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Minha Querida Aline

M a r c e l o V i n i c i u s

Minha Querida Aline

Desfecho Romances

EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2015
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152

REVISÃO Cristina Lasaitis


FOTO DE CAPA Marcelo Vinicius
DIAGRAMAÇÃO Leonardo G. Filho
MODELOS DE CAPA Laryssa Carvalho & Malcon Douglas Carrera
EDIÇÃO Frodo Oliveira

Minha Querida Aline


VINICIUS, Marcelo

1ª Edição
Fevereiro de 2015
ISBN: 978-85-8473-254-8

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
Sumário

Primeira Anotação . . . . . . . . 07
Segunda Anotação . . . . . . . . 13
Terceira Anotação . . . . . . . . 25
Quarta Anotação . . . . . . . . . 29
Quinta Anotação . . . . . . . . . 45
Sexta Anotação.
. . . . . . . . . 61
Sétima Anotação. . . . . . . . . 71
Oitava Anotação . . . . . . . . . 75
Nona Anotação. . . . . . . . . . 79
Décima Anotação. . . . . . . . . 83
Décima Primeira Anotação . . . . 91
Décima Segunda Anotação. . . . 95
Décima Terceira Anotação.
. . . .103
Nota de Esclarecimento . . . . . . 109
Índice Onomástico. . . . . . . . . 111
Aquilo que se faz por amor está acima do bem e do mal.
(Nietzsche)

De onde todos os sábios tiraram a ideia de que os desejos


de um homem têm de ser todos normais e virtuosos? Por que
eles imaginam que ele precisa inevitavelmente querer o que é
razoável e proveitoso? O homem precisa simples e unicamen-
te de vontade independente, custe o que custar e leve aonde
levar essa independência.
(Dostoiévski)
Marc el o Vini ciu s

Primeira Anotação

Foi com grande pesar que recebi a notícia de que uma


amiga minha retornaria à sua cidade natal depois de sua for-
matura na nossa universidade. Para mim ela é mais do que
uma amiga, é uma pessoa que realmente amo e comento
aqui de um amor entre um homem e uma mulher. Portan-
to, diferentemente de outros escritos meus, escolhi a data de
hoje para iniciar uma espécie de diário ou confessionário.
Sei que parecerei dramático demais, tudo que faço é uma
tempestade num copo d’água, mas tenho motivo para isso.
Pelo menos para mim há motivo. Já o leitor, tirará suas con-
clusões depois.
No momento, escrevo no campus da universidade, en-
quanto ouço as risadas dela não direcionadas a mim, enquan-
to me tortura com a voz, brincando com uma criança que
eu nem sei quem é. Enquanto mal sei dizer o quanto a amo,
digo-o com a voz trêmula, com o coração dilacerado e com
a lágrima no rosto, mas digo voltado para este papel, no qual
escrevo isto. Não tenho coragem de me declarar para ela,
não no momento.
Às vezes, me incomodava ficar tão perto dela. Então, me
levantei e, quando estava voltando para casa, para continuar
a escrever, uma professora de antropologia, que encontrei

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pelo caminho, viu minhas anotações rapidamente e me dis-


se: “Você escreve? É escritor? Meus parabéns!”. Se ela sou-
besse o que me move a escrever, diria: “Meus pêsames!”.
Então, como o caro leitor terá percebido, tenho amado
uma pessoa e isso me revolta. Mas não vou tentar, não vou
insistir, não vou mais jogar um jogo amoroso. Já me can-
sei! Como disse Fernando Pessoa: “Meu desapego agora é
meu sossego!”. O que ando fazendo? Investindo no sossego
de meu próprio coração, ou talvez eu tenha me acostumado
tanto à vida de solteiro que não queira ter outra vida que
não seja essa. Mas vamos falar sério aqui: o quarto continua
sendo o melhor cômodo de minha casa. É um dos poucos lu-
gares onde posso trancar a porta e ter paz de verdade. Sou do
tipo que prefere a separação a ser parte de um casal: juntos,
porém tristes, produzindo “felicidades”. Que tormento é ser
escravo de alguém… Assim, você diz: “Não posso viver sem
você”. Então você sente o cativeiro, a escravidão, e começa a
lutar para se livrar. Amor não é escravidão. Um casal unido,
porém triste, é escravidão, e, como em todo cativeiro, existe
aquele escapismo a lhe dizer que algo vai melhorar na pró-
xima vez, alimentado pelo seu coronel. Esperança a la coro-
nel é terrível para qualquer escravo… Odeio casais infelizes.
Já bastam os problemas da vida, ainda criam mais uma falsa
felicidade. Deixa o sexto sentido falar mais alto, deixa pu-
lar livre a pulga atrás da orelha, meu caro. Quem está feliz,
quem é feliz de verdade, não precisa desse sacrifício amoroso
e de nenhum outro sacrifício, como esse que venho fazendo
amargamente no meu peito.
Por isso, quero falar com você. Sim, com você, que eu sei
que está lendo: para o show! Quando a noite chega e você
deita só, não haverá câmera nenhuma fotografando. Quando
a vida real o chamar, não haverá ninguém comentando suas

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fotos nos sites de relacionamento pela internet. Agora, aca-


bou a sociedade do espetáculo! Então, para que se sujeitar
a isso? Por que mentir a si mesmo? Vamos ser sinceros: esse
modelo de casal é mais um modelo padrão de que sempre
deveremos ter alguém para ser feliz. Assim, basta ter qual-
quer coisa e fingimos ser feliz com ela. Então, caro leitor,
quero lhe dizer: termine essa farsa e parta para outra. Por
experiência própria, é a dica que dou: termine essa farsa e
parta para outra. Esta festa está chata? Parta para outra. Esta
pista está cheia? Parta para outra. Esta questão está difícil?
Parta para outra. Esta garota ou garoto é muito complicado?
Parta para outro.
Esqueça essa ideia de que numa relação a gente tem que
ficar fazendo charminho ou escondendo o que sente. Isso
não é um romance, isso é um jogo de baralho onde temos
que esconder as peças e o outro não é seu namorado ou na-
morada e sim seu adversário, o qual você tem que vencer na
jogada. Se isso acontecer de novo, lembre-se: você se tor-
nou em um grande jogador e não em um grande romântico.
Mas, às vezes, é assim que tem que ser.
Ah! Falar é fácil? Sim, falar é muito fácil, é até mais fácil
do que respirar, do que defecar, do que comer, coisas que
fazemos naturalmente… Existe coisa mais fácil do que falar?
Passar no vestibular não é fácil, conquistar um emprego não
é fácil, perder um emprego não é fácil, se curar de uma de-
terminada doença não é fácil, perder um ente querido não
é fácil, o salário não aumenta e isso não é fácil, se enganar
dizendo que está tudo bem não é fácil, viver com ética, mo-
ral e dignidade não é fácil, acabar um relacionamento não é
nada fácil, uma sociedade crivada de injustiças não é fácil,
depressão como um problema de saúde pública não é fácil,
receber o relatório da ONU que diz que a cada 40 segundos

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uma pessoa se suicida no mundo não é fácil, ter quase 870


milhões de pessoas passando fome no planeta não é fácil;
enfim: viver não é fácil. É superar barreiras que, na verdade,
somos nós mesmos que construímos.
Mas não estou nem aí para isso, porque a questão aqui
sou eu, que tento não entrar mais de gaiato no navio… Já
o que você faz ou deixa de fazer em seus relacionamentos é
problema seu.
Não é nada contra você, leitor. A questão é que peguei o
bonde andando, entende? Não? Mas entenderá no decorrer
desta história. Enquanto isso, você pode ir se contentando
com as migalhas que o outro joga para você. Você merece
mais. Sempre mereceu.
Ah! Nossa! Isso cansa, porque esta história se repete em
minha vida e, como eu disse, vou me tornando mais uma vez
um grande jogador e não um grande romântico. E não… não
pense que sou amargo ou mal-amado. Definitivamente, meu
bem, o mal-amado aqui não sou eu! Preste bem atenção!
Certo… Desculpe-me por ter que ser assim, caro leitor.
Acredite em mim, é mais fácil fazer de conta e tratar todo
mundo bem, mas a triste realidade me afetou como mísseis,
enquanto meus sonhos e desejos tornaram-se um estorvo na
minha existência. Desculpe-me por estar sendo indelicado, é
que tudo isso me faz lembrar da minha situação. Não quero
brigar com o mundo…
Pode dizer que eu sou mesmo um mal-amado e que pre-
tendo projetar tudo isso que eu disse até agora no caro leitor.
Sim, poderá dizer isso, porque tem coisas que realmente não
posso deixar de fora e não posso deixar de compartilhar com
os dois ou três leitores deste meu escrito. Terei que contar
uma história minha e assim saberá por que eu disse tudo isso.
Saberá como eu sou uma contradição, mas não tão diferente

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Marc el o Vini ciu s

de você. Às vezes não cumpro o que digo. Sou tímido demais.


Tenho mania de dramatizar os fatos, mas a história que se
segue é real, e como é real. Mas desejaria do fundo de meu
coração que não o fosse, pelo menos só por um momento…
Não consigo concluir nada na vida, nem esta imbecil li-
ção de moral amorosa que tentei declamar ao caro leitor,
pois não consigo acreditar que estou vendo um lobo e um
bando de ovelhas vivendo pacificamente. Não consigo acre-
ditar nos meus pensamentos. Nem consigo acreditar no que
escrevo, porque não consigo me comunicar sabendo que tem
outra pessoa que poderá ler toda esta minha confissão. Sou
contraditório o tempo todo, ora preciso escrever isto, ora não
tenho coragem de escrever com sinceridade. Assim, meus
escritos são o registro, com sangue e plasma, deste desconfor-
to, e com eles venho buscando justificativas para uma esco-
lha drástica que tomarei no futuro e que poderá determinar
meus dias para sempre… A única coisa que desejo é o fim do
pesadelo. Acabar com essa mentira que está cada vez mais
doída. Parar com esse drama…
Mas uma coisa eu confessarei, e o caro leitor perceberá
no decorrer de meu escrito: quando amo uma mulher, eu
tenho granadas!
Não me sinto bem… Na verdade, ontem eu comecei a
escrever este texto, mas parei pelo mesmo motivo… Conti-
nuarei mais tarde, ou melhor, amanhã…

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Segunda Anotação

Ah! Como eu queria que ela fosse minha! No entanto,


isso não era possível. Não porque ela não poderia ser minha,
mas sim porque não poderia ser de homem algum. Não per-
tenceria a nenhum homem não por desejar ser livre, pois
ninguém é livre. O caso é que ela deixou bem claro que nun-
ca beijaria um rapaz.
Não escolhi isso, pois não se escolhe sexualidade para
amar. Meu caro leitor, o que é então o coração humano? Os
homens sofreriam menos se eles se esforçassem por tornar
suportável o que de fato não é o que se deseja, em vez de
ficarem a remoer o que poderia ser.1
Por momentos, me senti aqui perfeitamente bem com o
modo inocente e sincero como ela se expressava, que tantas
vezes nos fez rir, quando na verdade não havia motivos para
riso. Mesmo com a solidão de não podermos ser mais do que
bons amigos, era uma consolação para meu coração sempre
agitado permanecer ao lado dela.
O local em si, onde era de costume conversarmos, era
pouco agradável, mas em compensação os arredores ofere-
ciam belezas naturais indescritíveis no campus da universi-
dade na qual estudávamos, às vezes.

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Com certeza eu deveria desistir dela se soubesse que ela


jamais beijaria um rapaz? Certamente você, caro leitor, diria
que sim. Mas quem vive uma paixão verdadeira realmente
desiste? Se eu pudesse exprimir tudo que sinto. Se eu pu-
desse expressar aqui neste papel tudo que queima dentro de
mim com tanto calor e prazer, de modo que estes escritos
se tornassem o espelho da minha alma, você pensaria duas
vezes antes de me responder a essa pergunta.
Não sei se estou ficando louco ou se meu ardente cora-
ção é que produz essa ilusão paradisíaca, pois vejo todos ao
meu redor se apaixonarem. Ando nas ruas e vejo casais de
mãos dadas, vejo expressões felizes em seus rostos.
Sim, sim… Parece uma bela história, mas o que escrevo
não é nada belo. Eu me sinto terrivelmente triste em pensar
no meu mundo sem ela. Eu a amo, posso sentir, mas dizem
que amar não é tudo.
O que quer que eu faça? Eu sou um rapaz e ela, uma
moça muito linda. Havia uma curva delicada na sua cintura,
uma onda crescente nos seios e uns olhos castanhos. Belos
dentes, alinhados como soldados, com os quais mordia os
lábios quando se dizia nervosa, mas pronta para o que der
e vier, ou seja, pronta para enfrentar os desafios da vida. Eu
sempre prestava atenção a seus olhos, ao jeito como ela mu-
dava o olhar, quando conversávamos.
Se você me perguntar como é conviver com uma garota
que gosta de garotas, serei forçado a responder: “Da mesma
forma como se convive com qualquer tipo de pessoa”. Por-
que a espécie humana é igual na sua miséria. Muitos tentam
viver, ou melhor, sobreviver com tanto sofrimento, que isso
parece lhes tomar a maior parte do tempo; e mesmo os pou-
cos momentos de lazer que ainda lhe restam são vistos mais
como um escapismo de sua dor do que como momentos de

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puro prazer. Pobre destino humano, que, independente de


sua orientação sexual, é sempre atormentado e sofrido.
Uma vez ela me disse: “Ah! Como isso me aperta o cora-
ção! Ser incompreendida é o destino de todos aqueles que se
parecem comigo!”.1
Eu a amava enquanto ela se sentia infeliz por ser o que
era… Mas, na verdade, não era tão infeliz assim, pois des-
cobri recentemente que ela namorava outro alguém. Des-
se modo, arranjei um pretexto para isolar-me dela. Porém,
curioso, queria saber quem era esse outro alguém que con-
quistara seu coração. Seria mesmo outra mulher? E seria tão
bela quanto ela?
É impossível dizer como essa ideia me penetrou primei-
ro no cérebro, mas, uma vez concebida, tornou-se uma ob-
sessão dia e noite.2 Então, percorri aquela universidade de
ponta a ponta para saber quem ela amava tanto. Fui ao cole-
giado do curso dela para ter conhecimento de todos os seus
horários de aula e assim poder segui-la, sem que me notasse.
Comecei a fazer isso todos os dias. Eu precisava saber com
quem ela estava se encontrando. Sei que ela fazia isso às es-
condidas: a sociedade não permitiria que mulheres se amas-
sem e ela sentia medo disso. Pelo menos foi o que percebi
quando, um dia, ela me disse que não poderia me amar por
razões maiores que eu não poderia saber. Contudo, eu sabia,
mas fingi não entender o que ela dizia.
Então, escondido, noites e mais noites, eu a seguia de volta
para sua casa… Sei que o caro leitor imagina que sou louco.
Deveria, porém, ter-me visto ao executar meu plano. Deveria
ter visto como procedi cautelosamente, com que prudência,
com que previsão, com que precisão executei meu plano!
O caro leitor teria rido ao ver como eu a seguia no cam-
pus da universidade, entrando em matos, pisando em cocô

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de gatos, tentando fingir que estava tudo bem quando pas-


sava alguém que me via numa posição desconcertante, em
pé, atrás de uma árvore, como um bicho acuado e assustado,
querendo não ser visto.
Eu a escoltava de longe, mas era ela quem tinha o controle
de tudo e não sabia disso. Ah! Um louco seria precavido as-
sim? Diga-me que um louco teria tanta estratégia para seguir
alguém durantes dias e dias! Um apaixonado, sim, esse seria
capaz de criar a maior estratégia do mundo por seu amor.
Pois bem, fiz isso durante sete longas noites, toda vez que
ela ia para sua casa, depois das aulas. E nas manhãs, quan-
do a encontrava, sem temor, chamava por seu nome com
ternura e perguntava como ela havia passado a noite; como
se eu não soubesse o que ela tinha feito depois do pôr do sol
passado. Agia naturalmente, afinal era minha amiga, mesmo
que eu repudiasse esse rótulo.
Contudo, eu deveria dar um basta nisso. Não adiantava
segui-la sempre até a entrada de sua casa, pois como eu saberia
o que ela fazia lá dentro? De que adiantava toda noite terminar
minha estratégia de cara no portão? Era lógico que, da próxi-
ma vez, como um ladrão, eu deveria entrar em sua residência.
Na oitava noite, então, pulei o muro de sua casa sem sa-
ber se o cachorro estava solto ou se no quintal havia uma ro-
seira cheia de espinhos, pois nada disso me importava, já que
o que não podia era ficar parado do lado de fora de sua casa
e de sua vida, observando-a como quem assiste a um filme
no cinema enquanto come pipoca. O muro não era tão alto
assim; pelo menos, naquele momento, não parecia.
Já em seu quintal, eu via que a porta de entrada da casa
estava encostada. Desse modo, fui mais cauteloso do que de
hábito e abri um pouco mais a porta. O ponteiro dos minutos
de um relógio se movia mais rapidamente do que meus de-

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dos. Jamais, antes daquela noite, eu sentira tanto a extensão de


meus próprios poderes, de minha sagacidade. Mal conseguia
conter meus sentimentos de triunfo. Era bom pensar que ali
estava eu, a abrir a porta, pouco a pouco, e que ela nem sequer
sonhava com meus atos ou pensamentos secretos.2
Na sala e próximo à porta havia um criado-mudo e em
cima dele um livro colocado por ela ao entrar na casa, com
jeito de que depois o guardaria com calma em outro lugar.
Como a brecha da porta não me permitia ler o título de ime-
diato, com uma enorme curiosidade para saber do que se tra-
tava, eu deduzi ser um livro de preces. Imaginei isso porque
tinha uma capa ao estilo de obras antigas; nela os desenhos
eram um tanto retrô. Mas, com esforço, conseguir ler o título,
que era: Em Busca do Tempo Perdido — Sodoma e Gomorra.
O autor era o famoso Marcel Proust. Apesar de grande escri-
tor, não gosto dele, mas depois explico o porquê, se eu tiver
oportunidade melhor. Eu disse: se eu tiver… Entendeu bem?
Enfim, esqueçamos esse detalhe. Por causa de meus sen-
timentos de triunfo em relação ao meu plano, eu ri comigo e
com gosto, entre dentes, e talvez ela tenha me ouvido, porque
se moveu de súbito na sala, como se assustada! Pensa talvez
que recuei? Não! A sala estava escura, só com a TV ligada, e
havia outra pessoa no sofá. Seria sua amada? Seria a pessoa
que conquistara o coração de minha adorada garota? Tristes
perguntas eu fiz a mim mesmo naquele momento. A cada per-
gunta se manifestava em meu peito uma angústia maior.
Eu sabia que ela não poderia me ver pela abertura da
porta; então, continuei a avançar, cada vez mais, cada vez
mais, pois precisava saber quem era a outra pessoa que estava
com ela. Só que, por precaução, durante uma determinada
hora não movi um músculo, até poder perceber melhor com
quem minha linda garota conversava.

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Contudo, de repente, me possuiu um medo, pois eu esta-


va para ver o rosto de quem conquistara o coração de minha
amada. No momento, pensei: “Deus, estou aqui, me ajude!
Parece que meu peito vai explodir de tanta angústia. Escute
minhas orações, conceda-me o que peço, dê-me forças para
seguir até o fim com meu plano”.
Mas era muito medo. Era um medo sufocante que eu
sentia ali. Era como se eu estivesse presenciando a sombra
do poder da morte que nos cerca e amedronta todo dia. Era
como o choro de uma criança e sua pergunta angustiante:
“Mãe, vou morrer?”. Era como o chiar dos pneus de um car-
ro. O grito de dor de alguém. As sirenes das ambulâncias, das
viaturas da polícia, dos carros de bombeiros, que nos fazem
arrepiar a espinha, estarrecidos. Ou, então, no silêncio da
noite, a manifestação de uma dor e o angustiante medo da
morte. E mesmo assim, tudo isso era só um terço da sensação
que eu tinha ali, naquela porta.
Dizem que Jesus veio para libertar a humanidade do pe-
cado, da morte e do poder de Satanás, mas quem veio ou
virá nos livrar do amor, se este foi criado por Deus? É difícil
vencer o Demônio quando Deus se vale dele para existir.
Minha alma estava profundamente triste até a morte…
E aconteceu que meu suor se tornou como gotas de sangue
caindo sobre a terra. Como é tenebroso ter uma consciência
angustiada e trágica.
Para você ter uma ideia, tentei desviar essa minha in-
quietação para perguntas banais, tentando me distrair ou me
orientar emocionalmente, como: quanto tempo dura uma
manhã? A resposta era angustiante: quanto tempo você está
aí na frente da porta dela? Tudo retomava aquela situação,
de forma obsessiva e absurda.
Aí me veio outro questionamento: o que você faz aí na

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casa dela, seu insensato? Respondi para mim mesmo: ora,


o que seria da existência sem a observação da experiência
alheia? Afinal, já que estamos aqui, por que não ir até o fim?
Nossa! Tentei várias vezes desviar o foco de meus pensa-
mentos naquela hora. Tentei mais outras perguntas fora de
contexto, para me distrair daquele problema no qual me en-
contrava. Fiz mais perguntas sem sentido, como: Pinochet
era necessário? Poderia o Chile ter alcançado a atual pros-
peridade sem ele? Mas tudo se voltava para minha situação
diante daquela porta, quase vendo o rosto da garota que con-
quistara o coração de minha amada.
Sempre tentava me centrar em outras coisas para aliviar
minha angústia. Procurava uma resposta convincente para as
perguntas que não me saíam da mente.
Ah! Pensa que parei de tentar desviar meus pensamentos
para outros assuntos, no intuito de aliviar minha dor? Claro
que não, pois isso era preciso para que eu pudesse continuar
com minha missão. Assim, veio-me a pergunta mais angus-
tiante de todas: o que é a razão? Ou mesmo: para que serve a
razão? Digo angustiante, pois em nossas vidas estamos sem-
pre fazendo buscas que envolvem a razão como parâmetro…
O que eu estava fazendo ali, à porta da casa de minha garota,
era uma atitude racional?
Acho que não temos mais liberdade, não sabemos mais
nos decidir, o homem é privado da alma. Nunca houve época
mais perturbada pelo desespero, pelo horror da dúvida. Nun-
ca um silêncio mais sepulcral reinou sobre o mundo. Nunca
o homem foi menor. Nunca esteve mais irrequieto. Nunca a
alegria esteve mais ausente e a liberdade, mais morta.3 E eis
que grita o desespero: o homem pede gritando à sua alma, um
único grito de angústia se eleva nas trevas, pedindo socorro,
invocando o espírito: são a dúvida e a crise da razão.

