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BALDIOS
trajetos de dor e resistência em Manaus

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Comitê Científico - Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)

Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)

Membros
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Cristian Farias Martins (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Heloisa Helena Corrêa (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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BALDIOS
trajetos de dor e resistência em Manaus

Noélio Martins
Renan Albuquerque

Embu das Artes - SP


2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL

Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz - Université de Versailles
Antônio Cattani - UFRGS
Alfredo Bosi - USP
Arminda Mourão Botelho - Ufam
Spartacus Astolfi - Ufam
Boaventura Sousa Santos - Universidade de Coimbra
Bernard Emery - Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira - UFC
Conceição Almeira - UFRN
Edgard de Assis Carvalho - PUC/SP
Gabriel Conh - USP
Gerusa Ferreira - PUC/SP
José Vicente Tavares - UFRGS
José Paulo Netto - UFRJ
Paulo Emílio - FGV/RJ
Élide Rugai Bastos - Unicamp
Renan Freitas Pinto - Ufam
Renato Ortiz - Unicamp
Rosa Ester Rossini - USP
Renato Tribuzy - Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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Instituições Parceiras e Cooperações entre
Programas de Pós-Graduação

AGRADECIMENTOS
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam)
Universidade Federal do Amazonas (Ufam)
Universidade de São Paulo (USP)

APOIO
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam/Ufam)
Laboratório de Editoração Digital do Amazonas (Leda/Ufam)

COOPERAÇÃO INTERINSTITUCIONAL
Faculdade de Informação e Comunicação (FIC/Ufam)
Núcleo Diversitas (FFLCH/USP)
Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras
Legitimidades (PPGHDL/USP)

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© by Alexa Cultural
Direção
Yuri Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Renan Albuquerque (arte)
Gleilson Medins (foto)
Revisão Técnica
Renan Albuquerque, Noélio Martins e Michel Justamand
Revisão de Língua
Fabrício Vasconcelos
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586l - MARTINS, Noélio


A319r - ALBUQUERQUE, Renan

Baldios, trajetos de dor e resistência em Manaus. Vol II. Noélio


Martins e Renan Albuquerque. Alexa Cultural: Embu das Artes/SP,
EDUA: Manaus/AM, 2021.

14x21cm - 122 páginas

ISBN - 978-65-89677-47-5

1. Exclusão - 2. Pessoas em Situação de Rua (PSR) - 3. Baldios -


4. Sociedade - 5. Amazonas - I. Índice - II Bibliografia


CDD - 300

Índices para catálogo sistemático:


Pessoas em Situação de Rua
Exclusão
Amazonas

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610


É vetada a divulgação ou utilização integral ou parcial do presente texto sem a
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www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com
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PREFÁCIO

A criação de espaços e afetos

Estevan Bartoli
Professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
Líder do Núcleo de Estudos Territoriais da Amazônia (CNPq/NETAM)

A irrequieta geografia do capitalismo engendra nas ci-


dades pós-industriais transformações a partir da necessidade de
criação de novos espaços de trabalho, consumo e novas formas
de morar, circular e habitar, configurando eixos de investimentos
que reestruturam o espaço urbano. Nas periferias, novas lógicas es-
paciais são construídas tanto por ocupações irregulares feitas por
redes de sujeitos populares (localmente chamadas de “invasões”
pelos amazonenses), ou por agentes imobiliários prometendo a
fuga das “durezas da cidade”, oferecendo “privatopias” em forma de
condomínios fechados. A cidade explode, assim, em fragmentos e
segmentos que separam populações por muros e/ou circuitos di-
ferenciais de convivências e socialidades, acessos e investimentos
públicos seletivos. Os sistemas de vigilância se generalizam e os es-
tigmas espaciais se manifestam na cidade de poucos (abastados) e
na cidade de muitos (desterritorializados).
Mas e o centro? Dotado de centralidade, conector pri-
vilegiado por sua condição de nódulo multirreticular, o centro se
adequa a novas funções de prestação de serviços, comércios, diver-
são, cultura etc. Permeado de territorialidades de grupos diversos,
ávidos por encontros inesperados ou programados, informais e
abertos ou fechados e privativos. Também reflete em sua paisagem
a decadência de espaços, demonstrando formas abandonadas pelas
elites nas sucessivas crises do capital. Nesse cenário emerge a cons-
tante reterritorialização de populações que recusam inserção nas
“formalidades” e regras que a cidade e o fenômeno urbano impõem:
moradia, emprego, consumo, socialidades normativas etc.

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Tais pessoas em situação de rua (PSR) passam a ter como
habitat/habitar os casarões abandonados, os galpões, as marquises
de prédios e fachadas de lojas, as praças e os logradouros públicos,
cujo predomínio de usos diurnos apresenta outras lógicas e dinâmi-
cas nos períodos noturnos. Desta feita, cabe supor que a derrocada
das diversas teorias sobre o homo economicus (o homem visto por
seu utilitarismo através das leituras econômicas dominantes) abre
espaço a novas propostas teórico-metodológicas que focam as situa-
ções desses sujeitos.
A noção contemporânea de situação está intimamente
ligada à filosofia da existência enquanto uma realidade radical da
vida mais restrita e precisa, além de comportar outro ingrediente
não circunstancial, que é a aspiração de passar de uma situação
para outra, como projeto e vontade. Nesse âmbito, Hassan Zaoual
(1998, 2010) destaca o imperativo do homo situs em seu contexto
de relações, cuja perspectiva pluralista se baseia numa racionalidade
situada que parte da consideração dos diversos contextos e escalas
de ação dos agentes, tendo a seu favor observações empíricas, expe-
riências e práticas dissidentes.
Situações geográficas dizem respeito a nexos entre ho-
rizontalidades e verticalidades nos lugares, precipitados tanto por
impulsos globais como por cristalizações de heranças de usos popu-
lares que se atualizam. O sítio usado, praticado e herdado é o espaço
urbano de Manaus que funciona como meio, produto e condicio-
nante da territorialidade das PSR analisadas em Baldios 2. A partir
das vivências materiais e imateriais, a obra descreve apropriações
através de práticas sociespaciais a revelarem uma trama de lugares
que são referências para essas pessoas. Ritmos e cronologias da cida-
de são percebidos, absorvidos e ressignificados (do tempo chuvoso
ao abrir das lojas), surgindo circuitos e trajetos enquanto estratégias
de permanência e sobrevivência nas ruas.
Apesar do estudo não focar categorias da geografia, aca-
ba indicando situações geográficas (sítio mais ação) das PSR, sendo
pertinente para analisar e articular variáveis, agentes e processos em
diversas escalas a partir de um foco particular. São usos do território
que sinalizam dinâmicas do espaço geográfico enquanto hibridis-

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mo de materializações e ações, como defendia Milton Santos (2000,
2012).
A partir do que os autores chamam de “coiós” (cantinhos,
esconderijos ou locais onde as PSR dormem ou folgam), são tecidas
redes sociais que necessitam de sutileza e sensibilidade para que as
territorialidades dessas pessoas sejam representadas numa descri-
ção etnográfica. São nódulos, como salientamos, a partir de onde
se desenvolvem trajetos, categoria explicativa proposta com desen-
voltura pelos pesquisadores. Nestes trajetos, a extensão do vivido se
manifesta enquanto práticas e tessituras que as PSR realizam, pos-
sibilitando apropriações e usos do espaço, conformando o perten-
cimento dos grupos. Tensões, disputas e conflitos também fazem
parte da dura lida das ruas, onde medo e afetos são associados a
lugares e transeuntes que os circundam.
“Pé inchado”, “dorme-sujo”, “mendigo”, “nóia’, “cheira-co-
la”, entre tantas outras adjetivações, visam estigmatizar e anular o
outro enquanto sujeito, ensejando a retirada do posicionamento
de tais pessoas como portadoras de direitos à cidade, de direitos
de usufruto da mesma maneira das virtualidades do espaço urba-
no. Uma parte dessas pessoas possui grau de parentesco ligado às
redes familiares de interiores da Amazônia, o que demonstra uma
realidade socioespacial de Manaus diferenciada das demais metró-
poles. As redes de ajuda mútua e parentesco comuns nos interiores
da Amazônia, as mesmas que propiciam que peixe e frutos trazi-
dos dos interiores sejam distribuídos a amigos e parentes próximos,
parcialmente se dissolvem no anonimato que a metrópole impõe às
PSR, que se reterritorializam enquanto portadoras de desejos, ne-
cessidades, vícios e abandonos. Os rompimentos e as permanências
formam hibridismos no espaço urbano do centro.
Os autores nos presenteiam, portanto, com uma análise
de conhecimento situado, de caráter por base de contexto, mas sem
pretender ser privilegiado. Martins e Albuquerque primam pela es-
colha de que sempre há caminhos distintos e contrastantes para se
conhecer o mundo. Uma contribuição magnífica para os estudos
urbanos na Amazônia.

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SUMÁRIO
PREFÁCIO 9
A criação de espaços e afetos
Estevan Bartoli

APRESENTAÇÃO 15
Registros datados sobre corações que pulsam
Jalna Gordiano

CAPÍTULO I
Trajetos e práticas de PSR no centro de Manaus 21
1.1. Um conceito e suas variantes 21
CAPÍTULO II
Trajetos: os caminhos afetivos na cidade antiga 41
2.1 A trilha mais longa 41
CAPÍTULO III
O médio trajeto: o entremeio dos mundos 63
3.1 Metade aqui e metade acolá 63
CAPÍTULO IV
O pequeno trajeto: as minúcias da vida 77
4.1 O menor dos caminhos 77
CAPÍTULO V
Relações notívagas em coiós e pousios
5.1 As coisas e pessoas da noite 91
5.2 Prazeres historicamente reconhecidos 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS 107
POSFÁCIO 111
A questão do outro: a sensibilidade
Isaías dos Santos

REFERÊNCIAS 113

SOBRE OS AUTORES 119

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APRESENTAÇÃO

Registros datados sobre


corações que pulsam
Jalna Gordiano
Bacharel em Serviço Social.
Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas em
Ambientes Amazônicos (Nepam/Ufam)

A quem interessa o jogo dos excluídos? Quem são os ex-


cluídos? Quais seus nomes, suas histórias, seus trajetos? São pessoas
como nós que vivem debaixo de telhados, lajes, entre muros segu-
ros, taxas de condomínio, eventos sociais? Devemos nos indagar se
seremos os próximos? E se formos, resistiremos?
Baldios é uma trilogia audaciosa e necessária. Audaciosa
porque sair de um casulo confortável e conviver com a humanidade
marginalizada por meio de um processo social excludente, muitas
vezes dentro da realidade do submundo do tráfico, da violência e da
desrealização, não é algo que todos tenham coragem de enfrentar.
Necessária porque fica um registro desses tempos e da existência de
um emaranhado de problemas que precisam de atenção e providên-
cias por parte da sociedade.
O primeiro volume trouxe como foco a metodologia uti-
lizada no processo de produção de dados sobre as pessoas em situa-
ção de rua (PSR) do centro de Manaus. Já o segundo é um convite
para adentrarmos em um universo paralelo e incômodo. Noélio
Martins e Renan Albuquerque, mediante relatos de campo, abrem
as cortinas da realidade das ruas na capital amazonense, que é uma
dimensão pouquíssimo percebida por quem vive o frenesi das com-
pras e vendas naquela região. Partindo dessa descrição detalhada,
mais humana, conseguimos visualizar as linhas da construção do
estudo ao fechar nossos olhos e permitir mais um pouco do nosso
fluir mental. Assim, é possível ouvir as vozes e os passos dados em
relação a cada uma das pessoas abordadas.

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Não é apenas um exercício de curiosidade. Vai muito
além. É ciência. E ciência feita na parte em que a sociedade teima
em negar, criando enormes redomas trincadas, tais quais peneiras
para encobrir o sol que castiga a cidade. Como se, ao negar a exis-
tência de algo, ele realmente deixasse de existir, tal qual um passe
de mágica.
É cômodo pensar assim. É cômodo imaginar que
governantes estão realmente empenhados em resolver esses entraves
quase que inaceitáveis do ponto de vista da chamada “civilização”.
Mas a maioria de nós simplesmente fecha os olhos, realizando uma
conduta displicente. E a verdade é que o “método” de não enxergar
mazelas sociais só as agrava e as alimenta feito monstros, princi-
palmente porque a política neoliberal exercida cresce velozmente e
traz consigo as desigualdades, despejando milhares de pessoas em
situações adversas, humilhantes e extremas. Muitas das vezes essas
pessoas vão parar nas ruas pelos mais variados e inacreditáveis mo-
tivos.
É imprescindível que façamos cortes em nossos olhos
quando se encontram tão fechados que apenas conseguem enxergar
o próprio corpo. E é papel de quem escreve abrir a vista de quem lê.
Assim, acreditamos que essas letras sirvam não apenas como nava-
lhas dolorosas, mas como registros de corações que pulsam e vivem
no mesmo organismo em que habitamos: as cidades.
Nessa direção, comecemos com a alcunha indicada a esses
seres humanos e esqueçamos o termo “moradores de rua”. Ninguém
mora nas ruas. As pessoas, sim, encontram-se nessa situação. Elas
têm nomes, histórias, sentem medo, orgulho e dor. São iguais a você
e a mim. Só estão mais distantes do artigo 5º da Constituição de
1988, que diz que somos todos iguais e temos direito à vida, à liber-
dade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Temos?
A idiossincrasia descrita em Baldios 2 dá forma e persona-
lidade a essas populações mistas, díspares e complexas, ao analisar
sob viés acadêmico de estudo de caso e com a utilização de métodos
e referências ações inerentes à defesa dos direitos humanos – área
que nos é confortável dentro da seara do Serviço Social. Admitindo

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a existência dos problemas, podemos encará-los e enfrentá-los com
as armas possíveis. E sabemos que não há arma mais assustadora ao
sistema vigente de opressão que o conhecimento.
Mergulhar nas veias do centro histórico da cidade de Ma-
naus em busca de habitantes que se escondem é tarefa para poucos
e a sociedade, digamos por certo, acha bastante conveniente que tais
habitantes não apareçam. A realidade dolorosa e inegável é que mui-
tas dessas pessoas se entocam feito criaturas selvagens numa flores-
ta imensa e hostil de concreto para resistirem ao higienismo. Essa
triste “mágica” de invisibilização é o travesseiro confortável onde
repousamos nossas cabeças todas as noites. Baldios 2 nos traz esse
processo indireto (ou direto) de reflexão.
A tal da autoanálise, o dedo na ferida, olhando para den-
tro de nós mesmos em busca da matriz humana que habita nosso
âmago e grita que determinadas coisas são inaceitáveis, perfaz o
sentimento de empatia que domina os sentidos e assim entende-
mos, de forma instintiva, que sobreviver em determinadas circuns-
tâncias, como as apresentadas no livro, é quase que impossível. É
indigno e desumano.
No decorrer desse segundo volume, leitoras e leitores irão
se deparar com relatos reais e envolventes dos que estão nas ruas,
respirando o carbono e a violência, mas também com histórias de
solidariedade e divisões tribais entre convivas de calçadas e de as-
falto. Essas pessoas não são vilãs, não são coitadas. São reais e com-
plexas. Por isso, é premente que dispamos da indumentária do jul-
gamento ou do sentir pena para encarar esses seres humanos como
sujeitos de direitos violados, resultado de um processo de exclusão
proposital, planejado e executado, sem que na maioria das vezes
consigamos enxergar isso muito bem.
É preciso observar as PSR com dignidade. A mesma com
a qual gostamos de ser tratados e vistos.
Essas dimensões exibidas aqui não são constituídas por
personagens fictícias, mesmo que em algumas vezes seja necessário
atuar para garantir a sobrevivência nos chamados coiós. São pessoas
que possuem nossa mesma base biológica e, surpreendentemente

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para alguns desavisados, não raro se mostram mais sábias e talen-
tosas que boa parcela da população. Esperteza e habilidade forjadas
no ferro e no fogo de quem não possui alicerces físicos ou subjetivos
para a criação de planos de curta, longa ou média duração; de quem
tem urgência de sobreviver até amanhã e depois de amanhã, e as-
sim por diante. E só. É o agora que conta! Não que sejam humanos
despossuídos de sonhos. Eles, sim, sonham alto, são artistas, ven-
dedores, trabalhadores, seguranças. São mães, pais, netos, irmãos
de alguém. Possuem passados e, suas vidas, apesar do chumbo que
prende seus pés em uma dura realidade, trazem-lhes sorrisos tam-
bém.
Esse é o papel e o sentido do trabalho das universidades e
dos grupos de pesquisa. Incluir, mostrar, analisar a sociedade e de-
volver algo que possa ser utilizado em melhorias desse tecido com-
plexo. Projetos dessa dimensão inspiram a criação e servem como
base informativa, por exemplo, para o desenvolvimento de políticas
públicas que possam amenizar tais problemas. Não que sejam solu-
cionáveis a um só termo, haja vista que são questões sociais de larga
amplitude, constituídas pelo mesmo capitalismo que não possui in-
tenção de resolvê-las. É um sistema nefasto que se alimenta de seu
próprio câncer, selecionando em um jogo vil quem é o vencedor e
quem é o lixo, tal como em uma gravura grotesca de Goya, devoran-
do suas crias. No final, todos perdemos.
Mesmo que estejamos presos a problemas pessoais e cor-
rendo atrás de nossa sobrevivência, faz-se necessário que utilizemos
o movimento de rotação de nossos pescoços e avistemos as vidas ao
nosso redor, pois a constituição de uma sociedade se faz na existên-
cia de todos. É mediante o olhar sensível a problemas de outrem que
muitas vezes conseguimos perceber os nossos e, quem sabe, desper-
tar para possíveis atitudes na melhoria do todo. Baldios 2 traz essa
oportunidade de percebermos a vida alheia distante do aceitável,
de transformarmos a visão de coletivo e passarmos a questionar
profundamente até que ponto a humanidade consegue ser egoísta
e displicente, até que ponto podemos permitir tantas violações de
direitos.

