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DEPARTAMENTO DE ECONOMIA
RECIFE – PE
2022
1. INTRODUÇÃO: SOBRE A OBRA E O AUTOR
Ludwig von Mises, neste breve ensaio intitulado “A Mentalidade Anticapitalista” durante a
Guerra Fria, e quando os partidos comunistas e trabalhistas estavam no auge de suas atividades em
todos os lugares do planeta, encontra um paradoxo conceitual óbvio: enquanto os países ocidentais
demonstram prosperidade econômica cada vez mais graças ao capitalismo, isto é, tornam-se cada
vez mais produtivos, muitas pessoas, especialmente intelectuais, o odeiam; de modo que a própria
palavra "capitalista" configura até um insulto em vários países ou contextos. Mises, portanto,
pretende com este ensaio desmantelar os argumentos anticapitalistas um por um, e até mesmo tentar
chegar a uma análise psicológica das fontes do pensamento anticapitalista. Para isso, o autor utiliza
palavras contundentes e intransigentes, até mesmo pela natureza do curto escrito.
Mises foi um dos últimos membros da escola austríaca original de economia. Sendo um
economista muito influente dentro do movimento liberal e libertário, seu pensamento destaca a
importância das opiniões subjetivas dos indivíduos na formação dos fenômenos sociais e nos
desequilíbrios resultantes. Obteve seu doutorado em direito e economia pela Universidade de Viena
em 1906. Uma de suas obras mais influentes, The Theory of Money and Credit, foi publicada em
1912 e foi usada como livro-texto sobre dinheiro e bancos nas duas décadas seguintes por diversas
instituições.
Em seu último grande livro, The Ultimate Foundation of Economics (1962), ele criticou
duramente os métodos da economia:
“o assunto da economia não são os bens e serviços, são as ações dos homens vivos. Seu
propósito não é se debruçar sobre construções imaginárias como o equilíbrio. Essas
construções são apenas ferramentas de raciocínio. A única tarefa da economia é analisar
as ações dos homens, analisar os processos.” (MISES, 1962)
Essa frustração pelo não sucesso parece ser bem mais forte no sistema capitalista, de acordo
com Mises. Em uma sociedade de castas, o indivíduo “na base da pirâmide” não pode fazer nada a
respeito da sua posição social, porque esta não se deve ao que ele faz como indivíduo, mas ao que
ele é, e mais ainda onde nasceu, em uma sociedade capitalista pelo contrário, sua situação depende
apenas dele. Assim, para o autor, parece ser difícil para as pessoas “admitir a humilhação” que, na
verdade, se elas são inferiores economicamente porque não conseguiram atender à soberania do
consumidor.
O capitalismo trata a todos de acordo com suas contribuições para o bem-estar de seus
semelhantes no mercado. Sempre é possível encontrar alguém que se saiu melhor do que você,
muitas vezes por sorte até, mas na maioria das vezes porque realmente foi concretizada uma oferta
para uma demanda existente ou criada, o que é difícil de admitir. No capitalismo, a desigualdade é
visível (seja em termos de capacidades físicas ou intelectuais, vontade, conquistas etc.), e temos
que conviver com ela.
Uma contribuição importante pelo autor é a sua definição sobre o capitalismo. Para Mises,
a concretização fundamental do capitalismo é a “desproletarização” do homem comum, que aos
poucos saiu da pobreza, transformando-se em “burguês”. Essa desproletarização é universal, trata-
se de uma ascensão irreversível de uma multidão de pessoas. Baseando-se na premissa de um
consumidor soberano; por uma espécie de plebiscito cotidiano, o consumidor determina quem será
rico e quem não será; o consumidor dá a sua confiança, mas também pode retirá-la imediatamente.
Tornou-se comum dizer que votamos com nossos reais e que todas as nossas atitudes são políticas,
porque votamos ao compramos – isto é evidenciado nas palavras do autor.
