Você está na página 1de 84

Grupo Único PDF PaD

ARTHUR CONAN DOYLE


C O L L E C T I O N

O melhor de Sherlock Holmes em 4 volumes

Grupo Único PDF PaD

Nasias
livrar

Ou acesse www.escala.com.br
/escalaoficial
EDITORIAL

O querer e a
organização social
N
esta edição, Renato Nunes Bittencourt, docente da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, traz a perspectiva schope-
nhaueriana sobre a sociedade do consumo, no entendimento
de que o esforço do pensador em compreender a vontade
humana e como esta é negada na Modernidade passa por uma análise
desse contexto à luz do capitalismo vigente. O querer irrefreável e egoísta
seria a base dessa sociedade e, possivelmente, a raiz de seu sofrimento.
Ainda neste número, Fabio A. G. Oliveira (org.), professor de Filosofia
da Universidade Federal Fluminense, e colegas trazem a segunda parte
do dossiê sobre democracia, agora tratando de temas como feminismo,
racismo, tecnologia e meio ambiente. Na edição passada, a leitora e o
leitor tiveram contato com o histórico de construção do conceito de demo-
Grupo Único PDF PaD
cracia, o seu tratamento como expressão política de uma concepção de
justiça mais inclusiva e uma discussão, sob uma perspectiva democrática,
de temas como laicidade, inclusão e sexualidade.
Como bem abordou Oliveira, em introdução a esse dossiê, em número

SHUTTERSTOCK
anterior de Filosofia, responder a pergunta “o que é democracia” exige de
nós “um mapeamento histórico-filosófico que envolve diferentes aspec-
tos espaço-temporais da organização social, econômica, cultural e política
da vida”. Trata-se, assim, segundo o acadêmico, de colocar em xeque os
valores e processos imbricados na condução e manutenção dos direitos, mas também
das desigualdades, dos privilégios e da exclusão, muitas vezes institucionalizadas por
processos legais.
Defender a democracia seria, em suma, um projeto de enfrentamento à nova obscu-
ridade, tal qual propõe Habermas, combatendo-se, como lembrado por Oliveira, “uma
espécie de valoração da ignorância, fruto da equiparação entre crenças e certezas, da
valorização do dogma e controle persecutório do diferente, dissenso e contraditório
através de uma educação crítica”.

Boa leitura!

Da Redação

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 3
SUMÁRIO ANO XIII No 151 – www.portalespacodosaber.com.br

A LIBER
DE EXPR DADE

JANIN
ESSÃ
POR RENA O,
TO
E RIBEI
RO

DOSSIÊ
DEMOCRACIA
Segunda parte
aborda propostas
democráticas
para o meio
ambiente, entre
outros temas

CONTRA
A FILOSOFIA

número 151
DO “OPA!”
Obra de Ken Wilber
traz explicações
alternativas
para a evolução
do universo

Schopenhauer e a
negação da VONTADE
Pensador vai contra apelos do consumo

IMAGENS:
e alerta: “a base do querer é o sofrimento”
DE CIÊNCIAS
CADERNO
EDUCAÇÃO
SOCIAIS &

SHUTTERSTOCK O CONHECIMENTO
PELA LUZ

ÓDIO AO
DISTORÇÕES
NATUR AL

OUTRO:
DA R EALIDADE
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO: O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL: UM
OLHAR SOBRE O INATISMO CARTESIANO • O ÓDIO AO OUTRO NAS DISTORÇÕES DA REALIDADE

CAPA151_APROVADA.indd 1 24/05/2019 12:55


• 35
ciência&vida

CIÊNCIAS SOCIAIS
CADERNO DE
20:30
17/05/2019

35
CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd

6 58
ENTREVISTA DOSSIÊ
Clodoaldo Luz e a obra Defender e
de Agostinho de Hipona pensar
a democracia (Parte 2)
TEMAS: Feminismos para

14
quem? Convergência entre
democracia e feminismo seria inegável • Antirracismo:
Debate sobre a educação das relações étnico-raciais
segue fundamental • Meio ambiente: Pauta ambiental
PENSADORES/ CAPA
em uma política democrática • Tecnologia: Interações
Schopenhauer embasa
mudam perspectivas, a esfera pública e a concepção
crítica à sociedade do
da democracia
consumo

22 72
FILO ORIENTAL
Estratégia e sabedoria,
por André Bueno

SOCIEDADE Grupo Único PDF PaD


76
Filosofia contra as fake news RESENHA
Sexo, ecologia e espiritualidade,
de Ken Wilber

28
VIDA E

78
OBRA FILOCLÍNICA
As teorias de Doenças imaginárias,
Jean Jacques Rousseau por Lúcio Packter

51 82
PARA REFLETIR OLHO GREGO
Literatura, Artes Visuais, Filosofia da Mente A liberdade de expressão,
e tecnologia nos espaços comandados por Renato Janine Ribeiro
por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo e João de
Fernandes Teixeira
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


CO M
• O CONHECIMENTO PELA LUZ NATURAL: P RO P O
STA
UM OLHAR SOBRE O INATISMO CARTESIANO D IDÁT IC
A
O CONHECIMENTO
PELA LUZ NATUR AL

ÓDIO AO OUTRO:
DISTORÇÕES DA R EALIDADE

• O ÓDIO AO OUTRO: DISTORÇÕES DA REALIDADE

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 35

CADERNO_EXERCICIO_FILO.indd 35 17/05/2019 20:30


MOMENTO DO LIVRO

O DIÁRIO DE

ANNE FRANK
No auge da Segunda Guerra Mundial, Tinha um fecho e capa dura de tecido
uma garota ganha em seu aniversário xadrez vermelho e branco.
de 13 anos um caderno de autógrafos. O nome da garota era Anne Frank e
ela gostava muito de escrever. Por isso,
transforma o caderno em um diário.
Menos de um mês depois, Anne, a irmã
Margot e os pais vão para um esconde-
rijo secreto, onde passam mais de dois
Grupo Único anos,
PDF com outras quatro pessoas, para
PaD
não serem enviados para um campo de
concentração.
Os nazistas acham o esconderijo e
o grupo não escapou do holocausto.
Anne, que era judia, morreu pouco an-
tes de fazer 16 anos. Porém o diário
onde foram narrados os momentos so-
bre a vida de Anne Frank e os aconte-
cimentos vivenciados no anexo secreto
sobreviveu e se tornou um dos livros
mais lidos do mundo, traduzido para
mais de 60 idiomas.

Livro: O Diário de Anne Frank


Número de páginas: 240 JÁ NAS BANCAS E LIVRARIAS!
Editora: Geek

Veja outras informações no site: www.escala.com.br


ENTREVISTA Clodoaldo da Luz

Filosofia X Teologia
Acadêmico discorre sobre legado de Agostinho de Hipona,
na Idade Média, e destaca a grande contribuição
de Descartes para o advento do período moderno
Por Fábio Antonio Gabriel *

M
estre em Agostinho de Hipona pela ceituar de o “filosofar na crença”, convertendo
Universidade Federal do Paraná, o afã pela felicidade na caminhada rumo à bem-
Clodoaldo da Luz conversa com os -aventurança.
leitores da Filosofia Ciência&Vida Se, outrora, Tertuliano (155 d.C. a 222 d.C.)
sobre o legado do filósofo Agosti- indicava que a Filosofia seria avessa à fé, em
Grupo Único PDF PaD
nho de Hipona. Clodoaldo comenta em linhas Agostinho fé e razão caminham juntas na con-
gerais sobre a filosofia de Agostinho e como está secução da finalidade do contemplar a verdade.
organizada a pesquisa sobre o referido filósofo Para Agostinho, a busca pela verdade requeria
no Brasil. A entrevista de Clodoaldo nos remete o diálogo entre a autoridade, sobretudo a di-
à Idade Média, em que Filosofia e Teologia esta- vina, e a razão. Em que a primeira concedia à
vam emparelhadas e eram como duas asas de segunda substrato essencial para sua atividade
um mesmo avião. O entrevistado dialoga com a especulativa. Ou seja, a autoridade dispunha
grande contribuição de Descartes para o adven- dos elementos necessários e pertinazes para a
to do período moderno. especulação racional na empreita de busca e
contemplação da verdade.
FILOSOFIA • Como entender a contribuição Por isso Agostinho (Cf. 1995, p. 78-79) n’O
de Agostinho para a história da Filosofia? livre-arbítrio afirma que não buscava compreen-
C LODOALDO • Os anos de 354 d.C. a 430 d.C., der para crer, mas acreditava para compreender.
período que em que viveu Agostinho de Hipona, Desse modo, nessa interação entre autoridade e
podem ser conceituados como um período razão, fé e razão, a Filosofia tem a prerrogativa,
transitório do Classicismo ao Medievo. Assim, à luz da iluminação divina, de levar ao homem à
tributário e depositário desse interstício, Agos- busca da verdade, do princípio não principiado.
tinho pôde embebedar-se da tradição filosófica A intercambialidade de herança e de contri-
IMAGEM: ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK

antiga, tracejada pelo desejo da vida feliz, a fim buto confere a Agostinho o legado de ser um
de florescer e consolidar o que podemos con- filósofo agregador e adiante de seu tempo: de
reunir, harmonizar a tradição filosófica recebida
com a futura e nascente especulação filosófica
• Doutorando em Educação com bolsa de doutorado
concedida no âmbito Capes/Fundação Araucária. Agradece as medieval, ao mesmo tempo que dispõe seu le-
respectivas instituições pela colaboração financeira nas pesquisas gado à posteridade. Uma prova disso é a nova
desenvolvidas. Organizador de diversas coletâneas, entre elas
Docência: processo do ensinar e aprender (Editora Multifoco). Site: perspectiva histórica introduzida por Agostinho
www.fabioantoniogabriel.com no seu livro A cidade de Deus. Nessa obra, Agos-

6 • ciência&vida
Grupo Único PDF PaD
tinho suscita a tese de que o
“movimento” da história não
Agostinho revela cismo, mas que, outrossim,
anteviu o Medievo, fez Agos-
é circular conforme advoga- ser um filósofo tinho ser um filósofo capaz
vam os gregos (monarquia, de arregimentar o modelo
tirania, democracia e oligar- agregador e do homem cristão, o qual é
quia), mas linear, pois o fim norteado pelo desejo de con-
da história é teleológico, pois adiante de seu templar a verdade, que é, se-
tende a um fim, seu termo, gundo o parecer agostiniano,
segundo Agostinho, é Deus. tempo, ao reunir o próprio Deus.
Além do que é possível,
conforme indica o estaduni-
e harmonizar FILOSOFIA • Uma breve
dense professor doutor Ga- a tradição apresentação da sua traje-
reth B. Matthews no livro tória acadêmica
Santo Agostinho: um filósofo filosófica C LODOALDO • Durante os anos
adiante de seu tempo, que o de 1991 a 2000, o ensino fun-
pensamento de Agostinho se recebida com a damental e boa parte do ensino
fez presente na Modernidade
filosófica com Descartes e é
futura e nascente médio eu cursei no Colégio
Estadual Juvenal Mesquita,
vivo na Contemporaneidade
filosófica com o racionalismo
especulação Bandeirantes (PR). O terceiro
ano do ensino médio eu cursei
linguístico de Jerrold Kat z. filosófica em 2002 no Seminário Menor
O apanágio de ser um Nossa Senhora da Assunção,
homem que viveu o Classi- medieval na cidade de Jacarezinho.

ciência&vida • 7
ENTREVISTA Clodoaldo da Luz

É sabido que De 2016 até o início de 2019 fiz o mestrado


em Filosofia na Universidade Federal do Para-
a organização ná, com a anuência do nosso bispo diocesano
Dom Antônio Braz Benevente. Ao mesmo tem-
universitária tal e po, exercia o ministério sacerdotal, na função
de vigário paroquial, na Paróquia São Benedito,
qual conhecemos bairro Capã o da Imbuia, em Curitiba.
hoje teve início com R ecentemente, no dia 26 de fevereiro de 2019,
defendi a dissertação “A gênese do cogito agos-
as universidades tiniano no Contra os Acadêmicos”, sob a orienta-
ção do professor doutor Maurizio Filippo Di Silva
de Bologna e Paris, (UFPR). Atualmente exerço o ministério sacerdo-
tal, na função de vigário paroquial, na Paróquia
no século XI Santo Antônio de Pádua, em Santo Antônio da
Platina (PR), Paraná, e leciono as disciplinas de
De 2003 a 2006 eu fiz a graduação em Histó- Filosofia da Ciência, para os seminaristas do 2º
ria na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de ano, e Sociologia, para os seminaristas do 4º ano,
Jacarezinho (Fafija), agora Universidade Estadual do curso livre de Filosofia no Seminário Maior
do Norte do Paraná (Uenp), campus Jacarezinho, Nossa Senhora Rainha da Paz, Jacarezinho (PR).
onde apresentei o TCC intitulado “Catolicismo,

Grupo Único deFILOSOFIA


ateísmo, conservadorismo e comunismo: uma
PDF
análise do paradoxo entre D. Geraldo de Proen-
• Por vezes, a Idade Média é vista
PaD
maneira negativa. Quais são as maiores con-
ça Sigaud e Eugênio de Proença Sigaud”, sob a tribuições da Idade Média para a humanidade?
orientação do professor doutor Alfredo Moreira C LODOALDO • O período compreendido como
Júnior (Uenp). Simultaneamente, eu fazia o curso Idade Média, que tem início com a invasão
livre de Filosofia do Seminário Maior Nossa Se- de Roma em 476 d.C. pelos hérulos comanda-
nhora Rainha da Paz. dos por Odoacro e se encerra com a queda de
De 2007 a 2010 eu fiz o curso livre de Fi- Constantinopla, em 1453 d.C., pelos turcos oto-
losofia no Seminário Maior Divino Mestre, no manos liderados por Maomé II, foi muito im-
qual apresentei o TCC intitulado “O itinerário portante para a manutenção da ordem social,
de Emaús (Lc 24,13-35) sob a ótica do chamado o desenvolvimento das artes, o surgimento de
à missão cristã”, orientado pelo padre professor uma nova cultura e a manutenção e a capilariza-
Rogélio Aparecido Destefani. ção do conhecimento clássico. Dentre as várias
Em 2014, cursei no Centro Universitário Cla- contribuições do Medievo, tais como bússola,
retiano, Polo Curitiba (PR), a especialização em vestimenta, cavalheirismo etc., para a história
Filosofia e Ensino de Filosofia, na qual defendi o humana, enfatizo duas: a preservação e pro-
TCC intitulado “A busca da verdade: os princípios pagação da cultura clássica e o surgimento das
da lógica clássica na obra Solilóquios de Santo universidades.
Agostinho”, sob a orientação do professor mestre Com as invasões bárbaras, os livros clássicos
Luis Geraldo da Silva. No ano de 2016 lecionei no foram resguardados da destruição nos mostei-
Seminário Nossa Rainha da Paz a disciplina Teo- ros. Tais locais foram importantíssimos para o
ria do Conhecimento. Em 2017 fiz uma segunda estudo, interpretação e disseminação do conte-
licenciatura, em Filosofia, pelo Centro Universitá- údo clássico. Não somente em âmbito filosófico,
rio Claretiano, Polo Curitiba, na qual apresentei o mas se não toda, boa parte da literatura clássica
TCC intitulado “A ética estoica fundamentada na ficou protegida nos mosteiros.
representação cataléptica”, sob a orientação do É sabido que a organização universitária
professor mestre Tiago T. Contiero. tal e qual conhecemos hoje teve início com as

8 • ciência&vida
universidades de Bologna e
Paris, no século XI. A partir
dessas instituições é que se
difundiu o estudo no âmbito
e forma universitários.
Por isso, o erro de se re-
ferir ao Medievo como uma
lacuna e/ou névoa entre o
Classicismo e a Moderni-
dade é um infeliz olvida-
mento das benesses e do
desenvolvimento intelectu-
al protagonizado na Idade
Média. Vale lembrar que
Descar tes, considerado pai
da Modernidade, estudou
no colégio jesuíta Royal
Henr y-Le- Grand; ou seja,
ele bebeu da fonte medie-
val para a par tir daí edificar
um novo sistema filosófico.
O comentador agostiniano
Grupo Único PDF PaD
Etienne Gilson, na obra Étu-
des sur le role de la pensée
médiévale dans la formation
du système cartésien, fala
de possíveis bases medie-
vais do sistema car tesiano.

FILOSOFIA • Você r ealizou


na Universidade Federal do
Paraná uma pesquisa so-
bre Agostinho de Hipona. Agostinho de Hipona
Poderia nos falar sobre as
conclusões a que chegou na sua pesquisa? nio Braz Benevente, bispo diocesano de Jacare-
C LODOALDO • Quero aproveitar a ocasião e mani- zinho, a Dom José Antônio Peruzzo, arcebispo
festar minha gratidão a pessoas importantes que da Arquidiocese de Curitiba, ao professor dou-
me oportunizaram tal experiência e realização tor Lúcio Souza Lobo (UFPR), ao professor dou-
PHILIPPE DE CHAMPAIGNE /WIKIMEDIA COMMONS

dessa pesquisa. Sou grato a Deus, a Dom Antô- tor Luiz Alves Eva (UFSCar), ao professor doutor

Na minha pesquisa percebi que a busca e a


contemplação da verdade foram dos legados mais
importantes de Agostinho aos seus leitores. E é
nessa herança que reside a origem do cogito
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 9
ENTREVISTA Clodoaldo da Luz

Filosofia agostiniana
visa sobretudo a
busca da verdade e
a vida feliz, as quais
consistem na posse e
na contemplação do
próprio Deus

Grupo Único PDF PaD

Maurizio Filippo Di Silva (UFPR), ao professor Também fora visto que Agostinho serve-se de

FREEPIK.COM
doutor Bernardo Brandão (UFPR), aos amigos do seu cogito como ferramenta para obter o auto-
grupo de estudo Noções de História do Ceticis- conhecimento, conforme se vê na sua obra So-
mo e ao grupo de estudos de latim, ao padre lilóquios, e com a função propedêutica, a fim
Danilo Vitor Pena, aos meus familiares: à minha de construir um longo argumento da prova da
família, Maria Helena, minha mãe, Aparecido existência de Deus, como fora analisado no seu
da Luz (in memoriam), meu pai, Karina, minha livro O livre-arbítrio.
irmã, Fernanda e Filipe, meus sobrinhos, e Fá- Apesar dessa verificação, é possível asseve-
bio, meu cunhado; e à Comunidade Paroquial rar que a função primeira e principal do cogito
São Benedito do Capão da Imbuia, de Curitiba, agostiniano é a contraposição ao posicionamen-
e aos amigos da Universidade Federal. to epistemológico acadêmico.
Na minha pesquisa percebi que a busca e
a contemplação da verdade foram dos legados FILOSOFIA • Como está organizada a pesqui-
mais importantes de Agostinho aos seus leitores. sa sobre Agostinho de Hipona no Brasil?
E é nessa herança que reside a origem do cogito, C LODOALDO • Ao participar do XVIII Encontro Na-
mais especificamente na obra agostiniana Con- cional da Associação Nacional de Pós-Graduação
tra os acadêmicos. Nela, ele ainda é um argu- em Filosofia (Anpof), realizado de 22 a 26 de ou-
mento incipiente, pois é mais um dentre outros tubro de 2018, em Vitória (ES), tive a oportunida-
utilizados por Agostinho para contrapor a pos- de de conhecer o Grupo de Trabalho Agostinho
tura cética acadêmica. de Hipona e o Pensamento Tardo-Antigo, coor-

10 • ciência&vida
denado pelo professor doutor Nilo César Batista Pois, de fato, no Contra os acadêmicos, Agos-
da Silva (PPG-FIL/UFS) e que tem como núcleo tinho quis, ao que tudo indica, asseverar a via-
de sustentação os seguintes docentes: professor bilidade do conhecimento ao homem e uma
doutor Marcos Roberto Nunes Costa (PPG-FIL/ necessária relação entre verdade e felicidade,
UFPE), professor doutor Manoel Luís Cardoso sendo feliz quem almeja o conhecimento; na
Vasconcellos (PPG-FIL/UFPel), professor doutor Vida feliz, Agostinho enfatiza que a felicidade
Jorge Augusto da Silva Santos (PPG-FIL/UFES), consiste na “obtenção” de Deus, o “bem” que
professora doutora Cristiane Negreiros Abbud nem o tempo nem a traça corrói; n’A ordem,
(PPG-FIL/UFABC) e professora doutora Simone Agostinho traça o itinerário da vivência da dis-
Nogueira Marinho (PPG-FIL/UFPB). ciplina ética e do estudo e aperfeiçoamento das
Naquela ocasião apresentei uma parte da mi- disciplinas liberais, a saber: lógica, gramática e
nha pesquisa, a qual nominei de “A gênese do retórica; e, no segundo, de aritmética, astrono-
cogito agostiniano”. Além disso, pude ter con- mia, música e geometria. Semelhante metodo-
tato com algumas das mais recentes pesquisas logia dinamiza, segundo Agostinho, uma melhor
realizadas sobre Agostinho: do professor doutor busca e contemplação da verdade, que reside,
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE) – “Santo segundo ele mesmo indica nos Solilóquios, na
Agostinho frente ao antigo adágio ‘fora da igre- interiorização. Que consiste no adentrar em si
ja não há salvação’”; do professor doutor Nilo para elevar-se ao transcendente, uma dinâmica
César Batista da Silva (UFS/UFCA) – “De visio- da horizontalidade para a verticalidade. Tudo
ne dei no percurso da mens, as fronteiras en- isso mostra um tema de pesquisa interessante
tre o humano e o divino em Santo Agostinho”; em Agostinho.
Grupo Único PDF PaD
da professora doutora Maria Célia dos Santos Também outra ideia é a pesquisa de uma
(UFCA) – “De vera religione: elementos para possível incidência do cogito em outras obras
uma antropologia da religião em Agostinho de posteriores de Agostinho, nas quais ele seria a
Hipona”.
Além do Grupo de Trabalho Agostinho de
Hipona e o Pensamento Tardo-Antigo, o pro-
fessor doutor Maurizio Filippo Di Silva (UFPR),
Percorrendo os
através do projeto “Pluralidade e unidade dos momentos ímpares
sentidos de ‘ser’ e ‘não ser’ em Agostinho”, de-
monstra um dedicado e exímio trabalho de lei- de sua trilha
tura, estudo e reflexão de pontos e questões-
-chave referentes a Agostinho. em busca da
FILOSOFIA • Você pretende continuar pes-
verdade, Agostinho
quisando sobre Agostinho? descobre-se como
C LODOALDO • Na banca da defesa da disserta-
ção, o professor doutor Bortollo Vale (PUC-PR), capaz de desvelar
docente de Filosofia Medieval da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná, teceu consi- a certeza, a base
derações importantes sobre a minha pesquisa.
Dessas destaco a seguinte: possivelmente, Agos-
da certeza,
tinho, nas obras de Cassicíaco, pretendeu origi-
nar e consolidar o modelo do homem cristão em
tanto em âmbito
substituição ao paradigma do homem helênico. epistemológico
Digo tudo isso para afirmar que é uma ideia in-
teressante e que despertou a minha atenção. quanto ético
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 11
ENTREVISTA Clodoaldo da Luz

FILOSOFIA • Quais as principais obras de


Agostinho? E quais as contribuições delas para
a composição do pensamento agostiniano?
C LODOALDO • As obras Confissões, Cont ra os aca-
dêmicos, A t rindade, O livre-arbítrio, Solilóquios,
Cidade de Deus são importantíssimas, pois ex-
pressam a vida, a busca pela verdade, a teolo-
gia, a noção de liberdade, o princípio de inte-
rioridade e o pensamento político de Agostinho.
Para visualizar a caminhada histórica e filo-
sófica de Agostinho, Confissões é o norte ideal;
no afã de compreender o seu escopo de con-
templar a verdade, Contra os acadêmicos é o
marco inicial; mergulhar no mistério trinitário
juntamente com Agostinho necessita do “tubo
de oxigênio” A trindade; para inteligir o dom da
liberdade humana em meio ao pecado, O livre-
-arbítrio é o guia imprescindível; no desejo de
entender como a interiorização pode conduzir
ao autoconhecimento e ao conhecimento de
Deus, os quais são as duas finalidades da filoso-
Grupo Único PDF PaD fia de Agostinho, é salutar a meditação do Soli-
lóquios; e para ter a devida noção sobre qual o
fim político da sociedade, e qual deve ser a base
e o intuito que a devem normatizar, é propícia
a leitura atenta e a devida reflexão sobre a obra
O historiador Peter Brown (foto), no seu livro Santo Agostinho: uma agostiniana A cidade de Deus.
biografia, apresenta, de forma simples e enriquecedora, a caminhada
histórica de Agostinho
FILOSOFIA • Confissões é uma obra consa-
resposta mais eficaz de Agostinho ao desafio grada de Agostinho. Poderia nos falar um pou-
cético acadêmico. co sobre ela?
Mas também me veio à mente, no intuito C LODOALDO • O desejo de revisitar fatos mar-
de ter uma visão mais abrangente da Filosofia cantes de sua vida à luz da sua crença em Deus
cristã, estudar Tomás de Aquino, mais especi- sob a guisa da especulação racional fez com que
ficamente uma possível prova da existência de Agostinho, dentre os anos de 397 d.C. e 398
Deus, além das cinco vias, que já se encontram d.C., escrevesse sua obra Confissões.
no opúsculo De Ente et essentia, e que também Percorrendo os momentos ímpares de sua tri-
pode ser rastreada na Suma contra os gentios lha em busca da verdade, Agostinho descobre-
e na Suma teológica. Semelhante hipótese é -se como capaz de desvelar a certeza, a base
designada por Davies como o “argumento da da certeza, tanto em âmbito epistemológico
criação”. Mas penso que tal argumento não se quanto ético. Confissões é uma obra através da
configuraria como uma prova da existência de qual Agostinho apresenta a correlação entre a
Deus, mas sim num substrato para uma das cin- liberdade humana e a graça divina, a questão do
co vias. Perante tudo isso exposto, penso, tal- tempo, que é sempre presente, não importan-
vez, estudar Tomás de Aquino, se for da vonta- do se é “outrora” ou “vindouro”, além de bem
de divina e anuência do nosso bispo diocesano explorar os recônditos humanos por meio de
Dom Antônio Braz Benevente. sua análise da memória, a qual é retomada por

12 • ciência&vida
Niet zsche e Freud, conforme aponta o professor
doutor Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR)
Segundo a tese
no artigo “Agostinho de Hipona e as ambivalên- da iluminação
cias do seu filosofar”.
Tais problemáticas marcaram profundamente divina agostiniana,
a Filosofia medieval e concederam as bases para
a Filosofia moderna, e ainda ecoam na Filosofia o homem é
contemporânea.
iluminado por Deus,
FILOSOFIA • É difícil dissociar o pensamento da mesma forma
filosófico do teológico em Agostinho?
CLODOALDO • A filosofia agostiniana visa sobre- que o raio de sol
tudo a busca da verdade e a vida feliz, as quais
consistem na posse e na contemplação do pró- ilumina a Terra.
prio Deus. Nesse sentido, o pensamento e dis-
curso filosóficos de Agostinho estão intimamente
Iluminando o
imbricados com suas elucubrações teológicas.
Para Agostinho, pela atividade racional é possível
homem, Deus
ao homem conceber a existência de Deus. o auxilia na sua
Ademais, segundo a tese da iluminação divi-
na agostiniana, o homem é iluminado por Deus, racionalidade
Grupo Único PDF PaD
da mesma forma que o raio de sol ilumina a Ter-
ra. Iluminando o homem, Deus o auxilia na sua especulativa a ter o
racionalidade especulativa a ter o conhecimen-
to de Si. Assim, há a relação dialógica entre o
conhecimento de Si
pensamento filosófico e a abordagem teológica,
em que a autoridade, sobretudo a divina, prece- de Agostinho. Também Confissões, de Agosti-
de e concede substrato à especulação racional. nho, é uma obra relevante para um estudo mais
acurado sobre Agostinho, a fim de perceber
FILOSOFIA • Quais leituras você indica para seus percalços na realização de seu intento de
quem quer conhecer o pensamento de Agosti- busca e contemplação da verdade.
nho? Quais seriam obras introdutórias? A título de leitura introdutória, a fim de um
C LODOALDO • A obra de Gareth Matthews, San- melhor trânsito acerca de questões inerentes ao
to Agostinho: a vida e as ideias de um filóso- pensamento agostiniano, indico o livro Intro-
fo adiante de seu tempo, traz uma série de in- dução ao estudo de Santo Agostinho, de Etien-
terpretações interessantes no que concerne a ne Gilson, a obra Introdução ao pensamento
temas-chave do pensamento filosófico e teoló- ético-político de Santo Agostinho, do professor
gico de Agostinho. Nesse mesmo viés, a obra doutor Marcos Roberto Nunes Costa (PPG-FIL/
Cambridge Companion to Augustine, publicada UFPE), e o livro Para compreender Agostinho,
pela Universidade de Cambridge sob a organi- escrito por James Wet zel.
zação de Eleonore Stump e Norman Kret zmann, Por fim, quero agradecer o professor douto-
oferece uma discussão não desprezível acerca rando Fábio Antonio Gabriel pela oportunidade
das reflexões epistemológicas, éticas e políticas de falar um pouco da minha pesquisa e do pen-
agostinianas. samento filosófico de Agostinho, o qual afirmou,
O historiador Peter Brown, no seu livro Santo no Contra os acadêmicos (Cf. Agostinho, 2008,
Agostinho: uma biografia, apresenta, de forma p. 77), que somente descobriremos a verdade se
simples e enriquecedora, a caminhada histórica nos entregarmos totalmente à Filosofia.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 13
EXISTÊNCIA/CAPA
PENSADORES/CAPA

A NEGAÇÃO
da vontade
O pensamento de Schopenhauer e
a crítica da moral capitalista e suas
interfaces na dita sociedade de consumo

N
o decorrer deste texto ve- do universo, um ciclo perpétuo de nas-
remos o caráter filosofica- cimento e morte de suas forças vitais. O
mente revolucionário do otimismo moderno em relação ao avan-
pensamento de Schope- ço sem limites da técnica e suas realiza-
nhauer acerca do processo ontológico ções sociais não seduziu Schopenhauer,
Grupo Único PDF PaD
da negação da vontade, representado na e os acontecimentos vindouros da hu-
Era Moderna pela ruptura com a ordem manidade provaram o quão certa esta-
materialista da sociedade de consumo, va a sabedoria de nosso filósofo. Nessas
produtora de ilusões de satisfação e condições, imputar a Schopenhauer a
gozo para seus sectários. Tal circuns- pecha de representante do reacionaris-
tância faz de Schopenhauer uma voz mo burguês é uma falácia estúpida e
dissonante aos apelos do materialismo axiologicamente improcedente, pois de
vulgar do regime capitalista por disse- modo algum o filósofo coadunou com
car filosoficamente as bases psicológicas os paradigmas medíocres dos filisteus e
que o sustentam, a exaltação dos desejos seus asseclas, enaltecendo a vida de luxo
jamais realizados convenientemente. de uma sociedade moralmente embota-
No desenrolar da Modernidade, da e decadente, desprovida de qualquer
marcada seja pela apologia da técnica senso de justiça e de responsabilidade
como emancipadora do homem perante para com o sofrimento dos seres vivos.
suas limitações naturais como também Jamais a obra de Schopenhauer
pela crença no progresso contínuo nas chancelou o espírito tacanho e auto-
Renato Nunes ciências, que libertaria a estrutura social centrado e egoísta do materialismo
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

Bittencourt de toda contingência, assim como pela vulgar, cuja única fruição se encerra na
Doutor em paulatina libertação do dogmatismo satisfação incondicional dos apetites e
Filosofia pelo PPGF- eclesiástico e na dissolução progressiva das mesquinharias da mundanidade
UFRJ, coordenador da antiga ordenação de mundo feudal prosaica. Eis assim alguns fatores que
do curso de
para o mundo industrial/urbano, a filo- concedem a Schopenhauer um pata-
Administração da
FACC-UFRJ.
sofia de Schopenhauer não se deixa in- mar especial no cenário da Filosofia
renatonunesbitten fluenciar axiologicamente por tais fato- moderna, pois, acima de tudo, nosso
court@gmail.com res, que em nada modificam a essência celebrado autor jamais chancelou o

14 • ciência&vida
Grupo Único PDF PaD

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 15
PENSADORES/CAPA

status quo, antes sendo uma das AS ASPIRAÇÕES HUMANAS SÃO


suas antíteses mais impressionan-
tes. A racionalidade pode mode-
ILIMITADAS, MAS A CAPACIDADE DE
rar o ímpeto das paixões, mas não REALIZÁ- LAS, POR SUA VEZ, É LIMITADA.
encontra forças de contenção que
sejam satisfatórias em tal empre-
LOGO, SEMPRE DESPONTARÁ O
endimento. Para Schopenhauer, MAL-ESTAR DESSE DESCOMPASSO.
querer e esforçar-se são sua única
O DESEJO É A RAIZ DE TODO ÍMPETO
essência, comparável a uma sede HUMANO NO SEU PROCESSO
insaciável. A base de todo querer,
entretanto, é necessidade, carência,
CONSTANTE DE AFIRMAÇÃO DE SI
logo, sofrimento, ao qual conse- cia mesma se lhe tornam um fardo ele mesmo quer ter, mas inclusive
quentemente o homem está desti- insuportável. Sua vida, portanto, como alguém, em vista de aumen-
nado originalmente pelo seu ser. oscila como um pêndulo, para aqui tar seu bem-estar por acréscimo in-
Quando lhe falta o objeto do querer, e para acolá, entre a dor e o tédio, significante, chega ao ponto de des-
retirado pela rápida e fácil satisfa- as quais em realidade são seus com- truir toda a felicidade ou a vida de
ção, assaltam-lhe vazio e tédio ater- ponentes básicos. Isso também foi outrem. Eis aí a suprema expressão
radores, isto é, seu ser e sua existên- expresso de maneira bastante sin- do egoísmo, cujos fenômenos, nesse
gular quando se disse que, após o aspecto, são superados apenas por
homem ter posto todo sofrimento aqueles de pura maldade, que procu-
Grupo Único PDF PaD
e tormento no Inferno, nada restou ram, indiferentemente e sem benefí-
para o Céu senão o tédio (SCHO- cio pessoal algum, a injúria e a dor
PENHAUER, 2005, p. 401-402). alheia (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 427-428).
As aspirações humanas são
ilimitadas, mas a capacidade de O egoísmo se contrapõe ao
realizá-las é limitada; logo, sem- princípio ético e ontológico da
pre desponta o mal-estar desse compaixão, que permite justamen-
descompasso, ainda mais se le- te ao sujeito compreender-se como
varmos em consideração que, em imediatamente unificado ao ser do
decorrência da fragmentação da outro, para além de todas as apa-
vontade em sua individuação pe- rências. Contudo, essa fusão como
las categorias do espaço e do tem- que mística do eu com o outro é
po, o embate pela conservação da um processo que independe da
existência entre as figurações indi- educação e do querer, sendo antes
viduais se torna a tônica da vida. uma revelação além do princípio
O desejo é a raiz de todo ímpeto de razão manifestada na consciên-
humano no seu processo constante cia do sujeito, liberto das ilusões
de afirmação de si em detrimento fenomênicas que promovem sua
dos outros, motivando não raro a pretensa separação ontológica entre
realização das ações mais violentas os demais viventes. Não há garan-
e extremas para concretizar as in-
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

tias para a efetivação desse proces-


clinações individuais: so extraordinário, não obstante ela
poder vir a ocorrer em qualquer
Observamos não apenas como cada ser humano, independentemente
um procura arrancar do outro o que da sua instrução/formação. Esse é o

16 • ciência&vida
grande mistério da ética. Conforme
argumenta Schopenhauer,

toda boa ação totalmente pura, toda


ajuda verdadeiramente desinteres-
sada que, como tal, tem exclusiva-
mente por motivo a necessidade de
outrem, é, quando pesquisada até o
seu último fundamento, uma ação
misteriosa, uma mística prática,
contanto que surja por fim do mes-
mo conhecimento que constitui a es-
sência de toda mística propriamente

DOMAIN)/WIKIMEDIA COMMONS
dita e não possa ser explicável com
verdade de nenhuma outra maneira
(SCHOPENHAUER, 2001, p. 221).

