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Flavio Gordon
Mar 25, 2017 · 25 min read
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“We have not successfully rolled back the frontiers of the state in Britain, only to see them
re-imposed at a European level with a European super-state exercising a new dominance
from Brussels”.
- Margaret Thatcher
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Há decerto alguma verdade naquela imagem da história. Afinal de contas, em que pese
a gigantesca variedade da experiência do Homo sapiens no tempo e no espaço, a
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É o que se passa, por exemplo, com a noção de "nacionalismo”, que vem sendo usada e
abusada para interpretar eventos tais como a eleição de Donald Trump e o Brexit. A
crítica contemporânea ao nacionalismo — e ao seu atual irmão-gêmeo, o populismo —
parte da premissa (tipicamente liberal-progressista) de que o mundo seguia natural e
fatalmente rumo à dissolução dos Estados nacionais, e que, de súbito, de maneira
aberrante, houve um retrocesso, uma espécie de retorno a um ponto anterior da
história. Como escreveu o filósofo político John Gray em artigo recente sobre o tema:
Antes, tratava-se de celebrar a nação como um poder situado acima e para além dos
indivíduos. Valorizava-se a nação por sua aparente capacidade de transcendência, e há
mesmo, na ciência política, toda uma corrente a haver tratado o nacionalismo original
como uma forma de Ersatz religion, ou religião substitutiva. Exemplar nesse sentido é a
obra clássica do historiador americano Carlton J. H. Hayes, Nationalism: A Religion,
publicada em 1960.
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Não há nada parecido com aquela reverência quasi- (ou pseudo-) religiosa no assim
chamado nacionalismo contemporâneo. Este se afirma, não contra o indivíduo, mas
contra um projeto de centralização do poder em nível global. Trata-se, por assim dizer,
de um nacionalismo "para baixo", e não, como o original, "para cima". Se antes a nação
era brandida por representar um poder maior, agora o é por representar um poder
menor. Um poder mais fraco e, a despeito de toda a crise de representatividade
observada no âmbito dos Estados nacionais, de algum modo ainda manejável pelo
cidadão comum através do sistema democrático, não importando o quão precarizado e
discutível seja ele.
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Muitos dos que hoje são acusados de "nacionalistas" — subentendido nessa pecha todo
um campo semântico negativo em torno de pecados como racismo, xenofobia,
ignorância, paroquialismo etc. — defendem a nação não de maneira doutrinária,
movidos por algum sentimento de apaixonada devoção, mas por uma exigência
estratégica e circunstancial: querem evitar o surgimento de um poder que se erga
acima do seu próprio território, um poder ainda mais difícil de controlar e fiscalizar.
Trata-se aí de reafirmar a nação como o maior poder político admitido, para que,
eventualmente, ele mesmo possa ser reduzido. Não por acaso, muitos "nacionalistas"
contemporâneos são também federalistas e distritalistas convictos, guiando-se pelo
velho princípio da Revolução Americana: "No taxation without representation".
Há, sobretudo, um dado flagrante curiosamente ignorado pela maioria dos críticos do
"nacionalismo" corrente: a prova de que este não consiste em xenofobia e em mero
apego intransigente às próprias cores nacionais é, paradoxalmente, o seu caráter
internacionalista. Conservadores brasileiros torceram para Donald Trump numa
eleição que, claro está, não lhes dizia respeito diretamente. Conservadores americanos
vibraram com o Brexit. Em retribuição à gentileza, conservadores britânicos como
Nigel Farage celebraram a vitória do candidato republicano. O mesmo se diga de
Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, e Marine Le-Pen, candidata à
presidência na França.
Logo, trata-se de uma grosseira simplificação descrever um fenômeno tão amplo como
mera defesa de valores mesquinhos e expressão de ressentimento xenófobo. O que
temos visto, ao contrário, é o curioso surgimento de uma internacional nacionalista,
segundo a expressão paradoxal de Timothy Garton Ash, historiador e colunista do The
Guardian, que a cunhou com sentido pejorativo, sem perceber que essa "contradição
em termos" (segundo suas próprias palavras) enfraquece a cruzada anti-nacionalista da
qual faz parte.
