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Processos de mudança na Norma Monogâmica

A emancipação feminina como transformadora das relações românticas modernas

"(...) If we are expected to link sex with love, monogamy, marriage and family making, that is not because nature
dictates this moral order, but because of complex social dynamics." (Seidman. 2015, p.39)

Discente: Lorena Testa Anderáos

Mestrado em Sociologia | Sociologia da Modernidade


Docente: Prof. José Casanova
Lisboa - Portugal, junho de 2022
Abstrato:
Este ensaio mergulha na hipótese de que a normatividade monogâmica historicamente perpetuada tem
sofrido modificações no mundo moderno, e que tal transformação se dá principalmente por conta do
movimento de emancipação feminina. Ao compreender a origem da Monogamia como
intrinsecamente conectada à dominação masculina, pode-se teorizar que as crescentes transformações
em direção à igualdade de gênero podem estar a causar também uma flexibilização nas tendências
monogâmicas normativas. A fim de explorar tais transformações, será realizada, em um primeiro
momento, uma revisão teórica acerca das origens da Monogamia e algumas de suas ferramentas
perpetuadoras institucionalizadas, com ênfase na religião e no patriarcado. Em seguida, serão traçadas
algumas das mudanças fundamentais que os relacionamentos monogâmicos têm sofrido na
modernidade, desde o século XIX até a contemporaneidade ocidental. E, por fim, será construída uma
hipótese dos motivos para tal transformação moderna, acompanhada de uma tentativa inicial de
sustentação empírica da teoria construída neste ensaio com dados empíricos e teóricos.

Palavras-Chave:
Monogamia; Transformações; Modernidade; Mono-normatividade; Amor.

Índice:
1. Monogamia…………………………………………………………………………………………..3
2. Transformações………………………………………………………………………………………4
3. Hipótese……………………………………………………………………………………………...7
4. Sustentação Empírica………………………………………………………………………………...8
5. Conclusão…………………………………………………………………………………………….9
6. Bibliografia…………………………………………………………………………………………10

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Processos de mudança na Instituição Monogâmica:
A emancipação feminina como transformadora das relações amorosas modernas

1. Monogamia: Conceitualização e origem

Conceitualização
A Monogamia pode ser descrita, simplesmente, como o relacionamento romântico e/ou sexual de um
indivíduo com somente um parceiro(a). É importante ressaltar, porém, que o termo Monogamia (com
M maiúsculo) utilizado neste ensaio diz respeito ao sistema familiar monogâmico socialmente
construído (Seidman, 2015), com ênfase em seu caráter compulsório, e não às relações individuais de
exclusividade consentida entre casais. Pode parecer estranho definir a Monogamia como uma
construção, ou ainda como uma instituição, por conta da facilidade desta de camuflar-se como própria
da "natureza humana", todavia, a medida que torna-se necessária a legalização do casamento
monogâmico, a ilegalização de formas alheias a esta, como a bigamia ou poligamia (Cerqueira, 2020),
e até mesmo a punição do adultério, com repercussões tão severas quanto a pena de morte (ONU
News, 2021), percebe-se a presença da institucionalização monogâmica. A Monogamia como
instituição pode ser descrita, portanto, como o conjunto de normas sociais (sustentadas legalmente ou
não), que determinam como os seres humanos devem se relacionar sexualmente, no âmbito
matrimonial e no processo de configuração familiar, suportando-se a partir de uma
mono-normatividade (Pieper e Bauer, 2005), ou seja, um posicionamento da Monogamia como a
prática "certa" ou "natural" de relacionamento sexual / romântico. A norma monogâmica básica é,
portanto, a da exclusividade sexual, o que acaba por se estender também à exclusividade romântica.

Origem
Existem três teorias amplamente discutidas que procuram explicar a origem da família: a monogamia
originária, a promiscuidade primitiva e as uniões transitórias. Para o objetivo deste ensaio será
utilizada a teoria da promiscuidade primitiva, por ser a teoria que encontrou mais defensores entre
os cientistas sociais (Engels, Lowe) e também por ser aquela que melhor justifica as transformações
que serão analisadas ao longo desta pesquisa. Tal teoria, porém, não é considerada de maneira
unânime entre os sociólogos da família, podendo também ser contestada por outros pesquisadores.