A morte encerra todos os pro-


jetos, todas as bondades e todas as

JOHANN SCHÄFER (PUBLIC


vilanias. Nessa concepção, poder-
-se-ia dizer que tal discurso fa-
Grupo Único PDF PaD
talista favorece a perpetuação do
status quo, já que os oprimidos se
resignam perante a violência dos
seus opressores. Contudo, a filoso- Para Schopenhauer, o egoísmo se contrapõe ao princípio ético e ontológico da compaixão
fia schopenhaueriana não postula
a existência de uma justiça divina medo decorrente da consciência da participa da culpa. Se os olhos dos
que no fim dos tempos julgará os morte ou pela crença na punição dois fossem abertos, quem inflige o
bons e os maus, dando aos primei- divina, mas pela intuição da identi- sofrimento reconheceria que vive
ros, os cordeiros da virtude, a sal- dade ontológica de todos os seres, o em tudo aquilo que no vasto mun-
vação espiritual, e aos segundos a sofrimento imposto pelo malvado do padece tormento e, se dotado de
danação eterna, circunstância que ao fraco também acaba por afetar, faculdade de razão, ponderaria em
serve de consolo moral para as al- em verdade, o agressor, pois ambos vão por que foi chamado à existên-
mas oprimidas na vida concreta. constituem a mesma unidade vital: cia para um tão grande sofrimen-
Após a morte física toda a configu- to, cuja culpa não entende; o ator-
ração existencial se dissipa, e nada O atormentador e o atormentado mentado notaria que todo mal que
espera pelo sujeito, apenas a inevi- são um: o primeiro erra ao acredi- é praticado no mundo, ou que já o
tabilidade do não ser. A verdadeira tar que não participa do tormen- foi, também procede daquela Von-
renúncia ao mal não ocorre pelo to, o segundo a acreditar que não tade constituinte de sua própria es-

A VITÓRIA DA MALDADE É APENAS


APARENTE, AFETA SOMENTE A DIMENSÃO
DOS FENÔMENOS, JAMAIS A ESSÊNCIA DO
MUNDO, OU SEJA, A VONTADE
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 17
PENSADORES/CAPA

sência, que aparece nele, reconhe-


cendo mediante esta aparência e a
sua afirmação que ele mesmo as-
sumiu todo sofrimento proceden-
te da Vontade, e isso com justiça,
suportando-as enquanto ele é essa
Vontade (SCHOPENHAUER,
2005, p. 411).

A vitória da maldade é apenas


aparente, afeta somente a dimen-
são dos fenômenos, jamais a essên-
cia do mundo, ou seja, a vontade,
logo, o ser real não é prejudicado
pela iniquidade dos indivíduos
iludidos pelo véu de Maya que
acreditam obter ganho real com
seus crimes. Dessa compreensão
metafísica aflora no sujeito liber-
to do querer a noção de que não
adianta qualquer pretensão de mu-
Grupo Único PDF PaD
dança em uma figuração mundana
intrinsecamente ruim. A renún-
cia proposta por Schopenhauer ção, possui potencialmente uma for- de viver, solução para a supressão do
não significa impotência de agir, ça santificadora; e isso explica o fato grande mal-estar existencial da vida
motivada pela impossibilidade de de grandes desgraças e dores pro- regida pela adequação constante aos
exercer o querer; pelo contrário, é fundas já em si mesmas inspirarem desejos, majoritariamente insatis-
sinal de uma poderosa capacidade certo respeito [...] Só quando o sofri- feitos. Quando ocorre a satisfação
do sujeito efetivamente liberto de mento assume a forma do simples e (inevitavelmente provisória) des-
toda sorte de inclinações, suprimir puro conhecer, e este, como quietivo ponta o tédio, e assim a roda do que-
qualquer possibilidade de afirmar da Vontade, produz a resignação, rer novamente gira, até a extinção
as condições da vida. Por conse- é que se acha o caminho da reden- da vida individual na morte. A luta
guinte, esse indivíduo que renun- ção, sendo pois o sofrimento digno pela satisfação é constante, mas essa
cia é um herói, não pela gloriosa de reverência (SCHOPENHAUER, satisfação é sempre momentânea, e
afirmação da existência, mas pela 2005, p. 459). a compreensão desse mecanismo
negação definitiva da mesma: muitas vezes passa despercebida na
É em sua metafísica da ética que vida mediana e serve de estímulo
Porque todo sofrimento é uma mor- Schopenhauer apresentará um viés sôfrego para a manutenção da exis-
tificação e um chamado à resigna- para a negação absoluta da vontade tência. Segundo Schopenhauer,

NAS DUAS VIRTUDES FUNDAMENTAIS, JUSTIÇA E


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

CARIDADE, O EGOÍSMO É SUPRIMIDO, RESPEITANDO-


-SE A PESSOA DO OUTRO E FAZENDO-SE AÇÕES
EXTRAORDINÁRIAS PARA A EFETIVAÇÃO DO SEU BEM
18 • ciência&vida
todo querer nasce de uma necessi- nado pelo egoísmo e pela maldade. OS IOGUES
dade, portanto de uma carência, Porém, há ainda uma grande ins-
logo, de um sofrimento. A satisfa- tância a ser vencida, o próprio eu,
E SANTOS
ção põe um fim ao sofrimento; to- e seus ardorosos apelos por satisfa- CATÓLICOS,
davia, contra cada desejo satisfeito ção desiderativa, cujos efeitos prá-
permanecem pelo menos dez que ticos são inevitavelmente terríveis.
ASSIM COMO
não o são. Ademais a nossa cobiça Nesse momento ocorre a etapa mor MUITOS FILÓSOFOS
dura muito, as nossas exigências do processo de negação da vontade,
PAGÃOS, CUJAS
não conhecem limites; a satisfa- através da ascese, que se manifesta
ção, ao contrário, é breve e módica. das formas mais intensas de modo a VIDAS FORAM
Mesmo a satisfação final é apenas suprimir definitivamente a vontade EXEMPLO
aparente: o desejo satisfeito logo dá individualizada que faz do eu um
lugar a um novo: aquele é um erro ser miserável em busca constante DE DESAPEGO,
conhecido, este um erro ainda des- por adições. O jejum, a maceração REFORÇAM A IDEIA
conhecido. Objeto algum alcançado do corpo, a abdicação do prazer
pelo querer pode fornecer uma sa- sensível são exemplos de procedi- DE QUE A ORDEM
tisfação duradoura, sem fim, mas mentos ascéticos que dissolvem os DO MUNDO É
ela se assemelha sempre apenas a apelos da carne; o corpo é mantido
uma esmola atirada ao mendigo, apenas no quantum de energia ne- PURA VAIDADE,
que torna sua vida menos miserável cessário para sua sobrevivência: ILUSÃO
hoje para prolongar seu sofrimen-
to amanhã (SCHOPENHAUER, Grupo Único PDF PaD
Tal homem que, após muitas lutas lugar ao sempre novo é incessante e
2005, p. 266). amargas contra a própria natureza, incontrolável, de modo que o apego
finalmente a ultrapassou por inteiro, a tais fugacidades é fonte de deses-
O reconhecimento do caráter subsiste somente como puro ser cog- pero, frustração, infelicidade. Scho-
contraditório da vontade manifes- noscente, espelho límpido do mundo. penhauer argumenta que
tada na dimensão individual, que Nada mais o pode angustiar ou exci-
luta contra si mesma, altera a po- tar, pois ele cortou todos os milhares quando às vezes em meio aos nos-
larização desse princípio. Ao invés de laços volitivos que o amarravam sos duros sofrimentos sentidos, ou
de se autoafirmar, a vontade passa ao mundo, e que nos jogam daqui devido ao conhecimento vivo do
a negar a si mesma, primeiramente para acolá, em constante dor, nas sofrimento alheio e ainda envoltos
mediante a compreensão da unida- mãos da cobiça, do medo, da inve- pelo véu de Maya o conhecimento
de fundamental de todos os viven- ja, da cólera (SCHOPENHAUER, da nulidade e amargura da vida
tes proporcionada pela compaixão, 2005, p. 495). se aproxima de nós e gostaríamos
abolindo-se assim as fronteiras en- de renunciar decisivamente para
tre o sujeito e o mundo. Nas suas Os iogues e santos católicos, as- sempre ao espinho de suas cobiças
duas virtudes fundamentais, justiça sim como muitos filósofos pagãos e fechar a entrada a qualquer so-
e caridade, o egoísmo é suprimido, cujas vidas foram exemplo de fru- frimento, purificar-nos e santificar-
respeitando-se a pessoa do outro e galidade e desapego material, são -nos, logo a ilusão do fenômeno
fazendo-se ações extraordinárias testemunho em suas vidas dessa nos encanta de novo e seus motivos
para a efetivação do seu bem mate- disciplina ascética, considerando colocam mais uma vez a vontade
rial e moral. Contudo, nessa dimen- que a ordem do mundo é pura vai- em movimento. Não podemos nos
são ética, as disposições de ação são dade, ilusão. Todas as ditas novida- libertar. As promessas da esperan-
relacionais, faz-se justiça para com des propagadas a cada dia nos mer- ça, as adulações do tempo presen-
o outro, faz-se caridade para com o cados não são capazes de seduzir a te, a doçura dos gozos, o bem-estar
outro, atenuando razoavelmente o consciência do asceta, pois o ritmo que fazem a nossa pessoa partícipe
grande mal-estar do mundo domi- de obsolescência das coisas que dá da penúria de um mundo sofrente

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 19
PENSADORES/CAPA

sob o império do acaso e do erro UMA VERDADEIRA sinal do vazio da vida sem qual-
atraem-nos novamente ao mundo quer ímpeto de autorrealização.
e reforçam os nossos laços de liga- MASSA HUMANA Conforme o modo de existência
ção com ele (SCHOPENHAUER, DEMONSTRA decadente e axiologicamente me-
2005, p. 482). díocre, a boa vida consiste apenas
AVIDEZ EM em se desfrutar das benesses ma-
A verdadeira ascese nega o CONHECER O teriais, das viagens turísticas e dos
mundo, de modo algum coaduna prazeres sensíveis imediatos. Essa
com a sua manutenção. Por conse- MUNDO, MAS DE massa humana demonstra avidez
guinte, a ascese protestante tal como QUE ADIANTA em conhecer o mundo, mas de que
interpretada competentemente por adianta conhecer o mundo sem
Max Weber seria a perpetuação de CONHECER O que primeiramente se conheça a si
Maya, pois apesar do devoto negar MUNDO SEM QUE mesmo? Esse é o inferno moral dos
o prazer carnal em suas ações labo- submissos ao hedonismo desenfre-
rais fundamentadas no ethos reli- PRIMEIRAMENTE ado da sociedade de consumo. Para
gioso, o resultado de sua ação bene- SE CONHEÇA A SI Schopenhauer,
ficia a ordem material da sociedade
e suas criações técnicas. A verda- 1 MESMO? ESSE É O toda satisfação, ou aquilo que co-
deira ascese, compreendendo o ca- INFERNO MORAL mumente se chama felicidade, é
ráter sem sentido do mundo, nega- própria e essencialmente falando
-o, por isso resulta na inação, na DOS SUBMISSOS apenas negativa, jamais positiva.
renúncia ao agir, favorecendo Grupo
assim AOÚnico PDF
HEDONISMO PaD Não se trata de um contentamento
um afastamento radical da ordem que chega a nós originalmente, por
mundana. O ethos protestante ape-
DESENFREADO si mesmo, mas sempre tem de ser a
nas reformou as bases corrompidas DO CONSUMO satisfação de um desejo; pois o de-
do establishment cristão enquanto sejo, isto é, a carência, é a condição
instituição política, mas revelou-se nesse exercício de superação de si prévia de todo prazer. Com a satis-
incapaz de vivenciar plenamente o mesmo não a tristeza comum do fação, entretanto, finda o desejo, por
autêntico espírito crístico original, indivíduo que, destituído dos meios consequência o prazer. Eis por que a
pautado no consistente não reco- de gozar as benesses da vida, se de- satisfação ou o contentamento nada
nhecimento da ordem do mundo, prime por sua carência, mas a fe- é senão a liberação de uma dor, de
das suas riquezas, dos seus valores. licidade, pois reconhece que todos uma necessidade, pois a esta perten-
Na ascese genuína, que reco- os apelos sensíveis são caprichosos ce não apenas cada sofrimento real,
nhece o vazio do mundo, o sujeito e fugazes e não são merecedores manifesto, mas também cada dese-
paulatinamente se divorcia da von- de maiores considerações. Já para jo, cuja inoportunidade perturba
tade, suportando todo sofrimento aqueles que são incapazes de viver nossa paz, sim, até mesmo o mortí-
psicofísico, toda privação material, na pureza espiritual, a própria exis- fero tédio que torna a nossa existên-
com paciência, abnegação, tran- tência é já um infortúnio, ainda que cia um fardo (SCHOPENHAUER,
quilidade de ânimo, encontrando aparentemente seja marcada pelo 2005, p. 370).
bem-estar material. Para essa chus-
1
“Ora, a conduta de vida monástica é encarada não ma humana, nem as realizações in- Com efeito, a mentalidade idio-
só como evidentemente sem valor para a justificação
perante Deus, mas também como produto de uma telectuais nem a felicidade legítima tizada da civilização burguesa com-
da vida familiar conseguem elevar
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

egoística falta de amor que se esquiva aos deveres do preende a experiência da felicidade
mundo [...] O feito propriamente dito da Reforma
consistiu simplesmente em ter já no primeiro seu nível de consciência para algu- como a satisfação razoável dos seus
momento inflado fortemente, em contraste com ma instância acima de sua própria desejos privados, fomentados arti-
a concepção católica, a ênfase moral e o prêmio
religioso para o trabalho intramundano no quadro condição pessoal, culminando em ficialmente, em sua grande parte,
das profissões” (Weber, 2004, p. 73; 75). seu naufrágio existencial como um pela indústria do consumo, grande

20 • ciência&vida
CONSIDERAR SCHOPENHAUER UM IDEÓLOGO
BURGUÊS É ERRO CRASSO, POIS SUA DOUTRINA
SE DISSOCIA DE TODAS AS FALSIDADES
QUE REGEM O MODO BURGUÊS DE VIDA
produtora de ilusões da Moder- ser, a ausência de atributos, e tan- ções ideológicas pela mentalidade
nidade. Orbitando tal como uma to pior, mediante uma concepção humana, não há qualquer prêmio
mosca sobre as coisas disponíveis moralista, associou-o ao âmbito do para a negação da vontade, apenas
no grande mercado capitalista, o mal. Isso evidencia a incapacidade o nada. Essa é assim a culmina-
sujeito seduzido pelas ilusões mo- do pensamento binário do mundo ção do projeto trágico de Schope-
netaristas acredita poder adquirir ocidental em compreender o cará- nhauer, a vitória sobre o querer não
tudo que se encontra ao seu alcan- ter radical do nada em sua relação se dá na fuga do mundo rumo ao
ce, mas ao fim e ao cabo reconhece com a negação da vontade, o que suprassensível, mas na sua negação
amargamente que não pode obter a resulta no aniquilamento da pró- na vida mesma, com todas as suas
tão ansiada felicidade, assim como pria fonte de ilusões da dimensão contradições e apelos heteróclitos.
a vitória sobre o tédio e, tanto pior, fenomênica da vida e suas criações Podemos considerar que a obra
sobre a condição derradeira que as- que ao fim e ao cabo escravizam o de Schopenhauer fornece subsídios
sola o homem afetado pelas paixões próprio ser humano nas suas ca- para a crítica da moral capitalista e
reativas: a morte. deias inextrincáveis. Na dimensão suas interfaces na dita sociedade de
Grupo Único PDF PaD
A civilização ocidental conce- concreta, a exemplificação dessa consumo mediante a apresentação
deu sentido negativo e pejorativo negação da vontade como ruptu- da ontologia desiderativa do ho-
ao nada, imputando-o como o não ra radical com a ordem mundana mem e seu inerente apego aos bens
ocorre na adesão ao modo de vida materiais e usufruto desenfreado
pobre, o ascetismo monástico que deles, pois na realidade material
nasce do reconhecimento de que a vigente o que importa é a disposi-
afluência dos bens materiais é um ção para ter, jamais a capacidade de
genuíno ouro de tolo sedutor das ser, de fruir placidamente a beleza
consciências afoitas pela satisfa- da natureza e da arte, assim como
ção dos seus desejos sensíveis. No de não se apegar doentiamente aos
seio de tanta abundância material, benefícios sensíveis das coisas. Por
a negação voluntária desta mesma conseguinte, considerá-lo como
pode ser considerada como um ato um ideólogo burguês é um erro
heroico, pois a batalha pela vitória é crasso, pois sua doutrina se dissocia
travada na própria interioridade do de todas as falsidades que regem o
indivíduo que aniquila seu ardor modo burguês de vida e seu mate-
pessoal pela posse e pelo gozo. Na rialismo filisteu.
dimensão exotérica da religiosida-
de, a grande promessa compensa- SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como
REFERÊNCIAS

vontade e como representação, Tomo I.


tória aos ascetas que renunciam ao Trad. Jair Barboza. São Paulo: Ed. Unesp,
prazer sensório em prol da pureza 2005.
. Sobre o fundamento da moral.
espiritual é o mundo celestial, o Trad. Maria Lucia Mello e Oliveira Cacciola.
paraíso. Contudo, para os indiví- São Paulo: Martins Fontes, 2001.
duos que desmistificaram todas as WEBER, Max. A ética protestante e o
“espírito” do capitalismo. Trad. José
formas de ilusão que são produzi- Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
das em suas diversas categoriza- Companhia das Letras, 2004.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 21
SOCIEDADE

A pós-verdade
que nos
CONTROLA
Grupo Único PDF PaD
O papel da
Filosofia em tempos
de fake news

Monica Aiub – Doutora


em Filosofia pela PUC-SP,
dirige o Interseção –
Instituto de Filosofia
Clínica de São Paulo.

22 • ciência&vida
“O
Japão, país mui- O QUE SERIA, EXATAMENTE,
to mais rico que
o Brasil, está ti- MELHORAR A SOCIEDADE E QUE
rando dinheiro TIPO DE ÁREA DO CONHECIMENTO
público do pagador de imposto,
das faculdades que são tidas como SERIA CAPAZ DE MELHORÁ-LA SEM A
para pessoas que já são muito ri- CONTRIBUIÇÃO DE OUTRAS ÁREAS?
cas, ou de elite, como Filosofia.
Pode estudar Filosofia? Pode, ano –, e para o desconhecimento reflexão que ultrapassa os objeti-
(mas) com dinheiro próprio. E o do ministro e do presidente sobre vos deste texto. Porém, ao formu-
Japão reforça: esse dinheiro que a natureza dos conhecimentos da lá-la, ele nos provoca a conside-
iria para faculdades como Filoso- área de humanidades. “Uma das rar mais uma das abordagens ao
fia, Sociologia, se coloca em facul- maiores contribuições dos cursos fato de que o desenvolvimento da
dades que geram retorno de fato: de humanidades é justamente o ciência e da tecnologia não levou
Enfermagem, Veterinária, Enge- combate sistemático a visões ta- ao “fim” da Filosofia; ao contrário,
nharia e Medicina.” canhas da realidade, provocando ampliou a necessidade da reflexão
A fala do ministro da Educação para a reflexão e para a pluralida- filosófica, propiciando, no século
Abraham Weintraub, em vídeo de de perspectivas, indispensáveis XX, o surgimento de áreas como
publicado em 25 de abril no per- ao desenvolvimento cultural e so- Filosofia da Mente, Filosofia da
fil do Facebook do presidente Jair cial e à construção de sociedades Informação, Filosofia da Neuroci-
Bolsonaro1, seguida da corrobora- mais justas e criativas.” ência, entre outras. Ainda assim,
ção do presidente em fala, tambémGrupo Único PDF PaD
Por que, em pleno século a pergunta permanece: Filosofia,
em seu Facebook e postagem no XXI, após tantas correntes filo- para quê?
Twitter, em 26 de abril, afirmando sóficas terem surgido a partir de Uma das tarefas da Filosofia
que “a função do governo é respei- elaborações de respostas para o é o questionamento. Questionar
tar o dinheiro do contribuinte, en- anunciado fim da Filosofia e das e investigar, em tempos de fake
sinando para os jovens a leitura, a ciências humanas, ainda discuti- news, pós-verdade, pós-realida-
escrita e a fazer conta e depois um mos o papel da Filosofia? Por que de, tribalismo da verdade etc.,
ofício que gere renda para a pes- enquanto Harari4 propõe algorit- podem ser um incômodo a um
soa e bem-estar para a família, que mos filosóficos para programar sistema pautado na viralização,
melhore a sociedade em sua vol- as decisões de uma inteligência na replicação – sem verificação
ta”2, gerou forte polêmica nos úl- artificial, indicando a possibilida-
timos dias. Muitos foram os inte- de de a Filosofia ser uma profissão 1
BORGES, Helena. Ministro dá dica para o Enem:
Questões ideológicas, muito polêmicas, não devem
lectuais que se mobilizaram para que garanta um bom emprego no acontecer esse ano. Jornal O Globo, 25 de abril de
defender a importância da Filoso- futuro, o presidente da República 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/
sociedade/ministro-da-dica-para-enem-questoes-
fia e das ciências humanas, com desconsidera as contribuições da ideologicas-muito-polemicas-nao-devem-acontecer-
destaque para a Nota de Repúdio Filosofia para “melhorar a socie- esse-ano-23623156. Acesso em: 2 mai. 2019.
assinada pela Anpof – Associa- dade em sua volta”? O que seria, 2
Bolsonaro diz que MEC estuda “descentralizar”
investimento em cursos de Filosofia e Sociologia.
ção Nacional de Pós-Graduação exatamente, melhorar a sociedade
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

G1, 26 de abril de 2019. Disponível em: https://


em Filosofia e por várias associa- e que tipo de área do conhecimen- g1.globo.com/educacao/noticia/2019/04/26/
bolsonaro-diz-que-mec-estuda-descentralizar-
ções3, que aponta para a notícia to seria capaz de melhorá-la sem a investimento-em-cursos-de-filosofia-e-sociologia.
falsa sobre o Japão, presente no contribuição de outras áreas? ghtml. Acesso em: 2 mai. 2019.

argumento do ministro – uma vez A afirmação de Harari sobre Disponível em: http://www.anpof.org/portal/
3

index.php/pt-BR/artigos-em-destaque/2075-
que a proposta, feita em 2015 pelo o papel do filósofo diante da in- nota-de-repudio-a-declaracoes-do-ministro-da-
Ministério da Educação, Cultura, teligência artificial, auxiliando na educacao-e-do-presidente-da-republica-sobre-
as-faculdades-de-humanidades-nomeadamente-
Esportes, Ciência e Tecnologia do construção de “algoritmos filosó- filosofia-e-sociologia. Acesso em: 2 mai. 2019.
Japão, foi abandonada no mesmo ficos”, é polêmica e merece uma 4
HARARI, 2018.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 23
SOCIEDADE

– de ideias criadas para defen-


der os interesses de alguns gru-
pos. Sem questionar, passamos a
ideia adiante. Mas essa é a me-
nor das consequências, pois as
ideias servem como guias para
nossas ações (Peirce, CP 5.365). 5
Assim, não avaliamos os moti-
vos que possuímos para aceitar
uma ideia, não verificamos se
essa ideia é verdadeira ou fal-
sa, a tomamos como verdade na
medida em que nossos critérios
são a quantidade de cliques ou
compartilhamentos de uma ideia
que, muitas vezes, foi comparti-
lhada sem ter sido lida.6
Notícias falsas difundidas sem
confirmação e com forte impacto
na vida e na política sempre exis-
tiram. Robert Darnton relata a
Grupo Único PDF PaD
tentativa de manipulação da elei-
ção pontifícia de 1522, por Pietro
Aretino, que escreveu sonetos per-
versos sobre todos os candidatos –
exceto sobre Medici, seu preferido
–, colocando para o público ad-
mirar no busto de uma figura de
nome Pasquino. “O ‘pasquinale’
então se transformou em gênero
comum de difundir notícias desa- implicações políticas. Contudo, mundo. Não utilizamos mais a in-
gradáveis, a maioria delas falsas, as notícias falsas de hoje circulam vestigação e a racionalidade como
sobre pessoas públicas”.7 O texto com uma velocidade gigantes- critérios, a velocidade da rede
de Darnton descreve um breve ca, sendo distribuídas e afetando capta nossas respostas imediatas,
histórico das notícias falsas e suas pessoas em diferentes regiões do emocionais.
O fenômeno das bolhas, des-
crito por Eli Pariser8 em 2011, que
AS NOTÍCIAS FALSAS DE HOJE consiste em algoritmos que filtram
CIRCULAM COM UMA VELOCIDADE 5
A obra de Peirce está citada conforme a convenção:
CP (Collected Papers). Os números que seguem as
GIGANTESCA, SENDO DISTRIBUÍDAS letras correspondem, respectivamente, a volume e
parágrafo.
E AFETANDO PESSOAS EM DIFERENTES 6
Cf. SANTAELLA, 2018; FERRARI, 2019.
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

REGIÕES DO MUNDO. NÃO DARNTON, Robert. The true history of fake


7

news. Disponível em: https://www.nybooks.com/


daily/2017/02/13/the-true-history-of-fake-news/.
UTILIZAMOS MAIS A INVESTIGAÇÃO E Acesso em: 3 mai. 2019
https://www.ted.com/talks/eli_pariser_beware_online
A RACIONALIDADE COMO CRITÉRIOS
8

_filter_bubbles?language=pt-br.

