Você está na página 1de 28

O FUNERAL DE HYLYL BEN ŠAḤAR

Shirlei Massapust

Escultura de rosto humano achada em Hazor.

Quase nunca se fala na hipótese da existência de um “Lúcifer” histórico.


Ele não é um anjo, óbvio, mas sim o homem que deu origem ao mito. Eu sou
filósofa e comecei pesquisando a mitologia tradicional, mas ao longo dos anos
tive a oportunidade de ler certos trabalhos que me fizeram mudar de opinião. Um
deles foi um artigo publicado no número 118 do periódico The Zeitschrift für die
Alttestamentliche Wissenschaft (ZAW) onde o professor Saul M. Olyan, que
leciona História na Brown University, demonstra que o sujeito da oração do
versículo 19 de Isaías 14 não pode ser nenhum rei conhecido e que este
protagonista fora inequivocamente sepultado; ao passo que a tradição rabínica
afirma ser ele o rei Nabucodonozor, cujo cadáver teria apodrecido ao relento.
Saul M. Olyan não traduziu, mas delatou incorreções e eu decidi tentar
traduzir Isaías 14 porque um sepultamento digno não muda só a tradução de
uma frase. Isto muda o contexto por inteiro. O vilão se torna mocinho. A guerra
vira paz. Deixa de existir fundamento bíblico para o mito do anjo diabólico.
Consultei cada palavra em mais de três dicionários, comprei livros específicos e
imprimi tudo que veio na busca do Google Acadêmico.
Foram encontradas vinte e cinco cópias do Livro de Isaías em Ḫirbet
Qumrân e outra no Wadi Murabba‘at. Todos datam por volta do ano 100 a.C.,
mas infelizmente apenas três copias (1Q Isaa, 4Q Isac e 4Q Isae) contém o
capítulo 14 no todo ou em partes. Eugene Ultrich publicou fotos coloridas nos
volumes X e XXXII do periódico Discoveries in the Judaean Desert (DJD),

1
editado pela Universidade de Oxford. Fotos legíveis em preto e branco de IQ Isaª
também foram publicadas por Millar Burrows e John Trever na coletânea The
Dead Sea Scrolls of St. Mark’s Monastery.
Estes manuscritos possuem um sistema ortográfico e morfológico muito
diferente do códice Firkovich B 19 (1008 d.C.)1, mas é possível regredir o texto
corrente para preencher as lacunas deixadas por uma costura no couro do
manuscrito 1Q Isaa quando as palavras deformadas pela textura irregular
parecem equivalentes. Somente uma palavra na décima quinta linha da coluna
XII não pôde ser reconstituída com base em fontes posteriores porque ela é um
termo de três consoantes, iniciado por alef (‫ – )א‬possivelmente ‫ אבל‬no sentido
de “rito funerário2” – que inexiste nas versões mil anos mais novas. Esta é minha
reconstituição do documento enviado de presente para o Rei de Babel:

Conteúdo correspondente a Isaías 14:4b-15 no manuscrito 1Q Isaª


Col. Linha
‫ ואמרת איכה שב‬4 XII 6
‫ מכה עמים‬6 ‫ שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים‬5 ‫נוגש שבתה מרהבה‬ XII 7
‫ שקטה נחה‬7 ‫בעברה מכת בלתי סרה רודה באף גואים מרדף בלי חשך‬ XII 8
‫ גם ברושים שמחו לך ארזי הלבנון מאז שבתה‬8 ‫כול הארץ פצחו רינה‬ XII 9
‫ שאול מתחת רגזה לכה לקרת בואך עורה לכה‬9 ‫ולוא יעלה הכורת עלינו‬ XII 10
‫ כלם יענו‬10 ‫רפאים כול עתודי ארץ הקימה מכסאותם כול מלכי גואים‬ XII 11
‫ הורד שאול‬11 ‫ויאמדו אליך גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלת‬ XII 12
‫ היך נפלתה‬12 ‫גאונך המית נבלתך תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה‬ XII 13
‫ אתה אמרתה‬13 ‫מהשמיש היליל בן שחר נגדעתה לארץ חולש על גוי‬ XII 14
‫בלבבכה השמים אעלה ממעלה לכוכבי אל ארים כסאי א]בל[ בהר‬ XII 15
‫ אך אל שאול‬15 ‫ אעלה על במתי עב אדמה לעליון‬14 ‫מועד בירכתי צפון‬ XII 16
‫תורד אל ירכתי בור‬ XII 17

Descobri que realmente 1Q Isaª, o manuscrito completo mais antigo que


existe, descreve uma modalidade de sepultamento quando o ministro religioso
fala para um cadáver anônimo: ‫“ — יורדי אל אבני בור כפגר מובס‬Seque [e] seja

1 BROYLES, Craig C. & EVANS, Craig A. Writing & Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an
Interpretative Tradition. New York, Brill, 1997, Vol 2, p 502.
2 KIRST, Nelson e outros. Dicionário Hebraico – Português & Aramaico – Português. Petrópolis,
Vozes, 1994, p 2.

2
descido para a cisterna pedregosa, múmia liofilizada” (Col. XII: 23). E também
no momento onde Hylyl Ben Šaḥar descobre que irá morrer e afirma: ‫ארים כסאי‬
— “Eu construirei meu trono” (Col. XII: 15), ao que os repāim confirmam: ‫ירכתי בור‬
‫“ — אך אל שאול תורד אל‬Então para a cova foi descido, para o fundo do orifício da
cisterna” (Col. XII: 16-17). ‫“ — הורד שאול גאונך‬Seu luxo desceu à cova” (Col. XII:
12-13). Antes de morrer Hylyl Ben Šaḥar caminhou a pé subindo até Tel Dan.
Logo, ele provavelmente partiu da cidade mais próxima, ao sul, que é Hazor,
onde Yigael Yadin achou cisternas funerárias.

Esqueleto de uma jovem mulher encontrado entre as camadas de terra duma


cisterna (9027), em Hazor, pelo arqueólogo Yigael Yadin e sua equipe.

A profissão de Hylyl Ben Šaḥar foi rasurada no hebraico moderno onde


ele deixou de ser um “mestre de obras” (‫ )נוגש‬para se tornar um “cobrador de
impostos” (‫)נגש‬. É por isso que hoje confundem o falecido com o Rei de Babel.
Os antigos assentamentos israelitas possuíam cisternas edificadas sobre
pedreiras compostas de calcário intercaladas com giz e outras variedades que
não precisavam de massa impermeabilizante, mas onde não existiam pedreiras
impermeáveis as cisternas eram revestidas com cimento de pedra calcária.
Todas eram escavadas na forma de orifícios largos com profundidade de oito a
nove metros. O topo tinha a forma de abóbada ou sino com um buraco no centro
protegido por uma tampa de pedra. A residência do clã ficava acima e ao redor
da cisterna subterrânea.
Yigael Yadin encontrou tantos esqueletos dentro de cisternas em Hazor
que seria impossível duvidarmos da existência de cisternas funerárias no Vale

3
Huleh. Na do lote nº 9024 havia grande quantidade de esqueletos
acompanhados por abundantes oferendas mortuárias e amuletos da era do
bronze. Numa cisterna vizinha (9027) encontraram o esqueleto duma mulher
deitada numa profundidade de cinco metros abaixo do topo3. Por causa da idade
nenhuma destas poderia ser exatamente a cisterna mencionada em 1Q Isaª,
mas certamente seguiam as regras do mesmo costume. Cisternas funerárias
foram mencionadas até em textos próximos da era cristã, apesar da difusão dos
cemitérios fora das cidades a partir do início da Idade do Ferro.

Definição de Elyōn no contexto narrativo

Os teólogos ensinam que Isaías 14:14 descreve um homem eivado do


ambicioso desejoso de reivindicar para si a posse de um atributo divino. Desde
o momento em que este documento foi definido como um māšāl (‫)משל‬, o clímax
deveria ocorrer com o uso da forma passiva ‫ נמשל‬quando os repāim avaliam os
trajes do novo rāphā. Quando a palavra ocorre na forma do verbo “parafrasear”,
isto efetivamente se refere ao ato de citar ou se espelhar nos atos de outrem
(neste caso, os repāim). A mesmíssima definição é dada ao verbo ʾedĕmeh, com
ênfase na intenção de se equiparar a alguém, agir como alguém, imitar alguém.
Logo, a expressão ʾedĕmeh ʿelyōn (‫)עֶ לְ ֽ יֹון אֶ ַּדמֶ ה‬, lida a esmo, deveria sugerir a
ideia supracitada.4
O defeito na tese teológica está na possibilidade de interpretar Isaías
14:14 duma forma diferente, por meio de homônimos homógrafos. O próprio
verbo ʾedĕmeh (‫ )אדמה‬deriva do substantivo ădāmâ (‫ )אדמה‬que descreve o solo
donde se extrai o material usado pelos oleiros na confecção de artesanato,
máscaras mortuárias, etc. Portanto, lendo ădāmâ ʿelyōn (‫ )אדמה לעליון‬ao invés

3 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible. Jerusalem, Weidenfeld
and Nicolson, 1975, p 123-125.
4 AMZALLAG, Nissim & AVRIEL, Mikhal. The Cryptic Meaning of the Isaiah 14 Māšāl. Em: JBL
131, no. 4 (2012), p 644 e 657.