Podemos encontrar as origens da Monogamia na chamada Revolução Agrícola Neolítica (Childe,


1958), há cerca de 10 mil anos atrás. É óbvio que, como fenômeno institucional, a Monogamia leva
séculos até estar completamente consolidada. O passado nômade da humanidade caçadora-coletora
seria caracterizado por uma promiscuidade primitiva, onde “Os maridos viviam em poligamia [ou
seja, mais de uma esposa], e as esposas na poliandria [ou seja, mais de um marido], prática
aparentemente tão antiga quanto a própria sociedade humana” (Morgan, 1877/1908, p.418). Baseado
em anotações de Morgan, Engels (1976) apontou ainda a provável presença de uma centralização da
mulher neste período nômade. A liberdade sexual e o desconhecimento do processo de fecundação
privilegiavam a mulher com um direito materno quase absoluto, acompanhado por uma construção
espiritual feminilizada e uma ausência de limitações sexuais institucionalizadas. A humanidade
começa a desenvolver neste momento a domesticação de plantas e animais (Harari, 2019), o que
permite uma vida sedentária, teoricamente mais confortável, no momento denominado "Revolução
Agrícola Neolítica". Ao compreender como domesticar animais, os humanos começam a identificar o
funcionamento de seus próprios sistemas reprodutivos: uma ovelha que nunca entra em contato sexual
com um macho de sua espécie nunca terá filhotes. Ocorre, portanto, uma migração do direito
reprodutivo, do materno para o paterno. As mulheres, antes detentoras de todo o poder de fertilidade e
criação humana, passam a ser vistas como meros receptáculos para abrigar os filhos dos homens.

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A monogamia não aparece na história, portanto, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos
ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um
sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré história. (...) A
primeira divisão do trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos. O primeiro
antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem
e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino.
(Engels, 1976, p.86)

O acúmulo de capital e a delimitação da propriedade privada gerados pela agricultura, traz o interesse
por uma linhagem genética com herdeiros bem estabelecidos, afinal, tudo aquilo que foi acumulado
por um pai será, eventualmente, passado para seu filho. Mas como delimitar qual filho é
verdadeiramente fruto de qual pai quando se vive em uma sociedade promíscua? Uma mulher sempre
terá certeza de sua linhagem genética, pois seus filhos saem de seu corpo. Já um homem não desfruta
de tal certeza. A família monogâmica "(...) baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade
expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade
indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos bens de
seu pai." (Engels, 1976, p.81). Como consequência da teoria da promiscuidade primitiva, afirma-se
que é com este propósito específico, o de restringir a sexualidade feminina, que surge a Monogamia.

2. Transformações: Formas de Não-Monogamia

Poligamia
É importante ressaltar que houveram imposições patriarcais que eram, em princípio,
não-monogâmicas. Os livros sagrados das três grandes religiões monoteístas - cristianismo, islamismo
e judaísmo - estão cheios de exemplos de casamentos poligâmicos, onde um homem contrai
casamento com mais de uma mulher. Grandes figuras bíblicas, como Abraão (Gênesis 16:1, 16:3,
25:1), Moisés (Êxodo 2:21, 18:1-6; Números 12:1), Jacó (Gênesis 29:23, 29:28, 30:4, 30:9), Davi (1
Samuel 18:27, 25:39-44; 2 Samuel 3:3, 3:4-5, 5:13, 12:7-8, 12:24, 16:21-23) e Salomão (1 Reis 11:3)
tiveram mais de uma mulher, sendo descritos como os maridos de duas, três, quatro, dezoito e até
setecentas esposas. O Alcorão permite, diretamente, a poligamia para o homem: “...podereis desposar
duas, três ou quatro das que vos aprouver, entre as mulheres. Mas, se temerdes não poder ser
equitativos para com elas, casai, então, com uma só.” (Alcorão 4:3). Isto pode ser apontado como um
exemplo de não-monogamia patriarcal institucionalizada que esteve presente desde os primórdios da
civilização humana. Deve ser observado, porém, que a motivação monogâmica primária de
preservação da linhagem paterna, permanece. A poligamia, em sua essência, é desigual no que diz
respeito a gênero, e reafirma a base monogâmica onde a exclusividade sexual é imposta somente às
mulheres, ou ao menos mais ferozmente para elas. O crime de adultério, por exemplo, sempre foi um
crime feminino, do qual as mulheres eram mais acusadas e punidas do que os homens, e isso
permanece até os dias atuais. Entre os 55 países onde a pena de morte ainda é legalmente sustentada,
as sentenças mais comumente dadas as mulheres são baseadas em transgressões morais, como
adultério e feitiçaria (Cornell Centre, 2018). Estes países são em sua grande maioria países
mulçumanos, africanos e do oriente médio, que permitem legalmente a poligamia para o homem.