24 • ciência&vida
as informações que chegam a cada Não seriam esses fortes mo- Data) em pesquisas em diferentes
um de nós, oferecendo-nos uma tivos para justificar a necessida- áreas, os métodos de análise de
espécie de “espelho” construído a de da reflexão filosófica, que tem dados utilizados anteriormente se
partir de nossos supostos interes- como característica exatamente a tornam obsoletos, sendo necessá-
ses na rede, acaba por criar a ilusão investigação das razões que temos ria a criação de novas formas para
de que “todo mundo” pensa como para considerar uma ideia, em vá- analisá-los. Os algoritmos gené-
nós, dá-nos uma “convicção” de rias e diferentes áreas, em nossa ticos, principal forma utilizada
nossas ideias, independentemente vida cotidiana? hoje, trazem questões, na medida
de sua verdade ou falsidade. em que entre seus critérios encon-
Matthew Fisher, Joshua Knobe, A INVESTIGAÇÃO tramos o método lexical (mensu-
Brent Strickland e Frank C. Keil, FILOSÓFICA rando a incidência de termos em
no artigo “Tribalismo da Verda- NAS CIÊNCIAS postagens) e a avaliação da quan-
de”,9 descrevem a pesquisa sobre No que se refere à pesquisa tidade de visualizações, curtidas e
como o estilo discursivo afeta a científica, a Filosofia é uma forte compartilhamentos.
compreensão da questão em de- aliada, tanto para o levantamen-
bate. Realizada com usuários do to de questões geradoras de pes- A FILOSOFIA NA
Facebook e do Twitter discutindo quisa como, principalmente, para VIDA COTIDIANA
opiniões contraditórias, a pesqui- a crítica ao modo como aquela As pesquisas partem da rede
sa observou as diferentes conclu- ciência procede, observando e e são divulgadas e disseminadas
sões em dois grupos distintos: um questionando a validade de seus nela, alterando hábitos, modos de
que tinha por objetivo investigar a métodos e critérios, assim como vida das populações. Ao lado de
verdade e outro que discutia bus- Grupo Único PDF PaD
as implicações do uso, às vezes resultados significativos de pes-
cando o convencimento. Entre as exageradamente ampliado, de quisas sérias, é possível encontrar
conclusões dos autores, eles afir- seus resultados. Como exemplo, a preconceitos, falsas notícias pau-
mam que quanto mais debatemos pesquisa que desenvolvi durante tadas em pesquisas nunca reali-
para ganhar, mais parecerá existir o doutoramento em Filosofia foi zadas, em pesquisas sem critérios,
uma única resposta correta, ou sobre os métodos de pesquisa em ou ainda resultados divulgados de
seja, fortificamos nossas opiniões. neurociência e as implicações de modo sensacionalista, ampliando
Porém, quando debatemos para suas aplicações na clínica médica, suas implicações para além dos li-
aprender, observamos que pode especialmente no que se refere a mites do possível.
haver outras respostas igualmente diagnósticos de transtornos men- Por outro lado, a Filosofia pare-
corretas e colocamos nossas opi- tais.10 Assim como no meu traba- ce ter “invadido” a vida cotidiana.
niões em dúvida, o que propicia a lho, muitos são os filósofos que se Os “influenciadores” de opinião
investigação. debruçam sobre os métodos de citam constantemente filósofos,
pesquisa nas ciências. muitas vezes de modo deturpado,
9
FISHER, Matthew; KNOBE, Joshua; STRICKLAND,
Brent; KEIL, Frank C. The tribalism of truth. In
É preciso, ainda, destacar que descontextualizado, apenas como
Scientific American , v. 318, n. 2, p. 50-53, jan. com o uso dos dados da rede (Big um apelo ao argumento de auto-
2018. Disponível em: https://www.researchgate.net
publication/322549595_The_Tribalism_of_Truth.
ridade, buscando o convencimen-
Acesso em: 3 mai. 2019. 10
Ver AIUB, 2016. to. Seus discursos são, na maioria

A FILOSOFIA PARECE TER INVADIDO NOSSO


DIA A DIA. OS “INFLUENCIADORES” DE
OPINIÃO CITAM CONSTANTEMENTE FILÓSOFOS,
MUITAS VEZES DE MODO DETURPADO
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 25
SOCIEDADE

DIANTE DA IMPORTÂNCIA DOS CONHECIMENTOS


FILOSÓFICOS PARA AS CIÊNCIAS E PARA A VIDA
COTIDIANA, CONCLUI-SE QUE A FILOSOFIA
DEVERIA ESTAR PRESENTE NA EDUCAÇÃO BÁSICA
das vezes, muito convincentes, mas interlocutor compreenda como é minuciosa e séria a que se dis-
não a partir de argumentos. Sua possível chegar àquelas conclu- põe a Filosofia, dizem respeito à
estratégia central é atingir as emo- sões. A Filosofia é também um sa- reprodução irrefletida de tais dis-
ções de seu interlocutor, buscando ber contextualizado, que observa cursos. Pensar criticamente, para
respostas rápidas, cliques, comen- as relações entre as partes e o todo tais pessoas, é pensar como elas
tários, curtidas. Há, na maior parte e, principalmente, a Filosofia bus- pensam, é reproduzir suas ideias
das vezes, um interesse econômico ca a raiz, a origem das questões e e, consequentemente, agir e di-
na troca de quantidade de cliques seus processos de desenvolvimen- fundir ações em favor delas. E isso
por patrocínios. Para consegui-los, to, para que nos apropriemos delas em nada corresponde à Filosofia.
a replicação de padrões é fortemen- de modo a encontrarmos ou com- Ao contrário, a Filosofia pode ser
te utilizada, gerando uma espécie pormos formas para lidar com tais um importante instrumento para
de “massificação” dos modos de questões. Embora não haja con- a análise dessas opiniões, nos au-
pensar e, consequentemente, das senso acerca das definições de Fi- xiliando a identificar os motivos
conclusões a que se chega. O pró- losofia na tradição, esses elemen- que temos para aceitar uma ideia
Grupo Único PDF PaD
prio jornalismo, em busca de seu tos são comuns a todas elas. e as implicações em torná-la um
público, acaba por replicar os con- As exigências específicas do guia para nossas ações.
teúdos dos “influenciadores”, mui- fi losofar incluem o rigor meto-
tas vezes sem checar as fontes. dológico, o raciocínio correto, a A FILOSOFIA
Assim, somos expostos diaria- busca pela gênese das questões e COMO PROFISSÃO
mente a notícias falsas, opiniões das ideias. Em muitos casos, os Além das contribuições da Fi-
infundadas e precisamos de cri- “influenciadores” não atendem losofia para as ciências e para a
térios para aceitá-las ou não. An- a tais exigências, apresentando vida cotidiana, podemos elencar
tes de as replicarmos, precisamos uma “fi losofia” dogmática, isto é, possibilidades de ela ser “um ofí-
investigá-las, refletir sobre elas, uma “fi losofia de vida”, ditando cio que gere renda para a pessoa”.
compreender de onde surgem, a regras sobre como as pessoas de- Se pensarmos na atuação do
quem interessam, que modos de vem pensar, sentir, agir. O uso de professor de Filosofia, ao consi-
vida representam e, principal- nomes de conceitos fi losóficos, os derarmos a importância dos co-
mente, se buscamos esses modos fi lósofos citados descontextuali- nhecimentos filosóficos para as
de vida para nossa sociedade, pois zadamente, cria a falsa aparência ciências e para a vida cotidiana,
ao compartilhá-las promovemos de um discurso fi losófico, quan- podemos concluir que a Filosofia
um modo de vida e vivemos as do, na verdade, seus objetivos en- deveria estar presente não apenas
consequências dele. contram-se distantes do fi losofar. na educação básica, mas em todos
A Filosofia é um conhecimento Incluem-se, nesses discursos, as os cursos superiores, e também
construído na história da huma- expressões “pensar por si mesmo” nos de formação tecnológica, ga-
nidade, que exige reflexão e rigor ou “autonomia do pensar” – ex- rantindo a aprendizagem de uma
habilidade negligenciada na edu-
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

metodológico em suas pesquisas.


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

pressões caras à Filosofia –, mas


Nada, em Filosofia, é aceito sem estas, em vez de corresponderem cação e na formação profissional:
suas devidas justificativas, que ao desenvolvimento do rigor me- o questionar, cada vez mais neces-
devem ser suficientemente e ra- todológico necessário ao pensar sário para que possamos nos situ-
cionalmente expostas para que o fi losoficamente, da investigação ar no mundo.

26 • ciência&vida
tribalismo da verdade, abandonar
os critérios de investigação em fa-
vor do critério de quantidade de
cliques, curtidas ou repetições de
um discurso é correr o risco de
sermos conduzidos para um fu-
turo sombrio, e, pior, com nosso
assentimento.
Daí a importância de identi-
ficar quando se trata de alguém
disposto ao filosofar – que trará
questões, provocará a pensar, mas
não dará respostas prontas, nem
o atacará quando for questiona-
do – e quando se trata de alguém
que usa o nome Filosofia sem uma
formação específica na área, sem
um estudo adequado que propicie
o filosofar. Emergem, hoje, pesso-
as que se dizem filósofos, mas têm
como objetivo detratar, destruir
Grupo Único PDF PaD a Filosofia. Exatamente porque a
Filosofia possui um papel na cons-
trução de uma sociedade melhor
surgem seus detratores, acusando
os filósofos de doutrinação quan-
do o filosofar faz exatamente o
oposto, instiga a postura crítica e
investigativa, necessária ao desen-
Em todo o mundo, os consul- formas para lidar com elas, condu- volvimento da ciência e da socie-
tórios de Filosofia surgem e o filó- zem-na à escolha de caminhos que dade. O estudo da Filosofia, longe
sofo, com seu papel de “provoca- de alguma maneira os beneficiam de ser um investimento desneces-
dor” ao pensar, traz a reflexão para – ainda que o façam visando “boas sário, é um investimento impres-
as questões cotidianas, provocan- intenções” –, e isso tem consequ- cindível para os dias atuais.
do a pessoa a investigar a si mes- ências para as pessoas envolvidas
ma e sua realidade, conhecendo o e para a sociedade como um todo. AIUB, Monica. Peirce e a
REFERÊNCIAS

mundo em que vive, tendo consci- Quando esses falsos filósofos atu- neurociência do século XXI:
Reflexões sobre Filosofia e Medicina.
ência do lugar a partir do qual lê o am em mídias digitais, empresas São Paulo: FiloCzar, 2016.
mundo, constrói suas concepções, ou instituições públicas, fazem o FERRARI, Pollyana. Como sair das
bolhas. São Paulo: Educ/Armazém da
além da consciência sobre outras mesmo, mas as consequências de Cultura, 2019.
concepções possíveis e sobre os suas interferências atingem um nú- HARARI, Youval Noah. 21 lições para o
motivos que tem para considerar mero bem maior de pessoas. século 21. São Paulo: Cia. das Letras, 2018.
PEIRCE, Charles Sanders. Collected
esta como a melhor. Isso não é prerrogativa apenas Papers of Charles Sanders Peirce (CP).
Porém, os “falsos filósofos” da Filosofia, os falsários estão em CD-ROM past masters. Charlotterville:
Intelex Corporation, 1992.
também estão nos consultórios, e todas as áreas. Em tempos de ve-
SANTAELLA, Lúcia. A pós-verdade
em vez de auxiliar a pessoa a pen- locidade e variedade de informa- é verdadeira ou falsa? São Paulo:
sar sobre suas questões, e encontrar ções, em tempos de pós-verdade e Estação das Letras e Cores, 2018.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 27
VIDA E OBRA
EXISTÊNCIA/CAPA

JEAN-JACQUES
ROUSSEAU
e seus elementos
(auto formativos)
Suas vivências, seu tempo,
seus escritos, sua filosofia

Grupo Único PDF PaD

28 • ciência&vida
J ean-Jacques Rousseau nasceu no dia 28 de junho
de 1712, há aproximadamente 307 anos. Filho de
Issac Rousseau e de Suzanne Bernard, era natural
de Genebra. Sua mãe, por complicações devidas ao
parto, faleceu sete dias após seu nascimento. Com uma
vida controversa, foi criado até os 10 anos por seu pai,
que em função de um conflito com o sr. Gautier, capitão
da França, vê-se obrigado a deixar Genebra e expatriar-
-se, entregando Rousseau aos cuidados de um pastor, o
ministro Lambercier.
Rousseau viveu no período que, historicamente, de-
nominamos Idade Moderna. Os anos vividos pelo filóso-
fo genebrino destacam-se em função das grandes revolu-
ções que ocorriam em diversos aspectos sociais. Tanto no
âmbito comercial quanto nos ambientes culturais e cien-
tíficos, através do Renascimento, houve transformações –
que acabaram por se tornar características peculiares do
início do século XVIII. O humanismo antropocentrista
também era uma forte característica deste tempo, valori-
zando, assim, o papel do homem em suas mais variadas
ações. Strathern (2004, p. 8) comenta o contexto histórico
Grupo Único PDF PaD de Rousseau e as implicações do pensamento rousseau-
niano para a humanidade:

Nos primeiros anos do século XVIII, quando Rousseau


nasceu, a revolução científica e o Iluminismo estavam
dando origem a grandes avanços intelectuais. Ainda as-
sim, a sensibilidade europeia sofria de uma profunda
doença, atolada nas limitações intelectuais e emocionais
Letícia Maria Passos do Classicismo. Em meio aos novos progressos, muitos in-
Corrêa doutora é divíduos tinham consciência de que estavam começando
mestre em Educação e a perder contato consigo mesmos, com quem realmente
licenciada em Filosofia
eram. Tratava-se de um novo sentimento – que permane-
pela Universidade Federal
ceria como parte de nossa sensibilidade até os dias de hoje.
de Pelotas. Atualmente,
é vice-diretora na Escola Rousseau foi o primeiro a confrontar essa ainda inarticu-
Sesi Eraldo Giacobbe e lada autoconsciência. Foi ele que insistiu que deveríamos
professora de Filosofia e buscar e experimentar nossa “verdadeira natureza”.
Sociologia do Estado do Rio
Grande do Sul. É autora do Em 1728, após voltar de um passeio e encontrar os
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

livro Ensino de Filosofia: um portões da cidade fechados, Rousseau decide deixar Ge-
estudo de caso, editado pela
nebra. Parte para Annecy e, por volta de 1729, conhece
Universidade Federal de
Madame de Warens, que terá um papel importantíssimo
Pelotas (2012) e membro do
Grupo de Estudos FEPráxis
(Filosofia, Educação e 1
Adaptado de capítulo da tese de doutorado escrita pela autora, intitulada “O exercício
do filosofar como caminho para a formação humana: uma hermenêutica da obra de
Práxis Social). leticiamp
Jean-Jacques Rousseau para pensar o ensino de Filosofia”. A tese foi orientada pela
correa@gmail.com. profa. dra. Neiva Afonso Oliveira, no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Pelotas; defendida e aprovada em maio de 2017.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 29
VIDA E OBRA

TEORIAS FORMULADAS
PELO FILÓSOFO NÃO SE
PRESTAM SIMPLESMENTE
PARA JUSTIFICAR E DESCULPAR
AS ESCOLHAS PESSOAIS
VIVIDAS POR ELE. SERIA

DOMAIN)/WIKIMEDIA COMMONS
UMA INTERPRETAÇÃO
DEMASIADAMENTE SIMPLISTA
A DE JULGAR O LEGADO
LA TOUR (PUBLIC DE UM AUTOR A PARTIR
DE SUA VIDA PESSOAL
da minha vida, fraco e sem resistência, fui tão agitado, sa-
DE

cudido, importunado pelas paixões alheias que, quase pas-


MAURICE QUENTIN

sivo numa vida tão tumultuosa, teria dificuldade em sepa-


rar o que existe de meu em minha própria conduta, tanto
Grupo Único PDF PaD a dura fatalidade não cessou de pesar sobre mim. Contudo,
Rousseau: sem mistério sobre suas decisões controversas durante esse pequeno número de anos, amado por uma
mulher cheia de bondade e doçura, fiz o que queria fazer,
em sua vida. O cidadão de Genebra passa a habitar sua fui o que quis ser e, pelo uso que fiz de meus lazeres, ajuda-
casa e nela aprofunda seus conhecimentos filosóficos, do por suas lições e seu exemplo, soube dar à minha alma
conforme nos afirma Rodríguez: ainda simples e nova a forma que mais lhe convinha e que
ainda mantém (2014b, p. 133).
Es ella quien le aconseja sobre sus primeras clases de mú-
sica, por ejemplo; quien le orienta em sus nuevas lecturas Após a estadia na residência de Madame de Warens,
y quien le anima a viajar para conocer. Em su palácio lee Rousseau vai para Paris, onde conhece a elite intelectual
la Lógica, de Port-Royal, el Ensayo, de Locke, Malebranch, da França, convivendo com outros pensadores como Da-
Leibniz, Descartes etc. (1992, p. 78). vid Hume, Voltaire, Diderot, Condillac, entre outros. Em
1745, conhece Thérèse Levasseur, sua companheira de
Apesar de Rousseau ter iniciado suas reflexões filosó- toda a vida, com quem teve cinco filhos, todos entregues
ficas desde a sua infância, quando já houvera lido clás- ao Orfanato das Crianças Abandonadas, que ficava bem
sicos da Filosofia como Plutarco, por exemplo, é, sem perto da moradia do casal.
dúvida, neste momento, com a convivência de Madame Rousseau é um filósofo que ao escrever livros que
de Warens, que percebemos grandes etapas formativas na mesclam Filosofia e Literatura, e ao criar um aluno ima-
vida deste homem, que assim o definiriam como filósofo. ginário, mostra-nos claramente como seria a sua maneira
Em seus Devaneios de um caminhante solitário, Rousseau, de ensinar Filosofia. O exemplo norteador da sua prática
ao avaliar sua vida no passado, demonstra a consciência pedagógica está explícito em suas obras, que possuem um
do papel que Madame de Warens desempenhou em sua valor inestimável para a história da humanidade. Propo-
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

formação humana nos poucos anos que viveram juntos: nho, então, que, em um primeiro momento, possamos fa-
zer uma separação entre a obra do autor e a sua biografia.
Sem esse breve mas precioso espaço de tempo talvez tivesse Há quem diga que não podemos levar em conside-
permanecido incerto sobre mim mesmo, pois todo o resto ração os escritos de um homem que escreveu um trata-

30 • ciência&vida
do sobre educação e, contudo, não foi capaz de educar obra e a vida do autor – Rousseau usa sua obra como um
e criar os próprios filhos. Entretanto, se analisarmos mecanismo de compensação das suas próprias frustra-
o argumento que tenta desvalorizar a teoria rousseau- ções. Daí segue o fato de que não há incongruência entre
Grupo Único PDF PaD
niana em função do abandono dos filhos percebemos a biografia e a produção filosófica do autor. Por ter sido
que a ideia é falaciosa. Explico. Não podemos traçar um homem fiel a si mesmo e às ideias em que acredita-
paralelos a partir de coisas distintas. Ao compararmos va, a vida de Jean-Jacques dar-nos-ia grandes indicações
dessa maneira, estaríamos cometendo a falácia falsa sobre como poderíamos agir de maneira verdadeira e
analogia2 . O abandono dos filhos consiste em um fato comprometida com aquilo que se acredita e, assim, po-
da história de Rousseau e a filosofia/pedagogia/litera- deríamos tomar, também, alguns aspectos biográficos do
tura rousseauniana equivale a uma produção intelec- autor como indicações para a prática filosófica e para o
tual produzida pelo autor. exercício do filosofar.
Entretanto, em um segundo momento, podemos re- Os antagonismos presentes na vida de Rousseau refle-
futar o argumento de desvalorização da obra rousseau- tem claramente seus ideais filosóficos. Starobinski (1991,
niana em função do episódio do abandono dos filhos p. 46) comenta sobre as antíteses confrontadas pelo autor:
realizando o caminho oposto, uma outra via do que aca- “O que se exige, pensa ele, é que sua existência se torne
bamos de dizer. Proponho que, ao invés de separarmos a um exemplo, que seus princípios se tornem visíveis em
vida e a obra de Rousseau, façamos o contrário, tratemos sua própria vida”. Entretanto, o comentador esclarece que
de vê-las como ingredientes indissociáveis deste processo as teorias formuladas por Rousseau não se prestam sim-
de conhecimento. Por mais que sejam coisas distintas – a plesmente para justificar e desculpar as escolhas pessoais
2
Conforme Shulman (2016), a falácia falsa analogia ocorre em função de “as
vividas pelo filósofo. Seria uma interpretação demasiada-
situações serem completamente diferentes e não se poder fazer analogia entre elas”. mente simplista a de julgar o legado de um autor a partir

A ATITUDE DO PENSADOR EM RELAÇÃO


AO ABANDONO DOS FILHOS DEVE SER
ENTENDIDA LEVANDO-SE EM CONTA O CONTEXTO
HISTÓRICO DA ÉPOCA E SUAS IDEOLOGIAS
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 31
VIDA E OBRA

Grupo Único procedimento,


PDF PaD
de sua vida pessoal, mesmo que desde atitudes como a donão só porque nunca pude esconder nada
“abandono” ou desarrimo dos filhos. aos meus amigos, como porque, realmente, nada via disso
A atitude de Rousseau em relação ao abandono dos de mal. Pesando tudo, escolhi para meus filhos o melhor
filhos deve ser entendida levando-se em consideração o ou o que eu imaginava que o fosse. Quisera eu, e ainda
contexto histórico da época, bem como as concepções hoje o quereria, ter sido educado e sustentado como eles o
ideológicas que o autor defendia em relação ao Estado. foram (2008, p. 328).
Rousseau acreditava e preconizava que o Estado é que de-
veria responsabilizar-se pela formação das crianças. Tal atitude foi repensada em sua maturidade e o fi-
Nas Confissões podemos saber desse fato pelas pala- lósofo, em vários trechos de sua obra, demonstra arre-
vras do próprio filósofo: pendimento e culpa pelos seus atos. No Emílio, Rousseau
também comenta suas justificativas a respeito desse as-
Meu terceiro filho foi, pois, entregue à Casa dos Expos- sunto:
tos, como os primeiros; e o mesmo sucedeu com os dois
seguintes, porque foram cinco ao todo. E essa solução me Um pai, quando gera e sustenta filhos, só realiza com isso
pareceu tão boa, tão sensata, tão legítima, que se não me um terço de sua tarefa. Ele deve homens à sua espécie, deve
gabava dela publicamente, era apenas em consideração à à sociedade homens sociáveis, deve cidadãos ao Estado [...]
mãe. Mas contei-a a todos a quem confessava nossa liga- Quem não pode cumprir com os deveres de pai não tem
ção [...] Em suma, não fiz nenhum mistério com o meu o direito de tornar-se pai. Não há pobreza, trabalhos nem

ESPECIALMENTE POR VIVER EM MEIO


IMAGENS: SHUTTERSTOCK

AOS FILÓSOFOS DE SEU TEMPO,


O PENSADOR CRITICA IDEOLOGIAS
PRESENTES NAS CIÊNCIAS E NAS ARTES
32 • ciência&vida
respeito humano que o dispensem de sustentar seus filhos ROUSSEAU LOCALIZA-SE,
e de educá-los ele próprio [...] Para quem quer que tenha
entranhas e desdenhe tão santos deveres, prevejo que por NO ÂMBITO DAS ESCOLAS
muito tempo derramará por sua culpa lágrimas amargas, e FILOSÓFICAS, EM UM LIMIAR
jamais se consolará disso (2014a, p. 27).
ENTRE O EMPIRISMO E O
Em 1749, a Academia de Dijon propôs um prêmio a RACIONALISMO. TRAZ IDEIAS
quem respondesse à seguinte questão: “O estabelecimen-
to das ciências e das artes terá contribuído para aprimorar PARA A EDUCAÇÃO QUE,
os costumes?”. Rousseau escreve, então, o Discurso sobre ATÉ ENTÃO, HAVIAM SIDO
as ciências e as artes e é o vencedor do concurso, sendo
este seu primeiro trabalho estritamente filosófico. Ade-
PRATICAMENTE ESQUECIDAS
mais, o Primeiro discurso3 assume um papel de crítica E DESVALORIZADAS
muito forte às ideologias presentes no âmbito das ciências
e das artes. Ao proporem a questão motivadora do Dis- origem da desigualdade entre os homens4 (1753) e O
curso, pode-se dizer que seria uma hipótese consistente contrato social (1762). Entretanto, sua maior obra no
a de que os membros da Academia de Dijon contavam que concerne à Pedagogia é, sem dúvida, Emílio, ou Da
com um elogio às esferas científicas e artísticas. Ao con- educação (1762). Nela, Rousseau aponta conceitos que
trário do que se espera, Rousseau apresenta seu potencial foram “divisores de águas” para a história das ideias
filosófico e responde negativamente à questão, fato que pedagógicas e para a Filosofia da Educação. Entre eles,
nos mostra o quão inovador, ousado e crítico era o filóso- um dos principais seria o reconhecimento da criança
Grupo Único PDF PaD
fo genebrino. Especialmente por viver em meio aos filó- como infante, em lugar de ser vista como um adulto
sofos de seu tempo, o pensador critica o caráter cultural
oriundo das ciências e das artes e o que, de fato, Rousseau 4
Rousseau escreveu essa obra também para concorrer ao certame organizado pela
Academia de Dijon. Entretanto, dessa vez não obteve o êxito alcançado no Primeiro
realiza, consiste em uma reflexão crítica que se estende discurso. Embora a obra seja de uma relevância filosófica indescritível, Jean-Jacques não
também aos filósofos, à Filosofia em geral e ao papel a que foi o vencedor do concurso.

ela se presta na sociedade e na formação humana. Nas 5


A respeito do ineditismo em reconhecer a criança como infante, saliento que Rousseau
foi pioneiro no que diz respeito a proclamar esta máxima de forma clara. Entretanto,
palavras do autor:
não podemos esquecer da obra de Comênio, que em 1649, com a publicação da
Didática magna, já havia dado um sentido diferenciado ao trato com a criança.
Respondei-me, pois, filósofos ilustres [...] vós de quem rece-
bemos tantos conhecimentos sublimes, se não nos tivésseis
nunca ensinado tais coisas, seríamos com isso menos nu-
merosos, menos bem governados, menos temíveis, menos
florescentes ou mais perversos? (1983, p.343-344).

O Primeiro discurso é obra que possui inestimável re-


levância para o ensino de Filosofia, quando são trabalha-
das questões relativas à Filosofia da Ciência e à Filosofia
Estética. Dentre outras, a noção de progresso é elemento
colocado em xeque ao nos depararmos com a resposta
negativa de Rousseau para o questionamento da Acade-
mia de Dijon.
Na sequência, Rousseau escreve o Discurso sobre a

3
A respeito do Primeiro discurso, o Discurso sobre as ciências e as artes, vide OLIVEIRA;
OLIVEIRA; CORRÊA. As motivações de Rousseau no Primeiro discurso. In:
FAGHERAZZI, Onorato et al. Uma breve introdução à Filosofia da Ciência. Rio
Grande: IFRS, 2013.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 33
VIDA E OBRA

COM PERSONALIDADE EXCÊNTRICA, O CIDADÃO DE


GENEBRA VIVEU NO CONTEXTO DE EFERVESCÊNCIA
DA RACIONALIDADE ILUMINISTA E DOS IDEAIS
QUE INSPIRARAM A REVOLUÇÃO FRANCESA

em miniatura5 , e, de acordo com os padrões da época, que promove naqueles que o experimentam demonstra
Rousseau localiza-se, no âmbito das escolas filosófi- a força do exercício do filosofar – capaz de promover
cas, em um limiar entre o empirismo e o racionalismo. mudanças históricas e (des)estruturar “alicerces” de
Traz ideias para a educação que, até então, haviam sido pensamentos estagnados.
praticamente esquecidas e desvalorizadas pelos pensa- Com personalidade excêntrica, o cidadão de Genebra
dores de seu tempo. Em Emílio, o genebrino apresenta- viveu no contexto de efervescência da racionalidade ilu-
-se como um autor altamente propositivo e que valo- minista instaurando-se e dos ideais que inspiraram a Re-
riza o projeto de formação humana, projeto em cuja volução Francesa, que aconteceria anos após a sua morte,
viabilidade e execução das ideias acredita. No prefácio em 1789. Suas ideias a respeito da liberdade e da igualda-
do livro, o filósofo nos fala sobre a inovação que a sua de entre os homens, presentes em praticamente toda a sua
teoria pedagógica apresenta: obra, e enfatizadas no Contrato, influenciaram a escrita
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do-
[...] há infinitos tempos, todos protestam contra a prática cumento de inestimável relevância, redigido no apogeu
estabelecida, sem que ninguém se preocupe em propor ou- da Revolução Francesa. Todavia, Rousseau não chegou
Grupo Único PDF PaD
tra melhor. A literatura e o saber de nosso século tendem a ver suas ideias valorizadas e seguidas, pois faleceu em
muito mais a destruir do que a edificar. Censura-se com 2 de julho de 1778, 11 anos antes dos momentos revo-
um tom de mestre; para propor, é preciso assumir uma lucionários decisivos que afetaram a França, aos 66 anos
outra postura, com a qual a altivez filosófica se compraz de idade. Segundo Dent (1996, p. 22), “não há dúvida de
menos. Apesar de tantos escritos que, segundo dizem, só que foi uma presença dominante durante a Revolução
têm por fim a utilidade pública, a primeira de todas as Francesa, e de que está hoje consagrado como uma das
utilidades, que é a de formar homens, ainda está esqueci- grandes figuras da civilização ocidental”.
da (2014a, p. 4).
CORRÊA, Letícia Maria Passos. Ensino de Filosofia: um estudo de caso.
REFERÊNCIAS

Pelotas: Editora e Gráfica da Universidade Federal de Pelotas, 2012.


Rousseau publicou outras obras relevantes, tais DENT, N. J. H. Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
como: Ensaio sobre a origem das línguas (1753), Discur- FAGHERAZZI, Onorato et al. Uma breve introdução à Filosofia da
so sobre a economia política (1755), Carta a d’Alembert Ciência. Rio Grande: IFRS, 2013.
RODRÍGUEZ, Herminio Barreiro. Juan Jacobo Rousseau, entre la
(1758), Júlia ou a nova Heloísa (1760), Emílio e Sofia ou ilustracion y el romanticismo (reflexiones al hilo de uma lectura de Las
os solitários (1762), Carta a Christophe de Beaumont Confesiones). In: Educación y Sociedad. v. 10, p. 65-90, Madri, 1992.
(1763), Cartas da montanha (1764), Projeto de constitui- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Bauru: Edipro, 2008.
. Do contrato social; Ensaio sobre a origem das línguas;
ção para a Córsega (1764), a autobiográfica Confissões Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
(1770), Considerações sobre o governo da Polônia (1770), homens; Discurso sobre as ciências e as artes. Coleção Os Pensadores.
Tradução de Lourdes Santos Machado; introduções e notas de Paul
Rousseau juiz de Jean-Jacques (1776), Os devaneios do Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. 3. ed. São Paulo: Abril
caminhante solitário (1776), dentre outras. A repercus- Cultural, 1983.
são de seus escritos, entretanto, foi extremamente po- . Emílio, ou Da educação. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2014a.
lêmica, colocando-o, inclusive, em posições de risco à
. Os devaneios do caminhante solitário. Porto Alegre: L&PM,
sua integridade física. Emílio e o Contrato, queimados
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

2014b.
em vias públicas em Genebra, bem como as persegui- SHULMAN, Max. O amor é uma falácia. Disponível em: http://docslide.
com.br/documents/o-amor-e-uma-falacia-por-max-shulman-traducao-de-
ções vividas por Rousseau, mostram claramente que o luis-fernando-verissimopdf.html . Acesso em: 15 abr. 2016.
pensar filosófico, a exemplo de Sócrates, por vezes é re- STRATHERN, Paul. Rousseau em 90 minutos. Rio de Janeiro: Jorge
cebido incompreendidamente. Todavia, a instabilidade Zahar, 2004.