4
de ʾedĕmeh ʿelyōn (‫)אדמה לעליון‬, o protagonista Hylyl Ben Šaḥar teria agido bem
durante a vida, subindo aos altares em Elyōn5 para louvar YHWH.

Tronos simbólicos

Depois que Hylyl construíu seu trono (‫ )כסא‬os espíritos de todos os repāîm
levantaram dos seus tronos (‫ ;)מכסאותם‬ou seja, as almas levantaram dos seus
caixões de madeira. Compare com esta oração egípcia:

Fórmula para impedir que seja roubado a N. o seu lugar que é o seu trono, no reino dos
mortos. – Que ele diga: “O meu lugar é o meu trono! Vinde, fazei círculo à minha volta!
Eu sou o vosso senhor, deuses; vinde, depois de mim! Eu sou o filho do vosso senhor;
vós pertenceis-me, (pois) foi o meu pai que vos criou”.6

Em 1Q Isaª o termo hebraico “trono” (‫ )כסא‬é o mesmo usado para designar


qualquer assento (cadeira, poltrona, bancos, etc.), mas creio que isso deve ser
uma metáfora para o caixão onde o corpo jaz deitado porque existiam caixões
em Hazor. Não existiam sarcófagos de pedra iguais aos extraídos dos túmulos
de Tiro, nem de ouro e prata iguais aos de alguns faraós egípcios. Neste
momento os repāim (‫ – )רפאים‬que são os fantasmas dos antepassados –
recebem Hylyl Ben Šaḥar na “necrópole” (‫ )שאול‬e conversam sobre a avaliação
do de cujo. Cada um dos mortos convocados para a assembleia está falando
com e sobre todos os outros, pois no início está escrito: “Todos se
cumprimentam, questionando mutuamente” (‫)כלם יענו ויאמדו אליך‬.

5 A dupla referência a um reservatório de água canalizada na localidade Elyōn (‫הברכה העליונה‬


‫)בתעלת‬, em Isaías 7:3 e 36:2, demonstra que existia uma região com este nome (1Q Isaª, Col.
6, linha 16 e Col. 28, linha 31). – Inclusive, até hoje a Alta Galiléia é chamada de Galil Elyōn (‫ן‬
‫)וילע לילג‬. – Textos fragmentados indicam que Elyōn (‫ )עליון‬repartia nações e fixava fronteiras
entre os Filhos de Elohim (‫)םיהלא ינב‬, identificados como Filhos de Israel ( ‫ )ינב ישראל‬nas bíblias
modernas (4QDeutj e Deut. 32:8). Em tempos de conflito os dois lados da fronteira se uniam e
outorgavam poder ao Juiz de Israel que, por isso, se tornava Filho de Elyōn ( ‫ )ובר עליון‬e Filho de
El (‫ )ברה די אל‬ao mesmo tempo. (4Q246, col II, linha 1).
6 O LIVRO DOS MORTOS DO ANTIGO EGIPTO. Trad. Maria Helena Lopes. Lisboa, Assírio &
Alvim, p 1991, p 80.

5
Para preparar seu “trono” numa cisterna funerária preexistente, que será
seu lugar no reino dos mortos, seria necessário usar o espaço físico acima de
outra camada inferior preenchida com terra e pedras. Dentro deste contexto
“elevar o nível de profundidade Kôchevêi ʾĒl” (‫ )אעלה ממעלה לכוכבי אל‬significa
alojar seu caixão e demais pertenças na camada acima de outra onde estão
enterradas pessoas pré-mortas. Não seria preciso exumar ninguém porque
cisternas funerárias tinham em média quatro metros de diâmetro, variando entre
oito e nove de profundidade. Ou seja, havia espaço suficiente para enterrar
comodamente um monte de caixões.
Provavelmente Kôchevêi ʾĒl (‫ )כוכבי אל‬era o nome de um clã do qual a
família de Hylyl Ben Šaḥar era agregada ou afim. Noutra hipótese a cisterna
funerária alheia poderia estar abandonada por motivo de mudança do clã para
outro país ou de falta de descendentes vivos. Hylyl Ben Šaḥar achou-a, tomou
posse e reformou-a, sem se incomodar em dividir espaço com os despojos de
alguns heróis nacionais cujo pai hipônimo fora transformado em lenda urbana.

Polêmica sobre o vizinho do andar de baixo

O historiador Matthew Black foi o primeiro a constatar que ‫ כוכבאל‬é


insofismavelmente o singular compacto da expressão ‫ כוכבי אל‬que aparece na
Bíblia hebraica (Isaías 14:13) e no manuscrito 1Q Isaª (Col. XII, linha 15)7.
Matthew Black, Józef Milik e Florentino García Martínez, concordaram em
reconstituir a frase ‫נ]חשי כוכין‬
ֺ ‫ ]כוכבאל אלף‬do manuscrito 4Q202 (Col III:3) com
base em Syncellus 8.38, no sentido de informar que Kôkabʾel “ensinou os sinais

7 BLACK, Matthew. The Book of Enoch or I Enoch: A New English Edition . Boston, Brill, 1997, p
120.
8 Syncellus 8.3 fala do ensinamento dos sinais (σημειωτικά) da astrologia (άστρολογία). Siam
Bhayro comentou que se “poderia esperar que ‫ כוכבאל‬fosse listado como professor de
astrologia”, mas existem controvérsias porque no Codex Panopolitanus o suposto astrólogo
preferiu ensinar semiótica (τά σημειωτικά) enquanto Baraqʾel (‫)ברקאל‬, um suposto lapidário,
passou a ensinar astrologia (άστρολογίας). Nas versões etíopes Kôkabʾel e Baraqʾel também
trocam de papéis. (BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11.
Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 75 e 154). A tradição popular afirma que essas pessoas
se tornaram anjos após a morte. Numa versão Kôkabʾel se mudou para as terras do sul onde se

6
dos planetas de órbita interior9” aos habitantes de Tel Dan10. Adicionalmente foi
sujerida relação de causalidade com outra passagem do livro astronômico:
[‫שמיא קד[מיא ובאדין‬
ֺ [‫“ — וכוכ[בין[ נזחו ב[תרעי‬E os planetas de órbita interior
adentraram as primeiras portas do firmamento” (4Q211, frag 1, col II:4).11
Em bom português, entendemos que Kôkabʾel fixou o horário de trabalho
dos madeireiros, e de toda a gente, entre as 6h da manhã e 6h da tarde. De
acordo com a biografia não autorizada – parcialmente produzida ou copiada por
escribas do clã Bnei Šaḥar, donos da gruta 4Q –, era um “vigilante” que exercia
sua função social no Monte Hermon, possivelmente vigiando quem estava