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No meio dessa reflexão, próximo à porta da casa dela naque-


la noite, com tudo bastante escuro e só o reflexo da luz pratea-
da do luar iluminando as ruas, o quintal e a porta, de repente
ouvi uma voz aguda e muito elevada vindo da rua, emitido com
esforço e de modo que se podia ouvir ao longe a exclamação
sonora e forte para chamar alguém. Pedia socorro ou exprimia
sensação de dor, espanto, raiva, alegria ou qualquer outra emo-
ção forte; berro, brado, clamor; não sei bem. Assustei-me, o que
poderia ser aquele grito na madrugada?
E acredito que só eu ouvi aquela voz porque as meninas
pareciam se manter em casa em paz, sem reagir àquele grito.
Sei lá… Foi uma voz mesmo, eu acho; arguição, protesto ou
o grito de alguma consciência. Ou a voz de algum animal: o
grito da coruja… É, deve ter sido uma coruja… Ou um ato
de partida dos animais que correm num páreo. Ou um grito
de guerra, para excitar o entusiasmo das tropas em ataque.
Sei lá. Mas o que tem a ver a guerra com esse momento?
Que viagem mental eu fiz agora! Isso foi devido ao medo!
Você, leitor, deveria estar em meu lugar para saber quão ater-
rorizante foi tudo isso.
Pois bem… Sempre fujo do assunto e fico confuso com
minhas palavras. Como eu tentava dizer, sentia pavor porque
sabia que aquele momento era somente delas. As mensagens
eram infinitas em seus celulares, toda hora uma música avi-
sava a chegada de mais mensagens, mas nem disso elas que-
riam saber, só queriam viver aquele momento.
Depois que aguardei um longo tempo, com muita paci-
ência, ela, sem se mover muito, abriu um pouco, muito, mui-
to pouco, a janela da sala, em silêncio. Eu sabia que aquela
escuridão na casa era para passar aos vizinhos a impressão de
que não havia ninguém por lá e assim elas poderiam ficar à
vontade, pois o que as pessoas poderiam pensar? Duas mu-

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lheres juntas, amando-se, era um absurdo para as pessoas do


bairro. Assim, o pequeno deslocar que ela fez de sua janela
inseriu, por fim, um raio de luz apenas tênue como o fio de
uma teia de aranha a passar pela fenda e caiu sobre o rosto da
namorada de minha garota. E, ao contemplá-la, minha fúria
cresceu. Vi-a, com perfeita clareza.
E então, àquela hora morta da noite, vendo as duas ali
juntas, excitou-se em mim um terror incontrolável. Contu-
do, por alguns minutos mais, dominei-me e fiquei quieto.
Entretanto, o infernal bater de meu coração aumentava. A
cada instante ficava mais alto, mais rápido! Cada vez mais
alto, repito, a cada momento! Prestou bem atenção? Digo-
-lhe que eu estava nervoso por ver o rosto da pessoa que con-
quistara o coração de minha garota, de meu amor! Tentava
me controlar, porém o bater de meu coração era cada vez
mais alto. Julguei que ele fosse explodir!
Agora lhe conto como era o rosto de quem conquistou
minha amada… Aliás, não contarei de imediato, pois uma
coisa mais forte em mim tem necessidade de ser dita logo:
vendo as duas ali, poderia sentir claramente, por meio de
suas palavras, como minha garota amada achava bela e se-
dutora sua namorada, e quanto ela a desejava para apagar a
lembrança dos maus-tratos sofridos e dos preconceitos expe-
rimentados em sua vida.
Mas por que não eu? Por que teria que ser com outra
garota a melhor maneira de apagar o passado de homofo-
bia que sofrera? Eu sou homem, nada mais lógico que uma
garota namorar um homem para esquecer todo esse seu so-
frimento e ser aceita na sociedade. Por que não seria tão sim-
ples assim?
Está bem… Desculpe-me por ter que compartilhar esse
meu pensamento ignorante e estúpido. Sei que o que eu es-

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crevi agora não merecia o desperdício de uma boa leitura de


ninguém.
Não… Não era nada simples e ela estava feliz naquele
momento. Seria preciso repetir tudo isso palavra por palavra,
para dar a você, caro leitor, uma ideia da pureza desse afeto,
do amor e da fidelidade dela por essa outra garota. Não! Pala-
vra alguma pode exprimir a ternura que transparecia em seus
gestos e em seu rosto; por mais que eu me esforçasse, seria
sempre opaco e pesado.
Posso garantir-lhe que nem em sonhos eu me sentiria tão
puro. Não me ridicularize; afirmo-lhe que, só à lembrança
de um sentimento tão sincero e cheio de inocência, sinto-me
abrasado até o mais profundo de meu ser.1 A imagem dessa
paixão acompanhava-me por toda parte e eu, também presa
da mesma paixão, ardia e entristecia-me. Sim, entristecia-
-me, e por que não? Era a mulher que eu amava que estava a
amar outra mulher. Será que ela me amaria assim também,
se pudesse?
Pois bem… Cerrou-se a noite mais profunda em torno
de mim, enquanto elas se amavam. Na verdade, queriam ser
felizes juntas. Mesmo com o esforço de não serem vistas, no
fundo, não importava o que o mundo fosse falar sobre elas.
O amor que uma sentia pela outra era maior que qualquer
crítica ou olhar torto; pelo menos, era isso que eu acreditava
que tentavam fazer. Elas tinham uma à outra e isso era o
suficiente. Nossa! Como aquele amor era grande. Se uma
sofresse, a outra sofreria junto; se uma ficasse doente, a ou-
tra cuidaria dela. Aquilo, sim, era amor. A alegria que uma
sentia perto da outra era uma coisa impossível de explicar!
Elas só queriam se amar… Um momento! Deixe-me tomar
fôlego. Desculpe-me, caro leitor… Como é difícil escrever
estes desabafos; é muito difícil para mim, porque é a mais

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Marc el o Vini ciu s

pura verdade: estou falando de uma garota que jamais será


minha… Às vezes, brigo comigo mesmo, não me entendo,
fica tudo confuso, desisto de escrever sobre isso, depois volto.
Na verdade, eu desisto mesmo, acredite.
Ah! Não contarei como era o rosto da outra garota, mas digo
que era tão belo quanto o dela… Não estou me sentindo bem
agora… Neste momento, depois de tanta conversa, o caro leitor
deve, no mínimo, estar se perguntando qual era o nome de meu
amor, não é? O nome dela era Aline; Aline Rios.
Desculpe-me, pois tenho que me retirar agora. É sério,
não me sinto bem. São duas horas da manhã e, se eu conti-
nuasse a escrever, ficaria acordado até o romper do dia. En-
tão, amanhã continuarei.
Boa noite.

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Marc el o Vini ciu s

Terceira Anotação

Odeio estar loucamente apaixonado por ela! Do fundo


de minha alma eu digo: eu a odeio!
Desculpe-me por ter que começar este novo escrito as-
sim, mas eu não estava suportando mais essa situação! Po-
rém, me sinto melhor agora. O amor faz mal.
Pois bem. Hoje estava chovendo e por causa disso resolvi
sair mais cedo da universidade. Peguei o meu guarda-chuva
e fui em direção à minha casa. Só que, quando eu estava
na calçada, encontrei Aline de cabelos molhados, que, sabe
lá Deus como ou por que, também resolveu sair mais cedo
da universidade, no exato momento em que eu saía, quase
como se tivéssemos combinados. Ora, bolas! Se ela também
ia embora mais cedo, devido à chuva, por que tinha que ser
no exato momento, no mesmo segundo, em que eu saía?
Nem éramos da mesma sala de aula! Que coincidência de-
moníaca foi essa?!
Então, quando me viu, ela disse:
— Posso pegar uma carona no seu guarda-chuva?
Aline estava na chuva e eu logo à frente, andando, sem
nada dizer. Eu com meu guarda-chuva, ela encolhida, es-
condendo a bolsa dos pingos de água que caíam pela rua.
Assim, repetiu:

25
Minh a Q u er i d a Alin e

— Dá uma carona?
As coisas ficam um tanto confusas nessas horas, quando
uma situação nos pega de surpresa. Fiquei andando pela cal-
çada, quietinho porque não sabia bem o que dizer. Ela, toda
molhada e eu, apaixonado! Porém, andando lentamente e
sem jeito, acenei com a cabeça positivamente.
Então, ela se aproximou e ficou encolhida debaixo do
meu guarda-chuva, encostada em mim, eu fiquei bastante
ansioso ao senti-la tão próxima.
— Você tá toda molhada — eu disse, tentando puxar um
assunto.
— Nem me fale — respondeu ela, preocupada com a bolsa.
— E essa chuva? — disse eu.
— Aumentou — disse Aline.
Aline, toda molhada e eu, seco. A chuva veio com tudo
e ela disse:
— Corre, corre!
Assim, corremos e paramos na padaria. Depois de um
silêncio breve, Aline disse:
— Já estou toda molhada mesmo, vou tomar banho de
chuva!
Logo a contestei, apreensivo:
— Não faça isso, por favor!
— Por que não?
— É que… Vai que pega um resfriado? — eu disse, um
pouco confuso.
Aline ficou pensativa e desistiu. Dei graças a Deus, pois se
ela fizesse isso meu mundo cairia de vez. Imagine-a saltando
entre as poças d’água, roupas molhadas, sorriso nos lábios e
cabelos ao vento? Meu coração arrebentaria de tanta paixão!
Ainda com uma expressão pensativa, ela disse, de repen-
te:

26
Marc el o Vini ciu s

— Vou embora!
— E essa chuva? Eu te levo! — disse eu, rindo, e continuei
a falar: — Vou pegar o guarda-chuva, a gente vai apertado!
Ela me olhou e, também rindo, respondeu:
— Estava demorando para soltar uma piadinha!
E assim, demos risadas.
Assim que saímos da padaria, ela começou a cantar.
Numa voz alta e afinada. Começou com a música “Novos
Horizontes” dos Engenheiros do Hawaii e foi emendando
outras canções, como “Pra Você Guardei O Amor”, cantada
por Nando Reis, uma versão acústica de “Vou Te Levar”, do
Lobão, “Quarto de dormir” cantada por Arnaldo Antunes.
Mas, é claro que eram só os trechos das músicas, eram cortes
para que permitisse misturar as canções em uma espécie de
Pot-pourri. E o que ela costumava ouvir, de fato, era as de
Lana Del Rey, porém seu inglês não permitiria que cantasse
naquele momento. Assim, logo no início, ela disse para mim:
— Canta!
Só que não foi possível continuar a conversa. Minha ten-
tativa tola de querer paquerar Aline caiu por terra também,
pois o sol resolveu aparecer e o corpo dela, ainda todo mo-
lhado, desgrudou de mim.
— Viu o sol? — perguntou Aline, sorrindo, e continuou
a falar, mas mudando de assunto: — Ah! Você soube que
vai ter paralisação na universidade na próxima terça-feira?
São os professores reivindicando melhorias que o Governo
prometeu, mas não cumpriu! Fiquei surpresa, pois eu nem
esperava uma greve por enquanto. E você?!
Não respondi, mas pensei, com uma expressão enfadada
e irônica no rosto: “Não esperava era o sol aparecer”.
Ela não se importou com minha falta de resposta.
Estava se secando da chuva, então não precisaria mais do

27
Minh a Q u er i d a Alin e

guarda-chuva, e eu, um pouco mais seco, agora não serviria


para nada. Ela já tinha o sol.
— Vou para casa — disse ela.
— Vou com você — disse eu, querendo ficar mais um
pouco com ela.
— Não precisa, tem sol!
Então fiquei calado, olhando para o chão, enquanto ela
continuou:
— Obrigada, tchau!
E desse modo ela se foi, seguindo o caminho da rua de
sua casa. Eu não disse nada, só pensava no que fazer enquan-
to ela partia. E não era por falta de assunto, mas medo de
incomodá-la.
Mudando um pouco de assunto, gostaria de comentar o
que eu estava pensando agora, a ponto de interromper estes
escritos: não sei mesmo se faz algum sentido ficar contando
historinha. Às vezes acho que sim, às vezes acho que não…
Ah! Chega de tanto acho-que-acha, já deu! Mas parece-me
que há um fato nessas histórias que explicará alguma coi-
sa no final. Não sei… Entretanto, de qualquer forma, não
me sinto com disposição para continuar com isto hoje. Peço
novamente desculpas por essa expressão confusa. Não estou
bem, de novo…
Ai de mim! Que vazio horrível eu sinto em meu peito!
Quantas vezes digo isso a mim mesmo…1
Continuarei amanhã… Boa noite.

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Marc el o Vini ciu s

Quarta Anotação

Eu começo a escrever aqui, porque nunca consigo dor-


mir sem antes pensar como será o próximo dia. Ou como
será minha vida daqui a quase cinco anos, quando terminar a
universidade. Sempre planejando o implanejável. Tentando
ser dono de tudo e de todos à minha volta. E essa ansiedade
me deixa horas e horas sem dormir. Mas, de vez em quando,
essas angústias são substituídos por histórias, poemas, e assim
eu me levanto, faço anotações e consigo dormir.
Minha história de amor e sofrimento me corroeria a
alma, mas há já algum tempo que até isso deixou de me in-
comodar. Abandonei também quase que por completo os es-
tudos na universidade e não queria mais me preocupar com
eles. Na verdade, estavam me enchendo o saco os estudos, os
estudantes, os professores e a universidade.
Estudantes são criaturas barulhentas, mas se o professor
lhes faz um questionamento, mesmo deixando-os à vontade
para dizer o que bem entenderem, eles fazem um silêncio
angustiante. É preciso convocá-los, provocá-los, escolher al-
guém entre eles, receber um monte de “eu, não!”, até que
um deles resolva falar.15
Estudantes têm medo. Têm medo de falar, têm medo de
responder a perguntas, têm medo das provas, têm medo das

29
Minh a Q u er i d a Alin e

notas, têm medo de matemática, têm medo de ir às aulas, mas


têm medo das faltas. Estudantes têm medo da entrevista de
emprego, têm medo de sua fragilidade perante o mundo mo-
derno e exigente, um mundo que nos lembra o livro A Meta-
morfose de Kafka, mostrando, de certa forma, as tentativas das
pessoas de encontrarem a si mesmas, saber quem são como
sujeitos desejantes em contraponto ao peso do dinheiro.
Agora, caro leitor, você acha que eu deveria também ficar
nessa, como um estudante que vive com esses medos e com
desejos irrealizáveis? Tinha outra vida para viver e o nome
dessa vida era Aline.
Minha vida seria me voltar para Aline. Sei que a vontade
gera a angústia e a dor e que, os mais tenros momentos de
prazer, por mais proveitosos que possam vir a ser, são apenas
intervalos perante a infelicidade 4. Era assim que eu via o
mundo, depois que conheci Aline…
Lembro-me que, em um dado momento, quando ia para
as aulas, não me atrevia a sair de meu cantinho mal ilumina-
do naquela sala. Assim, ninguém repararia em mim; porém,
tudo estava ficando cada vez mais insuportável e meu canti-
nho mal iluminado não dava mais conta de minhas pertur-
bações, porque não parava de pensar nela. A cada minuto
que se passava em sala de aula meu corpo esfriava. Meu co-
ração batia mais forte e uma ansiedade me dominava, isso
por saber que Aline igualmente estava em algum lugar na
universidade. Eu imaginava coisas como: será que ela está as-
sistindo à aula na sala ao lado? Será que eu a encontrarei no
corredor da universidade hoje? Será que ela falará comigo?
Eram tantas perguntas íntimas que eu nem mais prestava
atenção ao que o professor falava.
Recordo-me também de outros momentos em que, quan-
do os dias se passavam e o mesmo mal-estar na sala de aula

30
Marc el o Vini ciu s

surgia constantemente. Então, um dia, afastei-me dali mui-


to perturbado. Minha perturbação ia aumentando cada vez
mais. Quando saí da sala, parei várias vezes pelo corredor,
como se estivesse subitamente preocupado com alguma
coisa. E, por fim, já andando pelo campus da universidade,
murmurei, sem muito sentido:
— Oh, meu Deus. Como tudo isso é repugnante! E se
me acontecesse esse horror?
Surgia em mim um sentimento de imensa repugnância,
que começara a oprimir e a mortificar meu espírito desde o
momento em que vira Aline pela última vez. Seria meu amor
se transformando em ódio? Não, não… Acredito que não, mas
algo de errado acontecia comigo, pois o mal-estar tomava ago-
ra tais proporções e revelava-se a mim tão claramente, que não
sabia onde refugiar-me para fugir de minha tristeza.6
Eu evitava o convívio com as pessoas e principalmente com
Aline. Não podia aceitar Aline como uma amiga e, pior, saber
que ela amava uma garota. Mas algo de novo se passava em
mim e, ao mesmo tempo, despertava-me também uma sede de
convívio. Estava cansado de todo aquele tempo de tristeza, soli-
dão e sombria expectativa, e por isso ansiava por ver Aline, ainda
que só por um momento, fosse qual fosse. Sentia falta dela. Sem
notícias, sem saber seu paradeiro, às vezes me surgia uma curio-
sidade em saber se ela ainda estava namorando.
Eu amava muitas coisas nela e, sempre que a ficava es-
perando na universidade, pensava nisso; amava os seus cabe-
los lisos, com sua tintura exótica de tom cinza, que tinham
um brilho especialmente belo ao sol, e o perfume que eles
exalavam; amava o jeito como ela me olhava porque sentia
tudo em um só olhar; o jeito como me abraçava e logo em
seguida suspirava. Também amava o jeito como ela não per-
cebia isso e acabava repetindo o gesto todas as vezes que nos

31
Minh a Q u er i d a Alin e

abraçávamos. Amava o jeito dela, as manias, a voz que me


deixava calmo mesmo se o mundo inteiro estivesse explodin-
do; amava como ela se sentia incomodada quando andáva-
mos de mãos dadas, dizendo para mim que não poderíamos
nos comportar assim, afinal éramos só bons amigos. Amava o
apetite enorme dela, e mesmo assim ela continuava magra;
amava o fato de ela ser eclética, e achava engraçado quando
ela estava com a cara emburrada, porque, no fim do dia, eu
tirava vários sorrisos dela.
Sabe como a vi pela primeira vez? Na fila do Restaurante
Universitário, o famoso Bandejão…
Eu estava em pé e ela estava próxima a uma mesa, al-
moçando. Quando a vi, meu corpo vibrou! Às vezes, dão-se
encontros, até com pessoas totalmente desconhecidas, que
despertam nosso interesse logo ao primeiro olhar, assim, de
repente, de improviso, antes de se ter trocado uma só palavra.
Foi essa a impressão que se manifestou em mim ao ver Aline
pela primeira vez.
Ainda no restaurante, de repente, uma amiga minha,
na fila, saiu correndo feliz, foi até Aline e a cumprimentou.
Acha que eu deixaria passar isso em branco? É claro que não.
Quando essa minha amiga voltou para a fila, pedi que me
apresentasse a Aline, mas tudo ficou somente na promessa.
Então, fui eu mesmo que tive a cara de pau de ir puxando
papo com ela nos outros dias, no Restaurante Universitário,
na fila e onde quer que pudesse encontrá-la, até que nossa
amizade aumentou.
Mas não foi tão simples assim o surgimento da nossa ami-
zade. Acredito que nossa amizade floresceu de fato quando
descobri que Aline tinha algumas amigas da universidade no
mesmo prédio em que eu morava. Na verdade não era um
prédio e sim uma espécie de albergue com quitinetes, que