34 • ciência&vida
CADERNO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS & EDUCAÇÃO

Grupo Único PDF PaD

O CONHECIMENTO
PELA LUZ NATUR AL

ÓDIO AO OUTRO:
DISTORÇÕES DA R EALIDADE

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS • ciência&vida • 35


CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

O CONHECIMENTO
PELA LUZ NATURAL
Um olhar sobre o inatismo cartesiano

Grupo Único PDF PaD

Leonor Gularte
Soler é Licenciada
em Filosofia pela
Universidade Federal
de Pelotas (RS).
Mestre em Educação
pelo Programa de
Pós Graduação
em Educação e
especialista no
Ensino de Filosofia
pelo Programa de
Pós Graduação em
Filosofia, ambos da
mesma universidade.
Membro do Grupo
Fepráxis – Filosofia,
educação e práxis
social, mantido pela
instituição. Email:
leonorgulartesoler@
gmail.com

36 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

A
reflexão apresentada neste artigo expõe algu-
mas expressões do conhecimento humano.
Inicialmente abordamos questões referentes às
dimensões da consciência, o sujeito e o objeto como
essência do conhecimento. Em seguida, enfocam-se
as duas ordens do conhecimento no Período Clássi-
co: conhecimento sensível e intelectivo, com menção
às ideias inatas de Descartes que contrapõem aquelas
adquiridas pela experiência dos sentidos, desenvolvida
por John Locke (1632-1704). Conclui-se, apresentan-
do a importância do pensamento de René Descartes
(1596-1650) para a contemporaneidade.
Todos os seres vivos trazem consigo potencia-
lidades para se desenvolver de acordo com as suas
necessidades de sobrevivência. Uma planta, se colo-
cada em um lugar escuro, vai direcionar seu cres-
cimento para onde há luz natural; a ave não tem
tato nem olfato ao voar, mas é compensada com
uma visão muito aguçada que distingue e diferen-
cia as cores a longa distância, o que lhe permite ver
um inseto. Tem-se, ainda, o exemplo dos sentidos
desenvolvidos pelas pessoas com algum tipo de
deficiência, seja inata ou adquirida no decorrer da
vida, as quais precisam se adaptar a um tipo de vida
diferente (Santos, 2000, p. 31). É possível utilizar
inúmeros exemplos de adaptação dos seres vivos com
a imposição dos meios, mas não é esse o objetivo ao
Grupo Único PDF PaD qual nos propomos; pretendemos no texto apresen-
tar algumas expressões do conhecimento humano,
dissertar sobre as dimensões da consciência e, em
seguida, sobre as duas ordens do conhecimento no
Período Clássico. Para, no último momento, fazer
uma ref lexão no que se refere ao racionalismo e às
ideias inatas de René Descartes (1596-1650).
Os seres vivos possuem muitas características
comuns, mas somente o homem tem a capacidade
especial de pensar, e é essa característica que dá a
ele uma tendência espontânea a descobrir o que é o
mundo a sua volta, a conhecer e a compreender esse
mundo, a si mesmo, a natureza e a sociedade. Essa
capacidade de pensar possibilita somente ao homem

CAPACIDADE DE PENSAR
POSSIBILITA SOMENTE AO
HOMEM TER A CONSCIÊNCIA
DE SI. CONVIVENDO COM
A REALIDADE, É PERMITIDO
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

CONHECER A VERDADE,
PARA, ASSIM, PODER
COMPREENDÊ-LA
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 37
CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

PROPOSTA A TEORIA DO ficar pendente, pendurado. Quan-


do o ser humano sai de si mesmo
DIDÁTICA CONHECIMENTO sem sair de seu interior, exerce uma
atividade do pensar, suspende o
DISTINGUE O julgamento até formar uma ideia
Para que os estudantes fixem conte-
údo sobre teoria do conhecimento,
CIDADÃO, O ou opinião. Pode-se observar que
nos textos filosóficos escritos em
segundo o proposto por pensadores e “EU” E O SUJEITO, latim não é empregado pendere nem
pensare: para dizer pensar, utilizam
acadêmicos abordados neste artigo, e
excertos da bibliografia indicada ao fi-
APRESENTANDO os verbos cogitare 1 e intelligere 2 (p.
nal, vale fazer com que reflitam sobre GRAUS DE 193). Portanto, conforme Chaui
algo que consideram que conhecem (2000), cogitare é forçar alguma
de forma inata, expondo exemplos
CONSCIÊNCIA coisa a ficar diante de nós para ser
examinada e intelligere é conhe-
para o restante da classe. Devem ana- QUE ENTENDEMOS cer e entender. Percebemos que os
lisar como se dá esse conhecimento
e, a partir daí iniciar debate ou dis- COMO SENDO verbos significam atividade que
exige atenção: avaliar, equilibrar,
cussão baseados nas perguntas: "O A ATIVIDADE entender e ler por dentro. Assim,
que podemos conhecer realmente? o pensamento é a consciência
A consciência pode conhecer tudo? RACIONAL QUE saindo de si, para colher e reunir
Qual a origem do conhecimento?
CONHECE dados oferecidos pela experiência,
Como chegar às certezas?". As res- percepção, memória e linguagem
postas, orientadas pelas leituras indi- A SI MESMA (p. 194).
cadas, e pelas discussões, com media-
ção do educador no que diz respeito ter a consciência de si; convivendo A CONSCIÊNCIA E O
ao esclarecimento sobre conceitos, com a realidade, lhe é permitido CONHECIMENTO
conhecer a verdade para, assim, A necessidade do homem de
individuais ou em grupo, revelando o
Grupo Único PDF PaD
pode servir de base para dissertações
poder compreendê-la e explicá- explicar acerca do mundo sempre
-la. Chaui (2000) esclarece que o existiu. Recorrer a mitos, religiões,
aprendizado sobre o tema e permitin-
sentido etimológico das palavras ciências e à Filosofia para buscar
do sua avaliação.
“pensamento” e “pensar” origina-se explicação das coisas é um dom
(Sugestão da redação) do verbo latino pendere, que signi- natural do ser humano. Mas o que
fica ficar em suspenso, estar ou podemos conhecer realmente? A
consciência pode conhecer tudo?
Qual a origem do conhecimento?
Como chegar às certezas? A teoria
do conhecimento distingue o cida-
dão, o “eu” e o sujeito, apresentando
graus de consciência que entende-
mos como sendo a atividade racional
que conhece a si mesma e na qual
o sujeito do conhecimento é a figu-
ra central. Segundo Chaui (2012),
podemos dividir a consciência em
três dimensões: a) Consciência ética:
que é a capacidade livre e racional que
o ser humano tem de escolher e agir
de acordo com seus valores e regras.
Esse ser, dotado de livre vontade e
responsabilidade, comporta-se da
maneira que entende melhor para si
1
Cogitare (meditar, considerar com atenção), esse
verbo vem do agere (empurrar para diante de si).
2
Intelligere compõe-se de duas outras palavras: in-
ter (entre) e legere (reunir, escolher, ler), ou seja, es-
colher as letras com os olhos (Chaui, 2012, p. 147).
IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

cimento. Com isso, de acordo com


Descartes (2001),

[...] o bom senso é a coisa que, no


mundo, está mais bem distribuída: de
fato, cada um pensa estar tão bem provi-
do dele, que até mesmo aqueles que são
os mais difíceis de contentar em todas as
outras coisas não têm de forma nenhuma
o costume de desejarem [ter] mais do que
o que têm. E nisto não é verossímil que
todos se enganem; mas antes, isso teste-
munha que o poder de bem julgar, e de
distinguir o verdadeiro do falso que é
aquilo a que se chama o bom senso ou a
razão, é naturalmente igual em todos os
homens; da mesma forma que a diversi-
dade das nossas opiniões não provém do
fato de uns serem mais razoáveis do que
outros, mas unicamente do fato de nós
conduzirmos os nossos pensamentos por
vias diversas e de não considerarmos as
e para os outros. Essa consciência A ESSÊNCIA DO mesmas coisas (Descartes, 2001, p. 5).
moral, tanto racional quanto afeti- CONHECIMENTO
va, busca uma vida feliz e justa; b) Conforme Hessen (2000), a essên- Durante o Período Clássico, a
Consciência psicológica: trata do cia do conhecimento está no sujeito e maioria dos fi lósofos reconheceu a
sentimento da nossa própria identi- no objeto, pois existência de duas ordens de conhe-
Grupo Único PDF PaD
dade, o nosso “eu” formado a partir cimento: a dos sentidos e a do inte-
de nossas vivências, a maneira como [...] ao mesmo tempo, a relação entre lecto. Os pensadores da origem
compreendemos nossos sentimentos, os dois elementos é uma relação recípro- platônica (Platão, Plotino, Agosti-
nosso corpo e nosso mundo interior; ca (correlação). O sujeito só é sujeito nho e Boaventura) subdividiram os
c) Consciência epistemológica, que é para um objeto e o objeto só é objeto conhecimentos, sensível e intelecti-
uma atividade sensível e intelectual para um sujeito.[...] ser sujeito é algo
dotada do poder de análise e síntese completamente diverso de ser objeto. A O HOMEM É
de representação dos objetos através função do sujeito é apreender o objeto;
de ideias e de avaliação, compreen- a função do objeto é ser apreensível e ser LIMITADO EM SUA
são e interpretação desses objetos por apreendido pelo sujeito. [...] Dizer que
meio dos juízos (p. 146). o conhecimento é uma determinação do CAPACIDADE DE
As consciências psicológica e sujeito pelo objeto é dizer que o sujei- CAPTAR AS REAIS
epistemológica podem ser compre- to comporta-se receptivamente com
endidas conforme os exemplos: um respeito ao objeto. Essa receptividade, PROPRIEDADES
aluno pode adorar estudar Física e contudo, não significa passividade.
outro não gostar da matéria, mas o Pelo contrário, pode-se falar de uma DOS OBJETOS,
sentimento de cada um não inter- atividade e de uma espontaneidade do POR ISSO A
fere nos conceitos das disciplinas, sujeito no conhecimento. Certamente,
pois seus valores independem de a espontaneidade não está relacionada DÚVIDA, ASSIM
vivências dos alunos e são o objeto ao objeto, mas à imagem do objeto, na
construído pelo sujeito do conheci- qual a consciência pode muito bem ter COMO ALGUMAS
mento. Outro exemplo: um médico uma participação criadora (Hessen, CERTEZAS,
pode não saber que existe a cura 2000, p. 18).
para o câncer e, ao ser informado ESTÁ PRESENTE
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

sobre isso, ele não acredita na cura, O homem é limitado em sua


o que não invalida de forma alguma capacidade de captar as reais proprie- EM TODOS
o sentido da pesquisa descoberta e dades dos objetos, por isso a dúvida, OS TIPOS DE
conhecida pelo sujeito do conheci- assim como algumas certezas, está
mento (p. 147). presente em todos os tipos de conhe- CONHECIMENTO
CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 39
CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

vo, em dois tipos: 1) Conhecimento


sensível por imagem direta ou sensí-
vel por meio de uma cópia (imagem
indireta); 2) Conhecimento intelec-
tivo pelo raciocínio e conhecimento
intelectivo pela visão. Já os pensa-
dores de origem aristotélica (Aris-
tóteles, Averróis, Alberto Magno
e Tomas de Aquino) preservavam
a primeira diferença e recusavam
a segunda, pois, para eles, nossa
mente não é dotada de conhecimento
intuitivo, somente de raciocínio. No
Período Moderno, igualmente, têm-
-se duas linhas de raciocínio e, para
o presente texto, utiliza-se o pensa-
mento de René Descartes. O fi ló-
sofo, por vezes chamado de “funda-
dor da Filosofia moderna” e “pai da no mundo externo da observação, humano, nesse sentido o conheci-
Matemática moderna”, considerado mas sim nas verdades puramente mento só é verdadeiro se for logica-
racionalista, foi um dos pensadores racionais, no cogito ergo sun. 3 mente necessário e universalmente
mais influentes da história e defendia Os racionalistas veem na razão válido. O racionalismo cartesiano
tanto o conhecimento sensível quan- a fonte principal do conhecimento difere-se do racionalismo puro por
to o intelectivo. três tipos de ideias: inatas, adventí-
3
Cogito Ergo Sun – “Expressão cartesiana que cias e factícias. As ideias adventícias
exprime a autoevidência existencial do sujei-
A R AZÃO É INATA chegam aos seres humanos a partir
to pensante, isto é, a certeza de que o sujeito
OU ADQUIRIDA? dos sentidos – sensações, percepções,
Grupo Único PDF PaD
Em Meditações sobre a Filosofia
pensante tem de sua existência como tal” (Ab-
bagnano, 2012, p. 173). lembranças –, as ideias factícias são
primeira (1641), obra mais completa aquelas que criam, na fantasia e na
e rigorosa sobre metafísica e episte- imaginação, uma união das imagens
mologia, René Descartes demonstrou SEGUNDO emitidas pelos sentidos e retidas na
as possibilidades do conhecimento a memória, cuja combinação permi-
partir de posturas mais céticas e, em A FILÓSOFA te representar ou imaginar coisas
seguida, estabeleceu uma base firme
para as ciências.
MARILENA CHAUI, nunca vistas – contos infantis, mitos e
superstições, por exemplo. E, por fim,
Para que suas crenças tivessem AS IDEIAS INATAS as ideias inatas, que são produzidas
estabilidade e resistência, o que para pelo entendimento, sem precisar da
ele trata-se de duas importantes NÃO PODEM experiência, vivem no âmago do ser e
marcas do conhecimento, Descar-
tes estabelece o célebre argumen-
VIR NEM DA pode-se pensar nelas ou não. Sobre as
ideias inatas, Descartes esclarece que
to do erro dos sentidos, argumento EXPERIÊNCIA
esse que coloca sob a ação da dúvida [...] quando começo a descobri-las,
metódica o conjunto de nossa experi- SENSORIAL DOS não me parece aprender nada de novo,
ência cotidiana, dado que a interação
sensorial com o mundo em que ela
SERES NEM DAS mas recordar o que já sabia. Quero
dizer: apercebo-me de coisas que esta-
se ampara não possibilita que elabo- FANTASIAS, POIS vam já no meu espírito, ainda que não
remos um conhecimento que esteja tivesse pensado nelas. E, o que é mais
acima de qualquer suspeita de falsi- NÃO SE TEVE notável, é que eu encontro em mim uma
dade. Descartes argumenta que “[...]
porém, descobri que eles [os senti-
EXPERIÊNCIA infinidade de ideias de certas coisas que
não podem ser consideradas um puro
dos] por vezes nos enganam, e é de SENSORIAL PARA nada. Ainda que não tenham talvez
prudência nunca confiar totalmente existência fora do meu pensamento elas
naqueles que, mesmo uma só vez, COMPÔ-LAS não são inventadas por mim. Embora
nos enganaram” (Descartes, 2004, p.
107). Nesse sentido, o único conhe-
A PARTIR DA tenha liberdade de as pensar ou não,
elas têm uma natureza verdadeira e
cimento verdadeiro não está contido MEMÓRIA imutável (Descartes, 2005, p. 97).

40 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

Segundo Chaui (2012), as ideias


inatas não podem vir nem da expe-
EM DESCARTES, e a alma que se fundem em uma
união fundamental, porém distintas
riência sensorial dos seres nem das PARA A RAZÃO entre si.
fantasias, pois não se teve experiên- Descartes admite ainda a existên-
cia sensorial para compô-las a partirBEM FUNCIONAR, cia de três substâncias. A res divina –
da memória. Dessa forma, tem-se o É NECESSÁRIO
exemplo: a ideia de infi nito é inata,
substância eterna, perfeita, infi nita,
que pensa e é independente. Mente
pois não há experiência sensorial de LIMPAR O TERRENO (alma) e corpo são constituídos por
infi nitude (p. 84). Para Descartes, duas substâncias distintas. Outra
as ideias inatas são a “assinatura doDA MENTE substância, a material, que corres-
criador” no espírito das criaturas
racionais e a razão é a luz natural
DE TODO ponde ao mundo corpóreo, a qual
ele chamou de substância extensa (res
inata que permite conhecer a verda- PRECONCEITO. extensa) e uma imaterial, que corres-
de. Elas são defi nidas, por ele, como ponde à esfera do eu ou da consciên-
todas as ideias que são inteiramente É PRECISO, cia, denominada substância pensante
racionais. São elas: a) Os princípios
da razão – identidade, não contra-
NUM PRIMEIRO (res cogitans). Essa última, segundo
ele, é a determinante no processo
MOMENTO,
dição, terceiro excluído e razão sufi- do conhecimento. Ainda que sepa-
ciente; b) Noções comuns da razão radas, essas substâncias são capazes
– o todo é maior do que as partes; DUVIDAR DE TUDO, de interagir. Para Descartes, apenas
(c) Ideias simples conhecidas por
intuição intelectual – cogito. Sendo
PRINCIPALMENTE em Deus essas substâncias poderiam
se fundir e constituir um todo, pois
as ideias inatas colocadas no espíri-DO QUE JÁ SE TEM é da divindade que elas teriam se
to dos seres por Deus, estas sempre originado. Ainda, segundo o pensa-
serão verdadeiras e mostram que as ESTABELECIDO mento cartesiano, a aparente oposi-
ideias factícias serão sempre falsas.COMO VERDADE ção entre espírito e mente não é
verdadeira, pois ambos perten-
PENSO, LOGO, EXISTO Grupo Único PDF PaD cem à esfera do res cogitans.
ABSOLUTA
Descartes, em o Discurso sobre Alguns pensadores acreditam
o método para bem conduzir a razão na distinção entre eles pelas
e buscar a verdade por meio da ciência características próprias de
(1637), enfatiza o método da dúvida: cada um, uma vez que o espíri-
a dúvida metódica ou dúvida carte- to é ativo, mutante, inventivo,
siana. Para a razão bem funcionar, é enquanto a mente tende ao ato
necessário limpar o terreno da mente reflexivo, meditativo, manten-
de todo preconceito. É preciso, num do-se quase inalterável. No res
primeiro momento, duvidar de tudo, cogitans, portanto, o elemen-
principalmente do que já se tem to laborioso é o espiritual,
estabelecido como verdade absoluta. ao passo que o intelecto é
A partir de então, devem-se buscar a fração inerte, algo por
verdades elementares, verdades que vir, que pode ser pratica-
bastem a si e não precisem de outras mente pesado, tocado. A
verdades precedentes, pois, duvidan- garantia de ideias claras
do de tudo, aquilo que conseguir se e distintas põe em dúvida
estabelecer como verdade depois disso tanto o mundo das coisas sensí-
terá, necessariamente, que ser uma veis quanto o das inteligíveis, ou
verdade absoluta. seja, é necessário duvidar de tudo.
O fi lósofo parte do cogito (pensa- A dúvida universal de Descar-
mento) que faz parte do seu interior, tes, segundo Barrena (2015), não é
colocando em dúvida a sua própria experiencialmente possível, pois não
existência para chegar a uma certe- se pode duvidar de tudo. A dúvida
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

za sobre a concepção de homem, a autêntica, por outro lado, surge em um


qual faz um novo pensar sobre a contexto específico, embora, às vezes,
problemática (homem), conside- seja também buscada, pois faz parte
rando duas principais substân- da atividade do ser humano questio-
cias existentes, que são o corpo nar o que faz e buscar os erros e as

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 41


CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

Ele busca descobrir quais seriam os


elementos que constituem o conheci-
mento, quais as suas origens e proces-
sos de formação, como também qual
a dimensão da sua aplicação. Dessa
forma, se, para Locke, o homem não
possui ideias inatas – ao contrário
do que afirmavam Platão e Descar-
tes –, surge a pergunta: como pode o
homem constituir um conhecimento
certo e indubitável, e em que casos
isso é possível?
Para o empirista, a fonte de todo
conhecimento humano está na expe-
riência sensível e na reflexão. Ele
esclarece que, em si mesmas, esta e
aquela não constituem propriamente
o conhecimento. São, antes, proces-
sos que compõem a mente com os
elementos do conhecimento. Locke
chama esses elementos de ideias.
Ideia é, para esse fi lósofo inglês, o
objeto do entendimento, quando
qualquer pessoa pensa. A expressão
“pensar” é assim tomada no mais
amplo sentido, englobando todas
as possíveis atividades cognitivas.
Grupo Único PDF PaD Monteiro (1999) defende que, para
Locke, as ideias de reflexão originam-
anomalias. Quando se produz uma racionalismo se deixa conduzir por -se no interior do sujeito, enquan-
dúvida genuína, o organismo trata de um ideal de conhecimento, uma ideia to as ideias de sensação derivam do
voltar ao seu equilíbrio, mediante um determinada, o empirismo parte de
processo de pesquisa que se encerra fatos concretos. As percepções da
quando é formado um hábito, uma
crença verdadeira e revisada (p. 30).
criança são concretas e são elas que
formam, aos poucos, os conceitos
PARA O EMPIRISTA,
gerais e as representações e, sendo A FONTE DE
CONHECIMENTO E A assim, as percepções desenvolvem-se
EXPERIÊNCIA DOS SENTIDOS organicamente a partir da experiên- TODO
Enquanto o racionalismo susten-
ta que a verdadeira fonte do conhe-
cia (p. 55).
Em um de seus principais traba-
CONHECIMENTO
cimento é o pensamento, a razão, o lhos, O Ensaio sobre o entendimento HUMANO ESTÁ
empirismo, por sua vez, contrapõe humano (1690), John Locke apresen-
determinando que a única fonte do ta sua crítica ao inatismo e defende NA EXPERIÊNCIA
conhecimento humano é a experiên-
cia. Para os empiristas, a razão não
que todas as pessoas nascem como
uma “tábula rasa”, ou seja, como uma
SENSÍVEL E NA
possui nenhuma herança apriorísti- folha em branco, sem conhecimento REFLEXÃO.
ca. Segundo Hessen (2012), a cons- nenhum. Destarte, todas as pesso-
ciência cognoscente não retira seus as começam por não saber absoluta- SÃO, ANTES,
conteúdos da razão, mas exclusiva-
mente da experiência. Ao nascer, o
mente nada e aprendem pela expe-
riência, pela tentativa e pelo erro.
PROCESSOS QUE
espírito humano está vazio de conte- “Locke conclui em tal caso que se o COMPÕEM A
údos, é uma folha em branco sobre homem adulto possui conhecimento,
a qual a experiência irá escrever os se sua alma é um ‘papel impresso’, MENTE COM OS
conceitos, e até mesmo os universais
e abstratos originam-se da experi-
outros deverão ser os seus conteúdos:
as ideias provenientes – todas – da
ELEMENTOS DO
ência. Ao mesmo tempo em que o experiência” (Monteiro, 1999, p. 10). CONHECIMENTO
42 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO
IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

exterior. Como exemplo, podemos


citar expressões como “azul”, “frio”,
que traduzem ideias de sensações.
E, por outro lado, palavras como
“duvidar”, “pensar” constituem ideias
de reflexão. A essas duas catego-
rias, Locke intitula “ideias simples”.
Simples porque elas só acontecem a
partir de experiências bem concretas.
Essas experiências concretas, por sua
vez, fornecem ideias simples de três
formas: sensação, reflexão e ambas
simultaneamente. Para a primei-
ra, citamos como exemplo: sólido,
amargo, movimento; na segunda,
podemos citar a atenção, a memó-
ria, a vontade; e, por fi m, em rela-
ção às duas juntas, seriam as ideias
de existência, duração, número. Para O CONHECIMENTO SEGURO E VERDADEIRO,
saber se as ideias simples equiva-
lem a imagens das coisas exteriores FACULDADE UNIVERSALMENTE PARTILHADA,
ao sujeito que as percebe, Locke as
separa em dois grupos: o primei- DEIXA CLARO QUE É SOMENTE A RAZÃO
ro é formado por ideias “enquanto OU O BOM SENSO QUE PODEM DISTINGUIR
percepções em nosso espírito”; o
segundo, “enquanto modificações da O HOMEM DOS OUTROS ANIMAIS
matéria nos corpos causadores de tais
Grupo
percepções”. Essa última traduz os Único
salmente PDF
válidas. Como PaD
no caso da podem, sim, enganar e afastar os seres
efeitos de poderes capazes de afetar Matemática, cujo fundamento reside humanos da verdade. A razão seria
os sentidos humanos (Monteiro, no pensamento (p. 71). Compreende- a única forma verdadeira da qual se
1999, p. 13). Chaui (2012) entende mos que o pensamento de Descartes deve partir para alcançar o conheci-
que uma percepção é a reunião de permanece vivo nos dias de hoje, a mento. O inatismo traduz a profunda
muitas sensações, ou seja, percebe- reflexão sobre as suas ideias expressa confiança que ele tem na razão. Essa
mos um único objeto por meio de a certeza da própria existência e que fonte de todo o conhecimento segu-
várias sensações. Quando percebe-se todo o verdadeiro saber se distingue ro e verdadeiro, faculdade univer-
uma rosa, ela é o resultado da reunião pelas notas da necessidade lógica e salmente partilhada, deixa claro que
de várias sensações diferentes num só da validade universal, pois o mundo é somente a razão ou o bom senso
objeto de percepção. Essas percep- da experiência mantém-se em contí- que podem distinguir o homem dos
ções associam-se por três motivos: nua mudança, por isso os sentidos outros animais.
semelhança, proximidade ou suces-
são temporal. Ao se repetirem essas ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia, v. 1. Lisboa: Presença, 1991.
REFERÊNCIAS

sensações, seja por semelhança, no


BARRENA, Sara. Pragmatismo y educación: Charles S. Peirce y John Dewey en las aulas. Madri:
mesmo espaço de tempo ou próximas Machado Grupo de Distribución, 2015.
umas das outras, criamos o hábito
CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
de associá-las e essas associações são
denominadas pelos empiristas como . Iniciação à Filosofia. São Paulo: Ática, 2012.
ideias. Essas ideias trazidas pela DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
experiência são levadas à memória, . Meditações sobre Filosofia primeira. São Paulo: Ed. da Unicamp, 2004.
onde a razão as utiliza para formar os
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
pensamentos (p. 86).
LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Ainda assim, para Hessen (2000),
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

mesmo que todo conteúdo do conhe- MONTEIRO, João Paulo; Martins, Carlos Estevam. Vida e Obra. Coleção Os Pensadores. Ensaio
Acerca do Entendimento Humano, por Jonh Locke, tradução: Anoar Aiex, p. 5 a 17. São Paulo: Nova
cimento proceda da experiência, o seu Cultural, 1999.
valor lógico não se limita à experiên-
REALE, Giovanni. História da Filosofia moderna, v. 1. São Paulo: Paulus, 2007.
cia, pois existem verdades que inde-
pendem da experiência e são univer- SANTOS, Antônio Raimundo dos; CORDI, Cassiano et al. Para filosofar. São Paulo: Scipione, 2000.

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 43


CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

André Stuchi
de Almeida
é professor, graduado
em Ciências sociais,
especialista nos temas
de Globalização
e Cultura pela
Fundação Escola
de Sociologia e
Política de São Paulo
(FESPSP), e Conflitos
Internacionais e
Globalização pela
EPPEN- Unifesp.

Grupo Único PDF PaD

Victor Santana de
Araújo é graduando
em Sociologia
e Política pela

ÓDIO AO
Fundação Escola de
Sociologia e Política
de São Paulo (FESPSP).

OUTRO:
DISTORÇÕES
DA
REALIDADE
44 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO
IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

O que acontece
no Brasil de hoje é
resultado de décadas
de questões não
resolvidas em toda
a nossa história

V
ive-se hoje um dos momen-
tos de maior turbulência
social e política em toda a
história. As eleições de 2018 não
deram ao país um oxigênio em
meio a tantas crises institucionais e
econômicas. Ao contrário disso, os
ânimos se acirraram ainda mais e a
intolerância permeia toda a socie-
dade. Tudo isso se deve ao fato de
um fenômeno estar muito atuante
na nossa sociedade: o bolsonarismo.
Muito se atrela tal fenôme-
no a questões conjunturais mais
recentes. No entanto, o que acon-
Grupo Único PDF PaD tece no Brasil hoje é resultado
de décadas e até séculos de ques-
tões não resolvidas em toda a
nossa história. Walter Benjamin
já dizia: “O espanto em constatar
que os acontecimentos que vive-
mos ‘ainda’ sejam possíveis no
século X X não é nenhum espanto
f ilosóf ico”.1 Pode-se compreender
o bolsonarismo como um momento
hiperautoritário do neoliberalis-
mo, como af irma Christian Laval:

O neoliberalismo suscitou
rancor social, frustrações, ressen-
timentos, paixões… paixões desi-
gualitárias, mas também paixão
pela democracia e pela igualda-
de. Ele é um terreno de conf litos.
Houve fases no neoliberalismo.
SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL DO AUTOR

Houve fases de lutas intensas: a


ascensão do altermundialismo,
os movimentos de rua no mundo
inteiro… Mas, hoje, estamos
1
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e
política. Ensaios sobre literatura e história
da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagne-
bin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.
(Obras escolhidas, v. 1.)
CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

suas pautas, o que acaba acirrando


ainda mais os conf litos entre esses
grupos.
Para se ter alguns exemplos
mais práticos do que está sendo
dito, nos últimos anos têm cres-
cido fortemente nos carnavais as
campanhas do “Não é Não” como
uma forma de combater os assé-
dios e estupros cometidos contra
mulheres durante esse período do
ano. Também aumenta o escla-
recimento das pessoas negras ao
ocuparem espaços que são ocupa-
dos majoritariamente por pessoas
brancas e, independentemente de
seus interesses no campo da econo-
mia política, possuem a noção (em
maior ou menor grau) de que o
racismo (como sistema) precisa ser
combatido. E, por último, deve-
-se notar a liberdade que pessoas
LGBTs têm ao expressar mais os
seus afetos publicamente.
Tudo isso gera uma espécie de
frustração de uma outra parte da
sociedade. Um setor que não aceita
Grupo Único PDF PaD que essas mudanças acontecem e
EMBORA CADA MOMENTO HISTÓRICO devem acontecer para o desenvol-
vimento humano.
TENHA A SUA PECULIARIDADE E AS O fenômeno bolsonarista não
se explica isoladamente, mas é
SUAS PARTICULARIDADES, O FATOR resultado de uma nova onda que
MAIS COMUM DA ASCENSÃO DO se alastra no mundo todo desde
o ano de 2016, com a eleição de
AUTORITARISMO É JUSTAMENTE O RANCOR Donald Trump. No entanto, há
espaço suf iciente para fazer análi-
SOCIAL, EM SUCESSIVAS CRISES DO CAPITAL ses partindo da própria conjuntura
brasileira.
visivelmente em outra fase, que eu seu modo de vida ameaçado pelas A direita brasileira antes fora
chamaria de momento hiperauto- sucessivas crises do capital, pela liderada pelo PSDB, que visava
ritário do neoliberalismo. 2 violência e pelo desemprego. um aprofundamento das políticas
Ao mesmo tempo em que gera iniciadas por Fernando Henrique
Embora cada momento histó- todos esses sentimentos, no lado Cardoso na privatização de esta-
rico tenha a sua peculiaridade e oposto obteve-se também forte tais, maior autonomia do merca-
as suas particularidades, o fator atuação, como os movimentos do e redução da participação do
mais comum da ascensão do auto- coletivos que visam igualdade e Estado na economia. Contudo, a
ritarismo é justamente o rancor f im das opressões a determina- própria direita, na sua totalida-
social, frustrações, ressentimentos dos grupos (mulheres, negros, de, necessitava radicalizar o seu
e paixões – como af irma Laval – LGBTs). discurso e as suas ideias, como
de uma sociedade que vê todo o A partir do momento em que af irma Luis Felipe Miguel:
determinados grupos se levan-
2
LAVAL, Christian. Bolsonaro e o momen- tam contra séculos de violência, O que existe hoje é a conf luên-
to hiperautoritário do neoliberalismo. Dis-
geram-se em outra parte da socie- cia de grupos diversos, cuja união
ponível em: https://blogdaboitempo.com.
br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario- dade medos, frustrações e, prin- é sobretudo pragmática e motiva-
-do-neoliberalismo/ cipalmente, equívocos quanto às da pela percepção de um inimigo

46 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

comum. Os setores mais extrema-


dos incluem três vertentes prin-
É IMPORTANTE Dentre as muitas organizações
dos grupos conservadores, vale citar
cipais, que são o libertarianismo, ANALISAR O também o Instituto Millenium,
o fundamentalismo religioso e a que possui forte inf luência pelos
reciclagem do anticomunismo. 3 DESPREZO QUE nomes que colaboram com suas

O autor ressalta a união de


A SOCIEDADE atuações, como o apresentador e
jornalista Pedro Bial, o colunista
diferentes grupos que, indepen- PASSOU A TER Rodrigo Constantino, o editor do
dentemente de suas diferenças no jornal Estado de S. Paulo Antônio
âmbito moral, têm algo em comum PELAS INSTITUIÇÕES Carlos Pereira, o diretor da Rede
que os une, que em suma se trata
da eliminação por completo de seu
POLÍTICAS Globo Luiz Eduardo Vasconcellos
e o próprio João Roberto Marinho;
inimigo comum: as esquerdas. TRADICIONAIS, e por último o Grupo de Líderes
Vale também ressaltar o fato Empresariais (Lide), fundado pelo
de que Bolsonaro não estava em POR OUTRAS QUE atual governador João Doria. Um
primeiro plano para as elites.
Embora suas ideias estejam alinha-
APENAS APARENTAM grupo muito seletivo de empresá-
rios brasileiros, que buscam diver-
das com os maiores e mais inf luen- SER ALGO NOVO, sas formas de atuação política em
tes empresários do país, as classes benefício de seus negócios. 6
dominantes precisavam de alguém ENQUANTO Todas essas instituições atua-
com um discurso mais moderado,
e o homem do mercado era Geral-
CARREGA CONSIGO ram em conjunto para difundir no
Brasil o pensamento liberal, e, de
do Alckmin; isso até chegar ao TODAS AS acordo com os próprios, da livre
ponto em que se teve certeza de iniciativa e menor dependência do
que o candidato não ganharia as CARACTERÍSTICAS Estado.
eleições.
O modus operandi pratica-
DA VELHA POLÍTICA Por f im, é importante analisar
o desprezo que a sociedade passou
do pelos grupos ultraliberais, no Grupo
no eixoÚnico
Sudeste-Sul.PDF
InstituiçãoPaD a ter pelas instituições políti-
entanto, é pensado desde a déca- essa que foi responsável por criar cas tradicionais, por outras que
da de 1980, e só agora, décadas o Fórum da Liberdade, um dos apenas aparentam ser algo novo,
depois, conseguiram de vez colo- eventos de maior importância da enquanto carrega consigo todas as
car em prática. direita brasileira. 5 características da velha política. A
No ano de 1983, frações da
burguesia do Rio de Janeiro, 5
Idem. 6
Idem.
juntamente com intelectuais da
Fundação Getulio Vargas, forma-
dos a partir das ideias da Escola
Monetarista de Chicago e inspi-
rados pelo Institute of Economic
Affairs (IEA), fundaram o Insti-
tuto Liberal (IL), com o objetivo
de criar métodos de difusão do
pensamento liberal no Brasil. 4
Nesse mesmo contexto, criou-
-se, no ano de 1984, o Instituto
de Estudos Empresariais (IEE),
que tinha como propósito a divul-
gação do pensamento conservador

3
MIGUEL, L. F. A reemergência da direita
brasileira. In: SOLANO, Esther (Org.). O
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

ódio como política. São Paulo: Boitempo, 2018.