tornou um dos Príncipes dos Magistrados (Shariem Shetoriem). Baraqʾel preencheu o cargo vago
passando a representar Mercúrio (Kôkab) uma vez por ano. (SAVEDOW, Steve. The Book of
Angel Rezial. San Francisco, Weiser Books, 2001, p 15, 25 e 99). No Sepher Há-Razim V:10-14
outros dezenove príncipes continuam revezando porque Baraqʾel (‫ )ברכיאל‬só faz este trabalho
no complicado mês de Adar, décimo terceiro do calendário judaico: “Se você quer saber qual o
mês de sua morte, ou o que acontecerá em qualquer mês, ou em que mês choverá, ou quando
o grão germinará, ou quando a oliveira frutificará, ou em qual mês os reis sairão para a guerra,
ou em qual mês haverá epidemia entre os homens ou doença no rebanho, (...) ou qualquer outra
coisa que você queira saber; pergunte a eles”. (Sepher Há-Razim V:15-19. Em: MORGAN,
Michael A. Sepher Há-Razim: The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 74).
9 Era costume entre os trabalhadores sair de casa quando os planetas de órbita interior, Mercúrio
e Vênus, apareciam no horizonte antes do Sol. Mas o complemento ʾĒl (‫ )אל‬faz com que Kôchevêi
ʾĒl (‫ )לכוכבי אל‬e Kôkabʾel (‫ )לאבכוכ‬se tornem adjetivos especialíssimos não aplicáveis a planetas
ou estrelas. O Targum de Isaías 14:12 cita ḵoḵāḇ noǥhāʾ (‫ )ככוכב נגהא‬na frase em que o Rei da
Babilônia (novo protagonista da estória alterada) afirma ser “Vênus entre os planetas de órbita
interior” (‫)ככוכב נגהא בין כוכביא‬. A equiparação poética do observador com o astro observado
veio daí. (STENNING. J. F. The Targum of Isaiah. London, Oxford, 1953, p 48-49). Antigamente
Mercúrio era chamado de Ḵoḵāḇ e Vênus de Ḵoḵāḇ Noǥhāʾ. O Talmude Bavli (Shabbos 156a)
compilou um horóscopo onde “quem nasce na hora de Mercúrio” (‫ )האי מאן רבכוכב‬está
predestinado a ser um homem sábio. Por outro lado, “aquele que nasce na hora do planeta
Vênus” (‫ )נוגה האי מאן רבכוכב‬será um homem varonil e promíscuo porque a chama da paixão
queima dentro de si. (STIEGLITZ, Robert R. The Hebrew Names of the Seven Planets. Em:
Journal of Near Eastern Studies , Vol. 40, No. 2. EUA, The University of Chicago Press, Apr.,
1981, p 135; GOLDWURM, R' Hersh. Talmud Bavli: The Schottenstein daf Yomi Edition –
Tractate Shabbos. Brooklin, Artscroll, 2004, 156a3).
10 MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân Cave 4 . Oxford University,
1976, p 20, 158 e 159.
11 MILIK, J.T. Obra citada, p 296.

7
trabalhando. No início Kôkabʾel (‫ )כוכבאל‬era o quarto colocado numa lista de
vinte chefes de clãs subordinados a Šemîḥazah (‫)שמיחזה‬12, mas a liderança local
parecia ser breve ou rotativa, pois Šemîḥazah, Aśael e Kôkabʾel foram todos
referidos como líderes comunitários no espaço de uma geração. A menção ao
último chefe, preservada apenas em siríaco, diz o seguinte:

Sobre Kôkabʾel, que era líder de duzentos, é dito que ensinou astronomia
aos filhos dos homens, concernente ao movimento de translação, contando 360
dias.

Siam Bhayro foi enfático ao afirmar que “eles não são anjos” e que um
vigilante (‫ )עיר‬talvez fosse um intérprete de sonhos semelhante ao bārû
babilônio13. Os fragmentos gregos de 1 Enoch 6:7 no comentário de Syncellus e
no Codex Panopolitanus os descrevem como αρχοντων αυτων14. Ou seja, eram
patriarcas (αυτων), chefes de clãs, que se reuniam em assembleia de forma
análoga aos arcontes (αρχοντες) da Grécia. Portanto se, e somente se, ‫כוכבי אל‬
for o clã de ‫כוכבאל‬, esse é o tipo de vizinho15 que Hylyl Ben Šaḥar encontrou em
sua morada para a eternidade.

Panos de seda

12 BHAYRO, Siam. The Shemihazah and Asael Narrative of 1 Enoch 6-11: Introduction, text,
translation and commentary with reference to Ancient Near Eastern and Biblical Antecedents .
Germany, Ugarit-Verlag Münster, 2005, p 132.
13 BHAYRO, Siam. Obra citada, p 23.
14 BHAYRO, Siam. Obra citada, p 61.
15 Quando um fantasma é transformado em anjo pela tradição popular às vezes ele ganha a
partícula ʾĒl (‫ )אל‬no fim do nome. Então não é impossível que o nome Hylyʾel (‫ )חיליאל‬que aparece
no Sepher Há-Razim III:47, junto com Baraqʾel e outros vigilantes conhecidos em Qunran, tenha
resultado do truncamento de Hylyl (‫ )היליל‬com El (‫)אל‬. (MORGAN, Michael A. Sepher Há-Razim:
The Book of the Mysteries. California, Scholars Press, 1983, p 64 e 89).

8
No contexto de 1Q Isaª tanto o protagonista quanto os repāim são
enterrados em cisternas funerárias. Talvez todos estejam dentro da mesma
cisterna, ocupando diferentes níveis16. À primeira vista parece que lá existia todo
tipo de defunto, variando desde a múmia liofilizada (‫ )עמך הרגתה‬até o mais
maltratado, mas eu desconfio da ilegitimidade da prosopopeia onde pupas e
larvas forram a cama dum defunto nas traduções das bíblias modernas.
Repare que em Êxodo 25:4 o bicho da seda (Bombyx arrindia)17 fazedor
de panos tomou emprestado o nome hebraico do Kermes vermilio (‫)תולעה‬, cujas
fêmeas produzem corante carmesim, porque ambos são úteis ao ofício do
tecelão. Portanto nada impede que o casulo (‫ )רמה‬de towla (‫ )תולעה‬citado em
Isaías 14:11 se refira à matéria prima usada para produzir tecidos de seda. Assim
podemos interpretar a frase ‫ תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה‬imaginando um caixão
forrado de seda, com o ocupante coberto (‫ )ומכסיך‬do mesmo pano.
Não está claro se Hylyl Ben Šaḥar ostentava ataduras ou mortalha de
seda ou ambas as coisas. No Egito e suas áreas de influência o padrão
iconográfico das imagens de Osíris, vestido e embalado em seda, servia de
modelo para as vestes de todos os mortos. Neste mundo os símbolos da nobreza
só podiam ser ostentados pelos faraós e similares; porém na morte o par de
cetros (khereb e heqa) eram adereços de domínio público. Na tumba do arquiteto
Ihmotep, por exemplo, foi achada uma figura shabit devidamente paramentada
com os cetros reais e a coroa branca para permitir ao espírito que reinasse numa
realidade alternativa, num reino de faz de conta.18

16 Se todos fossem parentes de Kôkabʾel, isso explicaria por que um tópico da tradição oral da
cultura yazīdī, compilado por Isya Joseph em 1919, afirma que o ferreiro Aśael era um humano
descendente em linha paterna de “Šehar Ben Jebr”. (JOSEPH, Isya. Devil Workship: The Sacred
Books and Traditions of the Yezids. Boston, R. G. Badger, 1919, p 37-38).
17 Acredito que o bicho da seda (‫ )תולעה‬bíblico, citado em Êxodo 25:4 e Isaías 14:11, não seja a
espécie chinesa Bombyx mori, como afirmam os dicionários, mas sim outra espécie migrada da
Índia, a Bombyx arrindia, que habita a folhagem do rícino (Ricinus communis); planta cultivada
no Egito e áreas mais próximas para a extração de óleo das sementes que era usado para
iluminação. As folhas de rícino contêm um corante azul-turquesa.
18 TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo.
Trad. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 122.

9
Este padrão iconográfico era comprovadamente conhecido em Israel e se
manteve estável durante cinco séculos. Foram extraídas duas estatuetas de
bronze de Osíris de um depósito (favissa) do complexo religioso de Tel Dan
soterradas numa camada datada entre os séculos 5 e 4 a.C.

Rosto duma estátua de Osíris esculpida em faiança (séc. 9


ou 10 a.C.) e estátua de bronze de Osíris (séc. 4. ou 5 a.C.)
cujos pés e a serpente decorativa da coroa ( uraeus) foram
danificados. Ambas foram encontradas em Tel Dan.

Outras peças depositadas num jarro na Área T incluíam restos de três


estatuetas de faiança representando alguém segurando uma flor de lotos, uma
pessoa ou divindade com um macaco no colo e uma cabeça de Osíris ornado
com sua coroa branca e olhos pintados com o tradicional delineador preto 19.
Tudo isso indica que os israelitas conheciam o costume funerário egípcio onde
os devotos seguravam flores de lótus, o deus Thot comparecia na forma de um
primata babuíno e, após invocar o Deus dos Mortos e os quarenta e dois juízes

19 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 177 e 214.

10
do tribunal divino, o espírito declarava merecer a vida eterna por não haver
cometido pecados20.