32
Marc el o Vini ciu s

descreverei melhor depois. Ela costumava visitar as amigas e


assim aproveitava para me ver. Para ser sincero, era eu que
aproveitava para vê-la. De início puxava alguns papos sem mo-
tivo, conversa boba para nos aproximarmos; e descobrimos ter
algumas afinidades de visão política e, principalmente, litera-
tura. Ela gostava muito de ler, além de música. Trocávamos
alguns livros e discutíamos sobre eles depois.
Não me aproximei muito das amigas dela que moravam em
meu prédio, só o suficiente para que servissem de ponte entre
eu e Aline. Agi de má-fé e as usei ao meu favor. Confesso.
A gente não faz amigos, reconhece-os. Parece estranho
que algumas afinidades que tínhamos permitissem, com o
tempo, é claro, aprofundar a nossa amizade. Mas o convívio
tem essa força. Além do mais, a amizade é aquela relação
que nasce de uma desconhecida afinidade, de uma simpatia
de todo inexplicável, de uma proximidade afetuosa para com
a outra pessoa. 5 Por mais que digam que em toda a amizade
há uma troca ou interesses, às vezes essa troca é muito sutil e
assim dizemos: “gosto dessa pessoa de graça”. A amizade vive
do desinteresse, da confiança e da lealdade.
O que não era necessariamente o meu caso. Eu era bastan-
te antissocial, me relacionava artificialmente muitas vezes e
as pessoas com quem eu queria de fato estar perto eram raras.
Para ter uma ideia, amigo mesmo eu só tinha um e mesmo as-
sim passávamos um bom tempo sem nos ver. Até por telefone
pouco nos falávamos, porque nem sempre tínhamos créditos
no celular. Vida de estudante, sempre sem dinheiro...
Mas éramos amigos, sim. A amizade possui raízes tão
profundas que, mesmo passado muito tempo, ao reencon-
trarem-se os amigos, os tempos de ausência se anulam e se
reatam os laços e até se recordam da última conversa havida
há muito tempo. 5

33
Minh a Q u er i d a Alin e

Mesmo que fosse raro nos encontrarmos, gostava desse


meu amigo. Visto que não sou todo mau, nesse sentido, não
é? Pois bem... Tínhamos idéias parecidas sobre arte e polí-
tica. Ah! História também! Na verdade, ciências humanas
e sociais sempre foram o nosso forte! Conhecemo-nos num
projeto universitário sobre cinema e lembro-me que a gente
sempre prometia realizar um curta-metragem. Ele era estu-
dioso e fascinado por cinema (eu pensava: “ele ainda será
um grande cineasta”), eu também gostava, como gostava de
fotografia e literatura também. Mas tudo ficava na promessa
e o nosso curta-metragem não saía do papel.
Sim, já em relação a Aline, da minha parte eu tinha um
interesse muito claro: namorá-la. Já da parte dela, não sabia
ao certo, mas sei que ela sempre dizia:
— Espero ser sua amiga sempre!
Ela vinha visitar as amigas dela no meu prédio e, conse-
quentemente, nos encontrávamos aqui na minha quitinete,
como também no dia a dia da universidade. A rotina nos
aproximou. No início, ela era doida para contar as novidades
de suas leituras dos romances que eu lhe emprestava. Depois
fomos achando outros meios de ligações e motivos para con-
versas, o que é natural. Para ela, fazer amizade era essencial.
Uma vez ela me disse:
— Cuidar da amizade é preocupar-se com a vida, com as
aflições e as alegrias do amigo e da amiga.
Eu ri e respondi:
— Você está muito poética, tem lido demais esses roman-
ces, não?
— Sempre fui assim. Sou uma pessoa fácil de ter amigos
— disse Aline, rindo.
Realmente, por onde ela andasse, sabia fazer amigos. Ali-
ne sabia sorrir com as pessoas e principalmente comigo. Era

34
Marc el o Vini ciu s

só alegria. Quando ia pela rua, todo o caminho, os buracos,


os papéis de bala jogados ao chão, a brisa, as nuvens, as ár-
vores, os pássaros, o tempo; tudo a reverenciava para que ela
pudesse passar.
Ah! Aline. Como tu és perfeita...
A nossa amizade cresceu tanto que chegamos a ponto de
simplesmente estar um do lado do outro sem falarmos nada.
O silêncio era o bastante. Assim, nos olhávamos firmes e sem
saber o que dizer, então ríamos, dizíamos várias palavras sem
ordem nem significado, nos comportávamos como crianças.
O caro leitor há de concordar que as pessoas mais felizes
são aquelas que vivem, no seu dia a dia, como crianças. Sim,
eu era infeliz, mas ao lado dela, eu era uma criança.
Enquanto eu era feliz ao lado dela, porque a amava como
uma mulher, ela era feliz ao meu lado por achar, penso eu,
que é no sofrimento e no fracasso existencial, profissional
ou amoroso que se comprovam os verdadeiros amigos. Eles
são como uma torre fortíssima que defende o frágil castelo
de nossas vidas peregrinas. É o que eu entendia da visão de
mundo dela, nas nossas conversas. 5
Aline era feliz, mas tinha lá suas infelicidades, que, por
algum motivo, não compartilhava comigo. Às vezes tinha um
ar de cansada, mas não me dizia nada ou quase nada, só algu-
mas insinuações. Estranho isso... Contrariava o que eu achava
que ela pensava sobre as amizades. Pelo menos era isso que
tinha para contar sobre ela. Se havia outro motivo para ela
estar comigo eu não sabia, por isso retorno ao que disse antes:
a amizade é aquela relação que nasce de uma desconhecida
afinidade, de uma simpatia de todo inexplicável.
Até eu que sou antissocial, pelo menos um amigo, mesmo
que fosse raro aparecer para me ver, eu tinha. Portanto tenho
bagagem para dizer algo sobre isso. Claro, procurava não de-

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Minh a Q u er i d a Alin e

monstrar esse meu lado antissocial o máximo possível. Eu sa-


bia fazer sala. Apesar de que me sentia muito irritado ao lado
de outras pessoas. Assim, Aline, acredito, nunca conheceu
esse meu lado triste. O problema é que essa minha tática de
socialização com outras pessoas estava me desgastando mui-
to. Não sei até que ponto suportaria, principalmente depois
de conhecer Aline, uma das valiosas exceções, fazendo meu
mundo se voltar só para minha querida Aline.
Com o passar do tempo, nossa amizade se fortaleceu tan-
to que ela já tinha a chave da minha quitinete. Na verdade,
eu lhe dei essa chave porque ela passou uns tempos sem con-
dições de pagar o aluguel de onde morava e, morando com
amigos, de casa em casa, ela não tinha moradia fixa, assim
dei minha chave para que viesse morar comigo. Azar o meu,
ela chegou até a frequentar minha quitinete por dois dias,
mas logo apareceu uma amiga dela para dividir um aluguel.
Ora, ela era muito comunicativa, era certo que iria aparecer
outra garota para Aline dividir o aluguel. E como ela era uma
mulher, era mais conveniente ficar com a tal amiga do que
comigo, que sou homem. Mas a chave da minha quitinete
Aline manteve consigo e fiz questão disso, seria mais um mo-
tivo para continuarmos nos encontrando e, acredito, quem
sabe, fortalecer nossa intimidade. Depois ela conseguiu uma
bolsa na universidade, complementando sua renda e poden-
do voltar a morar sozinha. Foi só uma fase difícil, que muitos
estudantes passam.
Apesar de falar de amizade, mesmo repudiando em par-
tes esse termo, para mim, a relação mais profunda era a ex-
periência do amor. Principalmente o amor puro, que logo
comentarei o que é. O amor traz as mais felizes realizações
ou as mais dolorosas frustrações. Nada é mais misterioso do
que o amor. Ele vive do encontro entre duas pessoas que um

36
Marc el o Vini ciu s

dia cruzarem seus caminhos, se descobriram no olhar e na


presença e viram nascer um sentimento de enamoramento,
de atração, de vontade de estar junto até resolverem fundir as
vidas, unir os destinos, compartilhar as fragilidades da vida.
Nada é comparável à felicidade de amar e de ser amado. E
nada há de mais desolador, nas palavras do poeta Ferreira
Gullar, do que não poder dar amor a quem se ama.5 E isso
era o meu caso: não podia dar amor a Aline, não um amor de
um homem para uma mulher.
O triste é que com o tempo estávamos nos tornando gran-
des amigos e meu medo era de não passarmos disso. Se bem
que ninguém namora alguém que não é nem amigo.
Enfim, todos esses valores, por serem os mais preciosos,
são também os mais frágeis, porque estão mais expostos às
contradições da existência humana. Cada qual é portador de
luz e de sombras, cujas raízes alcançam experiências bem-
-sucedidas ou trágicas que deixaram marcas na memória.5
No meu caso foram experiências trágicas, e o leitor saberá o
porquê comentei isso.
Enfim, com uma amizade mais sólida, depois da carona
que dei a ela no meu guarda-chuva, cujo episódio até comentei
aqui antes, e por tudo que eu disse até agora sobre amizades, eu
não tinha mais o que fazer a não ser me declarar para ela. Iria
esperar até quando? Até ela acabar o estágio? Até ela voltar para
sua cidade natal? Será que tem um tempo exato para dizer essas
coisas? Acredito que não. Então, apesar dessa rotina, foi possível
para mim confessar a ela que estava apaixonado.
Sim, isso mesmo, leitor. Não demorei muito para de-
monstrar meu interesse. Mas ela nem pareceu espantada.
Pareceu indiferente, fez de conta que não me entendia. To-
davia, no decorrer dos dias, eu insisti e fui bem mais direto.
Certa vez eu disse:

37
Minh a Q u er i d a Alin e

— Aline, sou apaixonado por você desde que a vi!


Eu disse isso de repente, sem pensar duas vezes, quando
estávamos sentados no banco do jardim da universidade. Fiz
isso num susto, sem contexto, senão, poderia ser que eu fa-
lhasse e nunca mais tivesse coragem de dizê-lo de novo. Mas
ela me respondeu friamente, até um pouco confusa, como se
já esperasse isso de mim:
— Somos só amigos e, por mais que eu quisesse, nunca
poderíamos namorar... Um dia, quem sabe, você saiba o por-
quê... — disse Aline, meio que misteriosamente.
Assim, o que parecia uma resposta tão banal, mesmo
confusa, me despertou naquele momento uma inquietação
antes não sentida. E mesmo estando ao meu lado, me encon-
trei aqui sozinho, me senti longe dela, que antes colocava cor
na minha vida... Lembrei algo de Aline, um detalhe, que foi
a forma comum como nos conhecemos, as poucas palavras
trocadas pelo receio de ser mais uma pessoa em meio a uma
lista de desconhecidos da universidade, mas não fui.
O tempo passou, as afinidades surgiram, os conheci-
mentos sobre a vida um do outro, os desabafos e com eles os
primeiros conselhos, e assim o que muitos não acreditam e
tão pouco levam adiante se fez verdadeiro, a nossa amizade.
Confesso que sempre fui receoso nessa questão, repito: sou
antissocial; conheci pessoas que hoje fazem parte da minha
vida, e há outras que de certa forma quero esquecer; mas
com Aline foi diferente.
Hoje, quase todos os meus amigos se tornaram virtuais,
devido ao advento da internet, a qual nem tenho usado mui-
to. Particularmente adorei a virtualização das amizades pelas
redes sociais, não precisava mais fazer sala com muita fre-
quência, pois mesmo aqueles poucos que estiveram comigo
estão longe.

38
Marc el o Vini ciu s

Por fim, quero dizer que o prazer de ter Aline quase todos
os dias aqui, em seus momentos de gracinhas ou de tristezas,
fazia-me feliz por saber que ela participava da minha vida.
Pena que carregamos o rótulo de ser só bons amigos. Mas
ainda acredito que isso vai mudar. Farei ao máximo para que
a mudança aconteça e ela se torne minha de verdade.
E assim foram nossos dias até este momento, no qual es-
crevo para o meu amigo leitor.
O caro leitor está com pena de mim? Acha que mendigo
o amor dela? O amor de uma lésbica que só quer minha
amizade, assim como ela quer a amizade de qualquer um só
pelo fato dela ser carismática? Tem pena de mim por isso?
Hã? Diga-me?! Tem pena! Por que haveria de ter pena? Por
que há de ter pena de mim? Diga! É assim mesmo. Não há
motivo. O que me deve fazer é me cravar em uma cruz e não
ter pena de mim, pois não é de alegria que eu tenho sede,
mas de tristeza e de lágrimas. Imagina você, leitor, que estes
meus escritos me trouxeram a felicidade ou o alívio? O sofri-
mento, o sofrimento é o que eu procurava em minha escrita;
tristeza e lágrimas, e encontrei-as realmente!
E se… e se no meio dessa amargura eu fizesse uma bestei-
ra? E se eu dissesse que sim, que desejaria a morte da namora-
da de Aline? Eu seria um homofóbico por isso, um assassino
ou um imoral? Não, não seria homofóbico. Sabe o que signi-
fica de fato homofobia, meu caro leitor? Homofobia é o pre-
conceito, o medo irracional em relação às lésbicas e aos gays.
Como eu seria homofóbico se amava uma garota lésbica?
Mesmo que Aline fosse uma garota que amava outra
garota, meu ódio não me tornava homofóbico, pois minha
vontade de dar fim à vida da tal namorada era por motivos
maiores do que a orientação sexual dela. Assim, não posso
ser acusado de homofobia, pelos motivos que comentei an-

39
Minh a Q u er i d a Alin e

teriormente e por ter uma ideologia maior: o amor, o amor


que sinto por Aline.
Então eu seria um assassino? Perdoe-me, caro leitor, por-
que qualquer um de nós já pensou em matar alguém. Sei
que dirá que o ato de matar é diferente do ato de pensar em
matar, mas, se seguimos esse raciocínio, se o ato em si de ma-
tar caracterizasse a pessoa como assassina, como caracteriza-
mos aquela pessoa que tentou salvar alguém e por descuido
a matou sem querer? E se existisse uma pessoa bêbada na li-
nha do trem, correndo o risco de ser esmagada pelo metrô, e,
de repente, com um espírito altruísta, surgisse outro alguém
que a segurasse pela camisa para livrá-la da morte, mas, sem
querer, por azar, acabasse segurando erroneamente a pessoa,
fazendo com que seu gesto de ajuda empurrasse o bêbado
para o centro dos trilhos, facilitando e até induzido sua mor-
te de forma mais precisa e eficaz? Esse alguém altruísta se-
ria um assassino? É claro que não! Seria, de fato, homicídio
culposo, o que não tem a intenção de matar, e chamá-lo de
assassino seria pejorativo demais nessa situação e desumano,
sempre é preciso analisar o contexto. Mas e aquele que fin-
gisse querer ajudar uma pessoa doente em uma enfermaria e
propositadamente injetasse no paciente um veneno mortal,
por exemplo? Teríamos aí um assassino? Obviamente que
sim! Pois o que o faz um assassino não é sua ação em si, mas
sua intenção na ação. Apesar de que, essa pessoa assassina,
poderia passar impunemente. Veja quanta injustiça, não?
E se você, caro leitor, já teve a intenção de matar alguém,
já desejou isso, você já é um assassino. Todos nós já dese-
jamos que alguém morresse, que sumisse da face da Terra;
pelo menos uma vez na vida. Todos nós somos assassinos em
potencial. A ação em si só serve para que as leis dos homens
atuem. Então, também não me julgue um assassino.

40
Marc el o Vini ciu s

Como não ver Aline vibrar de alegria quando passava,


mesmo que muito, muito raramente, a notícia de que um
homofóbico fora morto? Sim, isso era possível! Pois ela tinha
uma ideologia: a justiça. Para ela, tirar a vida de um homo-
fóbico era uma questão de justiça, mas não sejamos tão cru-
éis. Quantos de nós não torcemos pelo herói ou mocinho do
filme e vibramos por cada pessoa que ele mata até salvar sua
amada das mãos do malfeitor?
Percebeu que a vida, em nosso íntimo, não está acima
de tudo? O que está acima de tudo é um tipo de vida que se
encaixe com nosso ideal, com nossa ideologia. Se uma deter-
minada vida corresponde ao que achamos certo, ela poderá
ser preservada; caso contrário, é melhor que o vilão morra,
mesmo que seja no filme, ou até na vida real.
Quantas pessoas se alegram quando um bandido morre?
Então, não se iluda pensando que somos sujeitos que con-
sideram a vida acima de tudo, pois primeiro devemos nos
perguntar: que vida é que está acima de tudo? E em que
contexto? É a ideologia que está acima de tudo, não a vida,
neste condicionamento social violento.
Em um argumento mais amplo, sempre o mesmo: a
guerra na Faixa de Gaza, cem a um. Para cada cem pales-
tinos mortos, um israelense. Gente perigosa, é a justificativa
para o outro bombardeio, a cargo dos meios de manipulação
de massa, que nos convidam a achar que uma vida israelense
vale tanto quanto cem vidas palestinas. Mais uma vez, a ide-
ologia acima da vida.
Mas antes de dar cabo à namorada de Aline, devo assassi-
nar outra lésbica, para ver se sou capaz de levar minha ideia
até o fim. Se eu conseguir, ela será a próxima vítima. Porém,
o caro leitor pode estar me perguntando o porquê de não
tentar matar qualquer pessoa e sim necessariamente uma

41
Minh a Q u er i d a Alin e

lésbica. Eu lhe respondo: se uma desgraça acontecesse com


um heterossexual, isso nada abalaria Aline. Mas, se aconte-
cesse com uma lésbica, ela perceberia que conviver com essa
orientação sexual é mais perigoso do que conviver com um
heterossexual.
Sim, o leitor pode estar me perguntando novamente: o
raciocínio não é legitimado pelos fatos. Afinal, nós sabemos
que Aline já sofreu homofobia e com certeza já viu notícias
de homossexuais sendo vítimas de crimes de ódio. Não tem
sentido você achar que precisa matar mais uma lésbica para
que ela se sinta ameaçada pela proximidade com outras lés-
bicas. Ela já vive ameaçada, e sabe disso!
É claro que tem sentido, leitor! Uma coisa é você saber
que a sociedade está violenta, outra coisa é você viver essa
violência, como ter um parente ou amigo seu morto por um
assalto, por exemplo! E sim, até aonde sei, Aline sofreu ho-
mofobia, mas devido ao preconceito de pessoas do seu bairro,
tomando ações como: um olhar desconfiado da população,
palavras pejorativas quando ela passava entre alguns garotos
e outras humilhações dessa natureza. Porém, ao nível que
pretendo executar, que eu saiba, ela nunca experimentou
tão de perto assim. Quando a violência bate à sua porta, aí
que é você percebe mesmo a gravidade do problema.
Além de aumentar a possibilidade de ela se interessar por
um heterossexual, devido a esse trauma e porque a sociedade
é tão moralista — mais precisamente, a ter um interesse por
mim —, ao dar fim à sua namorada, dessa forma drástica, e
por tudo que eu disse até agora, o caminho para mim estará
mais aberto do que nunca para poder tê-la como namorada.
Percebe a sutileza de minha estratégia?
Tenho certeza de que Deus agora estava me dizendo:
“Perdoados sejam também agora teus muitos pecados, por-

42
Marc el o Vini ciu s

que amaste muito”. Foi isso o que senti há pouco em meu


coração, quando relatei isso a você, caro leitor.
Nossa! Eu senti uma náusea e desmaiei por alguns se-
gundos! Mas agora estou melhor. Acho que é bom parar com
estes escritos por hoje. Como eu vinha dizendo: Deus me
entende, então, havemos de compreender tudo! E todos hão
de compreender. E você, caro leitor, e Aline também com-
preenderão… Senhor, venha a nós o vosso reino.
Boa noite!