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A pergunta que fica latejando na cabeça após a leitura é: e
se fosse eu?
Que ao chegarmos à conclusão de Baldios 2 possamos
olhar as pessoas humanamente, feito a nós mesmas. Que a serventia
de um trabalho dessa magnitude, utilizando método, crítica social,
psicologia, sociologia e humanismo etc., não fique apenas na lista
dos livros que folheamos durante o ano, no acúmulo de estatísticas
de leitura, mas que modifique a percepção do próximo e que se-
jamos capazes de tecer uma análise mais justa sobre nós mesmos,
compreendendo que a consciência de classe é algo básico, essencial
e serve como um aviso de que poderia ser qualquer um de nós, ali,
no lado invisível do espelho.
Aguardo ansiosa pelo terceiro volume deste trabalho for-
midável.

Boa leitura.

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CAPÍTULO I
Trajetos e práticas de PSR no centro
de Manaus
1.1. Um conceito e suas variantes
A rua como ambiente de pesquisa remete, ela mesma, à
formação de territórios existenciais, entendidos como lugares uti-
lizados para ocupação ou fixação de pessoas em situação de rua
(PSR). No dizer amazônico, esses lugares são conhecidos como
“coiós1” e na verdade representam refúgios ou pontos individuais de
estadia não-violenta nas ruas. São cantinhos de segurança, estações
de prazer, searas de tranquilidade e irmandade. Para refletir sobre
coiós em razão de trajetos de formação territorial, neste Baldios 2
sublinhamos o entroncamento de cadeias complexas de modos de
vida que integram contextos sociais das PSR no centro velho de Ma-
naus. Situamos, portanto, suas andanças e seus nomadismos ou fal-
sos sedentarismos; situamos por onde esses baldios circulam e quais
são seus pontos comuns de concentração, seus lugares de repouso,
de higiene e alimentação. Considerando essa corrente de complexi-
dades, indicamos como vivem e se organizam no centro da cidade
em razão de caminhos percorridos.
A ideia de trabalhar o trajeto2 como categoria conceitual
consistiu em uma atividade objetiva para caracterizarmos a presen-
ça de PSR em determinados lugares e não em outros no centro ve-
lho, percebendo caminhos escolhidos e motivações para se percor-
rer singelas ruas, becos, esquinas ou vielas em detrimento a demais
lugares. O registro dos trajetos foi uma inferência defendida por
meio da etnografia, como outrora apontamos no Baldios 1. Impor-
tante destacar que a descrição significativa da ideia de trajeto e, na
prática, dos trajetos observados nas ruas, não foi aleatória, mas sim
1 Esconderijo, lugar onde se ocultam malfeitores, valhacouto, alfurja, cói (conferir coió). Dicionário
da Língua Portuguesa com Acordo Ortográfico. Porto: Porto Editora, 2003-2017.
2 Ideia semelhante a trajeto é enredada na categoria “circuito”, trabalhada por Magnani (1998, 2003)
em estudos nas periferias de São Paulo/SP. Para ele, estar ou participar de circuitos denota, primei-
ro, a confraternização e a interação com o grupo, sendo ainda uma forma de se inserir na cidade.

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resultado de observações sistemáticas e exaustivas de campo dentro
de uma pesquisa participante fortemente imersiva.
Trajetos balizaram procedimentos analíticos em face de
interpretações subjetivas e objetivas e ainda nos serviram na medi-
da em que, nos mesmos caminhos percorridos durante o levanta-
mento, foram sendo encontrados interlocutores com suas peculia-
ridades. Dessa maneira, ficou claro que as PSR vivenciam a cidade
estabelecendo relações com pessoas, mas também com ruas, praças
e monumentos, demarcando territórios segundo identificações em-
píricas, simbólicas ou factuais, registrando na lembrança lugares de
memória afetiva, bem como recriando ou revisitando sentimentos.
São baldios que, com seu caminhar, criam uma lógica própria no
espaço da cidade e conformam ainda espaços efêmeros ou não-lu-
gares. Por isso, a nosso ver, pessoas em situação de rua podem estar
dispostas nesses não-lugares quando deslocadas territorialmente de
elementos históricos e relacionais próprios.
Conceituados por Augé (1992/2005), não-lugares se apre-
sentam como espaços de passagem incapazes de dar forma a qual-
quer tipo de identidade, individual ou coletiva. Não-lugares pos-
suem a funcionalidade do refúgio. Servem, de modo temporário,
a pessoas alijadas pela ordem social estabelecida, relegando-as ao
ostracismo e às fugas do lugar comum, porém aceitando-as acima
de tudo. A mobilidade das PSR ajusta-se a não-lugares ao ponto em
que nestes as relações interpessoais são efêmeras e de escape. São
espaços de heterotopias.
Para auxiliar no esclarecimento da intenção no uso do ter-
mo não-lugar, em oposição a lugar, Agier (2011) fala da ampliação
da vida das PSR segundo dinâmicas sociais de diversos pequenos
mundos urbanos, mundos de guetos, mundos subterrâneos, que
dão sentidos em verdade ao princípio dos esconderijos, ao princípio
da afetividade dos coiós.

Ao caminhar pela cidade, cruzam-se constantemente fron-


teiras, atravessam-se constantemente territórios interpene-
trados. O trajeto efetivamente percorrido (com efetividade)
é diverso daquele que se percebe ou que se pode varrer em
um olhar estrategicamente colocado. Os passos do caminhan-

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te atento não costuram simplesmente uns aos outros pontos
desconexos e aleatórios da paisagem. Ele arrisca-se cruzando
umbrais e, assim fazendo, ordena diferenças, constrói sentidos,
posiciona-se (ARANTES, 1994, p. 264).

Trajetos de mobilidade das PSR no centro velho de Ma-


naus são definidos a partir de duas classes de sentidos: i) os obje-
tivos (fisiológicos/corporais) e os ii) subjetivos (conformativos/
psicossociais). Há trajetos que suprem necessidades básicas e exis-
tem aqueles que respondem a conjunturas de interação e adapta-
bilidade afetiva em face ao meio. Pessoas em situação de rua, com
seus trajetos, decodificam a cidade. Com seus caminhares, atentas
reconstroem o centro de Manaus. Estabelecem rotina entre lugares
de objetividade, onde trabalham, alimentam-se, fazem necessidades
fisiológicas e dormem; e de subjetividade, onde namoram, jogam,
bebem e se divertem. Nas relações cotidianas que estabelecem com
espaços geográficos, as PSR compõem trajetos segundo perspectivas
de onde podem habitar por algum tempo, interagindo com o entor-
no, produzindo dessa maneira relações íntimas com o cotidiano das
ruas.
Certeau (1994) destaca que dinâmicas de caminhadas
podem reproduzir mapas urbanos mentais a partir de traçados e
imaginários densos, em que se escolhe, em cada trajetória, passar
ou não por um lugar ou por outro. “Na caminhada [as PSR] afir-
mam-se, lançam suspeita, arriscam-se e transgridem, mudando de
estatuto a cada passo e em repetidas proporções e sucessões” (ID.,
op. cit., p. 179). Assertiva típica das PSR como caminhantes livres é
perambular pela cidade e abrir possibilidades além das dispostas,
apropriando-se do sistema topográfico como modo de realização
espacial do lugar. A busca incessante por um coió é o oposto da ação
de peregrinar pelas ruas. Desta feita, pode se traduzir, essa busca,
em um gesto de ausentar-se rumo ao que não é incerto, ao que não
é desconhecido.
Há variações nas construções de trajetos no centro velho
de Manaus e, dependendo das necessidades, essas variações podem
se diversificar. As pessoas em situação de rua podem ficar restritas

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por algum tempo apenas a espaços de uma travessa, de uma aveni-
da, de um quarteirão ou de um bairro – fato ligado diretamente à
oferta de recursos para suprir necessidades básicas, o que as mantêm
próximas a zonas de conforto e segurança. E até mesmo em nossa
pesquisa de campo, em conversas com interlocutores, constatamos
que as PSR preferem ficar onde se dá a sua familiaridade, fora do
campo de visão e ação de autoridades. Preferem ficar onde podem,
de forma astuciosa, operar práticas de desvio e malandragens. As-
sim, supomos entender de início que trajetos consistem em espaços
transversais de luta dos que vivem neles, posto que ações realizadas
tecem condições determinantes para a vida social nas ruas.
Trajetos, acima de tudo, consistem em lugares de solida-
riedade, onde há o reconhecimento mútuo e os encontros em fun-
ção de condições semelhantes e similares de vida, que de alguma
forma fogem à disciplina formal e a costumes morais. Trajetos co-
muns provocam aproximações por afinidades e pertencimentos ao
longo de seus fluxos, estabelecendo laços de amizade e empatia ri-
gorosamente fora da lei.
Sobre o cenário, DaMatta (1985), por exemplo, sugere que
há menos reflexões sistemáticas sobre teias de amizade e solidarie-
dade para pessoas em ambientes amazônicos urbanos porque não se
tende a constatar, via de regra, que a sociedade brasileira apresente
redes de relações pessoais formalizadas com cunho instrumental
para o bioma florestal nortista. O que é uma pena, porque em nos-
sos levantamentos notamos dignas possibilidades admissíveis de es-
tudos para essa seara sócio-antropológica, podendo haver diferen-
ças significativas e importantes sobre amizade e solidariedade entre
diferentes regiões brasileiras, contrabalanceando a ordem estabele-
cida nas ruas do Sul/Sudeste. E são exatamente essas diferenças que
nos interessam na trilogia Baldios. São elas, em geral, que indicam
características e especificidades segundo graus de pertencimento e
afetividade a indivíduos e grupos de indivíduos no centro velho de
Manaus.
Trajetos investigados na pesquisa envolveram tramas
complexas de perambulação, sem total ou completa ordem definida
previamente. Mas o trabalho ocorreu segundo pressuposições e de-

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safios concernentes a subjetividades territoriais de PSR. E sabíamos
que havia locais permitidos e locais de impedimento, onde andanças
seriam obrigatórias, apesar de perigosamente conflitantes. Todavia,
o fluxo contínuo de gente no centro de Manaus em algum momento
passou a nortear, em razão da conveniência, pontos de fixação das
pessoas em situação de rua. Foi onde pudemos acessá-las e conviver
com elas, principalmente quando buscavam sustento, tais e quais
trabalhadores informais.
Santos (1997) tem interpretação importante acerca do dis-
posto e sobre a força produtiva e seus pontos nodais para os baldios,
enfatizando os instrumentos de trabalho e a massa humana que os
executa. E a partir dele buscamos dispor algumas discussões, en-
fatizando a movimentação, a circulação e a distribuição de huma-
nidades no espaço geográfico. Em princípio, vejamos a questão da
interatividade na urbe.
Em Manaus, há uma interação direta da malha urbana,
ensejando o que é fluxo e o que é fixo, de modo que o fixo depen-
de do fluxo e vice-versa. Foi descrita essa associação correlativa no
Baldios 1. Agora o que buscamos foi investigar redes que compõem
trajetos e, aqui e ali, fazem conexão entre esses pontos fixos e flu-
xos de passagem, apertando ou desatando os focos de atração de
acordo com a amarração entre si. As PSR, como qualquer grupo,
podem se juntar ou repelir, dependendo da relação que buscam ou
estabelecem entre elas, andando muito mais em contra-fluxos que
em bandos ordenados. Estão em constante movimento, rompendo
fronteiras e estabelecendo ligações.
Castells (1999a, 1999b) pontuou na década de 1990 sobre
sociedades de rede, com veios investigativos referentes a sociabili-
dades e convivências corporais. Ele destacou a indissociabilidade
dos canais de comunicação entre indivíduos. No entanto, em nossa
proposta, a partir do vivenciado na capital amazonense, notamos
que existe um tipo de sociabilidade em rede que se alterna conti-
nuamente em razão de intercâmbios de crenças e atitudes, possi-
bilitando a forja de interesses comuns ou díspares com agilidade.
Percebemos igualmente que PSR se agrupam por simetria de pensa-

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mento e ação e moldam seus bandos em busca da convivência para
a sobrevivência. Assim, fluxos e contra-fluxos de trajetos passam a
ser desenhados segundo interações variadas de pessoas e territórios,
oferecendo parâmetros a práticas identitárias de baldios descentra-
dos, mas integrantes de uma sociedade formalizada em si só, sus-
tentada por si só.
Trajetos, então, não se restringem a espaços geográficos.
São territórios afetivos construídos conforme redes de relações mo-
mentâneas, esporádicas ou definitivas entre semelhantes ou asse-
melhados, buscando-se a equidistância em um espaço singular e de
bonança. Desta feita, o que destacamos com ênfase, por hora, é que
há uma potente tendência de os trajetos no centro velho de Manaus
serem realizados mediante a apropriação marginal dos fluxos e con-
tra-fluxos, dado serem territórios orientados por uma sociabilidade
própria.
O centro se entrega a movimentos contraditórios forma-
dos no interior dos discursos de dominação dos poderes político,
econômico e social. São poderes que há muito tempo não conse-
guem controlar e ordenar a vida nas ruas, como pretendem, restan-
do-lhes atos repetitivos de violência. Proliferam-se, assim, ativida-
des baseadas em rusgas e embebidas de falta de eficácia e norte para
o cerne das políticas públicas de Estado. Sem conseguir respeito
do ponto de vista da vigilância e do controle que almejam, perdem
também a moral e a credibilidade porque agem verticalmente, com
obtusidade. Desse instrumentalismo de poder, pululam astúcias ag-
notológicas sem alternativas claras, que apenas recombinam peque-
nos poderes impossíveis de florescer.
A cidade, assim, torna-se menos acolhedora e familiar às
PSR, pois há a inquietude de práticas policialescas e repressoras do
Estado nos espaços coletivos de vivência que são repetidas dia após
dia. No bojo dessas interveniências é que se fez imperioso refle-
tir sobre hábitos, costumes, práticas, materialidades e imaginários
oriundos das ruas. O circular (trajetos), o dormir (descanso), o abri-
gar (refúgio), o alimentar (compra, pedido ou troca por serviços), o
esmolar (pontos específicos), o lazer (beber, conversar, se divertir) e

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o trabalhar (fazer “bicos”, manguear) se configuraram como modus
vivendi urbano das PSR do centro velho em análise. Por isso, agimos
a partir da formação de trajetos e sociabilidades espaciais e afetivas,
inferindo sobre a própria cultura das ruas.
Nesse contexto, foi verificado que na capital amazonense
há indivíduos os quais, apesar de serem essenciais para a dinâmi-
ca citadina em suas localidades de existência, não são reconhecidos
como trabalhadores e por isso perecem no ostracismo. Assim sendo,
apostamos na categoria “trabalho” para manifestar que percepções
sobre transformações socioculturais, adaptabilidades e resistências
frente à dinâmica da cidade e ainda a hostilidades e receptividades
em espaços não formais podem ser oriundas de hábitos e costumes
acumulados em função de experiências laborais realizadas com difi-
culdade. Experiências para sobreviver, diga-se de passagem.
Trabalhar para encontrar locais e horários de distribuição
de comida; para identificar onde tem um cano estourado ou uma
fonte de água para a higiene pessoal; para saber qual o melhor lu-
gar onde passar o dia; para observar a calçada ou o banco onde se
pode dormir com menos perigo. Enfim, o trabalho é entendido aqui
como uma experimentação da vida, como um pressuposto ao for-
talecimento de agrupamentos em zonas de acessibilidade ao longo
de trajetos.
A plena apropriação simbólica de domínios territoriais no
centro velho da capital amazonense, em suma, tende a ser perce-
bida a partir do labor como ação significante, costurada no âmago
do tecido urbano dos baldios, identificado por descontinuidades
marginais e por vezes desconexas. Ao caminhar entre trajetos são
costuradas pequenas e grandes histórias, versões de mundo, com o
estabelecimento de laços e interconexões. Destaque do que indica-
mos está registrado na conversa com a interlocutora Cristiane, de
40 anos, em que ficaram salientados os estigmas e as impregnações
negativas das PSR no contexto do trabalho e da sustentação alimen-
tar.
Ela relatou que já tentou sair várias vezes do “centrão”
velho. De acordo com Cristiane, “não falta é homem pra me tirar
daqui”. Ela, não obstante, explicou o motivo pelo qual não deixa essa

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circunvizinhança, fazendo uma crítica, inclusive, ao machismo as-
somado ao preconceito e à violência.
Sabe por que eu não vou? Porque eu me meti com um gari que
toda vez que brigava comigo ele tomava tudo o que tinha me
dado. Aí ele dizia “que nada, eu te tirei da rua, tu é puta, tu é
isso, aquilo, tu é uma desgraçada e vagabunda”. Sabe como é
que é, né! Aí a mulher vai se revoltando, como eu me revoltei, e
disse para mim: “porra nenhuma, eu vou é voltar pra rua, não
vou ficar sendo humilhada por esse macho ruim, porque eu
nunca fui humilhada nem por minha mãe” (Cristiane, 40 anos,
PSR).