É elucidado no texto que a acumulação de bens materiais não torna os indivíduos felizes
porque assim que nossos desejos são satisfeitos, outros aparecem. A natureza humana é
conceituada assim em Mises. Para ele, é justamente esta inclinação que torna o ser humano
virtuoso: este apetite, este desejo constante de melhorar a própria sorte, engendra a melhoria
econômica. Se a humanidade aumentou seu bem-estar, Mises pondera que é porque a acumulação
de capital superou o crescimento da população.
Mises então se dedica a argumentar contra três sofismas. Primeiro, sobre a melhoria material
como resultado do “progresso técnico”. Segundo Mises, isso não explica nada e é como se fosse
uma verdade intocada, um tipo de “mantra”, que automaticamente atribuiria um bem-estar material
melhorado à tecnologia1. Mises nos lembra que não pode haver melhoria técnica se o capital
necessário não tiver sido previamente acumulado por meio da poupança e é a manutenção da
propriedade privada dos meios de produção que permite essa acumulação. Para haver essa
manutenção, o capitalismo encontra suas âncoras nas leis civis para que continue sendo garantido.
Finalmente, é trazido pelo autor um contra-argumento contrário ao lugar comum de que existem
pobre porque existem ricos. As riquezas dos ricos não são a causa da pobreza de ninguém, sendo a
riqueza de alguns uma consequência de suas capacidades de satisfazer, e melhor que outros, as
necessidades dos indivíduos.
Mises, no entanto, afirma que autores que escrevem para as massas não são necessariamente
da melhor qualidade2. O capitalismo teria tornado as pessoas suficientemente prósperas para
comprar livros, não lhes deu discernimento. Mises também lembra que a liberdade de imprensa só
pode existir em um regime capitalista; se o Estado detém todos os poderes, nenhuma crítica é
1
Esse questionamento do autor é muito importante porque deve-se questionar todo tipo de definição (não tão objetiva
como essa em questão) para a qual não é possível tecer nenhum tipo de comentário oposto. Poucas coisas têm a natureza
de serem inquestionáveis, axiomáticas ou fatos. Essa não deveria ser realmente uma delas.
2
Não parece tão liberal assim, da parte do autor, sendo até mesmo totalitária, a posição também deveras paradoxal de
fazer gatekeeping de arte, algo que é comumente associado às práticas de tirania/autocracia comunistas ou até mesmo
nazistas – uma prática cujas primeiras menções ocorreram no livro X da República de Platão e que foram retomadas
após por regimes autoritários.
possível contra os sindicatos, os partidos, o governo, etc... Mas a crítica é a própria essência da
imprensa. Ele também evoca o caso dos “romances sociais”, em que o mal é burguês e o bem
proletário. Essa dicotomia de bem e mal ou bom e mau é recorrente na própria definição da inveja,
na teologia cristã e na ética. É obviamente legítimo retratar a miséria, e os maiores escritores
(Dickens, Steinbeck, Hugo...) o fizeram. Mas não se deveria deixar ludibriar por falsas
interpretações, como “a miséria vem da ausência do capitalismo”, mas sim das políticas que
sabotam o capitalismo, não do próprio capitalismo. Mises afirma que não devemos esquecer que
um proletário, quem quer que seja, é também um consumidor (de bens, alimentos, matérias-primas)
e, consequentemente, o ator principal, para não dizer o diretor, do capitalismo.
Dizem que dinheiro não compra felicidade. Mas se as pessoas trabalham, poupam, investem,
consomem, é para eliminar um sentimento de mal-estar e, portanto, para serem mais felizes do que
antes. Então, o capitalismo é muitas vezes reduzido apenas ao materialismo. Depois de lembrar
que essa postura é ambígua, que idealiza os artistas do passado à altura da ignorância dos
contemporâneos, Mises acrescenta que o materialismo não é de forma alguma prerrogativa dos
tempos capitalistas; nenhum rico, mesmo muito rico, capitalista, é tanto quanto os reis e príncipes
que construíram Versalhes.