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Marc el o Vini ciu s

Quinta Anotação

No dia seguinte, já tarde, despertei depois de um sonho


agitado, e o sono não foi suficiente para reparar minhas for-
ças. Acordei mal-humorado, azedo, irritado, mau, e passei
com aversão o olhar por minha pocilga. Era uma espécie de
quitinete, com clima que se tornava pesado e nervoso. Sem-
pre sombras pesarosas iam surgindo dos cantos do ambiente,
carregado de densos espectros ao anoitecer. Meu quarto era
quase claustrofóbico, cheio de pó a desprender-se da parede
por todos os lados, e com um teto tão baixo que um homem
alto mal poderia se manter de pé. O mobiliário harmonizava
com o ambiente; havia uma escrivaninha sobre a qual repou-
savam alguns livros, que por se encontrarem cheios de poeira
poderia deduzir-se que havia algum tempo que ninguém os
folheava. Existia também uma cômoda de madeira que já
conhecera dias melhores, uma televisão de 14 polegadas no
canto e uma estante baixa. Era uma desordem: as gavetas
estavam abertas, camisas e calças espalhadas pelo chão.
Pois bem. Como eu estava comentando, despertei depois
de um sonho agitado. Sonhei que dava uma coronhada numa
garota da mesma rua de Aline, que era também lésbica. Meu
sonho mostrou o quanto era forte essa minha necessidade de
executar meu plano e dar fim à vida da namorada de Aline.

45
Minh a Q u er i d a Alin e

Contudo, eu deveria criar coragem, agredindo outra garota,


para que eu pudesse sentir a experiência, para que pudesse
ter mais conhecimento e me preparar melhor para executar
meu plano final.
Meu primeiro assombro, devido a esse sonho, pouco a
pouco se foi transformando em espanto e um calafrio me
percorreu a espinha.
De repente, adquiri, via sonho, uma informação certa,
de um modo súbito e totalmente inesperado: a garota que
morava na rua de Aline seria minha cobaia.
Não havia dúvida de que, se durante tanto tempo eu es-
tivera à espera de um encontro parecido como o do sonho
agitado, ainda que em tudo tivesse pensado também, seria
impossível contar com um passo tão importante para o êxi-
to da ideia como aquele que eu acabava agora mesmo de
apresentar-me sonhando. Esse sonho foi quase que uma re-
velação da estratégia que já vinha se construindo em mim.
Em todo caso, foi possível saber de véspera e com tanta
segurança, com absoluta exatidão e sem o menor risco, sem
necessidade de perguntas e investigações perigosas, que no
dia seguinte, ou mais tarde, a tal garota estaria passando pela
rua deserta, num certo horário para que minha ação pudesse
ser executada.
Mas procurei relaxar em meu quarto depois dessa refle-
xão. Fiquei deitado na cama. Entretanto, escureceu. Mais
tarde, não pude lembrar se estive ou não pensando qualquer
coisa durante esse tempo. Finalmente, tornei a sentir a febre
noturna, os calafrios. E um breve sono pesado, de chumbo,
se abateu sobre mim. Dormi durante um tempo anormal-
mente longo e sem sonhos. Aline, que entrou em meu quar-
to no dia seguinte, às 8 horas, teve que me despertar à força.
Trouxe-me um suco e um bolo feito por ela. Como éramos

46
Marc el o Vini ciu s

amigos, ela tinha a chave de meu pequeno apartamento, que


se parecia mais com um “puxadinho” criado por cima de
uma casa de aluguel para estudantes que resolviam morar no
bairro vizinho à universidade.
— Isso é o que eu chamo de dormir! — exclamou Aline.
Então, decidi me levantar e trocar logo a bermuda, pois
nela tinha uma certa imagem ruim. Havia um furo próximo
aos órgãos genitais e Aline tinha vergonha de ver aquilo, mas
não sei por quê. Não havia nada de errado.
Porém, vendo Aline sem jeito, eu disse:
— Desculpe, Aline, mas é que eu tava meio pelado, né?
— expliquei-me.
— Sem problema, eu gostei — riu Aline.
Achei estranho, pois foi a primeira vez que ela se com-
portou dessa forma. Antes, ficava tão envergonhada. Assim,
coloquei a mão atrás da cabeça, coçando-a meio sem jeito, e
dei uma risada forçada.
Entretanto me surgiu, de repente, um mal-estar, de tal
modo que dei uma volta pelo quarto e tornei a cair sobre a
cama. Aline disse:
— Não quer comer?
— Logo eu como — respondi com esforço, tornando a
fechar os olhos e virar-me de cara para a parede.
Aline inclinou-se sobre mim e disse:
— Pode muito bem ser que esteja doente.
Ela deu meia-volta e saiu. Voltou de novo um pouco mais
tarde, com uma sopa. Eu continuava deitado como antes. O
bolo de antes permanecia intacto. Aline zangou-se e pôs-se a
brigar comigo, indignada.
— Por que você está tão sonolento? — exclamou Aline,
olhando-me com antipatia.
Eu me ergui e sentei com os olhos fixos no chão, mas
sem lhe dizer nada.

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Minh a Q u er i d a Alin e

— Mas está doente ou não? Não vai comer um pouco? —


perguntou-me ela, que também dessa vez não obteve resposta.
— Vai embora! — eu disse repentinamente, e agitei a
mão para cima e para baixo na direção de Aline.
— Você devia sair um pouco — disse ela, depois de um
silêncio. — O ar vai te fazer bem. Vai comer alguma coisa
ou não?
Aline novamente não obteve resposta. Ela tornou a incli-
nar-se um pouco, olhando-me compassiva, e depois retirou-
-se. Passados alguns minutos, eu ergui a vista e fiquei durante
muito tempo olhando para o suco e para a sopa com pão ao
lado. Depois peguei o pão, segurei a colher e comecei a co-
mer o alimento, que naquela hora já estava frio.
Comi pouco. Minha falta de apetite se devia aos pensa-
mentos que se amontoavam em minha cabeça e que iam e
vinham como ondas à beira do mar, tudo isso devido ao pla-
no que pretendia executar. Depois de comer, tornei a esten-
der-me na cama, imóvel, de bruços, com a cabeça enterrada
na almofada.
De súbito, ouvi soar distintamente o relógio. Estremeci,
tornei a mim, ergui a cabeça, olhei para a janela, calculei a
hora e levantei-me de um salto, como se alguém tivesse me
empurrado da cama 6. Andei nas pontas dos pés para a porta,
abri-a devagar e comecei a tentar escutar vozes que viessem
da escada. O coração batia-me com força. Na escada, tudo
estava silencioso, como se toda a gente dormisse… Eram
mais ou menos 23 horas, o horário em que alguns estudantes
voltavam da universidade, e eu sabia que a garota da rua de
Aline deveria passar a qualquer momento por lá. Também
não deveria deixar nada para amanhã. O que devia fazer, que
fizesse hoje.
Concentrei todas as minhas forças no objetivo de pensar

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Marc el o Vini ciu s

que estava tudo bem e de não me esquecer de nada; o cora-


ção batia-me cada vez com mais violência e com tanta força
que me dificultava a respiração.
Eu deveria garantir um pedaço de madeira com o qual
golpearia a garota, como planejado. Não seria difícil achar
um pedaço de madeira; no quintal da casa havia vários. As-
sim, não pensei muito e observei de longe uma madeira no
chão. Ela tinha um tamanho desejável, não era maior do
que meu antebraço, facilitando a forma como eu poderia
escondê-la até o momento do ato.
Mas confesso que minhas mãos tremiam enquanto ima-
ginava segurar aquele pedaço de madeira. Não se podia ir
pela rua com aquilo na mão, então tive que vestir um casaco
comum. Só que, se eu o levasse por baixo do casaco, teria
que segurá-lo com a mão, o que poderia dar nas vistas. Mas
era pequeno; apesar de ser pesado, acho que seria possível
mantê-lo em meu antebraço, sem que pudessem perceber
facilmente, já que também era noite. E como aquele casa-
co era muito folgado, um verdadeiro saco, ninguém poderia
imaginar que estivesse segurando qualquer coisa com a mão
metida no bolso.
Como eu morava no andar de cima, que, como eu disse,
era uma espécie de quitinete universitária ou um puxadinho
malfeito, parado na escada para escutar se havia alguém por
ali, comecei a descer devagarzinho os degraus, suavemente,
como um gato. Restava-me fazer o mais importante: roubar
o pedaço de madeira no fundo do quintal sem ser visto.
Apesar de toda a dolorosa luta interior, nunca, nem por
um instante, cheguei a acreditar em renunciar meu plano
em todo esse tempo. Mas me bateu uma dúvida: e se eu me
arrependesse? Será que tudo isso não passaria de uma loucu-
ra? Mas existe loucura maior que o amor? Mas quem disse

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Minh a Q u er i d a Alin e

que era fácil arrepender-se quando se tem um motivo, uma


ideologia? Quem se arrepende é quem faz o ato de maneira
irracional ou sem um ideal bem embasado, como os homo-
fóbicos, que são irracionais, e eu não sou homofóbico! Ape-
sar de que suas santas ignorâncias também os impedem de
se arrepender de algo!
O caso é que as coisas acontecem do jeito que aconte-
cem e estão certas assim. Não me arrependo de nada. Mas
de vez em quando me passa pela cabeça um: “ah, podia ter
sido diferente”. Porém, não me arrependo de nada. Não me
arrependo de nada que fiz ou que faço, mesmo que seja to-
tal, irresponsavelmente maluco ou fugaz, porque é tudo em
nome do amor.
É claro que o caro leitor deve estar pensando que meu
amor é doentio. Mas não existe amor sadio e nem amor do-
ente, só existe o amor. Amores são fortes o suficiente para
aguentar qualquer pressão, qualquer crise, e ponto final.
Amor doente ou sadio, mau ou bom, certo ou errado são
só rótulos relativos. Da mesma forma como achamos errado
quando o mocinho do filme morre ou achamos certo quan-
do o vilão do filme morre. Não importa quem morreu no
filme, se foi o mocinho ou o vilão, e não importa se achamos
erradas ou certas suas mortes, o que existe aí são só valores
em um contexto qualquer, e o que está acima de tudo é a
vida, seja de quem for.
A vida e o amor não devem ser regidos por qualquer tipo
de padrão moral, pois isso faz com que o homem minta a si
próprio, falsifique-se, enquanto vive a vida e um amor fixo
a uma mentira. Assim, não promovo a criação de qualquer
tipo de valores. A ideia do amor doente ou sadio, da vida do
mocinho ou do vilão, é fantasmagoria inventada por nós pró-
prios, não sendo essa lei ou ideia, portanto, mais relevante
que as leis de trânsito.

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Marc el o Vini ciu s

Lembre-se, caro leitor, que quando digo que estamos ro-


tulando o amor e a vida e que não existe nada além de nosso
rótulo a não ser a vida e o amor em si, não estou destruindo a
realidade sobre essas coisas e sim nossas ilusões. Nessa ótica,
isto nada mais é que um exercício de honestidade e impar-
cialidade, e apenas esvazia de realidade as ficções que nunca
existiram de fato a respeito do amor.
Agora, se gostamos de nos enganar, tudo bem. Porém, se
nosso interesse for nos tornarmos capazes de lidar com a re-
alidade como adultos, sempre será preferível aceitar o amor
tal qual é em si mesmo, ainda que isso signifique abrir mão
de muitas de nossas crenças mais arraigadas. É preferível vi-
ver num amor sem sentido a acreditar num sentido falso para
o amor, que aponta para lugar nenhum.
Pois bem, voltemos para nosso assunto, antes que me per-
ca… Sim. Como eu estava comentando, restava-me fazer o
mais importante, roubar o pedaço de madeira no fundo do
quintal da casa debaixo sem ser visto. Assim, quando che-
guei ao patamar da cozinha, cuja porta estava, como sempre,
aberta, e que se voltava para o quintal, deitei um olhar pelo
cantinho do olho para certificar-me previamente de uma
coisa: da ausência de alguém, até mesmo de Aline, que por
vez aparecia na casa debaixo da minha quitinete, já que ali
também viviam amigos estudantes.
Então, de um salto, lancei-me sobre a madeira, guardei-a
no casaco, coloquei as mãos nos bolsos e afastei-me. Acredito
que ninguém tenha me visto. Depois desse ato, eu pensei,
com um estranho sorriso: “Como dizia aquele escritor russo,
Dostoiévski: ‘quando a inteligência fala, o diabo ajuda!’”.
Saí para a rua devagar e com um ar indiferente, sem me
apressar, com receio de levantar suspeitas. Andava com olhar
fixo, sem olhar para as poucas pessoas que ainda passavam.

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Minh a Q u er i d a Alin e

Ao caminhar pela rua, eu ficava desconfiado de qualquer


presença atrás de mim. Qualquer movimento estranho po-
deria me causar sobressalto e faria com que imediatamente o
pedaço de madeira, escondido no casaco, ficasse visível.
Quando se tem a fazer algo de grande magnitude, que
procura vencer a moral e a ética de uma sociedade e tomar
uma ação tida como bizarra, entra em funcionamento o
medo, pelo qual estímulos antes irrelevantes são transforma-
dos em sinais de alarme, em objetos ou eventos potencial-
mente perigosos, que podem desarmar seu plano.
Assim, contendo a respiração e comprimindo com a mão
as pulsações do coração, ao mesmo tempo em que apalpava
o pedaço de madeira e o endireitava uma vez mais, andava,
como eu disse, pela rua suavemente, com muito cuidado e
apurando os ouvidos a todos os instantes. Mas a rua estava
completamente deserta naquele momento; todas as portas
estavam fechadas; não encontrei ninguém depois de certo
tempo. Esse ambiente era o mais favorável para executar
meu plano, quando a garota, que provavelmente estaria sozi-
nha voltando para casa, passasse por essa rua.
A rua estava escura, sombria, silenciosa, e as nuvens pai-
ravam baixas e opressoras no céu. Aquele era um lugar es-
curo e sinistro, mas, mesmo assim, eu deveria estar ali para
encarar realidades ou forças ocultas.
Então, veio, de repente, o pio de uma coruja branca,
como se alguém rasgasse um pano de seda em cima de mi-
nha cabeça. Os gritos daquela coruja cortavam meu peito no
silêncio. Era como se fossem murmúrios de nervos tão tensos
que ecoavam na calada da noite. Ah! Meu coração sempre
batendo forte! Eu quase podia ouvir as batidas em meu peito,
era algo como sons guturais, soluços, bramidos ininteligíveis
na noite escura, que parecia querer contrastar com o fino gri-

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Marc el o Vini ciu s

to da coruja. O pulsar de meu coração naquela noite parecia


um triste lamento.
Não demorou muito, a coruja passou pelo alto de minha
cabeça novamente, como se tentasse competir com meu co-
ração. O piar daquela ave me parecia agora gritos estridentes
e prantos intermináveis, trazendo consigo um gemido fino e
arrepiante, que ecoava fundo, furando meu peito.
“É só o rasgo da coruja! É só o rasgo da coruja!”, eu pen-
sava, tentando me estabelecer emocionalmente ali.
Confesso que por um momento algumas ideias atravessa-
ram meu pensamento: “Não seria melhor ir embora? Vai que
a garota não foi para a universidade hoje e não vai passar por
aqui a uma hora dessas?”.
“Não estarei pálido demais?”, pensei, excessivamente co-
movido. “Não seria melhor esperar que meu coração se acal-
masse?” Mas meu coração não serenava. Pelo contrário, como
se fosse de propósito, cada vez palpitava com mais força.
Às vezes, parecia que eu perdia os sentidos e não sabia
o que esperava, apenas esperava, ansioso. Depois, bem de
repente, um terror arrepiante e um esforço ardente de com-
preender meu verdadeiro estado se fizeram presentes. No
entanto, forçando-me a estar consciente, lembrava-me per-
feitamente de meu propósito ali.
Assim, a agonia da incerteza, de pensar se eu encontraria ou
não a tal garota, se eu me arrependeria ou não, tornou-se, afinal,
intolerável. Então, com cautela, movi-me para adiante naquela
rua. Não perdi o controle da situação, embora a desordem de
minha mente parecesse a princípio insuperável.
Então, vi claramente o destino que me fora preparado.
Algo atraiu-me a atenção; não pude conter-me mais porque,
ao longe, eu via a silhueta de uma garota. O que vi encheu-
-me de confusão e de espanto. Só poderia ser a garota que eu

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Minh a Q u er i d a Alin e

pretendia golpear, não tinha como falhar. Era ela, era ela!
Acalmei-me de repente e fiquei a sorrir para a garota
como uma criança diante de um brinquedo raro.
Prossegui sem rumo pela rua. Pela primeira vez em mi-
nha vida, eu estava agindo por um impulso aterrorizador e
ao mesmo tempo sublime; meus atos sempre foram pré-ela-
borados, pensava muito antes de agir, me gabava de nunca
perder minha lucidez até nos momentos mais tensos.
Mas não sei como foi, pois ao insistir com meu olhar lan-
çado à silhueta da tal garota, ao longe, uma sensação de in-
suportável tristeza me invadiu o espírito. Contemplei a cena
que tinha diante de mim com uma completa depressão na
alma. Era uma sensação de alguma coisa gelada, um abati-
mento, um aperto no coração, uma aridez irremediável de
pensamento. 7
Num susto, percebi luzes piscando, e um letreiro lumi-
noso me chamou a atenção. Tratava-se de um restaurante da
rua, fechado a essa hora. Com a claridade, percebi também
que a garota, ainda ao longe, parecia não estar bem; ela se
arrastava, caminhando junto à parede, e soltava no ar seu
sofrimento. De repente, ela mudou de rumo, deixando de vir
a meu encontro, e se afastou da parede. Contorcendo-se de
uma dor que não era apenas física, caminhou na direção de
um banco de praça.
Então, pensei: “Tem algo de errado com ela. E a agora,
o que é que eu faço? Vou até a ela e vejo o que está acon-
tecendo, em plena noite escura, ou aproveito a situação e
desfiro um golpe que poderá levá-la talvez a um desmaio ou
à morte, para que eu possa cumprir meu plano?!”. Claro que
não poderia matá-la. A vida e o amor estão acima de tudo,
esqueceu, caro leitor?
Nossa! Como sou tolo e contraditório! Logo antes eu

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Marc el o Vini ciu s

pensava em matá-la, agora já considerava a vida acima de


tudo, como o amor? Não era a ideologia acima da vida? Sin-
to-me confuso! Percebo então que a razão é só uma fração do
homem, que satisfaz somente a parte racional humana 8. O
homem é uma contradição. Peguei-me num outro contexto;
sutilmente, eu já estava pregando outro ideal, mesmo que
o plano em si, de atacar a garota, fosse o mesmo. Ao pensar
nisso, fiz uma pausa. Não ousava passar dessa reflexão.
De qualquer forma, eu não poderia me prender a esse
pensamento, não agora, pois, no momento, sem decidir com
segurança o que fazer, eu acelerei os passos e fui até a garota,
a qual eu pretendia golpear para executar o plano de uma
vez, já que as coisas não estavam acontecendo como eu pre-
via. Ao caminhar em sua direção, eu ora ria, ora ficava tenso,
à medida que uma ou outra ideia se tornava predominante.
Chegando até ela, vi que a garota estava em piores con-
dições do que eu imaginava. Pensei em ajudá-la, mas como
ficaria minha ideologia? Como ficaria a prova de que o amor
está acima de tudo? Pois qualquer atitude que eu tomasse
e que fosse contra essa ideologia seria somente por valores
pessoais e sem fundamento.
Enquanto eu pensava, assustado, sem saber o que fazer,
aquela garota estava caída no banco, olhando para mim,
com seu nariz sangrando. Sem saber o que fazer, me aproxi-
mei dela mais um pouco e perguntei:
— Quem fez isso com você?
Com dificuldade de falar, ela me respondeu:
— Uns garotos na rua de baixo…
— Homofóbicos?
— Acho que sim…
Aquilo me causou profunda repugnância, pois os idiotas
dos homofóbicos com suas ideologias irracionais atrapalha-

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Minh a Q u er i d a Alin e

ram meu plano formidável! Se pudesse, matava um por um.


Por que logo hoje aqueles imbecis haviam feito isso? Logo no
dia de meu plano? Sim, naquele momento tive vontade de
exterminar essa raça, mas não porque sou justiceiro: a ques-
tão é que alguém poderia me comparar erroneamente a eles
e, pior, eles poderiam atrapalhar meus planos novamente.
Mas tem uma frase atribuída a Napoleão que diz: “Nunca in-
terrompas teu inimigo enquanto estiver a cometer um erro”.
Enquanto eu indagava isso a mim mesmo, por um instan-
te, ela ficou em silêncio, com o rosto virado para o outro lado,
e cheguei a temer que estivesse morrendo. Mas logo, muito
séria, fixou os olhos em mim. Em um segundo, fui invadido
pela mais estranha fantasia que já pode ter passado pela men-
te humana. Era como se ela estivesse olhando-me não com
aqueles olhos, mas através de meus próprios olhos. Eu já não
tinha consciência de nada exceto daqueles olhos fixos, daque-
le cenário extraordinário e fantástico, na rua deserta.
Então, com desespero, eu disse:
— Por que me olha assim, garota?! Não tenho culpa de
nada. Estava passando e vim te ajudar!
Mas ela se conservava em silêncio. Não sei se aquele si-
lêncio era de reprovação, de medo ou porque seu estado de
saúde estava piorando. Houve momentos em que meu racio-
cínio se nublou e que mal sentia meu corpo. Nesse momen-
to, perdi o sangue-frio e estive quase a deixar tudo a perder
por minha culpa.
No momento atual, a garota, que decerto estava descon-
fiando de mim porque eu não procurava ajuda, desconfiando
por me ver tão paralisado e confuso, como se não soubesse o
que fazer, me disse:
— Meu Deus! Mas o que é que você quer? Quem é você?
Por que não pede ajuda? Não estou me sentido bem para me
levantar sozinha!