Proteção do caixão

1Q Isaª menciona algo que parece o nome dum óleo inseticida. Fora de
Isaías 14:4 existem somente duas outras menções a madhēbāh (‫)מרהבה‬, nas
linhas 3.25 e 12.18 do manuscrito 1QHª, ambas com sentido incerto, em paralelo
a palavras que costumam ser traduzidas como “tumulto” e “ruína”21.
A comunidade acadêmica não sabe o que isto é, mas é óbvio que
madhēbāh estava revestindo o caixão dum instrutor de madeireiros que tinha a
obrigação de saber que o óleo das sementes de Madhuca longifolia é bom para
tratar madeira contra cupins. Esta árvore é chamada mādhaba (মাধব) no idioma
bengali e mādhava (माध्व) em sânscrito, sendo cultivada no Egito e talvez numa
cidadela rural não muito distante de Hazor, chamada Mādabā (‫)מהדבא‬, citada na
oitava linha da Estela de Mesha. Considerando que o óleo das sementes era
algo útil e barato – que com certeza existia no armazém de Enlil Ben Šaḥar –, é
possível que a palavra ‫ מרהבה‬seja a transliteração dum termo extrangeiro.

Resina laca

A décima linha da coluna XII de IQ Isaª menciona duas vezes o termo ‫לכה‬
referente à resina laca secretada por algumas espécies de insetos dos gêneros
Metatachardia, Laccifer, Tachordiella, Austrotacharidia, Afrotachardina, e
Tachardina, entre eles o Kerria lacca que se reúne aos milhares em certas
árvores e é comumente cultivado para produzir resina em escala industrial. Na
primeira referência a resina laca foi processada para produzir goma laca e usada
no clareamento da cavidade da cisterna funerária.

20 TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo.
Trad. Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 301.
21 SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta,
Society of Biblical Literature, 2002, p 130, nota 1.

11
Na última referência a resina foi usada na produção de cosmético para
passar na pele (‫)עורה לכה‬. A mesma substância é utilizada em cosméticos até
hoje, além de servir para tingir lã e seda.
Considerando que a goma laca é um verniz vermelho transparente, para
clarear algo e/ou alguém com tinta e/ou cosmético seria necessário adicionar
pigmentos claros e outros ingredientes.

Luzes acesas

Embora não esteja descrito em detalhes o que foi feito quando Hylyl Ben
Šaḥar “pediu para iluminar” (‫ )אמרתה בלבבכה‬uma cavidade cujo fundo poderia
estar a oito ou nove metros de profundidade, sabemos com certeza que seus
assistentes acenderam lâmpadas de óleo de sementes de rícino (Ricinus
communis) enquanto trabalhavam nivelando o solo e pintando o ambiente.
Durante séculos nada mudou na técnica ou estética deste tipo de
lâmpadas, achado em abundância nos sítios arqueológicos de Tel Dan e Hazor.
Por exemplo, na tumba duma família de metalúrgicos do fim da Idade do Bronze
(Tomb 387) havia sete iguais.22 Veja três fotos abaixo:

A iluminação artificial era necessária para enxergar o que se fazia no


interior da cisterna funerária. Acender fogueiras ou tochas produtoras de fuligem

22
BIRAN, Avraham & BEM-DOV, Rachel. Dan II: A Chronicle of the Excavations and the Late
Bronze Age “Mycenaean” Tomb. Jerusalem. Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion,
2002, p 78-79.

12
prejudicaria o trabalho de pintura do chão. Lâmpadas de óleo fariam menos
fumaça sem produzir lixo.

Joias masculinas

A primeira pergunta deve ter sido dirigida ao anfitrião da solenidade,


recém falecido, que estava vestido de forma tão perfeitamente adequada que os
repāim exclamam admirados: “Até vossas joias são como as nossas, para nos
imitar!” (‫)גם אתה חליתה כמונו אלינו נמשלת‬. O termo que descreve as joias de Hylyl
Ben Šaḥar integrava o jargão específico do culto nos bām oṯê, designando
qualquer peça diferente de brincos que fosse composta por filamentos (compare
‫ חליתה‬com o feminino ‫ וְחֶ ְלי ָָתּה‬em Oséias 2:13).
As joias tradicionais de ocorrência mais frequente em Tel Dan e Hazor
eram compostas de contas de cornalina e faiança branca. Pedras brutas ou
lapidadas de ágata, cristal, ametista, lapis lazuli e vidro existiam em menor
quantidade. A prata e o ouro eram raríssimos. Os repāim concluíram que o
imitador parecia bom o bastante para habitar entre eles. “Seu luxo desceu à
cova” (‫ )הורד שאול גאונך‬tal como um aristocrata de ʿElyōn (‫)לעליון‬.

Oferenda de sacrifício ritual

O livro dos sacrifícios das sombras (spr.dbḥ.ẓlm) de Niqmaddu (KTU


1.161) diz que um sacrifício pacificador (šlm) foi realizado no cemitério (rpi.arṣ)
de Ugarit para honrar os repāim (rpi) quando Niqmaddu faleceu. Considerando
que o māšāl ou epitáfio móvel compilado em 1Q Isaa, coluna XII, linhas 6 a 23,
descreve o mesmíssimo padrão de ritual funerário, é sensato supor que o mestre
de obras e instrutor de madeireiros Hylyl Ben Šaḥar também recebeu um
sacrifício pacificador ou expiatório. O trecho onde afirmam que “todos os bodes
deste chão” (‫ )כול עתודי ארץ‬pertencem aos repāim sugere a preferência pelo
sacrifício do bode (Capra hircus) e usa sentido figurado, como em Ezequiel 34:17

13
onde as diferentes castas israelitas são comparadas a ovelhas, carneiros e
bodes. Ou seja, metaforicamente o bode substitui o morto23.
A arqueologia comprova o costume de enterrar famílias importantes em
covas coletivas onde depositavam oferendas, a exemplo da Tumba 1025 de Tel
Dan, onde foram encontrados ossos de dois bodes ou ovelhas, um gamo ( Dama
dama), uma adaga e restos de outras oferendas24.
No texto em análise, de 1Q Isaa, a carniça (‫ )נבלתך‬assediada por insetos
que zumbem (‫ )המית‬é o animal sacrificado para convocar as almas dos repāim e
conquistar a simpatia dos jurados que absolvem o morto. Horas depois da
realização do despacho da oferenda, a carniça zune (‫ )המית נבלתך‬ou parece
zunir por causa da reunião de insetos voadores. Quanto mais oferendas, mais
moscas eram atraídas. É por isso que em II Reis 1:13 o clero israelita chama o
deus de um bem sucedido templo de Ekon de “Senhor das Moscas”.

1) Estatueta de bode mais ou menos contemporânea, achada em Hazor dentro


duma bolsa junto com uma estatueta de macaco, guizos, contas e pedras

23 Figurativamente o bode era o chefe do clã ou da nação, mesmo que fosse um conquistador
estrangeiro. Por exemplo, o Livro de Daniel narra um sonho profético sobre um gigantesco bode
(‫ )צפיר‬que chifra as estrelas (‫ )הכוכבים‬do exército do céu (‫ )צבא השמים‬para derruba-las (Daniel:
8:8-10). O anjo Gabriel explica que aquele bode estrangeiro representa a Grécia e as estrelas
são todos os povos que os gregos chamavam de bárbaros (Israel incluso). Hyan Maccoby
levantou a hipótese do sorteio do bode-expiatório e da pomba no rito de purificação do leproso
substituir o sacrifício humano. (MACCOBY, Hyan. The Sacred Executioner. New York, Thames
and Hudson, 1982, p 35-36). Noutro episódio bíblico os irmãos de José sepultaram-no vivo numa
cisterna seca e executaram um bode (‫ )שעיר עזים‬para representá-lo na morte, mas José
conseguiu sair do buraco e sobreviveu (Gênese 37: 22-31).
24 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994, p 57.

14
brutas25. 2) Pingente de ouro achado no túmulo egípcio da Rainha Ahhotep, que
morreu entre 1550 e 1525 a.C. (Museu do Cairo, JE 4694 = CG 52671). 26.

Moscas não sobrevivem em áreas situadas quatro a mil metros acima do


nível do mar, mas elas conseguem chegar ao Monte Hermon (cujo pico tem
menos de três mil metros). As cisternas funerárias tinham que ser lacradas com
camadas de terra e pedra. Senão, além de assediar as oferendas, as moscas
poriam ovos nas múmias. No Egito as moscas eram representadas em joias,
murais, etc. É preciso ter sensibilidade artística para reconhecer a beleza das
formas e sons de um inseto tão perigoso para a saúde humana.