Se não todos, ao menos boa parte dos que integram aquela curiosa internacional
comunga de princípios que giram em torno da defesa de poderes menores e mais
controláveis contra a ameaça de um poder maior e potencialmente totalitário,
representado pela ideologia da "governança global". Esta, aliás, tem sido
particularmente eficaz e insidiosa por apresentar-se em versão soft power, termo
cunhado pelo cientista político Joseph S. Nye Jr., e por ele definido como “a habilidade
de obter o que se quer mediante atração antes que coerção”.
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oglobo.globo.com
Magnoli acusa-os de tudo um pouco, lançando mão dos rótulos infamantes de sempre
(teóricos da conspiração, xenófobos, radicais, populistas), que soam até
compreensíveis na boca de ativistas e militantes políticos, mas sempre espantosos na
pena (ou melhor, teclado) daqueles que se pretendem cientistas da sociedade e da
política.
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Mas a acusação mais grave está contida já no próprio título do artigo. Como se sabe,
"Os Protocolos dos Sábios de Sião" é um texto anti-semita do século XIX. Trata-se de
uma fraude documental, provavelmente fabricada a mando do czar Nicolau II, e cuja
meta era "revelar" uma vasta conspiração mundial comandada pelos judeus. O texto
ajudou a formatar o imaginário nacional-socialista, e, por incrível que pareça, até hoje
continua a ser levado a sério por anti-semitas e incautos de maneira geral.
Ao fazer uso da analogia, Magnoli tem como objetivo colar a pecha de anti-semitas nos
que alegam combater uma quimera chamada “elite globalista”, expressão que o autor
atribui a Steve Bannon (a grande mente por trás da administração Trump), com a
intenção de ridicularizá-la e equipará-la à farsa dos "sábios de Sião". Aos anti-
globalistas, o sociólogo de formação trotskista reserva termos escarnecedores tais
como "cavaleiros do nacionalismo" e "neotrumpianos". Escreve:
A 'elite globalista', contudo, não passa da versão renovada de uma narrativa mais que
centenária: a conspiração dos Sábios de Sião (…) A conspiração dos Sábios de Sião
evoluiu por inúmeros caminhos, cruzando-se com as ideias das conspirações maçônica e
comunista, até coagular-se em sua atual encarnação: o governo mundial da 'elite
globalista'. Suas raízes antissemitas jamais desapareceram. O texto publicado pelo Fort
Russ intitula-se Emmanuel ‘Rothschild’ Macron: a resposta globalista a Trump, Putin e
Le Pen e seu alvo explícito é o candidato presidencial francês de centro-esquerda, que
trabalhou num banco de investimentos francês ligado ao Grupo Rothschild. No mesmo
texto, o 'Soroses' faz referência a George Soros, o diabo-chefe judeu…"
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Magnoli deveria saber aquilo que, certa feita, um colunista brasileiro descreveu muito
bem:
E Magnoli sabe. Era ele aquele colunista, que em agosto de 2014 publicou na Folha de
São Paulo o artigo "O sofisma anti-semita".
Por isso, chega a ser inacreditável que Magnoli mencione o bilionário George Soros
como o judeu-modelo, pretensa vítima da retórica anti-semita dos nacionalistas
contemporâneos. Logo Soros, conhecido por haver, quando jovem, percorrido as ruas
de sua Budapeste natal para ajudar os nazistas a confiscar a propriedade de seus
compatriotas judeus, algo de que fala hoje sem qualquer sentimento de culpa.
George Soros rationalizes his role in con scation of Jewish property durin…
durin…
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Logo Soros, cujas fundações, ficamos sabendo através dos "Soros Leaks", financiam um
sem-número de organizações anti-sionistas, algumas das quais pregando abertamente a
destruição do Estado de Israel.
Magnoli caçoa dos nacionalistas para quem, supostamente, Soros seria "o diabo-chefe
judeu", mas não tem nada a dizer do "diabo" ele mesmo, hoje talvez o maior
fomentador da propaganda anti-sionista (e, pois, a se acreditar no argumento do
sociólogo paulistano, anti-semita) no mundo.