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Marc el o Vini ciu s

— Eu fiquei chocado com a situação, nunca passei por


isso. Mas vou pedir ajuda agora mesmo — disse eu, sem sa-
ber de fato o que dizer.
Mas a garota, caída, tornou a fixar mais uma vez seus
olhos em mim, como se eu fosse um intruso. Contemplava-
-me atentamente, com uma expressão maliciosa e receosa.
Passou um minuto e eu julguei até perceber no olhar da ga-
rota qualquer coisa de irônico, como se ela tivesse já adivi-
nhado tudo a respeito de meu plano. Senti que eu perdia a
cabeça, que tinha quase medo e que, se o tempo se prolon-
gasse meio minuto mais, eu acabaria por fugir dali sem nada
fazer e todo o meu plano iria por água abaixo.
— Mas por que me olha tanto, como se não me conhe-
cesse? Eu também moro perto daqui. Nunca nos falamos,
mas nos conhecemos de vista e estudamos na mesma univer-
sidade. Não lembra?
Eu disse essas palavras sem as ter pensado, como se tives-
sem escapado de repente de mim.
A garota parecia se recuperar do trauma e, ameaçando se
levantar, me disse, estranhamente:
— Você está tão pálido! E suas mãos estão trêmulas! Está
doente?
— Estou é com medo, estou chocado com que aconte-
ceu com você — respondi com uma voz convulsionada.
— Acho que vou desmaiar... — disse a garota, cortando a
nossa conversa, com uma expressão pouco sonolenta.
Mas quando a garota baixou a cabeça para realizar o mo-
vimento de se levantar do banco, tentando vencer o mal-es-
tar, ficando de costas voltadas para mim, meu Deus! Não sei
nem como contar isso! Desabotoei o casaco e tirei o pedaço
de madeira; mas, sem o tirar completamente, limitei-me a
segurá-lo com a mão direita por debaixo da roupa.

57
Minh a Q u er i d a Alin e

Senti uma grande fraqueza nos braços, que ficavam mais


intumescidos de minuto a minuto e se tornavam pesados
como chumbo. Tinha medo de deixar cair o pedaço de ma-
deira. De repente, pareceu-me que minha cabeça girava.
Não havia um momento a perder. A ideia inteira esta-
va agora presente, fraca, mas mesmo assim inteira. Pus-me
imediatamente a tentar executá-la com a nervosa energia do
desespero. Tirei completamente o pedaço de madeira do ca-
saco, segurei-o com as duas mãos, sem perceber o que fazia,
e, quase sem esforço, com um gesto maquinal, deixei-o cair,
sem querer, sobre o chão, batendo ainda no banco onde es-
tava a garota. Eu estava esgotado; contudo, mal acabara de
tentar executar o golpe, me voltaram as forças.
O golpe não foi certeiro, por causa do movimento da ga-
rota ao tentar se levantar, atrapalhando minha mira... Acho...
Seria isso uma desculpa minha ou fui covarde, por não acer-
tá-la e nem seguir com meu plano? Ou perdi o controle da
situação, quando me escapou o pedaço de madeira? Perdi-
-me em meus pensamentos e em questão de segundos vi a
madeira caindo. Ela gritou na hora, não sei se foi de susto ou
porque alguma parte da madeira lhe atingiu, e caiu de vez
desmaiada ou morta, eu não sabia. Conservei toda a minha
lucidez de espírito e já não sentia náuseas nem vertigens;
apenas as mãos tremiam ainda.
— A morte! — disse eu, sem motivo aparente.
A capacidade pouco vale sem oportunidade e eu deveria
aproveitá-la agora. Esquisitamente, senti-me pequeno ali, pois
nada é mais difícil, e por isso mais precioso, do que ser capaz
de decidir. O que eu procurava, antes de tudo, era a grandeza:
o que é grande é sempre belo9. O amor puro é belo. Mas, acho
que não fui capaz de aproveitar essa oportunidade.
De súbito, ouvi o que me pareceram passos se aproxi-

58
Marc el o Vini ciu s

mando de onde eu estava com a garota. Acredito que deveria


ser uma amiga ou parente à procura dela, porque já eram
altas horas e ela não havia chegado em casa ainda. Eu esta-
va ansioso para ver-me longe dali o mais depressa possível.
Afastei o pedaço de madeira da moça, jogando-o pela rua,
próximo a um cesto de lixo, para passar a impressão de que
era somente parte dos entulhos ali.
Quando comecei a andar, parei, olhei e não queria acre-
ditar naquilo que meus olhos viam: estavam vindo pela rua,
em minha direção, Aline e uma amiga que dividia o aluguel
da casa com a garota lésbica. Desesperadas e gritando pela
rua escura, elas estavam se aproximando.
“Mas não, isso também não! O que eu tenho a fazer é ir
embora, ir embora!”, pensei quando vi as meninas se apro-
ximando para ajudar a garota caída no banco. Porém, Aline,
junto com a amiga da garota caída, chegou assustada, olhan-
do para mim, e disse:
— Por que você fez isso?!
— Mas eu não fiz nada, vim socorrê-la!
— Como soube que ela estava aqui? Estava seguindo ela, é?
— É claro que não! Só estava tomando um ar quando a
vi chegar cambaleando pela rua, e quando cheguei perto ela
disse que foi atacada e desmaiou!
Assim, elas tentaram ajudar a garota caída e sutilmen-
te fui me afastando, pois precisava voltar para meu quarto.
Queria me isolar do mundo.
Na volta, como se já estivesse me esperando, de repente,
a coruja voou por cima de minha cabeça, ao longe, e fez seu
grito ecoar novamente. Meu peito começou a oscilar mais
em uma tempestade de respirações, pois minha impressão
era de ter ouvido um grito de agonia, e mais outro, e mais
outro ainda. Parecia que a coruja ecoava as dores da garota.

59
Minh a Q u er i d a Alin e

“Mas é só uma coruja! É só uma coruja”, eu pensava, tentan-


do me acalmar.
O som da coruja mostrava que, apesar da paisagem pa-
recer deserta, era um erro achar que nada se escondia no
escuro. A noite, por mais sombria que fosse, mantinha o ar
majestoso, mostrando àqueles capazes de ver sua beleza fan-
tasmagórica.
Naquele momento acreditei que os instintos mais primi-
tivos eram despertados pela noite. O lado mais animal —
pode-se dizer mais letal e natural — aflorava.
O caro leitor deve estar pensando que tive muita cora-
gem ao expor esse fato aqui, me denunciando, sabendo que
muitos lerão, não é? Mas espero que, escrevendo isto, depois
que eu voltar a ler o que escrevi, talvez possa me libertar
deste segredo. Mesmo que o preço seja me expor aos outros,
pois chega uma hora que não temos mais nada a perder, nem
que essa hora seja no leito de morte onde você se confessa a
um padre, a um pastor ou à sua própria consciência. Aliás,
também seria pura hipocrisia não afirmar que todo homem
luta com mais bravura por seus interesses do que por seus
direitos. Então, o que eu fiz…
Nossa… Deixe-me tomar fôlego novamente… Tive que
parar e retomar este escrito neste exato momento. Senti,
agora, de novo, uma tontura e minha vista se ofuscou! É a
segunda vez que relato isso. Será que estes escritos estão me
fazendo mal? Escrever é um vício. Minhas crenças, minhas
rezas de nada adiantarão; quero desabafar, tenho necessida-
de de desabafar, mesmo que isso me incomode… Contudo,
é melhor continuar amanhã. Hoje cheguei ao meu limite.
Boa noite.

60
Marc el o Vini ciu s

Sexta Anotação

Quando entrei em meu quarto, atirei-me para cima da


cama, tal como estava. Não dormi, mas afundei-me em um
torpor. Sombras e fragmentos de algo semelhante àquela
cena infernal em que eu tentava golpear a garota na rua me
atravessaram a mente; mas não pude detê-los, por mais esfor-
ços que fizesse. Fiquei assim estendido durante muito tempo.
Estava deitado na cama, de rosto para cima, e ainda
não me libertava da espécie de letargia que se apossara de
mim. Fiquei pensando na cena da garota, colocando-me lá
na escuridão do ambiente em que tudo aconteceu. Então,
chegou um momento em que eu não sabia dizer se estava
acordado ou dormindo. Todos os meus pensamentos se em-
baralhavam. Às vezes, parecia que eu me esquecia de que
era humano; não sei se eu seria um fantasma, uma aparição
ou um demônio. Fiquei com a terrível ideia de que esse algo
que vivi no momento, nos meus delírios, também poderia
acontecer comigo novamente, como de fato aconteceu, na
vida real. Esse algo era uma história terrível, dolorosa e feia.
Aquela garota tinha me apresentado a mais acurada des-
crição do inferno que podia ser concebida em meu ser. Se
amar uma pessoa é uma espécie de paraíso, lutar até o fim
em nome desse amor é uma espécie de inferno.

61
Minh a Q u er i d a Alin e

Vinha da rua, à noite, chegando com força até a mim um


alvoroço enorme e tristonho, que, aliás, ouviria todas as noi-
tes, quase junto de minha janela, perto das 23 horas. Eram os
lamentos de estudantes que passavam por lá falando a respei-
to da tragédia que ocorrera com a tal garota. Toda noite seria
assim: eu ouviria lamentos, passos e vozes.
No primeiro momento, pensei que estava louco. Um frio
tremendo se apoderou de mim, um frio precursor da febre,
que havia já algumas vezes sentido durante o sono. Agora
acometia-me também um tremor, os dentes pareciam que
iam saltar-me e todo o meu corpo se agitava.
“Mas, agora, agora, por que não estou contente? É por-
que não consegui dar o primeiro passo em nome de meu
amor, como era minha intenção inicial? Não! Não! A gente
cresce e percebe que a vida também equivale ao amor, mas
é preciso ser Napoleão de alguma coisa! É preciso ser Na-
poleão de alguma coisa!” 10, pensei naquele momento, de
forma confusa.
Extenuado, me estendi um pouco mais na cama e ime-
diatamente um insuportável tremor me cometeu de novo.
Automaticamente, puxei meu sobretudo de inverno, de estu-
dante, que estava dobrado em cima de uma cadeira. Cobri-
-me com ele e o sono e a febre voltaram a apoderar-se de
mim. Adormeci.
Passados cinco minutos, eu acredito, pois não soubi pre-
cisar o tempo, tornei a levantar-me de um salto e atônito, já
que uma ideia estranha me atravessou o pensamento: “O que
me aconteceu?”, pensei.
Tenho ficado nervoso, muito nervoso, terrivelmente ner-
voso! Será que estou ficando louco? Este mal-estar só balan-
çou meus sentidos, minha mente, mas não os destruiu. Não
estou louco…

62
Marc el o Vini ciu s

Então? Diga-me, caro leitor, eu sou louco? Preste aten-


ção e observe quão lucidamente, quão calmamente posso
lhe contar toda esta história. Como serei louco? Ora, aí é
que está o problema. Você imagina que sou louco. Louco!
Louco! A decisão fundamental da modernidade em opor a
ordem da razão à desordem da desrazão: se duvido, penso, e
se penso não posso ser louco… Ou posso?
Não posso ser louco porque ninguém me internou, por-
tanto sou um gênio… Sou? Que coisa mais sem sentido. Mas
louco eu não sou. Espero que o caro leitor não cogite isso
nem por um segundo sobre minha pessoa!
E se assumo dizendo que sou louco? Sim, sou louco! E
assim eu não posso ser louco, pois quem assume a própria
loucura não é louco! O louco, quando sabe que é louco,
deixa de ser louco e se torna descarado! Fingido! Não sou
louco, então!
Assim, o leitor que me traz essas dúvidas e angústias que
aguente o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco.
Sou louco, mas só um pouco. Mas por que dizer que sou louco?
Que escrita confusa eu realizei agora…
Se você ainda pensar que sou louco, não mais pensará
quando eu descrever as sábias explicações sobre este meu
mal-estar. Quando entender o que sinto, esta confusão toda,
verá que é somente um engano. Na verdade, não tenho ne-
cessidade de convencer ninguém a respeito disso. Por que
insisto nessa questão, então?
Talvez toda essa minha angústia de querer provar que não
sou louco seja devido à minha mente atormentada, que de-
seja que alguém leia isto e me compreenda. Sofro constantes
crises de medo e de desconfiança sem motivo nenhum. Con-
sidero-me um ser humano bom; nunca fiz mal a ninguém.
Eu não fiz mal à garota. Quase faria, concordo, mas não fiz.

63
Minh a Q u er i d a Alin e

Se algo aconteceu por lá, quando deixei a madeira cair, foi


por acidente. Não estou mentindo. Acha que estou agindo
de má-fé? Por que sofro esse assédio impiedoso? Que fazer
para livrar-me da agressão dessas entidades infelizes?
Ficou um tanto confuso esse meu pensamento, mas é
exatamente isto: sofro de uma irremediável obsessão pelo
desconhecido e desconheço o que o caro leitor pensará de
mim ao ler-me. Você que me lê também me incomoda até a
alma. A cada pensamento meu, me afeta mais um cambalear
de censuras mentais e uma sensação pura de querer despejar
tudo e de não conseguir, por causa de você que insiste em
me ler. Mas como evitar você? O meu leitor é uma realidade
ofuscada por coisas de que não lhes entendo o sabor. Coisas
que não têm nome. Apenas escrevo para ele. Só isso. Não há
nada além disso, não sou louco. Não quero me convencer
de que sou possuído pela loucura, pois isso tudo é só uma
necessidade de ser compreendido pelo outro.
Sim, talvez essa confusão seja a melhor forma de evitar
diversos conflitos que minha mente atormentada e metódica
tenta criar em meu cotidiano: esclarecer minhas atitudes ao
leitor. Então, dia após dia, tentei solucionar o que não de-
veria ser solucionado. Algumas coisas na vida simplesmente
são assim, simplesmente acontecem e não precisam de lógi-
ca ou solução para serem compreendidas.
Mas ainda assim, mesmo colocando isso em minha cabe-
ça, às vezes me pego fazendo análises desnecessárias. Mui-
tas vezes me pego procurando por uma resposta em meio a
meus pensamentos perdidos e sei que não encontrarei nada
por ali.
Portanto, depois de tanto dilema, cheguei a uma conclu-
são, falando comigo mesmo:
— Não há motivo para tanto mal-estar! Por que eu de-

64
Marc el o Vini ciu s

veria me preocupar com a garota? O que eu fiz de errado?


Não a agredi, pois perdi o controle da situação, acho, e mes-
mo que tivesse agredido a moça, o amor está acima de tudo!
Nietzsche uma vez disse: “aquilo que se faz por amor está
acima do bem e do mal”.
Este mal-estar não tem sentido. É só uma consciência
pesada por achar que machuquei alguém, mesmo sem que-
rer, ou porque de fato não fiz o que tinha que ser feito? Que
era machucá-la com toda certeza da minha ação, sem deixar
aquela madeira cair e evitar a dúvida se a atingi ou não? Mas
a consciência pesada só existe por termos valores morais. Con-
tudo, não poderemos alegar que esses valores existem “por si
mesmos” se não pudermos demonstrá-los como um fato na-
tural, e, não havendo um, só nos restará defendê-los como
valores subjetivos, inventados por nós.16 Então, para que esse
mal-estar? E o amor? Há algo mais sublime que o amor? O
que tentei fazer foi em nome do amor! O sentimento em si é
que pretendo preservar, o amor puro, derrubando esses valo-
res morais, essas mentiras e suposições. O que faço nada mais
é que um exercício de honestidade e imparcialidade, apenas
esvaziando a realidade das ficções que nunca existiram e que
nos impedem de viver um amor puro, sem rótulo, um senti-
mento por si só. É preciso ser Napoleão de alguma coisa! É
preciso ser Napoleão de alguma coisa! Eu já disse isso!
De fato, tudo isso que disse para mim mesmo era meu
propósito final: ter um sentimento puro para com Aline. As-
sim, quem possui confiança de que suas ideias têm funda-
mentação sólida não terá nada a temer. Entretanto, quem
emite juízos ocos, fraudulentos, não terá como protegê-los.
Lembro-me de que voltei a dormir de novo depois dessa
meditação. Até que finalmente veio me despertar um forte
soco dado na porta.

65
Minh a Q u er i d a Alin e

— Vamos, abre! Está vivo ou morto? Não faz mais nada


senão dormir! — gritava Aline, batendo com os punhos na
porta. — Todo santo dia dormindo como um gato! Abre ou
não abre?
— Você não tem a chave, Aline? — disse a voz de outra
mulher.
“Seria a voz da namorada de Aline ou da garota que ten-
tei golpear?!”, pensei assustado.
— Deve estar com o trinco corrido — respondeu Ali-
ne. — Agora tem a mania de se fechar! Por isso é que não
consigo mais entrar usando a chave. Está com medo de ser
raptado? Abre, homem, acorda!
“O que elas querem de mim? Por que Aline veio acompa-
nhada? Abro ou recuso?”, pensei.
Mas endireitei-me, inclinei-me para a frente, levantei-me
e abri o ferrolho da porta. Tinha adivinhado: eram Aline e
sua namorada.
Aline olhou-me de uma maneira estranha. Depois olhou
para a namorada com uma expressão desesperada. Assim,
abri por completo a porta e permiti que entrassem. É claro
que eu não me sentia bem com a namorada de Aline em
minha própria casa. Deu-me a vontade de agarrá-la pelo pes-
coço e sufocá-la até a morte. Mas, é óbvio, me contive, pois
queria saber o motivo de elas estarem lá.
Assim, Aline me disse:
— Graças! Correu tudo bem com a nossa colega! Ela
está bem! Vim te contar isso!
Engoli em seco no momento, pois temia que aquela ga-
rota falasse sobre a tentativa de golpeá-la. Afinal, qual seria
minha justificativa por estar com uma madeira na mão ali?
“Será que ela contou para a Aline que tentei machucá-la?”,
pensei assustado.

66
Marc el o Vini ciu s

— Então, a garota comentou tudo que houve naquela


noite? — perguntei, tenso.
— Sim, ela contou tudo que houve! — disse Aline.
— O que ela disse de mim?
— Que foi agredida, que depois te encontrou e que você
tentou ajudá-la, mas que você estava confuso, talvez assusta-
do com a situação, não foi?
— Ela disse só isso?
— Sim, o que mais ela deveria dizer?
— Nada… Mas ela não falou mais nada de mim?
— Não… Aliás, ela disse algo!
— O quê?! — perguntei eu, novamente assustado.
— Que de repente ela apagou, desmaiou e acordou, sem
se lembrar do que aconteceu exatamente naquele momento,
mas deve ter sido por causas daqueles idiotas, não foi?
— Sim, é claro! Esses idiotas só sabem atrapalhar a vida
dos outros! Não têm ideologia consistente, vivem num mun-
do virtual!
— Pois é…
Senti um alívio por não terem desconfiado de mim. Mas
para que me preocupar? Se o amor, despido de ilusões, nos
parece vazio, saibamos ao menos admitir que a culpa é nossa
por termos dado um sentido, empobrecendo o amor que tem
seu valor próprio, que é o sentimento mais puro e está além de
qualquer valor humano. Então, por que eu deveria ficar com
a consciência pesada? Isso é só mais um sentido imbecil que
criamos sobre o que é certo ou errado em relação ao amor.
Se nosso interesse for nos tornarmos capazes de lidar com
o sentimento em seu mais alto grau de pureza, sempre será
preferível aceitar o amor tal qual é em si mesmo, ainda que
isso signifique abrir mão de muitas de nossas crenças mais ar-
raigadas, principalmente as crenças que nos levam à culpa.16
Eu já disse isso.