4
CASIMIRO, Flavio Henrique Calheiros.
As classes dominantes e a nova direita no
Brasil contemporâneo. In: SOLANO, Esther
(Org.). O ódio como política. São Paulo: Boi-
tempo, 2018.

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 47


CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

começar pela eleição em primeiro


turno de João Doria para a prefei-
A PARTIR DE 2008,
tura de São Paulo. A “NOVA CLASSE
O que se percebe é que o discur-
so antipolítico já estava sendo MÉDIA” AOS
alimentado, e com o passar dos
anos foi se fortalecendo. Fizeram
POUCOS VAI
o que Safatle chama de “mobili- PERDENDO SEU
zar o medo”: em meio a uma crise
econômica e política institucional, PODER DE COMPRA
travestindo-se de uma corren-
te popular, aos poucos ganharam
E UM QUADRO
terreno. DE INSATISFAÇÃO
Alguns fatores de ordem
estrutural contribuíram para que COMEÇA
a extrema-direita se tornasse a
principal alternativa. Isso envol-
A SE FORMAR
ve desde a sua forte capacidade
de articulação com programas de universidade, o empregado/a passa prático, em 2011 o PIB teve um
proteção à economia, aumento de a viajar de avião na mesma clas- crescimento de 3,9%, entretanto,
competição, Estado mínimo, polí- se que o patrão. Tudo isso gera com o passar dos anos, o cresci-
ticas neoliberais, tudo isso atrela- desconforto para uma classe acos- mento foi se reduzindo até chegar
do a um forte anseio de preserva- tumada com a distinção e, nesse em 0,1% no ano de 2014.
ção de seus valores. arcabouço, tentara de todas as Em meio à crise econômica que
A verdade é que, ao longo dos formas recuperar o seu prestígio, começa a se instalar, vemos grada-
anos, o governo do PT possibilitou se é que tem algum. tivamente o surgimento de uma
o surgimento de uma “nova clas- A crise que se inicia em 2008 nova onda, que cria corpo a partir
Grupo Único PDF PaD
se média brasileira”, que, segundo muda esse quadro de ascensão de junho de 2013. Nos referimos
Rudá Ricci (2013), passa a desfru- drasticamente. A partir dela a ao surgimento do discurso anti-
tar de aumento de salários, aumen- “nova classe média” aos poucos vai político que surfa em meio à crise
to do poder de compra, acesso a perdendo seu poder de compra e institucional, ganhando fôlego em
lugares antes impensáveis e assim um quadro de insatisfação começa meio à população. Para se ter uma
por diante. a se formar. ideia, conforme Almeida (2016),
Nesse período, o f ilho da A princípio, a nova matriz gera entre os anos de 2009 e 2015 o
empregada/o passa a frequentar a resultados. Para dar um exemplo Ibope realizou várias pesquisas a
respeito da “conf iança nas insti-
tuições”. Nelas, pôde-se constatar
o quanto as instituições políti-
cas estavam desacreditadas, e em
todas essas pesquisas os partidos
políticos ocupavam a última posi-
ção, com índice de 30% de acei-
tação caindo no último ano para
17%, ou seja, quase a metade.
A conf iança nas instituições
não está relacionada apenas à polí-
tica, mas a todos os setores rela-
cionados ao Estado brasileiro, e
dentre eles o mais nítido é o da
segurança pública.
A falta de conf iança nas insti-
tuições traz o sentimento de inse-
gurança a milhões de pessoas por
todo o país, fazendo com que estas
desejem alternativas radicais para
combater a violência, como por

48 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


IS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE
• CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
IÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •

exemplo a ânsia pelo aumento da NO QUE TANGE o f ilósofo Slavoj Zizek, não exis-
letalidade policial e principalmen- te apenas a violência midiatizada
te a revogação da lei do desarma-À VIOLÊNCIA, (aquela em que os meios de comu-
mento. Tudo isso nos leva a uma nicação narram de maneira super-
análise sobre as distorções que oCRIOU-SE NO f icial), mas diversas formas de
bolsonarismo causa na visão polí-BRASIL A PECHA violência e opressão que sufocam o
tica dos cidadãos. Que distorções tecido social.
são essas? DE QUE AQUELES O Estado tem por obrigação
Ao longo dos anos, criou-se o controle da violência, sempre
no Brasil uma falsa dicotomia QUEÚnico
Grupo DEFENDEM
PDF PaD da maneira mais pacíf ica possí-
da realidade, o ódio ao outro, o OS DIREITOS vel, e os direitos humanos têm por
“nós contra eles”, o “bem x mal”, função o controle sobre as ações do
que dif iculta qualquer tentativaHUMANOS, QUE Estado para que não haja exceções.
de consenso entre os que pensam Como dizia Bertolt Brecht,
diferente. SÃO CONTRA A “que tempos são esses em que
Para isso, alguns AMPLIAÇÃO
temas temos que defender o óbvio?”. Este
mostram como o bolsonarismo texto seria, em outro contexto,
distorceu a visão daqueles que o DO PORTE DE uma amostra de obviedades sem
defendem e se engajam na polí- nada a acrescentar. Pois bem, vive-
tica, questões polêmicas como ARMAS, QUE mos num tempo em que o óbvio
QUESTIONAM
violência, aborto, racismo etc. são parece ser uma novidade para o
discutidas nos convívios sociais fenômeno bolsonarista.
de maneira muito rasa, tomando AÇÕES POLICIAIS, A partir do momento em que o
sempre como princípio as experi- Estado legaliza o armamento, ele
SÃO DEFENSORES
ências pessoais para refutar o que assinará a sua própria incapacida-
as pesquisas dizem. DE BANDIDOS de de controlar a violência, trans-
No que tange à violência, ferindo para seus cidadãos a defesa
criou-se no Brasil a pecha de que que o Brasil possui dois lados: os destreinada, podendo gerar efeitos
aqueles que defendem os direitos que defendem e os que condenam colaterais irreversíveis.
humanos, que são contra a amplia- bandidos. Ainda na questão da violência,
ção do porte de armas, que ques- Como dito em artigos anterio- devemos lembrar que o serviço de
tionam ações policiais, são defen- res, a violência não é uma questão segurança é público, e como tal
sores de bandidos. A princípio, moral e de escolhas de cada indi- deve estar passível de questiona-
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

parece apenas uma frase de efeito, víduo, mas sim um sintoma de mento por parte de seus cidadãos.
mas, ouvindo pessoalmente quem que a sociedade passa por proble- Portanto, a questão da crimina-
acredita e difunde esses discur- mas estruturais que resultam no lidade e do porte de armas é um
sos, existe uma crença de que a aumento do índice da criminali- dos fatores que evidenciam a visão
realidade é exatamente essa, de dade. Além disso, como explica distorcida da realidade.

CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • ciência&vida • 49


CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAI
CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO •
& EDUCAÇÃO • CADER NO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO • CADER NO DE CI

No mapa da segregação racial,


há um levantamento feito por
pesquisadores em todo o Brasil
sobre como a população está distri-
buída pelo território, e os resulta-
dos são impressionantes.
Nas capitais e regiões metro-
politanas, há uma segregação do
espaço urbano que se evidencia
na cor dos cidadãos. Nas regi-
ões periféricas, mais afastadas e
com menos recursos e serviços, é
onde se concentra a maior parte
de pessoas da cor preta ou parda,
enquanto nas regiões mais centrais
e desenvolvidas o número de
pessoas da cor branca predomina.9
Isso resulta diretamente em
outras questões como oportu-
nidades, crescimento prof issio-
nal, acesso a bens e riquezas. Nas
universidades, a maioria dos alunos
é branca, enquanto nos presídios a
maioria é negra. A taxa de homicí-
dios de pessoas negras é mais que o
Há um segundo fator que De acordo com reportagem do dobro da de pessoas brancas.
evidencia a visão distorcida da Estadão, os países que mantêm uma Recentemente, o presidente
realidade causada pelo bolsonaris- Grupo Único PDF PaD
legislação mais legalista a respeito Jair Bolsonaro disse em entrevista
mo: o aborto. do aborto são os que possuem as que o racismo é algo muito raro no
Existe uma confusão genera- taxas mais baixas. 8 Isso porque, Brasil, já superado. Como falado
lizada em torno desse assunto. acima das questões morais, estão acima, contribui muito com a ideia
Enquanto um lado defende o direi- a saúde pública e o bem-estar de de que racismo se resume a convi-
to reprodutivo da mulher, de tratar toda uma população. ver ou não com pessoas negras.
o tema como um caso de saúde Outro fator que mostra a super- O bolsonarismo nasceu do medo,
pública, o outro se pauta por ques- f icialidade do bolsonarismo sobre a da desesperança e do desespero
tões morais e religiosas sem obter realidade é a questão do racismo. de uma população frustrada com
nenhuma evidência científ ica. No Brasil, entende-se equivo- a política nacional. Ele cristali-
Os que possuem uma visão cadamente por racismo o fato de zou a fase antipolítica do mundo
simplif icada sobre o assunto acre- não gostar de pessoas de outras e inaugurou no Brasil uma era em
ditam que uma pessoa que defende raças, quando na verdade se mostra que as frases de efeito, o punitivis-
esse direito está defendendo o ato que é algo mais sistemático do que mo e a intolerância estão acima de
do aborto. Mas a realidade mostra subjetivo. qualquer tentativa para promover
justamente o contrário. maior bem-estar dos cidadãos.
De acordo com o mapa do 8
CHADE, Jamil. Países que liberaram o
Center for Reproductive Rights, aborto têm taxas mais baixas de casos que 9
O que o mapa racial do Brasil revela sobre
o Brasil é um dos poucos países aqueles que o proíbem. Disponível em: a segregação. Disponível em: https://www.
h t t p s : / / s a u d e. e s t ad ao. c om . b r / n o t i c i a s / nexojornal.com.br/especial/2015/12/16/O-
a manter a legislação proibitiva geral,paises-que-liberaram-aborto-tem-ta- -que-o-mapa-racial-do-Brasil-revela-
sobre o aborto7: xas-mais-baixas-de-casos-que-aqueles-que- -sobre-a-segrega%C3%A7%C3%A3o-no-
Nos países mais desenvolvidos, -o-proibem,10000050484 -pa%C3%ADs
não há restrições ao aborto, e isso
interfere diretamente no número BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e
REFERÊNCIAS

IMAGENS: SHUTTERSTOCK

história da cultura , p. 222-232. São Paulo: Brasiliense, 1987.


de abortos feitos em cada um deles.
LAVAL, Christian. Bolsonaro e o momento hiperautoritário do neoliberalismo. Disponível em:
7
RUIC, Gabriela. Como o aborto é tratado https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario-do-neoliberalismo/
pelo mundo. Revista Exame. Disponível em:
SOLANO, Esther (Org.). O ódio como política. São Paulo: Boitempo, 2018.
https://exame.abril.com.br/mundo/como-o-
-aborto-e-tratado-pelo-mundo/ SOUZA, Jessé. A classe média no espelho. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

50 • ciência&vida • CADERNO DE CIÊNCIAS SOCIAIS & EDUCAÇÃO


Sete degraus
sempre a descer
Autora: Eugénia
de Vasconcellos
Editora:

Eugénia de
Guerra & Paz

Vasconcellos:
sete degraus
sempre a descer
FILOSOFIA, LITERATURA E ESTÉTICA
Um mundo sem poesia seria nossa interioridade. Movimen- A escritora portuguesa já
pior do que um céu desestre-
lado. Mar sem ondas. Floresta
Grupo Único PDF PaD
tam abstrações que em nada ga-
rantem nossas pretensas certezas
publicou diversos livros. Con-
tos, ensaios e poesias. Todos os
subtraída de vozes. Abismos sem (nada piores do que elas, diga-se “gêneros” atravessados por um
ecos. Sinos aberrantes. Aves sem de passagem). alto grau de poeticidade que, na
asas. Deserto descolorido. Ven- Sete degraus sempre a descer, verdade, é a marca das literatu-
tos lentos sem alvo. Paisagens da escritora portuguesa Eugénia ras que se pretendem (e devem)
acorrentadas sem o sopro da li- de Vasconcellos, Editora Guerra ser universais. Ou seja, um escri-
berdade. Porque a poesia nos & Paz, Lisboa, é um livro que tor não pode e jamais deve falar
faz, ao menos, pensar que a alma nos faz parar, queiramos ou não, por si. Poucos (que infelicidade!)
existe (por lembrar de Marguerite para repensar não somente as conseguem entender que a ver-
Yourcenar-Jeanne de Vietingho- armadilhas do amor. Mas, tam- dadeira voz de um escritor deve,
ff). O universo poético, em todos bém, as ardilosas teias (quase antes de qualquer coisa, despir-
os sentidos, sintetiza ondulações invisíveis) que a vida , incondi- -se de sua própria voz. Despojar-
que movimentam não somente o cionalmente, nos impõe e cuja -se. Desnudar-se. Sair de si. Nada
concreto. Mas que movimentam reposição é sempre pontual. pior do que a voz pessoal que gri-
ta por ela mesma. Literatura não
O UNIVERSO POÉTICO, é relatar suas próprias memórias
ou pequenos acontecimentos de
EM TODOS OS SENTIDOS, infância ou familiares. Que fique
SINTETIZA ONDULAÇÕES QUE bem entendido: literatura fala por
alguém, como no seguinte poema
MOVIMENTAM NÃO SOMENTE de Eugénia: “C’est quoi la poésie?/
O CONCRETO, MAS A NOSSA A poesia não é coisa das páginas
dos livros–/ não se faz na tipogra-
INTERIORIDADE. ABSTRAÇÕES fia./ ”Ainda que seja nas páginas
dos livros que/ se fixa depois da
QUE NADA GARANTEM NOSSAS tipografia lhe dar um corpo de
PRETENSAS CERTEZAS papel/ é sempre de amor que se

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 51
PARA REFLETIR

complexas que brotam (como


água a espirrar de nascentes) do
próprio conceito de amor. Como
definir um conceito que carre-
ga a multiplicidade de vertentes?
Pode parecer ingênuo, mas não
é: “O Amor é um canto/ de riso e
de lágrimas,/ um canto concreto e
fremente,/ uma existência./”Uma
oração./ A pequenina chama sem-
pre acesa que/ serve à adoração.”
Como não ouvir, neste momento,
ecos e ressoares de Camões, Dan-
te e Fernando Pessoa? Como? E o
canto das sereias evitado, ardua-
mente, por Ulisses? Mas não sem
o pessimismo (ou realismo?) de
Milan Kundera. Todo amor está,
em princípio, condenado ao pre-
cipício. De amar e sofrer ninguém
se desabitua nos lembra Guima-
rães Rosa. Condenação humana
irrevogável. Multiplicidades en-

Grupo Único PDF PaD volvem o conceito de amor. Pos-


se. Ciúmes, sem concessões, do
passado, presente, futuro (impos-
faz um corpo,/ é por amor que nhos de papel que se afogam na sível esquecer Goethe em todas
um corpo se dá./ A poesia é da primeira poça de águas não crista- as esferas).
vida. É de quem tem./ A dor é de linas...) Mas para se fazer poesia, O amor navega, sutilmente,
quem tem. O amor é de quem?/ como diz a poetisa portuguesa, é pelos oceanos (não existem ânco-
A alegria? De quem tem./ Ao fim, preciso nascer para isso. Poesia
depois do tempo, depois de mim, não se adquire como uma simples
é de quem lê”. Aqui infere-se, caixa de fósforos (por mais que
quase que facilmente, que a poe- estes possam, de certa maneira,
tisa fala pelo próprio conceito de iluminar). É preciso tê-la em alma,
poesia. A eterna ânsia do escritor como no seguinte fragmento: “Sin-
que realmente pensa a linguagem to. Penso. Sei:/ o Amor, porque
e que busca (não sem dor e de- não tem um princípio,/ não tem
sespero) em sua mediação. (Que um fim. – / E é de sua condição
tanto nos atravessa, que nos dá iniciar-se na dor,/ e vencê-la/ sem
IMAGENS: FREEPIK E SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

voz, corpo e alma.) Impossível que a chama se apague./ O outro


diante do fragmento, exposto an- nome de um coração é liberdade/
teriormente do poema, esquecer- e só por isso nos deixamos pren-
mos Deleuze. Ou seja: existe uma der./ O outro nome do Amor é tu/ Ana Maria Haddad Baptista
grande diferença entre escritores e só por isso nos deixamos matar./ (A. M. H. B.) é mestra e doutora
que possuem intenções literárias e Há outra eternidade?”. em Comunicação e Semiótica.
aqueles que realmente fazem lite- No fragmento em questão Eu- Pós-doutora em História
ratura. (A desgraça propriamente génia expõe a si mesma, sem jul- da Ciência. Pesquisadora e
da literatura é ser “construída”, gamentos (e portanto joga para professora da Universidade
em grande parte, por intenções os leitores afogados... em busca Nove de Julho. Escreve sobre
literárias...”verdadeiros barqui- da liberdade esquecida) as linhas Literatura nestas páginas.

52 • ciência&vida
ras) profundos da ausência. Eis o
grande ardil. Ardente, insaciável.
Quase impalpável. Alerta-nos o
poeta (Marco Lucchesi), que pos-
sui uma incrível intimidade com
as estrelas, assim como transita
facilmente por Babel, o quan-
to amantes não percebem o que
realmente buscam. As saudades
insinuam-se (impiedosamente)
quando separados. No entanto,
quando os amantes estão juntos
há uma incompletude. Há uma
DIVERSOS TONS receitas de felicidades prometidas
e de correntes espessas que laçam
dimensão misteriosa que escapa. INSINUAM-SE facilmente, em especial, aos que
E isso remete, novamente, à com-
plexa questão da ausência. Im-
AO LONGO se fazem de surdos e mudos ao
canto poético. Em outras palavras:
possível não pensar que amamos DE SUA POESIA, têm medo da verdade. Mas, tam-
mais quando separados de nossos bém, da árvore da vida:
amores. Quaisquer que sejam as
NOS HIATOS “e nem é que não ame, amo,
dimensões plurais que envolvem E SILÊNCIOS as virtudes
ou dissolvem os amores. Amamos naturais ou de civilização,
a ausência (por isso mesmo a li-DE QUEM e as fragilidades, suas irmãs,
teratura nos convoca muito mais POSSUI A mas do inferno sonhar o nosso
em termos de introspecção). A
Grupo
literatura trabalha com o ausen-
Único PDF
CONSCIÊNCIA PaD
maior sonho,
o melhor sonho,
DE QUE EXISTIR
te. O que instiga e castiga nossas é uma respiração funda, clarís-
possíveis reflexões. sima,
NÃO É UM
Sete degraus sempre a descer é que nenhum abismo colhe,
um convite sedutor (e, portanto,DESAFIO ali quando entre camadas
perigoso) que nos leva ao con- de nada, nada, nada,
fronto, sempre abismal, com nos-PARA OS FRACOS se chama a existência o que
sa liberdade (sempre um proces- nunca foi –
so a ser construído). Mas apenas “Não há plano. e isto de crucificar a razão à
a um primeiro patamar. (Adverte Não há sonho. verdade,
Lucchesi: “Sete Degraus sempre a Não há futuro. faz cair demónios e lança es-
Descer é um livro de alta poesia. Só há agora: trelas ao céu da manhã.”
Alta porque marcada pelo des- de hora a hora O grito final da poetisa: “Espe-
censo, ensaio de ousadia, pacto até o passado se desfaz. ra não morrer, jamais, ainda que
de sangue dos happy few. A via- Não vais morrer: as evidências dêem a morte por
gem de Alceste e Orfeu pertina z, respira.” inevitável”. Os diversos tons de tal
solitária, ao longo de uma incon- Poesia? A eterna busca pela afirmação insinuam-se ao longo
tornável cerimónia de adeus.”]) expressão íntima do ser. Das vo- de sua poesia nos hiatos e silên-
A nossa indefinível interioridade zes silenciadas. Subtraídas. Petri- cios de quem possui a consciência
não para de nos escavar, arrastar, ficadas pelos infames envolvimen- de que existir não é um desafio
(para não esquecer de Bergson), tos do tédio que permeiam toda e para os fracos. Existir-se, com ple-
da busca desesperada de nos cin- qualquer existência, além de seus nitude, é reconhecer-se em so-
dir. Um caminho quase provável tentáculos sociais. Culturais. His- nhos que poderão se realizar ou
se não fôssemos incondicional- tóricos. A voz poética se sobrepõe, não. Mas, ao menos, imaginados e
mente mediados pela linguagem. quando plena de autenticidade, a plasmados sob a linguagem poéti-
Por isso mesmo Eugénia ressalta outras vozes tentadoras que sur- ca que acaricia, atenua e ternura-
em “Respira”: gem das âncoras, das algemas, das liza mesmo o impossível.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 53
PARA REFLETIR

Máquinas espirituais
ARTES VISUAIS
AINDA PERGUNTAM loca é quem guardará os guardas?
Um dia, ligaremos para a empre-
sa que nos vendeu nosso computa- Quem controlará os algoritmos
SE NOSSOS
dor pessoal e informaremos que ele inteligentes dessas máquinas que
morreu. O serviço de atendimentoCELULARES IRÃO criam seus próprios programas
nos perguntará se queremos que o derivados dos iniciais? Resposta
ressuscitem ou se queremos outroSE TORNAR difícil. Talvez, no futuro, nenhum
com nova personalidade. Bem, se
tivermos desenvolvido uma empa-
SUFICIENTEMENTE humano esteja mais no comando.
Máquinas serão autônomas e de-
INTELIGENTES PARA cidirão por si. Teremos que manter
tia muito forte com ele, pediremos

TRANSFORMAREM-SE diálogos
que o ressuscitem tal como era. Se
a relação não foi tão boa, pedire-
persuasivos para conven-
cê-las. Exatamente como fazemos
mos que nos mandem outro com EM NOSSOS entre nós atualmente.
personalidade diferente. Vejamos, então, quem o Itaú
Bem, se isso era uma ficção
AMIGOS. A ARTE Cultural convocou para tratar desse
MAIS UMA VEZ
científica bastante distante, pare- assunto cada dia mais incômodo,

Grupo
ce que já não é mais tão distan-
te assim. Basta atentarmos para
Único PDF
É CHAMADA À PaD
pois coloca em cheque nossa pri-
mazia dentro da cultura.
RESPOSTA DISTO
o texto que o Itaú Cultural veicu- Foram nove artistas: o austría-
lou para anunciar sua exposição co Thomas Fourstein, a brasileira
“Consciência Cibernética (?) Ho- uma consciência cibernética deu- Rejane Cantoni, o britânico Robin
rizonte Quântico”. Informam no -se no clássico 2001: uma odisseia Baumgarten, a francesa Justine Er-
material promocional que as redes no espaço (Stanley Kubrick), no re- nard, os norte-americanos David
neurais artificiais (RNA) imitando o moto ano de 1968, quando fomos Bowen e Lynn Hershman Lessen,
funcionamento dos nossos neurô- apresentados ao computador HAL os suíços André e Michel Décos-
nios já estariam em nosso cotidiano 9000, no início muito simpático, terd e o turco Memo Akten. De
e que só podemos conversar com mas que decide eliminar toda a tri- maneira consistente essa mostra
nosso celular porque seus progra- pulação da nave para poder atingir dá continuidade às propostas da
mas se baseiam nessas redes RNA. os objetivos finais de sua missão. bienal “Emoção Art.Ficial” e da ex-
Ainda perguntam se nossos celula- Numa chave mais amorosa, o filme posição “Consciência Cibernética”
res irão se tornar suficientemente Ela (Spike Jonze, 2013) nos conta de 2017. O tema, portanto, não é
inteligentes para transformarem-se uma história de amor entre o pro- fácil de ser circunscrito e está a
em nossos amigos. Para enfrentar tagonista e o seu sistema opera- merecer mostras sequenciais en-
essas perguntas, a arte mais uma cional personalizado, que possui tre nós. Tão complexo que o Itaú
vez é chamada a respondê-las. Os comportamento psicológico fe- Cultural promoveu, em paralelo
artistas presentes na mostra do minino tão requintado, capaz de à exposição, um seminário sobre
Itaú Cultural responderam com sentimentos tão reais, que ele se consciência cibernética.
máquinas que interagem sem ne- apaixona durante essa interação. Então, é difícil falar simplesmen-
cessidade de nossa presença. Seus E, claro, será traído pelo sistema te em propostas artísticas para essa
algoritmos já são suficientemente inteligente de voz sedutora. exposição. Elas são híbridas e apre-
autônomos para nos dispensarem. Então, o tema já está entre nós sentam uma fronteira imprecisa en-
Bem, a ficção também já tratou e máquinas cada vez mais capazes tre arte e tecnologia. Não sabemos
desse tema anteriormente. Nosso de interação e decisão também. mais quem comanda o quê. Cloud
primeiro contato inesquecível com A questão novamente que se co- piano (2014) de David Bowen, por

54 • ciência&vida
Mas essa impressão não é o propó-
sito final dessa escultura óptica. Os
E-TECNOLOGIA-SAO-TEMA-DA-EXPOSICAO-CONSCIENCIA-CIBERNETICA
WWW.ITAUCULTURAL.ORG.BR/SECOES/AGENDA-CULTURAL/ARTE-

pinos que ao serem tocados criam


os efeitos de luz estão, na verda-
de, utilizando esses movimentos
aleatórios provocados por nós para
alterar a matemática subjacente a
esse dispositivo e evocar uma exi-
bição visual que ilustra o processo
quântico denominado “Stirap”. Di-
fícil de entender? Não se preocupe,
é difícil mesmo. Transferências de
estados quânticos de um estado
para outro através de estágios inter-
mediários são tão difíceis de enten-
UM DIA, ESSAS MÁQUINAS IRÃO der quanto a propriedade de não
localidade observada no mundo
ADQUIRIR CONSCIÊNCIA E CAPACIDADE das partículas quânticas.
DE AUTORREFLEXÃO. ENTÃO, Na verdade, todos esses dis-
positivos são metáforas ainda ru-
HERDARÃO A TERRA. A MENOS QUE dimentares do que Ray Kurzweil
FAÇAMOS UMA SIMBIOSE COM ELAS, chamou de “máquinas espirituais”
de onde tiramos o título desta ma-
QUANDO SEREMOS TODOS ANDROIDES
Grupo Único PDF PaD téria. Um dia, essas máquinas irão
adquirir consciência e capacidade
exemplo, é uma instalação onde dança interativa entre o dançari- de autorreflexão. Então, herdarão
um piano responde aos movimen- no Mirai Moryama e o robô Alter, a Terra. A menos que façamos uma
tos e formatos das nuvens no céu, que usa um algoritmo baseado no simbiose com elas quando seremos
movimentos estes captados por sistema de redes neurais artificiais todos androides. Talvez essas futu-
uma câmera de vídeo. As soluções (RNA). Utilizando um sistema de ras máquinas espirituais guardem
musicais obtidas desse modo fariam aprendizagem rápido (Deep Lear- com elas a possibilidade de nossa
a alegria de um John Cage, que tra- ning), o robô aprende a interagir imortalidade.
balhou com sons aleatórios em suas com o dançarino humano. Lear-
composições. Claro que esse “pia- ning to see (2017) do artista turco
no de nuvem” não se importa nem Memo Akten é praticamente uma
um pouco com a nossa presença. Já máquina de aprendizado vendo e
Justine Emard coloca em cena uma interpretando o mundo a partir de
ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK

dados preexistentes em sua memó-


ria, exatamente como nós humanos
fazemos quando “entendemos” e
“vemos” o mundo baseados em
nossas expectativas e crenças an-
teriores. Já Quantum Garden do
britânico Robin Baumgarten chama
de imediato a atenção pelas ondu- Walter Cezar Addeo (W. C. A.)
lações de LED ao criar um jardim é mestre em Filosofia pela
quântico luminoso e hipnotizante. Universidade de São Paulo (USP)
e membro da Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA),
CONSCIÊNCIA CIBERNÉTICA (?) HORIZONTE QUÂNTICO – Itaú Cultural escritor e roteirista. Escreve
– Av. Paulista, 149, SP. Esteve aberta ao público até 10/5/2019. sobre Artes Visuais nestas
páginas. waddeo@uol.com.br

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 55
PARA REFLETIR

Os jovens e o clima
FILOSOFIA DA MENTE E TECNOLOGIA
Chamou a atenção nas últimas de CO2, essa mobilização corre o solução política tem sido não falar
semanas a aparição frequente na risco de ser apenas fogo de palha. de mudanças climáticas, transfor-
mídia da sueca Greta Thunberg, Há países, como a Rússia, que não mando-as em um ponto cego no
uma jovem de apenas 16 anos que apenas ignoram o Acordo de Paris discurso oficial, da mesma maneira
vem liderando protestos contra o como também apostam que seriam que por muito tempo ignoramos o
descaso com que os governos estão beneficiados com o aumento da racismo, afirmando que não havia
tratando a questão climática. Ela temperatura do planeta. As planí- preconceito racial. Só agora os
tem convocado todos os estudantes cies siberianas seriam degeladas, governadores de alguns estados
do planeta para faltarem às aulas tornando-se uma das maiores áreas estão formalizando sua adesão ao
nas sextas-feiras e saírem nas ruas agricultáveis do mundo. A Rússia Acordo de Paris.
para protestar. aumentaria ainda mais seu poder. Tudo o que contribui para o
Greta Thunberg sofre de síndro- Todos sabemos que a questão aumento do aquecimento global

