi simbolizado primitivamente
permanece sempre fora do simbólico e, portanto, estranho ao sujeito. Mas
uma estranheza especial que se assemelha de certa maneira àquela de das
Ding. Ou seja, o sujeito experimenta alguma coisa que o terrifica e por esta
razão ele não a assimila e impede sua entrada na ordem simbólica, na ordem
articulada. É neste sentido que Lacan diz que “se trata de um processo
primordial de exclusão de um interior (dedans) primitivo”, de algo que foi
experimentado, mas que não teve a assimilação ao simbólico admitida. Ora, o
que permanece desta maneira não assimilado não pode ser conhecido, mesmo
se ele concerne intimamente ao sujeito. E eis por que o que retorna no real
tem o ar, para o psicótico, de ser tão familiar ao mesmo tempo em que disto
ele nada sabe. De fato, de seus delírios, o psicótico pode não articular nada de
preciso e, entretanto, ter esta convicção, esta certeza de que todas estas
construções lhe dizem respeito. Em outras palavras, apesar do caráter
fundamentalmente enigmático do delírio, o psicótico tem uma certeza radical
de que ele lhe concerne.
***
A título de acréscimo, devemos agora abordar um terceiro
mecanismo que se alinha com os dois primeiros. É o mecanismo da
denegação (die Verneinung). A denegação é um mecanismo que se
assemelha, num certo sentido, ao recalcamento. A diferença é que, enquanto
o recalcamento se opera no nível das Vorstellungsrepräsentanzen — isto é,
no nível do corte entre a representação propriamente dita e o afeto
correspondente —, a denegação opera propriamente no nível das
Wortvorstellungen, das representações-palavra[104].
Contudo, poder-se-ia bem dizer que é o mesmo conteúdo do
recalcado que é objeto da denegação. De fato, tanto num quanto noutro, há
um conteúdo que é simultaneamente admitido e mantido à distância[105]. A
diferença é que, no recalcamento, este conteúdo é colocado à parte da
consciência, enquanto que na denegação o conteúdo recalcado pode irromper
na consciência “sob a condição de se deixar negar (“não é a minha mãe”). A
denegação é uma forma de tomar consciência do recalcado; na verdade, é
uma suspensão (Aufhebung) do recalcado, embora ela não seja uma aceitação
do recalcado”[106]. O que a denegação coloca em evidência é justamente que o
objeto visado pelo recalcamento é uma representação, e mais precisamente
seu conteúdo, na medida em que ele pode trazer consequências desagradáveis
para o eu. Com efeito, se a representação é admitida na consciência na sua
forma negada, isto significa que não é simplesmente a representação em si
mesma que é desagradável, mas que é o que ela significa quando ela é
articulada com as outras. Ou seja, é a significação produzida pela articulação
significante desta representação com as demais que deve ser impedida de vir
à consciência.
***
Este exame destes mecanismos tem para nós uma importância
múltipla. De um lado, ele nos tornou possível diferenciar a estrutura psicótica
da estrutura neurótica a partir da posição que o sujeito assume em relação ao
significante primordial: a rejeição de sua simbolização caracterizaria a
psicose; a admissão e posterior exclusão caracterizaria a neurose. De outro
lado, ele nos colocou em guarda contra a ilusão de que o critério de distinção
bastaria para garantir uma interpretação segura da realidade. Com efeito, nós
vimos que, face à confrontação a uma realidade implacável, o eu termina por
alterá-la, transformá-la, substituindo seus dados materiais por outros
fantasmáticos. Contudo, é necessário agora tirar desta constatação as
consequências mais radicais no que concerne à constituição da realidade
humana.
Ora, o que nós não dissemos ainda é que Lacan faz destes dois
mecanismos não apenas os mecanismos de diferenciação entre neurose e
psicose, mas também os dois mecanismos essenciais a partir dos quais todo
ser falante pode enfrentar o real. Ou seja, todo sujeito humano, do único fato
de que ele fala, utiliza necessariamente um dos dois mecanismos primordiais
para defender-se do real. É então uma necessidade estrutural, e não uma
contingência saída de uma realidade que se mostraria por vezes amigável, por
vezes feroz. O que Lacan nos vem mostrar é que o sintoma — assim como
toda formação do inconsciente — é não uma afecção contingente, que não
atingiria senão alguns poucos infelizes, mas um fato necessário,
estruturalmente necessário, para todo aparelho psíquico atravessado pela
linguagem.
Sendo assim, vemos que a realidade está irremediavelmente
comprometida na sua possibilidade de ser bem apreendida, pois o que estes
dois mecanismos implicam é justamente que toda realidade é, de um modo
ou de outro, mais ou menos alterada, transformada, pelas marcas que eles
deixam no psiquismo. Marcas que podem ser tão dramáticas até o ponto de
levar à substituição quase integral da realidade material pela realidade
fantasmática, como é o caso da amência de Meynert[107].
Ora, isto nos impulsiona a uma conclusão bastante
desconfortável. De fato, se estes mecanismos são necessidades estruturais,
isto significa que não há realidade material que não seja “alterada”, isto é,
constituída em acordo e a partir da realidade dita psíquica. É verdade que isto
já havia sido dito através da noção de um “recorte simbólico do real”, porém
parece-nos que somente agora o verdadeiro alcance desta afirmação pode ser
levado em conta.
Realmente, o recorte simbólico do real não é necessariamente
uma operação que nos deixa completamente à parte do que seria
verdadeiramente a natureza. Quer dizer, o recorte faz, naturalmente, uma
separação fundamental entre a dita realidade em si mesma e a realidade-para-
nós. Todavia, é justamente nesta “realidade-para-nós” que reside a diferença
essencial entre o olhar psicanalítico e o olhar filosófico a respeito do
problema da realidade. Vejamos isto de mais perto.
***
Tomemos como interlocutor Kant. Ele também separa
dramaticamente e de modo irreversível a realidade em si, das Ding an sich,
da realidade para nós, a realidade dita “fenomênica”. Entretanto, ele resgata a
segurança, a certeza e, portanto, a estabilidade dos referenciais, quando ele
nos diz que, se o noumenon nos é inacessível, o fenômeno, ao contrário, pode
ser objeto de verdadeiro conhecimento, devido aos juízos sintéticos a priori
(os quais seriam possíveis graças às formas da sensibilidade e às categorias
do entendimento).
Ora, o que nos mostram Freud e Lacan é que este resgate da
segurança não é possível. Se podemos supor que temos algo como as
categorias do entendimento que nos conduzem a juízos sintéticos a priori,
devemos todavia supor que estes juízos não são de forma alguma válidos a
priori. O exame da Verdrängung e da Verwerfung mostrou-nos bem que
“nossas categorias” são antes fonte de engano que de conhecimento seguro.
A realidade revelada pela psicanálise permanece inexoravelmente precária.
- III -
EPISTEMOLOGIA E PSICANÁLISE

No final do capítulo precedente, tocamos num ponto delicado


da questão da realidade, a qual nos coloca no centro de um importante
problema epistemológico, aquele que chamamos aqui “o problema do
referente” ou o problema do acesso à realidade (em si mesma). Este problema
é crucial para toda reflexão epistemológica, já que ele vai colocar a questão
de saber como podemos conhecer sem ter acesso à coisa que se trata de
conhecer. De fato, como poder enunciar uma proposição verdadeira sobre
uma matéria determinada se justamente esta “matéria” nos escapa ou é
transformada, modificada por nossos métodos de acesso ou apropriação?
Assim, o problema do referente compreende ou conduz ao problema da
verdade, dois temas que nenhuma reflexão epistemológica pode desprezar.
Isto é um fato. Entretanto, em que exatamente esses temas
eminentemente epistemológicos concernem à psicanálise? Em primeiro lugar,
podemos ressaltar um interesse de “demarcação”. Isto é, é nosso intuito tentar
desvelar em que consiste a especificidade da psicanálise face às teorias
científicas ou filosóficas. É nosso interesse delimitar o que é próprio à
psicanálise, o que faz dela uma teoria em vários sentidos original e
inovadora, e, para isto, tomaremos estes temas eminentemente
epistemológicos sobretudo como um ponto de apoio para nos ajudar neste
propósito de depuração conceitual. Isto quer dizer que não será propriamente
uma discussão interdisciplinar que veremos neste capítulo. Antes, não
faremos referência a estes temas senão na exata medida em que eles nos
servirem a esclarecer certos pontos de nossa exposição. Eles terão, portanto,
um papel auxiliar, ainda que muito importante.