Por fim, Mises insiste no fato de que adotar uma constituição, no campo da justiça do
capitalismo, redigir uma “declaração de direitos”, não é suficiente para estabelecer um regime de
liberdade. Também precisamos de uma economia de mercado. Somente a economia de mercado
seria capaz de nos tornar livres na maneira como queremos servir nossos semelhantes; somente a
economia de mercado nos permite desafiar os interesses de qualquer um; apenas a economia de
mercado nos torna livres para mudar de emprego, se assim o desejarmos.
3. A LEGITIMIDADE DA INVEJA COMO FUNDAMENTAÇÃO PARTIDÁRIA
Podemos esperar das pessoas que elas sejam totalmente coerentes nas suas expressões? Isto
é, alguém não poderia apenas dizer “Obrigado Coronavírus” porque para si a pandemia foi até de
alguma forma mais positiva que para a maior parte das pessoas? Não seria a reação das pessoas
inveja – uma inveja de não poder fazer as mesmas coisas que Gabriela estava fazendo naquele
momento? A verdade é que muitas pessoas, na posição da influencer, agiriam da mesma forma.
Não se trata de estimar quantas pessoas agiriam assim, mas, sem dúvidas, alguém se comportaria
desta maneira.
É claro que o mal-estar social causado pela influencer com a sua publicação reside
principalmente em uma questão sanitária, mas podemos também imaginar uma parcela desta reação
baseada na inveja que as pessoas sentem dos ricos. Seria a inveja de quem dispõe de mais recursos
um fator ilegítimo para expressar-se contra essa pessoa, ou grupo de pessoas, ou sistema
econômica?
3
Trancoso é um distrito de Porto Seguro, na Bahia, que atrai muitos turistas por causa de suas exuberantes praias
com água transparente, falésias, piscinas naturais, etc.
São muitas perguntas, porque a questão é complexa e ultrapassa muitas disciplinas do
conhecimento: a própria economia, a história, a teologia, a psicologia, e tópicos da filosofia como
a ética e até a estética – afinal de contas, temos inveja também do que é belo.
Entre os pecados capitais, a inveja é o único pecado com o qual não se obtém nenhum prazer.
Além disso, a inveja é um sentimento com o qual é muito difícil de se lidar; muitas vezes as pessoas
sentem um grande desconforto contra outras pessoas ou situações e mal sabem que o que estão
passando é a inveja. Pelo menos quatro atores da sociedade, segundo Mises, se recusam a admitir
essa frustração:
i. os intelectuais (de esquerda) primeiro, que odeiam os ricos e advogam contra a classe
de pessoas ricas;
ii. uma parte dos executivos, que não entendem que nem sempre são mais bem pagos que
os trabalhadores. Recusam-se a ver que muitas vezes o trabalho deles é rotineiro e sem
valor acrescentado, ou pelo menos sem mais valor acrescentado do que um trabalhador
braçal em uma linha de produção,
iii. os jovens dos bairros nobres, que, vindos de meios abastados, desprezam o dinheiro
quando é esse dinheiro, ganho pelos pais, que os sustenta e lhes permite serem
socialistas de aparências; esse ponto é bastante interessante no livro porque é muito
comum observarmos o tipo de jovem hip
iv. artistas, por exemplo, da Broadway e de Hollywood, que se recusam a admitir, por um
lado, que produzir e atuar em um espetáculo não é de natureza econômica diferente de
produzir sapatos e, por outro lado, que podem muito bem estar à vontade zênite um dia
e nada no dia seguinte; eles se apegam à teoria comunista para se proteger contra esse
risco.
O livro elucida questões importantes sobre a natureza do capitalismo como sistema econômico,
o define, põe uma lupa sobre os atores e instituições que permitem a sua manutenção e também
traz uma tentativa de explicar o que motiva o ódio ao sistema.
O espelho no conto simboliza o que a sociedade pensa da beleza e o que ela é – a beleza padrão
também é um ativo econômico. A sociedade fornece uma falsa representação de beleza, o que
distorce as ideias de uma mulher sobre sua opinião sobre si mesma, autoestima e comportamento.