Quando se nutre ódio por alguém, recomenda-se não fazer dele objeto de análise. Mas
é isso que Magnoli faz com Trump. Acusá-lo de anti-semitismo beira as raias da
loucura. Trata-se de uma perfeita inversão da realidade. O novo presidente dos EUA e
sua equipe têm conduzido uma virada de 180º na política do país em relação a Israel,
desfazendo a orientação fortemente anti-sionista da administração Obama,
provavelmente o presidente americano mais anti-Israel de todos os tempos.
Um sinal claro da reaproximação com Israel promovida por Trump foi a nomeação de
Nikki Haley como embaixadora dos EUA na ONU. E, logo em seu primeiro discurso
oficial, Haley fez críticas contundentes ao anti-semitismo da organização, defendendo
o Estado judeu com uma clareza moral e uma veemência como há muito não se viam na
América.
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"Na qualidade de Estado-nação mais poderoso do mundo, que guarda ciosamente a sua
soberania nacional, os Estados Unidos, por sua própria existência, são um obstáculo no
caminho da visão da União Européia (UE) de um mundo que evolui para além do
Estado-nação. O mesmo vale para Israel, que sofre incansável hostilidade da UE,
sobretudo porque a existência de uma nação democrática e orgulhosa, ademais fundada
numa visão essencialmente etno-religiosa da nacionalidade, desafia a visão-de-mundo
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Evidentemente, Magnoli tem o direito de ignorar tudo do globalismo, sobre o qual há,
hoje em dia, uma quantidade quase inabarcável de literatura — boa parte dela
constituída de livros panfletários e de baixa qualidade, decerto, mas também de um
número suficiente de análises sérias, profundas e extensamente documentadas. Da
mesmo forma, ele tem o direito de militar pelo globalismo em artigos de opinião. O que
ele não tem o direito de fazer é usar a sua posição de intelectual público para
desinformar os leitores, distorcendo os termos do conflito e caricaturando às raias do
grotesco os seus adversários.
Por exemplo, a distinção entre "globalização" e "globalismo" é tão óbvia, e de tão fácil
compreensão, que o deboche do autor em relação a ela, descrevendo os seus
proponentes como "ousados", não pode ser fruto de ignorância, senão de malícia. Não é
preciso qualquer ousadia para entendê-la, mas muita má vontade para não fazê-lo.
Mas, para não me alongar em demasia, destacarei apenas o livro The New Totalitarian
Temptation: Global Governance and the Crisis of Democracy in Europe, do diplomata
americano Todd Huizinga.
What caused the eurozone debacle and the chaos in Greece? Why has
Europe's migrant crisis spun out of control, over the…
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"o poder não será exercido primeiramente por governos nacionais que representam seus
eleitorados, mas por uma rede cada vez mais densa de organizações internacionais, que
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E citou ainda uma formulação mais antiga de Jean Monnet, o grande mentor intelectual
do projeto europeu:
“As nações soberanas do passado já não podem fornecer um quadro de referência para a
resolução de nossos problemas presentes. E a comunidade européia ela mesma não é
mais que um passo rumo às formas organizacionais do mundo de amanhã”.
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Com efeito, a UE foi desde o início a encarnação mesma da ideologia globalista, criada
com o propósito de estabelecer a utopia kantiana da “paz perpétua”, nem que para isso
fosse preciso amputar largas porções da soberania dos Estados-membros e violar os
valores e tradições de seus cidadãos. Ao contrário de organismos como o NAFTA (este
sim uma daquelas "instituições" e "redes" de que fala Magnoli, voltadas tão somente
para a integração econômica), a UE não é apenas uma entidade econômica, mas
também profundamente política. Ela é, na definição de Huizinga,
Quando, por acaso, os cidadãos dos países-membros rejeitam via referendo alguma lei
da UE, a reação da entidade é característica. Huizinga ilustra:
“Em três casos, duas vezes na Irlanda e uma na Dinamarca, a UE recusou-se a aceitar a
vontade dos eleitores. Em vez disso, ela impôs novas votações e exerceu pressão maciça
para que os eleitores ‘compreendessem’ e votassem sim”.