Casamento por amor nos Séculos XVII e XIX


A partir do século XVIII, no mundo ocidental eurocêntrico, inicia-se uma transformação nas
dinâmicas matrimoniais. Se anteriormente o casamento se tratava, primariamente, de uma transação
econômica e política, agora começa a se direcionar para os interesses e vontades individuais
característicos da modernidade. Essa migração ideológica inicia um processo de transformação
conceitual do "amor". Se durante a Idade Média existiam como formas socialmente aceitas e

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publicamente demonstradas somente o Amor Divino (amor como sentimento essencialmente
religioso, não carnal nem interpessoal) e o Amor Cortês (amor de "cortejo", caracterizado por ser
somente idealizado, nunca concretizado), surgem com a Modernidade os primeiros sinais do chamado
Amor Romântico (Coontz, 2006). O Amor Romântico é a primeira forma de amor carnal, interpessoal
e efetivamente concretizado. Reforçado pelo movimento artístico do Romantismo, o individualismo
advindo da industrialização e a urbanização capitalista, o Amor Romântico desenvolve a crença de
que homem e mulher são duas partes complementares que precisam encontrar sua outra "metade" para
alcançar a felicidade suprema, inserindo um ideal essencialista na "natureza" dos relacionamentos
amorosos, com ênfase no casamento monogâmico, heterossexual e com fins reprodutivos. "Viewing
man and women as naturally different and complementary makes heterosexuality - and therefore also
marriage and the heterosexual family - seem like the natural, normal and right way of living."
(Seidman, 2015, p.36). Além de dar uma justificativa não-econômica para o matrimônio, esta nova
ideologia amorosa reforça os papéis normativos de gênero, colocando o homem como um ser da
esfera pública, dominante, forte e ativo e a mulher como ser da esfera privada, submissa, fraca e
passiva. Se o casamento monogâmico anterior era baseado essencialmente em motivações políticas e
econômicas, sua nova forma ganha força a partir de uma ideologia romântica essencialista. O Estado
(no que diz respeito à Ordem) e a Igreja (direcionada à Moral), porém, permanecem como poderosas
ferramentas de regulamentação e institucionalização dos relacionamentos.