67
Minh a Q u er i d a Alin e

Mas não pense que não tenho compromisso com nenhu-


ma forma de valor, pois eu ficaria com a consciência pesa-
da se roubasse o que restasse a um mendigo na rua ou se
trapaceasse meu melhor amigo em um jogo, por exemplo.
Os valores são importantes na prática, para vivermos nosso
dia a dia. Porém, o amor é o sentimento mais sublime e não
pode ser descrito. O amor é o sentimento perfeito… Âncora
e fonte de felicidade pura, sem juízo de valor. O amor é algo
intangível e intocável, e acho que para muitos é até mesmo
inimaginável. Mas, se penso assim, porque não consegui exe-
cutar meu plano com precisão?
O amor salvou o personagem Raskólnikov, do romance
Crime e Castigo, do escritor Dostoiévski. Penso também que
serei salvo dessa angústia por meu amor. E se eu não for sal-
vo? Alguém me dirá que o que eu sentia não era amor, mas
isso seria suposição e preconceito, não acha? Como deter-
minar que o que eu sinto não é amor? Só porque não fui
salvo como Raskólnikov? Ninguém poderá dizer nada sobre
isso, somente eu. Ninguém pode provar que o que sinto não
é amor, porque o amor não é objeto da ciência; o amor é
objeto do poeta. Ele é pessoal e intransferível. Já foi possível
explicar o amor matematicamente?
E se eu não conseguir me salvar dessa angústia como
Raskólnikov se salvou? Então, não é o amor que salva e sim
o sentido que damos para esse amor. Então, tudo se torna
relativo e frágil, porque trocar o amor em si por uma ideia
sobre este sentimento faz da salvação pelo amor algo volúvel,
já que mudamos de ideia como quem muda de roupas. E o
amor perde a força que imaginávamos ter.
Ah! Não me preocuparei com isso! Raskólnikov foi salvo
pelo amor e eu também sinto o amor. Mesmo que meu com-
portamento seja diferente de outros que amam, eu tenho um

68
Marc el o Vini ciu s

amor em mim, pois ninguém é igual a ninguém e o amor


age em cada sujeito de forma diferente. Raskólnikov também
não era diferente? O amor é igual à sensação de medo: uns
gritam, outros ficam paralisados, outros correm, uns ficam
com traumas, outros não.
Enfim, esqueçamos essa minha filosofia barata e diga-
mos: viva a Raskólnikov! Viva!
E, além do mais, o amor não é um sentimento tão sim-
ples assim para saírem definindo-o, só podemos entendê-lo
através daquele que o sente. Você, caro leitor, se já amou
verdadeiramente, já deve ter percebido como é inexplicável
e indescritível essa sensação de possuir o maior, o mais su-
blime, o mais encantador e o mais puro sentimento que al-
guém pode ter para com outro alguém.
Agora, por que temos necessidade de medir o amor? De
dar significado a ele? De colocá-lo no mesmo balaio de con-
ceitos morais puramente humanos? Por isso que há realmen-
te muita banalização com esse sentimento mais sublime e
que muitos não sabem administrar humanamente. Assim,
encontramos casais de namorados e gestos inúteis na liturgia
da vida em nome de um amor que não existe, pois é um
amor recheado de sentidos, de valores gritantes, mas falsos.
Parece coisa de poeta, mas, vistas desse modo, as mais pro-
fundas investigações sobre o que é o amor, para que serve, até
que ponto o amor é bom ou ruim, são pura e simples perda
de tempo, pois estão em busca de algo que simplesmente não
está lá: um amor cheio de sentidos humanos. Assim, o amor
deixa de ser o amor e passa a ser um significado subjetivo.
Nesse tipo de investigação, saímos desesperadamente em
busca da resposta para uma pergunta sem sentido sobre o
amor e ainda nos espantamos por nunca encontrá-la. Porém,
como o amor não se comporta segundo nossas expectativas

69
Minh a Q u er i d a Alin e

infantis, em vez de admitir o óbvio, de aceitar que o real é


aquilo que está bem diante de nossos olhos, achamos mais
sensato inventar uma segunda existência misteriosa que car-
rega a “essência oculta” do amor. O amor está acima de qual-
quer criação humana. Apenas se sente o amor e ponto final.
Quando ando pelas ruas, vejo que transbordam por todos
os poros pessoas que vivem declarando amores sem conheci-
mento profundo daqueles a quem dizem “eu te amo”. Canso
de ver gente que, por trocar algumas boas palavras durante
algum tempo, atiram um “amor” sobre outro alguém. Eu
mesmo já ouvi de alguns: “eu te amo!”, e tempos depois es-
sas pessoas pararam de falar comigo porque expus ideias das
quais discordavam.
Assim, banalizamos o sentimento mais nobre para a hu-
manidade: o amor. O amor é amor e somente o sentimos, ele
é inexplicável e indescritível. O resto são questões sem senti-
do sobre ele, meros disparates interrogativos que levam nos-
sas investigações para um mundo imaginário, que nada tem
a ver com aquilo que estamos tentando entender: o amor.
Bem, confesso que hoje estou cansado de escrever. Estou
com algumas coisas na cabeça, mas totalmente sem paciên-
cia para escrevê-las todas. Que reine o verdadeiro amor entre
nós. Até amanhã. Boa noite.

70
Marc el o Vini ciu s

Sétima Anotação

Alguns dias se passaram e eu precisava concluir meu pla-


no, sem ressentimentos. Precisava golpear a namorada de
Aline também, já que meu teste com a garota na rua não fora
bem-sucedido. E eu precisava provar que a minha teoria do
amor puro, o amor além do bem e do mal, era possível. Não
tenho certeza se eu golpeei a moça ou não e essa dúvida me
matava a cada dia. Se eu a golpeasse estaria tranquilo, por
provar minha tese, ou estaria ainda em conflito como agora?
Ainda fiquei confuso se era para tê-la matado ou somente a
machucado, e não consegui decifrar isso ainda. Contudo,
com a namorada de Aline poderia ter algum sucesso. Toda
noite, antes de dormir, eu fazia meus planos. Senão, como
acordaria no outro dia?
Mas esse meu plano, ultimamente, tinha me afastado de
Aline. Fazia tempo que não parávamos para conversar e ti-
nha medo de que ela me esquecesse, de alguma forma, ou
que nossa amizade enfraquecesse por causa disso. Precisava,
antes de qualquer coisa, reacender a fogueira de nossa amiza-
de. Pois é de uma amizade que pode surgir um grande amor.
Precisava estar preparado, devia me precaver em relação a
tudo, tanto para fortalecer minha amizade com Aline como,
ao mesmo tempo, para ir executando, com paciência, meu

71
Minh a Q u er i d a Alin e

plano. Pois de que adiantava executar toda a minha estraté-


gia e no final minha relação com Aline estar menos intensa
e pouco nos vermos? Não… Necessitava trabalhar nos dois
lados, tanto em manter um laço afetivo com Aline como em
levar a cabo meu plano em relação à namorada dela, já que
só assim o resultado final que tanto almejava teria maiores
chances de dar certo.
Então, fiz de tudo para ver Aline o mais cedo possível.
Depois, retomaria meus planos. Na verdade, poderia até
executá-lo paralelamente, mas, como eu sou um só, era bom
ir com calma. Como diz o ditado, “a pressa é inimiga da
perfeição”.
Neste exato momento, caro leitor, em que lhe escrevo
sobre meus planos e que demonstrei meu interesse de rever,
o mais rápido possível, Aline, lembrei-me de quanto eu a
amava. Estava tão empolgado com meus planos que nem
percebia bem meu sentimento por ela.
É impossível descrever a você, leitor, o quanto ela é per-
feita e por que é tão perfeita. Só isto basta: ela tomou conta
de todo o meu ser. Ah! Aline… Suspirei. Ela era uma alma
tão serena e tão cheia de vida e energia!
Tudo quanto acabo de escrever não passa de pobres abstra-
ções que não dão a menor ideia de quem é Aline para mim.
Hum! Ouvi um barulho! Agora, neste exato momento em
que lhe escrevo, Aline novamente veio me visitar. Ela, pre-
sente na cozinha, me preparou algo para comer. Que bom
vê-la de novo. Antes, cego por meu plano, não poderia nem
sequer contemplá-la como antigamente e como ela merecia.
Devorei meu pão com manteiga, feito por ela, e escrevi
isto ao mesmo tempo… Que maravilha para minha alma tê-
-la diante de mim.
E enquanto escrevia isto, Aline se aproximou de mim e disse:

72
Marc el o Vini ciu s

— O que faz?
— Escrevo um diário — respondi, rindo.
Então ela continuou:
— Hum… Quando eu era mais jovem, nada me fascina-
va tanto como as histórias, os relatos… Só Deus sabe quanto
eu me sentia feliz, aos domingos, quando parava o que eu
estava fazendo para ler um livro, para participar da felicidade
ou infelicidade de qualquer personagem. Mas são tão raras as
vezes em que posso agora abrir um livro, por causa dessa cor-
reria de estudante universitária, que me tornei mais exigente
na escolha. O autor que eu prefiro é aquele no qual encontro
meu mundo do dia a dia e que me oferece uma fonte de feli-
cidade no momento da leitura…
Ao mesmo tempo em que eu sentia que poderia admirá-
-la, adorá-la, havia uma sensação de ser esmagado por sua fe-
minilidade, pois era muito difícil relacionar-se com ela como
um amigo. Eu queria mais que isso, queria ser seu namorado.
É muito difícil encarar como amiga a pessoa que amamos.
Pois bem… Depois de sua fala sobre literatura, Aline se
aproximou da janela. Havia trovões, mas cada vez mais dis-
tantes, e uma chuva deliciosa começou a cair, fazendo um
agradável ruído. Ela estava apoiada sobre o cotovelo, olhan-
do a rua; ergueu o olhar para o céu e, em seguida, para mim.
Notei que seus olhos estavam banhados de lágrimas.
Tive que interromper a escrita para poder me aproximar dela.
Então ela colocou a mão sobre a minha. Lembrei-me
imediatamente de como seria bom se fôssemos namorados
e abandonei-me às emoções que só aquele momento des-
pertou em mim. Sem poder conter-me, curvei-me sobre sua
mão, cobrindo-a de beijos e de lágrimas; depois, meus olhos
procuraram ardentemente os dela.
Assim, meio que de repente, Aline teve que partir e me

73
Minh a Q u er i d a Alin e

disse que ou nos encontraríamos na universidade ou mais


tarde ela passaria aqui, na minha quitinete.
Eu até fiquei, de certa forma, estranhando Aline ao der-
ramar lágrimas enquanto estava na janela. Parecia que ela
tinha cometido um ato insensato ou coisa parecida, parecia
ter um olhar que sentia pena de alguém… Enfim, preferi
viver aquele momento tão belo e raro com ela em vez de
pensar nisso.
Sei, caro leitor, que para você esse momento simples, vi-
vido na janela com ela, pareceu bobagem. Mas para mim
foi como meus dias de maior felicidade, como o que Deus
reserva a seus santos. Qualquer que seja a sorte que me espe-
ra, não poderei dizer que não vivi as alegrias mais puras desta
vida com ela.
Eu não vivia em festas, em baladas, era muito reservado.
Mas desfrutei, no mais íntimo de mim mesmo, toda a ventu-
ra que é dada ao homem para desfrutar.
Então… Eu tenho que dormir, mas, antes de ir, queria
tanto saber se você me compreende, caro leitor! Boa noite,
até amanhã!

74
Marc el o Vini ciu s

Oitava Anotação

Aquela pessoa que, mesmo quando não faz do jeito que


você quer, ela o agrada. Aquela que coloca um sorriso em
seu rosto todos os dias. Aquela que vai rir até de suas piadas
mais idiotas. Aquela que vai fazer guerrinha de pipoca du-
rante o filme. Aquela que vai tirar seu fôlego tantas e tantas
vezes. Aquela que faz seu coração acelerar. Aquela que é a
mais perfeita e linda do mundo. Aquela sobre quem você
fala, fala, fala, fala até seus amigos se cansarem. Aquela que
o deixa com um sorrisinho bobo. Aquela sobre quem você
sonha todas as noites. Aquela que fica calada na hora certa,
que fala na hora certa. Que briga na hora certa, que dá cari-
nho em qualquer hora. Sim… Aquela… Mas que não é sua
namorada e sim sua amiga. É possível suportar isso?
Você precisa ver, meu caro leitor, a triste figura que eu
faço quando se fala de Aline numa roda de amigos, lá na
universidade! Você precisa ver-me! E, melhor, quando me
perguntam se ela me agrada… Agradar… Alguém me per-
guntou outro dia se ela me agradava! Que ódio eu sinto desta
palavra: “agradar”!
Por um minuto eu queria saber qual era a primeira coisa
que se passava pela mente dela quando ouvia meu nome.
O caro leitor está pensando que não me amo, é isso? Eu

75
Minh a Q u er i d a Alin e

me amo, sim. Eu posso dizer isso a você, que vem lendo meu
escrito até agora, e que assim há de me compreender quando
digo que eu me amo, depois, que ela me ama.
Por que eu deveria temer em confessar essa minha fraque-
za? Todos nós temos um ponto fraco, e ninguém tem a mesma
fraqueza. Quantas pessoas lutam contra o vício das drogas, da
bebida? Quantas possuem a necessidade de serem vistas como
os melhores alunos da sala? Quantas possuem a indigência,
em seu complexo de superioridade, de quererem ser melhores
no que fazem e possuírem toda a razão do mundo, a ponto
de virar uma angústia caso isso fracasse? E mesmo sendo as
melhores, não podem negar suas fraquezas, pois elas ainda são
e serão sempre fracas, já que suas crises neuróticas ainda exis-
tem e persistem, forçando-as a tentar ser sempre perfeitas. Es-
sas, entre outras, são as fraquezas que têm feito muitas pessoas
caírem também. E você, meu querido leitor, o que o tem feito
sentir-se tentado? Qual tem sido sua fraqueza?
Confesso… Na verdade, este meu escrito é uma forma
de me confessar. Diferente de outras narrativas, esta é quase
como um diário. Então confesso que, quando animada pela
conversa, Aline pousava sua mão sobre a minha e se apro-
ximava tanto de mim que eu chegava a experimentar seu
hálito celestial junto de meus lábios, diversas vezes.
Caro leitor, o que seria para nosso coração o mundo in-
teiro sem amor?
Pois bem… Retida hoje por uma aula extra na universi-
dade, Aline não me veio visitar, nem eu fui à sua casa. Às ve-
zes, apesar de minha obsessão em realizar meu plano, ficava
ansioso quando não a via, porque sabia que ela estava perto
de se formar pela universidade. Sabia que ela iria embora
depois disso. Que voltaria para sua cidade natal. Ela tinha o
intuito de aplicar em sua região o que aprendeu lá na uni-

76
Marc el o Vini ciu s

versidade, fazendo com que sua cidade se desenvolvesse um


pouco mais. Era a forma que Aline dizia poder retribuir à
população, já que era a população que custeava seus estudos.
Estudamos em uma universidade pública.
Agora já não posso mais escrever, meu corpo esguio pesa
de cansaço. A não ser que eu continue e minha página se
encha de rabiscos sem sentido. Se eu continuar a escrever,
por uma falta repentina de atenção, posso cometer um erro
bobo que pode deixar minha escrita ilegível, minhas palavras
bagunçadas… Então, é melhor parar por aqui, por hoje.
Até amanhã. Boa noite.

77
Marc el o Vini ciu s

Nona Anotação

“Vou vê-la”! Foi essa minha primeira exclamação desta


manhã, quando me levantei e meus olhos procuraram ale-
gremente o sol. E, durante o dia inteiro, não tive outro dese-
jo. Tudo, tudo foi absorvido por essa perspectiva!
Mas a responsabilidade também me chamou. Aquele
meu amigo, que raro nos encontrávamos, me ligou há pou-
co, insistindo tanto para que eu cuidasse de meus estudos.
Eu desejava não tocar nesse assunto, para evitar o fato de que
estudei muito pouco nos últimos tempos. Porém, isso tudo
tem sido tão feliz! Pois tenho vívida, em meu peito, Aline.
Tudo bem, meu amigo está certo, e eu acho que agora
tomei a resolução de não ir vê-la tão constantemente. Sim,
mas como resistir? Cada dia sucumbo à tentação e faço a
mim mesmo este juramento: “Amanhã, você ficará em casa.
Amanhã, você irá para a universidade e não irá procurá-la”.
Mas quando chega o dia seguinte, sempre encontro qualquer
motivo imperioso para vê-la. Ou então, é ela mesma quem
diz para mim: “Vou à sua casa amanhã, viu?”. E quem pode
resistir a isso? Subitamente, me vejo a seu lado!
Então… É… Confesso… Novamente… Que essa liga-
ção de meu amigo foi até moralista. Desculpe-me, leitor, por
eu esconder uma parte da conversa que tive com ele, pois

79
Minh a Q u er i d a Alin e

não conversamos somente sobre minha ausência nos estu-


dos. Desculpe-me por omitir certos pontos de nossa fala, já
que houve também, como assunto, Aline. Contei tudo que
era possível sobre ela; e foi nesse momento que meu querido
amigo me disse: “Ou você tem alguma esperança de conquis-
tar a Aline ou não tem. Assim, no primeiro caso, faça todo o
esforço para realizar essa esperança; no segundo, tome uma
atitude para se livrar desse sentimento que vai acabar com
você, pois eu acredito que você pode estar doente!”.
Mas será que eu não pensei nisso a cada instante? Tentei
manter-me como amigo dela, mas, como isso me consumiu
noite e dia, ainda não consegui esse feito, e por isso vim aqui
escrever sobre ela, como o leitor pode perceber. Eu tentei
esquecê-la, e, quando ela me visitava, fingia que realmente a
esquecera. Ou você, caro leitor, achou mesmo que eu deixei
aquele meu plano de lado, o de assassinar a namorada de
Aline, à toa, com aquela suposta explicação? Acreditou na-
quela esfarrapada teoria de deixar essa estratégia para depois?
Confesso que eu a fiz com bastante destreza, mas, de certa
forma, era uma tática para esquecê-la. Pois, como sempre
digo a mim mesmo: se amar uma pessoa é uma espécie de
paraíso, lutar até o fim em nome desse amor é uma espécie
de inferno.
Eu poderia levar a vida mais agradável e feliz, se não fos-
se um insensato; e toda aquela teoria dita até agora caiu por
terra, nessas horas. Acredito que o querido leitor vem perce-
bendo que minhas conjecturas, por mais interessantes que
sejam, e o plano que eu pretendia executar, de uma forma
ou de outra, vieram se modificando, mesmo que sutilmente;
vieram entrando em certas contradições. Acho que sobre o
amor nada pode ser feito na prática.
Mas por que é que as pessoas não podem falar de uma

80
Marc el o Vini ciu s

coisa, como meu desabafo ao amigo leitor, sem logo declara-


rem: “Isso é insensato, aquilo é razoável, aqueloutro é bom,
isso aí é mau”? De que servem todas essas palavras, esses ju-
ízos de valor? Você já conseguiu, graças a eles, penetrar no
coração de uma pessoa? Sabe analisar com rigorosa certeza
as causas que produzem a contradição humana, que a tor-
nam inevitável?
Então, espero que o caro leitor não levante nenhum
valor a meu respeito. O que poderia ser mais ridículo que
subordinar toda a nossa compreensão da realidade à crença
em valores e conceitos absolutos que todos respeitam, mas
ninguém sabe explicar? Precisamos ter consciência de que
esses valores não são objetivos, são coisas que não existem
efetivamente, mas apenas de modo condicional.
Ufa! Cansei de escrever! Por que é que aquilo que faz a
felicidade do homem acaba sendo, igualmente, a fonte de
suas desgraças?
Boa noite!

81
Marc el o Vini ciu s

Décima Anotação

Quantas vezes invejei a namorada de Aline, imaginando


quão feliz eu seria se estivesse em seu lugar! Se você, caro
leitor, soubesse até onde me leva o coração! Quando pas-
sava junto dela duas ou três horas, alimentando-me de sua
presença, de suas maneiras, pouco a pouco todos os meus
sentidos adquiriam uma tensão excessiva!
Para ser franco, caro leitor, a tristeza me dominou e tirou
meu ar, furou minha pele, procurando minhas veias magras
e verdes. Cortou-me o coração aos pedaços, tirou minha vida
reluzente e colorida e deixou um arco-íris preto e branco…
Adeus! Só vejo um fim a esses tormentos: o túmulo.
Há 15 dias que eu pensava em afastar-me de Aline. Era
preciso que eu me fosse! Ou esperaria, pacientemente, o dia
em que ela voltaria para sua cidade natal para nunca mais
nos vermos e essa minha angústia passar. Acreditava que po-
deria passar.
Hoje ela veio me visitar, no entanto mantive o ferrolho
da porta fechado. Assim, depois de algumas tentativas para
abrir a porta, ela me gritou desesperadamente:
— Você está mentindo para mim! — disse ela, do outro
lado da porta, pois sabia que eu estava em casa e não queria
atendê-la. Pelo menos, foi o que pensei na hora. Ou haveria

83
Minh a Q u er i d a Alin e

outro motivo para ela me gritar dessa forma?


