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A tortuosa estrada entre Utopia e Na-koja-abad

“O homem de sensibilidade justa e reta razão, se se acha preocupado com o mal e a


injustiça do mundo, busca naturalmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais
perto se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-lhe-á essa obra toda a
vida.” (Fernando Pessoa, Livro do Desassossego)

Há semelhanças entre os lugares descritos por Thomas Morus como Utopia e pelo
filósofo persa Suhrawardi como na-koja-abad a começar pelo significado. Ambos os
termos foram cunhados pelos autores e ambos significam um lugar fora da realidade,
um não-lugar como poderiam ser traduzidas as duas expressões. Também há
semelhanças entre os autores dos termos, ambos considerados santos por seus pares,
martirizados por suas convicções por tiranos interessados em impor sua crença, ambos
habitando entre os mundos tão diversos da política e da espiritualidade.
Mas as obras são essencialmente diferentes, Utopia fala como o autor acha que deveria
ser a sociedade para que ela fosse estável e incentivasse o bem; Na-Koja-abad pretende
ser a descrição de um mundo real – mais real que o nosso na verdade – no qual é
possível compreender a realidade de uma forma mais precisa, o Mundo Imaginal, como
lhe chama Corbin, afim do Mundo das Ideias platônico.
Há um contradição severa entre o que se busca em uma ou outra terra, entre a busca da
perfeição da sociedade e a busca pelo conhecimento do indívíduo – que registro na
citação que é uma das minhas passagens preferidas de Pessoa. O mundo da política
onde a primeira luta se trava tem pouco a ver com a elevação espiritual essencial à
segunda em quase todo ângulo pelo qual se olhe.
Não há risco maior na político do que ser naïve ao mesmo tempo que qualquer malícia
pode conspurcar a busca por aquele caminho que nos eleva para além de Dunia – termo
islâmico mais ou menos afim do termo hindu Maya que significa este mundo
temporário e ilusório em que vivemos. Sempre que medito sobre isto me lembro do
verso na música de Cássia Eller – “Só peço a Deus um pouco de malandragem” e na
fala de Augusto Matraga no conto de Guimarães Rosa: “Pro céu eu vou nem que seja a
porrete!”.

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