Anarquismo e Amor Livre no Século XX


Surgem no final do século XIX pequenos movimentos radicais vinculados à luta contra a instituição
monogâmica, compostos por indivíduos que buscavam conectar o movimento sufragista de libertação
feminina, o anarquismo individualista e o radicalismo sexual. Um exemplo disso foi Victoria
Woodhull, uma proeminente líder do movimento sufragista americano, defensora do amor livre e a
primeira mulher a se candidatar para a presidência dos Estados Unidos da América, em 1872. Pode ser
citada também Angela Heywood, uma trabalhadora reformada, anarquista radical, defensora da
liberdade sexual e do amor livre. Juntamente com seu marido, Ezra Heywood, Angela fundou em
1872 a "The Word" (Nelson & Blatt, 1991), uma revista individualista anarquista, com publicações
sobre controle de natalidade, métodos anticoncepcionais, aborto, sexualidade, liberdade de expressão
e anarquismo relacional. Já na primeira metade do século XX, pode-se citar Simone De Beauvoir
como o mais importante nome a interseccionar a emancipação feminina e a rejeição ao casamento.
Para Beauvoir, a única maneira de atingir uma igualdade total entre os gêneros seria com a
emancipação financeira radical das mulheres, por meio da ênfase na carreira profissional feminina, a
ausência do matrimônio legalmente legítimo e a abdicação da maternidade como trajetória essencial
das mulheres. Em seu livro "The Second Sex", Beauvoir defende que a palavra “amor” tem
significados diferentes para homens e mulheres. Os homens permanecem “sujeitos soberanos” do
amor, por valorizarem suas esposas ao mesmo tempo que outras esferas de sua vida, como a
profissional. Em contraste, para as mulheres espera-se que o amor se torne toda a sua vida, por meio
de uma “abdicação total em benefício de um mestre” (Du Beauvoir, 2011, p. 699 [tradução livre]). A
autora defendia que para que um amor fosse "autêntico" ele deveria ser baseado em dois conceitos
centrais: reciprocidade e liberdade. Ambas as partes deveriam reconhecer a outra como ser livre e
independente. O próprio relacionamento de Beauvoir com o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre é
um exemplo de relação que fugiu à mono-normatividade, por não contrair casamento legalizado, não
haver coabitação e por - de maneira consensual - não manter exclusividade sexual.

Entre as décadas de 1960 e 70 surge o movimento "Amor Livre" como é mais comumente conhecido,
paralelo aos movimentos dos direitos humanos, o movimento hippie americano e a segunda onda
feminista. Com base na insatisfação com o capitalismo, com a guerra do Vietnã e com a organização

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social normativa, tornam-se comuns comunidades que se caracterizam como adeptas a uma forma
relacional mais aberta, sem formação familiar nuclear ou exclusividade sexual, aproximando-se da
ideia da promiscuidade primitiva antes discutida. Apesar de inspirados pelo movimento anarquista
descrito anteriormente (Blatt, 1989), este formato de Amor Livre é o primeiro a ganhar grande
interesse da mídia, iniciando assim as transformações não monogâmicas que permanecem em
movimento até a atualidade.

Não Monogamia Consensual e Diversidade Familiar no Século XXI


Para muitos, ainda é inconcebível a ideia de uma relação abertamente "não monogâmica". É claro que
a Monogamia, historicamente, não foi uma instituição especialmente respeitada, basta observar os
inúmeros casos de infidelidade reportados em obras literárias e relatórios criminais. Porém, não pode
ser ignorada a grande transformação que ocorre na modernidade em relação aos movimentos de
quebra com a norma monogâmica de maneira igualitária, consciente e, acima de tudo, explícita. A
transformação que precisa ser apontada aqui, portanto, não é a quebra dos acordos de exclusividade
sexual monogâmicos, esta sempre esteve presente, mas sim a proposta de transformação destes
acordos para que a ideia de "infidelidade" seja desconstruída, e as relações extra conjugais ou
polivalentes aconteçam livremente e, principalmente, de maneira igualitária entre homens e mulheres.

"We are now seeing a move towards academic theory and research which acknowledges the existence of openly
non-monogamous relationships without pathologizing them. However, there is still a polarisation in much scholary
work between that which celebrates non-monogamies as a potentially feminist, queer, or otherwise radical way of
structuring and managing relationships (e.g. Pallota-Chiarolli, 1995; Robinson, 1997) and that which highlites their
limitations, and the ways in which they may reproduce and reinforce hetero and mono-normativity in various ways
rather than chaleging them (e.g. Finn & Malson, 2008; Jamieson, 2004)." (Barker & Langdridge, 2010, p.4)

Existem inúmeros tipos de relacionamentos consensualmente não monogâmicos na modernidade.


Conley (2013) utiliza o termo "não-monogâmia consensual" para definir qualquer arranjo mutuamente
concordado em que os parceiros tenham relações sexuais ou românticas extra diádicas. Zimmerman
(2012) observa que é possível encontrar muitas estruturas de relacionamento não-monogâmico, como
as relações abertas, relações livres, swingers, poliamor, anarquias relacionais, etc. A crescente
literatura, construção de nomenclatura e pesquisa empírica sobre tais formatos relacionais
demonstram uma transformação moderna em prol de formatos relacionais que sejam, em alguma
medida, não monogâmicos. Em 2016, por exemplo, uma pesquisa com quase 9.000 adultos solteiros
nos EUA mostrou que um em cada cinco indivíduos já havia estado em um relacionamento
consensualmente não monogâmico (Haupert, Gesselman, Moors, Fisher & Garcia, 2017).