Grupo Único PDF PaD


me de Asperger (um ligeiro autismo)
e afirma que só fala o necessário.
climática passa pela economia. Há
uma grande diversidade de interes-
contribui também para a poluição.
Não é apenas a atmosfera que é
Em outras palavras, ela não está ses nacionais que não podem ser poluída. Produzir plásticos e des-
disposta a debater as questões en- compatibilizados em torno de uma cartá-los poluem a água potável e
volvidas na mudança climática, mas proposta única. Há países que pro- os oceanos. Por isso, combater o
apenas exigir que os governos sig- duzem petróleo, outros que o con- aquecimento global e combater a
natários do Acordo de Paris limitem somem em seus automóveis e ca- poluição são a mesma bandeira.
as emissões de dióxido de carbono minhões ou na forma de plásticos Combatê-los efetivamente, e de
para impedir o aumento da tempe- que servem para fazer embrulhos forma transnacional, exigiria a im-
ratura global em 1,5 grau nas próxi- ou peças de computadores e de plementação de regras draconianas
mas décadas. O tempo para discu- celulares. Há países, como o nos- por meio de intervenções militares
tir acabou. Está na hora de colocar so, que se tornam, cada vez mais, em vários países. Seria a ruptura de
em prática o que foi estabelecido, imensos pastos para gado ou imen- regras políticas internacionais, a im-
acordado. sas plantações de soja, aumentan- plementação de um eco-fascismo.
O que podemos esperar dessa do o desmatamento. Mas como Mas haveria outra solução? Pela pri-
mobilização? Se ela não se alastrar poderíamos abdicar de uma ativi- meira vez, a humanidade não con-
para países como os Estados Uni- dade econômica tão importante segue resolver os problemas que
dos e a China, os maiores emissores como o agronegócio? No Brasil, a ela mesmo criou.
Por séculos nos concedemos
NO BRASIL, A SOLUÇÃO POLÍTICA uma grande anistia sobre tudo o
que fizemos à natureza apenas
TEM SIDO NÃO FALAR DE MUDANÇAS por decretarmos que não fazíamos
CLIMÁTICAS, TRANSFORMANDO-AS parte dela. Nossa religião e nosso
pensamento filosófico contribuíram
EM UM PONTO CEGO NO DISCURSO decisivamente para nos excluir da

OFICIAL, DA MESMA MANEIRA QUE POR história geológica do nosso planeta


como se ela pudesse ficar imune à
MUITO TEMPO IGNORAMOS O RACISMO ação de 7,5 bilhões de seres huma-

56 • ciência&vida
nos. Até hoje, as ciências humanas no vazio. O grande desafio não é mizar água apesar de saberem que,
nos concebem como criaturas in-
Grupo Único PDF PaD
dependentes de nossa constituição
mais convencer o público europeu
dos problemas da mudança climáti-
enquanto estão nas ruas protestan-
do, grandes corporações america-
biológica, da geologia do planeta e ca, mas levar esse discurso para os nas e europeias assinam contratos
também do clima. O ápice dessa países em desenvolvimento, cujas bilionários para explorar petróleo
ideia foi o século XIX, o século da perspectivas são diferentes e, por no Ártico. Se ela conseguir isso será,
questão social, da crença de que vezes, irreconciliáveis com a pre- merecidamente, a mais jovem ga-
poderíamos resolver todos os nos- servação da natureza. Isso sem falar nhadora de um Prêmio Nobel.
sos problemas por meio da política. dos negacionistas como Trump, que
Criamos na nossa imaginação uma assegura aos cidadãos americanos a
economia independente da natu- possibilidade de manter seus altos
reza e desenvolvemos a crença de níveis de consumo sem culpa.
que poderíamos, com o controle A reivindicação das gerações
das relações econômicas e políti- mais jovens é justa, louvável e legí-
ARQUIVO PESSOAL E SHUTTERSTOCK

cas ter também o controle da his- tima. Ninguém merece herdar um


tória. Com isso pudemos ignorar a planeta que parecerá um depósito
devastação da natureza que pro- de entulho. No entanto, enquanto
movemos por séculos. Mas agora, esses protestos não se traduzirem
infelizmente, com nossa entrada no em perdas financeiras eles serão
Antropoceno, com a “intrusão de tão louváveis quanto inócuos. E não
Gaia”, a conta chegou. Temos de custará nada a políticos como An-
João de Fernandes Teixeira
nos reinventar às pressas, redefinir gela Merkel dizer que os apoiam. é paulistano, formado em
nossa posição na natureza de modo A tarefa de Greta Thunberg é Filosofia na USP. Viveu
a fazer parte dela e não apenas uti- hercúlea. Como convencer cada e estudou na França, na
lizá-la como queremos. vez mais pessoas a aderirem a esse Inglaterra e nos Estados
Greta Thunberg corre o risco movimento protagonizado pelos jo- Unidos. Escreveu mais
de uma dezena de livros
de estar falando para quem não vens? O desafio é convencer as pes- sobre Filosofia da Mente
precisa ser convencido do que ela soas a continuarem a reciclar lixo, e Tecnologia. Lecionou na
diz e, por isso, de seu discurso cair poupar energia elétrica e econo- Unesp, na UFSCar e na PUC-SP.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 57
DOSSIÊ

PENSAR E DEFENDER
A DEMOCRACIA
(PARTE 2)

Grupo Único PDF PaD

Este dossiê nasce de uma urgência: o esforço para


se pensar a democracia em um momento de erosão
democrática. Neste sentido, não se trata apenas
da reunião de artigos e reflexões de diferentes pensadoras
e pensadores em torno da democracia, mas de um
movimento colaborativo em si mesmo democrático
58 • ciência&vida
DEMOCRACIA E
Fabio A. G. Oliveira
é professor de
Filosofia da
Universidade Federal
Fluminense (UFF),
membro permanente
FEMINISMOS PARA QUEM?
do Programa de
Pós-Graduação A RELAÇÃO ENTRE FEMINISMO E DEMOCRACIA
em Bioética, Ética
Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) e SE ESTABELECE À MEDIDA QUE METADE DA
coordenador do Laboratório de Ética
Ambiental e Animal (LEA). É organizador deste HUMANIDADE NÃO É INCLUÍDA NEM PELO
dossiê. fagoliveira@ id.uff.br
ESCOPO TEÓRICO NEM PELA IMPLEMENTAÇÃO
Príscila Carvalho é DESSA FORMA DE GOVERNO. A REDUÇÃO
filósofa e ecofeminista
animalista. Dra. DOS FEMINISMOS ÀS PAUTAS PARTICULARISTAS
em Filosofia pela
Universidade Federal OBSCURECE O FATO DE QUE HÁ UM
do Rio de Janeiro,
integra o Laboratório PROFUNDO MOVIMENTO ANALÍTICO E
Antígona de Filosofia
e Gênero (IFCS), o POLÍTICO TANTO ENTRE AS TEÓRICAS COMO
Laboratório de Ética Ambiental (LEA-UFF)
e o núcleo de Ética Aplicada (NEA-UFRJ) e ENTRE OS MOVIMENTOS SOCIAIS FEMINISTAS.
concentrando-se nos temas relacionados
às teorias da justiça, teorias da democracia, QUE RELAÇÃO, AFINAL, PODEMOS ESTABELECER
estudos de gênero, ecofeminismos, teorias pós-
colonialista e decolonialista. ptcarvalho1712@ ENTRE DEMOCRACIA E FEMINISMO?
gmail.com. Autora, neste dossiê, do texto

A
"Democracia e feminismos para quem?".
lguns acreditam que as feminismo tão inegável que mesmo os
demandas do feminismo que não conhecem os escopos teóri-
Aline Cristina Grupo Único PDF PaD
são particularistas e exclu- cos dos feminismos têm plena condi-
Oliveira do Carmo é sivamente identitárias, levando ao ção de perceber que as contribuições
docente-pesquisadora comprometimento das necessidades feministas são concepções democrá-
do Departamento de e interesses gerais de todos. Femi- ticas. Além disso, um lampejo nas
Filosofia e do Núcleo
de Estudos Afro-
nismos são, exclusivamente, teorias teorias feministas permite identifi-
Brasileiros e Indígenas e movimentos identitários? Qual sua car que as mesmas oferecem aportes
(Neabi) do Colégio relação com as teorias e modelos de concretos para projetos republica-
Pedro II (CPII) e integra democracia e de justiça social? Nesta nos justos e soberanos de país. Para
a Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras. oportunidade procuro mostrar que aquecer a reflexão que se inicia nesta
alinecarmo84@gmail.com. Autora, neste dossiê,
do texto "Democracia e antirracismo".
a partir da modernidade há uma oportunidade trago aspectos gerais de
convergência entre democracia e duas perspectivas liberais, uma delas

Rachel Souza Martins Dedico este artigo à querida e valorosa Marielle Franco, cuja atuação política-pessoal servia de
é professora de exemplo para uma práxis política com sororidade, fraternidade e menos sectarismos, o que em
Filosofia do CAP- certa medida é parte do que falta nas democracias e nas condutas de democratas.
UERJ; pesquisadora do
Laboratório de Ética
Ambiental e Animal
(LEA). rachel.capuerj@
gmail.com. Autora,
neste dossiê, do texto
"Democracia e questões ambientais".

Diogo Mochcovitch
é doutor em Filosofia
pela Universidade
Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
diogomochcovitch
@gmail.com. Autor,
neste dossiê, do
texto "Democracia e
tecnologia".
www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 59
DOSSIÊ

liberal igualitária, e de perspectivas


feministas, e elejo uma pergunta para
O FATO DE a de Mary Wollstonecraf4? Ambas
revelaram o inegável caráter mascu-
guiar esta breve reflexão, a saber: no TODOS OS SUJEITOS linista, portanto excludente, reves-
que resulta a noção neutra de sujeitos tido de defesa da liberdade e igual-
da democracia? Dito de outra forma: SOCIAIS SEREM dade. Perguntemos-nos: liberdade e
a quem se destina a cidadania na
democracia?
ENCARNADOS igualdade para quem? Quem são os
concernidos da democracia?
Já na Grécia Antiga de V a.C., a E OCUPAREM Voltemo-nos para a segunda
democracia nasce como um gover- metade do século XX. Descreven-
no (cracia) do povo (demos), inte- DETERMINADOS do a então realidade empírica da
grado por pessoas livres, iguais e
com direito à participação. Embora
LUGARES NO política como meta a ser mantida,
teóricos da democracia agregativa,
devamos a eles essa forma de gover- STATUS QUO FAZ destacando-se John Shumpeter5,
no precisamos perguntar: quem era empobrecem ainda mais o âmbito
o povo para os gregos? Responde- DA NEUTRALIDADE dos concernidos ao afirmarem que
-se: todos, excetuando as mulhe-
res, os metecos1 e os escravos. Isso
NÃO UM PONTO a participação popular geraria riscos
de instabilidade política e desarmo-
nos permite concluir que o que se DE VISTA ÉTICO nizaria os acordos entre as preferên-
conceber como sujeito da demo- cias e interesses. Pensados em termos
cracia e como povo determinará a SUSTENTÁVEL, de “pluralismo de valores”, tais inte-
capacidade de inclusão desse gover-
no e, por que não dizer, da própria
MAS DELIMITADOR resses por si mesmo expressariam
e representariam a “vontade geral”
democraticidade. Olhando para as através da escolha “cidadã” dos
teorias e movimentos políticos naGrupo Único
são social PDF
e os direitos PaD
de liberda- partidos e representantes durante os
modernidade, encontramos teóri- de. Não lhes parecia incoerente que pleitos eleitorais. Fixado esse ideal
cos contratualistas cujas concep- mantivessem inalterada a condição de cidadania, o distanciamento e o
ções sobre a criação do Estado se política e existencial em que as desvínculo entre cidadãos e institui-
pautam na ideia de um pacto social mulheres se encontravam em rela- ções que dele resultou tornaram-se
entre sujeitos livres. Em geral, sem ção aos seus “camaradas” e a todos objeto de críticas desenvolvidas pela
maiores problematizações sobre os demais. Não seriam elas sujeitos concepção deliberativa de demo-
os termos do contrato, no que diz da democracia e da justiça social cracia6. Na tentativa de recuperar a
respeito aos papéis sociais desiguais, com as quais eles se comprometiam? dimensão moral e engajada da cida-
concebem a liberdade como carro- Como explicar, então, a exclusão
4
Cf. WOLLSTONECRAFT, Mary, 2016.
-chefe que acompanharia todas as das mulheres? E quanto à reação
teorias liberais da justiça e da demo- que negativa a crítica de Olympe 5
Cf. SCHUMPETER, Joseph, 1984.
cracia. Crítica ao sexismo presente de Gouges3 ou, em outro contexto, 6
Cf. RAWLS, John, 2002; HABERMAS,
nessas concepções, Carole Pateman Jürgen, 2003.
3
Cf. GOUGES, Olympe, 1791.
mostra que “[...] a natureza da liber-
dade civil não pode ser entendida
sem a metade faltante da história,
que revela como o direito patriar-
cal dos homens sobre as mulheres é
estabelecido por meio de contrato”2.
As demais críticas feministas
também se voltam predominante-
mente, porém não exclusivamente,
aos liberais. Senão vejamos o caso
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

do governo revolucionário francês


e sua procura em ampliar a inclu-
1
Estrangeiros na pólis.
2
PATEMAN, Carole, 1993, p. 16-17.

60 • ciência&vida
dania liberal, teóricos deliberativos PARA SEYLA BENHABIB, ESTRUTURA
– entre eles John Rawls e Jürgen
Habermas – pensam a estabilidade e FILOSÓFICA DA NEUTRALIDADE NA ÉTICA
a soberania a partir da participação
deliberativa dos signatários da polí-
E NA POLÍTICA É FICTÍCIA. REPRESENTA UM
tica, considerados capazes de fazer PONTO DE VISTA ANDROCÊNTRICO EM QUE
acordos racionais. Com uma abor-
dagem ao mesmo tempo analítica- O MASCULINO SE REPRESENTA HEGEMÔNICO
-descritiva e normativa-crítica,
Habermas7 procura se situar entre ainda excludente, já que a neutrali- brancos. E a lista poderia continuar
liberais e republicanos, defendendo dade8 dessas concepções de sujeito afunilando-se, pois a misoginia, a
para tanto a co-originalidade entre da democracia em lugar de alcançar homofobia e o racismo estão dire-
os direitos individuais fundamen- todos não alcança ninguém. O fato tamente associados às limitações do
tais (prioridade para liberais) e a de todos os sujeitos sociais serem sistema e ao direito de exercício da
soberania popular (prioridade para encarnados e ocuparem determi- cidadania, da identidade individual e
republicanos). Ainda assim, nessa nados lugares no statu quo faz da coletiva. Ocorre algo muito simples
concepção os sujeitos da democra- neutralidade não um ponto de vista de diagnosticar com alguma boa
cia são formulados a partir de uma ético sustentável, mas delimitador. vontade intelectual e política. Tanto
perspectiva supostamente neutra, Seu alcance se destina inevitavel- o sexismo como o racismo consistem
cuja condição de liberdade e igual- mente àqueles que no seio da cultura , em linhas gerais, em uma estrutura
dade é, em alguma medida, pressu- já são pensados como neutros, quais de pensamento (e organização mate-
posta. Promissora, tal concepção é sejam, os homens, especialmente os rial da sociedade) que é aceita sem
questionamentos por todos e presen-
7
Cf. HABERMAS, Jürgen, 2003. Grupo Único PDF PaD
8
Cf. CARVALHO, Príscila, 2018. te na estrutura epistemológica, ética,
política, de julgamento psicológico e
nas orientações educacionais desde
Mulher estuda mais, trabalha mais a infância. A neutralidade, assim
como a universalidade, a raciona-
e ganha menos do que o homem lidade, o controle, o equilíbrio e a
vocação pública são atribuídos aos
As mulheres trabalham, em média, três horas por semana a mais do que os homens, ao passo que as mulheres
homens, combinando trabalhos remunerados, afazeres domésticos e cuidados são pensadas e tratadas como perten-
de pessoas. Mesmo assim, e ainda contando com um nível educacional mais centes ao âmbito do particular, do
alto, elas ganham, em média, 76,5% do rendimento dos homens [...] natural, do instintivo, do desequilí-
Vários fatores contribuem para as diferenças entre homens e mulheres no mer- brio, da instabilidade, da infantilida-
cado de trabalho. Por exemplo, em 2016 as mulheres dedicavam, em média, de, da pura emotividade e da voca-
ção para a esfera privada. Como uma
18 horas semanais a cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, 73% a mais
propaganda subliminar, esconde-se
do que os homens (10,5 horas). Essa diferença chegava a 80% no Nordeste (19
na assimilação dessa hierarquia de
contra 10,5). Isso explica, em parte, a proporção de mulheres ocupadas em tra-
valores estereotipados uma relação
balhos por tempo parcial, de até 30 horas semanais, ser o dobro da de homens de poder e subalternização que se
(28,2% das mulheres ocupadas contra 14,1% dos homens). confirma porque é produzida e inte-
“Em função da carga de afazeres e cuidados, muitas mulheres se sentem com- riorizada. Se oculta, portanto, uma
pelidas a buscar ocupações que precisam de uma jornada de trabalho mais estrutura excludente que é androcên-
flexível”, explica a coordenadora de População e Indicadores Sociais do IBGE, trica e que compromete sobremanei-
Barbara Cobo, complementando que “mesmo com trabalhos em tempo par- ra o alcance da democracia.
cial, a mulher ainda trabalha mais. Combinando-se as horas de trabalho re- Devido a esse diagnóstico, aqui
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

munerado com as de cuidados e afazeres, a mulher trabalha, em média, 54,4 resumido, todas as teóricas femi-
horas semanais contra 51,4 dos homens.” nistas identificam inicialmente na
(Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/20234- cultura o núcleo naturalizado das
-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem. Acesso em: 8/6/2018.) relações de poder androcêntricas (e
racistas), que nada têm de democrá-

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 61
DOSSIÊ

INTEGRANTE DE UM GRUPO DE
INTELECTUAIS QUE PENSA A DEMOCRACIA
DESDE UMA ÓTICA PLURIVERSAL,
LUGONES PROBLEMATIZA A CONDIÇÃO
RACIALIZADA E GENDRADA IMPOSTA
ÀS MULHERES DAS AMÉRICAS
das socialistas materialistas por não pensa a democracia desde uma ótica
concordarem, dentre outras coisas, pluriversal, Lugones problematiza
que isoladamente a mudança de a condição racializada e gendrada
sistema de produção (economia) imposta às mulheres das Américas.
transformaria a condição de subal- Pensando em três dimensões de
ternização das mulheres, já que a injustiças, Nancy Fraser15 associa os
paridade de direitos dependeria da prejuízos causados pela economia,
associação entre mudança cultural e pela cultura e pela falta de acesso à
econômica12. Esse diagnóstico exige participação política mostrando que
que a democracia para ser concebida todas estão articuladas ao que ela
como inclusiva precisa necessaria- chama de sistema capitalista andro-
ticas. Analisando no que consiste e mente considerar a conexão entre cêntrico de Estado. Alargando o
Grupo Único PDF PaD
no que resulta a natureza suposta- economia e cultura, pois o modus escopo analítico, aproximaria as
mente neutra e imparcial do público operandi de ambas, além de causar contribuições de Fraser às de Lugo-
cívico, concebido pela democracia uma dupla dimensão das injustiças, nes, já que para ambas o patriarca-
liberal, Iris Young9 mostra que são produz injustiças interseccionais por do e o capitalismo se associam e se
particulares, excludentes e que resul- fazer da condição étnica-racial, de estruturam de forma racializada e
ta no tratamento das reivindicações classe, gênero e sexualidade meios gendrada, reforçando a produção da
de grupos oprimidos como desvian- de exploração e opressão. dominação e exploração das mulhe-
tes do “interesse geral” e da “impar- Pensando o papel do capitalis- res. Porém, se projetarmos a demo-
cialidade”. Escrutinando a estrutura mo em associação com o patriar- cracia para o contexto internacional
filosófica da neutralidade na ética e cado, mas também com a colonia- é Lugones que nos permite pensar o
na política, Seyla Benhabib expli- lidade do poder13, María Lugones14 caráter colonialista de referida asso-
ca igualmente que esta é particular formula um feminismo descolonial ciação. Em sua esteira sustento que
e fictícia. Representa um ponto de que problematiza a mentalidade se a cultura e a economia permane-
vista androcentrico em que o mascu- que persiste no sistema colonial de cem sexistas, misóginas, androcên-
lino se representa hegemônico inclu- gênero que marca a vida social e tricas e racializadas, não podemos
sive na linguagem, como nos mostra existencial dos povos latino-ameri- – com honestidade intelectual, ética
a filósofa psicanalista Luce Irigaray10. canos, sobretudo das mulheres e política – falar em democracia.
As teóricas que associam econo- indígenas, ticanas, negras, latinas Posto isso, é, portanto, indispen-
mia e cultura – entre as quais está e demais colonizadas. Integrante sável para uma práxis democráti-
uma parte das feministas socialistas de um grupo de intelectuais que ca conceber sujeitos e sujeitas tais
– mostram como a cultura é capaz como compõem o mundo real,
de manter certo modo de produção
12
IBGE (2013) e IPEA (2018) retratam o abandonando as “histórias de ninar
enorme número de disparidades entre mu-
e vice-versa. Compondo um escopo lheres e homens. gente grande”16 com as quais somos
analítico bidimensional11, diferem formadas(os).
13
Padrão de poder diagnosticado por Aníbal
Quijano (2002) como conceitual e material, ba- 15
FRASER, Nancy, 2009.
9
Cf. YOUNG, Iris, 2012.
seado em dominação racial e exploração capita- 16
Aqui minha homenagem ao samba da Man-
10
Cf. IRIGARAY, Luce, 1974. lista que a partir do século XVI, que se mantém
gueira de 2019 por se propor a falar dos sujeitos
como mentalidade social e epistemológica.
11
Um modelo tridimensional pode ser visto aviltados pelas relações de força colonialistas, ra-
em Nancy Fraser (2009). 14
Cf. LUGONES, María, 2014. cistas, sexistas e, supostamente, democráticas.

62 • ciência&vida
POR ENVOLVER
DEMOCRACIA E TRAUMAS
ANTIRRACISMO COLETIVOS AINDA

I
nicialmente, parece pouco principais referências o filósofo e NÃO SUPERADOS
provável que qualquer pessoa psiquiatra martinicano Frantz Fanon
possa negar os vínculos entre a que, através de suas obras Pele negra,
DEVIDAMENTE, O
democracia e o antirracismo. Mas na máscaras brancas, de 1952, e Os conde- DEBATE SOBRE A
prática poucos parecem compreender nados da terra, de 1961, demonstrou
a importância do desenvolvimento a permanência de práticas coloniais EDUCAÇÃO DAS
de práticas antirracistas para o forta- de dominação em diversos âmbitos,
lecimento de regimes democráticos. destacando o papel da literatura e da
RELAÇÕES ÉTNICO-
E que práticas são essas? Afinal, se educação nesse processo. -RACIAIS SEGUE
todo poder pertence ao povo, e ele, Nesse sentido, para que se efeti-
ou melhor, nós somos diversos, nada ve um regime democrático, tal como FUNDAMENTAL
mais democrático do que um regime previsto pela Constituição Federal de
que reflita essa diversidade interna 1988 – que constitui um marco na luta
PARA O
em suas próprias formas de atuação pela redemocratização do país e ainda FORTALECIMENTO
e organização. pouco estudada em nossas escolas –,
Assim, em se tratando a demo- é necessário promover a dignidade de DE SOCIEDADES
cracia de um regime de direitos, todas as pessoas, através da garantia
o antirracismo se revela como um de determinados direitos e liberdades
EFETIVAMENTE
Grupo
pressuposto fundamental desse regi- Único
considerados PDF PaD
fundamentais. DEMOCRÁTICAS
me, na medida em que constitui um Angela Davis (1969), ao discor-
elemento necessário para a garantia rer sobre as relações entre democra- Neste breve artigo, preten-
da participação igualitária de todos cia e liberdade, indica a importância do demonstrar de que forma esse
que o compõem. Ou seja, se levarmos do vínculo entre liberdade de ação e vínculo entre liberdade de pensa-
em consideração a permanência do liberdade de pensamento para o desen- mento e liberdade de ação se
racismo estrutural em nossa socieda- volvimento de práticas de resistência expressa nas práticas decoloniais
de, devemos nos perguntar: democra- que visam restituir a humanidade de antirracistas desenvolvidas por
cia para quem? Quem são as pessoas indivíduos e povos desterrados pelo povos indígenas e africanos, do
que atualmente no Brasil possuem sistema colonial. continente e da diáspora, ao longo
de fato a garantia daquele mínimo
existencial, considerado fundamen-
tal para a dignidade humana, como
saúde, moradia, educação, trabalho e
acesso à justiça?
O ponto fundamental, continu-
amente repisado pelos movimentos
sociais negros e indígenas do país, é
que não é possível falar em democra-
cia sem enfrentarmos as persistentes
desigualdades raciais e sociais herda-
das do colonialismo. O apontamen-
to em comum de ambos os movi-
mentos é a centralidade do papel da
IMAGENS: SHUTTERSTOCK

educação para a consolidação desse


processo, denominado como desco-
lonização pela corrente dos estudos
pós-coloniais e decoloniais. Tais
estudos possuem como uma de suas

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 63
DOSSIÊ

dos anos, frente às práticas colo- questão é que, embora existam vastos
niais de dominação, tendo em vista e exaustivos trabalhos que demons-
a consolidação de sociedades efeti- tram os equívocos e efeitos danosos
vamente democráticas. do racismo, além de leis de âmbi-
tos nacionais e internacionais que o
O PAPEL DA EDUCAÇÃO: proíbam como crime inafiançável,
CONQUISTAS E DESAFIOS ainda assim a prática persiste quase
Qual o papel da educação em que com o mesmo vigor dos tempos

AUTOR DESCONHECIDO/WIKIMEDIA COMMONS


nossas vidas? Qual a relação entre coloniais de 1500.
democracia e educação? E o que as A esse respeito, especialmente no
questões étnico-raciais têm a ver com que tange às marcas da continuida-
educação e democracia? de de práticas coloniais no contex-
Ora, a persistência do racismo to estadunidense, através de temas
como herança-colonial-moderna, na como, por exemplo, a seletividade
atualidade, constitui, inegavelmen- penal e o encarceramento em massa
te, um dos maiores obstáculos para de determinados grupos sociais,
a democracia. Isso vale não apenas os estudos da jurista e advogada
para o Brasil, como em qualquer Frantz Fanon Michelle Alexander (2012) e o filme
parte do mundo. A 13ª emenda da diretora e produto-
Conforme ensina Sueli Carneiro racismo e preconceito seriam frutos ra Ava Duvernay (2016) constituem
(2005), a discriminação racial não da ignorância, não faltariam saberes algumas das obras fundamentais
é apenas fruto da ignorância ou do suficientemente disseminados para que contribuem para o desenvol-
desconhecimento de algumas pesso- desautorizar as práticas discrimina- vimento de práticas antirracistas, a
Grupo Único PDF PaD
as: “Se, como afirma o senso comum, tórias de natureza racial” (p. 9). A fim de que os direitos e liberdades
fundamentais não permaneçam
pervertidos em privilégios herda-
Importantes julgamentos do dos do colonialismo, em benefício
exclusivo da supremacia branca.