Ressalto que o autor escreveu o livro muito antes do Brexit, que certamente entraria
como mais um exemplo do autoritarismo dos burocratas de Bruxelas.
Notem bem: os responsáveis por comandar aquela complexa maquinaria política não
são representantes eleitos, mas profissionais instruídos. "A UE não seria a UE", comenta
Huizinga, "sem essa cultura de governo da elite e dos insiders".
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Aliás, a proposta de que decisões políticas importantes devam ficar a cargo de uma elite
de iluminados — ou “ungidos”, na feliz expressão de Thomas Sowell — foi avançada
com todas as letras pelo filósofo americano Jason Brennan, que lamentava a decisão
majoritária dos britânicos de sair da UE, motivada, segundo ele, por "informações
equivocadas sobre a realidade britânica". Brennan está falando sério, e a sua opinião
sobre o melhor sistema político para o mundo contemporâneo é uma bizarra reedição
da idéia platônica do "rei-filósofo". Epistemocracia, o governo dos que conhecem: eis
o que sugere o autor em seu livro Against Democracy.
veja.abril.com.br
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E já agora percebemos que, além de não ser apenas uma proposta de integração
econômica, mas de concentração de poder político, o globalismo tampouco é apenas
uma proposta de concentração de poder político, mas de educação moral. Esmiuçando
os documentos das organizações internacionais (que são a forma institucional mais
visível da ideologia), pode-se notar facilmente o quanto essa educação visa a uma
homogeneização das consciências. Eis um exemplo:
- International symposium and round table, 27 nov-2 dez. 1989, Beijing, China.
"Qualities required of education today to meet foreseeable demands in the twenty-first
century". Proceedings, UNESCO, pp. 40 e 42.
O problema da centralização do poder político hoje é que ela é tanto mais perigosa
quanto mais difícil de visualizar, e isso explica a cegueira de tantos como Demétrio
Magnoli diante dela. O "centro" hoje já não é um tirano individual, um partido político,
uma junta militar, mas uma rede altamente intrincada de agentes, dificilmente
responsabilizáveis diretamente. Todavia, posto que mais complexa e sofisticada, e é
nisso que os anti-globalistas têm insistido, ela é centralização ainda assim.
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A sua eficácia consiste não no segredo, que não há, mas na discrição e no hermetismo
da linguagem utilizada nos documentos oficiais. Contrariamente ao que sugere
Magnoli, os mais importantes críticos do globalismo não são teóricos da conspiração,
até porque, estivéramos mesmo diante de uma conspiração, tratar-se-ia daquela
"conspiração aberta" de que falava o romancista H. G. Wells, dileto membro da
Sociedade Fabiana, e ele próprio um velho entusiasta da idéia de governança global.
“O impulso rumo à governança global pode ser bem documentado, mas ao final do
século XX ele não se parece com uma conspiração tradicional, no sentido usual de uma
cabala secreta de homens cruéis encontrando-se clandestinamente a portas fechadas. Em
vez disso, trata-se de uma 'rede' de indivíduos com a mesma mentalidade, situados em
altos postos a fim de atingir um objetivo comum, tal como descrito pelo insider Marilyn
Ferguson no clássico de 1980, The Aquarian Conspiracy”.
- Citado por Ted Flynn em Hope of the Wicked: The Master Plan to Rule the World.
Herndon (Virginia): MaxKol Communications, 2000. p. 3.
Não, não há mesmo conspiração. Não há segredo. Para além de toda literatura analítica
sobre o globalismo, as fontes primárias estão acessíveis a todos: decretos, declarações,
diretrizes, resumos de conferências, atas de reuniões, livros de memórias… O
problema é que, para extrair alguma unidade por detrás da estonteante massa de
documentos, é preciso proceder a uma análise simbólica do vocabulário empregado,
estabelecer o sentido contextual dos termos.