Localização do sítio arqueológico

Analisando criticamente o māšāl nós percebemos que ʿelyōn (‫ )לעליון‬se


refere à altitude de Tel Dan, pois tal cidade (hoje em ruínas) está situada numa
área da Galiléia chamada de Galil ʿElyōn (‫ )ןוילע לילג‬desde sempre. Ou seja, o
que lemos nas versões em hebraico de Isaías 14:14 é uma expressão onde o
falante promete se comportar conforme os usos e costumes dos cidadãos que
viviam na Alta Galiléia, notadamente em Tel Dan.
Tudo indica que a expressão bāmoṯê ʿāḇ (‫ )במתי עב‬lida em Isaías 14:14 e
1Q Isaª, Col. XII, linha 16, diz respeito ao caminho nebuloso, ou seja, cheio de
neblina (‫)עב‬, que dá acesso aos altares (‫)במתי‬. Definitivamente bāmoṯê (‫)במתי‬
não é o verbo subir. E eu não seria a primeira pessoa a imaginar que todos os
tradutores “podem ter optado pela omissão de uma palavra incompreensível27”.
O fato do plural bāmoṯê anteceder ao singular ʿāḇ (‫ )עב‬demonstra tratar-se dum

25 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible . Jerusalem, Weidenfeld
and Nicolson, 1975, p 225.
26 No Egito pingentes de mosca eram dados como condecoração militar da “ordem das moscas
douradas” oferecida pelo rei aos soldados que se destacavam em batalha, inclusive contra os
hicsos que supostamente ocuparam Israel. (LUCA, Araldo de; TIRADRITI, Francesco e outros.
Tesouros do Egito. Trad. Maria de Lourdes Gianni. São Paulo, Manole, 1998, p 286).
27 VAUGHAN, Patrick H. The Meaning of ‘Bāmâ’ in the Old Testament: A study of etymological,
textual and archeological evidence. London, Cambridge University Press, 1974, p 89, nota 2.

15
conjunto de coisas menores dentro de algo maior. Ou seja, o sítio arqueológico
pode ser reconhecido pela existência de mais de um bāmāh.
O bāmāh era um altar ao ar livre28 numa cidade rodeada por uma reserva
ecológica29. A raiz bāmâ se refere aos órgãos internos, lombo ou parte do corpo
de um vertebrado que tenha bastante carne, preferencialmente localizada na
parte inferior do corpo, mais preferencialmente ainda na parte traseira. Os altares
de YHWH (único deus mencionado neste texto) foram chamados de bām oṯê
porque funcionavam como uma espécie de churrasqueira e eram neles que os
sacerdotes sacrificavam e coziam os animais. Somente o sacrifício expiatório
não era comido pelos ministros religiosos e suas famílias.
Está escrito que o lugar frequentado por Hylyl Ben Šaḥar ficava na
pedreira ao norte (‫ )בירכתי צפון‬da montanha da congregação (‫)בהר מועד‬. No
Salmo 48:3 a expressão yarkethê ṣāpôn (‫ )ירכתי צפון‬se repete, provavelmente se
referindo ao mesmo sítio arqueológico. Diante do exposto parece seguro afirmar
que este local seja Tel Dan: Única cidade fortificada israelita possuidora de
altares (bāmoṯê), escondida na floresta, no sopé do Monte Hermon. 30 Nela tudo
foi construído com pedregulhos empilhados. Talvez seja por isso que em 1Q Isaª
existe um contraste vertical entre as expressões “pedras ao norte” (‫ )ירכתי צפון‬e
“pedras da cisterna” (‫)ירכתי־בוד‬31. Mais que isso: Antes do andarilho subir a pé
na direção norte ele deveria estar na cidade situada mais abaixo e ao sul,
chamada Hazor, onde possivelmente residia.

Datação da narrativa

28 LWRY, Samuel. Maṣṣēbāh and Bāmāh in 1Q IsaiahA 6:13. Em: Journal of Biblical Literature,
vol. 76, nº 3 (setembro de 1957), p 225-232.
29 FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento . Trad. Gerardo Novas. México, Fondo de
Cultura Econômica, 1981, p 452-459.
30 O Bamah B, na Área T, ao norte de Tel Dan, foi erigido durante o reinado de Ahab, por volta
de 860-850 a.C. Este templo foi atacado durante a guerra contra os arameus, no início do séc. 8
a.C., e reformado a mando do rei Jeroboam II, que subiu ao trono em 785 a.C.
31 JENSEN, Joseph. Helel Ben Shaḥar (Isaiah 14:12-15) in Bible and Tradition. Em: BROYLES,
Craig C. & EVANS, Craig A. Writing and Reading the Scroll of Isaiah: Studies of an interpretative
tradition. New York, Brill, 1997, p 341.

16
Embora a datação do couro do manuscrito disponível (150-100 a.C.)
ultrapasse em demasia a data presumível dos fatos narrados, o epitáfio de Hylyl
Ben Šaḥar obviamente provém de uma época em que ainda se fazia juízo de
valor positivo dos bāmoṯê “que causavam tanto nojo aos últimos profetas32” e era
permitido sepultar os mortos descidos pelo orifício da cisterna (‫ )ירכתי בור‬até o
fundo seco de uma cisterna na pedreira (‫)אבני בור‬.
Considerando o conteúdo do prólogo nós poderemos supor que o Rei de
Babel não recebeu o segundo documento (relativo a fato ainda não acontecido)
e que Hylyl Ben Šaḥar morreu depois do início da reforma de Tel Dan, começada
por volta de 789 a.C., e antes do mês de setembro de 745 porque foi nesta data
que Nabonasar rompeu a aliança da Babilônia com a jurisdição de Israel33. Sem
um pacto de aliança não haveria razão para um israelita peticionar ao Rei de
Babel solicitando parecer jurídico sobre o tópico da alforria de escravos, cujo
pedido acompanhava o documento em anexo34.
A referência a um grande abalo sísmico (‫ )המרגיז הארץ‬no documento em
anexo remete à época do reinado de Jeroboam II em Israel (789-748) e Uzziah
em Judá (785-733), quando um terremoto de magnitude estimada por volta de

32 FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento . Trad. Gerardo Novas. México, Fondo de
Cultura Econômica, 1981, p 458.
33 A antiguidade do estreito relacionamento entre Babilônia e Israel é atestada pelo obelisco de
Kalah, exposto no Museu Britânico, que retrata Jeú (842-815), rei de Israel, prostrado diante de
Salmanasar III, pagando-lhe tributo. (SAMPAIO, Fernando G. A História do Demônio. Porto
Alegre, Garatuja, 1976, p 28).
34 O texto hebraico moderno não contém o verbo ultrajar (‫ )מקומם‬em Isaías 14:3, embora tal
verbo exista em 1Q Isaª. O termo ‫ והתנחלום‬é o verbo mendigar (‫ )יחלוה‬no tempo perfeito,
reflexivo, com sufixo. De acordo com o prólogo, a Casa de Jacó (‫ )בית יעקוב‬costumeiramente
escravizava o ḫapiru (‫)עברי‬: Obreiro ultrajado e reduzido à mendicância. O remetente israelita
desejava que o Rei de Babel atuasse como árbitro na solução do conflito, mantendo o direito dos
pais que pagassem o resgate das mães de filhos comuns. A referência ‫( וררים בנוגשיהם‬1Q Isaa)
ou ‫( וררו בנוגשיהם‬4Q Isac) diz respeito aos filhos das escravas, futuros mestres de obras (‫)נֹוגֵׂש‬.
R. Ḥiyya comentou sobre Isaías 14:2 indicando que era permitido manter relacionamento sexual
com uma escrava após o terceiro mês de cativeiro. (PISKA 12:17. Em: BRAUDE, William G.
Pĕsiḳta dĕ-Raḇ Kahăna. Philadelphia, The Jewish Publication Society, 2002, p 322).

17
8.2 na escala Richter despedaçou as casas das pessoas em Hazor35 e Tel Dan36,
entre outros sítios arqueológicos. Se o registro constante numa das fontes de
Flávio Josefo estiver correto, aquele tremor de terra específico aconteceu no ano
733, quando causou a queda de uma pedra do teto de um templo sobre a cabeça
de Uzziah e incapacitou o antigo rei de Judá para o exercício do governo.
(Antiguidade Judaica, Livro 9, capítulo 10: 225-226)37.