REAL X NOUMENON: A ESPECIFICIDADE DA PSICANÁLISE


O recurso a Kant — já esboçado algumas linhas acima — nos é
duplamente importante. De início, ele nos lança imediatamente no centro do
debate epistemológico, a respeito da questão do acesso à realidade, ao
referente, e à questão que dela deriva, a da verdade[108]. Algumas diferenças
são também já notadas: se a filosofia kantiana oferece um resgate da
segurança por intermédio dos juízos sintéticos a priori, a psicanálise não o
faz: a realidade conserva sempre seu aspecto de irremediável precariedade.
Mas isto coloca mesmo assim alguns problemas, embora eles
sejam um pouco diferentes daqueles da epistemologia “clássica”. Com efeito,
para a psicanálise, o problema do referente vai colocar questões sobretudo
sobre certas delimitações conceituais, como por exemplo a definição das
fronteiras entre o normal e o patológico ou a dimensão particular da alteração
da realidade na psicose e na neurose. De fato, se a constituição da realidade
de qualquer sujeito passa necessariamente pelo recalque e pela foraclusão,
não seríamos obrigados a assumir que não há algo como “a normalidade”?
Em segundo lugar, como poderíamos dizer que a realidade psicótica é mais
“alterada” do que aquela do neurótico se as duas são constituídas, construídas
a partir de um mecanismo primordial de relação ao real? Como dar privilégio
à “ontologia”[109] neurótica saída do mecanismo do recalque antes do que
àquela psicótica, saída da foraclusão se nos falta justamente um referencial
imutável a partir do qual compará-las ou julgá-las? A resposta a essas
questões será obtida através do exame da noção de verdade. Também a
respeito desse assunto, a implicação para a psicanálise é um pouco diferente
daquela para a ciência ou a filosofia. Quando falamos de teoria psicanalítica,
é preciso não esquecer que aí se trata de um sujeito, sujeito do inconsciente,
sujeito sobre o qual precisamente a ciência nada quer saber. Então, nos é
necessário fazer uma reflexão sobre dois tipos de verdade: a verdade do
sujeito e a verdade científica. A primeira é uma verdade “evanescente”, que
surge em certos momentos do trabalho analítico. A segunda é a verdade que
pleiteia uma validade universal, ou mesmo eterna[110].
Em segundo lugar, e nossa atenção vai neste momento
concentrar-se especialmente neste ponto, os contrastes entre o noumenon
kantiano e o real lacaniano nos permitirão fazer uma primeira demarcação
conceitual entre a psicanálise e a filosofia (ou a ciência). Com efeito, esta
comparação nos dará uma primeira formulação do que é preciso entender por
“foraclusão do sujeito do inconsciente”, que é feita, segundo Lacan, tanto
pela filosofia quanto pela ciência.
***
A comparação entre o noumenon kantiano e o real lacaniano
não é nova. O próprio Lacan a indica na Ética, embora já marcando os limites
de tal comparação: Kant teria entrevisto a função de das Ding, mas não o
teria feito senão pelas vias da teoria da ciência[111]. E está aí a chave do nosso
trabalho de delimitação: mostrar que o conceito de real em Lacan não se
limita ao real “exterior”[**], ao real posto como o referente último do
conhecimento, ponto central de preocupação da filosofia kantiana. As
aproximações e distâncias do real lacaniano e do noumenon kantiano nos
darão assim a oportunidade de apreender as diferenças substanciais entre a
via tomada pela ciência e pela filosofia e aquela tomada pela psicanálise.
Tanto o “real” kantiano[112] quanto o real lacaniano podem ser
definidos como o “inacessível” por excelência. Com efeito, a ele não temos
acesso e portanto dele não temos conhecimento senão por meios indiretos. É
uma espécie de dedução lógica que nos faz colocá-lo como o substrato último
e irredutível daquilo que nos aparece, daquilo que é realidade para nós. Em
outras palavras, o real está aí sempre e sobretudo como causa, como
condição[113] primeira.
Segundo Kant, a operação de apreensão do “real” se faz por
meio das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento[114].
Através delas, o homem vai apreender o mundo da experiência já organizado
segundo leis e relações determinadas. Primeiramente, ele organiza o diverso
sensível em percepções, e depois ele ordena os fatos daí derivados por meio
dos juízos a priori. Organizar o diverso sensível numa percepção implica
perceber o mundo não como um puro agregado de sensações táteis, visuais e
sinestésicas, mas como composto de objetos, de substâncias, as quais estarão
sempre dispostas no espaço e no tempo. Ordenar os fatos mediante juízos a
priori implica, por exemplo, percebê-los como sendo necessariamente[115]
articulados numa cadeia causal.
A categoria de causalidade[116] terá efetivamente um papel
essencial na teoria kantiana, já que ela está na base da “prova” da validade
universal do conhecimento científico. Além disso, o erro pode ser evitado
desde que se obedeça a certas regras, como por exemplo, não formar um
conceito sem uma intuição que lhe corresponda. Aqui, dois aspectos a
considerar: (a) todo conhecimento — científico ou não — deve fazer
referência a uma intuição, isto é, a um elemento exterior aos conteúdos da
razão; (b) a inacessibilidade da coisa em si mesma (das Ding an sich) não
elimina toda possibilidade de conhecimento, pois as formas e categorias do
espírito humano tomam como tarefa o ordenamento dos fatos segundo
relações bastante seguras (já que universais e válidas a priori)[117].
Em Lacan, o real se põe também como o material
indiferenciado a partir do qual o simbólico faria a apropriação e o recorte.
Contudo, os instrumentos e mecanismos de apreensão e de organização são
completamente diferentes. Na psicanálise, são o recalque e a foraclusão que
condicionam a captura do real, o qual será assimilado pelo psiquismo em
termos de cadeia significante. Além disso, esta terá sua “causalidade”
determinada pela relação dos significantes com o desejo inconsciente, e não
pela exigência de organização e determinação crescente da experiência
sensível. Assim, se, do lado de Kant, é a Razão — e seu ideal de
conhecimento maximizado[118] — que está em jogo; do lado da psicanálise,
são antes as pulsões que estão na base de todo processo de apreensão da
realidade. Isto quer dizer que, segundo a psicanálise, o que o sujeito procura é
não o conhecimento em si mesmo, mas o gozo. E se o ser humano se vincula
por vezes tão fortemente à procura do conhecimento, isto se dá apenas pelo
fato de que ele goza quando o faz. A procura do conhecimento não é, com
efeito, senão um dos destinos possíveis da pulsão, um dos múltiplos destinos
através dos quais a pulsão pode obter satisfação[119].
Neste momento, a diferença essencial entre as duas teorias já
pode ser posta em evidência. De início, percebe-se que o real kantiano não é
senão um real “exterior”. De fato, o que está em jogo na filosofia kantiana
não é senão o conhecimento e o domínio deste “fora” (das categorias do
entendimento e formas da sensibilidade). Por esta razão, o sujeito humano
enquanto tal está apagado, excluído, da reflexão. Ele não importa senão na
estrita medida em que ele nos dá a chave desta possibilidade de
conhecimento, a saber, na medida em que ele se mostra capaz de juízos
sintéticos válidos a priori. Há uma separação forçosa entre o sujeito do
conhecimento e o objeto a ser conhecido. O sujeito do conhecimento não se
mistura com o objeto conhecido. O ideal mesmo é que ele desapareça desta
relação de conhecimento, o que implica que, quando se trata de conhecer, o
sujeito torna-se ele mesmo um objeto, ele torna-se exterioridade.
Na psicanálise, de outro lado, lida-se também com um real
“exterior” (o real recortado pelas percepções, por exemplo), mas
principalmente com um real “interior”: aquele das pulsões, aquele de das
Ding. Poderíamos mesmo dizer que é aí que reside a força e inovação da
teoria psicanalítica. De fato, é neste movimento que ele pode reencontrar o
lugar perdido para o sujeito e, sobretudo, reencontrar para ele um lugar na
teoria onde ele não se apague completamente. É orientando sua teoria e sua
prática em direção ao real das pulsões e do gozo que a psicanálise triunfa ao
recuperar o que há de particular em cada sujeito. Mais precisamente, no lugar
de reduzi-lo ao universal das formas kantianas ou das leis científicas, a
psicanálise conta o sujeito um a um. E isto não se pode fazer senão em
articulando o real pulsional de cada sujeito com a apropriação simbólica que
ele faz dele. A psicanálise assim pode pleitear ela também o direito de falar
de uma verdade, mas uma verdade que paradoxalmente se apresenta como
particular, individual, até mesmo evanescente. Assim como o sujeito que a
sustenta.
AS DUAS VERDADES: DESCARTES COM LACAN
É preciso agora examinar exatamente a pertinência de falar de
duas verdades[120] e, sobretudo, de defender a legitimidade de falar de uma
verdade que, por sua “natureza” mesma, não perdura. Uma vez mais,
recorreremos à filosofia, desta vez a Descartes. Com efeito, Descartes é um
dos interlocutores preferidos de Lacan, que se serve deste “diálogo”
especialmente para poder definir o que é específico da psicanálise. Sua
inversão do cogito cartesiano é bem conhecida[121], e ela nos será neste
momento útil para diferenciar a verdade do sujeito (do inconsciente) e a
verdade da ciência.
Inicialmente, devemos dizer que a inversão do cogito feita por
Lacan poderia dar a falsa impressão de que há apenas pontos de ruptura entre
ele e Descartes. Sob uma leitura mais apurada, entretanto, poderemos
perceber toda uma etapa de constituição do cogito que poderia ser a justo
título chamada de “lacaniana”. Trata-se justamente da fase que precede o
estabelecimento do cogito como sendo a verdade primeira. Ou, mais
precisamente, a fase que precede a primeira construção de saber que é feita a
partir do cogito, isto é, a assunção de que a essência do meu ser é o
pensamento. Porém, investiguemos isto mais de perto.
A intenção da filosofia de Descartes é a de fundar o
conhecimento sobre bases indiscutivelmente seguras e certas. É ele que
inaugura o pensamento epistemológico moderno. Sua ideia para atingir este
objetivo é de fazer o exame mais rigoroso possível de tudo o que foi admitido
até então como conhecimento. Ele vai então duvidar de tudo o que pode, de
uma forma ou de outra, enganar seus juízos. Todavia, Descartes não vai
naturalmente submeter todo o edifício do conhecimento a uma crítica pontual
e localizada, uma tarefa semelhante parecendo ser mesmo impossível. Com
efeito, sua estratégia não consiste em contestar tudo o que se apresenta como
conhecido, mas em contestar as próprias fontes deste conhecimento. Se as
fontes não são confiáveis, então a desconfiança deve estender-se a todo
conhecimento que delas deriva: “a ruína das fundações faz tombar o edifício
todo inteiro”. É assim que ele coloca em cheque todos os conhecimentos, um
após o outro, num movimento de generalização crescente.
Descartes começa por criticar os conhecimentos empíricos,
depois aqueles intelectuais. Se os primeiros não resistem à argumentação dos
sonhos[122], os segundos são mais resistentes, já que mesmo no sonho “dois e
dois continuam a formar o número quatro”. É para colocar em causa essas
verdades matemáticas que Descartes vai recorrer à hipótese de um Deus
enganador, de um Gênio Maligno, o qual nos poderia ter criado de tal forma
que nós acreditássemos que há um mundo de coisas exteriores quando
realmente não há; de uma tal forma que a necessidade de nossos raciocínios
matemáticos não seja senão fictícia[123].
Contudo, o que quer que esse Deus enganador possa fazer-me,
mesmo se ele consegue persuadir-me de que não há nada existente no mundo,
ele não me pode persuadir de que eu não existo. Ou seja, não há dúvida de
que eu existo, se ele me engana. Eu não posso nada ser no momento em que
eu penso ser alguma coisa. Eis a verdade primeira: eu duvido, eu penso, logo
eu existo. E esta proposição deve ser necessariamente verdadeira, ao menos
todas as vezes que eu a enuncio ou a concebo no meu espírito[124].
Esta etapa, nós a chamaremos “pré-cogito”, isto é, a fase que
desarticula todo o saber e permite assim a revelação de uma verdade que
precisamente resiste a toda destruição. Eu duvido, logo eu sou[125].
Entretanto, Descartes não se contenta apenas com o
estabelecimento desta verdade, que ele próprio qualifica como evanescente,
já que não se a pode assegurar como verdadeira senão na medida em que se a
enuncia. Realmente, pode ser que a existência seja descontínua, que Deus
recrie o universo a cada instante, segundo sua onipotente vontade. Assim,
esta verdade não convém aos propósitos cartesianos. É preciso fazer desta
verdade primeira o pilar das outras que deverão seguir. Aqui, inicia-se a etapa
que chamaremos “pós-cogito”.
O que podemos aprender da verdade primeira? — pergunta-se
Descartes. Ora, se a realidade de todas as coisas é duvidosa, a minha, que de
tudo duvida, não pode sê-lo. De fato, se eu duvido, eu existo. O fato de
duvidar seria então a essência de minha existência? Na verdade, não, já que
eu posso pensar sem duvidar, mas eu não posso duvidar sem pensar. Portanto,
a dúvida não é senão um dos aspectos de meu pensamento, o qual deve, por
consequência, ser a verdadeira essência do meu ser. Se eu duvido, eu penso.
Se eu penso, eu sou. Eis um objeto de conhecimento cujo valor é inalienável:
minha existência enquanto pensamento.
Com este movimento, Descartes passa da verdade puramente
“existencial” do cogito — que se revela quando todo sentido se esvai — para
sua verdade “ontológica”, que dá ao ser uma substância e certas propriedades
essenciais. O edifício do conhecimento começa a ser (re)construído[126]. Mas é
preciso continuar a avançar, e, para isso, é crucial ter critérios precisos que
nos impeçam de cair no erro. O recurso ao cogito faz-se de novo necessário.
Descartes se dá conta de que o que faz do cogito uma verdade indiscutível é
seu caráter claro e distinto. Então, ele faz desta nova constatação seu critério
de progresso: tudo o que se apresenta como uma ideia clara e distinta, ele a
assumirá como sendo verdadeira[127].
Contudo, ainda que este critério seja satisfatório, Descartes sabe
que ele não é suficiente. De fato, se ele pode garantir o progresso, passo a
passo, do simples ao complexo, ele não pode garantir a memória[128] das
etapas de construção. Sendo assim, seria necessário refazer indefinidamente
todas as etapas das demonstrações para manter a credibilidade dos resultados
atingidos, o que é evidentemente inaceitável se a intenção é a de construir um
edifício sólido e grandioso. Então, seu critério não pode ser senão provisório,
e lhe é necessário algo que garanta todas as fases do processo de
conhecimento permanentemente.
É assim que Descartes terá necessidade da prova da existência
de Deus, de um Deus que sobretudo não engane. A solução será encontrada
na perfeição[129] divina: Deus, sendo perfeito, não poderia querer enganar-me.
Consequentemente, todas as vezes que eu agir respeitando o bom critério, eu
estarei assegurado de chegar a resultados verdadeiros e seguros[130]. Deus é
assim o garante supremo das verdades eternas[131].
***
Não é difícil perceber que há então dois momentos
completamente opostos na filosofia cartesiana: um primeiro momento de
desmontagem, de desarticulação do saber; e um segundo de montagem, de
construção.
A que isto nos serve, esta diferenciação entre um momento
“pré-cogito” e um outro “pós-cogito”? Seu interesse é exatamente aquele de
mostrar e de elucidar a diferença entre os dois tipos de verdade. Com efeito,
se articulamos agora a exposição sobre Descartes com os conceitos
lacanianos, seremos capazes de estabelecer que a verdade saída da fase “pré-
cogito” é justamente a verdade do sujeito, e, do outro lado, que a verdade
eterna, garantida por Deus, se torna daqui em diante a verdade garantida pelo
Outro. Esta interpretação adquire toda sua potência quando se pensa as duas
etapas do cogito como a perfeita[132] inversão do processo de alienação e de
separação do sujeito.
Com efeito, o que a fase anterior do cogito estabelece? Em
primeiro lugar, ela procede de forma a demolir todo o edifício do
conhecimento, toda a articulação do saber. Ora, nós podemos bem pensar este
movimento de desarticulação em termos do corte de S1-S2. Realmente, se
cortamos o par mínimo significante, toda significação é imediatamente
abolida. Cai-se no sem sentido, no non-sense e portanto nenhum
conhecimento é mais possível. Com efeito, se toda verdade científica é uma
verdade que é veiculada pelo discurso e se o discurso articulado não é mais
possível, então todo o edifício do conhecimento está arruinado. Assim, o que
Descartes atinge através de sua hipótese do Gênio Maligno, Lacan pode
atingir igualmente por esta suposição de corte entre S1 e S2. Qual é então o
resultado desta demolição do conhecimento, desta queda no non-sense?
Precisamente o surgimento da verdade primeira, verdade do sujeito, uma
verdade que se põe desde logo como fundamentalmente evanescente, que não
perdura senão na medida em que o contraste entre a dúvida e minha
existência se mantém[133]. Trata-se de uma verdade que me diz que eu sou
alguma coisa, mas que não me diz nada sobre esse “isto” que eu sou
efetivamente. Eu sou um puro “isto”, um vazio de atributos e de
significações: está aí a única conclusão que se pode legitimamente tirar desta
fase “pré-cogito”.
Ora, o que é esta conclusão senão exatamente o resultado do
processo de separação, tal qual ele é descrito por Lacan? Realmente, neste
momento, Descartes pode ser dito “lacaniano”, a verdade do sujeito não
tendo ainda sido excluída. Não é senão no movimento seguinte que tal
exclusão se produz, quando Descartes, insatisfeito precisamente com seu
caráter efêmero, cristaliza, petrifica a verdade primeiramente obtida ao fazer
do pensamento uma substância, a essência desse sujeito. Passa-se assim da
pura existência à atribuição. Eis aí o passo de “traição” à verdade do sujeito,
o ato de exclusão desta verdade. Efetivamente, o que é dado no “pós-cogito”
é o passo irreversível em direção à alienação do sujeito, reinserção no mundo
do sentido. Com esta identificação substancial entre o sujeito e o pensamento,
volta-se ao campo do Outro: S1-S2 tem sua conexão restabelecida.