A entrevistada, no caso, falou sobre a problemática do


trabalho informal remunerado a partir de uma relação afetiva in-
terpessoal instável, a qual é afirmada como abusiva segundo as pró-
prias palavras dela. E assim, em sua narrativa, fica patente que a
história de vida nas ruas ganha amplos contornos de desafio quando
ela trata do tema trabalho. Um tema que, por sua vez, é entrelaçado
pela questão dos amores, dos afetos, dos refúgios alimentares e das
remunerações possíveis, como restou notório em sua narrativa.
Ao nos despedirmos de Cristiane para continuar a in-
cursão noturna pela cidade, arregimentando dados sobre trajetos
ligados em rede a partir da Praça da Saudade, ela fez uma adver-
tência, alertando que não nos dirigíssemos para o lado do Mercado
Adolpho Lisboa e da Feira da Banana, na zona portuária. De acordo
com Cristiane, lá só tinha “raul”. Na gíria da rua, de acordo a inter-
locutora, gente do tipo “raul” é ladra ou bandida ou aproveitadora.
São termos semelhantes usados por ela. Outra gíria destacada foi a
“vigária”, que igualmente serve para denominar pessoas larápias ou
usurpadoras.
Ou seja, mais uma vez aqui notamos o sentido do ganhar
ou perder, do lucro ou das dívidas, da compra ou da venda, do êxito
ou do furto, da tranquilidade ou do roubo. “Não vão de noite pra lá,
não. Se vocês forem pra lá agora... xii! [e fez expressão de ‘cara feia’].
Ainda mais assim com celular, os caras tomam de vocês”, alertou
Cristiane, que já tinha percebido nossa gravação com um aparelho
do tipo smartphone. “É um iphone, né?”, inquiriu. E de pronto res-

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pondemos que sim, que iríamos ter cuidado e mudaríamos o cami-
nho. Mas ela retrucou. “Esse telefone não presta pra roubar, não. Ele
te entrega. Tu pode até correr, tu pode tirar a bateria, tu pode fazer
a maior onda. Mas ele bate foto da tua cara. Só que mesmo assim o
pessoal quer pra vender”, completou Cristiane.
Perguntamos se para a Praça da Matriz, outro ponto re-
conhecido do centro velho manauara, poderíamos nos dirigir, ao
que ela rebateu. “Deixa esse negócio de entrevista pra lá, é perigoso,
muita gente mora na rua por aqui e já está tarde. Fica de boa”. Ad-
vertiu pela última vez com o dedo indicador em riste e direcionado
a nós. “Não vai, não! Não são todas as pessoas que conversam, não!
Que você chega e conversa, não! Fica tranquilo por aqui”. Deduzi-
mos, assim, a existência não apenas simbólica, mas real e reconheci-
da pelas PSR, de lugares evitáveis até mesmo para quem reconhece o
terreno. Entendemos ainda que Cristiane sabia de horários, territo-
rialidades e modos de comunicação intergrupos acerca dos trajetos
proibidos ou de domínio e conflito.
O indicativo foi importante porque descortinou dúvidas
que poderiam ainda pairar sobre a organização dos fazeres notur-
nos e dos trabalhos dentro dos trajetos. Com a perspectiva, pude-
mos continuar o campo a partir do composto no ponto integrado
da Praça São Sebastião, onde andamos pelas imediações do Teatro
Amazonas. Depois, descemos a avenida Eduardo Ribeiro e subimos
a avenida Sete de Setembro até a Praça Eliodoro Balbi. Seguindo a
recomendação de Cristiane, descemos a rua Guilherme Moreira. Lá,
havia dezenas de pessoas próximas a uma agência do Banco do Bra-
sil. Passamos a observar a movimentação em ritual de reconheci-
mento, iniciando o jogo de aproximação antropológica ante o outro,
nossa conquista do outro.
Para nós, pesquisadores da trilogia Baldios, conquistar o
outro significa desde sempre agir dentro de um conjunto consti-
tuído de alteridades no intuito de ganhar a confiança e moldar o
momento decisivo do contato nas ruas. Aproximação e interação
são fatores interligados nessa atividade, sendo importante manter o
cerne dos territórios a partir do ethos próprio e inerente à respeita-

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bilidade no que concerne às atividades das pessoas em situação de
rua. Ou seja, é fundamental retirar a atenção de si e transferi-la para
os baldios territorializados em seus diferentes trajetos.
Na abordagem, um grupo que primeiramente nos rece-
beu perguntou se seria possível “arranjar cinquenta reais para uma
colega que estava com o pé doente”. Falamos que não tínhamos o
dinheiro todo e seus membros retrucaram: “arruma pelo menos
dez, então”. Cedemos e começamos a puxar conversa. Sentamos em
papelões distribuídos pelo chão e nos ofereceram comida e bebida.
Ficaram curiosos com a nossa presença, pois ali, de alguma forma,
estava representada uma ruptura na interação entre eles. Havia gen-
te novata. As PSR questionaram sobre nossa origem e o que fazía-
mos. Respondemos às indagações.
Um de nós era nascido no interior do Maranhão [autor
Noélio M.] e outro na periferia de Manaus [coautor Renan A.]. Foi
explicado que fazíamos trabalho de pesquisa sobre as PSR para a
universidade (Ufam) e o instituto tecnológico (Ifam) e daí se iniciou
um tratamento amistoso quase que imediatamente. Ordenaram que
sentássemos nas “cadeiras do escritório” e então deram mais pape-
lões e tomamos melhor assento no círculo da conversa. Pedimos
licença para ligar o gravador de voz do celular e fizeram gestos de
consentimento. Pusemos o instrumento no bolso e o objeto ficou
imperceptível. Depois de alguns minutos todos já haviam esquecido
que estava sendo gravada a conversa. Utilizamos esse modo de ação
para captar a realidade e as nuances das entrevistas. Não nos inte-
ressavam respostas prontas a perguntas formais, mas sim o latente,
o não-dito.
Breno iniciou o bate-papo e depois Adriano complemen-
tou.

Breno: A casa aqui é nossa, não é minha e nem dele. Mas aqui
o cabra tem que respeitar. E cada um aqui é uma história. A
minha mulher ganhou uma casa do Prosamim [Programa So-
cial e Ambiental dos Igarapés de Manaus] pra lá da barreira.
Eu bebo, fumo droga, não vou mentir pra vocês. Maldito do ho-
mem que confia no outro homem. Só que eu sou assim. Bebo
minha cachaça, tenho meus amigos aqui, converso com as me-

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ninas. Tudo gente boa, mas na hora de beber o cara tem que
diferenciar quem bebe, quem não bebe, quem gosta de ficar
brigando. Eu sou um cara jovem, vou fazer 48 anos. Sou de
1970 e dia 7 de dezembro eu intero idade. Paraibano. Nasci lá
e me criei aqui no Amazonas. Eu moro aqui em frente ao Banco
do Brasil [risadas]. Ninguém sabe que venho pra cá. Aqui posso
fazer o que eu quiser (Breno, autônomo).

Breno para Adriano: Ei! Nós aqui somos viajados também.

Breno: Em São Luís eu fui preso, eu passei quatro anos preso lá


no Maranhão, em Pedrinhas. Lá é cadeia pra bandido mesmo.

Adriano: Eu sou filho de Vila Velha [município do Espírito San-


to], ali perto da terra do Roberto Carlos. O segundo porto maior
do Brasil.

Breno: Não vou te mentir, não. Eu moro em Iranduba e venho


todo dia pra cá, pra beber e fumar droga. Pra não dar demons-
tração pra minha família lá. Porque aqui ninguém sabe.

Adriano: A minha mulher pergunta pra mim: “tu mora onde,


meu filho?”, e eu respondo: “eu moro na frente do banco”, e é
verdade mesmo. Só que ela não sabe o que eu faço não (Adria-
no Ramiro de Souza, 63 anos, topógrafo, e Breno, 48 anos, au-
tônomo, 2018).

Adriano: A bebida é a pior droga que tem e é liberada. Qual-


quer um compra fumo também. Até uma criança se você man-
dar “minha filha, vai ali comprar um cigarro”, ela vai lá e com-
pra e eles vendem. A criança compra, sabia? (Adriano Ramiro
de Souza, 63 anos, topógrafo, 2018).

Conhecemos também Sérgio, o “Passarinho”. Poeta, filó-


sofo, intelectual e trabalhava como açougueiro na época, segundo
ele mesmo se apresentou a nós. Nascido em 23/03/1970, tal qual fez
questão de frisar, era um homem de baixa estatura, franzino, muito
magro, entretanto era o mais agitado de todos. Cantava, dançava,
fazia piada de si mesmo, ria de tudo e de todos, com troças longas.
Chegou com a ajuda de um colega, sendo amparado pelos ombros
de outra PSR. Parecia bastante bêbado de início. Mas logo se mos-
trou recuperado e não deu para saber ao certo se foi uma encenação

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ou algo real o que presenciamos.
Passarinho perguntou nossos nomes completos e onde
morávamos de pronto. Depois disse que sabia tudo de carne de boi
e de estrutura de boi. “Conheço todas as partes do boi, sou açou-
gueiro, eu sei de boi, eu sei muito de boi”, ressaltou com ênfase e co-
meçou a descrever tipos variados de carne e suas respectivas partes
nos gados. “Eu sei esquartejar gado, cortar gado e tirar o patinho, a
alcatra, o chã de dentro e a rabada e a costela e os miolos”, afirmou
em meio a gargalhadas e sendo acompanhado no chiste pela outra
PSR que chegou com ele, outrora o ajudando a firmar-se de pé.

Meu nome é Sérgio com S maiúsculo, um grande poeta. Nós


vem pra cá à noite. De dia tu não acha nós aqui, não. Quarta,
quinta e sexta não falta comida aqui. Segunda e terça é só no
‘beiral’ que tem. Lá tem o culto, tem a sopa e lá na feira da Ma-
naus Moderna têm as frutas. Tem segunda, terça e quarta lá na
Vanessa, em frente à penitenciária da Sete de Setembro [antiga
cadeia pública Raimundo Vidal]. Tu tira tua roupa, tu toma teu
banho, tu te lava, ela te dá roupa, ela te dá tudo, te dá almoço e
tu dorme lá. Elas colocam colchão pro cara dormir, deitar, rela-
xar, e ainda elas pregam a palavra de Deus. Tu vai para uma sala
de vídeo. É muito bom. Mas tem cara que ainda rouba as coisas
de lá. Eu tô mentindo? [e apontou em riste para os colegas]. A
gente passa o dia trabalhando e aí quando é de noite tá todo
mundo aqui. Aí um vai curtir as ondas dele e quando acaba a
droga ele vem pra cá, beber com nós. E bebe, mas também nós
fala pra ele assim: “tu passa o dia trabalhando, tu fuma o quê?”,
e ele diz, “ah, eu fumei um bagulho”, e daí nós dizemos, então:
“e por que tu não trouxe pelo menos uma cachaça, um corote
pra cá, pra curtir, destravar?” [e fez um olhar de reprovação ao
dizer isso]. Mas eu digo: “se tu quer beber, bebe, aí” (Sérgio,
PSR, 49 anos, poeta, filósofo e açougueiro, 2018).

E assim caminharam alguns dos diálogos na noite. Muito


mais entre eles, enquanto ficamos como expectadores e ouvintes.
Foram discussões longas, com gargalhadas, xingamentos, trocas en-
volvendo cigarro, cachaça e comida. Observamos atentos. Fizemos
somente poucas perguntas livres, sem roteiro rígido, para somar na
conversa. Breno e Adriano se revezavam para responder ao mesmo
tempo, causando alguma dificuldade na gravação. Houve momen-

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tos de descontração e foi perceptível que até fomos supostamente
aceitos como visitantes daquele grupo, quando falaram:
Ei, eu gostei de vocês, caras. Gostei. Vocês pararam, sentaram
aqui com nós e estão ouvindo a verdade das nossas vidas. Não
é todo mundo que faz isso, não. Aqui vocês podem ficar à von-
tade. Tranquilos. Ninguém vai mexer com vocês aqui. Na hora
em que vocês quiserem ir embora eu levo pra onde vocês qui-
serem ir (Breno, PSR).

Percebemos mais uma vez a existência de pontos de encon-


tro comuns que têm como função imediata vencer o desafio do físico,
ou seja, comer. Todavia existe, além disso, outra recorrência na fala de
Breno, igualmente como fez nosso outro interlocutor (Jackson), sen-
do que este já havia relatado as benesses ofertadas por instituições
religiosas e filantrópicas em geral nas ruas. Daí que, para além da
busca pelo bem-estar físico, no trajeto da rua Guilherme Moreira e
suas imediações, no centro de Manaus, há grande concentração de
usuários de psicotrópicos e álcool, além da prostituição. Sobre esse
consumo, reportamo-nos também acerca de ações propiciadas em
territórios de heterotopias, que são exatamente os pontos essenciais
dos trajetos noturnos. Vimos essas práticas não pelo lado policiales-
co da punição ou do encarceramento, como ação culpabilizante ou
repressiva, mas sim pelo viés da reflexão sobre os encontros furtivos
e os lazeres psicoativos comunais que se formam na cidade em meio
ao cenário de uso de bebidas e fumo, combustíveis da ilusão em
termos lato.
Breno, nosso interlocutor, resumiu em uma frase sua vida
nas ruas, segundo ele mesmo assim quis destacar. “Para mim basta
essa vida que a gente vive aqui, que é a bebida e a droga. Mas sei
que é uma vida de mentira” (Breno, PSR). Depois dele falar, Passa-
rinho pediu dinheiro para todos no intuito de comprar mais “goró”
(aguardente) e, como nós estávamos na roda de conversa, também
cooperamos. Brigaram para decidir quem iria comprar a bebida,
pois havia desconfiança em deixar uma ou outra pessoa sair sozinha
com o dinheiro. Por fim, houve consenso na escolha e dois deles se
retiraram com o valor nos bolsos para conseguir três corotes. Qua-

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se em sequência, barulhos de automóveis ecoaram alto e ao longe.
Ficamos impressionados com a quantidade de carros que chegaram
com alimentos. Donativos passaram a ser distribuídos aos baldios.
Para nossa integração ao grupo, entramos na fila para
pegar mingau na primeira caravana e depois comida e refrigeran-
te junto ao segundo grupo de voluntários que apareceu. Com um
traje não muito diferente das PSR, pudemos ser integrados por um
momento a elas também na fila da alimentação. Um de nós ves-
tia bermuda marrom meio surrada, camiseta de bloco de carnaval
estampada, chinelo e apresentava barba malfeita. Outro estava de
calça jeans desbotada e camiseta e sandália. Dessa forma, os volun-
tários não desconfiaram que estávamos apenas como convidados do
grupo ali em frente ao banco. Assim, pudemos interagir. Nessa noi-
te, foram quatro caravanas de mantimentos: mingau, bolo, refeição
completa, refrigerante, suco, água e sopa.
“Aqui é a noite todinha. Não falta comida. Aqui é a área
da comida”, disse Breno. Também encontramos na ocasião pessoas
que já haviam falado conosco em outros momentos, como Jackson
(mecânico desempregado, PSR, cf. Baldios 1) que tempos atrás ti-
nha concedido entrevista. Ele estava um tanto mais abatido e magro.
Lembrou-se da nossa última conversa, dizendo com pesar: “naquela
vez eu disse que ia mudar de vida pra vocês, né, mas não consegui,
continuo aqui, me desculpem”. Destacou que havia sofrido muito
porque pegou uma facada e quase veio a óbito, queixando-se dos
colegas presentes na roda de conversa e dizendo que ninguém cui-
dou dele naquela época difícil. E assim, dentre conversas e comidas,
finalizamos a noite. Quando nos despedíamos do grupo já passava
da 1h e novamente Breno falou: “[...] a hora que vocês quiserem ir,
podem ficar à vontade. Já passaram a noite quase toda com nós”.

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Fig. 1: Selfie consentido pelas PSR no “Escritório”. Rua Guilherme
Moreira, Centro de Manaus. Fonte: Os autores.