Se antes a instituição matrimonial como regulamentada pela Igreja era obrigatória e indissolúvel, hoje
já se tornaram completamente normalizados os processos de divórcio, separação, segundos (terceiros,
quartos, quintos…) casamentos e até a união estável que não depende de um contrato legal. Até
mesmo a crescente "solteirização" da sociedade, bastante vinculada com a descrença no matrimônio
legalizado e a digitalização do amor, podem ser consideradas processos de quebra dos padrões
mono-normativos, apontando uma maior diversidade familiar. Baumann (2004) critica o que ele
caracteriza como uma sociedade moderna baseada em "amores líquidos", ou seja, que podem ser
dissolvidos com extrema facilidade. "A definição romântica do amor como 'até que a morte nos
separe' está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de vida útil em função da
radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e
sua valorização." (Bauman, 2004, p.19). A expansão das fronteiras românticas para além do plano
presencial, sendo possível formar uma conexão virtual instantânea com alguém somente a partir de
uma primeira impressão superficial, incentiva um amor baseado em consumo, onde um interesse

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romântico é cultivado, consumido e descartado tal como qualquer outro produto no sistema
capitalista, e é sobre isso a crítica feita por Bauman sobre o amor dos tempos modernos. O amor, por
conta da expansão global e dissolução facilitada, estaria perdendo seu significado, sua solidez.
Embora o conceito se prove verdadeiro ao analisar o crescente número de parceiros ao longo da vida e
a diminuição do tempo das relações românticas, não se pode presumir que este processo seja, de todo,
socialmente negativo, ou até mesmo que defenda a monogamia ou critique os relacionamentos
consensualmente não-monogâmicos. A ideia de um amor que é substituível - superficial, casual,
líquido - é algo que existe, prioritariamente, na esfera monogâmica. A regra da exclusividade força
que um indivíduo casado, ao se apaixonar por outra pessoa, troque seu parceiro anterior pelo novo.
Essa centralização do amor romântico em somente uma pessoa é o que gera a necessidade de uma
substituição, enquanto que nas relações não monogâmicas consensuais, como no poliamor, o conceito
de substituição não existe, afinal acredita-se ser possível amar romanticamente mais que uma pessoa.

3. Hipótese: Monogamia e desigualdade de gênero como fenômenos interligados

Este ensaio se direciona para a teorização de que as normas monogâmicas não somente estão sendo
transformadas, mas também que tais transformações modernas tem profunda conexão com os
movimentos de emancipação feminina e contra a desigualdade de gênero. Essa transformação está a
acontecer em ritmos diferentes em diversos países do mundo, sendo mais facilmente posicionada no
na Europa ocidental e alguns países do continente americano. Tal hipótese se sustenta por uma série
de razões:

(a) Ao partir da teoria da promiscuidade primitiva, pode se traçar uma conexão direta entre a
Monogamia e a dominação masculina sobre a sexualidade feminina, o que, na modernidade, resultaria
em uma norma monogâmica compulsória imposta mais fortemente às mulheres do que aos homens,
além de uma associação direta entre o casamento e a dependência financeira feminina. Uma
emancipação feminina financeira, portanto, poderia ser atingida por meio de uma menor ênfase no
casamento como componente essencial para a felicidade, e um incentivo maior, por exemplo, na busca
por uma carreira profissional independente dos homens.

(b) Podem ser encontradas ao longo da história humana uma série de ferramentas de perpetuação -
conscientes ou não - da mono-normatividade, sendo a mais clara delas o formato religioso monoteísta.
O monoteísmo e a Monogamia tem algumas similaridades indiscutíveis, entre elas a centralização do
homem como ser superior à mulher, o pensamento monocêntrico da existência de um Deus único, um
parceiro único, capaz de satisfazer todas as necessidades, e um histórico de imposição agressiva de
tais normas sobre outros formatos espirituais e relacionais.