É preciso então marcar bem a diferença entre o pensamento tal


qual ele é entendido no “pré-cogito” e o pensamento do “pós-cogito”. O
primeiro é o pensamento enquanto dúvida, enquanto desarticulado de
qualquer construção semântica. É o pensamento que, no fundo do sem
sentido, constata sua existência. O segundo, ao contrário, é o pensamento já
enquanto articulado, enquanto capaz de gerar juízos de atribuição, de
construir sentenças ricas em significação. Esta diferenciação é importante
para perceber que a inversão do cogito realizada por Lacan diz respeito
apenas ao pensamento enquanto articulado. “Eu sou onde não penso” quer
dizer “eu sou onde eu não articulo, onde eu não produzo sentido”. De outro
lado, nós temos que, quando eu penso, quando eu articulo, aí, eu não sou.
Dizer então que Descartes foraclui a verdade do sujeito
significa que ele recusa a aceitá-la enquanto tal e a mascara, a esconde, a
bane. Ele a substitui pela verdade que pode perdurar, que pode almejar à
eternidade. Ele a troca sobretudo pela verdade que pode ser garantida por
Deus, pelo Outro, uma instância “superior” que a iguala ao olhar dos outros e
assim evita uma confrontação com seu próprio desejo, com sua realidade
mais nua. Ora, esta foraclusão é, num certo sentido, necessária, se se segue os
propósitos da ciência, do conhecimento. Com efeito, o pressuposto principal
de todo conhecimento é sua institucionalização, sua possibilidade de
reprodução ou transmissão. Assim, a ciência deve foracluir necessariamente o
sujeito do inconsciente justamente porque sua verdade é uma verdade
particular, efêmera, não institucionalizada e não reprodutível. A verdade da
ciência é a verdade do discurso articulado, a verdade do Outro.

O OBJETO a PERDIDO ENTRE KANT E DESCARTES


Por meio da investigação das doutrinas filosóficas kantiana e
cartesiana, nós chegamos a delimitar de duas maneiras diferentes a
especificidade da psicanálise em relação à filosofia.

Em primeiro lugar, vimos que, estando a filosofia kantiana


orientada para o conhecimento, “seu real” é antes um real “exterior”,
enquanto que o real mais importante para a teoria psicanalítica é o real
“interior”, aquele das pulsões, de das Ding.
Em segundo lugar, vimos que, estando a filosofia cartesiana, ela
também, orientada para o conhecimento, ela dá importância apenas à verdade
do Outro, verdade garantida e válida intersubjetivamente, enquanto que a
psicanálise se interessa antes pela verdade do sujeito, uma verdade, por sua
própria natureza, particular, privada.
Ora, é interessante perceber que a psicanálise marca sua
especificidade diferentemente segundo se trata da filosofia kantiana ou da
cartesiana. Isto pode parecer natural, já que Kant e Descartes trabalham com
conceitos diferentes, porém isto também coloca uma questão: se as duas
doutrinas filosóficas consideradas têm como objetivo comum o
conhecimento, não deveríamos supor que as respostas da teoria psicanalítica
a cada uma delas nutrem, elas também, relações forçosamente estreitas? Esta
questão é de algum valor, pois ela nos poderia dar a oportunidade de
encadear mais solidamente nossa conceitualização, de torná-la mais
sistemática, o que é precisamente o objetivo subjacente de toda pesquisa, de
todo trabalho de investigação.

A existência de uma ponte entre as duas respostas é então


insinuada, mas como podemos efetivamente atravessá-la? A solução será
encontrada no aprofundamento da oposição entre alienação e separação, já
que ela revela imediatamente a temática da verdade do sujeito, ao mesmo
tempo em que ela aponta, por trás dela, o objeto a, o objeto da pulsão. Nós
vamos assim mostrar que o que falta, seja na filosofia, seja na ciência, é o
olhar sobre o ser humano enquanto corpo “gozante”, enquanto produtor de
um mais-de-gozar[134].
A alienação e a desaparição do sujeito
Em termos gerais, o processo de alienação é correlativo ao fato
do encontro do indivíduo com a linguagem, com uma linguagem que o
precede, que aí estava antes de ele pensar em existir. Uma linguagem cujas
regras e códigos estão já definidos, não tendo tido o sujeito nenhum papel em
sua constituição. Estas leis lhe são exteriores, e é preciso conformar-se a elas
se se quer obter o reconhecimento do Outro falante. Com efeito, será esse
Outro que lhe ensinará a servir-se da linguagem, o Outro que fornecerá todos
os significantes necessários a tal utilização.
Vimos que o encontro do indivíduo com o Outro se faz a partir
da experiência de satisfação originária. É o Outro que realiza para ele a ação
específica e coloca fim à tensão da necessidade. Sua intervenção, todavia,
tem como consequência algo mais do que a eliminação do desconforto do
recém-nascido. De fato, “a criança se alimenta tanto de palavras quanto de
pão”[135]. Ou seja, a criança vai registrar desta experiência fundamental tanto
os traços mnêmicos do objeto quanto as palavras pronunciadas na ocasião.
Esta intervenção do Outro implicará desde então a inserção da criança na
ordem simbólica, ordem de troca de significantes. A primeira participação da
criança nesta troca simbólica, vimos, se faz através de seu grito, o qual se
torna significante a partir do momento em que o Outro o acolhe como uma
mensagem. É este ato, esta resposta do Outro, o responsável pela “mutação
significante”.
O grito, como significante primitivo, desempenha desde logo
várias funções. Em primeiro lugar, por exemplo, o grito nos serve para ter
uma primeira ideia do objeto hostil. Com efeito, temos a tendência a esquecer
as sensações corporais de dor; deste modo, sem o grito que o objeto
desagradável nos faz soltar, não teríamos um meio seguro de identificar o que
nos causou a dor e portanto de evitar uma nova ocorrência do evento
desagradável. “O grito desempenha uma função de descarga, e tem o papel de
uma ponte no nível da qual alguma coisa do que se passa pode ser capturada
e identificada na consciência do sujeito”[136].
Em segundo lugar, o grito tem a função de apelo, de demanda
de satisfação ao Outro[137]. Ora, na medida em que ele só se faz escutar
enquanto apelo quando o objeto não está lá, o grito pode assumir a função
propriamente significante de se referir a alguma coisa que falta, que está
ausente[138]. Finalmente, na medida em que ele serve para chamar o Outro, o
grito torna-se a primeira ação específica do sujeito e assim serve para
representar o sujeito para os outros significantes.
Temos aqui o par mínimo da cadeia significante: S1-S2. S1 como
o substituto do grito, primeiro significante do sujeito; S2 como o significante
da resposta, o significante que faz do grito mesmo um significante[139]. Ora,
dizer que é S2 que transforma, num a posteriori, o grito em um significante,
equivale a dizer que é S2 que inaugura a função propriamente de significação
da linguagem. Em outros termos, não é senão após ter tido lugar a resposta do
Outro que podemos realmente afirmar que houve algo como uma mensagem,
um apelo. S2 é, portanto, o vetor semântico, já que é ele que dá,
retroativamente, sentido a S1. A dimensão do sentido está assim na
articulação de S1-S2[140]. Desta forma, não é somente o fato de tomar S1 como
representante, mas sobretudo o fato de articula-lo a S2 o que produz sentido e,
em consequência, alienação[141].
Examinemos agora como isto se passa em termos da articulação entre
sujeito e o Outro. Representemos a interação dos dois através dos seguintes
diagramas[142]:
Diagrama 1

O que podemos fazer ver é que este diagrama, na verdade, pode ser
obtido a partir de dois círculos ou dois conjuntos: o conjunto do sujeito,
forçosamente vazio, e o conjunto do Outro, onde se alojam todos os
significantes e símbolos da linguagem.
Diagrama 2
Ora, dizer que o conjunto do sujeito era vazio antes do encontro
com o Outro significa precisamente que o sujeito é criado pelo fato deste
encontro, pelo fato de que ele toma um significante (S1) ao Outro e o utiliza
para se representar junto aos outros significantes (S2). Mas o que isto quer
dizer, que S1 cria o sujeito? “É aí que é preciso ser materialista e colocar que
não há nenhum sujeito no real. Não há sujeito senão pelo significante. O
sujeito ou conjunto vazio não vem ao mundo senão pelo fato de que o
significante para aí carrega seu traço, carrega o traço mínimo que permite
dizer: não há nada”[143]. Em outros termos, o sujeito é fundado sobre esta
nomeação do vazio, sobre esta “materialização” da ausência. É, portanto, o
significante a primeira instância diferenciada, o elemento que retira o ser do
real ao delimitá-lo[144]. Isto quer dizer que o campo do ser se inaugura, se
instaura quando barreiras, limites são impostos à indiferenciação do real. Ora,
são exatamente os significantes que vão primeiramente distinguir um
“dentro” de um “fora”, algo que está presente de algo que está ausente[145],
“de onde vemos que a ontologia nasce com o discurso”. Podemos mesmo
chegar ao ponto de identificar o campo do ser ao campo do discurso[146].
Isto nos conduz a uma conclusão muito importante. Se nós
afirmamos que o campo do discurso, o campo do ser, é aquele do
significante, do Outro, isto quer dizer que o campo oposto, aquele do sujeito,
é, enquanto tal, estritamente condenado ao silêncio, e mesmo à desaparição.
Dito de outra forma, S1, ao mesmo tempo em que ele cria o sujeito, ele o
apaga: quando “o sujeito surge de um lado como sentido, produzido pelo
significante, no outro ele aparece como afânise”[147]. Sua única chance de não
se apagar completamente é então de não escolher a via do sentido, a via da
alienação. Contudo, se ele não a escolhesse, ele terminaria por cair seja no
sem-sentido (non-sense), seja no silêncio[148]. Daí a inversão do cogito, já
mencionada: eu sou onde eu não penso. Eu penso onde eu não sou[149]. Está aí
a condição de sujeito essencialmente dividido, barrado: o fato que o sujeito
enquanto tal não se manifesta senão no intervalo de S1-S2, isto é, antes de o
sentido se constituir, mas depois de um significante ter sido capturado.