As PSR relataram que ninguém amanhece na rua Guilher-


me Moreira porque quando o relógio marca às 3h30, no máximo, os
garis fazem a limpeza do local. Nesse horário, alguns baldios já se
encaminham para a “batalha” na área do porto. Perguntamos onde
eles ficam durante o dia e responderam que no período do sol a pino
trabalham fazendo carreto, vigiando carro, descarregando contêi-
ner, limpando cebola, revisando tomate e montando o sacolão, entre
demais ocupações. Eles ressaltaram que só a partir das 19h ou 20h
se reúnem na Guilherme Moreira, pois este é o horário em que as lo-
jas estão fechando. A apropriação temporária dos espaços públicos
e privados funciona, então, nos horários de pouco ou nenhum mo-
vimento no centro da cidade.
Por conseguinte, o trajeto em relevo exemplifica de ma-
neira clara uma medida a partir da qual as PSR podem estabelecer
melhor seus contra-usos de espaços públicos, reduzindo, amplian-
do ou reordenando lógicas interativas a partir de suas apropriações.
Leite (2002) vai chamar esse sistema de percurso de “trajetória tá-
tica”. Ou seja, trata-se de uma caminhada por lugares que não lhes
são próprios, mas podem ser assumidos e, com isso, subvertem-se
os sentidos usuais desses espaços. Assim, o conceito de trajeto ten-

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de a englobar noções enviesadas nesse elo interpessoal. Elo, nesse
âmbito, arranjado a partir de uma afetividade entre pessoas e am-
bientes, gerando relativo bem-estar ou, de outro modo, certa fobia
(topofobia), sendo um espaço de prazer ou de medo (TUAN, 2012).
A expressão “lugar-mundo-vivido”, analisada pela feno-
menologia, tem levado a estudos sobre relações afetivas estabeleci-
das em determinados espaços (ID., op. cit.). Todo o conhecimento
adquirido, porquanto, no âmbito dos trajetos, advém de experiên-
cias sociais construídas nos ambientes onde vivemos. Exemplos de
trajetos, ressaltamos, são pontos de pernoite no centro, são coiós
percorridos entre ruas, vielas, becos e alamedas, que conformam e
marcam conjuntos de localidades os quais, unidos, cristalizam re-
des sentimentais de integração nas ruas. De modo que os trajetos
representam cadeias de localidades interligadas, ambientações que
se movem e reestruturam ao sabor de digressões das PSR. Por onde
se perfaz um trajeto, se molda um lugar; por onde um baldio se
fixa dentro da rede, ali se marca uma localidade. E assim seguem
as pessoas em situação de rua, até o instante em que vários pontos
estruturam toda uma cadeia lógica de sensações, pertencimentos e
domínios.
Estar na rua é pressuposto para se fazer parte de trajetos
que envolvem várias características. Ter trajetos regulares, saber de
peculiaridades de cada local, conhecer horários e dias propícios a
ganhos, estar atualizado com acontecimentos da sua área, estabele-
cer zonas de conforto e pousio, formar redes de relações e construir
simbolicamente um lugar no mundo vivido são atos de sobrevivên-
cia. Considerando isso, pensar em trajetos de rua no centro velho
de Manaus neste estudo foi atividade de reflexão sobre narrativas a
partir das quais se estabelecem afinidades e atitudes. Pessoas mais
chegadas são as credenciadas a participarem de um mesmo trajeto
montado em função do estabelecimento de espaços de sociabilidade
de semelhante ordem, com laços que marcam proximidades.
Magnani (2003), a nosso ver, parece sugerir uma conota-
ção para redes de relações criadas segundo paisagens semelhantes.
O autor supõe que um trajeto maior pode conter trajetos menores

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ou subtrajetos que concorrem para dentro ou fora da grande rede,
mas sempre em consonância ao ambiente. O suposto significa que
andanças das PSR podem abranger dimensões marcadas por alter-
nâncias de presença ou ausência nos coiós, todavia pautadas por
sincronismos de interesse comunitário. Então pensamos que o es-
tabelecimento de andanças esporádicas e irregulares nos trajetos do
centro talvez seria, por assim dizer, uma forma de demarcar territó-
rios e estabelecer dessa maneira domínios psicofísicos.
Essas caracterizações apresentam lógicas próprias, diver-
sificando-se ou reproduzindo-se dentro de espaços simbólicos que
guardam significados intrínsecos para as PSR. E ainda. Trajetos em
geral são marcados pelo estabelecimento de regularidades e trocas
que forçam o pertencimento dentro de cada caminho e em si mes-
mo. E tentar ser visto e percebido com regularidade em um local
significa também tentar estabelecer uma cartela de relações estáveis
para si, almejando de alguma forma a costura do pertencimento em
ambientes transitados, dando aspecto integrador dentro da exten-
são vivida (LEFEBVRE, 2001; CARLOS, 2001).
Relacionado ao destaque, Monteiro (2011) caracteriza o
andar ou o perambular como a atividade mais importante das pes-
soas em situação de rua. Para a autora, baldios não passam tempo
demais fixos em um mesmo lugar porque, em geral, são impelidos a
exercitar a capacidade psicomotora e aperfeiçoar trajetos itinerantes
cotidianamente. A mobilidade é gerada por dissidências, uniões, re-
conformações e disputas interpessoais. É uma necessidade. Acerca
do observado, nos estudos de Hall (1986) uma das preocupações é
tomar a contento como cada ser humano percebe e se apropria de
seu espaço de domínio, partilhando-o de várias maneiras.
Assim, questionamos. Qual espaço nos aproxima e qual
nos repele nas relações humanas? Uma resposta possível está no tí-
tulo do livro A dimensão oculta. Ela, essa dimensão, tem a capacida-
de de tornar possíveis os afetos e as relações humanas. O autor usa o
termo proxémia3 para descrever observações, teorias e associações
3 Proxémia - Conjunto de observações e teorias referentes ao uso que se faz do espaço enquanto
produto cultural. Pode ser dividida em três níveis, o infracultural (comportamento enraizado no pas-
sado biológico), o pré-cultural (fisiológico/pertence ao presente) e microcultural (onde se situam a
maioria das observações proxémicas). Conferir em HALL, Edward T. - A Dimensão Oculta. Lisboa:
Relógio D’Água, 1986.

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no emprego dos espaços por pessoas em situação de rua. Ele ressal-
ta ainda distâncias inespecíficas entre humanidades e logradouros,
advertindo para divisões segundo as proximidades, ou seja, os locais
íntimos ou públicos.
Vejamos o exemplo a seguir.
Caso a ser citado é o do senhor Benedito4, que estabe-
leceu como território existencial e ambiente de morada os corre-
dores das paradas de ônibus da Praça da Matriz, ao lado do porto
fluvial do centro de Manaus. Lá, conheceu pessoas e tornou-se re-
conhecido por seus pares. Um contínuo perambular exploratório
pelas redondezas revelou a ele a criação de um cotidiano próprio
enquanto personagem social, a propiciar condições de encontrar no
público elementos familiares e concernentes a sua esfera privada.
No perambular por entre plataformas de ônibus, calçadas de lojas,
praças e feiras conseguiu manter relações cidadãs, tecer amizades e
coleguismos que lhe aproximaram de dinâmicas como participante
ativo do cotidiano das pessoas que estão de passagem ou trabalham
pelo centro.
Seu aspecto até pode causar medo ou repulsa. É demasia-
do magro e desgrenhado, barbudo e anda com dificuldade por conta
de enfermidades no pé e na perna. Mas ele existe e se reconhece
enquanto homem. Benedito constituiu seus afetos territoriais nas
cercanias da Igreja da Matriz, no entorno do porto, fazendo ponto
mesmo em bancos de paradas de ônibus dali, onde, com seu pape-
lão, monta cama e descansa. Aproxima-se, logo cedo, de bancas de
café da manhã. Geralmente nem precisa pedir. Fica por perto até
o/a dono/a dar-lhe algo de comer. Acompanha a chegada de cada
vendedor ambulante que se instala nas plataformas com seus uten-
sílios de trabalho. Dialoga com quase todos por nome ou apelido, ou
mesmo sabe quem são de vista.
Senta por perto e ouve as primeiras notícias por rádios ou
TVs instaladas nas bancas de bombons e cigarro e ganha mais uns
goles de café preto. Escuta e faz comentários sobre futebol, violência
e política, antes de continuar suas andanças. Benedito dorme e acor-
da com o movimento da cidade. Observa e é observado, travando
4 Os nomes serão modificados para preservar a identidade dos interlocutores.

- 38 -
relações com transeuntes. Essa pessoa que se recusa a ficar nos cen-
tros de acolhimento público, preferindo as ruas, assim age porque
é nelas onde encontra um lugar social e de acolhimento, podendo
usufruir de certo grau de pertença. Por causa desse trajeto rotineiro,
onde está constantemente, já é avizinhado como integrante da pai-
sagem urbana, sendo cumprimentado por frequentadores e comer-
ciantes da área. Benedito possui seu trajeto de domínio.
Benedito, baldio, caminhante e errante. Um homem cujos
trajetos que traça se formam e se mostram ligados à inserção das
PSR em grupos territoriais que tendem a agregar laços relacionais,
sobretudo para a autoproteção e a partilha. Esses grupos projetam
a ideia de familiaridade a seus membros, transmitindo, de alguma
forma, sentimentos de segurança que tendem a se aproximar da
proteção que se possui em um lar, sem, contudo, corroborar com
aspectos moralizantes e normativos – o que é normal e aceito em
centros de acolhimento público. Assim como se dá no caso de Be-
nedito, a concentração de pessoas em um trajeto pode ser maior ou
menor na medida da manutenção da unidade grupal daquele mi-
crocosmo, a qual se fortifica pela circulação de seres e coisas e pelo
repartimento de comidas e bebidas em reciprocidade.
Quanto maiores são a circulação e a troca, mais notamos
um trajeto robusto e multivariado. São especialmente nos trajetos
onde se estruturam vivências sociais que seus membros, voluntá-
ria ou involuntariamente, constituem-se em uma comunidade re-
presentativa e estreita em seus laços. Práticas que se desenvolvem
nesses trajetos ressignificam a existência na rua, dado que conferem
grau de pertencimento de grupos heterogêneos ao espaço público,
bem como a frequentadores desse espaço (LEFEBVRE, 2001; SAN-
TOS, 1988). Nesses trajetos, PSR encaram todos os dias rejeições,
fazendo ligação direta com o estigma das obrigações que o mundo
globalizado impõe.
Amizade, lazer, alimentação, sexo, bebida, jogos, higiene,
segurança, ganhos, perdas e roubos são unidades de ações confor-
madas em conjuntos de hábitos exercitados ao longo dos trajetos.
Fazem parte da experiência contida na esfera da vivência nas ruas.

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São elementos formadores e transformadores da vida, abrangendo
conflitos e negociações. Entretanto, de alguma forma e em algum
momento no trânsito dos trajetos, PSR se deparam com experi-
mentações que fogem à sua vontade particular, marcadamente as-
sinalada por um tipo de exploração e dominação verticalizante da
sociedade capitalista. A partir dessas experimentações, conseguem
admitir o perímetro físico e psíquico que lhes cabe, assumindo para
si e para outrem os recortes da dimensão da cidade.
Só que, para os baldios do centro, existem estigmas cal-
cados em esquemas mentais que reproduzem mazelas oriundas da
força avassaladora do capital, uma força contraditória a minar pes-
soas com mecanismos de culpabilização e a funcionar como ações
de legitimação ideológica (GUARESCHI, 1996, 1999). Os trajetos
constituem o próprio universo relacional de pessoas marginali-
zadas e economicamente excluídas como forma de experienciar
a cidade. Os distintos campos territoriais são mediados entre si e
formam espaços com dinâmicas próprias. São em suma microcos-
mos. Entendemos esses microcosmos como trajetos em constantes
movimentos, aonde pessoas vão se aproximando e se reconhecendo.
Há constantes embates, divergências, articulações e domínios. Há
campos de forças e de lutas que pretendem conservar ou alterar o
presente. Há jogos de resistência e enfrentamento, mas também há
certos equilíbrios (BOURDIEU, 2004).
Tentando compreender as PSR, suas narrativas nos levam
a crer que viver nas ruas constitui-se em um grande aprendizado.
As ruas jamais dão aquilo que prometem e a fuga esperada para a
liberdade nelas encontrada pode guardar riscos de lesões e ainda
autolesões (adoecimentos, crimes e suicídios), além de uma dura
realidade imposta segundo o vazio e o medo. Ao praticar a cidade,
o silêncio e a solidão ecoam nas ruas. É preciso navegar dentro dos
próprios dramas e das próprias esferas de sofrimento para encontrar
o melhor e o pior de si. As ruas têm regras, muitas delas insuportá-
veis, assim como os trajetos escolhidos para se seguir.

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CAPÍTULO II

Trajetos: os caminhos afetivos na


cidade antiga
2.1 A trilha mais longa
A proposta do tópico foi explorar e descrever trajetos lon-
gos localizados no centro velho da cidade de Manaus a partir de
imagem referenciada por croqui, mediante a qual destacamos quan-
titativamente e qualitativamente conjuntos de pontos que formam
tais caminhos específicos. A partir da delimitação, em que foram
assinaladas inicialmente três orientações específicas e uma orienta-
ção secundária, detivemo-nos em sublinhar inferências, por classes
de sentidos, que as caracterizassem. Arriscamos empreender uma
cartografia sentimental para tentar avaliar melhor a mobilidade no
espaço estudado.
Importou salientar que o recorte se deu de modo analíti-
co, mediado por um mapa do tipo croqui para o grande trajeto no
centro antigo, na tentativa de visualizar uma parte congruente de
Manaus. Vários entremeados urbanos inclusive se sobrepuseram,
completaram-se na geografia das localidades. Por fim, houve a ne-
cessidade de serem delimitados em resumo três trajetos principais.
O primeiro, o “grande trajeto”, que tratamos neste capí-
tulo; o segundo, o “médio trajeto”, e o terceiro, o “pequeno trajeto”,
ambos salientados nos capítulos que seguem – sendo este último
composto por múltiplos espaços interligados ou microtrajetos in-
terligados em rede, conectados por simbiose, relacionados segundo
trocas experienciais das pessoas em situação de rua que os ocupam.

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Fig. 2: O grande trajeto na cor verde sublinha a área de perambulação das PSR no Centro
de Manaus

O primeiro croqui apresentado faz referência ao “grande


trajeto”. Foi delimitado o começo do grande trajeto a partir da cabe-
ceira do Terminal de Integração (T1), entre a avenida Constantino
Nery e as ruas Leonardo Malcher e Luís Antony. Embora o grande
trajeto possa se estender mais além, por exemplo, até o Boulevard
Álvaro Maia, onde existe um viaduto (passagem de nível) e um ce-
mitério, o São João Batista, há locais escolhidos notadamente pelas
PSR para se abrigarem nas territorialidades definidas visualmente
no croqui. A confluência dessas duas avenidas (C. Nery e B. Álvaro
Maia) agrega concentrações de baldios, principalmente no final da
tarde. Por lá, passam pessoas que vão para a Igreja Nossa Senhora de
Aparecida e imediações. Há a presença constante de baldios nessas
redondezas também por causa do movimento rotativo no terminal
de ônibus de integração (T1), exatamente no caminho da igreja e
do mercado municipal senador Cunha Mello (também na avenida
C. Nery), entrecortado por um famoso hotel de trânsito no centro
(Hotel Mônaco), bem como por um supermercado popular e por
bancas de churrasquinho envolta dele (churrasquinho-de-gato).
No ponto, é um ótimo local de comércio, de alimentação
e diversão. Por isso, a escolha em se delimitar o grande trajeto. Pe-
las trocas e transações. Ela ocorreu em razão de notarmos também

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a abrangência das principais ruas e avenidas por onde geralmente
circulam as PSR, representando o mapa de quase todo o centro an-
tigo de Manaus e suas imediações. Para abarcar especificidades, foi
necessário trabalhar a ideia de estruturas do urbano, a fim de reque-
rermos visão para além da vertente física e objetificada do campo.
O que se pronunciam são fundamentos coletivos operados segun-
do representações mentais de pessoas que, por causa do isolamento
ante a sociedade formal, encontram-se relegadas a outros planos,
supostamente menos dignos, supostamente menos humanos no que
se refere ao uso de espaços afetivos.
Os trajetos configuram não apenas caminhos materiais de
apego a lugares e objetos, no sentido da obtenção de ganhos, mas
também fazem parte de realidades diretamente ligadas ao sensível.
Não podemos desvirtuar essa característica importante, que é o sen-
timento, pois se estaria coisificando indivíduos que vivem no centro
em um nível de meras mobílias urbanas. Orientados por esse prin-
cípio, vimos ao longo do grande trajeto entrecruzamentos objetivos
e espirituais, interligados em função de substratos e rumos tomados
por pessoas. E justamente no decorrer das direções que moldam o
grande trajeto há praças, casas abandonadas, terrenos e lixarais, mo-
numentos públicos e áreas privadas que podem servir para descanso
momentâneo e estadia por tempos.
Sobre esse descanso, vale sublinhar que, a cada ano, o
número da população moradora do centro da cidade, os residen-
tes locais, melhor sublinhando, decresce devido à reconstrução de
espaços de moradia gourmet e por conta da pavimentação de no-
vas formas de comunidades atrativas, como condomínios fechados
e parqueados, com suas estruturas de lazer e segurança. Com isso,
áreas de pousio e coió ficam mais e mais escassas.
A região do centro que abarca o grande trajeto, outrora
configurada como ícone de luxo e progresso da Época da Borra-
cha, com casarões e palacetes imponentes a espelhar o áureo do
passado, no presente mostra-se segundo outras lógicas, muito me-
nos glamorosas e, sobretudo para nós, baseadas na sobreposição de
espaços comunais, afetivos e até conflituosos, dentro de outros lu-

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gares ilógicos, diferentes dos que as PSR vivem e vivenciam desde
sempre. Estamos falando da heterotopologia5, já tratada no Baldios
1 (FOUCAULT, 2003b), que identifica tais espaços místicos como
coiós, onde existe a contestação da vida, similar ao que ocorre no
âmbito das heterotopias, as quais são formas variadas de enxergar
um território.
Assim sendo, temos que o grande trajeto, para nós, pode
conter essas variações sobrepostas de grupos, culturas e práticas. O
termo heterotopia foi destacado no volume anterior da trilogia por
ser concernente à ideia de que espaços podem se opor ou comple-
mentar, compondo dialéticas de domínio ou apropriação (LEFEB-
VRE, 2001). Sobre o grande trajeto, como se apresenta integrado a
outros caminhos menos densos, articulando ambientes em comum,
reflete e é refletido por demais territorialidades, sendo difícil disso-
ciar o todo das partes que o integram. O grande trajeto funciona em
conexão direta, como o corpo humano e seus órgãos vitais. Embora
interligado, cada membro do corpo constitui seus sistemas próprios,
que jamais deixam de se conectarem com o todo.
A rede capilar do grande trajeto se configura, assim, en-
quanto leque multifocal de apropriação em todos os âmbitos de ter-
ritórios e passa a constituir uma espacialidade maior, ligada a ritmos,
temporalidades, hegemonias, relações superpostas, contratuais e de
mudança. Ou seja, é uma territorialidade não somente objetiva, mas
de relação prático-sensível e identitária (SAQUET, 2007, 2011).
O grande trajeto oferece oportunidades de ganho porque
tem mais movimento de transeuntes, dispostos a receber gratuita-
mente, trocar, furtar, manguear, barganhar, vender ou comprar coi-
sas. Dependendo da contingência situacional de estranhos ou da
criatividade para a realização de negócios informais (os “bicos”),
baldios podem conseguir com menos dificuldade alimentação ou
dinheiro no grande trajeto. Nele, a despeito de diferentes tipologias
de atividades laborais, o ato de pedir ou manguear é o principal
meio para se manter em sobrevivência. Nos territórios do grande
trajeto, a configuração do dominial e da posse é mensurada pela
5 A heterotopologia estuda tópicos de heterotopia. Portanto, são interpretações imbricadas e cor-
relatas.