Causa da morte

O parágrafo que expõe a causa da morte de Hylyl Ben Šaḥar informa que
ele “teve a vida encurtada” (‫ )נגדע‬ao machucar (‫ )חולש‬as “costas” (‫ )גוי‬num
acidente de trabalho. De acordo com Raymond Leeuwen, o verbo ḥlš (‫ )חלש‬é o
antônimo de gbr (‫ )גבר‬e ambos representam respectivamente a perda ou
aumento do vigor de alguém em qualquer situação38. Somos informados que
Hylyl Ben Šaḥar estava “prestando serviço” (‫ )השמיש‬quando “caiu prostrado”
(‫)נפל‬, bateu no “chão” (‫ )ארץ‬e morreu. Provavelmente o madeireiro subiu num
cedro gigante para cortar um galho bom para artesanato, com formato pequeno
e reto. Esse tipo de planta atinge até 40 metros de altura e 14 metros de diâmetro
no tronco. Ele subiu bem alto para mostrar que não tinha medo e rir dos
companheiros preocupados que esperavam lá embaixo, tiritando de frio.
Estava ventando muito. Talvez o vento tenha se tornado forte o bastante
para causar hipotermia. Desorientado, ele escorregou enquanto se esticava em
poses inconvenientes tentando alcançar um galho afastado com um dos pés.
Caiu sentado no solo e fraturou a parte traseira dos ossos da bacia, rompendo
os ligamentos na junção do sacro com os ilíacos, etc. A proximidade dos verbos
nafalta (‫ )נפלתה‬e ḥlš (‫ )חלש‬sugere uma morte rápida. Foi uma cena terrível. Ele

35 YADIN, Ygael. Hazor: The rediscovery of a great citadel of the Bible . Jerusalem, Weidenfeld
and Nicolson, 1975, p 149-150.
36 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalém, The Israel Exploration Society, 1994, p 254.
37 JOSEPHUS, Flavius. The Works of Josephus. Trad. William Whiston. USA, Hendrickson, 1987,
p 260-261.
38 LEEUWEN, Raymond C. Van. Isa 14:12, Ḥôlēš ‘al gwym and Gilgamesh XI, 6. Em: Journal of
Biblical Literature, Vol. 99, Nº 2 (Jun., 1980), p 176-177.

18
morreu cercado pelos colegas de trabalho que choravam e rasgavam roupas
enquanto a poça de sangue crescia no chão, tingindo a neve. Seu último desejo
foi um sepultamento digno numa cisterna funerária nivelada, pintada, mobiliada
com caixão, etc. De fato, eles acharam um lugar excelente.

Significado do nome de Hylyl Ben Šaḥar

Em hebraico o imperativo ‫ היליל‬é uma forma relacionada (hiph'il) do verbo


chorar39. Naquela época o cuneiforme illil, comumente aportuguesado para Enlil,
era o nome de um monte de pessoas, fantasmas, deuses, etc. 40, assim como
hoje Maria é nome de um monte de portuguesas, beatas, santas, etc. Por isso
creio que Hylyl Ben Šaḥar seja um nome próprio masculino singular que não
deve ser traduzido nem interpretado, mas sim transliterado.
Para todos os israelitas era prática normal alguém ser conhecido como o
filho de seu pai. A inclusão de um patronímico geralmente indica ou insinua que
a pessoa seja de alto status social41. Logo, certamente Hylyl é intitulado Ben
Šaḥar por ser filho legítimo de um homem chamado Šaḥar42.

39 GESENIUS, Wilhelm. Commentar über den Jesaia. Leipzig, Friedr. Christ. Wilh. Vogel, 1821,
p 480.
40 GALLAGHER, Willian R. On the Identity of Helel ben Sahar of Is. 14:12-15. Em: Ugarit-
forschungen, nº 26. Alemanha, Verlag Butzon & Bercker Kevelaer, 1994, p 145.
41 GOODMAN, Martin. A Classe Dirigente da Judéia: As origens da revolta judaica contra Roma,
66-70 d.C. Trad. Alexandre Lissovsky e Elisabeth Lissovsky. Imago, p 124.
42 Este nome próprio masculino singular deriva do substantivo šaḥar (‫)שחר‬, referente à coloração
multifacetada que o céu assume durante o crepúsculo e a aurora. No idioma dos índios tupi o
mesmo fenômeno era chamado de “céu vermelho” ( ibiporanga). Gibson se equivocou ao
associar o ser humano chamado Šaḥar, pai de Hylyl, com o semideus Šaḥar, meio-irmão de
Šalem, mencionado nas placas CTA 23 e KTU 1.23 de Ugarit. (GIBSON, J. C. L. Canaanite Myths
and Legends. London, T & T Clark, 2004, p 29, nota 1). Pelo abismo temporal que separa tais
fontes aquele ente mitológico pode ser, na melhor das hipóteses, somente o pai hipônimo do clã
Bnei Šaḥar.

19
A propósito, a análise filológica comprovou que o escriba de 1Q Isaª
pertencia ao clã Bnei Šaḥar43, não sendo impossível que Hylyl fosse ancestral
(talvez tataravô do tataravô do pai) do seu último biógrafo.

Cetro quebrado

O māšāl inicia com uma figura de linguagem somente compreendida por


quem viveu naquela época e lugar: ‫“ — שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים‬Quebrou
YHWH, o cetro dos condenados, báculo da pacificação”. YHWH é o deus da
guerra, Senhor dos Exércitos, mas deuses são entes abstratos incapazes de
quebrar coisas fora do mundo das ideias. Portanto suspeito que a haste de um
cetro, um objeto de culto a YHWH, quebrou e os restos foram enterrados com
honras. Em Ugarit os paramentos do Príncipe da Morte eram chamados por
adjetivos análogos, conforme inscrição no tablete CTA 23:8.

mt.wšr.ytb. Mot e Šar quedaram.


bdh.ḫṭ.tkl. Numa mão o cetro do luto.
bdh ḫṭ.ủlmn. Noutra mão o cetro do véu de viúva44.

43 Em Ḫirbet Qumrân existe uma montanha cheia de cavernas que funcionava como um shopping
de manuscritos. Nós sabemos que a livraria-editora (‫ )אוצר בינות‬da quarta caverna pertencia ao
clã dos Bnei Šaḥar (‫)בני שחר‬, emigrado de Israel, pois eles guardaram uma missiva criptografada,
notóriamente de caráter privado, contendo “palavras do Maskīl para todos os Bnei Šaḥar” (‫שחר‬
‫)]דבר[י משכיל אשר דבר לכול בני‬. (4Q298. Em: MARTÍNEZ, Florentino García & TIGCHELAAR,
Eibert J. C. The Dead Sea Scroll Study Edition: Volume 1. New York, Brill, 1997, p 656-657). A
análise filológica determinou que os manuscritos catalogados como 1Q Isa a e 1QS, achados na
1ª caverna, foram escritos em ortografia idêntica à da fonte donde foi copiado 4Q Enc, produzido
para o comércio na 4ª caverna. (MILIK, J.T. The Books of Enoch: Aramaic Fragments of Qumrân
Cave 4. Oxford University Press, 1976, p 23). Portanto é provável que a narrativa do funeral de
Enlil Ben Šaḥar tenha sido preservada, copiada e vendida pelo próprio clã dos Bnei Šaḥar. Eles
também são autores de todas as cópias dos livros de Enoch (somente descobertos naquela loja).
44 CTA 23:8. Em: Gibson, J. C. L. Canaanite Myths and Legends. Londres, T & T Clark, 2004, p
123.

20
Pode não ser inútil mencionar que, no Hindustão, o “cetro da morte” é
“adornado com um crânio no topo”.45 No folclore este apetrecho é portado por
deuses responsáveis pelo sucesso das campanhas militares, mas na arte
devocional às vezes o cetro é o próprio deus. O modelo iconográfico ideal reúne
cabeças de homens ou animais olhando para todas as direções.
Num de seus artigos, Avraham Biran (1909-2008) confessou acreditar ter
descoberto o topo de um cetro danificado análogo àquele cetro quebrado citado
em “Isaías 14:5”.46 Este cetro tem quatro cabeças de leão esculpidas em bronze.
Em 1989 a expedição arqueológica de Avraham Biran descobriu a sala 2844, na
Área T, em Tel Dan, soterrada sobre extratos de terra de diferentes épocas. Na
camada que preservou resquícios da época pertinente ao nosso tema foi
descoberto um jarro cheio de cinzas de incenso e restos de ossos, três pazinhas
de ferro usadas para mexer oferendas no fogo e depositar as cinzas naquele
jarro, mais um altar composto de cinco pedras. Quando o altar foi removido para
exibição no Skirball Museum eles viram uma peça de bronze dum antigo cetro
de madeira cujo cabo já não existia quando o objeto foi enterrado. Era como se
tivessem enterrado aquilo debaixo dum altar para que o objeto fosse
perenemente adorado e recebesse oferendas.