De qualquer maneira, parecia que naquele dia algo de
errado aconteceria. Não sei dizer o porquê, eu simplesmente
sentia isso.
— Por favor, tente se acalmar. Já estou abrindo a porta —
disse eu, sem saber do que se tratava.
Escondido por uma greta da porta, eu olhava para aquele
rosto belo.
— Não, não, não! — ela gritava, tentando controlar as
lágrimas que queimavam sua vista, forçando-a a cerrar as pál-
pebras. — Por favor, pare com essa brincadeira de mau gosto
— implorava, rendendo-se ao sofrimento.
Depois de um silêncio, ela gritou novamente:
— Você não quer que tudo entre nós tenha sido em vão,
quer?!
— Por que me diz isso?! — eu perguntei, assustado e ten-
tando entender o que ela queria.
— Foi você quem agrediu a nossa colega! Ela conseguiu
se lembrar dos fatos! Seu homofóbico de uma figa! Já vinha
engolindo essa verdade faz algum tempo! E você continuou
calado, não me contou!
Então, depois do que ouvi, fiquei desesperado. Não ha-
via como escapar dali! Não queria que ela entendesse tudo
errado! Naquele momento, sentia que havia algo pesado em
minhas costas que parecia me esmagar contra o chão, como
um elefante ao pisar em uma formiga. Algo que pesava mais
que toneladas. Existia então, em meu lombo, uma vida intei-
ramente absurda de paixão literalmente devastadora e dilace-
rante. Eu suportaria mais uma dor?
Que tolo fui em acreditar que aquela garota não lembra-
ria de que eu também tentei lhe acertar com um pedaço de
madeira. Poderia até ser que ela se esquecesse do fato por

84
Marc el o Vini ciu s

alguns instantes ou dias, mas seria capaz de lembrar-se do


que aconteceu e, mais cedo ou mais tarde, isso poderia vir à
tona. Era óbvio que essa possibilidade era alta e não fiz nada
a respeito. É tão fácil se perder quanto julgar que se conhece
o caminho.
Por isso, não poderia consumir mais tempo e, desespera-
do, abri a porta e lá estava ela. Quando nos olhamos, cons-
tatamos que nós tínhamos as piores imagens de olhos tristes
com lágrimas. O coração batia muito apertado.
Sem saber como continuar nossa conversa, depois de um
silêncio mórbido, um olhando para o outro, eu disse:
— Eu te amo desesperadamente. Eu te amo incondicio-
nalmente!
Assim, tentei pegar sua mão, mas ela disse, afastando-se:
— Não me toque!
Foi então que percebi o jeito como ela estava: uma postu-
ra correta, um olhar distante. Ela não era assim.
— Posso explicar — eu disse, quase que como uma súpli-
ca. — Eu queria fazer com que você se afastasse das garotas
lésbicas, queria passar a impressão de que conviver com elas
era um risco, e assim você começaria a se sentir mais segura
comigo e eu poderia tê-la para mim… E... E... Mesmo pen-
sando isso, não agredi a garota, juro que desisti bem na hora
do ato... A madeira caiu da minha mão. Se eu atingi a garota,
foi sem querer...
Parei um pouco minha fala e olhei para ela, já que aque-
la minha explicação era absurda e nunca a convenceria de
nada. Era uma teoria minha, que, no fundo, era uma loucu-
ra. Todo louco tem uma teoria sobre algo. Todo mundo tem
uma teoria sobre a natureza humana. Todos têm que prever
o comportamento dos demais, o que significa que todos ne-
cessitamos de uma teoria sobre o que move as pessoas a ado-

85
Minh a Q u er i d a Alin e

tar determinadas condutas. E essa era minha teoria, que me


movia em direção a Aline.
Sem saber o que dizer, eu disse novamente, meio sem
jeito:
— Eu te amo!
— Ama nada! Pode ir parando com as suas mentiras! Eu
já estou cheia delas!
— Mas tente me entender…
Fui interrompido por ela, que disse:
— Você é louco! Apesar de que louco e homofóbico para
mim são a mesma coisa! E se você não agrediu a minha ami-
ga, de fato, foi porque você perdeu o controle da situação
ou sabe lá que diabo aconteceu! Não me venha dizer que
desistiu. Será que realmente você desistiu? Ou teve medo?
Ou perdeu o controle? Louco! Louco!
— Pare! Não sou louco! Você não entendeu o que eu
disse?
— Sim. Você criou um plano absurdo para me conven-
cer a ser sua namorada! Você é louco!
Então, sem muito que fazer, eu pedi a ela que, pela últi-
ma vez, me perdoasse. Que não mais repetiria aquilo e que
ela deveria me encarar como um pobre desesperado em bus-
ca de seu amor.
Ela se manteve em silêncio, olhando-me fixamente, tris-
te. Então andei em sua direção, peguei, todo trêmulo, sua
mão e a beijei. Aproximamo-nos insensivelmente para meu
quarto. Aline entrou e sentou-se na cama; colocamos-nos
juntos; mas eu estava agitado demais para ficar muito tempo
no mesmo lugar. Levantei-me, postei-me diante dela, cami-
nhei de um lado para outro e tornei a sentar-me. Sufocava-
-me uma imensa angústia.
Ela me compreenderia. Conhecíamo-nos há tempos. Ela

86
Marc el o Vini ciu s

sabia quem eu era de fato. Sabia que eu não era da forma


como ela me imaginava naquele momento de fúria. Pelo
menos, foi o que eu deduzi na hora, quando ela ficou em
silêncio, dando a entender que estava a me compreender de
alguma forma.
Assim, meio que sem assunto, Aline chamou nossa aten-
ção para o belo efeito do luar que iluminava o terraço intei-
ro na frente até a extremidade do quintal. Estendendo-me a
mão, e com os olhos marejados de lágrimas, ela disse:
— Nós vamos nos encontrar! Sim, nós vamos nos encon-
trar, não vamos perder nossa amizade por isso. Não se preo-
cupe. Só espero que não se repita mais, pois o que você fez
foi muito perigoso, colocou vidas em jogo e você pode até ir
para a prisão.
— Sei disso, eu te digo, não vou fazer mais, prometo —
disse eu, angustiado como um menino que levava uma bron-
ca da mãe.
Aline levantou-se, e eu, como que despertando de um so-
nho, senti-me zonzo. Permaneci sentado, prendendo ainda
sua mão.
— Já vou, tenho que ir embora. Vou voltar para minha
terra. Eu já estou me formando, como você deve saber; mas
vou te convidar para a formatura, se possível… Acredito que
nem seja possível… — disse Aline, com um tom de voz triste.
Ela quis retirar a mão, mas eu a apertei com mais força.
— Nós vamos nos ver de novo! — exclamei. — Nós te-
mos que nos encontrar de novo!
Aline ficou em silêncio e assim seguiu pela escada e de-
pois pela rua; fiquei imóvel, vendo-a distanciar-se à luz do
luar. Então, atirando-me ao solo, esgotei minhas lágrimas até
que, de súbito, reerguendo-me precipitadamente, corri para
a beira da janela; dali, eu vi ainda seu vestido branco brilhar
e tudo desapareceu.

87
Minh a Q u er i d a Alin e

Logo em seguida, liguei o meu aparelho de som, pouco


usado, e coloquei a música “Born to die”, da cantora Lana
Del Rey, que era a cantora que Aline gostava muito. Colo-
quei não só para me lembrar de Aline, mas também para me
torturar na lembrança por saber que não mais a encontrarei.
Os versos daquela canção me lembravam trechos da mi-
nha vida com Aline, como “Deixe-me te beijar intensamente
na chuva”, que me fez recordar a carona no meu guarda-
-chuva, que Aline pediu quando saímos da universidade na-
quele dia de chuva, e eu ali querendo beijá-la toda molhada.
Mas o verso que mais me marcou é a parte que diz: “Você
gosta de garotas insanas…” ou algo assim. Isso me fez lem-
brar do interesse dela por garotas… Na verdade, toda a can-
ção se encaixa em Aline, de alguma forma.
Música que me lembra cada pedacinho dos meus sen-
timentos que guardei para Aline. Lembra-me exatamente
tudo, tudo que há de importante entre nós. Comentei rapi-
damente antes, pois havia muito a dizer: essa canção me dei-
xa mais nostálgico, talvez porque seja a que Aline costumava
escutar. As palavras me perseguem quando escrevo isto, res-
suscitando memórias de outrora, e Lana Del Rey insiste em
cantar Aline…
Bela música, eu sei, mas para mim estava sendo infer-
nal. E, como castigo, eu precisava desse inferno. Como um
louco, andava pela quitinete, passava pela cozinha, pelo ba-
nheiro, colocando as mãos nos ouvidos como se eu quisesse
fugir da música, e ao mesmo tempo não tinha coragem de
desligar o aparelho de som. Aquela canção percorria cami-
nhos invisíveis, atravessava as paredes da quitinete até chegar
a mim. Não é passível de controle, é como combustão para a
irritação da minha alma. O que chegava ao meu ouvido era
uma sentença de morte. Preferia mil vezes ouvir os latidos de

88
Marc el o Vini ciu s

um cachorro desesperado de fome, uma mulher repentina-


mente louca gritando ou os ruídos de uma cidade contínua
e corrosiva a ter que ouvir naquele exato momento a canção
de Lana Del Rey, mas eu a ouvia. Parecia que eu estava em
um transtorno obsessivo-compulsivo, que, mesmo desejando
parar a música, não conseguia realizar tal desejo.
A música “Born to die” infiltrava como gente impertinen-
te pelos cômodos da minha residência… Mas canções assim
foram feitas para isso, para nos invadir o peito e nos contar
que sabem muito bem o que sentimos. Ficamos nus diante
de algumas canções. Música assim, mesmo nas piores situ-
ações, é sempre música, é sempre poesia que quer falar de
amor. Lá no fundo, não a culpei pelo agravamento do meu
sofrimento, já que poesia nenhuma pode ser responsável por
isso, pois amar em excesso faz tão mal quanto não amar.
Sim… Voltando… Depois disso tudo, eu comecei a ima-
ginar que Aline já sabia anteriormente do meu feito. Penso
que ela só resolveu se pronunciar agora porque já estava per-
to de ir embora, já que estava se formando da universidade…
Assim como Deus ama seu filho, eu amo Aline, só que
ela não reconheceu esse amor. O relato de Atos dos Apóstolos
da Bíblia, capítulo 9, versos 15 e 16, expressa essa condição
quando Jesus recomenda a Ananias o que deveria ser feito
com Paulo: “Vai, porque este é para mim um instrumento
escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis,
bem como perante os filhos de Israel; pois eu lhe mostra-
rei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome”. Na verdade,
Paulo tinha consciência de que sua vida cristã não estaria
isenta de sofrimento.
Portanto, como Paulo ao reconhecer que os sofrimentos
das pessoas são frequentemente usados pelo Espírito Santo
para levá-las a perceber que precisam de salvação e que pre-

89
Minh a Q u er i d a Alin e

cisam voltar-se para o amor de Cristo, Aline deveria reco-


nhecer todo esse meu esforço, que a levaria para meu puro
amor… Deveria, mas isso não foi possível.
Por isso, hoje a dor me despedaçou e agora quase não
consigo continuar a escrever… Não me sinto bem! Não sei
o que é que há! Mas alguma coisa está errada e dá mal-estar!
Preciso parar, preciso parar depressa!
Boa noite!

90
Marc el o Vini ciu s

Décima Primeira Anotação

Hoje comecei a achar minha situação relativamente su-


portável. O melhor era que não faltava com que me ocupar;
havia os estudos da universidade, o projeto de bolsa de ex-
tensão universitária e alguns afazeres diários… Resolvi, de
novo, ligar o meu aparelho de som, então o fiz tocar a música
“Forget It”, do cantor Sixto Rodriguez. Trechos da música
como “Não deu certo, mas nunca duvide do que eu senti por
você…” me retratam neste momento. Escrevo isto enquanto
ainda cantava a canção: “mas obrigado por seu tempo. En-
tão, pode me agradecer pelo meu e, dito isso, esqueça…”.
Realmente o dia de hoje pareceu que se arrastaria à dez
músicas por hora… “I Wonder”, “Rich Folks Hoax”, “Sugar
Man”, “Crucify Your Mind”… E mais outras canções de
Rodriguez insistiam em me acompanhar, como um triste
fantasma a me espreitar, se comportando como o fiel cão
seguindo o seu senhor.
Você, leitor, deveria estar ao meu lado para ouvir essas
canções. Não bastasse os arranjos tristes, as letras são um hino
para todos os cansados, os abatidos, os infelizes, os solitários.
Enfim, se você de qualquer forma é um fudido na vida, essas
letras falam com você. E não importa se em alguma música
Rodriguez estará mandando você se segurar firme, você vai

91
Minh a Q u er i d a Alin e

se sentir querendo correr para o banheiro, seja para enxugar


as lágrimas ou para abrir aquela gillette…
Como era previsível e conformado, voltei-me novamente
a Aline com os olhos que nunca deixaram de vê-la. Assim,
como uma surpresa do inconsciente, eu disse para mim mes-
mo: “Se você me visse, minha amiga, naquele turbilhão de
distrações! Se você pudesse ver como tudo em mim se tornou
árido e seco! Mesmo assim, em um só momento experimen-
tei a plenitude do coração, provei uma hora de felicidade!”.
Pois… Meu caro leitor, pense, lendo isto, que é a história
de seu amigo! A essa altura hei de ser um amigo, porque eu
não confessaria tamanha intimidade senão a um amigo. Sim,
eis o que me aconteceu e o que me acontecerá, e não sou,
nem sequer por sonhos, tão honesto, tão teórico, tão filosó-
fico e tão decidido como parecia no início deste escrito em
relação ao amor e as minhas ações.
Sim, para mim é um paradoxo a existência humana, tanto
em sua vida quanto em suas obras. São nessas situações que
vivemos que percebemos a importância dos livros e do esforço
da literatura para tentar compreender a existência humana.
Só Deus sabe quantas vezes mergulho no sono com a
esperança de nunca mais despertar; e, pela manhã, quando
arregalo os olhos e torno a ver o sol, sinto-me profundamente
infeliz. Não, não sou culpado, mas é em mim que está a fon-
te de todos os meus males, como outrora, ao lado de Aline, a
fonte de toda a minha felicidade. 1
Ao falar com Deus, não posso dizer a Ele: “Fazei com
que ela seja minha!”. E, no entanto, parece-me, às vezes, que
ela me pertence. Não posso dizer: “Fazei com que ela seja
minha”, porque já é de outra pessoa.
E então, meu amigo leitor? Meu amor por ela não é o
mais fraternal, o mais santo, o mais puro dos amores? Sentiu

92
Marc el o Vini ciu s

em minha alma um desejo culpável? Meus sentidos deliram.


Tenho medo de mim mesmo. Há oito dias não tenho sequer
força para pensar; meus olhos estão sempre cheios de lágri-
mas; não me sinto bem em parte alguma. Não desejo nada,
não peço nada; o melhor é confinar-me.
Não quero mais comer, nem beber, nem dormir; em
meu estado de angústia, faço tudo ao contrário e me esqueço
dos afazeres. É como se eu estivesse possuído de um mau es-
pírito. Meu caro leitor, acho-me no estado em que ficam os
desgraçados que se dizem possuídos de um espírito maligno
e isso me acontece muitas vezes. Senti no âmago do meu ser
que tinha feito algo perverso do qual eu poderia me arrepen-
der mais tarde.
Curvado sobre um abismo em minha alma, tive vontade
de atirar-me da janela deste andar. Minha hora ainda não
chegou, bem o sinto! Mas há de chegar!
Às vezes, me pergunto: por que este mal-estar? É porque
não estou vivendo do único modo que existe para cada um
viver? Melhor um sofrimento verdadeiro do que uma alegria
inventada. 21
Boa noite!

93
Marc el o Vini ciu s

Décima Segunda Anotação

De repente, hoje, em uma surpresa, a amiga de Aline,


especificamente aquela que tentei golpear na rua, veio até
minha quitinete. Tomei um susto, pensei que ela vinha tirar
satisfações, mas calada estava e calada ela ficou até ir embo-
ra. Seu único gesto foi me entregar um bilhete. Também me
mantive calado e, quando ela se retirava, já de costas, fechei
a porta lentamente.
Confesso que no momento estranhei tudo aquilo, já que,
com tanta tecnologia, por que havia de ser um bilhete a che-
gar às minhas mãos? Será que o remetente não teria coragem
de contatar-me diretamente? Portanto, ansioso, abri aquele
bilhete, que por sinal era um pouco longo, ocupando quase
duas páginas completas de um caderno. Quem teria neces-
sidade de escrever tanto assim? Que absurdo! Acreditei que
quem o escrevera o fizera com muita vontade, e assim receei
ser algo sério!
Vi que o bilhete era de Aline e nele estava escrito, de
forma bem direta:
“Meu querido,
Apenas um momento de sangue-frio! Você não sente que
é tudo por sua culpa, que você se perde voluntariamente? Por
que deveria ser eu? Logo eu, que pertenço a outra pessoa?

95
Minh a Q u er i d a Alin e

Digo que não tinha intenção de separar-me de você, mas


realmente, da maneira como ia nossa relação, essa se tornou
a única saída. Mesmo sem me entender, quero que respeite
minha postura de não querer partilhar meu tempo contigo,
não por agora. O que acontece é que, de fato, eu te amei de-
mais, muito mais que qualquer outra coisa em minha vida,
mas como amigo; somente como amigo.”
Não terminei de ler toda a carta, por enquanto, pois eu
estava muito agoniado com o que vinha lendo até o momen-
to e assim li e reli somente esse trecho muitas vezes, e meus
olhos encheram-se de lágrimas; até que por fim deixei-as cair
e escondi o rosto entre as mãos. Depois, a única reação que
tive foi beijar aquele bilhete mil vezes, pois eu sabia que ti-
nha passado pelas mãos de Aline.
Após algum tempo, pensei no bilhete e nele ela tinha
me chamado de “meu querido”. Era a primeira vez que me
chamava de querido, e isso me penetrou no fundo do peito.
Repeti isso cem vezes: “meu querido, meu querido…”, e não
pude deixar de rir de mim mesmo.
Dessa forma, pensei em lhe responder com outro bilhete.
Então, procurei uma caneta perdida na gaveta e com um
pedaço de papel comecei a escrever:
“Minha querida Aline,
Por que lhe escrevo também? Ora… Preciso que você sai-
ba que, ao ler seu bilhete, senti primeiro a ira, a raiva e a triste-
za. Com o tempo, fui dando espaço à reflexão. Minha reação
ainda é de desorientação, mas também de felicidade…”
Então, de repente, parei de escrever. Veio-me à mente
a loucura que eu fazia, pois ela tinha mandado um bilhete
para que eu, de certa forma, a esquecesse, e mesmo assim
eu tentava responder-lhe com palavras tão apaixonadas. Por
quê? Não fazia sentido. Isso tudo me ocorreu no papel só

96
Marc el o Vini ciu s

porque ela me chamou de “meu querido”? Como sou tolo…


Então, com ansiedade e alegria, continuei a leitura de
sua carta, e foi aí que tive a desagradável surpresa, pois ela
continuou com a mensagem, dizendo:
“Não sei como reagirá ao ler-me a partir de agora, mas
peço-lhe, acima de tudo, que se cuide. Promete que vai se
cuidar? Cuide-se para não preencher seus espaços com coi-
sas erradas, que o levem para onde você não desejaria estar.
Cuide-se! Lembre-se disso, pois ninguém fará isso por você,
nem remédios, nem profissionais de saúde, nem quem o
ama; só você mesmo.
“Agora, espero que me compreenda e que fique claro
que eu jamais o trairia, já que quero o melhor para você.
No entanto, eu precisava tomar uma atitude e a única coisa
que posso fazer agora é avisar, de antemão, que eu e minha
amiga, agredida por você, o denunciamos à polícia. Isso não
poderia ser ignorado! Acredito até que sua saúde mental não
está boa. Não se assuste. As autoridades provavelmente pode-
rão avaliar isso também junto com os profissionais de saúde
mental. Fiz esse pedido a eles. Entenda que, mesmo sendo
um amigo meu, isso não poderia passar impune. Afinal, você
quase tirou a vida de uma pessoa. Você realmente a agrediu?
Precisa se esclarecer com a polícia.
“Acredito que tenha percebido que ultimamente tenho
andado meio chorosa, tristonha, e que nada comentei com
você sobre esse assunto em nossa despedida, porém a denún-
cia à polícia já estava feita momentos antes de nos despedir-
mos. Só não tive coragem de lhe contar naquela ocasião,
pessoalmente, pois fiquei com medo de sua reação. Não sei
como você anda emocionalmente.
“Já passei muitas dificuldades em minha vida. Contudo,
nada se compara a isso que venho sofrendo agora. Saber que

97
Minh a Q u er i d a Alin e

um amigo meu está para ser processado por motivo de ho-


mofobia ou por uma ação de loucura me corrói a alma.
“Não me leve a mal, mas, desde o dia daquele ocorri-
do, daquela tragédia, quando você pareceu machucar minha
amiga, tenho andado perplexa e muito abalada psicologica-
mente. Pensei em não lhe escrever esta carta, até acredito
que não haja mais tempo, mas não consegui conviver com
essa situação e decidi que era hora de lhe contar toda a verda-
de, antes que a polícia lhe contasse. Mesmo sendo sua ami-
ga, foi necessário denunciá-lo. Logo algum representante da
justiça lhe entregará uma intimação judicial.
“Sinceramente, senti raiva de você, mas também pena,
pois poderia ser um grande homem.
“De qualquer forma, só quero que saiba que posso per-
doar muita coisa a um homem doente, mas não tudo. Por
isso, peço que me compreenda, como também peço que se
cuide. Espero que melhore!
“Vou lhe pedir mais uma coisa, que provavelmente será
absurda, já que está passando por uma situação difícil; mas,
mesmo assim, gostaria de lhe solicitar que assista a um filme
intitulado ‘Orações para Bobby’. Sei que esse não é o momen-
to ideal para indicar filmes, acho que nem terá tempo e pa-
ciência para isso, no entanto, eu o indico, pois acredito que
poderá lhe inspirar novos sentimentos, uma nova consciência.
“Desculpe-me, não quero parecer irônica nesta carta e
nem ridicularizar sua condição. Veja isso como uma tentati-
va desesperada de uma amiga de ajudar um amigo da forma
como pode, sendo que, possivelmente, você logo estará em
um centro de recuperação.
“Lembre-se de que, apesar de tudo, você ainda é um ami-
go. Odeio vê-lo nesse estado, isso me perturba. Fico triste
com seus pensamentos, pois nunca os vi com tanta violência.