(c) A terceira razão que pode ser discutida para sustentação da hipótese deste ensaio é a percepção de
um padrão de pioneiras feministas defensoras não somente da emancipação feminina, mas também
desta como intrinsecamente relacionada ao abandono de normas monogâmicas opressoras. Alguns dos
nomes citados neste ensaio que se encaixam neste padrão são Victoria Woodhull, Angela Heywood e
Simone De Beauvoir. Cita-se também um padrão de simetria entre as ondas feministas e os
movimentos contra o casamento e a mono-normatividade.

(d) A última razão apontada para a defesa da hipótese de correlação entre a emancipação feminina e
os movimentos não-monogâmicos é, novamente, uma simetria com eventos substanciais de libertação
da sexualidade feminina (como a criação de métodos anticoncepcionais), assim como de libertação
financeira, como o aumento das mulheres no mercado de trabalho.

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4. Sustentação Empírica

A fim de sustentar empiricamente a hipótese formulada neste ensaio, serão buscados dados que
comprovem primeiramente a transformação moderna das normas monogâmicas e, em segundo lugar,
as relações entre tal transformação e a desigualdade de gênero. Por tratar-se de uma transformação
ideológica e não necessariamente consciente, é necessário buscar dados que demonstram os efeitos da
desconstrução da Monogamia como um todo, e não somente na exclusividade entre casais. Serão
analisados, portanto, índices quantitativos de casamento, assim como de infidelidade.

De acordo com uma pesquisa realizada por Ortiz-Ospina e Roser, em 2020, publicada no Our World
in Data, o mundo está a sofrer um claro declínio na quantidade de casamentos, que iniciou-se na
década de 1970. Os casamentos nos Estados Unidos da América, por exemplo, caíram cerca de 50%
desde 1972, estando agora em seu ponto mais baixo na história, padrão que também pode ser
observado em outros países desenvolvidos, como a Austrália e o Reino Unido. Infelizmente, os dados
em países subdesenvolvidos são escassos, mas de acordo com os autores, ao analisar dados de países
da América Latina, África e Ásia, pode-se afirmar que tal declínio não é um processo exclusivo de
países ricos, relatando que entre 1990 e 2010 houve um declínio nas taxas de casamento na maioria
dos países do mundo. Os motivos para tais transformações, de acordo com os autores incluem: "the
rise of contraceptives, the increase of female participation in labor markets (as we explain in our
article here), and the transformation of institutional and legal environments, such as new legislation
conferring more rights on unmarried couples." (Ortiz-Ospina & Roser, 2020, Our World in Data).
Desta maneira, é possível traçar uma relação de causalidade entre o aumento das mulheres no
mercado de trabalho - e consequentemente sua emancipação financeira - e a diminuição da quantidade
de casamento, ou ainda, do aumento da idade na qual os casamentos ocorrem.

Já a infidelidade, caracterizada como a deterioração e desprezo pela monogamia dentro de uma


relação amorosa exclusiva (Davoudian, 2014), é nos países ocidentais uma das maiores causas de
divórcio, sendo que entre 30% a 60% de homens e
20% a 50% das mulheres, dizem já ter cometido
adultério pelo menos uma vez na vida (Lișman &
Holman, 2021). Inúmeros estudos apontaram uma
diferença no número de adultérios por gênero, sendo
os homens comumente mais infiéis do que as
mulheres. Uma pesquisa realizada pelo Institute of
Family Studies (2010-2016), apontou, porém, uma
transformação moderna nesta diferença. Quanto mais
velhos os casais, maior a disparidade de infidelidade
entre homens e mulheres. Isto poderia ser explicado
por uma dificuldade masculina de manter a
Monogamia quanto mais longo for o casamento, ou
ainda uma transformação geracional onde o desprezo pela Monogamia tenha se ampliado
especificamente nas gerações femininas mais jovens. Por fim, uma pesquisa realizada pelo Pew
Research Center (Wike, 2014) revelou que a população francesa se mostrou menos inclinada a
caracterizar um caso extra-conjugal como moralmente inaceitável (47%), enquanto a grande maioria
da população turca (94%) considerou a infidelidade como moralmente inaceitável, por exemplo. Isto
reforça a noção de que conceitos como "infidelidade" são culturalmente construídos,
transformando-se consoante a época e local, podendo inclusive divergir imensamente entre indivíduos
de uma mesma comunidade.