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Para os curiosos que encaram as fontes documentais pela primeira vez, o linguajar
globalista pode soar impenetrável, entediante ou, pior ainda, inócuo. Só os muito
persistentes seguem na missão de decifrá-lo. Para os preguiçosos e desonestos
intelectuais, a situação é irremediável: eles são imediatamente afugentados pela
esfinge, indo ato contínuo refugiar-se no conforto dos estereótipos socialmente
compartilhados. É mais fácil e gratificante denunciar as "teorias da conspiração".
Caprichando na ênfase, é possível até fazer-se passar por racional e criterioso.
“Nós primeiro decidimos algo, e então lançamos a idéia, aguardando um pouco para ver
o que acontece. Se não houver grandes rebeliões e gritos de protesto, porque a maioria
das pessoas sequer entendeu o que foi decidido, nós vamos em frente — passo a passo,
até não haver mais volta” (grifos meus).
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Ausland
Depoimento de Jean-Claude Juncker ao Der Spiegel. O trecho traduzido acima está logo no primeiro
parágrafo.
“As nações européias devem ser guiadas rumo a um super-Estado sem que suas
populações compreendam o que se passa. Isso pode ser obtido por etapas sucessivas, cada
qual disfarçada como tendo um propósito econômico, mas que eventual e
irreversivelmente levará à federação” (citado por Huizinga, p. 33).
Se Magnoli não fica incomodado com aquela falta de transparência por parte da elite
globalista, o problema é dele. Mas que não se valha dessa indiferença para difamar
aqueles que, com toda a razão, o fazem. É contra essa realidade, afinal, que os
"cavaleiros do nacionalismo" têm se levantado. Se as nossas próprias autoridades —
eleitas! — estão longe de ser grande coisa, só nos faltava ter de aturar o cinismo e a
arrogância de potestades supranacionais.
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Depois de tudo o que vimos até aqui, não há como não julgar indesculpável a tentativa
de Magnoli de deslegitimar e caricaturar grosseiramente uma preocupação tão
razoável frente a um poder que, desde uma altura olímpica, tanto tem impactado a vida
de milhões e milhões de pessoas ao redor do mundo, sem que a elas sejam dados os
meios de constituí-lo, fiscalizá-lo e, eventualmente, revogá-lo. Afinal, as autoridades
globalistas não são sujeitas a impeachment!
A atitude do sociólogo parece ainda mais lamentável — mais realista que a do rei —
quando se nota que até mesmo alguns próceres do globalismo reconheceram o
problema da representatividade política no projeto de governança global. É o caso do
já mencionado Pascal Lamy:
"Quais são, então, os desafios específicos para a governança global? (…) Dado que a
legitimidade depende da proximidade do relacionamento entre o indivíduo e o processo
decisório, o desafio da governança global é a distância. Os outros desafios de
legitimidade são os assim chamados déficit democrático e déficit de fiscalização, que
emergem na ausência de meios pelos quais os indivíduos possam questionar o processo
decisório internacional (…) Se há uma área na qual a Europa não tem tirado boas
notas, é provavelmente no terreno da legitimidade. Temos assistido a uma crescente
distância entre as opiniões públicas na Europa e o projeto europeu…"
WTO | News - Speech - DG Pascal Lamy - Lamy sees need for "right
global governance" to meet global…
Lamy sees need for "right global governance" to meet global challenges -
www.wto.org
É a esse tipo de atuação política de cima para baixo, que não hesita em violar valores e
tradições culturais, que os críticos dão o nome de "globalismo". Nada muito difícil de
entender, certo?
Mas, como vimos, quer trate do anti-semitismo, quer do racialismo, Magnoli parece
mesmo ter o hábito de não levar muito a sério o que escreve. É como se, uma vez
publicadas as informações contidas em seus textos, elas se tornassem um corpo
estranho à inteligência do autor, incapaz de extrair-lhes as devidas consequências.