É a ideia que pode ser apreendida do cogito em seu tempo


primeiro, isto é, o tempo em que há puramente a constatação de existência
(juízo de significação absoluta: “eu sou isto”), sem haver ainda atribuição
(juízo em que a articulação significante é já requerida). O que acontece é que,
em Descartes, a operação de separação é primeira, enquanto que em Lacan
ela vem em segundo. Em todos os casos, entretanto, esta operação implica
um corte do binário S1-S2.

O unário e o binário: S1 como fora da cadeia (S1/$ a/$)


“O que é que faz a diferença do unário e do binário? O binário é, por
exemplo, S1-S2. Isto faz um binário. O unário adjetiva S1 enquanto cortado de S2, no tempo
em que isto foi dito e não ainda repetido. É, bem entendido, uma ilusão, já que se chega
muito tarde e tudo já foi dito. Ele não toma seu valor de unário senão de seu lugar de
semblant, que implica o corte com o dois. (...) Nós temos aí a noção de um significante que
representa o sujeito, mas não para um outro significante. Do significante que faria exceção a
esta lei do significante de representar o sujeito para um outro significante”[150].

Isto é extremamente importante, pois temos aqui a indicação de


que no tempo “um”, não há ainda alienação significante. Para que haja
alienação, não basta que o significante venha do Outro. É preciso também
que haja uma concatenação entre os dois polos. É a articulação produtora de
sentido que gera a alienação, o sujeito sendo capturado na armadilha e
apagado no processo de representação que teve lugar no campo do Outro.
Portanto, se se chega a “interromper” este processo
representativo, quer dizer de articulação entre S1 e S2, tem-se sucesso em
obter S1 sozinho e, como tal, fora da cadeia. Ora, a chave da diferença entre
alienação e separação reside exatamente na diferença entre S1 sozinho e S1
formando par com S2. No nível de S1-S2, S1 tem um valor articulador, é um
significante mediador entre o sujeito e o Outro. Dito de outra forma, na
alienação, há a imersão do sujeito no Outro, suas leis sendo respeitadas e o
reconhecimento sendo desejado e obtido[151]. De outro lado, S1 sozinho tem
um valor completamente oposto. “É um significante redutor do Outro. É um
significante que, paradoxalmente, se instala, vale, fora do sistema
significante”. E se a cadeia é cortada, isto quer dizer que o sujeito não está
representado no Outro. Ora, “é na medida em que o sujeito renuncia à sua
representação significante, isto é, renuncia a seu devir significante, que ele é
suscetível de tornar-se pequeno a. (...) Uma vez que o pequeno a não é um
significante e S1, se é um significante não é um significante como os outros,
todos os dois parecem partilhar o estatuto de fora de cadeia”, e portanto não
articulados aos outros significantes[152].
Vejamos o diagrama da separação:
Diagrama 3

É, com efeito, o encontro do sujeito como o objeto a, causa de


seu desejo, que lhe permite de realizar o corte de S1-S2, e fazer de S1 o
significante de sua diferença fundamental, diferença pura, irredutível. Ora, o
que acontece é que S1 sozinho não pode ser do sujeito senão um representante
pontual, ou seja, ele não pode senão indicar a presença do sujeito numa frase
de significação absoluta: “tu és isto”. Esta frase tem uma significação
“absoluta” na medida em que ela não tem seu sentido ou decifração nas mãos
do Outro. Ora, se o Outro não tem nenhuma influência aí, isto significa
imediatamente que o que é aí revelado é exatamente o que é mais íntimo ao
sujeito, sua verdade mais particular. Vemos, portanto, a estreita associação
entre esta verdade e o objeto a: o objeto a, enquanto ligado ao mais íntimo
desejo inconsciente do sujeito, é propriamente o produto desta revelação, é o
que surge por trás das insígnias que ocupam este lugar do Um (S1) e que
representam o sujeito para os outros significantes. Cortado o “para” da
relação, não resta ao sujeito senão ser “representado” por sua própria falta,
índice de gozo: a / $[153].
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A passagem do sujeito alienado ao sujeito separado tem outras


implicações. Em primeiro lugar, ela implica uma delimitação entre o sujeito
do inconsciente e o eu (moi). Nós vemos, efetivamente, que o sujeito do
inconsciente (je) está do lado da verdade evanescente, do S1 sozinho e fora da
cadeia. De outro lado, o eu está do lado do Outro, da cadeia articulada, do
discurso intersubjetivo e da verdade caucionada por um pacto
institucionalizado. A oposição profunda entre o sujeito do inconsciente (o je)
e o moi revela-se assim por via da operação de separação, a qual faz aparecer
não apenas um outro tipo de verdade, mas também um outro tipo de
demanda, uma demanda desconectada do Outro.
Ora, esse movimento de desenraizamento do Outro, trazido pela
operação de separação, coincide com a travessia do fantasma, a segunda
implicação que nós queremos examinar. O fantasma, veremos, será o
“instrumento” privilegiado para decifrar as diferenças e as conexões entre o
je e o moi, e entre este e o gozo.
***
No início deste trabalho, delimitamos nossos objetivos dizendo
que nos era necessário investigar antes as causas do processo de constituição
da realidade do que os resultados em si mesmos. O que nos interessa, ali
dissemos, é antes a realidade constituinte do que a realidade constituída.
Entretanto, há um conceito que permanece, por assim dizer, no
justo centro do que poderia ser dito constituinte ou constituído. “No centro”,
isto quer dizer que, embora não se trate de um princípio, de uma lei ou de um
mecanismo primordial do aparelho psíquico, ele interfere mesmo assim em
todo o processo de apreensão da realidade. Em outros termos, ele é, ao
mesmo tempo, um resultado dos mecanismos e operações do psiquismo e
algo que, não obstante, organiza, constitui o mundo dos objetos humanos.
Este conceito é aquele de fantasma, e, precisamente em razão de seu caráter
híbrido, decidimos deixá-lo para o final, a fim de aproveitarmos este seu
caráter “intermediário” para articular os três registros: o real, o simbólico e o
imaginário.

***
O que é o fantasma? O fantasma, propriamente falando,
constitui-se como uma defesa contra o real. Ele é uma espécie de tela que
dissimula o encontro com o real e o torna suportável ao sujeito. Em outras
palavras, há algo que vem do real que é intolerável ao sujeito, algo que ele
deve mascarar, obturar. Esta “coisa” é a castração, é a falta primordial que
bate à porta do sujeito desde seus primeiros momentos de existência. Com
efeito, é em razão do fato de que o objeto de satisfação falta (por exemplo, o
seio da mãe), que a criança se torna um sujeito desejante. Se a mãe estivesse
sempre lá, o sujeito não adviria jamais, pois não haveria o movimento
inaugural da demanda. Suprido, o indivíduo permaneceria no estado de
perpétua inércia. Vemos assim que a castração e a alienação se implicam
reciprocamente, pois é a primeira que impulsiona o sujeito a ir de encontro ao
Outro[154].
O objeto está então faltando, e o sujeito vai justamente
homologar esta perda do objeto formando um fantasma. Neste primeiro
momento, assim, o fantasma não é mais do que a representação imaginária do
objeto perdido. Este objeto que serve de suporte ao fantasma é então o objeto
que causa e coloca em movimento o desejo do sujeito. O objeto do fantasma
é o objeto a, o que é bem indicado por seu matema: $ a[155].

Contudo, o fantasma não é somente uma formação defensiva,


um resultado de um mau encontro com o real, um efeito deste desejo
primitivo do objeto perdido. O fantasma é também a matriz dos desejos
atuais. Através do fantasma, toda a realidade do sujeito vai ser mesmo
atravessada pelo desejo[156], pois o fantasma enquadra, emoldura a realidade,
no sentido de que ele “filtra e colore com as tintas que lhe são próprias todas
as relações do sujeito a seu mundo, aos objetos e aos seres. Ele é como um
ferro de leitura que imprime sua marca e ordena os fatos segundo as linhas de
força de sua estrutura. Assim, a realidade, no sentido freudiano, é apreendida
pelo sujeito através do prisma de seu fantasma, alterada, elaborada,
delimitada e definida por ele”[157]. Dito diferentemente, nós podemos também
ver no fantasma uma função organizadora da realidade humana e, enquanto
tal, o fantasma não é somente uma função puramente imaginária, mas
também uma função simbólica[158]. Seu matema deixa entrever isso sob a
forma desta barra ($) que divide o sujeito para sempre, que é a marca de sua
entrada na linguagem e seu assujeitamento a ela. Desta maneira, o fantasma é
o conceito que permite amarrar os três registros: o simbólico (representado
pela barra do $), o imaginário (pequeno a) e o real (pequeno a) [159].
Todavia, não é somente com a pulsão e com o sujeito do
inconsciente que o fantasma tem relações. Ele as tem também com o eu. Com
efeito, a relação do fantasma com a pulsão[160] e com o sujeito do inconsciente
revelou-se imediatamente, já que o fantasma se colocou precisamente como
uma espécie de roupagem e de véu da pulsão. Realmente, se o fantasma pode
ordenar a relação do sujeito à realidade, é porque ele emoldura a correlação
do sujeito com o gozo.
***
Contudo, nos é necessário agora examinar sua relação com o
eu, com a instância psíquica que é encarregada precisamente de modificar o
mundo para obter satisfação.
O sujeito do inconsciente, vimos, é o verdadeiro sujeito do
desejo, o verdadeiro portador das ambições pulsionais. O eu, de outro lado, é
a interiorização, num certo sentido, das leis da linguagem, das leis do Outro.
Ele é o representante de uma lei exterior, de uma lei estranha e estrangeira.
Desta maneira, quando o eu tenta organizar os modos de satisfação do sujeito
via alteração real do mundo exterior, ele vai fazê-lo encontrando um
compromisso entre as exigências das pulsões e as do Outro. Em outras
palavras, o eu tentará satisfazer as pulsões sem arriscar perder o amor do
Outro.
A necessidade deste compromisso remonta ao aprendizado
fundamental do eu, à ocasião de suas primeiras experiências. De fato, o eu
aprendeu que a satisfação vinha sempre do Outro. Ora, sendo assim, o eu
acabou por confundir o objetivo de encontrar satisfação com a obediência ao
Outro, ele acabou por confundir a procura de satisfação pulsional com a
procura de amor. Dito de outro modo, o eu chegou à conclusão de que, se a
satisfação vinha sempre do Outro, era preciso então tê-lo em alta conta, era
preciso respeitá-lo, obedecer-lhe, na intenção de obter dele a garantia da
satisfação futura.