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5. Conclusão

O debate acerca das transformações da família nuclear monogâmica, e até sobre supostas "crises" ou
"mortes" experienciadas pela instituição matrimonial, são frequentes na sociologia. Inúmeros
pensadores, de Bauman a Engels, já teorizaram o fim do amor, da monogamia ou da família como a
conhecemos, porém, esta sempre permanece, mesmo que adequada aos tempos modernos. A família
"pré-moderna" continua sendo uma alternativa para aqueles que a quiserem, porém, a grande
transformação que não pode ser negada é uma ampliação das possibilidades disponíveis àqueles e
àquelas que, de alguma maneira, não se encaixam no formato tradicionalmente construído de como se
deve constituir família e contrair casamento. A desconstrução da mono-normatividade, assim como a
da heteronormatividade, não dizem respeito a uma inversão de papéis opressores, onde a exceção, de
repente, se torna a regra. Tratam-se, simplesmente, de uma luta pela inclusão de outras possibilidades
relacionais que vão além das normas estabelecidas, normalizando também formatos que antes seriam
impensáveis. As evidências de que o aumento das mulheres no mercado de trabalho, assim como a
disparidade de gênero no que diz respeito à infidelidade, podem ser apontadas para sustentar a
hipótese de a Monogamia tem conexões diretas com o controle masculino sobre a sexualidade
feminina.

"Ira Reiss, a major sociologist of sexuality in the 1960s and 1970s, charted cultural and behavioral shifts among
American youth during a time when sexual morality that associated sex exclusively with marriage gave way to one
that permitted sex in a context of affection. Reiss believed that this cultural change was related to women's
increasing economic and social power. In this regard, he observed the decline of a double standard that had
permitted men to have sex outside of marriage while it labeled women who engaged in the same behavior as 'bad
girls'."(Seidman [2015], citando Reiss [1960 e 1967] p.25)

A análise das taxas de casamento enfatizam ainda o padrão simétrico entre movimentos feministas de
emancipação e a queda na quantidade de casamentos, assim como a sua relação com as ferramentas
modernas de emancipação da sexualidade feminina, como a pílula anticoncepcional. A comprovação
da hipótese da relação de causalidade entre a Monogamia e a desigualdade de gênero poderia
significar uma ampliação da liberdade tanto feminina quanto masculina no que diz respeito aos
formatos de relacionamento e normatividade sexual, para assim desconstruir papéis normativos de
gênero e narrativas românticas padronizadas.

É evidente que relações não monogâmicas consensuais ainda podem perpetuar ideais machistas, por
existirem em uma sociedade que permanece mergulhada em ideologia patriarcal, porém, a
possibilidade de uma escolha sobre o formato de relação que cada indivíduo gostaria de ter,
independente de questões religiosas, normativas, essencialistas ou tradicionalistas, pode trazer níveis
elevados de satisfação e, principalmente, de igualdade entre os gêneros. Desconstruir a Monogamia
não significa abolir relações pautadas na exclusividade sexual, mas sim ampliar as possibilidades
relacionais para que caso um casal deseje ser exclusivo, o faça por vontade própria, e não por uma
norma socialmente imposta. Pode ser concluído, por fim, que a sexualidade humana, assim como as
normas sexuais/relacionais que a acompanha, são construções sociais, que pouco tem conexão com
conceitos deterministas de "naturalidade". Ao compreender a Monogamia - assim como o conceito de
Amor Romântico - como um componente socialmente imposto e culturalmente mantido, torna-se
possível a construção de relações baseadas na escolha individual, que podem perder sua "solidez" sem
a imposição de uma eternização compulsória, permitindo uma livre escolha de seguir a norma, ou ir
contra ela.

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Bibliografia:
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Adultério (ONU News, 2021) https://news.un.org/pt/story/2021/11/1770132
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