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maneira como as PSR se apropriam de ruas, becos, calçamentos,
vielas, esquinas etc. E ainda, pela maneira como conferem e distri-
buem poder sobre o trajeto.
Espaço de poder é também espaço de disputa, competi-
ção, cooperação ou embate no grande trajeto. Nas ruas dele desafios
a enfrentar existem a partir do instante em que não se sabe qual será
a próxima refeição ou o local seguinte a ser escolhido para pousio.
Desafio maior é manter-se lúcido e atento às intempéries. Não há
zona de conforto, senão os coiós, principalmente para os raros indi-
víduos não errantes, de base fixa, nos trâmites do grande trajeto, este
sendo composto de tronco comum de caminhada dentro de outras
vertentes. Assim, temos que quem está associado ao grande projeto,
por lógica, também pertence a um dos outros dois trajetos (o médio
ou o pequeno). No entanto, há de se destacar que, ao se entrecru-
zarem, as PSR do grande trajeto se repelem ou aglutinam dentro de
uma dialética própria da leitura de território.
Ao ser o grande trajeto consolidado em razão de uma
apropriação física e comum de marginais, baldios ou invisíveis, os
quais buscam decompor no espaço da cidade seus templos de con-
vivência e poder, subjetividade e formação de identidade parecem
nesses caminhos representarem esferas essenciais de leitura e inter-
pretação. Assim o grande trajeto subsiste. Por entre o tecido urbano
de territórios congêneres, como um campo de atuação, movendo-se
e decompondo-se de tempos em tempos. Nele, não há pressa para
quem possui todo o tempo do mundo. É um trajeto a ser percorrido
a qualquer instante e lugar no centro velho da cidade.
Não há definição de horários para ida e vinda, seja mar-
cando o início ou o fim de uma caminhada. Estar nas ruas, dentro
dele, é ter muito tempo livre para percorrer a metrópole (CARLOS,
2001). Esta autora, vale ressaltar, sugere que o tempo por nós citado
é onde se dá a “reprodução de relações materializadas e apropria-
das para um fim, a vida, no plano do cotidiano, constituindo-se em
lugar produzido para esta finalidade” (op. cit., p. 41). Desse modo,
o grande trajeto está ligado à dinâmica existencial das PSR do cen-
tro de Manaus porque as condiciona em suas vivências materiais e

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imateriais, em suas relações estabelecidas ao longo das caminhadas
e ainda nos pontos onde territórios constituem suas identidades de
habitante-lugar (IB., op. cit.), a se interpelarem de modo ininter-
rupto.
A autora compreende a criação incessante de uma trama
de relações em função de uma trama de lugares, onde se arrumam
redes articuladas que podem ser ordenadas segundo práticas so-
cioespaciais auto-geridas. Portanto, demais trajetos componentes
do grande trajeto são como motores que cimentam relações comu-
nitárias em um nível geral.
Na mesma direção interpretativa, supomos que o trajeto
maior é o sumo da constituição socioespacial das territorialidades
vividas pelas PSR. Territorialidades que se constituem conforme
habitações e reflexões sobre a relação pessoa-ambiente. Utilizando
a perspectiva, o espaço pode ser encarado como um locus da expe-
riência humana no mundo que as cerca, visto que as referências dos
baldios advêm dos próprios trajetos realizados (TUAN, 2012). O
que tentamos esclarecer é a notável tendência a uma relação cíclica
na interação pessoa-ambiente, almejando-se perceber até que ponto
o grande trajeto funciona como centralizador de caminhos.
As PSR que transitam pelo grande trajeto sabem que às
17h30 vendedores de churrasquinho-de-gato começam a assar a
carne no espeto. Que às 18h30 começa a missa na igreja Nossa Se-
nhora de Aparecida e que às 22h a ronda policial se torna ostensiva
e violenta. Portanto, é estratégico estar sempre nos locais certos e
nas horas propícias, porque o cotidiano conecta-se às dinâmicas do
grande trajeto e algumas dessas dinâmicas são incorporadas no que
segue.
Descendo a rua Luiz Antony, nas imediações do Colégio
Militar de Manaus e na rua Epaminondas, são notados corredores
de ônibus, aglomerações de pessoas, lanchonetes, camelôs e ambu-
lantes, além de bares e lojas. Tudo é de interesse para se manguear,
flanar, furtar, beber e jogar. São espaços passíveis a usos e apro-
priações. Descendo um pouco mais pela Luiz Antony temos a rua
Governador Vitório, esquina com a rua Bernardo Ramos e a Praça

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Pedro II, onde está o prédio da antiga Prefeitura, que hoje funciona
como museu. A praça é arborizada, composta por jardins, bancos de
madeira e um coreto, onde se conserva a arquitetura de outra época.
É um lugar um pouco mais tranquilo em relação às outras partes do
grande trajeto.
Na Praça Pedro II convivem adictos, traficantes, prostitu-
tas, michês, alcoólatras, “aviões” (passadores de droga), guardado-
res de carro e demais transeuntes frequentadores da localidade. Ali
funciona um fundamental ponto de incidência de trajetos. Muito
tranquila, a praça atrai frequentadores interessados em sexo, drogas
e algum descanso. É zona de baixio, ponto tradicional de inferni-
nhos e programas baratos. No intervalo de um programa e outro,
podemos observar profissionais do prazer fazendo manicure e pe-
dicure, dentro de um contexto de disfarce conveniente e em código
próprio de conduta. Ao redor da praça, há bares que funcionam dia
e noite. O logradouro, a Pedro II, tem o singelo apelido de “praça do
pau-mole”.
No local, encontra-se o antigo prédio do INSS. Imponen-
te, atrai usuários que trafegam em busca de serviços sociais em ge-
ral, proporcionando clientes para guardadores e lavadores de carro,
bancas de jornal e bombons, além de botecos etc. Na esquina da rua
Governador Vitorino com a avenida Sete de Setembro, em frente ao
INSS, estão vários bares e restaurantes de comida a preço popular.
Um dos mais famosos é o Mangueirão, nome assim atribuído por-
que fica entre duas enormes e frondosas mangueiras. Nesses locais,
há mesas de sinuca, comida em PF (prato feito) e bebidas de várias
marcas a preços baratos. Os frequentadores são na maioria oriundos
da Praça Pedro II.
Consideramos essa praça e seu entorno como local de
pousio posto que é possível notar várias estruturas que possibilitam
abrigo momentâneo e descanso. O coreto funciona principalmente
à noite, como ponto de sossego (coió), assim como as imediações,
onde estão marquises da antiga prefeitura, casas abandonadas e o
histórico museu do porto.

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Fig. 3: Paço da liberdade (Praça Pedro II), centro velho de Manaus.
Google Earth/Maps. Fonte da coleta: Os autores.

Ao se cruzarem nesse entroncamento, os três trajetos se


articulam não apenas pelo uso comum do espaço, mas também ga-
nham potencialmente significado real para a vida das PSR que cami-
nham imbricadas nas diferentes trajetórias. O próprio ato de transi-
tar, dentro de uma gramática de andança efetivada, é por si mesmo
corpóreo e físico, mas ao mesmo tempo mental e imaginativo. Desse
modo, promove contato com lugares que dizem respeito a cotidia-
nos habituais, conhecidos das pessoas em situação de rua porque
dão sentido à vida que levam. O grande trajeto, em tal âmbito, pode
representar um mundo particular dentro de um mundo coletivo do
centro velho, correspondendo em verdade a um universo individual
onde existem somente as PSR e não exatamente outras pessoas.
As possibilidades de ganho das PSR que caminham pelo
grande trajeto estão direcionadas à apreensão de atos múltiplos.
Tornando-se espaços afetivos para práticas diversas cotidianas de
sobrevivência, onde elas conseguem se deslocar e realizar afazeres
habituais, estabelecendo-se uma identidade pessoa-lugar e pessoa-
-pessoa. Percebemos nessa estreita ligação do território com a expe-
riência do vivido um conjunto de relações humanas que subsiste em
plano comum, para conferir aos baldios particularidades especia-
líssimas em experiências sensoriais e motoras. Por aproximação, há
uma transposição do geral para o particular quando partimos para

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a conceituação de território pelos vieses subjetivo e cotidiano. Então
as ruas, como lugares de sensibilidade, tendem a projetar laços de
familiaridade, promovendo-se, grosso modo, em lares.
Para além do exposto, o espaço sentimental constitui re-
lação íntima da pessoa com o ambiente onde vive. Ou seja, indiví-
duos se apegam ao ambiente e criam experiências de introspecção,
difíceis de expressar, mas importantíssimas, coexistindo e compar-
tilhando amplos significados do lugar onde estão. A esse respeito, os
termos topofilia e topofobia, respectivamente, de alguma forma su-
gerem tipos de sentimentos positivos ou negativos sobre ambientes,
apontando conflitos e vivências inerentes, formativos de territoriali-
dades (TUAN, 2012; SANTOS, 1998, 2012). Entendemos em nossas
andanças pelo centro que são as pessoas que erigem os territórios,
por vezes a partir de coiós pequenos e vulneráveis, refazendo signi-
ficados em seus mundos reservados, como abrigos construídos im-
provisadamente. Podemos até considerar os logradouros públicos
como banais, mas as PSR que os vivenciam assumem marcas afe-
tivas e estabelecem laços sentimentais, de pertencimento, clivados
por relações de domínio (HAESBAERT, 2004; SOJA, 1993).
Vale a pena analisar a multiterritorialidade que Haesbaert
defende. Territórios são multidimensionais e a análise destacada
sugere esse indicativo. Os territórios dos coiós parecem ser cons-
tantemente refeitos e raras vezes são fixos. Tanto não permanecem
estáticos que dão a impressão de uma fluidez intermitente, a qual
requer reconstrução constante de estratégias, afeições e cordialida-
des (para se ganhar esmolas, por exemplo). Flexibilidade, fluidez e
mobilidades constantes são condições inerentes para que múltiplos
territórios possam ser revisitados, abandonados ou reconstruídos.
Mas os coiós sempre estarão na malha do grande circuito. O grande
circuito é o plano urbano da ação. E lugares convidativos e menos
ríspidos aos domínios das PSR sinalizam topofilias, onde exatamen-
te os baldios se sentem melhor.
Realizando um deslocamento de orientação maior, por
entre as ruas Monteiro de Souza, Visconde de Mauá e Gov. Vitório,
além da travessa Vivaldo Lima e das ruas Taqueirinha e Tamandaré,

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existem sinalizações de lazer. Há boates, tabernas e, nas imediações,
de forma articulada, pousadas de curta duração (motéis) onde são
consumados programas de michês e prostitutas da área. As ativida-
des se intensificam à noite. Estivadores, tripulantes de barcos anco-
rados nos portos próximos, vendedores ambulantes, jogadores de
dama, carteado, carregadores e flanelinhas, entre demais, concen-
tram-se em busca de diversão. Casas de show badaladas são o bar
do Gilberto, o Aquarela’s bar e o Natureza Show Club. Quando há
apresentação de strip-tease ou música ao vivo é cobrada a entrada.
Os seguranças não permitem acesso de baldios ou pessoas que es-
tejam completamente porres. Brigas dentro e fora são constantes,
pelos mais variados motivos. Por isso, segundo seguranças com
quem conversamos nesses locais, a entrada é barrada. Para alguns,
por conta disso, a festa acontece do lado de fora mesmo: precisa-se
apenas de limão, sal e cachaça barata (corote) vendida em garrafa de
plástico, que por causa do formato recebe o nome de “granada” ou
“buchudinha”.
Algumas PSR bebem restos de cerveja, fumam pontas de
cigarro jogadas no chão e comem sobras de churrasquinho. Ou-
tras gastam o que arrecadaram no dia, mangueando ou trabalhan-
do avulso, pagando garotas ou garotos de programa confiáveis da
região. Os errantes baldios que transitam pelo grande trajeto não
vivem indiferentes à cidade. Pelo contrário. Articulam suas trajetó-
rias em função da soma dos desejos, vontades e necessidades, dando
sentido às vivências. A figura a seguir mostra alguns bares e inferni-
nhos paralelos à Praça da Matriz. O destacado na imagem é muito
frequentado dos fins de tarde e até o amanhecer por pessoas que
trabalham e vivem ali perto.

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Figura 3. Fachada de duas casas de programa, ambas destacadas em descrição do grande
trajeto. Fonte Google/Earth.

O percurso do grande trajeto, para ser mais bem perce-


bido, requer observação minuciosa e, por isso, fez-se necessário
apurar sentidos e percepções coletivas, aprofundando investigação
sobre normas de conduta das ruas. Nosso estudo etnográfico teve
como atividade, tomando esse cerne, fundamentalmente refletir so-
bre hábitos e costumes, ao que optamos por designá-los mediante
comportamentos conjunturais. A ação equivaleu a sublinhar e ana-
lisar conjuntos de práticas que caracterizam a identidade social de
um grupo (BOURDIEU, 1998b) com sua identidade coletiva, o que,
para as PSR, remeteu-as a discursos e papéis ativos de condução de
destinos dentro dos próprios trajetos, podendo praticar intermedia-
ções psicossociais e realizar narrativas de si. É essa procura por tal
identidade que move os baldios a vagarem, escolhendo o próprio
caminho, tentando sentir a cidade, tateando-a palmo a palmo, como
autênticos flanêurs. Uma procura que propiciou a nós a realização
de leituras físicas e psíquicas de situações e engenhos.
Os baldios conhecem a cidade ao percorrê-la a pé, ao sen-
ti-la em cores, odores e sons, ao apalpá-la por entre ruas, becos e
vielas, observando nela padrões de idas e vindas, investigando deta-
lhes e similitudes a partir dos trajetos, em uma procura referencial
por particularidades que possam desvendar o todo. Por isso, a ca-
minhada pelos territórios foi uma forma nossa, realista, de explorar

- 51 -
e aferir percepções sobre o espaço transitado. Observar de perto o
grande trajeto possibilitou o conhecimento de boa parte do denso
tecido social das PSR no centro de Manaus. A partir do trabalho de
campo, supomos que o grande trajeto apresenta variações aquém
e além de limites propostos no croqui no sentido da subjetividade,
sem apresentar fixidez. Exatamente por isso que indivíduos inte-
grantes dele o elaboram em moldes abstratos, a partir de noções
imateriais, podendo alterá-lo ao sabor do imprevisível, seja em ra-
zão de uma questão fluxo-temporal ou de uma estratégia relaciona-
da a percursos.
O grande trajeto forma um anel viário para ônibus e car-
ros que circulam no centro e suas rotas atraem pessoas em meio à
situação caótica do cenário urbano. O grande trajeto envolve uma
dinâmica própria, a abranger quase todo o centro velho, possibi-
litando caminhadas longas, cansativas. Além do mais, pontos de
ganho, descanso e lazer no grande trajeto são distantes uns dos ou-
tros, obrigando a extensos esforços de deslocamento. Nele, há es-
truturas improvisadas que se adaptam a necessidades imediatas do
vai-e-vem de transeuntes, que não têm tempo a perder e imprimem
velocidade à vida. Pessoas que percorrem o grande trajeto ditam
ritmos na metrópole e sobre a modernidade que as cerca.
Simmel (1998) entende a modernidade por meio de dois
principais símbolos, o dinheiro e a metrópole. É uma perspectiva de
compreensão conjunta. O dinheiro, em metrópoles, é herói e vilão
da modernidade em diferentes medidas. As relações se transformam
em números, mas também em liberdade de ação, ainda que contra-
ditória, dado o fato de que o dinheiro, de forma universal, emancipa
dependências específicas individuais e coletivas, mas também re-
força embates. Em alguns ditames, pode existir a emancipação por
ações hierárquicas de poder, outrora rígidas e imutáveis, incidindo
sobre a mobilidade social. Mas como vivemos em uma sociedade
onde grande parte das relações é mediada pelo papel moeda, que
alargou a autonomia e a independência das pessoas, quem não pos-
sui recurso financeiro pode ser visto de outra forma, como é o caso
das pessoas estudadas no nosso trabalho.