Desta maneira, o eu vai barrar, impedir toda moção de desejo


que precisamente comprometa o respeito e o amor do Outro. E eis aí o
paradoxo humano: a fim de garantir a satisfação (segura), ele se priva da
satisfação (imediata). Ele a impede porque ele fica preso na armadilha, na
ilusão de que ele não pode obter satisfação senão através do Outro, através de
seu desejo, de sua legitimação e reconhecimento.
O eu, assim, aprende a sacrificar a pulsão pelo amor. Ensinou-
se ao eu a renunciar ao prazer do erotismo para poder ser amado. O que se
passa então é uma interiorização do Outro, de suas prescrições e de suas
proibições. O eu é como a voz do Outro, seu intérprete interno. Ele é o sujeito
identificado aos ideais do Outro[161]. É o que permitiu a Lacan instalar, na sua
teoria, no lugar do eu, a linguagem e suas leis, a linguagem e sua articulação
estrutural.
***
Porém, por que dissemos justamente que seria o conceito de
fantasma que serviria de ponte entre a questão do sujeito — e por trás dela,
aquela do gozo — e o eu? Pura e simplesmente porque o objeto do fantasma
é precisamente o que se põe entre o objeto da pulsão e o “objeto do eu”, entre
a pura vontade de gozo e a demanda desesperada de amor.
Com efeito, é através do fantasma fundamental que as
exigências pulsionais encontram sua dimensão psíquica em termos de
conteúdo organizado, conteúdo que será utilizado pelo eu para fazer face à
“realidade intolerável”. O fantasma fundamental é, desta forma, não apenas
uma espécie de guia de interpretação dos eventos que atingem o aparelho
psíquico, mas também um meio de acessar o gozo. É assim que o fantasma
desempenha o duplo papel de dar testemunho de um mau encontro com o real
e de fornecer o material a partir do qual a realidade pode tornar-se de novo
um “espaço habitável”[162]. Em outras palavras, é por causa do fantasma que
todo encontro com o real deixa de ser impossível de suportar.
Esta ligação entre a pulsão, o fantasma e o eu mostra-se ainda
mais clara no caso da satisfação sublimatória, na qual o eu consegue
precisamente conjugar as exigências do Outro (sua demanda de ser amado) e
as exigências da pulsão. Esta conjugação é possível justamente quando os
objetos fantasmáticos que mobilizam a libido encontram também uma
aprovação da sociedade, quer dizer, quando eles são socialmente
valorizados[163].
***
Isto dito, o que podemos constatar é que o eu, por si mesmo,
não tem o que se poderia chamar “uma vontade própria”. Se o eu luta por um
compromisso entre a pulsão e o Outro, recusando muitas vezes à pulsão um
meio de se satisfazer, isto é assim apenas pelo fato de que o eu é o resultado
de um argumento falacioso, aquele que diz que, para obter satisfação, é
preciso de início renunciar a ela.
Vemos assim que o eu é um falso sujeito, já que ele não deseja,
propriamente falando, nada. Ao contrário, esta demanda de amor do eu não é
um verdadeiro desejo e tem apenas uma só raiz: a pulsão, sua exigência de
gozo. Em outras palavras, é porque o eu quer garantir a satisfação pulsional
que ele se faz escravo das leis do Outro. Ao fazer isso, o eu parece mudar de
mestre, mas na verdade não há senão um e único mestre: a pulsão. Assim
como há apenas um único e verdadeiro sujeito desejante, o sujeito do
inconsciente.
De fato, se nos voltamos sobre nossas construções iniciais,
lembraremos que a pulsão não visa senão uma só coisa: a satisfação, a qual só
pode ser obtida através da repetição do percurso do trilhamento primordial.
Eis aí a realidade da pulsão e a única realidade verdadeiramente irredutível do
sujeito: a pulsão exige a repetição deste caminho, e é tudo. Nada mais
importa.

Contudo, pareceria um pouco drástico afirmar isso desta forma,


já que — a partir do exame do funcionamento do aparelho psíquico — se
tornou claro que a forma pela qual esse caminho é percorrido é muito
importante. Sim, pois em caso contrário, se estaria mesmo correndo o risco
de alucinar até a morte. Ora, está aí justamente o ponto irredutível de todo
sujeito humano. A pulsão é uma pulsão de morte, a qual ordena a repetição a
todo custo. Mas, então, por que saímos deste circuito alucinatório? De uma
maneira acidental, poder-se-ia dizer. Prematuros e incapazes de fazer
qualquer coisa em prol de nossa própria sobrevivência, acontece de um outro
ser humano nos salvar a vida. Vimos o dia entre seres que tomam a seu
encargo a sobrevivência dos recém-chegados. Com esta ajuda do Outro,
temos nossas primeiras necessidades satisfeitas, e é a partir desse fato, desse
movimento do Outro em nossa direção, que os caminhos de satisfação
pulsional vão inscrever-se em nosso sistema mnêmico. Deste modo, é porque
dependemos do Outro para sobreviver que acabamos por construir caminhos
de satisfação que se desviam, pouco a pouco, da estratégia rápida, direta e
suicida da alucinação indefinida.
Esta relação de dependência tem uma consequência ainda mais
ampla quando pensamos que ela nos inscreve num sistema de troca simbólica
e nos obriga a utilizar palavras para nos referir a objetos, significantes para
descrever sensações e para determinar objetivos. O que deveria ser um
simples meio de retardamento da obtenção de satisfação (não alucinar até a
chegada da boa percepção) acabou por se transformar num longo desvio
cheio de curvas sinuosas. Ora, é justamente esse desvio que constitui o que é
propriamente humano, e é esse sujeito humano que despertou o interesse de
Freud e depois o de Lacan. Este sujeito que não sabe nada sobre seus desejos
fundamentais e cuja única possibilidade de lhes aceder se oferece por meio de
remanejamentos sucessivos de suas inscrições mnêmicas. É por isso que a
psicanálise utilizará uma técnica que se centra na palavra, já que é somente
através dela que podemos penetrar um pouco mais neste terreno pouco
desbravado. A revolução freudiana consiste exatamente nesta descoberta de
que o sujeito humano desconhece seu desejo irredutível. Assim advertido, ele
poderá ter uma escuta especial na sua prática clínica, uma escuta que tem sua
atenção dirigida para o que se repete, para o que se traveste, se transforma,
mas sempre persiste e retorna. É nesta insistência que Freud vai reconhecer
os desígnios da pulsão e poderá tentar empreender a cura. “Cura”, entretanto,
não significa aqui dar ou restituir ao sujeito a liberdade absoluta sobre seus
caminhos de satisfação, mas apenas lhe permitir uma certa mobilidade no que
concerne a todo acesso possível a estes modos de satisfação. A “cura”
psicanalítica não visa restituir ao sujeito o poder total de seu destino e de seus
desejos, mas apenas dar-lhe a possibilidade de trabalhar, de agir sobre um
terreno de contingência, sobre uma pequena brecha que se abre no real
pulsional.