STF sobre questões raciais No que tange ao contexto brasi-


leiro, ao discutir as relações entre
branqueamento e branquitude no país,
Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar
Maria Aparecida Silva Bento (2002)
sobre a constitucionalidade de importantes políticas públicas concernentes apresenta um estudo que descreve
a questões étnico-raciais. Em especial questões que afetam diretamente po- duas formas distintas de discrimina-
pulações negras e indígenas do país, e a necessidade de ponderação entre ção racial: “No campo da teoria da
os princípios democráticos da igualdade e liberdade fundamentais. Embora discriminação como interesse, a noção
cada ação e julgamento tenham detalhes e peculiaridades próprios de cada de privilégio é essencial. A discri-
caso, todos tiveram como elemento comum importante o reconhecimento minação racial teria como motor a
por parte da Suprema Corte da importância do reconhecimento da diversi- manutenção e a conquista de privilé-
dade cultural brasileira para a consolidação democrática do país, através do gios de um grupo sobre outro, inde-
desenvolvimento de políticas efetivas de garantia dos direitos fundamentais pendentemente do fato de ser inten-
dos povos negros e indígenas, para além da declaração formal da “igualdade
cional ou apoiada em preconceito.
Em minha dissertação de mestrado,
de todos perante a lei”. A seguir são indicados alguns endereços eletrônicos
discuto essa questão que sempre me
onde é possível encontrar mais informações sobre cada caso:
inquietou, que é o fato de que a discri-
Constitucionalidade da reserva de vagas para negros e indígenas em uni- minação racial pode ter origem em
versidades: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do outros processos sociais e psicológi-
cID=1 3375729 . Acesso em: 9/3/19. cos que extrapolam o preconceito. O
Constitucionalidade do processo de titulação dos territórios quilombolas: ht- desejo de manter o próprio privilégio
tps://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/decreto-quilombola-e-constitucio- branco (teoria da discriminação com
nal-sem-aplicacao-do-marco-temporal-afirma-stf/22732 . Acesso em: 9/3/19. base no interesse), combinado ou não
com um sentimento de rejeição aos

64 • ciência&vida
negros, pode gerar discriminação”
Angela Davis
(p. 28, grifo nosso).
Sueli Carneiro (2005) e Achille
Mbembe (2018) são alguns dos
nomes centrais da intelectualidade

COLUMBIA GSAPP/WIKIMEDIA COMMONS


negra que desenvolveram impor-
tantes estudos acerca dos vínculos
entre o racismo e as políticas genocidas.
Esses autores partem de um apro-
fundamento dos estudos de Michel
Foucault sobre o biopoder e a biopo-
lítica aplicados às questões étnico-
-raciais no continente africano e
na diáspora, enquanto políticas de
produção de vida e morte de deter- cas e Caribe, que, aliados ao ideal dido não apenas como anulação e
minados grupos, especialmente a de branqueamento, contribuem para desqualificação do conhecimento
partir da modernidade. Nessa pers- a perpetuação do racismo em nossa dos povos subjugados, como também
pectiva, a perpetuação da supremacia sociedade. Segundo Sueli Carnei- um processo persistente de produção
branca se desenvolve com auxílio de ro, tais discursos se efetivam muitas de indigência cultural (2005, p. 97).
discursos desumanizadores de povos vezes em práticas epistemicidas, isto De acordo com a filósofa brasileira:
africanos e originários das Améri- é, promotoras do epistemicídio, enten- “Na sua versão mais contemporâ-
nea nas universidades brasileiras, o
epistemicídio (...) se manifesta
EpistemicídioGrupo
e Único PDF PaD também no dualismo do discurso
militante versus discurso acadêmi-
a história não contada co, através do qual o pensamento
do ativismo negro é desqualificado
A campeã de 2019 do desfile de escolas de samba do grupo especial do Rio de como fonte de autoridade do saber
sobre o negro, enquanto é legitimado
Janeiro, Estação Primeira de Mangueira, apontou em seu enredo para a necessária
o discurso do branco sobre o negro.
reescrita da história do país, ao incorporar não somente heróis negros e indígenas
(...) Os pesquisadores negros em
que desenvolveram importantes papéis na luta antirracista no Brasil, como tam-
geral são reduzidos também à condi-
bém uma nova narrativa sobre essa história, através da identificação de importantes ção de fonte e não de interlocutores
personalidades da resistência indígena e negra no país, tais como Sepé Tiaraju, reais no diálogo acadêmico, quando
Cunhambebe, Dandara e Zumbi dos Palmares, Luisa Mahin, Aqualtune, Esperança não são aprisionados exclusivamente
Garcia, Chico da Matilde, Mariana Criola, Carolina Maria de Jesus, dentre outros. ao tema do negro” (2006, p. 60).
A reescrita da história por aqueles historicamente silenciados, frequentemente sub- Assim, a fim de romper com
metidos a políticas de controle social e extermínio, constitui um dos elementos esse ciclo de desumanização contí-
centrais da corrente dos estudos pós-coloniais e decoloniais, apresentada breve- nua de pessoas negras e indígenas
mente neste artigo. Tais estudos advogam a necessidade de descolonização no herdado do colonialismo, torna-se
presente de práticas herdadas do colonialismo que impedem o reconhecimento fundamental romper com privilégios
e dialogar efetivamente com essas
de populações historicamente desumanizadas pelo processo colonial, a fim de que
populações, reconhecendo-as como
elas possam de fato ser consideradas parte integrante da sociedade a que perten-
sujeitos produtores de conhecimen-
cem, através de uma cidadania plena e não de segunda classe, tendo suas vozes
to, cujos saberes devem ser igual-
efetivamente ouvidas. Apesar das polêmicas e debates necessários com relação à mente considerados em qualquer
apropriação colonial-moderna-capitalista do carnaval nos dias atuais, o conteúdo e processo de tomada de decisões que
impacto do desfile revela, especialmente no atual contexto histórico e político em se pretenda democrático sobre temas
que vive o Brasil, a urgência e centralidade dessas questões para a efetivação da de- que afetem suas realidades. Afinal,
mocracia no país, que jamais poderá ser considerado democrático enquanto seguir a democracia se constitui como um
perpetuando práticas genocidas de suas populações tradicionais. regime de direitos para todos, e não
de privilégios para alguns.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 65
DOSSIÊ

DEMOCRACIA E de terras indígenas, são alguns dos


aspectos conflituosos abarcados pelo

QUESTÕES AMBIENTAIS ambientalismo. O Estado democrá-


tico proporcionou, assim, a redefini-
ção das condições de cidadania, de

O
s debates ambientais queTEMA NÃO SE reivindicação de direitos, de deman-
emergiram nas últimas das sociais comprometidas com o
décadas do século XX PAUTA APENAS ambientalismo.
contribuíram fortemente para um
alargamento das concepções políti-
NO PROBLEMA Contudo, observamos nos dias
atuais a fragilidade das instituições
DA ESCASSEZ
cas no que tange a essa arena. Insti- democráticas frente à garantia dos
tuições internacionais e líderes de direitos fundamentais dos indivídu-
Estados democráticos proferiram DE RECURSOS, os, bem como das condições socio-
acordos transnacionais visando a
preservação do meio ambiente por
MAS NA QUALIDADE ambientais que permeiam os modos
de vida de alguns grupos tornados
meio da redução de suas “pegadas” DO USO QUE vulneráveis. Trata-se de um défit
ambientais. A defesa de um meio na democracia em que os valores
ambiente saudável que possa garan-FAZEMOS DELES, sociais sucumbem à ausência de
ISTO É, PARA
tir as demandas materiais das futuras
gerações no espaço urbano constitui
políticas sociais ou ao crescimento
econômico. Pretendemos lançar um
QUE FINS SÃO
um discurso fundamental das políti- olhar sobre os conflitos ambientais
cas sociais que se somaram às lutas compreendendo-os como aspectos
por direitos fundamentais. UTILIZADOS NA inerentes das dinâmicas sociais e das
Grupo Único
LÓGICA
A legislação ambiental é introdu- PDF PaD
CAPITALISTA práticas democráticas.
zida aos poucos no cenário político
de alguns Estados nacionais repre- suas pautas aspectos importantes dos A CONCEPÇÃO
sentando o fortalecimento de pautas problemas ambientais: a questão da DOS CONFLITOS
socioambientais junto à solidifica- escassez e do uso indevido de recur- Tomando por base a indis-
ção das democracias. No Brasil, o sos naturais apropriados por organi- sociabilidade do binômio socie-
cenário político de redemocratiza- zações do setor industrial, a poluição dade-natureza, buscamos com-
ção contribuiu para a ascensão de e a degradação que afeta populações preender os confl itos ambientais
movimentos sociais que traziam em em zonas de risco, a demarcação como processos oriundos das dinâ-
micas construídas socialmente no
espaço material de relações entre os
Justiça ambiental diversos atores. Indivíduos e grupos
sociais, organizações e instituições
e democracia no Brasil governamentais compõem o tecido
social no qual se dão suas tensões e
A questão ambiental é marcada por dinâmicas e tensões entre grupos de ma- aproximações.
tizes sociais vulnerabilizadas pelos avanços dos processos de industrialização A concepção da “socio-natureza”
e corporações que visam a aceleração desse processo. Assim, não somente os representa o caráter necessário
modos de apropriação dos espaços são divergentes entre essas entidades, mas segundo o qual se conectam os
também suas práticas e significados simbólicos. atores socioambientais. Nessa mirí-
ade de relações, não é mais possível
Observamos no Brasil a ascensão de movimentos sociais que buscam dialogar
extrair a ideia de natureza “pura”,
e denunciar práticas opressoras, buscando a garantia dos direitos fundamentais
reduzindo-a à “matéria e energia”,
dos indivíduos e grupos. Os conflitos socioambientais e a noção de justiça am-
mas é imprescindível compreender
biental erguem-se diante da usurpação desses direitos. Trata-se não somente de os objetos naturais como elementos
populações indígenas massacradas pela apropriação de suas terras, mas tam- “dotados de significados culturais e
bém de grupos marginalizados por deslocamentos territoriais ou pela exposição históricos” (Acselrad, 2004). Como
aos riscos da poluição e dos desastres ambientais. salienta Henri Acselrad: “Os rios
para as comunidades indígenas não

66 • ciência&vida
apresentam o mesmo sentido que
para as empresas geradoras de hidro-
eletricidade [...]” (Acselrad, 2004,
p. 6). Ainda segundo Acselrad, não
caberia pensar a questão ambiental
objetivamente, isto é, em termos de
quantidades de recursos despendi-
dos pelos indivíduos, mas pensá-la a
partir da qualidade do uso – para que
são utilizados? – e dos significados
MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

desses elementos dentro dos proces-


sos históricos e culturais dos diversos
grupos sociais.
O problema da escassez e finitu-
de dos recursos, conforme é tratado
pela abordagem da “sustentabilida-
de”, não será tomado como o aspecto
central dessa visão, mas a lógica do Brasília - Índios Munduruku fazem manifestação, em frente ao Ministério da Justiça, pela
uso que fazemos desses recursos, os demarcação da terra indígena Sawre Muybu, no Pará.
modos hegemônicos pelos quais o
setor industrial se apropria de áreasNO BRASIL, O CENÁRIO POLÍTICO DE
produtivas, a mercantilização de
recursos e de áreas de preservação REDEMOCRATIZAÇÃO CONTRIBUIU PARA A
Grupo
ambiental que exclui os significados ÚnicoDEPDF
ASCENSÃO PaD SOCIAIS QUE
MOVIMENTOS
culturais para os grupos locais, as
práticas de agricultura mecanizadas TRAZIAM EM SUAS PAUTAS ASPECTOS
e o uso de agrotóxicos na produção
são os enfoques que se pretende dar aIMPORTANTES DOS PROBLEMAS AMBIENTAIS
essa temática.
As práticas que sustentam as do capitalismo e o setor econômico DEMOCRACIA E JUSTIÇA
comunidades tradicionais são práti- que as descarta. SOCIOAMBIENTAL
cas distintas dos modelos domi- Os confl itos socioambientais A visão democrática de participa-
nantes. As populações tradicionais erguem-se diante da usurpação dos ção e de inclusão de pautas ambien-
possuem fortes laços com o espaço direitos desses grupos sociais, cujos tais no cenário sociopolítico fez
que habitam, o que torna suas práti- modos de vida e identidades são surgir junto aos movimentos sociais
cas significativas. Tais grupos se suprimidos por relações de poder a pauta da justiça socioambiental.
caracterizam por práticas de produ- opressoras. Trata-se não somente de Inicialmente se procurou caracterizar
ção plurais, artesanais, de pouca populações indígenas massacradas o movimento pela justiça ambiental
inserção no mercado (Florit, 2016). pela apropriação de suas terras, mas como algo distinto das pautas sociais,
As lógicas de produção e manejo que também de grupos marginalizados segmentando assim as noções de
permeiam as comunidades tradicio- por deslocamentos territoriais ou natureza e sociedade. Ao compre-
nais caminham no sentido oposto ao pela exposição aos riscos da polui- endermos, contudo, a indissociabi-
da industrialização e mercantiliza- ção e dos desastres ambientais. lidade das arenas social e natural,
ção das áreas naturais. Estamos diante da “desigualdade identificamos nas pautas ambientais
Todo o aparato sociocultural das ambiental” que setoriza os danos suas raízes sociais. Vale ressaltar
populações tradicionais bem como e os direciona aos grupos domi- que as demandas ambientais não são
o valor histórico de seus territórios nados. Convém citarmos aqui os avessas às lutas contra a pobreza e a
e práticas vêm sendo suprimidos e recentes crimes ambientais oriun- desigualdade, mas convergem para os
ameaçados pelos avanços do setor dos dos rompimentos de barragens mesmos objetivos.
industrial. Surgem, assim, posições da mineradora Vale do Rio Doce Os movimentos sociais têm papel
conflitantes entre vozes que buscam causando mortes e levando à incon- primordial na construção do espaço
ser ouvidas em meio às turbulências testável degradação ambiental. democrático, viabilizando o aces-

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 67
DOSSIÊ

NÃO CABERIA PENSAR A QUESTÃO política da problemática ambiental


que se caracteriza agora pela poten-
AMBIENTAL OBJETIVAMENTE, ISTO É, EM cialização da autonomia de grupos
vulnerabilizados na gestão da plura-
TERMOS DE QUANTIDADES DE RECURSOS lidade de seus projetos de vida (Leff,
DESPENDIDOS PELOS INDIVÍDUOS, MAS 2008). Reconhecer a pluralidade de
identidades sociais e os aspectos
PENSÁ-LA A PARTIR DA QUALIDADE DO USO simbólicos de suas práticas é parte
central de uma visão ampliada dos
so de todos os grupos e indivíduos à margem do desenvolvimento, mas debates ambientais.
à justiça, aos direitos, à liberdade. “assumem todo o seu ônus” (Zhouri
Movimentos sociais cujas pautas et al., 2005). Isso significa que a
incluíam a questão ambiental tive-
ram início nos Estados Unidos dian-
distribuição dos danos e riscos das
atividades produtivas é direcionada
DEMOCRACIA
te da contaminação tóxica de locais
habitados por populações pobres.
aos mais pobres e vulneráveis, sendo
estes diretamente afetados pela E TECNOLOGIA
F
Assim, a pobreza foi tomada como o ausência de condições materiais para az parte da rotina de muitos de
recorte de classe que serve à opressão a minimização dos prejuízos. nós acordarmos e buscarmos
e à negação de direitos fundamen- A distribuição desigual dos danos nossos aparelhos smartphones
tais. Não obstante, encontramos na pode ser vista como um problema para saber sobre as últimas notícias,
realidade brasileira inúmeros episó- social e racial, uma vez que os afeta- checar se há um novo e-mail impor-
dios em que populações pobres são dos pelos danos são grupos racial e tante, conferir algum status nas redes
expostas a condições insalubres de historicamente excluídos das práti- sociais etc. Muitas de nossas tarefas e
Grupo Único PDF PaD
vida nas quais os danos à saúde e cas deliberativas da justiça. O racis- a coordenação de nossas vidas estão
ao bem-estar são absorvidos como mo ambiental presente nas lógicas tão integradas às tecnologias de infor-
processos naturalizados. opressoras de poder que permeiam a mação e comunicação (TIC) que, em
Ocorre que as vítimas dos sociedade é um aspecto importante alguns casos, consideramos que essas
processos de desenvolvimento socio- das lutas pela justiça socioambiental tecnologias são parte de nós.
econômico não somente são deixadas somando-se às lutas pela garantia de Nossos aparelhos se configuram,
direitos difusos, tal como o direito ao em certa medida, como um repositó-
meio ambiente saudável. rio externo de diversas crenças1 que,
A justiça socioambiental exige, quando alinhadas com uma pessoa,
assim, que se fortaleçam as insti- formam uma relação simbiótica,
tuições e as políticas voltadas considerada um sistema acoplado,
para uma nova racionalidade capaz de interagir através de uma
ambiental em que sejam reco- causação recíproca contínua2.
nhecidos os diversos projetos Nosso ambiente simbólico-tecno-
e meios de vida de enti- lógico se tornou tão influente que a
dades outrora deixadas antiga dicotomia entre real x virtual
à margem dos proces- foi substituída pela dicotomia on-line
sos deliberativos. A x off-line. Não há mais a divisão entre
condição democrática é, dois reinos, em que um seria ilusório;
portanto, a instância que pelo contrário, há apenas um ambien-
nos dirige à busca pelos te no qual, em determinado momen-
direitos fundamentais da to, o sujeito está acoplado (on-line) ao
humanidade. seu artefato ou não está acoplado ao
O projeto democrático seu artefato (off-line).
de Estado que se defende Esse novo modus vivendi traça-
abarca um olhar ético acerca do pela ampliação das TIC resulta
de dimensão socioambiental.
Pensar a justiça socioambien-
1
cf. CLARK e CHALMERS, 1998.
tal implica numa ressignificação 2
cf. CLARK, 1997.

68 • ciência&vida
A INTERAÇÃO E A
INFLUÊNCIA DAS
TECNOLOGIAS EM
TODAS AS
ESFERAS DA VIDA
DEMANDAM NOVAS
PERSPECTIVAS
TANTO PARA
tar quais vantagens e desvantagens ção da burguesia e dominado pela
O CONTEXTO são oriundas desse tipo de ecologia imprensa escrita. Isso se manifesta-
PÚBLICO informacional.
Quando o tema é democracia,
va através das discussões em cafés e
debates em salões, com a presença da
QUANTO PARA A destaca-se a discussão baseada no nova classe burguesa que destituíra o
conceito de esfera pública, cunha- poder absolutista.
CONCEPÇÃO DE do pelo filósofo e sociólogo alemão Apesar da investigação circuns-
DEMOCRACIA Jurgën Habermas em sua obra
Mudança estrutural da esfera pública,
crita, a análise do filósofo alemão
serve de base para pensar o concei-
de 1962. Segundo o autor, a esfera to de esfera pública no contexto das
Grupo Único PDF PaD
em um novo habitat, a infosfera3. A pública pode ser concebida como uma TIC. Habermas ampliou sua teoria
infosfera é resultado da convergên- esfera autônoma de comunicação ideal para analisar a crise da esfera pública
cia e do uso ininterrupto de aparatos na qual os cidadãos são considerados devido à influência dos conglomera-
tecnológicos na sociedade da infor- um corpo público e podem se comu- dos midiáticos na manipulação da
mação4, “onde os antigos e os novos nicar sem restrições, apresentando opinião pública. O filósofo atribui
meios de comunicação colidem” argumentos racionais, sem sofrer às grandes corporações de mídia a
(Jenkins, 2006, p. 2). Um exemplo influência do Estado, conglomerados influência na esfera pública, no senti-
de nossa atuação na infosfera é a midiáticos e, ainda, sem condições do da condução de pautas focadas em
forma que recorremos aos aparelhos de desigualdade. O resultado dessa mudanças economicamente atrativas
de localização global (GPS) para argumentação racional sem restrições a essas empresas.
dirigir, ou mesmo solicitar um moto- é, portanto, a opinião pública. Nas Somando ao modelo a concep-
rista em um aplicativo para irmos a palavras do autor: ção de esfera pública interconectada, do
determinado lugar. Não há mais professor de Estudos Jurídicos Yochai
uma divisão entre real e virtual, ou [...] a esfera das pessoas privadas Benkler (2006), é possível traçar um
tangível e intangível. Nos inserimos reunidas em um público; elas reivin- diagnóstico contemporâneo acerca do
e implementamos dentro da infosfe- dicam esta esfera pública regularmen- enlace entre democracia e tecnologias.
ra da mesma maneira que abrimos te pela autoridade, mas diretamente Benkler defende que a esfera pública
uma porta através da maçaneta: são contra a própria autoridade, a fim de tratada no cenário de incorporação
affordances cognitivos, isto é, atalhos discutir com ela as leis gerais da troca das TIC deve ser compreendida como
devidamente estruturados para reali- na esfera fundamentalmente privada, uma esfera pública interconectada,
zarmos tarefas. mas publicamente relevante, as leis isto é, o ambiente de decisão e pautas
Assim, se a infosfera é essa nova de intercâmbio de mercadorias e do da esfera pública estão na rede.
ambiência na qual estamos inseridos, trabalho social5. A esfera pública interconecta-
é importante compreendê-la dentro A concepção de esfera pública da aponta para a influência das TIC
do processo democrático, destacando de Habermas se refere a um período e a consolidação da infosfera como
o uso das TIC, bem como apresen- histórico bastante particular, marca- o cenário no qual os atores estão,
do pelo surgimento e consolida- além de mais familiarizados com as
3
cf. FLORIDI, 2011. diversas tecnologias, mais engajados.
4
cf. FLORIDI, 2001. 5
cf. HABERMAS, 2003, p. 42. Isso pode ser percebido através da

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 69
DOSSIÊ

diferenciação entre a maneira que se


comporta a divulgação midiática.
Em uma era em que a televisão
e a imprensa analógica detinham
os modos e meios de comunicação,
imaginemos que o modelo prove-
niente da mass media se baseava em
um formato verticalizado de distri-
buição top-down: uma antena no
topo que transmite a mesma infor-
mação a diversos receptores. Agora,
na ambiência da infosfera, em que Um desses resultados da mobili- cracia. Nela, o cidadão está em contato
ser on-line e digital é algo ao alcance zação em massa culmina no modelo direto com a Câmara dos Deputados
de nossos smartphones, a situação de e-democracy, isto é, no auxílio das e pode propor melhorias e revisões
é completamente distinta. Estamos tecnologias de informação e comu- em leis vigentes, além de fomentar
no modelo bottom-up: um mode- nicação para promover melhorias na debates e sugerir projetos para leis.
lo mais horizontalizado, no qual a democracia representativa e aproximá- A e-democracy pode sugerir que
produção de informação é realiza- -la de um tipo de democracia direta. tenhamos nos aproximado da demo-
da através de diversos sujeitos para Diversas plataformas de conver- cracia direta, e se coloca como uma
diversos sujeitos. gência on-line x off-line habitam o solução de baixo custo capaz de
A tecnologia traz consigo implica- universo democrático atualmente. Os desviar da influência das grandes
ções e transformações que modificam aplicativos fornecem um canal mais corporações midiáticas. Seria, então,
de forma estruturante a sociedade. Se rápido, barato e eficiente que corrobo- a esfera pública interconectada o ápice
Grupo Único PDF PaD
antes a noção de esfera pública estava ra para o cidadão reivindicar, propor da participação democrática?
concentrada na burguesia e as ideias e fiscalizar medidas implementadas Para responder essa pergunta,
floresciam nos cafés, sendo depois pelos governos. devemos nos atentar a algumas idios-
contaminada pelos conglomerados Uma dessas plataformas é o apli- sincrasias do modelo. A maioria do
midiáticos, dentro da infosfera todos cativo Your Priorities, em Reykjavik, fluxo informacional na infosfera, em
os sujeitos passam a ter a possibilida- capital da Islândia. Nessa platafor- especial na internet, se concentra
de, com baixo custo, de serem produ- ma os cidadãos islandeses discutem, em poucos provedores de conteúdo
tores de informação e conteúdos com em conjunto com os governantes, formatados nas redes sociais, forman-
alcance global. A voz de um sujeito quais prioridades serão escolhidas do uma oligarquia tecnológica6 .
pode ecoar em conjunto com diver- para aperfeiçoar o funcionamento de Isso significa que conforme o
sos pares engajados por uma mesma determinada cidade. hábito de um determinado usuário,
causa e provocar mudanças no esta- Algumas propostas também esse sujeito está preso na chama-
blishment, tanto dos meios de comu- podem ser encontradas no Brasil, da bolha de conteúdo, o que reforça
nicação quanto político. como é o caso da plataforma e-demo- apenas um viés – seja ele político, de
entretenimento, acadêmico etc. – e,

Como funciona o no fim, contribui para formar um


mecanismo de leitura comportamen-

modelo de esfera pública? tal que tem como propósito oferecer


serviços e produtos para esse sujeito,
baseado nesses comportamentos.
A esfera pública se apresenta como uma intermediária entre a vida privada e a vida
Por isso, o fato de quase todo o
pública. Trata-se de questões que são discutidas dentro de um grupo, julgadas atra-
conteúdo estar sob controle de uma
vés de argumentos, sem apelar à emoção. Esses assuntos são de demanda espontâ- oligarquia tecnológica faz com que
nea, isto é, em uma esfera pública ideal, os temas surgem sem coerção e influências não possamos ser tão otimistas para
advindas de grupos externos à esfera pública, mas que são de interesse do público e considerarmos as TIC como um
que necessitam de mudanças. Os sujeitos expõem suas opiniões e debatem acerca modelo ideal para a democracia dire-
de assuntos que são relevantes para a sociedade para, por fim, pressionar a camada ta. Decerto que há um movimento
política em busca de mudanças que favoreçam uma determinada sociedade.
6cf. YOUSSEF, 2018.

70 • ciência&vida
HABERMAS AMPLIOU DEMOCRACIA E FEMINISMOS PARA QUEM? doutorado em Educação junto à área de Filosofia da

REFERÊNCIAS
BENHABIB, Seyla. O Outro generalizado e a outro Educação. São Paulo: USP.

SUA TEORIA concreto: a controvérsia Kohlberg Gilligan e a teoria


feminista”. In: BENHABIB; CORNELL. Feminismo
DAVIS, A., 1969. Palestras sobre libertação. Transcrição
da aula inaugural do curso sobre filosofia moderna
como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rosa
PARA ANALISAR A dos Tempos, 1987.
na Universidade da Califórnia. Los Angeles: UCLA.
Tradução de Jaque Conceição disponível em: http://
CARVALHO, Príscila. Aprender - Caderno de Filosofia negrospe.blogspot.com/2016/01/angela-davis-
CRISE DA ESFERA e Psicologia da Educaofo, ano X, n. 20, p. 35-52, palestras-sobre-libertacao.html .
Vitória da Conquista, 2018.
PÚBLICA DEVIDO FRASER, Nancy. Feminism, capitalism and the cunning
DUVERNAY, A., 2016. A 13ª emenda. Documentário,
EUA, 100 minutos.
of history. New Left Review, n. 56, mar.-abr. 2009.
À INFLUÊNCIA DOS GOUGES, Olympe. Declaração de direitos
FANON, F. 2005. Os condenados da terra. Prefácios
de Alice Cherki (à edição de 2002) e de Jean-Paul
das mulheres e da cidadã. Biblioteca Virtual
CONGLOMERADOS de Direitos Humanos. Disponível em:
Sartre (à edição de 1961). Juiz de Fora: Ed. UFJF.
. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.
MIDIÁTICOS NA php/Documentos-anteriores-%C3%A0-
da Silveira. Salvador: EdUfba, 2008.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania,
cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-
MANIPULAÇÃO Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-
dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html
estado de exceção, política da morte. Trad. Renata
Santini. São Paulo: n-1edições, 2018.

DA OPINIÃO HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre


facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
. Crítica da razão negra, p.1-46. Trad.
Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1edições, 2018.
Brasileiro, 2003. DEMOCRACIA E QUESTÕES AMBIENTAIS
proveniente da infosfera que torna IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). ACSELRAD, H. (Org.) Conflitos ambientais no Brasil.
o acesso e a participação dos sujei- Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fundação Heinrich
tos muito mais amplos. Entretan- 2012: Síntese de Indicadores. Rio de Janeiro: IBGE, Böll, 2004.
2013. FLORIT, L. Conflitos ambientais, desenvolvimento no
to, o fato de as TIC, em especial as
IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). território e conflitos de valoração: considerações para
redes sociais, estarem sob controle Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça. uma ética ambiental com equidade social.
de poucos grupos, significa que até Brasília: Ipea, 2014. Disponível em http://www.ipea. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 36, p.
mesmo a forma de operar dentro Grupo Único PDF PaD gov.br/retrato/indicadores.html 255-271, abr. 2016.
dessa democracia mais atuante pode IRIGARAY, Luce. Speculum de l’autre femme. Paris: LEFF, E. Saber ambiental: sustentabilidade,
Éditions de Minuit, 1974. racionalidade, complexidade, poder. Trad. Lúcia
estar comprometida.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Mathilde Orth. Petrópolis: Vozes, 2008.ZHOURI,
Frente a isso, devemos reivindi- Revista de Estudos Feministas, v. 22, n. 3, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. Desenvolvimento,
car uma ética da informação capaz de Florianópolis, set.-dez. 2014. sustentabilidade e conflitos socioambientais. In:
lidar com nosso novo habitat, tal como ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K.; PEREIRA, D. (Orgs.).
MIGNOLO, Walter. Hermenéutica de la democracia:
A insustentável leveza da política ambiental.
aponta Luciano Floridi (2013). Segun- el pensamiento de lós limites y la diferencia colonial.
Desenvolvimento e conflitos socioambientais. Belo
Tabula Rasa, n. 9, p. 39-60, Bogotá-Colômbia, jul.-
do o autor, existem questões éticas que dez. 2008.
Horizonte: Autêntica, 2005.
não podem ser tratadas conforme os PATEMAN, Carole. Contrato sexual. Rio de Janeiro:
DEMOCRACIA E TECNOLOGIA
antigos manuais de ética. Problemas BENKLER, Y. The wealth of networks: how social
Paz e Terra, 1993.
production transforms markets and freedom, New
como manipulação de dados, leitu- QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização Haven: Yale University Press, 2006.
ras comportamentais com intuito de e democracia. Novos Rumos, ano 17, v. 4, n. 37,
CLARK, A. Being there: putting brain, body and world
2002.
abrir mercados, influência em proces- together again. Cambridge: MIT Press, 1997.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2. ed. São
sos eleitorais através de redes sociais Paulo: Martins Fontes, 2002. CLARK, A.; CHALMERS, D. The extended mind.
exigem uma nova abordagem. SCHUMPETER, Joseph. Capitalismo, socialismo e
Analysis, n. 58, p. 10-23, 1998.
Todos os apontamentos lança- democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 1984. FLORIDI, L. Information ethics: on the philosophical
foundation of computer ethics. Ethics and
dos congregam para a aceitação de YOUNG, Iris. O ideal da imparcialidade e o público Information Technology, n. 1, p. 37-56, 1999.
que introjetamos as TIC como parte cívico. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 9, p.
. Information ethics: an environmental
169-203, Brasília, 2012.
e estamos, de fato, na infosfera. Os approach to the digital divide. Philosophy in the
WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos
moldes da esfera pública se modifi- direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.
Contemporary World, n. 9, p. 1-7, 2001.
caram e agora a esfera pública inter- DEMOCRACIA E ANTIRRACISMO
. The construction of personal identities
online. Minds & Machines, n. 21, p. 477-479 , 2011.
conectada experimenta a participação ALEXANDER, M., 2012. The new Jim Crow. Mass
. The ethics of information. Oxford: Oxford
dos atores de forma mais vigorosa, Incarceration in the age of colorblindness. Nova York:
University Press, 2013.
The New Press.
contudo toda essa nova ambiência HABERMAS, J. Mudança estrutural na esfera
BENTO, M. A., 2002. Branqueamento e branquitude
traz novos conteúdos que suscitam no Brasil. In: BENTO, Maria Aparecida e CARONE, pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
novas reflexões, sob o risco de acre- Iray (Orgs.). Psicologia social do racismo – estudos YOUSSEF, A. Novo poder: democracia e tecnologia.
ditar estarmos dentro da infosfera sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 25-58.
quando, no fim, estamos aprisionados JENKINS, H. Convergence culture: where old and
CARNEIRO, A. S., 2005. A construção do outro new media collide. Nova York: New York University
em uma “bolhasfera”. como não-ser como fundamento do ser. Tese de Press, 2006.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 71
FILO ORIENTAL por andré bueno

A melhor
estratégia

E
xiste uma estraté- um cavalheiro, e perdeu. Mas
gia perfeita para lidar não seria um cavalheiro o mes-

Grupo Único PDF PaD


com as coisas? Num
episódio amplamente
mo que um buscador da sabe-
doria e dos princípios morais? E,
comentado na história da Chi- sendo assim, não deveria ele ter
na antiga, em torno do século ganho a batalha?
7 a.C., o duque do Estado de No livro Lunyu [Analec-
Song foi dar combate às tropas tos] de Confúcio está escrito:
de outro Estado, Chu, e che- “Zilu perguntou: ‘Se tivésseis
gou ao local da batalha antes. o comando das Três Armas,
Nesse momento, as forças de quem tomaríeis como vosso
Chu atravessavam um rio, e lugar-tenente?’ O Mestre
estavam em posição total- disse: ‘Para meu lugar-te-
mente desvantajosa. Mes- nente, não escolheria um
mo tendo a oportunidade homem que luta com ti-
de atacar, o duque de gres ou que atravessa os
Song resolveu esperar que rios a nado sem temer a
as forças de Chu saíssem morte. Ele deveria estar
da água e se alinhassem, cheio de apreensão an-
pois atacá-las de outro tes de entrar em ação
modo não seria nobre e sempre preferir uma
nem cavalheiresco. O vitória alcançada por
resultado: as tropas de meio da estratégia’”.
Song foram vencidas, o A proposta de Con-
duque ferido e os ofi- fúcio é clara: o melhor
ciais liquidados. estrategista é que
Nessa passagem pro- vence a guerra,
blemática, contada no li- e infelizmente,
vro Primaveras e outonos, após o início de
o duque de Song agiu como um conflito, é di-

72 • ciência&vida
CORTESIA, COMPAIXÃO E HUMANISMO
EXIGEM UMA FORÇA DE CARÁTER
Grupo Único PDF PaD
INCRÍVEL, E DEVEM SER ADMINISTRADOS
COM CUIDADO. MELHOR QUE
SE EVITE A GUERRA – MAS SE ELA
É INEVITÁVEL, QUE SE FAÇA DA André Bueno é professor
MANEIRA MENOS DESTRUTIVA adjunto na UERJ. Atua nos
temas: Pensamento chinês,
fícil manter a moralidade e o huma- já falava tanto de preparação para Confucionismo, História e
nismo. O que o Mestre notou aqui o combate: “O Caminho significa Filosofia antiga, diálogos
e interações culturais
é simples, porém objetivo e pragmá- aquilo que faz com que o povo es-
Oriente-Ocidente. É
tico: podemos tentar ser bons, mas teja em harmonia com o seu gover- membro da Ass. Europeia
isso não significa sabedoria. Pode- nante, de modo que o siga aonde de Estudos Chineses
mos praticar o caminho, mas ainda for, sem temer por sua vida, nem de e da Ass. Europeia de
não sermos sábios. Por fim, não se se expor a qualquer perigo”. Filosofia Chinesa; membro
do grupo Leitorado
deve confundir alhos com bugalhos; Outro pensador, Shang Yang [sé-
Antiguo [UPE]; membro
ninguém, pelo simples fato de ser culo 4 a.C.], dedicou capítulos intei- do Alaada; membro da
bom, irá vencer uma guerra – ou fazer ros a isso, e mesmo Mozi [século 5 Rede Iberoamericana
qualquer coisa bem apenas porque é a.C.], um renomado pacifista, se pre- de Sinologia [Ribsi];
IMAGENS: SHUTTERSTOCK/ARQUIVO PESSOAL

bom. É como se um médico, após ter ocupou com os métodos e histórias membro da International
Confucian Association;
salvado milhares de vidas, pedisse a da guerra. Confúcio, pois, não pode-
membro do
Deus o “dom” de tocar um instru- ria eximir-se do problema. Em passa- Laphis/Unespar.
mento musical – e fosse automatica- gem pelo Estado de Wei, quando o
mente atendido, tocando de imediato duque Ling quis que ele fosse um pla-
melodias delirantes e dificílimas. nejador militar, o Mestre desculpou-
Por causa disso, o conhecido es- -se e foi embora, prevendo confusões
pecialista na arte da guerra, Sunzi, para o seu lado. Isso porque, começa-

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 73
FILO ORIENTAL por andré bueno

da uma guerra, é a estratégia que um erro terrível. Melhor que se UM SÁBIO


prevalece, tentando maximizar evite a guerra – mas se ela é ine-
os ganhos e atenuar ao máximo vitável, que se faça de maneira CONTROLA
as perdas. Cortesia, compaixão menos destrutiva e raciocinada. SEU POVO
e humanismo exigem uma força Por isso está escrito no Lunyu:
de caráter incrível, e devem ser “Zigong perguntou sobre gover- DENTRO DOS
administrados com cuidado – sob no. O Mestre disse: ‘Alimento MAIS ALTOS
o risco de ocorrer o mesmo que suficiente, armas suficientes e a
se deu com o duque Song que, confiança do povo’. Zigong dis- PRINCÍPIOS E
cheio de pudores, ou tentando se: ‘Se tivésseis de chegar a b om
O GOVERNA
representar, de modo equivoca- termo sem um desses três, qual
do, valores maiores que buscava descartaríeis?’. ‘As armas.’ ‘Se COM RETIDÃO,
compartilhar, acabou cometendo tivésseis de chegar a bom ter-
mo sem um dos dois restantes,
ESTIMULA-O
qual descartaríeis?’ ‘O alimen- COM RITUAIS E
to; em última instância, todo
mundo acaba morrendo um dia.
SOSSEGA-O COM
Mas, sem a confiança do povo, TRATAMENTO
nenhum governo se mantém’”.
Confúcio resumiu suas ideias
HUMANO
sobre conflito, ainda, nesse
pequeno trecho: “Em pen- cionar bem-estar ao povo, e fazer
dengas eu sou tão b om em com que ele acredite no que de-

Grupo Único PDF PaD


decidir quanto os outros;
o melhor mesmo é que
verá defender. Quando isso ocor-
re, os exércitos servem ao povo,
elas não ocorram”. e não contra ele; defendem a
Como podemos pátria, são bem treinados, bem
perceber, a confiança cuidados e lhes dão meios para
nos líderes é o funda- que possam reagir às ameaças
mento de tudo. Essa vindas de fora – isso porque um
confiança tem que povo que ama seu país se dispõe
ser mútua, do contrá- a defendê-lo; mas não se pode
rio nenhum governante esperar, igualmente, que apenas
pode ir a uma guerra. o ardor mova as pernas dos sol-
Mais do que isso, porém, dados. Do contrário, estaríamos
numa sociedade em que cometendo o mesmo erro do du-
prevalecem os valores que de Song. A melhor estratégia
da cultura, e que a é se preparar, em tudo; o melhor
ordem se encon- conflito, aquele que se resolve
tra instaurada, as pela discussão e pelo acordo; a
pessoas lutam melhor guerra, a que não ocorre.
pelo seu país, Wuzi, outro estrategista do sécu-
por suas famí- lo 5 a.C., disse: “É por isso que
lias e pelo seu um sábio controla seu povo den-
modo de vida. tro dos mais altos princípios e o
Por isso, o governa com retidão, estimula-o
ideal não são os com rituais e sossega-o com tra-
grandes exércitos, tamento humano. Quando essas
mas boas escolas; quatro virtudes são praticadas, o
a melhor estra- povo floresce; quando são esque-
tégia é propor- cidas, desvanece”.