Peça oca de bronze achada sob o altar na sala 2844.


(Fotos © Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion).

45 Devῑ-Mᾱhᾱtmya 2.22 e 7.6. Em: COBURN, Thomas B. Encontering the Goddess: A translation
of the Devῑ-Mᾱhᾱtmya and a study of its interpretation. Ney York, State University of New York,
1991, p 41 e 61.
46 BIRAN, Avraham. Tel Dan Scepter Head. Em: BIBLICAL ARCHAEOLOGY REVIEW.
January/February 1989, p 29.

21
Intrigado, Avraham Biran pesquisou exaustivamente e constatou que os
governantes humanos não usavam cetros com topos neste formato. Também
percebeu a semelhança entre isto o topo dum cetro portado por uma deusa
anônima representada numa imagem produzida pelo rolamento de um sinete
cilíndrico datado por volta de 2360-2180 a.C. (New York, Pierpont Morgan
Library. Corpus, 245). Ele declarou:

When we removed the stones of the altar for exhibition in the Skirball Museum in
Jerusalem, the head of a scepter was discovered on the floor below. Made of
bronze and hollow in the center, it is 9 cm. high and 3.7 cm. wide. Four badly
corroded figures, possibly representing lion heads, jut out from the top of the
artifact. Below the figures, three circular grooves from four veins, or rings, a motif
that appears three more times on the scepter head. The middle section consists
of a protruding bronze ring with silver leaves, and the base is a protruding flange.
The discovery of the scepter head caused much excitement, for here was the
head or top of a scepter similar to those held by kings and priests — and in the
least one case, by a goddess47.

Scepter heads have been found in a number of excavations. (…) Some


especially significant scepter tops were discovered by Henry Layard in 1850 in
the northwest palace of Nimrud in Mesopotamia. These scepter tops were also
made of bronze, sometimes inlaid with iron. Inscribed names appeared on four
of them. It is possible that a name — or something else — is inscribed on our
scepter head. We will know for sure only after experts remove the corrosion on
the scepter head and complete their laboratory analysis.
Scepters appear most commonly in ancient texts and glyptic art as
symbols of earthly rules, but in at least one case a cylinder seal displays a scepter
in the hand of a goddess. Because our scepter head was found beneath an altar
we can speculate that it may have belonged to a priest at Dan. Perhaps future
finds will substantiate this conjecture48.

47 BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 198.
48 BIRAN, Avraham. Tel Dan Scepter Head. Em: BIBLICAL ARCHAEOLOGY REVIEW.
January/February 1989, p 31.

22
Suponho que isto já estava quebrado e enterrado quando Hylyl Ben Šaḥar
chegou neste lugar e escutou a história contada pelo sacerdote local.

Altar dentro da sala 2844 na Área T ao norte de Tel Dan. A fotografia foi tirada por Avraham
Biran, antes da alteração do aspecto do sítio arqueológico pela remoção do altar e seus
utensílios. (Fotos © Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion).

Conclusão

Os antigos egípcios acreditavam que o espírito humano é composto de


três partes chamadas ka, ba e akh. Quando morremos o akh vai a julgamento na
corte celeste enquanto os dois outros elementos permanecem na terra. O ba era
representado por um homem pássaro. “Ele podia esvoaçar à vontade, mas
sempre retornava ao cadáver, seu perpétuo poleiro”49.
Em Ugarit e Israel existia um esquema idêntico onde o morto era chamado
de rāphā (plural repāim). J. N. Ford compilou e publicou um vasto material sobre
o chamamento dos repāim no estimado periódico acadêmico Ugarit-
Forschungen50. R. Mark Shipp transliterou e traduziu o Livro do Sacrifício das

49 A ERA DOS REIS DIVINOS: 3000-1500 a.C. Trad. Pedro Maia Soares. Rio de Janeiro, Abril,
1991, p 74.
50 FORD, J. N. The “Living Rephaim” of Ugarit: Quick or Defunct? Em: Ugarit-Forschungen, Band
24 (1992), p 73-101.

23
Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) do Rei Niqmaddu, que é um exemplar mais
completo do ritual descrito em 1Q Isaª (Col XII, linha 6-17)51.
Assim como os egípcios escreviam livros dos mortos, em Ugarit redigia-
se um texto convidando os residentes veteranos da “cidade dos repāim” (rpi arṣ)
– cemitério, necrópole ou cisterna funerária – a recepcionar o novato. O titulo
hebraico que 1Q Isaa deu a este tipo de documento foi māšāl (‫)המשל‬, mas o nome
da congregação dos repāim permaneceu inalterado. Primeiro o ministro religioso
fala com quem irá depositar o recém falecido na cisterna funerária e recolocar a
pedra que serve de tampa sobre a cisterna:

‫ — ואמרת איכה שב נוגש שבתה מרהבה‬Entoai lamentações [pelo falecimento do ente


querido durante seu funeral], feche [a tampa da cisterna onde] o mestre de obras
jaz deitado sobre [um caixão de madeira dedetizado com] óleo de sementes de
Madhuca longifólia [e] ore [desta maneira]:

‫— שבר יהוה מטה רשעים שבט מושלים‬ Quebrou YHWH, o cetro dos
condenados, báculo da pacificação.
‫ — מכה עמים בעברה מכת בלתי סרה רודה באף גואים מרדף בלי חשך‬Uma
ventania furiosa e incessante castigava aquela equipe inabalável. [Hylyl
Ben Šaḥar não se intimidou com o perigo e] perseguiu os companheiros
com firmeza, sem arroxear [de frio]! ‫ — שקטה נחה כול הארץ פצחו רינה‬Toda
área estava silenciosa. Rinnah52 podou [um cipreste pensando que fosse
um cedro e o instrutor fez mofa ironizando a situação. Daí a prosopopéia:]

‫— גם ברושים שמחו לך ארזי הלבנון מאז שבתה ולוא יעלה הכורת עלינו‬
Até seus Cedros do Líbano (Cedrus libani) se alegraram pelo
cipreste (Cupressus sempervirens). [As árvores favorecidas pelo
erro deveriam estar a falar com as desfavorecidas]: “Desde
quando desabaste nenhum lenhador subiu para nos cortar!”

51 RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and
Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57.
52 Estou em dúvida se Rinnah é o nome do discípulo inepto que confundiu madeira de cedro com
cipreste de baixo valor ou se o mestre chamou-o de “palhaço”. Nos tempos bíblicos Rinnah (‫)רינה‬
era um nome masculino proveniente do radical ‫( ִרנָּה‬alegria) e indica um “cantor alegre”. Um dos
descendentes de Judá tinha este nome (I Crônicas 4:20).

24
Algum parente ou conhecido narrou um episódio que revela a coragem,
resistência física, perícia técnica e o bom humor do falecido diante de tarefas
perigosas, estafantes e dificílimas. O mestre de obras (‫ )נוגש‬instruiu um grupo
de companheiros (‫ )גואים‬sobre como escolher, identificar e coletar madeira para
a construção civil. Pode-se dizer que eles eram estagiários aprendendo um ofício
sob a supervisão do instrutor. Os jovens madeireiros tinham um medo justificável
do vento que uiva. Nas partes mais importantes da cordilheira do Líbano (‫)לבנון‬
a ventania é mais perigosa do que a neve e pode congelar alpinistas ineptos em
poucos minutos. Estudos demonstram que ventos de cinquenta quilômetros por
hora são comuns quando o tempo está bom, ao passo que as geadas atingem
velocidades particularmente destrutivas que vão de cem a cento e cinquenta
quilômetros por hora53.
Isso é o bastante para erodir pedras, mas os obreiros itureus e israelitas
aprenderam a domar o vento para explorar recursos naturais nas montanhas.
Eles estudavam as direções onde venta mais e projetavam paredes reforçadas
em assentamentos temporários que sobem até acima dos 2.000 metros. Hylyl
Ben Šaḥar era um dos homens que andavam por ali tranquilos e fazendo piadas
sobre ineptos que confundem cipreste barato, vulgarmente conhecido como
“cedro bastardo”, com o cedro verdadeiro que ele saberia identificar... Nada
poderia ser mais heroico que a atitude deste trabalhador destemido!
O problema é quem vive essa viva pode morrer de mil causas diferentes
e de alguma coisa ele morreu. Então escreveram o chamamento dos repāim
(mortos antigos) para recepcionar o mais novo rāphā (recém falecido). Ainda
deve existir uma cópia do modelo original deste texto escrito em proto-hebraico
perto do caixão de Hylyl Ben Šaḥar, se a erosão não houver destruído:

53 DAR, Shimon. Settlements and Cult Sites on Mount Hermon, Israel: Ituraean culture in the
Hellenistic and Roman periods . Trad. M. Erez. (BAR International Series 589). Oxford, Tempus
Repartvm, 1993, p 7.