É por isso que todo o trabalho analítico se centra na abordagem


do fantasma, porque é por seu intermédio que o sujeito pode aceder ao seu
próprio gozo e esperar, a partir daí, uma mudança no mesmo. A cura
psicanalítica não visa, assim, nada senão dar ao sujeito a chance de fazer sua
a sua própria verdade, fazer seu o seu próprio estilo. Um estilo que vem
sobretudo do objeto pequeno a, e não um estilo importado do Outro. O que a
“cura” visa é a travessia do fantasma, este movimento que implica a assunção
da falta fundamental, a assunção de um significante que não adquire
significação senão por relação ao objeto causa de desejo; em uma palavra:
este movimento que implica que o sujeito possa renunciar à sua representação
significante e tornar-se ele mesmo pequeno a.
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[1]
Apreensão que pode, naturalmente, ser ajudada e enriquecida por intermédio dos instrumentos de
medida e de observação.
[2]
Evidentemente, esta não é a concepção defendida por todo cientista. Há outros que defendem, por
exemplo, a ideia de que as teorias científicas são apenas instrumentos de predição, e não tentativas de
descrição efetiva da realidade (concepção pragmática). Todavia, não é aqui nossa intenção expor as
diferentes concepções epistemológicas, mas somente circunscrever, ainda que brevemente, o ambiente
onde Freud fez sua descoberta. É essa a razão do privilégio concedido à concepção positivista (exposta
de uma forma extremamente simplificada, certamente).
[3]
Freud, S. Zur Auffassung der Aphasien: eine kritische Studie, p. 121; Contribution à la Conception
des Aphasies, une étude critique, p. 127. Este texto apareceu em 1891.
[4]
Cf. Aphasies, op. cit., p. 94-97.
[5]
A significação é produzida na relação entre a representação-palavra (Wortvorstellung) e a
representação-objeto (Objektvorstellung). A este respeito, ver o capítulo dedicado ao aparelho de
linguagem.
[6]
“A periferia do corpo não está contida no córtex ponto por ponto, mas ela aí está de modo menos
detalhado por fibras selecionadas” (cf. Aphasies, pp. 100-1).
[7]
A afasia assimbólica constitui um problema na primeira relação (isto é, um problema na articulação
significante), enquanto a agnosia é o resultado de uma perturbação na segunda relação (isto é, um
problema na associação entre a representação-objeto e o referente exterior, o que se experimenta como
um problema no reconhecimento dos objetos (cf. Aphasies, p. 128)).
[8]
Tanto as representações-palavra quanto as representações-objeto são complexos associativos. As
representações-palavra são formadas a partir das associações de palavra (imagem sonora, de leitura,
escrita, etc.); as representações-objeto, a partir das associações de objeto (as quais não são mais do que
a associação dos diversos elementos das percepções: as imagens táteis, visuais, sinestésicas, etc.). A
este respeito, ver o capítulo I, especificamente a parte concernente à memória e linguagem.
[9]
Realmente, já que a submissão incondicional ao princípio do prazer conduz à alucinação, o princípio
da realidade veio para corrigir ou retificar a interpretação equivocada que o aparelho psíquico possa dar
dos traços de memória. Em outras palavras, o princípio da realidade tem a função de permitir a
distinção entre o objeto real e o objeto alucinado e assim de tornar possível a alteração do mundo
exterior. “O princípio da realidade vem como um princípio de correção, de chamada à ordem. O modo
pelo qual ele opera não é senão desvio, precaução, retoque. Ele corrige, compensa essa inclinação
fundamental do aparelho psíquico: a alucinação” (Lacan, J. Le Séminaire, livre VII, L’Éthique de la
Psychanalyse, p. 37).
[10]
Da realidade material.
[11]
O que está em acordo com Lacan (cf. Le Séminaire, livre II, p. 78).
[12]
Soler, C. “El Síntoma”, p. 31.
[13]
A assimilação da verdade da ciência à verdade do Outro deve-se justamente ao fato de que se
encontram no Outro as condições mesmas de sua enunciação: a materialidade do discurso (os
significantes), os códigos de interpretação e significação (as leis de articulação significante) e também a
possibilidade de troca e transmissão (a comunicação ela mesma e o pacto subjacente a toda instituição
da linguagem).
[14]
O que nós mostraremos é que há duas etapas distintas do cogito: a primeira é o momento em que
surge a verdade primeira do sujeito, pura constatação de sua existência sobre um fundo de dúvida
generalizada; e a segunda é a fase em que Descartes cristaliza, petrifica esta verdade primeira ao lhe
vincular atributos essenciais (“a essência de meu ser é o pensamento”) e constrói assim todo o edifício
do conhecimento a partir de raciocínios feitos em torno destas propriedades.
[15]
Com efeito, o real lacaniano pode referir-se tanto ao “mundo exterior” tomado como indiferenciado
e incognoscível (sentido kantiano) quanto ao “mundo interior” nos conceitos de pulsão e de das Ding
(quando ele toca na questão da particularidade do sujeito).
[*]
A diferença entre um real “interior” e um real “exterior” é uma diferença meramente didática, já
construída no interior do simbólico, e não pretende, assim, reeditar uma outra dicotomia no lugar
daquela entre realidade material e realidade psíquica. Além disso, seguindo a própria definição
oferecida de real — aquilo que permanece indiferenciado, inassimilado e inarticulado —, vemos
realmente que tal conceito não suportaria dicotomias numa abordagem mais pura. Para maiores
esclarecimentos, ver capítulo III.
[16]
O melhor exemplo é a diferença entre o processo de recalcamento e seu resultado, o sintoma. Com
efeito, estudaremos o mecanismo do recalcamento (e da foraclusão também), mas não a formação do
sintoma (ou do delírio).
[17]
A partir do qual o objeto alucinado pode ser diferenciado do objeto real, obtido pela percepção.
[18]
Isto é, manter Q num nível tão fraco quanto possível, para utilizá-la na realização da ação
específica.
[19]
No segundo sentido examinado, a saber, de que não há objeto de satisfação determinado.
[20]
Entwurf einer Psychologie. Ver também as traduções consultadas: Esquisse pour une Psychologie
Scientifique e Projeto de uma Psicologia Científica (tradução direta do alemão e notas críticas de
Osmyr Faria Gabbi Jr.).
[21]
Isto não é totalmente exato. Nós vemos aparecer a ideia de uma quantidade ou tensão
psiquicamente ligada já no Manuscrito E (“Como nasce a angústia”), datado de aproximadamente
junho de 1894.
[22]
Com efeito, esta distinção, Freud a utiliza em vários momentos de sua obra, por exemplo, nos
artigos O Inconsciente, Além do Princípio do Prazer, assim como em seu tardio Esboço de Psicanálise.
[23]
Wortvorstellung, Objektvorstellung e Sachvorstellung, respectivamente.
[24]
Qn é a Q de origem endógena. Q, no vocabulário do Entwurf, é utilizada para se referir seja à
quantidade de origem exógena, seja à quantidade em geral. No presente caso, utilizamos Q no sentido
geral de ‘quantidade’.
[25]
Cf. “Pulsions et ses destins”, pp. 13, 17.
[26]
No interior do sistema ψ, segundo os conceitos do Entwurf.
[27]
Nós veremos que esta “transformação” corresponde à passagem da energia tomada em seus aspectos
quantitativos à energia tomada em seus aspectos semânticos. Quer dizer, o efeito de ser capturado pelo
psiquismo é o de articular a energia pulsional em relações significantes.
[28]
Cf. Lacan, J. Le Séminaire, livre II, p. 78: “Se o psiquismo tem um sentido, se há seres vivos, é pelo
fato de que há uma organização interna que tende até um certo ponto a se opor à passagem livre e
ilimitada das forças e das descargas energéticas tais que nós as podemos supor, de um modo puramente
teórico, se entrecruzando numa realidade inanimada”.
[29]
“Neurônios”, segundo o vocabulário do Entwurf. “Representações”, se se toma o resto da obra de
Freud. Contudo, mesmo no interior do Entwurf, nós vemos progressivamente o aspecto semântico
ganhar importância em relação ao aspecto puramente quantitativo. Com efeito, é o que se constata
quando vemos Freud abordar a questão da neurose a partir do recalcamento de certas representações
que são especialmente investidas por causa de sua significação sexual. Quer dizer, o que é objeto do
recalque é propriamente o aspecto semântico da representação, e não seu aspecto quantitativo. De fato,
desde que esta quantidade se liga a uma representação aceitável, não há problema de acesso à
consciência.
[30]
Este grupo de neurônios ou representações constantemente investido é o Freud chamará de “eu”. O
eu será objeto de análise do capítulo dois.
[31]
Cf. Wine, N. Pulsão e Inconsciente, onde se lê: “a transformação mesma do estímulo externo em
uma energia ligada é já sentida como um alívio da tensão, uma forma de satisfação, porque a energia
não faz mais a pressão no sentido da descarga” (p. 125).
[32]
Com efeito, o princípio do prazer ordena a descarga total da excitação, enquanto a ligação reduz a
tensão em tornando-a imóvel (mas retendo-a no aparelho). Se então mostramos que o gozo é a repetição
das vias de satisfação originárias, e que estas vias são fixadas através da operação de ligação, veremos
desde logo por que o gozo permanece associado a um aumento de tensão no aparelho psíquico.
[33]
Para passar do princípio do prazer ao princípio da realidade é preciso inibir o processo alucinatório.
Esta inibição será tarefa do eu, que poderá fazê-lo quando puder orientar a energia psíquica para as
percepções (e não para as representações da memória). Ora, o que acontece é que a própria constituição
do eu se deve ao mecanismo da ligação, o qual permite a existência de um grupo de representações
constantemente investida. Isto será examinado no detalhe em seguida.
[34]
A ação capaz de fazer cessar a estimulação endógena é dita ação específica (cf. Esquisse, p. 336).
[35]
Cf. Esquisse, pp. 336-7; l’Entwurf, pp. 402-3.
[36]
Será apenas num segundo momento, a posteriori, que estas ligações terão a função secundária de
organizar os percursos de satisfação.
[37]
De fato, uma vez que a memória é retenção de informação, retenção à passagem de Q, ela implica
diretamente o mecanismo de ligação.
[38]
“Derivada” porque se não houvesse o fracasso da satisfação alucinatória, esta aliança “inabalável”
não se formaria. Contudo, este fracasso é ‘necessário’ na medida em que a sobrevivência do sujeito
humano implica sempre o socorro do Outro, que ensina ao organismo um meio mais seguro de obter
satisfação.
[39]
“As impressões em si mesmas são inarticuladas. (…) Quando elas são ligadas, as impressões
entram na ordem das representações significantes” (cf. Wine, N., Pulsão e Inconsciente, p. 126).
[40]
Kontaktschranke, segundo a terminologia empregada no Entwurf. No resto de sua obra, Freud não
utilizará mais a noção de barreiras de contato. Contudo, o que é importante frisar é o aspecto de
retenção de energia, de quantidade. Isto perdurará na obra de Freud sob a noção de inscrição. Ou seja,
a retenção de Q torna-se a retenção de traços de impressões ou traços de percepções. O vocabulário
quantitativo dá lugar a um vocabulário “semântico”, e mesmo significante. Esta mudança, como já o
indicamos, pode ser notada já no Entwurf, onde a abordagem da quantidade cede lugar à abordagem das
representações. O que fazemos aqui é mostrar não apenas que o aspecto quantitativo não é antinômico
ao aspecto representativo, semântico, mas também que ele serve ainda a esclarecer certas relações entre
este aspecto semântico, significante, e o aspecto pulsional, como se verá em seguida.
[41]
Cf. Esquisse, p. 321
[42]
Carta 52, de 6 de dezembro de 1896. in: La Naissance de la Psychanalyse, op. cit., p. 153-160.
[43]
Carta 52, pp. 153-4.
[44]
Carta 52, pp. 154-5.
[45]
Cf. Aphasies, p. 127; Aphasien, p. 121.
[46]
“(…) weil mir die Beziehung zwischen Wort und Objektvorstellung eher den Namen einer
‘symbolischen’ zu verdienen scheint als die zwischen Objekt und Objektvorstellung” (Aphasien, p.
123; Aphasies, p. 128).
[47]
“Das Wort erlangt aber seine Bedeutung durch die Verknüpfung mit der ‘Objektvorstellung”,
wenigstens wenn unsere Betrachtung auf Substantiven beschränken”. (Aphasien, p. 122. Aphasies, p.
127).
[48]
Como bem o indica Assoun, Freud reencontra Saussure ainda no fato de que a representação-
palavra (o significante) é representado na cadeia associativa pelos registros acústicos, enquanto que a
representação-objeto (o significado) é principalmente representado pelo registro visual (cf. Assoun, P.-
L. Introduction à la métapsychologie freudienne).
[49]
Cf. De Georges, P., Leçons de Chose, p. 128: “O objeto não tem existência senão pelo fato de cair
sob um conceito. Ele tira seu sentido de sua diferença com a coisa integrada”.
[50]
Cf. Carta 52, p. 155
[51]
Cf. “L’Inconscient”, p. 116. “Das Unbewusste”, p.151.
[52]
“L’Inconscient”, p. 117. “Das Unbewusste”, p. 151
[53]
Com efeito, já que falar de representações implica supor algo como uma unidade. Um complexo
associativo em si mesmo não poderia ser dito uma representação a menos que exista um princípio de
unificação que faça com que as associações de que ele se compõe perdurem, se mantenham juntas. A
representação-palavra (ou o significante), na medida em que ela é uma espécie de invariante lógico,
pode assumir tal função de princípio de unificação. Resta-nos a descobrir o que pode desempenhar esse
papel no caso das representações inconscientes.
[54]
Mais precisamente: as Wahrnehmungszeichen são os traços das percepções, isto é, os elementos que
serão reunidos num complexo associativo pela simultaneidade da ocorrência. Ou ainda: as associações
de objeto são as Wahrnehmungszeichen enquanto reunidas por sua ocorrência simultânea.
[55]
Como vimos, esses traços de percepção formam o primeiro registro mnêmico, o qual “não é ainda
estruturado como uma linguagem, mas é organizado segundo a associação por simultaneidade” (cf.
García-Roza, L.-A. Introdução à Metapsicologia Freudiana 2, p. 162).
[56]
Cf. Miller, J.-A., Ce qui fait insigne, aula de 07/01/1987. Ver também l’Entwurf, onde Freud faz
alusão ao fato de que a ajuda do outro pode ser feita quando a atenção de uma pessoa experimentada é
dirigida à criança a partir de seu grito. Ou seja, o grito da criança é interpretado pelo Outro como