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Para elas, o dinheiro cria laços de interesse entre quem o
tem e quem procura tê-lo, desprendendo-se dos despossuídos. O
dinheiro possibilita a baldios um maior entendimento imediato das
coisas cotidianas, contribuindo para afinidades ou distanciamentos,
gerando a possibilidade de universalismos, posto que a monetariza-
ção une ou desagrega em esfera global. O dinheiro como herói ou
vilão é entendido em um mesmo pêndulo, possibilitando a riqueza
ou a pobreza.
Prosseguindo na perspectiva do dinheiro na metrópole,
exploramos as ruas do centro financeiro de Manaus. Na avenida
Marquês de Santa Cruz, parte que liga o porto da cidade ao Mer-
cado Municipal e à Feira Manaus Moderna, está à mostra nas cal-
çadas uma grande variedade de produtos para transeuntes. Como é
passagem obrigatória ao embarque e desembarque de pessoas para
o interior do Estado e outros Estados, o trânsito é intenso, rápido e
tumultuado. No trajeto, localizam-se as vendas de comidas (geral-
mente prato feito), estivas, bebidas, ferramentas, utensílios domés-
ticos, apetrechos de pesca, materiais para agricultura, caça, redes e
cordas, além de todos os tipos de miudezas para residências e ainda
vestimentas, calçados e artigos de cama, mesa e banho, entre demais
quinquilharias.
Nesse mesmo ambiente, são oferecidos serviços em geral,
como salões de beleza ou barbearias armados em calçadas, compos-
tos de banquinho, espelho e tesoura ou máquina elétrica de cortar
cabelo ou fazer a barba. Nessas zonas improvisadas, o cartão de vi-
sita é o preço e a rapidez do serviço. E temos também as lanchone-
tes de beira de calçada, os vendedores ambulantes de salgado, café,
suco, picolé e dindim, além de um universo de materiais de cozinha
e dispensa para a construção em repúblicas e albergues.
Essa zona se constitui como polo de atração porque tem
movimento próprio, vida autônoma, em uma conjuntura capturada
pela característica essencial do grande trajeto, a de ser um conglo-
merado urbano que agrega uma confluência dos trajetos. Por essa
questão, composições referenciais a espaços de lazer, trabalho e
ócio, exemplificados em libertinagem, furtos e jogatinas, apresen-

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tam-se como objetividades e subjetividades da cidade. Ainda na
orla, por exemplo, entre os igarapés dos bairros de Educandos e São
Raimundo, banhada pelo Rio Negro localiza-se a avenida Manaus
Moderna, que em sua extensão ganha outro nome, este oficial, de
avenida Lourenço da Silva Braga. A Manaus Moderna não faz jus à
sua denominação. Ao contrário. Ela é mal cuidada e conserva for-
mas de um passado de desrespeito com a paisagem urbana e a so-
ciedade, incorporando palafitas montadas com recurso situacional
de madeira barata e abundante como estratégia, de maneira alta-
mente insalubre. Apesar disso, palafitas urbanas (metropolitanas)
dessa parte do centro velho possuem conteúdo diferenciado em sua
estética.
Vários governos prometeram melhorias que não vieram
a modernizar o espaço e a ordenar melhor a distribuição das terri-
torialidades desse coió. Sobraram trânsito caótico, estrutura urba-
na deficiente e insegurança. Possivelmente o que possa distinguir
as PSR do centro velho de Manaus em relação às PSR de demais
capitais do país esteja ligado a características regionais as quais têm
associação direta com o rio. Especificidades que na capital amazo-
nense, devido à distância que guarda ante demais capitais, propor-
cionam particularidades. Pode ser que o rio não comande integral-
mente a vida, como pensava Tocantins (1973), todavia influencia de
modo especial na microurbe das pessoas em situação de rua. Ade-
mais, apesar da categoria “caboco” estar carregada de caricaturas
e preconceitos, sendo evitada por vezes, salientamos a figura do/a
caboco/a como diferenciação regionalista.
Desse modo, ligadas parcialmente a elementos geopolíti-
cos, as PSR, como cabocas inerentes à região, incluindo-se indíge-
nas e migrantes/refugiados, estão associadas ao trabalho e ao lazer.
A lógica do labor e dos prazeres, assim, tende a se alterar segundo
o regime das águas. Na época das cheias, geralmente nos meses de
janeiro a junho no Amazonas, há aumento significativo do traba-
lho, conforme informações colhidas em campo. Natal e Ano Novo;
Carnaval e Dia das Mães; Festival Folclórico de Parintins e Festa
do Cupuaçu; Festejos de Nossa Senhora do Carmo em Parintins e

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Ciranda de Manacapuru, além do Festival de Música de Itacoatiara
etc. São esses os principais. A área do porto concentra atividades
comerciais do centro e datas comemorativas regionais movimentam
esse ponto.
Há mais dinheiro e oportunidade e mais movimenta-
ção de embarque e desembarque de pessoas e mercadorias. O vai
e vem se intensifica e gera ocupação e moeda a quem frequenta a
orla da Manaus Moderna. Ampliam-se carregamentos de peixe e
carne na cheia. Cardumes saem de lagos para a piracema e a oferta
cresce para o abastecimento de mercados e feiras da região. Produ-
tos secos e molhados, estivas, alimentos em conserva ou frescos são
descarregados dos barcos para abastecerem a cidade e vice-versa.
Na seca, que comumente acontece de julho a dezembro, o trabalho
gira em torno, principalmente, de frutas, legumes e verduras.
No início do período da vazante, a terra tende a ficar ferti-
lizada e a colheita acontece em sua maioria nas várzeas ou quintais
florestais, com mais disponibilidade de produtos agrícolas e silví-
colas. Esclarecemos que ofertas agrícolas, de extrativismo ou pesca,
não se dão de forma rígida, acontecendo em todos os períodos do
ano. Há frutas na estação chuvosa, assim como há pesca na seca. Nas
figuras a seguir percebemos que, em intervalos pequenos, de cerca
de três meses, a paisagem muda significativamente.

Figura 4. Orla da Manaus Moderna, período de seca (jul/dez). Fonte: Noélio Martins, 2019.

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Figura 5. Orla da Manaus Moderna, período de cheia (jan/jun). Fonte: Noélio Martins,
2019.

Poderíamos nos perguntar o que Manaus tem de seme-


lhante ou diferente no comparativo a demais cidades amazônicas
urbanas, assumindo os baldios como análise. Nesse âmbito de ques-
tionamento, o que notamos de similaridade são histórias de vida em
torno de dramas familiares e pauperização. Estar ou ficar nas ruas
são atitudes motivadas e não só agenciadas, em geral. Significa que
existe um cordel de contingências que impulsionam indivíduos a
decidirem pela vida no centro velho e, para caracterizar algumas
das especificidades das PSR em Manaus, pensamos na identidade
regional e nas ambiguidades proximais, negando ou reafirmando
construções esquemáticas, por exemplo, da figura do caboco ou do
ribeirinho ou do indígena urbano.
Recordamos, por suposto, que uma pessoa entrevistada
disse ter vindo à metrópole para não ser vista por ninguém no in-
terior, para que pudesse “curtir” à vontade. Desta feita, apostamos
que o anonimato descrito aqui, e salientado fortemente, também
entra no quesito da duplicidade: um trunfo aos que desejam ser es-
quecidos e igualmente um fardo a estes, em outra medida, pois são
invisibilizados e marginalizados. Fraxe (2009) convida a uma inter-

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pretação confluente à nossa, em que analisa sujeitos que vieram a
Manaus e suas singulares formas de organização social.
Para ela, o habitar a cidade — mesmo para indivíduos
oriundos de outros pontos urbanos ou rurais — tende a levar bal-
dios a um tipo de adaptação na formação psicossocial de si mesmos,
pessoas amazônicas, em sua interação com o rio. Trata-se de uma
diferença em relação a outras PSR do restante do bioma, e talvez,
por essa visão, seria interessante categorizar esses sujeitos também
como ribeirinho-cabocos, pois se utilizam sobremaneira de recur-
sos naturais da região para conseguirem existir. Ou mesmo como
urbano-ribeirinhos, como salienta Bartoli (2018) quando avalia a
criação de estratégias diversas de resistência frente à escassez de re-
cursos encontrados no meio urbano.

Não podemos deixar de considerar que os povos da Amazônia


não vivem isolados no tempo e no espaço. Eles estabelecem
continuamente relações de troca materiais e simbólicas entre
si com as comunidades vizinhas e com os agentes mediadores
da cultura, entre o mundo rural e urbano. As manifestações
culturais e sociais dos moradores da área de estudo expan-
dem-se pelo mundo urbano e vice-versa, assimilando algumas
práticas e rejeitando outras (FRAXE, 2009, p. 32).

Nas áreas de atracação de embarcações (do antigo roadway


até a feira da panair), por serem circunvizinhas a dois grandes iga-
rapés (Educandos e São Raimundo) e estarem localizadas à margem
do rio Negro, há evidentemente a influência de enchentes e vazan-
tes. Portanto, não interessa dissociar os baldios e as suas identifica-
ções com os igarapés desse cotidiano. Seria mais uma das caracte-
rísticas múltiplas formativas, mas não somente e nem isoladamente.
Se mudanças advindas da sazonalidade climática têm forte relacio-
namento com a vida dos baldios, principalmente quando se fala em
trabalho e lazer na orla, de acordo com Santana (2006) o fenômeno
concorre para ordenar preços de produtos, elevando ou rebaixando,
consequentemente, consumo e remuneração.
Dessa forma, notamos o quanto baldios territorializados
no centro velho desenvolvem habilidades de adaptação a fenômenos
naturais correlacionados a mudanças na sociedade, tirando provei-

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to de cada situação apresentada. A orla de Manaus se assemelha a
beiradões nas suas formas, mas difere nos seus conteúdos, pois está
conectada e situada em razão de uma dinâmica metropolitana. Este
é o resquício do que na história se tentou esconder, mas permaneceu
enquanto fotografia pulsante de uma cidade ribeirinha de outrora.
A Manaus do passado. Há momentos em que a praia aparece (na
seca) e momentos em que a praia desaparece (na cheia) e esses são
instantes de reordenamento também às PSR.
Conversamos com Ademar, PSR, em 2018 e 2019. Foram
algumas vezes em que ele relatou ser difícil no período chuvoso para
dormir na capital e disse que, nessas horas, “[...] nós sai correndo
e é cada um por si, e aí a gente termina o soninho ali, sentado ali
[apontou para uma marquise], com a cachaça aquecendo, se tiver”.
Ademar sinalizou coberturas de prédios no entorno da orla, além
de citar casarões antigos, dando a entender que se protege de tem-
pestades temporariamente sob qualquer estrutura onde possa gerar
segurança e oportunidade de descanso. Ele é um dos muitos que
na madrugada se aproveitam da orla da Manaus Moderna, bastante
movimentada, para ganhar sustento e abrigo. Ademar diz que se in-
sere no vai e vem das pessoas desembarcando e embarcando peixes,
carnes, frutas e verduras, bem como sacos de macaxeira e cará. Sob
as costas nuas ou em tabuleiros de madeira preparados para essa
finalidade, o leva e traz é feito de maneira acelerada.
Nesse contexto, ele destaca os carregadores associados,
fardados, com colete amarelo, integrantes de agrupamentos traba-
lhistas, que começaram os serviços duas semanas atrás de nossa pri-
meira entrevista. Além dos associados, indagamos sobre os “outros”,
que realizam atividades sem colete, e ele respondeu que esses eram
os avulsos, ou melhor, os “baldios” (descrição do entrevistado), e
ali ele se inseria. Portanto, na Manaus Moderna, ao observar e con-
versar com carregadores, é crível supor que há uma categorização
entre eles, determinada por registro sindical e envolvendo tipos de
cargas suportadas e peso líquido transportado. Por exemplo, os que
carregavam sacolas e malas de passageiros de barcos geralmente não
levavam peixes, carnes ou sacos sujos e muito pesados. Assim, bal-

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dios são PSR que aceitam trabalhos que carregadores ou carreteiros
associados rejeitam. Se o trabalhador “oficial”, associado, não está
disposto ou falta ou fica doente, entram em cena os baldios para
substituí-lo.
Trabalham descalços, sem EPI (equipamento de proteção
individual) ou similar, geralmente só com um papelão ou pedaço de
pano para proteção das costas e cabeça. Dobram e colocam tiras de
tecido embrulhadas sobre o corpo para amortecer o peso. Levam e
trazem cargas descomunais, pingando sangue e imundas. Baldios,
assim, atuam como carregadores nas brechas deixadas pelos asso-
ciados, arrumando sua labuta com serviços rejeitados. Bebem ca-
chaça para espantar o frio, a fome e conseguir ânimo para carregar
enormes volumes, muitas vezes de carga não higienizada, com sujei-
ras diversas, em clara situação de exploração.
Continuando nosso trajeto — iniciado quando destaca-
mos as ruas Luiz Antony com Constantino Nery e agora partindo
da travessa Vivaldo Lima —, interessa sublinhar que o espaço em
destaque na sequência parece mais um recuo de pista, uma junção
com calçamento. Referimo-nos ao entrecruzamento do Museu do
Porto com as zonas dos bares e casas de show. É uma paisagem in-
sana. As ruas-calçadas funcionam como entrepostos a atividades de
trabalho e lazer. São sentimentos duplos em concretos duplos. O
da atividade racional e informal, com o trabalho em meio ao lazer,
incluindo-se aí a prostituição e a bebida. De modo que não pare-
ceu, na avaliação de campo, haver distinção para esses ambientes em
particular, acerca de onde acabava um e iniciava outro sentimento
de territorialidade. Funcionam, os limites ruas-calçadas, a partir de
interatividade imbricada.
A ideia de inter-relação sentimental pode ser traduzida
por nós como um coió propício, ou seja, um lugar amplo, mas es-
condido dos olhos da polícia, em meio a árvores ou estruturas de
concreto e bancos de praça. E vale salientar que coiós funcionam
como pontos de lazer (bebida, sexo e drogas), de descanso (dormir
nos bancos ou debaixo das árvores) e também de trabalho (vigiar
carros, venda em camelô, venda ambulante, jogo do bicho, jogo de

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baralho etc.). Praças ou esquinas pouco frequentadas, além de ca-
sebres, terrenos, barcos abandonados, quintais ou abrigos impro-
visados são pontos essenciais ou esconderijos para as PSR, como
já sublinhamos. Em coiós as pessoas se protegem de intempéries e
folgam, usando-os como banheiro ou como pousio para o compar-
tilhamento de comida, cachaça, cigarro e entorpecente.
Pudemos identificar coiós pela grande quantidade de pes-
soas em estado de acolhida nesses lugares, como se dá no entorno
do mercado Adolpho Lisboa, em barracos feitos de paletes e papelão
na orla da avenida Manaus Moderna, nos arredores do Museu do
Porto, embaixo de mangueiras na Praça da Saudade, próximo ao
Banco do Brasil da rua Guilherme Moreira e no prédio abandonado
da Santa Casa de Misericórdia, além de casarões em ruínas na rua
Itamaracá. São trajetos menores fundamentados por diversas vezes
dentro do grande trajeto. Para um frequentador de ocasião, um PSR
que por azar esteja ainda sem fixidez relacional, o mais viável seria
estar presente nesses lugares durante o dia. Outra coisa a se pensar é
a noite, quando a periculosidade aumenta dentro dos próprios gru-
pos de pertença.

Figura 6. Travessa Vivaldo Lima, inclusa no grande trajeto. Fonte Google/Earth.

Podemos falar no clímax de concentração das PSR no


grande trajeto do centro velho, que fica com maior incidência em:

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Porto de Manaus, Mercado Municipal e avenida Lourenço Braga
(Manaus Moderna), além da região da Igreja dos Remédios e da
Feira do Produtor (Feira da Banana), as quais representam pontos
preferidos e com grande número de pessoas. Neles convergem todos
os demais trajetos. Nesses espaços afetivos, alguns perambulam fa-
mintos e maltrapilhos, dando visibilidade à condição de miséria em
que se encontram e em uma tentativa de comover a comunidade de
passantes a lhe dar esmolas. Outros mangueiam em uma atividade
muitas vezes vã e ignorada, sendo rechaçados. É uma parte do cen-
tro que se tornou refúgio dentro dos caminhos do grande trajeto,
por concentrar fluxo intenso de pessoas, comércios, comidas, mer-
cados e praças.
Na Manaus Moderna, ao cair da noite e na madrugada,
por exemplo, centenas de pessoas se amontoam ao longo do cal-
çadão e em torno do mercado e da feira. Ficam dispostas umas ao
lado das outras, deitadas em papelões, caixotes ou envoltas em pa-
nos velhos e cobertores. Dormem assim. Há quem acende fogueiras
nos barracos improvisados para preparar alimentos, principalmente
peixe assado e churrasquinho-de-gato. Uns aproveitam para jogar
baralho ou dominó nos coiós, sempre com o copo de cachaça, o
limão e o sal ao alcance. O cenário parece dantesco, surreal, porque
todos se conhecem e se desconhecem em instantes, em uma dança
dialética, diferente do movimento que acontece durante o dia.
Boa parte das PSR está ali, no nodal do grande trajeto,
também a esperar barcos pesqueiros e demais embarcações que
atracam na balsa laranja (balsa de carga) e na amarela (de passagei-
ros e cargas), vindos com mercadorias do interior. São trazidas fru-
tas e verduras. Todos pretendem ganhar dinheiro no desembarque,
fazendo trabalho esporádico de carregador.
São diferentes tipos de sujeitos que compõem o conjunto
de baldios. Difícil identificar a todos, principalmente pela diversi-
ficação de atividades as quais praticam e se constituem. A vida dos
baldios, então, é processada conforme trajetos conformados em es-
paços públicos e em meio ao movimento dinâmico do centro anti-
go. Baldios se instalam e vão ficando no âmago do passeio coletivo,

- 61 -
desenraizados de obrigações rígidas ou compromissos familiares
concretos. Vivem na rua e se põem a vagar pela urbe até estabelece-
rem pontos de fixação temporária. Para eles, o perambular simboli-
za uma indisciplina, um código de vida e um requisito potencial de
sobrevivência em meio à marginalidade e invisibilidade, sendo uma
forma de contestar o mundo.
Corroborando com Lefebvre (2001, p. 84), perguntamos:
“[...] para o poder, há mais de um século, qual é a essência da cida-
de? Cheia de atividades suspeitas, ela fermenta a delinquência por-
que é centro de agitação?”. Partindo dessas questões, ficamos com
nítida impressão que todos os veios do grande trajeto representam
caminhos que levam ao “centrão”, um dos umbigos da cidade, onde
há espaços para transgressões que medeiam as existências física e
mental dos que moram nas ruas. E no momento em que estão vi-
vendo no “centrão” os diversos trajetos confluem estruturalmente,
como cerne de potência, como territórios onde, de alguma forma,
pessoas que não possuem um teto conseguem estabelecer regimen-
tos e formalizações constitutivas, bem como normas comportamen-
tais e fundamentos que as posicionam segundo lugares de fala e sis-
temas de poder.
Para entender melhor as PSR que vivem no grande trajeto,
perguntas complexas que envolvem o médio trajeto estão a ser res-
pondidas com mais profundidade: i) como se estruturam enquanto
pessoas viventes das ruas?, ii) o que significa para elas, que expe-
rimentam a cidade, serem pessoas em situação de rua?, iii) o que
outras pessoas pensam ou julgam sobre as PSR e suas práticas?, iv)
o que rege posições, normas e ordenamentos nesse médio trajeto?
São inquisições complexas e, sim, nos debruçamos a refletir acerca
delas, sem, de modo algum, esgotá-las neste tópico.
No capítulo em sequência, tratamos acerca do médio ca-
minho, posicionado no veio de interações com o grande e o peque-
no trajeto.