A contação sucessivas destas histórias cria uma assimilação nas crianças (principalmente meninas)
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No gibi de Nº 40 da Turma da Mônica, Editora Globo, as personagens femininas saem do cinema, após terem
assistido Branca de Neve, e começam a questionar suas belezas ao passarem por espelhos em um antiquário na
cidade.
de que elas serão confrontadas com isso nos espaços em que elas vivem, isto é, perguntar-se “será
que sou a garota mais bonita da minha turma de ensino médio?”, entre outros espaços. Afinal de
contas, as crianças sabem que dentro do espelho não há alguém que lhe diz essa resposta, mas sim
elas mesmas.
O que observamos é que o padrão de beleza é criado e reinventado de acordo com diversas
estruturas sociais, não uma única, que se sobrepõem e recriam a assimilação geral sobre o belo.
Entender o que é belo e o que não é, para além das questões sobre a própria definição da arte, é o
papel da estética. Usando o argumento de consumidor soberano de Mises, então, que coloca os
anticapitalistas como invejosos de pessoas que foram bem sucedidas ao atender os desejos dos
compradores; seriam as pessoas fora do padrão de beleza invejosas de um consumidor de beleza
(notadamente, os homens) soberano?
Essa pergunta pode até ter uma resposta positiva. Mas daí devemos entender essa inveja ou
frustração como um sentimento anticristão, ou, no mais, antiético capaz de deslegitimar qualquer
tentativa de submeter essa necessidade de atender a uma soberania que nem todos são capazes de
alcançar? Todos são capazes de alcançar ser produtivos dentro de uma estrutura social dada e
soberana?
Ao contrário do que defende a youtuber Alexandrismos, que ficou mais famosa pelo apelo
cômico e “meme pronto” que a frase “Pare de se odiar: você têm o direito de ser feia”; ser belo é
importante, mas a beleza pode assumir diversas formas e todas as potencialidades de beleza
deveriam, ou, sem assumir normatividades, poderiam ser abrangidas.
Não seriam as pessoas pobres do capitalismo, então, indivíduos que não são capazes, por
diversas razões, se comportarem como seres produtivos? Muitas dessas razões podem ser barreiras
propostas pela própria psicologia pessoal, mas muitas dessas razões também irrompem no campo
da palavra sobreutilizada “privilégio”. Se não houvessem barreiras quanto aos “privilégios”, ainda
depararíamos com os limites que o próprio ruído da linguagem como tecnologia de
homogeneização da informação. A horizontalidade da informação é necessária para que todos
compitam com as mesmas possibilidades no mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se quer aqui dizer tampouco que o sistema capitalista encerra em si uma estrutura capaz
de ditar normas ou de guiar pessoas por protocolos de comportamento como um sistema econômico
idealizado do zero se propõe a fazê-lo. O capitalismo é um sistema econômico, sim, mas é o único
– pela própria característica de ser o de maior influência e sob o qual estão submetidos os estados
que alegadamente não o vivem que compila o que é natural e não natural – harmonizando-os na
lógica do capital, dos juros ao risco e da propriedade privada. O capitalismo seria mais uma
tentativa de nomear historicamente um conjunto de estruturas artificiais e naturais que passaram a
possibilitar criação de riquezas, crescimento econômico e populacional, desenvolvimento técnico,
globalização, etc. Os sistemas econômicos cuja idealização representam uma causa anticapitalista
não poderiam quase estar no mesmo campo semântico do capitalismo como hipônimos de um
mesmo hiperônimo “sistemas econômicos”.
Os seres humanos são sim naturalmente competitivos, invejosos, cobiçadores e isso é também
parte do que permite o capitalismo existir e continuar funcionando. Os argumentos de Mises são
interessantes e, por muitas vezes, fatuais, mas não representam profundamente e distintamente a
mentalidade que guia o pensamento anticapitalista em si, até porque a inveja é também parte do
capitalismo.
REFERÊNCIAS