demanda, como uma espécie de pedido de socorro, que isto vai “adquirir assim uma função secundária
de extrema importância: aquela de compreensão mútua (Verständigung)” (L’Entwurf, p. 402; Esquisse,
p. 336;).
[57]
Ce qui fait insigne, 17/12/1986, 07/01/1987.
[58]
“A Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma cadeia, e eu penso mesmo que
isto pode ser aproximado da cadeia significante” (Lacan, L’Éthique, pp. 49-50).
[59]
Com efeito, a passagem da necessidade ao desejo se faz justamente a partir do que se chama “a
mutação significante”, a partir da transformação do grito em apelo, do grito em demanda ao Outro.
[60]
E, naturalmente, justificar a origem de tais diferenças.
[61]
Sempre referida ao significante, que tem um papel de invariante lógico. Com efeito, o significante
permite manter juntos elementos que são, em si mesmos, heterogêneos.
[62]
Dito de outro modo, haveria no inconsciente uma tendência à satisfação alucinatória do desejo, tal
como ela acontece no sonho. Todavia, mesmo esta tendência se distingue já em vários aspectos da
alucinação primitiva da satisfação originária, porque a tendência alucinatória do inconsciente passa já
pela influência do desejo, das articulações significantes.
[63]
Veremos, entretanto, que o psiquismo não é um conjunto consistente no que concerne ao seu
aspecto simbólico. Com efeito, há furos “reais” que o determinam, como a presença de das Ding em
seu interior (cf. infra).
[64]
Enquanto identificada à Qn livre.
[65]
De fato, os dois autores sublinham o fato de que, da pulsão, nós conhecemos apenas seus
representantes, e de que, além disso, o único meio de acessá-los é através da linguagem.
[66]
Se o eixo SC1-SC2 é o eixo real, temos então que as Wahrnehmungszeichen são também da ordem
do real. De fato, não poderia ser de outro modo, já que estes traços de percepção permanecem
desarticulados da rede e, portanto, não assimilados pelo psiquismo. O fato de serem articulados em
Bahnungen é, em consequência, sinônimo do fato de serem assimilados pelo psiquismo.
[67]
Ora, desde que o único objetivo da pulsão é o de se satisfazer, o de chegar a uma descarga, temos a
conclusão de que toda pulsão é, na verdade, pulsão de morte. Se há um destino diferente para a pulsão
além daquele de uma descarga completa, de um retorno ao inanimado puro e simples, isto se deve a
esse desvio que se chama vida e ao simbólico, que se encarrega da organização das múltiplas e novas
vias de satisfação.
[68]
O que é exatamente o resultado da operação de ligação. Esta serve a reter energia (reduzindo os
efeitos nocivos, tornando-a estática) e a indicar o caminho mais conveniente que a energia deve seguir
para atingir a satisfação. A decisão sobre a “conveniência” destes caminhos permanecerá, em grande
parte, a cargo do eu, como veremos mais tarde.
[69]
Este conceito de “aprisionamento” de Q ativa no psiquismo é, sob muitos aspectos, complexo.
Como veremos mais tarde, nos será necessária a distinção entre dois tipos de Q no interior do aparelho
psíquico: a Qn ligada, estática, e uma Qn móvel, circulante. O problema é escapar da confusão com a
Qn “livre”, pulsional.
[70]
O acúmulo de Q implica um aumento da tensão interna, e a tensão interna é vista como
insatisfação, como uma moção que coloca o aparelho em movimento. A tensão é uma demanda ou
mesmo exigência de trabalho. Não é então uma mera coincidência que a definição de moção pulsional
seja precisamente essa: o que exige trabalho ao psiquismo e o coloca em movimento. O resultado é o
desejo que tenta ser satisfeito pelos objetos significantes.
[71]
O que pode ser feito seja através da compra de novas máquinas, seja através do aumento do número
de funcionários, etc. O mais importante a marcar neste caso, segundo a teoria marxista, é a necessidade
absoluta deste reinvestimento da mais-valia. É propriamente o que caracteriza o sistema capitalista.
Com efeito, se se leva mais adiante esta digressão, perceberemos que certas consequências inevitáveis
do capitalismo (as quais ajudariam a conduzi-lo a morte) — como as crises de superprodução — seriam
devidas a esse reinvestimento perpétuo. Segundo Marx, naturalmente.
[72]
A esse respeito, ver por exemplo Nasio, J.-D. Cinco Lições sobre a teoria de Jacques Lacan, p. 27,
onde ele diz justamente que o mais-de-gozar é o gozo que é retido no interior do sistema psíquico. Ele é
“mais” porque este gozo residual implica sempre um excedente, o que amplifica a tensão interna.
[73]
O objeto a pode ser assim definido através desta noção de ‘hiato’, já que é este ‘hiato’ ou
defasagem entre o objeto primeiro e os substitutos que faz com que o sujeito prolongue suas pesquisas
indefinidamente.
[74]
“Assim, o complexo do Nebenmensch se separa em duas partes, uma das quais se impõe por um
aparato constante que permanece unido como coisa — como Ding”. Cf. Lacan, L’Éthique, p. 64 e
também, Freud, Esquisse, p. 376; Projeto, pp. 80-81;.
[75]
Fremde, estranha, estrangeira. Cf. L’Éthique, pp. 64-65.
[76]
O termo criado por Lacan que dá conta dessa “duplicidade” de das Ding é o de extimo (ex-time),
quer dizer, das Ding está ao mesmo tempo dentro e fora do aparelho psíquico. “Pois das Ding está
justamente no centro no sentido de que ela está excluída. Ou seja, na realidade ela deve ser posta como
exterior” (L’Éthique, p. 87). Ela está dentro do aparelho psíquico na medida em que ela é registro
mnêmico da experiência de satisfação; ela está fora, excluída do aparelho psíquico na medida em que
ela é inassimilável à rede significante. É esse o sentido de “extimo”: um furo real na organização
simbólica do aparelho psíquico.
[77]
Como vimos, o conceito de real mais uma vez se define como aquilo que permanece inassimilável,
já que não articulado na e pela rede significante. Contudo, o fato de não ser assimilado (articulado) não
impede sua influência contínua e decisiva na constituição do psiquismo. Vemos então que as duas
delimitações do conceito de real guardam suas características comuns: o real é o que, mesmo sempre
ficando de fora, não cessa de se fazer inscrever, ainda que sempre de modo derivado e substitutivo.
[78]
“Das Ding é o que — no ponto inicial, lógica e cronologicamente, da organização do mundo no
psiquismo — se apresenta e se isola como o termo estrangeiro em torno do qual gira todo o movimento
da Vorstellung” (L’Éthique pp. 71-2).
[79]
Bem como as Objektvorstellungen e Wortvorstellungen.
[80]
Cf. Lacan, J., Le Séminaire, livre XXII, R.S.I., aula de 21/01/1975: “Se eu digo que a é o que causa
o desejo, isto quer dizer que ele não é o objeto. Ele é somente esta causa que causa sempre”.
[81]
Daí a famosa passagem: “o objeto da pulsão (…) é o que há de mais variável” (Pulsions et Destins
des Pulsions, p. 18-9).
[82]
Cf. Lacan, J., Le Séminaire, livre II, p. 125.
[83]
No sentido de que é através dos processos secundários que o sujeito vai procurar a satisfação.
[84]
Isto é, ser capaz de realizar ele mesmo a ação específica.
[85]
“Los dos principios del funcionamiento mental”, p. 495.
[86]
A ideia é a de que a consciência gera qualidade quando há percepção. É esta geração de qualidade
que é utilizada pelo eu como índice da presença de um objeto exterior, um índice de realidade, portanto.
É a partir daí que o aparelho psíquico pode distinguir entre o que é interno (as representações, os traços
mnêmicos) e o que é externo (as percepções e o real subjacente). Esta teoria é desenvolvida no Entwurf.
Resumamo-la: quando há percepção, os neurônios ϕ (PHI) transmitem seus períodos a ω (ÔMEGA),
que os interpreta como qualidade. Esta estimulação de ω por ϕ gera signos de qualidade em ψ (PSI), o
que indica a presença real de um objeto exterior. Portanto, estes signos de qualidade funcionam também
como signos de realidade. ϕ é o sistema de neurônios que serve à percepção. ω é o sistema onde
efetivamente a percepção se produz, com a geração de qualidade. É o sistema percepção-consciência. E
ψ é o sistema da memória, onde os eventos são registrados. É então em ψ que as ligações se vão formar
e também o eu.
[87]
Conjunto de neurônios, no vocabulário do Entwurf. Contudo, como já havíamos assinalado, os
neurônios na teoria apresentada no Entwurf servem principalmente à função de suporte das
representações, as quais não eram na origem senão traços reais e inarticulados de percepção
(Wahrnehmungszeichen). Isto quer dizer que a articulação dos neurônios em Bahnungen equivale à
articulação dos traços mnêmicos, cujo resultado é a cadeia significante. Desta forma, o eu pode
legitimamente ser pensado como um conjunto seja de neurônios, seja de traços mnêmicos, seja de
representações, constantemente investido e articulado. Todavia, após Lacan ter elaborado sua teoria do
significante, nos é muito mais útil pensá-lo preferencialmente como derivado da articulação de
representações, de significantes.
[88]
Ou ω, no vocabulário do Entwurf.
[89]
Há ainda um momento intermediário, entre o segundo e o terceiro, que é aquele quando a criança se
dá conta de que seu grito é não apenas a expressão motora de seu desconforto, mas que ele também
pode ter a função de chamar a atenção do outro. É o momento da mutação significante, tratada no
capítulo I.
[90]
Através do pensamento verbal, o eu pode criar estados de expectativas conscientes. Em percorrendo
as vias associativas ligadas ao objeto do desejo e vinculando-as às representações-palavra, o eu pode
permitir o acesso destas representações à consciência. Naturalmente, isto não pode acontecer senão ao
material que experimentou a retranscrição pré-consciente e que foi subsumido a suas leis.
[91]
Cf. Esquisse, pp. 340-4.
[92]
Relembrando: ϕ é o sistema de neurônios que serve à percepção, encarregado, portanto, de
recepcionar os dados provenientes dos sentidos. ω é o sistema percepção-consciência, encarregado da
geração de qualidade.
[93]
E isto vale tanto para o sujeito normal ou neurótico quanto para o sujeito psicótico.
[94]
Freud, S. “La perte de la réalité”, in: Les Psychoses, p. 131.
[95]
“L’Inconscient”, p. 109.
[96]
“La perte de la réalité”, p. 117.
[97]
“Complément métapsychologique”, p. 141.
[98]
“La perte de la réalité”, pp. 120-1.
[99]
De Georges, P.Leçons de Chose, p. 121.
[100]
Idem, ibidem.
[101]
“O que o recalcamento faz é operar uma cisão no universo simbólico do sujeito, em reduzindo
uma parte deste universo ao silêncio, em lhe recusando o acesso” às associações verbais e em
consequência “o acesso à consciência. Contudo, isto não destrói sua potência significante” (García-
Roza, L.-A. Introdução à Metapsicologia Freudiana 3, p. 176).
[102]
“… e que não é nada de outro nesta ocasião além da ameaça de castração”. Lacan, J. Le Séminaire,
livre III, Les Psychoses, p. 21.
[103]
“O recalcado está sempre lá e se exprime de uma forma perfeitamente articulada nos sintomas e
numa multidão de outros fenômenos” (Lacan, J., Les Psychosesp. 21). De fato, tanto os sintomas
quanto os chistes e os atos falhos têm claramente seu lado de articulação à cadeia significante. O que
não é de modo algum contraditório com o fato de que eles têm também seu lado real. Isto fica
demonstrado uma vez que as representações-palavra são retranscrições em cima das representações-
coisa, as quais não são mais do que representantes da satisfação pulsional (como havíamos explicado
no capítulo precedente). E, realmente, isto não poderia ser diferente, já que é precisamente seu lado real
que lhes permite causar distúrbios na ordem do discurso PCs.
[104]
“O nível das Vorstellungsrepräsentanzen é o lugar da Verdrängung. O nível das
Wortvorstellungen é o lugar da Verneinung” (L’Éthique, p. 78).
[105]
Assoun, P.-L. Introduction à la métapsychologie freudienne, op. cit., p. 107.
[106]
Freud, S. “La Negación”, p. 1134. Cf. também García-Roza, L.-A. Introdução à Metapsicologia
Freudiana 3, p. 282).
[107]
Cf. Freud, S. “Complément métapsychologique”, p. 141.
[108]
Contudo, a esse respeito, o recurso a Kant não nos faz senão orientar nossa atenção. Com efeito,
não será a partir dele que iremos examinar propriamente a questão da verdade, mas a partir de
Descartes. O que a remissão a Kant nos ajudará a fazer é a primeira demarcação entre a psicanálise e a
filosofia, no que concerne à inclusão ou exclusão do sujeito do inconsciente.
[109]
Acreditamos poder falar aqui legitimamente de uma “ontologia” . Uma vez que o psicótico crê
verdadeiramente na existência de seu delírio, podemos então dizer que seu mundo de coisas, de
“entidades”, é forçosamente diferente do mundo do neurótico. Além disso, as “regras” ou leis daquele
mundo são também diferentes umas das outras.
[110]
A oposição será, portanto, entre a verdade do sujeito e a verdade do Outro. Nós faremos equivaler
à verdade da ciência a verdade do Outro, apoiados na comparação que o próprio Lacan fez entre o
papel do Deus cartesiano e aquele do Outro, no que concerne à garantia da verdade.
[111]
Cf. L’Éthique, p. 68.
[**]
Relembramos aqui que a distinção entre um “real ‘interior’” e um “real ‘exterior’” é mera e
simplesmente de caráter didático. Feita essa importante ressalva, acreditamos que tal distinção conserva
sua utilidade. De fato, a dicotomia lançada entre interior e exterior, é uma dicotomia que tem lugar na
ordem simbólica. Ora, mas é precisamente na ordem simbólica que a diferença entre ciência e
psicanálise precisa e deve ser feita. Assim, tal dicotomia ou distinção vai apontar para os pontos de
ruptura entre uma e outra. Ao dizermos que a ciência é voltada para a “exterioridade”, para o que se
apresentaria, em princípio, a todo e qualquer olhar, indicamos assim sua preferência pelo que é passível
de prova intersubjetiva, pelo que é comum ao sujeito humano em geral. Inversamente, ao dizermos que
a psicanálise foca-se nessa “interioridade” (sempre entre aspas), chamamos a atenção para o fato de
que ela se preocupa com a particularidade, com o que é contingente e único em cada sujeito.
[112]
O noumenon. Por gosto da homogeneidade na discussão, utilizaremos daqui em diante “real” no
lugar de noumenon. Isto é autorizado pelo fato de que nós vamos defender justamente a ideia de que o
noumenon kantiano é equivalente ao real lacaniano enquanto “exterior” (capturado e recortado pelas
percepções, por exemplo, em oposição ao real “interior” de das Ding e das pulsões).