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CAPÍTULO III

O médio trajeto: o entremeio dos mundos


3.1 Metade aqui e metade acolá
O médio trajeto está interconectado ao grande e ao pe-
queno, diferindo-se por ser menor que dois terços do primeiro6. É
limitado a norte pela avenida Sete de Setembro, a sul pela avenida
Lourenço Braga (Manaus Moderna), a oeste pela avenida Joaquim
Nabuco e a leste pela avenida Marquês de Santa Cruz. Como em
todos os trajetos, no médio há a apropriação temporária de imóveis
abandonados, casarões antigos ou em ruínas e galpões ou barracos
que oferecem proteção contra as chuvas torrenciais e o sol escaldan-
te da região. Algumas PSR chegam a ser mais ousadas nessas ocupa-
ções temporárias, geralmente após a meia-noite, quando os últimos
ônibus saem das estações, quando homens da base policial deixam
seu posto no centro e, consequentemente, quem está nas ruas passa
a entrar em ação.

Figura 7. Croqui do médio trajeto sublinha o caminho percorrido pelas PSR do centro velho

6 Visualizar croqui anterior.

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Na madrugada de calor, a saber, baldios entram em agên-
cias bancárias por sorte abertas e se instalam à noite inteira para
aproveitar o ar condicionado, tendo de sair antes do amanhecer do
dia. “Eu só durmo dentro dos bancos, porque é mais geladinho”
(Cristiane, PSR). “Outro dia eu tava dormindo lá [no banco] e acor-
dei na porrada, mano. Era a polícia” (Breno, PSR). Nesses pontos,
fixar local para pousio é bom, apesar de arriscado. Mas o que não é
arriscado nas ruas? Outros espaços de uso comum são as marquises,
os bancos de praça, os canteiros centrais e os calçamentos debaixo
das pontes, além de carros velhos e barcos abandonados. Na ativi-
dade de habitação desses espaços no centro existe, em seu íntimo,
talvez uma busca pela essência da noção de casa, configurando des-
se modo a rua como um lar.
Pela falta de um lar, por vezes, a imaginação trabalha no
intuito de fazer daquele local escolhido um espaço afetivo, de des-
canso e sentimento. “Veremos a imaginação construir ‘paredes’ com
sombras impalpáveis, reconfortar-se com ilusões de proteção ou,
inversamente, tremer atrás de um grande muro e duvidar das mais
sólidas muralhas” (BACHELARD, 1978, p. 200). As PSR, portan-
to, dentro de abrigos, sensibilizam seus limites do irreal, vivendo
no mundo da meta-realidade e do imaginário a um só tempo. Um
mundo que faz sentido apenas nos devaneios e desvarios.

Figura 8. Casa abandonada usada como dormitório. Fonte: Noélio Martins Costa, 2018.

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No médio trajeto, igualmente ao grande trajeto, além da
necessidade de segurança para o sono, existe a urgência da manu-
tenção alimentar. Tudo se modifica para servir de abrigo; tudo se
transforma em instalação de repouso temporário, como podemos
supor a partir da figura acima. Nesse ínterim, o que tende a se di-
ferenciar nesse trajeto em relação ao grande e ao pequeno são dois
importantes pontos de confluência, a Praça da Matriz e a Praça He-
liodoro Balbi (Praça da Polícia), menos utilizadas no âmbito dos de-
mais trajetos. Elas estão marcadas como locais de passagem quase
que obrigatória, pois o centro comercial e financeiro fica no meio
dessas duas praças. São bem movimentadas e geralmente servem
como parada rápida para comer ou esmolar.
Por serem próximas a locais turísticos, como um mu-
seu, duas escolas e a Igreja da Matriz, são policiadas durante o dia,
afugentando dessa forma PSR que tendem a se instalar de forma
duradoura. No entorno da Praça da Matriz, nos últimos anos, es-
tabeleceu-se comércio ambulante fixo e móvel com intensidade.
São carrinhos de lanche e venda de frutas e verduras, bem como
comerciantes com lugares cativos de produtos eletrônicos, roupas
similares de grife, sapatos, joias e bijuterias, além de bares e restau-
rantes. Perto dali, há artesanatos hippies e vendedores de picolé, de
bombons, camelôs de temporada e lojinhas de serviços para apare-
lhos celulares.
As PSR se misturam no médio trajeto, integrando-se
quando a elas convêm, para algumas funções básicas, parecido com
o que ocorre nos jardins na Igreja Nossa Senhora da Conceição
(Praça da Matriz), onde se faz local de banho e necessidade fisio-
lógica. É um espaço coletivo, visto que para ter acesso ao banheiro
público dali se cobra uma taxa. Assim acontece também na rampa
de alvenaria da orla do Rio Negro, ao lado do Mercado Adolpho
Lisboa, onde há um local de asseio e evacuação. Geralmente o uso é
à noite, para manter a privacidade. Tendo em vista o vandalismo, a
prostituição e a montagem de barracos no entorno da Igreja Nossa
Senhora da Conceição, a Diocese cercou com grades robustas toda a
extensão da praça, limitando o acesso. Dessa forma, inibiu a depre-
dação usual, sem a eliminar.

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O espaço se mantém como ponto de trabalho na lavagem
e vigia de automóveis. Nele, baldios se servem do coreto, da gruta
da praça e da estrutura vizinha à igreja para consumir entorpecen-
tes, realizar programas sexuais, jogatina, pousio e também descarga
fisiológica. O mesmo não ocorre na Praça Heliodoro Balbi. Apesar
de apresentar arquitetura ajardinada, com fonte, coreto e ponte em
lago artificial, não é usada para outros fins que não o turismo. Essas
estruturas ficam intactas, até porque o próprio nome da praça já
espanta as PSR, dado ser conhecida, como salientamos, por Praça
da Polícia. Foi revitalizada e ainda tem certa vigilância por parte da
guarda municipal, de PMs e seguranças terceirizados.
Nas dependências do local não é permitido o comércio de
camelôs, a fixação de barracas ou qualquer tipo de venda formal ou
informal. PSR que tentam, de alguma forma, ficar por algum tem-
po sentadas, deitadas ou encostadas nas dependências da praça são
convidadas a se retirar com alguma hostilidade. Regras como essa
ficaram mais rígidas após o processo de revitalização da cercania.
Antes, no entorno, havia um bar tradicional conhecido como Café
do Pina, que nas décadas de 1960/70 reunia intelectuais, artistas,
políticos, estudantes e boêmios. Após a demolição do prédio que
abrigava o Café surge o Bar do Pina, nas décadas de 1980/90. Era
um bar-restaurante que atraia muitas pessoas. Comiam, bebiam e
dançavam até tarde da noite.
A Praça da Polícia, na época, era só mais um ponto his-
tórico em boa medida abandonado, tomado por degradação e de
alta periculosidade. Mas notamos mudanças ocasionadas pela re-
qualificação do espaço, principalmente nas instalações do Palacete
Provincial (prédio histórico), que deu lugar hoje a um museu. Mu-
danças que resultaram no mobiliário urbano reformado, reformula-
do segundo aspectos originais da época da construção, com especial
atenção a coreto, pontes sobre lagos artificiais, bancos, arborização
e paisagismo. O espaço, que antes chamava atenção por abandono e
deterioração, agora atrai turistas e passantes pela beleza. Por outro
lado, agentes do Estado reprimem constantemente a presença das
PSR no local. A higienização foi realizada, para o bem e para o mal.

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Muito embora espaços aquiescidos pelo Estado sejam de-
socupados temporariamente pelas PSR, isso é uma situação passa-
geira. Elas são expulsas, agregam-se a outras áreas menos visadas
e depois retornam. Com a diminuição da vigilância nos locais re-
vitalizados, fixam-se e, sem trabalho de assistência social e gover-
nança, retornam gradativamente para logradouros públicos. E aqui
destacamos a afirmativa no sentido de pensar o direito à cidade e a
responsabilidade sobre esse direito, e não sob o prisma da vigilância
grosseira ante os corpos.
O médio trajeto faz parte da conexão das relações entre
o trajeto menor (pequeno trajeto) e o grande trajeto, interligando
redes de afinidade existentes em variados lugares do centro. Antro-
pólogos como Michel Agier (2011) fazem uso do conceito de rede
pensando em atribuir teoricamente mais entendimento a diversas
situações de entrecruzamentos e disposições sociais. Ele faz uma
tentativa de aproximar o campo de visão de quem não integra gru-
pos de PSR ante ao problema dos territórios nas urbes e destaca
melhores contingências e trocas acerca das cidades. Ampliando a
lente da prática etnográfica, Agier sugere acompanhamento dilata-
do e próximo da sociabilidade e dos valores vividos em ambientes
urbanos.
Mormente aos apontamentos do antropólogo, no estudo
dos baldios no centro velho notamos que as redes de relações co-
tidianas não eram exatamente as supostas pelo autor, pois estavam
determinadas por uma territorialidade central e abraçadas por vie-
ses afetivos complexos. Para nós, isso significou que o centro de Ma-
naus era moldado por pontos estratégicos de conversão e dispersão,
e não apenas de entrecruzamentos, como conceituava Agier. Nota-
mos que, além da Praça Heliodoro Balbi — descendo pela avenida
Joaquim Nabuco em direção à Feira do Produtor, à escadaria do
porto e ao Mercado Municipal —, havia locais configurados como
coiós de atração e irradiação. Então tínhamos a formação de cons-
tantes deslocamentos comunais, o que deu margem a pensarmos em
uma territorialidade itinerante7.
7 Relacionado a essa expressão verificar referência eletrônica: Heitor Frúgoli Jr e Enrico Spaggiari, «
Da cracolândia aos “noias”: percursos etnográficos no bairro da Luz », Ponto Urbe [Online], 6 | 2010,
posto online no dia 31 Julho 2010, consultado o 19 Março 2016. URL : http:// pontourbe.revues.
org/1870 ; DOI : 10.4000/pontourbe.1870.

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Essa itinerância se mostrou própria dos baldios inseridos
no ir e vir de trajetos frequentados. Baldios que, por sinal, estabele-
cem assento ora em locais degradados, ambientando-se com utensí-
lios junto a lixos e escombros, ora em locais limpos, de uso comum
da população em geral. Os rumos dos caminhos traçados, portanto,
dependem das necessidades imediatas e das relações estabelecidas
ao longo dos trajetos, segundo pesquisamos. Nesse sentido, tran-
sitam entre usos, contra-usos e disputas internas por poderes sim-
bólicos do espaço público. E poderes simbólicos no contexto do es-
paço público dizem respeito a controles e variações sobre domínios
territoriais. Pessoas em situação de rua, no suposto em destaque,
talvez pareçam não possuir esses domínios, mas existem e são re-
conhecidas.
Em nosso campo de investigação, verificamos serem por
meio dos atos socialmente construídos, aqueles vinculados a pro-
cessos de negação e aceitação da realidade instaurada, que as PSR
vivenciam mudanças a todos os instantes decorrentes da realidade
multifacetada onde estão. Os baldios, a despeito de dinâmicas con-
tingenciais, conseguem incorporar em si mesmos e nos seus coleti-
vos acepções adjacentes a suas práticas e isso, acreditamos, tende a
gerar modificações estruturantes e funcionais no cotidiano (LEFE-
BVRE, 2001).
PSR contemplam e são contempladas por indivíduos que
passam, observando-as como uma espécie de vitrine viva da estética
urbana. Mas os baldios são resistentes e mostram-se como usuários
atentos e reais dos espaços da cidade, apropriando-se conforme im-
posição da vida e segundo um modo de dialogar com representa-
ções sociais postas no dia a dia da urbe. Parecem diálogos trágicos
desses errantes com o público e com eles mesmos. Parecem falas
dissonantes no barulho das ruas, em uma perspectiva complexa de
se inserir como ato e voz na cidade polifônica. Do ponto de vista da
categorização como vitrine, esclarecemos:

[...] a vitrine é uma janela e nela as PSR constroem um espa-


ço para que os outros as olhem, mas também para olharmos
através delas. Mais ainda, pela maneira como as olhamos po-

- 68 -
demos compreender como nos projetamos e, pela forma como
a vitrine é projetada, podemos entender como elas querem ser
vistas. A vitrine constitui-se em um jogo de olhares. Uns que se
mostram, outros que se veem; uns que olham como os outros
as veem, e outros que as veem sem saber que são vistos (SILVA,
2001, p. 27).

A troca simbólica oferecida pela vitrine tende a ser pon-


tuada por disputas entre observador e observado, situação verifica-
da na travessa Lessa. A arena urbana a que nos referimos fica ao lado
do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, dando acesso direto ao rio
Negro. Ela consequentemente permite grande movimento de pes-
soas e produtos. O frenesi é constante e contrasta com outros locais
onde PSR ficam sentadas, em estado contemplativo, como flanêurs
observando a multidão e interagindo com ela. Na estruturação da
cena na travessa Lessa, no âmbito da visibilidade e da invisibilidade,
ser observador ou observado depende do ângulo específico onde
se está, de modo que o olhar atua como via de mão dupla. Assim,
ao mesmo momento em que se observa é possível ser observado, o
que significa que estão igualmente em um mesmo plano urbano na
travessa, em um dos locais mais movimentados do centro. Contudo,
na visão de transeuntes, é como se não estivessem.
São ignoradas as PSR por causa das condições degradan-
tes em que se encontram. São vistas pelas lentes do medo, da indi-
ferença e do desprezo. Esse julgamento antecipado do outro se faz,
importa destacar, por um alto grau de preconceito dentro de uma
dinâmica de anulação e silenciamento de individualidades. É inqui-
sidora a multidão que passa diante dos olhos dos baldios e correla-
cionamos aqui nossa realidade observada ao que analisa Massagli
(2008), em estudo sobre Walter Benjamin, quando trata da diferen-
ça entre flanêurs e homens da multidão. E igualmente no conto ho-
mônimo O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, observamos a
constituição dos flanêurs como agentes e observadores privilegiados
da vida moderna e a flanêurie como meio de apreensão e represen-
tação de espaços coletivos.
Massagli identifica que:

- 69 -
Ao errar, entre galerias e bulevares, ao passear por mercados,
o flanêur é o ser que vê o mundo de maneira particular, sem
a pretensão de explicá-lo, mas com a intenção de mostrá-lo,
levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a exterio-
ridade. Na rua, encontra o seu refúgio desvinculando-se da
esfera privada, buscando identificação com a sociedade com a
qual convive. Ocorre, porém, que essa identificação resulta em
grande parte complicada pela natureza da sociedade moderna.
Nas ruas das metrópoles, o flanêur constata que o homem mo-
derno é vitimado pelas agressões das mercadorias e anulado
pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como
um embriagado em estado de abandono. Foi essa angústia que
o flanêur representou no século XIX (MASSAGLI, 2008, p. 56).

A vida cotidiana das PSR no médio trajeto do centro velho


de Manaus começa cedo na área dos mercados e nas feiras próximas
ao porto. O dia nem bem amanhece e já existe um fluxo intenso
rodando por ali, naquelas partes da urbe. Os primeiros a circular
nesses trajetos, antes de clarear, são os feirantes. Esperam merca-
dorias à beira do rio. Seus produtos vêm e vão em canoas ou bar-
cos. A maioria das encomendas é oriunda de municípios não muito
distantes ou mesmo comunidades rurais vizinhas. Igualmente, são
enviadas cargas para comunidades da região. Pouco volume sai ou
chega de demais Estados ou municípios longínquos. Há variadas
embarcações motorizadas carregadas de verduras, frutas, hortaliças,
peixes frescos e congelados. Tudo é negociado por eles mesmos, no
lusco-fusco da madrugada.
Depois é hora dos trabalhadores braçais ganharem seu
dinheiro transportando da baixada da escadaria para os mercados
e as feiras. Os produtos tramitam nas costas dos baldios e dos car-
regadores associados. O transporte se dá em muitos casos em gran-
des caixas de madeira ou sacas de estopa. Nelas são depositadas as
cargas. Para equilibrar o peso, geralmente confeccionam-se rodilhas
de pano ou tipoias que são colocadas sobre a testa ou a cabeça. Im-
pressiona a quantidade de sacas, engradados e fardos que é balan-
ceada, bem como a altura que alcançam os volumes carregados por
cada trabalhador. O jeito e a força empregados na empreitada são
fenomenais.

- 70 -
As PSR que querem ganhar dinheiro no médio trajeto
acompanham o fluxo dos trabalhadores habituais associados. Pe-
gam geralmente as sobras das atividades, como já frisamos, ou car-
regam mercadorias menos higienizadas e dispensadas. Uma palma
de banana que caiu na lama ou uma enfiada de jaraqui não vendida
e parcialmente inutilizada, além de um produto que danificou ou
uma fruta um tanto apodrecida. Os baldios comem, trocam, ven-
dem, dão e recebem. Tudo no meio da multidão que está na margem
do rio, tamborilando dentro de um turbilhão de acontecimentos.
Uns carregam sacolas de compra, outros já estão assando peixe e
comendo com farinha d’água baguda. Os demais tomam apenas um
gole de café preto e logo à frente um grupo já divide tragos de ca-
chaça.
O movimento mais forte do médio trajeto, como supo-
mos, acontece nas primeiras horas precedentes ao clarear, entre 4h e
5h, seguindo até 7h. Ademar (entrevista/2018) enfatiza o que segue,
quando perguntamos sobre o fluxo de trabalho na semana e no fim
de semana.

[...] Final de semana, não. A gente faz de manhã. É de manhã


que o bicho pega. Aí, de tarde, cada um já mordeu sua situação
e aí se quieta um perto do outro, e a gente vai se adiantando.
[Perguntamos também: E pra ganhar dinheiro, o senhor faz o
que?] [...] Um carreto daqui, um carreto dali e assim vai. Tá pre-
cisando, vambora! Eu levo e trago. Aí, depois a gente consegue
alguma coisa e esse daqui já conseguiu também. Aí, vambora
tomar uma cachacinha e comer uma farinha. Descansar, né. E
assim a gente fica, né. É essa paranóia todo dia (Ademar, se-
tembro/2018).