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Marc el o Vini ciu s

Há muito tempo que eu me inquieto por você e por nós, por


causa da solidão e da loucura em que você se trancou nesses
últimos tempos.
“Entretanto, assuma consigo mesmo as consequências
de seus atos e futuramente encontre o propósito de procu-
rar outro alguém. Mesmo pagando por seus erros, não de-
sista de viver, procure e encontre um objeto digno de seu
amor e cuide-se. Ter dores é realmente ruim, porém, pense:
o que é bom passa, mas o que é ruim também passa. Evite se
concentrar na dor. Comece a pensar no que pode fazer para
livrar-se dela. Pense em coisas construtivas para achar saídas
para seu sofrimento.
“De fato, não posso me alongar muito nesta carta, pois
tenho que viajar, como você já sabe. Então, concluo dedu-
zindo que talvez você tenha chegado a um ponto no qual
tudo é novo outra vez e você meio que se cansou de todos os
projetos passados e das coisas nas quais não o movem e nem
o comovem mais. Neste momento, respire um pouco e saiba
que as coisas boas estão por vir.
“Sua amiga, Aline Rios.”
Uma carta que começou tão bela terminou tão depri-
mente. Vi meu mundo desabar. Que situação horrível é sa-
ber que fui denunciado para a polícia e que corro o risco
de ser processado! Saber que quem você mais ama é aquela
pessoa que o encara como um doente mental! Aquela carta
foi uma espécie de carta-bomba para mim!
Acredito, depois dessa leitura, que as expressões usadas
por Aline na carta, como “meu querido”, eram só uma for-
ma de me iludir ou de me confortar para que eu enfrentasse
com vigor o problema triste que o destino me reservava, pois
nós jamais nos veríamos novamente. No fundo, era uma lon-
ga carta de adeus.

99
Minh a Q u er i d a Alin e

Sinceramente, caro leitor, nesses últimos tempos nem


mesmo compreendo meu próprio modo de agir, pois não
faço o que quero e sim coisas esquisitas, insanas e repugnan-
tes. Não tenho tido controle de minhas vontades e desejos,
o que tem me levado a tomar atitudes horrendas e tolas. Às
vezes, acho que estou louco e não sabia disso.
Não entendo por que estou passando por tantos proble-
mas de cabeça. Assim, fico me perguntando por que razão
alguém como eu não desfruta de paz de espírito. Quanto
mais penso nisso, mais atormentado tenho ficado.
Tenho estado amedrontado e às vezes sou acometido por
sentimentos de pânico e desespero, quando alguém bate à mi-
nha porta, pois penso ser um oficial da justiça que sei que está
para chegar a qualquer momento. Ando aflito com o futuro,
com o passado e com as circunstâncias do presente. A todo
momento ando temendo perder tudo que tenho, como minha
suposta saúde mental. Essas coisas têm brotado de meu cora-
ção, do âmago de meu ser, e têm me causado tanto sofrer!
Confesso que quando me dei conta da terrível certeza de
que o nosso amor era impossível, fui dominado por um sen-
timento de distanciamento da realidade. Não consigo mais
reconhecer a mim mesmo. Não sei mais quem sou. Às vezes,
penso que estou vivendo um sonho, faço parte de um filme
ou sou um personagem de um livro de ficção. O ser humano
é uma paixão inútil. O ser humano é um amor inútil. Perdi-
-me em vão. Esse meu desejo de perder-me para que dele,
isto é, dessa perda, tivesse Aline para mim, tratou-se de um
sacrifício inútil, de um amor inútil. 20
Como homem, eu sou responsável pela minha paixão,
pois não creio mais na potência da paixão, do amor e jamais
pensarei que uma bela paixão ou um amor puro seja uma
torrente devastadora que me conduza fatalmente a certos

100
Marc el o Vini ciu s

atos, e que isso, por conseguinte, me sirva de desculpa. Sim,


isso mesmo, de imediato, agora, eu estou questionando a hi-
potética força avassaladora do meu amor puro. Parece que
toda a minha teoria do puro amor se desfez. 20
Assim, perdi o controle de minha mente e de meu corpo.
Isso se reflete no descontrole geral de minhas próprias ações,
incluindo a fala, a capacidade de raciocínio, a vontade de estu-
dar e o desejo de me entrosar com outras pessoas. Será que essa
minha atitude de ser antissocial já era uma predisposição para
tal situação em que vivo agora, que se agravou com o fato de
que realmente não terei Aline como meu amor, quando perce-
bi que não havia mais esperanças, mesmo que ínfimas?
Que contraditório! Parece que sempre quero que algo me
sirva de desculpa! Devo assumir os meus atos e me acalmar
ou me castigar até o fim dos tempos? Sou uma contradição!
Eu sou uma contradição que mata cada exemplo de vida
como se não tivera nada a aprender, porém busco entender a
melhor forma de caminhar entre o certo trilhando um atalho
entre o errado... 18
Às vezes, também, acho que meu cérebro pode “se re-
belar” e não obedecer ao que estou querendo que ele faça.
Aquilo que estou fazendo não sou eu, mas meu cérebro. Pos-
so perder o controle e ferir pessoas queridas. E se eu for um
cachorro e não uma pessoa? Caro leitor, às vezes acho que
estou ficando louco, tamanho o absurdo que me vem à cabe-
ça. Tenho medo de perder o restante do controle que ainda
acredito ter, se já não perdi.
Que ódio! Não posso mentir! É comum também a impres-
são de que vou perder o controle e me atirar ou empurrar al-
guém de um lugar alto. Várias vezes eu escondi facas, tesouras
e fósforos de mim mesmo, como se isso fizesse algum sentido!
Lutei tanto por um amor perfeito, o puro amor, sem sig-

101
Minh a Q u er i d a Alin e

nificações humanas. Só que acredito que tenho a loucura…


O amor salvou o personagem Raskólnikov. Não serei salvo
também? Por quê?
No momento em que escrevo isto, fiz uma pausa e olhei
para as coisas ao meu redor, os móveis de minha quitinete.
Tudo o que vejo, penso que poderia estar comendo: vejo o sofá
e me imagino comendo-o. Acho que estou morto por dentro,
estou vivo só por fora. Eu não sou quem acho que sou. E pior:
só depois dessa situação com a Aline é que me dei conta que
tenho alguma coisa diferente em mim que afasta todo mundo.
Sim, eu dizia ser antissocial, mas só agora senti o peso dessa
palavra. Será isso o motivo de ter apenas um amigo? Será que
aquilo que vejo é mesmo aquilo que existe?
Meu Deus! Meu Deus! Agora onde? Onde foi isso? O
que se passou? Como isso é possível? O que me aconteceu?
Onde estou agora? Por que não estou realmente lá? Não per-
cebo… Estou confuso! Meu coração é um almirante louco!
Por certo louco? Por certo sonho…
Desculpe-me. Eu sou uma contradição mesmo e foge da
minha mão fazer com que tudo que eu escrevo aqui faça al-
gum sentido. Acredito que eu quis me perder por aí... 19
Nossa, cansei! Caro leitor, novamente não dá mais para ano-
tar nada, pelo menos não por hoje, pois estou num momento
em que a cabeça não está mais coordenando as palavras que
tento confiar ao papel. Já passa de uma hora da madrugada e
amanhã tenho que acordar cedo. Resolvi ir à universidade, mas
não sei o que realmente farei lá… Estou confuso…
Tentarei, apesar de tudo, ainda dormir em paz hoje, pois
o que me consola é saber que não sou eu o único a quem
tais coisas acontecem. Todas as pessoas sofrem decepções em
suas esperanças.
Boa noite!

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Marc el o Vini ciu s

Décima Terceira Anotação

Hoje encontrei um texto escrito por mim. Era quase uma


carta, mas não me lembrava de tê-lo escrito de fato. Era um
papel cheio de dobras malfeitas, ligeiramente amassadas. A
tinta da caneta usada ainda mantinha um bom contraste, o
que o tornava legível.
Dentro de mim senti que não devia ter encontrado a
tal carta, mas queria saber quem eu era, queria saber o que
aconteceu, então resolvi abri-la, procurei um pouco de cora-
gem para fazer isto.
Isso foi tão estranho, pois aquele texto, embora antigo, era
tão atual e familiar. Que quem quer que o lesse teria uma
profunda intimidade com o autor. Daquela ponta da caneta,
as palavras fluíram com naturalidade. Tudo era simples, evi-
dente e claro.
Naquele papel havia o seguinte texto:
“Hoje falei com uma garota que há tempos não via. Na
verdade, não falei, só disse um ‘oi’… Aliás, só a cumprimen-
tei com um gesto… Minto, só pensei em falar com ela… Ah!
Não sei mais o que houve, foi tudo tão confuso que, quando
a vi, perdi a cabeça! Nunca se sabe aonde conduz esse ca-
minho; primeiro, cedemos nas ações, depois, nas palavras, e
depois, pouco a pouco, nos pensamentos.”

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Minh a Q u er i d a Alin e

De fato, nesse texto eu falava sobre Aline, logo quando a


conheci. Bem no início de tudo. Saudades do tempo em que a
conheci. Era tudo tão simples e bonito. Sabe aquele amor em
que os olhares se cruzam no primeiro encontro? Então, esse
foi o meu, mas só o meu, pois sei que Aline não sentiu o mes-
mo… Ri de mim agora! Uma risada desesperada, eu acho…
Creio que estou escrevendo sobre mim mesmo e não
sobre Aline. Sempre soube quem Aline realmente era, mas
acho que o amor é quando você ama alguém e sempre tem a
certeza de que essa pessoa não ama você.
Agora, estou escrevendo no meu quarto, pensando como
é estranho o amor. Queria tanto escrever outro texto para ela,
da mesma forma que fiz logo quando a conheci.
Não… Não vou escrever nada disso. Também não sei ao
certo o outro endereço dela, em sua cidade natal.
Nossa… Isso tudo, para mim, ainda é muito difícil de re-
cordar… de confessar… de escrever. Pode ser que estes meus
escritos sejam um erro. Sinto-me desconfortável todo o tem-
po. Apesar de ter comentado sobre homofobia, desigualda-
de e tudo mais, foi só por interesse pessoal na escrita. Não
pretendia fazer nada como uma história moral, nem contar
como arruinei minha vida.
E quando eu disse que a vida estava acima de tudo, dis-
se porque achei necessário para o momento que vivi. Hoje,
posso dizer que sou mais é acostumado a viver, pois viver é
um incômodo. Só vivo porque posso morrer quando quiser,
senão já teria me matado há muito tempo. Juro que quando
aquele oficial bater à minha porta não me encontrará vivo.
O caro leitor pode até ter me achado idiota por vivenciar
esse amor desenfreado, mas todos nós somos mais ou menos
idiotas em relação a alguma coisa na vida. Mesmo sendo um
idiota, pode ser que eu esteja mais vivo que você.

104
Marc el o Vini ciu s

Sim, pode ser que eu esteja mais vivo que você, porque só
através dos olhos de Aline é que eu conseguia me ver como par-
te do mundo. Sem a convivência dela, eu não podia perceber-
-me por inteiro. Só o convívio com Aline que era capaz de me
dar a certeza de que estou fazendo as escolhas que desejo.
E por pior que seja a dor que sinto, queria tanto oferecer
um carinhoso agradecimento a Aline, que propiciou a mim
tão gentil e hospitaleiro abrigo. A cada dia aprendi a amá-la
mais e mais e em parte alguma poderia eu reconstruir minha
vida. São necessárias forças incomuns para começar tudo
de novo. Acredito. Embora fosse ela quem impossibilitou a
concretização de meu projeto do puro amor, colocando-se
sempre no meu caminho, não posso evitar o meu desejo de
convivência. Sem Aline o próprio projeto da minha existên-
cia não faz sentido. É daí, eu creio, que vem a ideia de que o
inferno são os outros.
Desculpe-me por tratá-lo assim, leitor. É que hoje é um
dia diferente para mim. Hoje amanheceu um dia hostil.
Amanheceu um dia hostil; choveu, e as gotas de chuva
soavam como uma espécie de lamúria monótona em minha
janela; dentro de casa estava escuro, como acontece nos dias
de chuva.
Não sei por que, quando relanceei a vista através da ja-
nela, pareceu-me que os prédios envelheceram e que a uni-
versidade estava mais escura e arruinada. Seriam meus olhos
que visavam meu futuro e nele viam algo de árido e de triste,
algo semelhante a mim mesmo, ao que sou agora, àquilo que
serei dentro dos cincos anos de estudante universitário, neste
mesmo quarto, igualmente só?
Sinto que minha vida está se desfazendo com se fosse fu-
maça. Temo que esteja ficando louco e não sei mais o que fa-
zer, a quem recorrer… Estou desesperado, precisando de au-

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xílio, querendo livrar-me de tal opressão... Quando eu ainda


freqüentava as aulas de História, Filosofia e outras disciplinas
de ciências humanas e sociais, devido, às vezes, as optativas
do curso da universidade, como ditas rapidamente aqui, por
mais estranho que pareça, nem Marx e nem Weber me en-
cantavam, somente Napoleão era quem eu mais admirava...
Qual seria a reação de Napoleão, se ele estivesse em meu
lugar? Comecei a duvidar de tudo. Acho que só Deus pode
me libertar de tamanha dor! Será que Deus pode me ajudar?
Infeliz, infeliz de mim! Sofro sem saber quando virá um
tempo em que Deus fixará um limite para meus sofrimentos
ou me concederá a coragem do suicídio, para escapar-me
da infelicidade a todo preço. Mas reconheço que, por esse
meio, não se escapa de um mal senão para cair em outro,
que é cem vezes pior, já que, mais do que a morte, é o que
vem depois dela que parece ser a grande perturbação do ser
humano; assim, o dilema de viver em martírio ou de se jogar
no abismo existencial.
Mas, mesmo sem coragem ainda de dar cabo de minha
própria vida, a ideia do suicídio é uma grande consolação que
ajuda a suportar muitas noites más. 11 No fundo, o suicídio
não é querer morrer, é querer desaparecer 12. Por isso é que há
tanto dilema no homem a respeito de tirar a própria vida.
Que diabos! Quando estou em crise tento ter esse mes-
mo pensamento sobre o suicídio. Há uma sentença insólita
que formula o mesmo pensamento como que em um ditado
místico 13. Mas não sei por que isso insiste em mim, não sei
por que esse pensamento ainda briga comigo como sendo
um pensamento intrusivo, o qual não está sob meu controle,
como uma obsessão… É como se estivesse possuído de um
mau espírito.
Ai de mim se me entristeço… Eu queria escrever tudo

106
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que sinto, mas na verdade o que fará efeito é colocar meu


corpo morto à mesa, no altar, e deixá-lo exposto, em alta e
clara luz, para que todos contemplem que não é mentira o
que eu disse até agora, neste meu escrito.
Para eu entender a mim mesmo só há dois motivos: ou a
lembrança da felicidade passada é a angústia de hoje ou as ago-
nias que têm sua origem nos êxtases que poderiam ter sido.
Não sei… Ao pensar nisso tudo, faço uma pausa. Não
ouso passar dessa reflexão. O melhor que posso fazer agora
é desejar que minha querida Aline nunca caia neste mesmo
abismo em que caí. Que sua vida seja feliz e tão clara e agra-
dável como seu doce sorriso, e bendita seja ela pelo instante
de felicidade que deu a meu coração solitário e agradecido!
Mas… Mas já basta, basta de confissões.
Amigo leitor que fielmente chegou até o final deste es-
crito um tanto cansativo e drástico, que sente as mesmas an-
gústias deste infeliz que lhe escreve; possa você encontrar
alguma consolação de que tanto necessite neste momento,
sem vender-lhe ilusão da solução instantânea de seus males,
mas sim o alívio…
Desculpe-me, leitor. Por um instante, tive que parar de
escrever, pois alguém bateu à minha porta. É um oficial da
justiça, vi pela gretinha! Ainda não a abri e nem farei isso.
Não poderei escrever mais nada! Tenho que ir! Tenho que ir!
Aliás, não irei fugir. Não irei tirar minha própria vida.
Agora desisto de mais um plano meu. Sou um fracasso.
Sem reservas eu me entrego... Se meus pecados crescerão
enquanto eu alimentá-los, entrego-me e tudo passará. Com
fé em Deus... Mas se Deus existe, então filósofos, teólogos,
respondei a este coitado que vos interroga e dizei-me por que
é que Deus me criou e me lançou no mundo? 14
Que mundo absurdo é esse em que fui lançado? Sou

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Minh a Q u er i d a Alin e

mesmo um fracasso ou consciente de que se a vida é verda-


deiramente absurda, combatê-la com o suicídio é ainda mais
absurdo? Não sei a resposta, pois toda a afirmação me parece
uma negação de algo que não sei nomear e que se transforma
em loucura! Eis porque sofro, de olhos secos, por esse desejo
de exílio da vida. 17
Enfim acabou... Acabou o quê, como isso acabou? Se é
que um dia existiu esta história. Talvez nunca tenha começa-
do nada, pode ser que não existiu, apenas foram momentos
que descrevi neste papel... Apenas momentos! Estado de lou-
cura? Era tudo invenção, ficção e nada existiu de verdade!
Somente Aline existiu em mim!
Boa sorte e adeus!

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Nota de Esclarecimento

Este manuscrito foi encontrado acidentalmente na bi-


blioteca por uma estudante da mesma universidade onde
supostamente o narrador desta história estudava. O texto, es-
crito a mão, reprimia um relato provavelmente verídico, de
autor desconhecido. Todo esse mistério, apesar de completa-
mente improvável, conquistou de imediato a atenção dos es-
tudantes e assim as sementes do interesse pelo personagem,
pelo mistério e pelo oculto que se manifestara na descoberta
deste manuscrito nessa Instituição de ensino há décadas já
haviam sido lançadas e germinaram com intensidade nos
anos seguintes.
Hoje, este manuscrito está no Museu da cidade, em pos-
se da universidade, mas atualmente administrado pelo gover-
no do Estado.

109
Marc el o Vini ciu s

Índice Onomástico

1
Citação, com adaptações, do “Os Sofrimentos do Jovem
Werther” (1774), um romance de Johann Wolfgang von Goethe.
2
Adaptação do “O coração Denunciador”, de Edgar
Allan Poe.
3
Hermann Bahr – 1916, com adaptações.
4
Arthur Schopenhauer, (filósofo alemão 1788 - 1860)
5
Citação, com adaptações, de Leonardo Boff
6
Adaptação de “Crime e Castigo”, de Dostoiévski
7
“A Queda da Casa de Usher”, de Edgar Allan Poe.
8
“Memórias do Subsolo”, de Dostoiévski.
9
Essa é uma frase atribuída a Napoleão Bonaparte.
10
Essa é uma frase atribuída a Honoré de Balzac.
11
Essa é uma frase atribuída a Friedrich Nietzsche.
12
Essa é uma frase atribuída a Georges Perros.
13
Tomás de Aquino, comentário ao Liber de Causis.
14
Esse é um trecho do texto atribuído a Sebastien Faure,
com adaptações.
15
Jaya Hari Das, com adaptações.
16
Citação, com adaptações, do “O Vazio da Máquina”,
de André Cancian.
17
Um pensamento da filosofia de Albert Camus, com
adaptações.

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18
Essa é uma frase atribuída a Julio Aukay, com adaptações.
19
Adaptação da canção “Memórias”, de Pitty.
20
Jean-Paul Sartre em “L’Existentialisme est un humanis-
me”, com adaptações.
21
Essa é uma frase atribuída a Clarice Lispector, com
adaptações.

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Este livro foi composto em Electra LT Std pela
Editora Multifoco e impresso em papel pólen 80 g/m².

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