[113]
É interessante ver a palavra “Ding” na formação de um adjetivo muito importante na filosofia
kantiana, aquele de “unbedingt” (incondicional ou incondicionado). “Eine unbedingte Aktion” é
justamente uma ação que não é influenciada por nenhuma motivação patológica ou sensorial, nem
determinada por nenhum evento que a precedeu. É, ao contrário, ela que vai iniciar uma nova cadeia
causal. Assim, em si mesmo, um ato livre está fora do tempo, já que todos os eventos que têm lugar no
tempo devem submeter-se necessariamente à categoria de causalidade, o que implica ser determinado
por alguma coisa que o precedeu. É o paradoxo entre a liberdade e o determinismo, para o qual Kant
encontrou uma solução através de sua diferenciação entre o noumenon e o fenômeno, a coisa em si e a
coisa para nós.
[114]
Esta exposição da filosofia kantiana não tem nenhuma pretensão de ser completa. Ao contrário, ela
tem um caráter forçosamente ilustrativo, isto é, ela não serve senão a indicar alguns pontos de
aproximação e de afastamento entre Kant e Lacan.
[115]
Os juízos a priori são independentes da experiência, suas características principais sendo assim a
universalidade e a necessidade. Contrariamente, os juízos a posteriori são adquiridos através da
experiência, dos dados empíricos. Provindos da experiência, eles não podem ser senão contingentes.
Nós podemos vincular-lhes a probabilidade, mas jamais a necessidade. Isto é muito importante de se
manter em mente no que concerne à filosofia kantiana: a experiência não nos dá nada de universal ou
de necessário.
[116]
Categoria que estabelece que “todo efeito tem uma causa”. Este juízo é o protótipo de um juízo
sintético a priori. Ele é com efeito um juízo sintético, pois do conceito de “efeito” não é possível
deduzir aquele de “causa”, e ele é também a priori, pois jamais um juízo nascido da experiência nos
poderia dar necessidade ou universalidade. Todavia, é exatamente o que se passa com esse juízo, uma
vez que somos conduzidos a ordenar todos os fatos numa sequência causal, e não nos é possível
percebê-los diferentemente.
[117]
Segundo Kant, o fato de sermos capazes de juízos sintéticos a priori justifica nossa pretensão de
atingir um conhecimento seguro. Um conhecimento com limites, certamente, mas que pode ser
estendido com segurança desde que não se extrapole os poderes da razão, ao fazê-la, por exemplo,
trabalhar sozinha na tarefa de conhecer. Para conhecer, a razão deve recorrer às informações oferecidas
pela experiência sensível.
[118]
Com efeito, segundo Kant, um dos ideais da Razão é justamente o de estender a organização e a
determinação da experiência sensível tão longe quanto possível.
[119]
Isto é conforme ao fato de que, na raiz de todo processo representativo, há uma motivação
pulsional. Com efeito, vimos que as primeiras representações (representações-coisa, inconscientes)
tinham como substrato de sua formação as sensações corporais de dor e de satisfação, o que implica
que o corpo pulsional está na raiz mesma de todo processo de representação e, portanto, de
significação. Isto implica então que: (a) não há representação sem uma satisfação pulsional que lhe dê
ocasião de surgir; e, em consequência, (b) não há cadeia significante sem um sujeito que articule as
representações entre elas a partir da intervenção do Outro.
[120]
Uma verdade evanescente, aquela do sujeito, e uma outra eterna, aquela da ciência, ou, como o
veremos, aquela do Outro.
[121]
“Eu penso onde não sou. Eu sou onde não penso”.
[122]
Cf. Méditations métaphysiques, p. 14. Com efeito, no sonho, cremos experimentar coisas que não
correspondem ao que se passa na realidade (de vigília) e, entretanto, nós lhes vinculamos a mesma
crença que aos eventos que se experimentam na vigília. Ora, poderia ser que a vida inteira não passasse
de um sonho contínuo e que, portanto, tudo aquilo que acreditássemos conhecer por seu intermédio não
se mostrasse senão ilusões.
[123]
Méditations métaphysiques, p. 15-17.
[124]
Méditations, p. 19; Discours de la Méthode, p. 27.
[125]
Efetivamente, comentadores como Alquié defendem a ideia de que a formulação do cogito nas
Méditations põe a verdade da existência diretamente a partir da dúvida (cf. Alquié, F. La découverte
métaphysique de l’homme chez Descartes, pp. 185-186).
[126]
Desta vez sobre bases seguras, segundo Descartes.
[127]
Méditations, p. 38.
[128]
Já que a memória se mostrou em outras ocasiões enganadora.
[129]
A perfeição de Deus é importante em pelo menos dois sentidos. Em primeiro lugar, é a partir de
sua perfeição que Descartes “demonstrará” Sua existência. O argumento, em linhas gerais, é o seguinte:
(a) eu tenho a ideia de perfeição, de infinito; (b) é um fato que a causa deve ter ao menos tanto efeito
que a consequência, isto é, o efeito não pode ser maior na consequência do que na causa (por exemplo,
um bola de bilhar A, de velocidade x, não pode dar a uma outra bola de bilhar B um impulso tal que a
velocidade de B ultrapasse a velocidade original de A — sem uma força extra concorrente, bem
entendido). Ora, eu sou, sem nenhuma dúvida, finito e imperfeito. Portanto, eu não poderia ser a fonte
da ideia de infinito, de perfeição, tal como ela se apresenta na minha mente. Conclusão, deve existir, de
fato, um ser supremo, perfeito e infinito, capaz de imprimir tal ideia no meu espírito. Em segundo
lugar, a perfeição de Deus inclui sua bondade, o que exclui a possibilidade de um Gênio Maligno e
enganador.
[130]
É interessante notar que Descartes não se contenta em fazer de Deus o garante das verdades. É
preciso ainda desculpá-lo de nossos erros. Estes são explicados pelo fato de que o homem tem uma
vontade maior do que seu entendimento. Assim, todas as vezes que o sujeito proferir juízos sobre um
domínio qualquer de que ele não tem saber ou ciência, o erro é um resultado certo.
[131]
Cf. Méditations, p. 38, onde Descartes diz justamente que é Deus que garante o fato de que todas
as coisas que concebemos clara e distintamente são verdadeiras. E Ele pode garanti-lo porque ele é um
ser perfeito (e portanto bom).
[132]
“Perfeita” no sentido de que o primeiro movimento do cogito é um movimento de separação, com
o surgimento da verdade do sujeito, e o segundo um movimento de alienação, com a respectiva
reinserção nas leis do Outro. Em Lacan, ao contrário, o processo de alienação vem em primeiro lugar.
Uma outra observação: não ignoramos que o processo de alienação faz referência antes à filosofia
hegeliana do que à cartesiana. Contudo, isto não invalida nossa tentativa de mostrar a oposição entre a
verdade do sujeito e a verdade do Outro a partir da comparação com a filosofia cartesiana. A filosofia
hegeliana é útil sobretudo para esclarecer a questão do reconhecimento e da implicação do Outro no
desejo do sujeito.
[133]
Poder-se-iam resumir assim as conclusões: “(1) nada de certeza sem engano; (2) nada de “eu
penso” sem uma suspensão de todo saber. Está aí a disjunção do saber e da verdade; (3) pontualidade
deste sujeito no tempo e necessário evanescimento do mesmo” (cf. Cottet, S. “Je pense où je ne suis
pas, je suis où je ne pense pas”, in: Lacan, p. 20).
[134]
Uma das definições do objeto a, como nós o vimos no capítulo I.
[135]
Lacan, Le Séminaire, livre IV, La relation d’objet, p. 189.
[136]
L’Éthique, p. 42.
[137]
A demanda de satisfação se transformará mais tarde em demanda de amor.
[138]
Lacan, J. La relation d’objet, p. 182.
[139]
É neste sentido que Miller diz que o verdadeiro significante primeiro é S2, já que ele precede
logicamente a constituição de S1. Isto quer dizer que S1 não é significante senão por causa de S2. “O S2
é o significante da resposta. É S2 que opera a transformação do grito em apelo e que, a este respeito, faz
emergir um sujeito lá onde originalmente era apenas uma ausência” (Insigne, aula de 07/01/1987).
[140]
Em Freud também, a dimensão do significante, do sentido, pertence ao território da articulação
entre as representações. Ver capítulo I.
[141]
O processo de alienação consiste precisamente em que o sujeito se faça representar por um
significante para outros significantes. A chave está na preposição “para”, preposição que indica o
assujeitamento às leis do Outro.
[142]
Lacan, J. Les Quatre Concepts, p. 236.
[143]
Insigne, aula de 28/01/87. É neste sentido que se pode considerar, sem contradição, que o conjunto
do sujeito é vazio ao mesmo tempo em que ele se refere ao organismo enquanto vivo. Isto quer dizer
que o organismo vivo, antes da entrada no simbólico, está do lado do real, e o real não se presta a
formar um conjunto. Um conjunto é uma formação já simbólica. É necessário haver elementos distintos
que estão dentro e outros que estão fora (já que é preciso ao menos um elemento fora para que haja um
conjunto). Desta forma, antes da união com o conjunto do Outro, o conjunto do sujeito era vazio, não
podendo conter nenhum elemento destacável que se pudesse opor a outros elementos.
[144]
Em uma palavra, o significante é a primeira substância. Segundo a teoria de Lacan, somos
conduzidos a concluir que a substância, o ser, está do lado do significante, e não do lado do sujeito (o
que corrobora nossa leitura de Descartes, a qual estabelece que não é senão no tempo dois do cogito
que há a petrificação do sujeito em uma substância, a saber, quando Descartes determina que a essência
do meu ser é o pensamento (articulado). O segundo tempo é, portanto, o tempo da alienação, tempo da
desaparição do sujeito enquanto tal.
[145]
Realmente, a oposição presença-ausência é possivelmente a oposição mais importante da ordem
simbólica. Com efeito, é graças a esta distinção que a criança passa da ordem da necessidade àquela da
demanda. Se a mãe não se ausentasse jamais, não haveria chance para que a criança começasse a
desejar, a conceber algo como faltante.
[146]
Este mesmo resultado poderia ser atingido por uma outra via, a saber, por intermédio dos termos
freudianos. Com efeito, o resultado da captura do real, do pulsional, indiferenciado e desordenado, é a
própria construção de Bahnungen, cuja articulação em rede equivale à cadeia significante. Ou seja, aqui
como lá, há, como resultado da imposição de uma estrutura determinada ao real, a produção de sentido.
De fato, ser é sobretudo ser nomeado, ser distinguido, ser posto como diferente de uma outra coisa
qualquer. Assim, em Freud, a produção de sentido vem como produto da articulação das
representações; em Lacan, a produção do sentido vem como resultado da articulação dos significantes.
[147]
Les quatre concepts, p. 235. Conclusão que já havia sido sugerida na ocasião do exame da
filosofia de Descartes: quando ele passa ao tempo dois do cogito, ele apaga ao mesmo tempo a verdade
primeira do sujeito, seu caráter evanescente e puramente existencial.
[148]
Descartes também atinge a verdade primeira do cogito através de uma escolha do sentido. Com
efeito, é a partir da decisão de duvidar que o edifício do conhecimento pode ruir e dar ocasião à
aparição do cogito na sua primeira formulação. Contudo, contrariamente a Lacan, o que Descartes
procura, a verdade, é justamente o movimento de alienação, movimento em direção à garantia do
Outro.
[149]
Cf. Lacan, J. Le Séminaire, livre XIV, La logique du fantasme, aulas de 14/12/1966; 11/01/1967,
inédito. Como já havíamos observado, “pensar” é utilizado aqui no sentido da articulação significante
entre S1-S2. Isto respeita também o texto freudiano, para quem pensar era sobretudo articular as
representações. Assim, “eu sou onde eu não articulo” equivale a “S1, quando separado de S2, desvela
$”. Mas se a desaparição do sujeito é condicionada à articulação de S1 e S2, isto quer dizer que S1
sozinho não basta para apagar $, o que parece contradizer o que foi dito algumas linhas acima. Este
paradoxo será resolvido a partir da noção de separação, que dá um estatuto especial à condição de S1
sozinho, não articulado a S2.
[150]
Insigne, aula 12/11/1986.
[151]
A noção de reconhecimento é, com efeito, essencial. Ela implica a ideia de um pacto, de um
consenso ao redor de alguns princípios ou leis, que devem ser obedecidos.
[152]
Insigne, aula de 21/01/87.
[153]
Este “tornar-se pequeno a” é propriamente o que Lacan elaborou sob a noção de “travessia do
fantasma”.
[154]
Cf. Lacan, J. La logique du fantasme, aula de 18/01/67. Ver também o último capítulo, sobre o
processo de alienação.
[155]
Leia-se: sujeito barrado punção de pequeno a.
[156]
Sobre esse laço entre desejo, realidade e fantasma, ver, por exemplo, La logique du fantasme: “O
que carrega o fantasma tem dois nomes que concernem uma só e mesma substância: desejo, realidade”.
“O desejo é a essência da realidade”. “A realidade (...) é o prêt-à-porter do fantasma” (aula de
16/11/66).
[157]
De Georges, P.Leçons de Chose, p. 157.
[158]
“A realidade inteira não é nada de outro que uma montagem do simbólico e do imaginário” (La
logique du fantasme, aula de 16/11/66).
[159]
Este duplo aspecto (imaginário e real) do objeto a justifica-se, de uma parte, pelo fato de que todos
os objetos que pretendem assumir o lugar do objeto faltante desempenham um papel de suplência e
portanto um papel imaginário de preenchimento. De outra parte, o aspecto real do objeto a torna-se
evidente quando é lembrada sua definição enquanto mais-de-gozar, quer dizer, enquanto resto
inassimilável e entretanto ativo no psiquismo.
[160]
Pois o objeto do fantasma é, num certo sentido, também o objeto da pulsão, o objeto a. Entretanto,
o objeto do fantasma não coincide totalmente com aquele da pulsão, já que o objeto da pulsão não deve
ser confundido com as formações imaginárias do fantasma. O objeto pulsional deve ser abordado antes
do lado do prazer da boca, do que do lado do seio imaginário que o suscita.
[161]
O que é perfeitamente compatível com a doutrina freudiana, pois, para Freud, a realidade inclui
sempre o discurso da ordem educativa e da ordem social.
[162]
Isso quer dizer que o eu vai substituir a realidade intolerável colhendo no mundo fantasmático o
material que suas novas formações de desejo exigem. (Freud, S, “Névrose et Psychose”, in: Les
Psychoses, p. 131).
[163]
L’Éthique, p. 113.

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