74 • ciência&vida
FILO NA WEB

Filosofias e infâncias
O Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (Nefi) é um
espaço de ensino, pesquisa e extensão vinculado à Universida-
de Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Viabilizado por professores-
-estudantes interessados em pensar Filosofia, educação e infância,
oferece as seguintes atividades: pesquisas e outras experiências
que articulam Filosofias e infâncias; grupo de estudos, elaboração,
produção e tradução de textos, bem como publicações internas e
externas; organização de colóquios, encontros e cursos nacionais
e internacionais, que pretendem consolidar um novo espaço de
formação e intercâmbio com universidades e outras instituições,
como escolas, entre Filosofia, educação e infância.
filoeduc.org/

REFilo Grupo Único PDF PaD


A Revista Digital de Ensino de Filo-
sofia (REFilo) é uma publicação digital,
semestral, vinculada ao Departamento
de Metodologia do Ensino, Centro de
Educação, Universidade Federal de
Santa Maria, Rio Grande do Sul. A Renovação
publicação é organizada em sessões, A hora da renovação na vida das pessoas é um dos momentos
como Demanda Contínua, Resenha mais difíceis e agudos, pois é necessário saber lidar com a perda, com
e Entrevista, e destina-se à publica- o medo, entre outros sentimentos. No vídeo intitulado Sabemos reno-
ção de trabalhos inéditos na área var? Como renascer a cada ciclo?, a Nova Acrópole apresenta 16 dicas
de ensino de Filosofia. A Revista filosóficas para serem utilizadas em 2019, por intermédio de palestra
não aceita trabalhos encaminhados da professora voluntária Lúcia Helena Galvão.
simultaneamente para outras revistas youtube.com/watch?v=I_MPUXavo48
ou para livros. Tem
como público-alvo
professores, estudantes Universidade de Uberlândia
e pesquisadores da área O site do Laboratório de Filosofia do Departamento de
da Educação e Filosofia, Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas
com ênfase no ensino Gerais, apresenta material ligado a assuntos relacionados
de Filosofia. Foi criada com cinema, literatura, imagem, televisão, música, além de
em 2015. planos de aula, artigos, comunicações e ensaios. É um espaço
periodicos.ufsm.br/refilo/ de produção de material de alunos da graduação, objetivan-
about do o desenvolvimento da pesquisa de Filosofia e, também,
aplicando as reflexões em sala de aula, para que se estenda
à comunidade em geral.
laefi.defil.ufu.br/index.html

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 75
RESENHA

Muito além
do “opa!”
A OBRA-PRIMA DE KEN WILBER –
A EVOLUÇÃO DO UNIVERSO
NA OBRA DE KEN WILBER

SEXO, ECOLOGIA, ESPIRITUALIDADE


É completamente estranho que algo – qualquer Autor: Ken Wilber
Editora: Vida Integral
coisa – esteja acontecendo. Não existia nada, de re-
Ano: 2019
pente, um Big Bang, e aqui estamos todos nós. Isto é
extremamente esquisito.
Grupo Único claro,
PDF
Sempre houve duas respostas gerais para a arden-
PaD
muitas variedades dessa “ordem mais profun-
te pergunta de Schelling: “Por que existe algo em vez da”: o Tao, Deus, Geist, Maat, formas arquetípicas,
de nada?” A primeira poderia ser chamada de filo- razão, Li, Mahamaya, Brahman, Rigpa. E, embora
sofia do “opa”. O universo simplesmente acontece; essas inúmeras variações da ordem mais profunda
não existe nada por trás; ele é, no final das contas, discordem entre si em muitos pontos, todas elas
acidental ou fortuito; basicamente, ocorre – opa! A concordam em um: o universo não é o que parece.
filosofia do opa, não importa quão sofisticada e ma- Alguma outra coisa está ocorrendo, algo bastante di-
dura possa, às vezes, parecer – seus nomes e números ferente de opa...
modernos vão do positivismo ao materialismo cientí- Este livro é sobre “tudo diferente de opa”.
fico, da análise linguística ao materialismo histórico, Assim o autor começa sua obra monumental.
do empirismo ao naturalismo – sempre chega à mes- Ken Wilber, polímata, filósofo e místico norte-
ma resposta básica: “não pergunte”. -americano, desenvolveu a metateoria integral, que
A pergunta em si (Por que algo está acontecendo? tem como um de seus propósitos procurar enfrentar
Por que eu estou aqui?) – a pergunta em si é consi- os problemas atuais da humanidade usando diferen-
derada confusa, patológica, absurda ou infantil. Parar tes perspectivas, partindo do princípio de que cada
de fazer tais perguntas tolas ou obscuras é, afirmam, uma dessas perspectivas apresenta uma verdade par-
um sinal de maturidade, um indício de crescimento cial que precisa ser levada em conta na resolução do
neste cosmos. problema. Foi através de Sexo, ecologia, espiritualida-
Eu não penso assim. Acho que a “resposta” dada de (SEE) que Wilber apresentou ao mundo pela pri-
por essas disciplinas “modernas e maduras” – isto meira vez sua metateoria.
é, opa! (e, portanto, “não pergunte!”) – é, possivel- Para tanto, Wilber estudou inúmeras áreas do
mente, a mais infantil que a condição humana pode conhecimento humano, tais como: ciências físicas e
oferecer. biológicas, ecociências e sustentabilidade, teoria do
A outra resposta geral que tem sido proposta é caos, ciências sistêmicas e da complexidade, política,
que alguma outra coisa está ocorrendo: por trás do economia, sociologia, negócios, filosofia ocidental e
drama casual há um padrão, ordem ou inteligência oriental, psicologia, matemática, antropologia, mito-
ma is profunda, ma is eleva da ou ma is a mpla . Existem, logia, escolas contemplativas e místicas ocidentais

76 • ciência&vida
e orientais, artes, entre outras, criando
uma estrutura que integra as verdades
Metaforicamente,
parciais de cada uma delas, a saber, a
metateoria integral.
Ken Wilber trata da
Sexo, ecologia, espiritualidade trata, evolução como sendo
em essência, da evolução, o que é ex-
presso em seu subtítulo “O espírito da o “espírito em ação”.
evolução”. O livro é dividido em duas
partes, sendo que a primeira mostra Espírito no sentido
como essa evolução se deu, ou está
se dando, ao longo desses 15 bilhões de Deus, porque,
de anos, desde o Big Bang até os dias
atuais, em todos os domínios: matéria,
de acordo com sua
vida, mente e espírito.
Na primeira parte, Wilber nos pro-
visão, tudo o que existe
põe uma descrição do processo evo-
lutivo embasada em conhecimentos
no universo é uma
científicos, filosóficos e das tradições de manifestação do divino
sabedoria. São oito capítulos que tra-
tam da teia da vida e suas limitações, Habermas, Parmênides, Fichte, Hegel,
dos princípios básicos que regem a evo- Whitehead, Husserl) e com teorizado-
lução, da evolução exterior individual e res alternativos atuais (Grof, Tarnas,
coletiva, da evolução interior individual Berman, Spretnak, Roszak).

Grupo Único PDF PaD


e coletiva, da evolução da consciência
humana, das fronteiras da natureza hu-
Metaforicamente, Ken Wilber tra-
ta da evolução como sendo o “espírito
mana e dos domínios transpessoais. em ação”. Espírito no sentido de Deus,
A segunda parte do livro trata especi- porque, de acordo com sua visão, tudo
ficamente das coisas que, de uma certa o que existe no universo é uma mani-
maneira, deram errado, principalmente festação do divino; a criação divina (in-
nos períodos moderno e pós-moderno, volução) nada mais seria do que Deus
e de como nós podemos redirecionar a se esquecendo de si mesmo – o nível
evolução para novos caminhos que le- material é Deus mais esquecido de si.
vem a uma melhoria da situação do pla- A evolução – o espírito em ação – é o
neta, enfocando problemas éticos, cul- processo de rememoração de Deus,
turais, econômicos, sociais, ecológicos e partindo da matéria para a vida, para
espirituais contemporâneos. São seis ca- a mente, para a alma, para o espírito.
pítulos que tratam dos caminhos ascen- Essa visão não dualista tem como essên-
dente e descendente, do deus ou deusa cia que a evolução é o retorno das ma- Ari Raynsford é
doutor em Engenharia
das diferentes tradições, da dignidade e nifestações divinas (o Deus imanente)
Nuclear pelo
do desastre da modernidade e dos acer- ao Deus transcendente, de tal maneira Massachusetts
tos e erros da pós-modernidade. que, ao final (se é que esse final existe) Institute of
Há também as notas de cada ca- nós chegaremos à realização de que só Technology (MIT).
pítulo; na verdade, elas podem ser há Deus, de que só há o espírito. Estudioso da obra
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E YOUTUBE.COM

de Ken Wilber há
consideradas como um livro separado. Minha experiência na tradução des- 27 anos, nos últimos
Muitas das ideias mais importantes ta obra foi inefável. Mais do que uma 19 anos tem se
de Sexo, ecologia, espiritualidade são tradução, foi um profundo mergulho dedicado a divulgá-la,
mencionadas e desenvolvidas somen- em domínios totalmente desconhecidos ministrando
te nas notas (por exemplo, a intuição para mim. Foram quatro anos em que cursos e palestras,
coordenando
moral básica), bem como em grande viajei por mundos maravilhosos. E cor- grupos de estudo
parte do diálogo com diversos eru- roborando as palavras do próprio Ken: e traduzindo
ditos (Heidegger, Foucault, Derrida, foi “uma viagem e tanto”. livros e artigos.

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 77
FILOSOFIA CLÍNICA por lúcio packter

Doenças
imaginárias

A
neurologista Suzanne Matthew sabia o que esperar, donar a doença física e, assim,
O’Sullivan escreveu: mas agora precisava aprender a perder toda a validação de seu

Grupo Único PDF PaD


“‘Sei que está sofren-
do, Matthew. Não que-
desistir de uma certeza e, no lu-
gar, aceitar uma verdade difícil.
sofrimento”.
Em Filosofia Clínica, fenô-
ro menosprezar esse sofrimento. Eu o colocara em uma posição menos como esses aparecem
Você está sofrendo e algo precisa difícil. O que ele diria aos amigos ocasionalmente. O que é mais
ser feito. Mas você não tem es- sobre sua enfermidade? E a seu frequente, no entanto, diz respei-
clerose múltipla.’ Falei sobre o empregador? Como eles recebe- to a pessoas que possuem “saú-
diagnóstico de distúrbio neuro- riam a notícia?”. de imaginária”. Uma das formas
lógico funcional, que a paralisia Qual a reação de alguém que de iniciar esse estranho evento é
das pernas não podia ser expli- é comunicado sobre tal situação? acreditar que a vida se divide en-
cada por uma doença neurológi- O’Sullivan tem uma opinião: “Da tre doença e saúde e em seguida
ca. Embora não tivesse chegado a mesma forma que descartamos a se empenhar em estar saudável:
ponto de chamar sua paralisia de esclerose múltipla em uma série academia, alimentação, cuidados
psicossomática, eu lhe disse que de exames, uma avaliação psico- com a pele, vitaminas, medita-
estava pensando em uma causa lógica precisa ser apenas outro ção. Tudo isso em doses consis-
psicológica”. exame exploratório. Infelizmen- tentes, frequentes, e um repúdio
Por favor, considere isso: a te, muitos pacientes acham difícil a qualquer evento que possa
pessoa vai ao médico, está em dar esse passo final no processo conduzir a inflamações, dores,
uma cadeira de rodas; por mais investigativo. Para alguns, con- desgostos, ansiedades. Muitos
que se empenhe, não consegue sultar o psiquiatra parece aban- adoecem de “saúde imaginária”.
andar, e ouve do médico que
nada existe em seu corpo que a
impeça de caminhar. HÁ UM REPÚDIO A QUALQUER
O’Sullivan prossegue: “Esse
novo diagnóstico não gerava
EVENTO QUE POSSA CONDUZIR
apenas confusão: ele também A INFLAMAÇÕES, DORES, DESGOSTOS,
desnorteava sua ideia de como
poderia melhorar. Com um diag-
ANSIEDADES. MUITOS ADOECEM
nóstico de esclerose múltipla, DE “SAÚDE IMAGINÁRIA”
78 • ciência&vida
Acreditando que estão perfeitamente vadidos, os clubes de férias, os acam-
saudáveis, estão perfeitamente doen- pamentos de refugiados, as favelas

Grupo Único PDF PaD


tes, segundo os próprios critérios que
utilizam para a diferenciação desses
destinadas aos desempregados ou à
perenidade que apodrece), onde se
fatores. Geralmente, não sabem dis- desenvolve uma rede cerrada de meios
so. O “saudável imaginário” cumpre de transporte que são também espaços
rotinas, protocolos, padecimentos, habitados, nos quais o frequentador
angústias, privações para ser saudá- das grandes superfícies, das máquinas
vel. Voltarei a este assunto em breve; automáticas e dos cartões de crédito
aqui fiz apenas a introdução. renovado com os gestos do comércio
‘em surdina’, um mundo assim pro-
Os não lugares – você tem metido à individualidade solitária, à
certeza sobre onde está? passagem, ao provisório e ao efêmero,
Vamos a um trecho da obra Não propõe ao antropólogo, como aos ou- Lúcio Packter
lugares: introdução a uma antropologia tros, um objeto novo cujas dimensões é sistematizador
da supermodernidade, de Marc Augé: inéditas convém calcular antes de se da Filosofia Clínica
no Brasil. Graduado
perguntar a que olhar ele está sujeito”.
WIKIMEDIA COMMONS/ARQUIVO PESSOAL

“A supermodernidade é produtora de em Filosofia pela


não lugares, isto é, de espaços que não PUC-Fafimc, Porto
são em si lugares antropológicos e que, Agora uma tradução do que pro- Alegre. Coordenador
contrariamente à modernidade baude- põe Augé, uma tradução para os ele- do Instituto
Packter. E-mail:
lairiana, não integram os lugares anti- mentos da clínica, do consultório. Um
luciopackter@uol.com.br
gos: estes, repertoriados, classificados aeroporto, uma rodoviária, um hotel,
e promovidos a ‘lugares de memória’, estes são alguns dos prováveis “não
ocupam aí um lugar circunscrito e es- lugares” em nossos dias. Os espaços,
pecífico. Um mundo onde se nasce objetos, criaturas, coisas que habitam

IMAGENS: JOHN TRUMBULL

numa clínica e se morre num hospital, uma rodoviária são em princípio dis-
onde se multiplicam, em modalidades tantes e frios em relação ao ambiente,
luxuosas ou desumanas, os pontos de acolhimento, interseção que a maio-
trânsito e as ocupações provisórias ria das pessoas vive em seu trabalho,
(as cadeias de hotéis e os terrenos in- em sua casa. A rodoviária é um “não

www.portalespacodosaber.com.br • ciência&vida • 79
ALGUMAS
PESSOAS
CONSEGUIRÃO
VIVER O AMOR,
OS CUIDADOS
FAMILIARES,
AS ATENÇÕES
DOMÉSTICAS
SE ESTIVEREM À
VONTADE E EM
PAZ COMO
OCASIONALMENTE
VIVEM
EM OUTROS
LOCAIS, ÀS VEZES
Grupo Único PDF PÚBLICOS
PaD
pois os não lugares medeiam todo
um conjunto de relações consigo e
com os outros que só dizem res-
peito indiretamente a seus fins:
SHUTTERSTOCK

assim como os lugares antropoló-


gicos criam um social orgânico, os
não lugares criam tensão solitária”.
Como isso é em Filosofia Clí-
lugar”, nossas casas são lugares. quando estão em uma barbearia nica? Assim como apontou Augé,
No entanto, Augé instiga com a de rodoviária lendo um jornal; algumas vezes encontramos tais
questão ao antever que talvez para alguns, assim será. fenômenos, ainda que em outras
este fenômeno possa ser amplo vestes. Há elementos híbridos,
e exceder os parâmetros das de- Escreve Marc Augé: “Vê-se indistintos, excludentes, entre ou-
finições. Um casamento, a pessoa bem que por ‘não lugar’ designa- tros. Exemplo: a pessoa entende
com quem vivemos, nossa peque- mos duas realidades complemen- como “não lugar” sua relação fa-
na cidade, eles podem ser “não tares porém distintas: espaços miliar, mas compreende de outra
lugares”? Uma resposta é que, por constituídos em relação a certos maneira o modo como vivencia a
vezes, sim. Por vezes pode ser in- fins (transporte, trânsito, comércio, relação com o marido. O marido é
dicado, aconselhável que alguns lazer) e a relação que os indivídu- “não lugar” somente na experiên-
vivenciem sua proximidade dessa os mantêm com esses espaços. Se cia na qual ele é parte da família,
forma. Algumas pessoas conse- as duas relações se correspondem mas é “lugar” na relação afetiva
guirão viver o amor, os cuidados de maneira bastante ampla e, em com a esposa. As sensações sub-
familiares, as atenções domésti- todo caso, oficialmente (os indiví- jetivas em torno disso podem oca-
cas se estiverem à vontade e em duos viajam, compram, repousam), sionar conformações curiosas para
paz como ocasionalmente vivem não se confundem, no entanto, os nossos padrões de época.

80 • ciência&vida
LIVROS
FILOSOFIA CIÊNCIA E VIDA é uma publicação mensal da EBR _

Prática interventiva Empresa Brasil de Revistas Ltda. ISSN 1809-9238. A publicação não
se responsabiliza por conceitos emitidos em artigos assinados ou
por qualquer conteúdo publicitário e comercial, sendo esse último
Henri Wallon e a prática psicopedagógica de inteira responsabilidade dos anunciantes.

Autor: Leon Denis ANO 13 - EDIÇÃO 151


Editora: FiloCzar, 88 págs.
DIRETORA EDITORIAL
A psicopedagogia se estruturou, ao longo dos anos, como Ethel Santaella

uma área que se alimenta das mais diversas áreas do conhe-


PUBLICIDADE
cimento. Assim também aconteceu com a Psicologia genética GRANDES, MÉDIAS E PEQUENAS AGÊNCIAS E DIRETOS
publicidade@escala.com.br
desenvolvida por Henri Wallon. Ambas procuram analisar, interpretar, refletir e intervir
REPRESENTANTES Interior de São Paulo: L&M Editoração,
na dificuldade de aprendizagem que acomete uma parcela considerável da população. Luciene Dias – Rio de Janeiro: Marca XXI, Carla Torres, Marta
Pimentel – Santa Catarina: Artur Tavares – Regional Brasília:
Em Henri Wallon e a prática psicopedagógica, o filósofo e psicopedagogo Leon Denis Solução Publicidade, Beth Araújo.

lembra aos leitores que a aprendizagem, na visão de Wallon, não se realiza por apenas
COMUNICAÇÃO, MARKETING E CIRCULAÇÃO
um dos domínios funcionais, nem está fechada em um único estágio do desenvolvi- GERENTE Paulo Sapata

mento psíquico e, muito menos, é composta por apenas uma área do conhecimento. A IMPRENSA comunicacao@escala.com.br

teoria e a prática psicopedagógica walloniana interdisciplinar, crítica e autocrítica, têm


Av. Profª Ida Kolb, 551, Casa Verde, CEP 02518-000, São Paulo, SP
capacidade e força indispensáveis para a prática interventiva do psicopedagogo atual. Caixa Postal 16.381, CEP 02515-970, São Paulo, SP
Telefone: (+55) 11 3855-2100

O ser humano no mundo IMPRESSÃO


OCEANO
INDÚSTRIA GRÁFICA LTDA.
Manual de Antropologia Filosófica Nós temos uma ótima
impressão do futuro
Autor: Wolfgang Pleger
Editora: Vozes, 440 págs. RESPONSABILIDADE AMBIENTAL Esta revista foi impressa na
Gráfica Oceano, com emissão zero de fumaça, tratamento de
todos os resíduos químicos e reciclagem de todos os materiais
não químicos.
O Manual de Antropologia Filosófica oferece uma apresen-
tação compacta e histórico-sistemática dos principais conceitos Distribuída pela Dinap S/A – Distribuidora Nacional de Publicações,

Grupo Único PDF PaD


antropológicos da história europeia. O professor de Filosofia,
Wolfgang Pleger, analisa a problemática do posicionamento do
Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, nº 1678, CEP 06045-390 – São Paulo – SP
JUNHO 2019

REALIZAÇÃO
ser humano no mundo, tal como exposta na mitologia antiga e na narrativa bíblica, na
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Jussara Goyano
qual o homem aparece como criação de Deus e, respectivamente, como mortal, ou RELAÇÕES INSTITUCIONAIS E PESQUISA: Marina Werneck
EDIÇÃO DE ARTE E DIAGRAMAÇÃO: Monique Bruno Elias.
ainda na antropologia materialista, em que o homem é pensado a partir da sua materia- Colaboraram nesta edição: Paula Felix e Fabio A. G. Oliveira
(curadoria); Fabio Gabriel (texto e edição); Aline Cristina
lidade e determinação. Dos antigos aos modernos, de Homero a Sartre, cada conceito Oliveira do Carmo, Ana Haddad, André Bueno, André Stuchi de
Almeida, Ari Raynsford, Diogo Mochcovitch, João Teixeira de
é analisado a partir de três posições de pensadores importantes. Operando a partir de Fernandes, Letícia Maria Passos Corrêa, Lucas Vasques, Monica
Aiub, Príscila Carvalho, Rachel Souza Martins, Renato Janine
uma base interdisciplinar, a obra também oferece, ao lado da abordagem filosófica, Ribeiro, Renato Nunes Bittencourt, Victor Santanna de Araújo,
Walter Cézar Addeo (texto); Jussara Lopes (revisão); Marisa
exemplos a partir da poesia, bem como da ciência da religião, ciências sociais e naturais. Corazza (diagramação).

Ameaça à democracia FALE CONOSCO


DIRETO COM A REDAÇÃO
A inclusão do outro. Estudos de teoria política filosofia@escala.com.br
Autor: Jurgen Habermas
PARA ANUNCIAR
Editora: Unesp, 576 págs. anunciar@escala.com.br
SÃO PAULO: (11) 3855-2100
SP/CAMPINAS: (19) 98132-6565
Ao observar os acontecimentos recentes, tanto no cenário SP/RIBEIRÃO PRETO: (16) 3667-1800
nacional quanto internacional, não há dúvida de que o mundo RJ: (21) 2224-0095
RS: (51) 3249-9368
está assistindo, em diversas sociedades, por mais distintas que BRASÍLIA: (61) 3226-2218
sejam, à ascensão de atitudes e políticas que ameaçam seria- SC: (47) 3041-3323

mente ideias fundamentais presentes na base das sociedades ASSINE NOSSAS REVISTAS
www.assineescala.com.br / (11) 3855-2117
democráticas. É possível observar o reaparecimento de posições nacionalistas xenó-
VENDA AVULSA REVISTAS E LIVROS
fobas, autoritárias e racistas em todas as partes do mundo, que não poucas vezes se (11) 3855-1000
traduzem em atitudes de grave discriminação de pessoas e formas de vida culturais
ATACADO REVISTAS E LIVROS
IMAGENS: DIVULGAÇÃO

diversas e divergentes. Em face desse panorama desafiador, o livro A inclusão do outro. (11) 3855-2275 / 3855-1905
atacado@escala.com.br
Estudos de teoria política procura contribuir de forma marcante para o diagnóstico das
sociedades contemporâneas e para a reflexão sobre as questões teóricas e normativas LOJA ESCALA
Confira as ofertas de livros e revistas
que dele emergem. www.escala.com.br

ATENDIMENTO AO LEITOR
De seg. a sex., das 9h às 18h. (11) 3855-1000
(Textos informados pelos editores / edição parcial de Lucas Vasques) ou atendimento@escala.com.br
OLHO GREGO por renato janine ribeiro

A liberdade
de expressão
O
que é liberdade de expressão é sem-
expressão, o que pre liberda-
é liberdade de im- de de dizer
prensa? A impren- merda”: queria
sa se organiza em empresas de dizer que não se
mídia bem capitalizadas porque deve controlá-la.
precisa de um parque industrial Só que ele errou. A liber-
ou, ao menos, de acesso intenso dade de expressão é uma con-
à internet. Por isso sempre esteve quista do Iluminismo, das Luzes.
ligada ao poder econômico e, por A Enciclopédia foi uma aposta
que não, político. Já a liberdade no conhecimento de qualidade,
de expressão é mais ampla. Qua- entendido como emancipador. Se o Brasil

Grupo Único PDF PaD


se todos a temos hoje, graças às
redes sociais.
As pessoas seriam mais felizes,
a sociedade mais rica, graças à
chegou a esse
fundo do poço
Expandir a liberdade de ex- ciência e à Filosofia. Não devido em que hoje está foi porque
pressão é positivo. Mas é mes- à merda ou à mentira. Se a men- esse compromisso foi quebrado.
mo? As redes sociais expandiram tira tem lugar na liberdade de ex- A mentira circulou, esses anos,
as fake news. A imprensa contra- pressão, é como efeito colateral descontrolada. Muitos preferiram
-ataca, vendo seu império sob inevitável, não como princípio vencer a curto prazo em vez de
ameaça. Contra as mentiras que ativo desejado. pensar no futuro. Hoje, temos
saem nas redes sociais, a im- Uma sociedade será mais que reconstruir. Isso significa,
prensa brande a checagem dos próspera, um Estado mais demo- antes de mais nada e pensando
fatos. Mas o ideal é não perder crático se a mentira e o ódio que em nós, que lemos esta revista,
essa multiplicação de vozes que convergem nas fake news (por- fortalecer o saber científico e fi-
a internet permitiu – somando que elas não são apenas falsida- losófico. A educação e a pesqui-
a democratização da palavra a de: são armas de guerra contra sa são uma base difícil, pouco
um compromisso sério com a o outro, o diferente) forem sen- conhecida, demorada, mas sólida
verdade. sivelmente mais fracos do que a para uma ação que democratize
E aí entra outro problema. A disposição a procurar a verdade o Estado e a sociedade.
liberdade, de expressão ou im- e a respeitar os direitos humanos.
prensa, sempre teve uma relação Como gerar essa sociedade,
IMAGENS: SHUTTERSTOCK E ARQUIVO PESSOAL

conturbada com a verdade. Se esse Estado? Não é vigiando e pu-


só for lícito publicar a verdade, nindo, embora isso seja necessá-
quem julga se você não mentiu? rio – e países exemplares por sua
Esse juiz terá um poder enorme democracia, como a França e a
na sociedade. Daí que nas de- Alemanha, criminalizam respecti-
mocracias se prefira pecar do vamente a negação do Holocaus- Renato Janine Ribeiro, ex-ministro
da Educação, é professor titular
lado da mentira que do lado da to e a defesa do nazismo. Mas o
de Ética e Filosofia Política na
repressão. Daí o que ouvi de um eixo principal é um compromisso Universidade de São Paulo (USP).
conhecido, que “liberdade de com a educação e com a verdade. www.renatojanine.pro.br

82 • ciência&vida
COLEÇÃO

A Coleção Guia Completo da Decoração traz todos os passos para começar um projeto de
GHFRUDomR³GDDQiOLVHGRDPELHQWHjFRPELQDomRGHFRUHVHGHÀQLomRGHXPSRQWRGHGHVWDTXH
6mROLYURVFRPLQIRUPDo}HVGHSDVVRDSDVVRSURGX]LGRHLOXVWUDGRFRPIRWRV

Grupo Único PDF PaD

Confira também as outras Coleções

Nas bancas!
Ou acesse www.escala.com.br
/escalaoficial
A Editora Lafonte traz para você

O Universo Mágico de

Grupo Único PDF PaD

Reinações de Narizinho e Viagem ao Céu são histórias que


garantem um delicioso resgate afetivo para adultos e aventuras
sem limites para crianças de todas as idades.

Ou acesse www.escala.com.br
/escalaoficial

Você também pode gostar