Não há, entretanto, nada de sui generis naquela sua postura. Esse senso frouxo de
responsabilidade autoral é uma característica comum a um tipo particular de
intelectual, surgido pela primeira vez na história nos clubes e salões do Iluminismo
francês. Ali, no seio daquela petite troupe de philosophes, naquela "igreja invisível" (a
expressão é de Diderot) de iluminados distantes da canaille ("o populacho", no
recorrente vocabulário de Voltaire), desenvolveu-se uma forma de personalidade
intelectual mais devotada à formação da opinião influente do que à compreensão da
realidade.
Eis como o grande historiador Augustin Cochin — morto nos campos de batalha da
Primeira Guerra — descreve o surgimento do fenômeno:
“Eu não falo daqueles outros, dos bons vivants de 1730, mas dos enciclopedistas da era
seguinte. Estes são graves: como não sê-lo quando se está certo de que o alvorecer do
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espírito humano data do seu século, da sua geração, de si próprio? A ironia substitui a
alegria; a política, os prazeres. A brincadeira vira profissão; o salão, um templo; a festa,
uma cerimônia; o clube, um império, do qual lhes mostrei o vasto horizonte: a república
das letras.
E o que se faz naquele país? Nada além, antes de tudo, do que se fazia no salão de
Madame Geoffrin: conversa-se. Vai-se ali para falar, não para fazer; toda essa agitação
intelectual, esse imenso tráfico de discursos, escritos e correspondências não conduz ao
mais mínimo começo de trabalho, de esforço real. Trata-se apenas de ‘cooperação de
idéias’, de ‘união pela verdade’, de ‘sociedade de pensamento’.
Ora, não é indiferente que um tal mundo se constitua, se organize e dure: pois seus
habitantes se reúnem à força das coisas postas sob um outro ponto-de-vista, sob outra
inclinação, diante de outras perspectivas que não as da vida real. Esse ponto-de-vista é o
da opinião, ‘a nova rainha do mundo’, disse Voltaire, que saúda a sua chegada na
cidade do pensamento. Enquanto que no mundo real o juiz de todo pensamento é a
prova, e sua meta o efeito, nesse mundo o juiz é a opinião dos outros, e sua meta, a
confissão. E se, naquele mundo, o meio é a realização, o “trabalho”, neste é a expressão,
a fala. Todo pensamento, todo esforço intelectual só existe aqui mediante o
consentimento. É a opinião que faz o ser. É real o que os outros vêem, verdadeiro o que
dizem, bom o que aprovam. Assim, a ordem natural é invertida: aqui a opinião é causa, e
não, como na vida real, efeito. O parecer toma o lugar do ser; o dizer, o lugar do fazer”.
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O pertencimento de Magnoli àquela igreja invisível — onde "é real o que os outros
vêem, verdadeiro o que dizem, bom o que aprovam", segundo a formulação de Cochin
— fica evidente quando prestamos atenção a um detalhe de sua crítica aos
nacionalistas contemporâneos. Um minúsculo detalhe, perdido em meio à ruidosa
vizinhança de palavras, mas que no entanto parece trair a real motivação do autor para
haver se lançado à inglória tarefa de deitar falação sobre um tema cuja substância
desconhece. Ele se encontra no trecho já citado de seu artigo. Ei-lo:
O aspecto curioso é que, na ânsia de difamar os "neotrumpianos", a única idéia que lhe
ocorreu foi a de transformá-los em objeto das "gargalhadas do público letrado". Chega
a ser quase enternecedor, e um tanto embaraçoso, perceber o quanto de sua alma o
sociólogo expõe nesse artifício, deixando nos leitores a impressão de estarem
invadindo-lhe a privacidade.
A reverência do homem pelo "público letrado" é tamanha, que ser alvo de suas
gargalhadas parece-lhe o mais doloroso dos castigos. Houvesse Dante feito de Magnoli
um personagem da Divina Comédia, decerto dedicar-lhe-ia um círculo todo especial do
Inferno, formado por uma multidão de letrados a gargalhar. No tribunal mental do
nosso cavaleiro do anti-nacionalismo, o juiz é a opinião dos pares acadêmicos. E,
perante tão rigoroso magistrado, compreende-se enfim que Demétrio Magnoli tenha
optado por sacrificar a própria inteligência na redação de um artigo tão ruim.
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