25
‫ — שאול מתחת רגזה לכה‬O subsolo da necrópole foi clareado com verniz de goma
laca. ‫ — עורה לכה‬A pele foi pintada com cosmético feito à base de resina laca.
‫ — לקרת בואך‬A cidade te recepciona54.
‫ — רפאים‬Repāim! ‫ — כול עתודי ארץ‬Todos os bodes da região! ‫כול מלכי גואים‬
‫ — הקימה מכסאותם‬Todos os grandes reis levantaram dos seus tronos! ‫ויאמדו אליך‬
‫ — כלם יענו‬Todos se cumprimentam, questionando mutuamente: ‫אלינו נמשלת‬
‫“ — גם אתה חליתה כמונו‬Até vossas jóias são como as nossas, para nos imitar?”
‫“ — הורד שאול גאונך‬Seu luxo desceu à necrópole!” ‫ — המית נבלתך‬Sua [oferenda
de] carne zune [pela reunião de insetos voadores]. ‫תחתיך יצע רמה ומכסיך תולעה‬
— Abaixo [tecidos feitos de] casulos [de bicho da seda] forram sua cama, um
cobertor de seda!
‫“ — היך נפלתה מהשמיש היליל בן שחר‬Tu sofreste um acidente de trabalho, Hylyl
Ben Šaḥar?”
‫“ — נגדעתה לארץ חולש על גוי‬Caí prostrado no solo e fraturei a bacia”.
‫ — אתה אמרתה בלבבכה‬Você pediu para iluminarem [o interior da cisterna
funerária]. ‫ — השמים אעלה ממעלה לכוכבי אל‬Informou a subida do nível de terra
acima [daquele onde jazem] os astrônomos (Kôchevêi ʾĒl).
‫“ — ארים כסאי אבל בהר מועד בירכתי צפון‬Fiz meu jazigo e preparei meu funeral na
montanha da solenidade, na pedreira ao norte. ‫— אעלה על במתי עב אדמה לעליון‬
Subi aos altares (bāmoṯê), dentro da neblina, na área de extração de argila para
olaria em ʿElyōn”.
‫ — אך אל שאול תורד אל ירכתי בור‬Então para a necrópole foi descido, para o fundo
do orifício da cisterna.

A meu ver a narrativa do funeral de Hylyl Ben Šaḥar termina neste ponto,
pois o documento descreve a morte de um cidadão conjugada com um funeral
bem sucedido, perfeito e completo, com direito a leitura do tradicional texto do
chamamento dos repāim e avaliação favorável. Pois assim como os egípcios
escreviam livros dos mortos, muito cedo, em Ugarit, as famílias dos finados já
escreviam “Livros do Sacrifício das Sombras”55, invocando os repāim para um

54 No códice Firkovich B19A verifica-se a substituição de ‫ עורה‬por ‫עֹורר‬


ֵ que, em sentido jurídico,
indica o ato de apresentar uma contestação como defesa processual.
55 Este Livro do Sacrifício das Sombras (RS 34.126/KTU 1.1161) foi transliterado e traduzido em:
SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta,
Society of Biblical Literature, 2002, p 54-60.

26
banquete de oferendas durante o qual era julgada a aptidão dos recém falecidos
para unir-se a eles56. O narrador assegura a Hylyl Ben Šaḥar que os repāim o
recebem na congregação dos mortos ou contestam em seu favor. Ou seja, os
outros mortos peticionam perante YHWH assegurando a integridade moral do
recém falecido durante seu julgamento da mesma forma que os quarenta e dois
juízes do tribunal divino egípcio faziam perante Osíris.

Epílogo

Em 733 a.C., num prazo variável de doze a cinquenta e seis anos depois
da morte de Hylyl Ben Šaḥar, a cidade combaliu durante um grande abalo
sísmico (‫ )המרגיז הארץ‬e tal ocorrência foi anotada logo abaixo da narrativa do
funeral de Hylyl, no Livro de Isaías, por causa da pertinência temática (ambos os
documentos falam sobre repāim e cisternas funerárias).
É impossível que Hylyl Ben Šaḥar tenha participado do evento, salvo na
qualidade de ente espiritual (personagem mitológico). Afinal os espíritos são
eternos e, em 733 a.C., todos os repāîm pré-mortos foram advertidos por um
vidente ou profeta a nunca mais revelar o nome da semente que fraciona as
pedras (‫)הרגתה לוא יקראו לעולם זרע מרעים‬. De acordo com um conto folclórico a
função do Rei dos Mortos57, construtor de cisternas, era revelar o nome aramaico
da espiga shamir (‫ )שמירא‬e ensinar como o pássaro Duchifat (Upupa epops) a
usava: “‫ — ומנקיט מײתי ביורני מאילני ושדי התם‬Ele a leva para as montanhas onde
não há vegetação, ‫ — ומנח לה אשינא דטורא‬a deixa sobre o cume da montanha,
‫ — ופקע טורא‬até abrir rachaduras na pedreira. ‫ומנקיט מײתי ביזרני מאילני ושדי התם‬

56 RS 34.126/KTU 1.1161, linha 18. Em: SHIPP, R. Mark. Of Dead Kings and Dirges: Myth and
Meaning in Isaiah 14:4b-21. Atlanta, Society of Biblical Literature, 2002, p 57.
57 O tratado Gittin passou a constar no Talmude a partir do Codex Munich 95, escrito entre 1340
e 1370, inexistindo no Codex Florence datado de 1177. Mas é provável que a estória tenha
migrado do folclore persa para a tradição rabínica um pouco antes, pois Mawlānā Rūmī (1207-
1273) narrou-a parcialmente nos mesmos detalhes, exceto pelo fato do rei dos shedim ser
alcunhado de Sahar ao invés de Ashmodai. (NICHOLSON, Reynold A. The Mathnawí of
Jalálu’ddin Rúmí: Translation of Books III and IV. Cambridge, Gibb Memorial Trust, 1930, p 343;
RUMI, Jalaluddin. Masnavi. Trad. Mônica Cromberg e Ana Sarda. Rio de Janeiro, Edições
Dervish, 1992, p 219).

27
— Então ele coleta sementes das árvores, joga-as ali e elas brotam. ‫— והוי ישוב‬
[A montanha] se torna verdejante. ‫ — והײנו דמתר גמינן נגר טורא‬É por isto que o
chamamos de quebrador de montanhas”58.
Era crença geral que os mortos podiam se comunicar com os vivos em
sonhos ou pela arte dum médium. Uma das funções dos repāim era ensinar
técnicas que permitem aos vivos realizar milagres científicos; ou, neste caso
particular, revelar um método de redução do esforço humano na extração de
pedras para a construção civil. Plantar cereais com espigas, como o trigo
(Triticum) e a cevada (Hordeum vulgare), em rachaduras naturais ou fendas
artificiais abertas com cuias de madeira molhada faz com que as raízes
germinem na pedra desprendendo os blocos da montanha. A arqueologia
comprova que tal método era largamente usado no mundo antigo. No caso de
1Q Isaa o ministro religioso tomou a precaução de proibir a revelação do nome
da semente destruidora ou semente esmigalhadora (‫ )זרע מרעים‬por ignorar a
verdadeira causa do pior terremoto da história de Israel, temendo que o uso da
técnica fragilizasse a pedreira e fizesse os pedregulhos caírem nos lugares
errados. Na parábola do Talmude o furto da espiga pelos humanos fez a estória
terminar tragicamente, com o suicídio de Duchifat envergonhado pela
impossibilidade de cumprir a promessa de dar a espiga ao Mestre do Mar.

58 GOLDWURM, R' Hersh (ed.) Talmud Bavli: Tractate Gittin. Brooklin, Mesorah Publications
(Artscroll), 2001, p 68b1.

28

Você também pode gostar