Na fala do entrevistado compreendemos a vida quase


nunca tranquila das PSR desse trajeto, onde fica claro que conseguir
sobreviver é quase uma batalha diária. E depois dessa jornada pela
sobrevivência se procura geralmente um lugar, fresco e arborizado,
para descansar. Como passam várias noites mal dormidas e outras
tantas madrugadas de trabalho árduo, as PSR do médio trajeto ge-
ralmente descansam durante a parte da tarde, nos bancos das praças
ou em qualquer lugar ventilado. Ademar relata que, depois da revi-

- 71 -
talização, a Praça dos Remédios, onde grupos costumavam tirar a
sesta com alguma tranquilidade, passou a contar com vigilância pri-
vada e “não foi mais a mesma”. Entretanto, depois a situação mudou
novamente. “Os guardas foram relaxando e deixando nós dormir”.
Dessa forma, o local passou a ser um ponto de coió e pousio.

Nas outras praças, deitar nem pensar. Só aqui que é liberado


(Praça dos Remédios), porque aqui é a praça do trabalhador.
Todo mundo trabalha e os caras têm que deixar o pessoal des-
cansar aqui. Pelo amor de Deus! O cara já passa o dia carregan-
do as coisas ali e não dá nem pra ele deitar aqui um tempinho?
Aí é muita bronca. [perguntamos sobre quando tentaram proi-
bir de ficar na praça?] Mas aí teve uma confusão que foi tanta
que já tavam querendo ajumentar os guardas. Todo mundo
cansado, mano, o cara tem que ter um lugar pra descansar. Pra
quê que presta uma praça dessa se o cara não puder descan-
sar? Agora bagunçar é outra história. Cara, descansar, olha ali
(e mostrou dezenas de pessoas deitadas nos bancos). O cara tá
quebrado. E o outro ali também, tá quebrado. E o outro ajeitan-
do o bombomzinho dele pra vender, ó. Tem que ter esse enten-
dimento. É um quebrado e o outro já se adiantando (Ademar,
setembro/2018).

Salim (entrevista/2018), baldio com quem dialogamos,


explicou os valores recebidos pelos pequenos trabalhos executados
no médio trajeto. Ele destacou que seu serviço principal é vigiar car-
ro. Mas quando aparecem outros afazeres que possa executar, não
titubeia. Como carregar sacolas de compras ou varrer ruas; como vi-
giar e lavar carros; como realizar entregas ou recados; ou até mesmo
fazer um “corre” de drogas ou jogo etc. Relatou que ganha por dia
de dez a vinte e cinco reais, ao contrário de demais colegas que fatu-
ram em alta temporada até cinquenta reais. Salim tem um problema
grave nas pernas, ocasionado pela queda em um buraco próximo
à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, em frente à praça com o
mesmo nome, onde é seu lugar de pousio. Após se embriagar, escor-
regou em um bueiro sem tampa e quebrou a bacia, fraturando tam-
bém uma das costelas. Como sequela da queda ficou manco, como
ele mesmo explica. “Me danei e quiseram me aposentar, mas eu não
consegui. Não aposentei. Eu não fui mais atrás e minha perna ficou
quebrada e eu ando coxó, coxó”.

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O médio trajeto, como os demais, é campo fértil de vivên-
cias e experiências para indivíduos que habitam as ruas e convivem
em meio a agruras, fazendo do sofrimento mental e das dores físicas
uma miríade rotineira. Depoimentos narrados e descritos no tópi-
co apontam nessa direção interpretativa de um espaço de tensão.
Situações subjetivas e denotativas implicadas são tantas que seria
pouco eficaz relatarmos o montante sem direcionar percepções de
modo sistemático, como tentamos realizar. Assim, o que se almejou
no propósito atual foi identificar situações as quais pudessem ser
sublinhadas como extremidades de uma vida no médio trajeto, um
espaço de vivência que, em si mesmo, apoia-se em dois outros: o
grande e o pequeno.
Nesse constructo de suposição, a servir de amostra quali-
tativa no tópico, trajetos compostos dentro das redes de fluxo indi-
cam caminhos formados mediante traumas e angústias engendra-
das nas ruas. Mas também formados segundo desejos e sentimentos
de felicidade conquistados em meio a incertezas. O médio trajeto
aponta para uma vida ambígua, de efeitos opostos, tal e qual é a
vida das PSR. E um desses efeitos, como indica a escrita em uma
lona do tipo mural no centro da urbe (figura 9), é a dualidade dos
sentimentos. Amar a rua é também odiar a rua. Ter apreço por ela é
também desprezá-la.

Figura 9. Escrita figurativa atrás de uma banca de jornal no médio trajeto. Fonte: Noélio
Martins, 2018.

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A contradição da rua, equilibrada entre apreços e des-
prezos, é sintoma constitutivo da existência dos baldios em meio
ao caos citadino. A frase em relevo aponta esse norte. A rua, em
diferentes trajetos, de fuga ou esconderijo da realidade, por enten-
dermos dessa maneira, tem como prerrogativa a busca da liberdade
como sinônimo de descompromisso com tudo e com todos. É uma
liberdade apropriada e reposicionada. Mas nem por isso é leve ou
alijada dos fatos. Consequentemente, a liberdade que as PSR procu-
ram nas ruas é incerta e tem um preço porque, a partir dela, essas
pessoas se sentem estrangeiras na própria cidade pelo estranhamen-
to de outrem ou se sentem naturalmente expostas.
Simmel (1986) esclarece sobre proximidades e distân-
cias do eu para o outro, moldadas segundo a questão da liberdade
posicionada de mim para tudo aquilo que não conheço. Assim, o
próximo pode ser o irreal, o designado estranho. Pode ser o estran-
geiro, aquele colocado sempre como distante e inimigo. Esse modo
de olhar as PSR é de uma complexidade que nos remete a pensar os
intercâmbios dos territórios, intuindo que não exista para os baldios
(fixos ou não) uma relação análoga de distanciamento entre o real e
o ilusório. Então, a nosso ver, os baldios acabam sendo percebidos
socialmente como indivíduos inaptos, que se movimentam por di-
versos lugares, porém sem rumo, como estranhos da cidade.
A fluidez, aliada à intolerância e ao preconceito, incide
sobre tal condição de liberdade. Para as PSR, pode ser este um prin-
cípio de desligamento em relação a estabelecimentos parentais e de
amizade. A liberdade de caminhar, andar, perambular, de existir nos
trajetos, de ter e ser, pode gerar a afirmação da vida, mas ao mesmo
tempo concorre para o decaimento e a morte como pessoa (apaga-
mento), o que se configuraria tal como um desaparecimento não só
físico, mas também psíquico. A questão é difícil porque estar liber-
to, nos termos da rua, pode representar ao mesmo tempo estar em
processo de adoecimento, tanto que muitos baldios desenvolvem
sintomas psicofísicos atrelados a episódios dolorosos associados a
experiências dramáticas de vida.
O indicado sugere uma liberdade que tende a cobrar caro
e tudo por causa do cotidiano atribulado, mesclado em adversidades

- 74 -
oriundas do meio onde moram e trabalham. É uma liberdade que se
apresenta, como expomos, conjuminada a sintomas disruptivos que
remetem baldios a sofrimentos resultantes da alta vulnerabilidade e
da exposição a eventos estressores. Indivíduos nessas condições ma-
nifestam não raro distúrbios psicossociais crônicos, expressados por
apatias ou neuroses e psicoses decorrentes de adversidades a que
estão submetidos (BOTTI, 2010). Nas ruas, podem surgir situações
de desfiliação social, apagamento moral e rebaixamento, espraiadas
em traumas e frustrações.
Os complexos modos de se viver em meio ao caos urbano
exprimem, em termos diversos, conjuntos de indícios inerentes à
construção subjetiva do ethos (BAUMAN, 1999, 2005; POLANC-
ZYK, 2009). Nos trajetos cambiantes das PSR está posto o vazio de
existir e o caminhar delas é uma própria escrita de si. O ato de vagar
pelas ruas fica pautado em histórias que provavelmente ninguém
jamais saberá, mas mesmo assim elas andam juntas em configura-
ções de lugares e não lugares, tentando tatear seu modus operandi
no supra-sumo da cidade, onde a incerteza é tudo o que lhes resta.
A constituição desses corpos errantes e dessas mentes
angustiadas, a vagar pelo centro de Manaus, movimenta e corrói a
lógica do viver, porque são pessoas que não existem, são invisíveis
e marginais para a sociedade. O que nos leva a interpretar o médio
trajeto como um palco dos movimentos da cidade, povoado de sen-
timentos de encenação da ordem e da desordem. A errância nos ca-
minhos que o compõem escapa a divisões geográficas estabelecidas
oficialmente. Inclusive pareceu ser uma estranha cidade a Manaus
que se desvendou a nossos olhos, na parte do centro velho, operada
a partir de uma erosão da ordem estabelecida no médio trajeto. No
seu íntimo, revelou-se carcomido esse circuito urbano por germes
que pululam nas brechas de um sistema excludente, a violentar cor-
pos e mentes.
O médio trajeto está circunscrito ao visível de tempos em
tempos nas páginas policiais de sites jornalísticos ou sensacionalis-
tas. Nele, é estabelecido o murmúrio diuturno da fome, da sede e do
cansaço crônico. O lugar dos outros, dos vilipendiados, produz no

- 75 -
médio trajeto o discurso dos silenciados, dos não ditos. Nesse senti-
do, podemos entender em suma o médio trajeto como um território
de ausência, separado pelo macro e pelo micro, onde as PSR que
nele permanecem são vítimas frequentes de negligência, resistindo
a agressões morais e éticas de uma urbe que as marginaliza e as ig-
nora em suas identidades e principalmente em suas humanidades.

- 76 -
CAPÍTULO IV

O pequeno trajeto: as minúcias da vida


4.1 O menor dos caminhos
À medida que vão se encolhendo espacialmente, trajetos
ficam mais densos e populosos. Esse é o caso do pequeno trajeto.
Significado a partir da arrumação e do ajustamento de demais es-
paços, e ainda caracterizado por diversos espaços interligados, está
sujeito ao rigor da urbe. Ou seja, em verdade, o pequeno trajeto
se compõe de diversos microtrajetos posicionados em rede e entre-
cruzados. Molda-se a partir de comunicações realizadas via intera-
ções de diferentes trajetórias de pessoas que formam seus fluxos de
sociabilidade. Nesse sentido, o pequeno trajeto se firma conforme
agregados mensurados por fluxos de crenças e atitudes e também
acionados em circunstância da produção de valores (CASTELLS,
1999a).
O pequeno trajeto aparenta ser um circuito citadino bem
movimentado, porém mais afetivo e seguro. Nele, locais propícios
para repouso se configuram como pontos fixos dominiais, o que é
bem raro de se notar nos demais trajetos.

Figura 10. Croqui do pequeno trajeto percorrido pelas PSR do centro antigo de Manaus.

- 77 -
O pequeno trajeto é configurado por locais próximos uns
dos outros, geralmente logradouros públicos (praças, largos, ruas)
ligados por uma ou mais vias, possibilitando trânsito rápido entre
uma e outra localidade. Símbolo do pequeno trajeto do centro ve-
lho da cidade é a Praça da Matriz, que engloba intersecções com a
Praça Dom Pedro II, a Praça Tenreiro Aranha, a Praça Heliodoro
Balbi e ainda o Porto Flutuante. Outro pequeno trajeto se faz notar
a partir da Praça dos Remédios e se soma ao Mercado Municipal e à
Feira do Produtor (Feira da Banana). Ligações mais movimentadas
do pequeno trajeto se realizam igualmente entre a Praça Heliodoro
Balbi e a área da Manaus Moderna, alargando-se em parte pela ave-
nida Joaquim Nabuco, onde se concentram bares, pousadas, hotéis
de curta duração, comércios de varejo e atacado, distribuidoras de
bebidas e estivas, mercadinhos e restaurantes de prato feito e meren-
da, além de peixarias e soparias.
Inseridos nos pequenos trajetos, para nossa surpresa, no-
tamos que existem trajetos menores ainda, inerentes às contingên-
cias que integram as territorialidades diversas. São os microtrajetos.
Eles, em suma, constituem as veias do pequeno trajeto e geralmente
são destacados a partir de esquinas de praças, calçamentos e entor-
no de igrejas, frontais de parques, teatros e casas de show, próximos
uns dos outros, ligando-se por algumas travessas ou vielas apenas.
Nos microtrajetos existem lugares propícios principalmente a lazer,
sendo espaço comum das PSR os diversos coiós neles constantes.
Microtrajetos, por exemplo, são formados no nodal público do
Largo de São Sebastião, onde temos o Teatro Amazonas, a avenida
Eduardo Ribeiro, a rua Ramos Ferreira e as ruelas que entrecortam
o entorno das Praças São Sebastião, do Congresso e da Saudade.
Nessa zona turística, existem comunicações que factualmente dia-
logam enquanto espaços de convivência comum.
Microtrajetos podem ser notados especialmente após o
cair da luz, quando o centro parece ser uma cidade de habitantes
notívagos. A identificação de indivíduos sem-teto, que durante o
dia se misturam a outras pessoas, fica facilmente aparente à noite.
Nos microtrajetos noturnos notamos a dimensão do quantitativo

- 78 -
de gente que mora nas ruas do centro velho e as esferas sociais dos
tipos de usos e contra-usos dos espaços coletivos. São pessoas que
parecem esconder ou disfarçar sua condição das 8h às 18h porque
o povoamento das ruas dá-se sem maiores problemas ao anoitecer.
Os notívagos criam microtrajetos a partir de zonas de influência de
seus grupos.
São os microtrajetos em rede que compõem o pequeno
trajeto (figura 11), conectando territórios em trajetórias e fluxos
contínuos, o que intensifica adaptações e interceptações de fron-
teiras físicas ou subjetivas (CASTELLS, 1999b). Sendo que idas e
vindas esporádicas de cada grupo de PSR a territórios vizinhos re-
querem expertises, acordos e cautelas. Existem regras em cada mi-
crotrajeto, em cada território e em cada um dos pedaços afetivos
ocupados pelas pessoas em situação de rua. Existem agrupamentos
que compõem características próprias reconhecíveis por partícipes
e convivas.

Figura 11. Microtrajetos em rede sublinham caminhadas percorridas pelas PSR no


centro velho

Perguntamos para a interlocutora Cristiane, PSR, sobre a


quantidade de mulheres nas ruas do centro velho e suas dificuldades
ou facilidades de vida como sem-teto. Ela respondeu, em primeiro

- 79 -
lugar, que a higiene é fator primordial e necessário. “Porque mens-
trua, tem que tomar banho, tem que trocar de roupa e aí não tem
como [...] E aí tem que se cuidar, né. Que eu conheço, que anda ar-
rumada [cuidada/higienizada] assim... minto... que anda arrumada,
é só eu. Mas tem uma também que anda arrumada. A mulher do...
mas o resto, nenhuma”. Sobre a relação de poder e os domínios dos
lugares, Cristiane nos deu pistas sobre a disputa por espaços afeti-
vos, destacando a separação por coiós de influência.

Elas [outras mulheres] ficam lá pra baixo. De noite é uma confu-


são. Depois das seis horas [18h] aqui é uma tomando o papelão
da outra. Aqui à noite homem já não manda. Assim como tem
homem brabo, tem mulher braba também. Se juntam aqueles
montinhos de mulheres brabas, e daí daquele monumento pra
lá é elas que mandam. E pra lá é território delas. Daqui pra cá já
é os homem que já são os brabos. Dali pra lá, já são as mulheres
que são as brabas. Aqui um respeita o outro, mas lá embaixo
é uma sacanagem só. Lá é um roubando o outro. Aqui nós se
respeita. Se eu deixar esse boné aqui ninguém pega. Se pegar,
depois me devolve e diz “olha tu vacilou, tava ali do lado, mas é
teu” e me devolve (Cristiane, PSR, novembro/2018).

Indivíduos, ao se aventurarem em territórios adversários,


precisam no mínimo aceitar ditames do lugar e respeitar líderes de
demais grupos. É bom senso dar uma oferta, uma ajuda (cf. dádiva,
MAUSS, 2003), que pode ser um cigarro, uma bebida, uma comida
ou qualquer droga. Os pequenos trajetos parecem ser, por definição
observável, trajetos de merecimento e apoio comum, dentro de uma
economia da doação, da retribuição, onde existe um intercâmbio
de trocas e uma gramática da coletividade. Por serem menores e
de trânsito rápido, os territórios propiciam a naturalização do dar
e do receber, no sentido maussiano de aceitar e retribuir presen-
tes. Há uma obrigação implícita no ato de ofertar e trocar porque
a ajuda é um dever para resguardá-los contra conflitos internos e
externos. São formas aceitas de contrato social, mediante acordos
que mantêm certa harmonia entre amigos e inimigos, adversários e
comparsas; entre modos de associação que vão além do material e
do palpável, coexistindo enquanto moedas de troca (cachaça, cigar-
ro, cola, loló, dinheiro, objetos, sexo e entorpecentes, dentre outros).

- 80 -
Em trabalho de campo, na noite de 30/10/2018, presencia-
mos um desses momentos de solidariedade.
As PSR carregam consigo o mínimo de utensílios, objetos
ou itens essenciais de limpeza, cuidado e alimentação. Por causa da
escassez, umas emprestam o que têm a outras por diversas vezes.
Foi o caso de um indivíduo que pediu spray de alfazema ao colega
em uma das nossas incursões de campo: “[...] me dá uma ajuda no
teu desodorante?”. Prontamente, nosso interlocutor Breno serviu o
cosmético ao parceiro de território. Outro sujeito que não quis se
identificar entrou na roda da conversa em que estávamos e ofereceu
uma pomada. Falou que era cicatrizante. “Essa pomada serve pra
baque, ferida e pereba. Quem quiser, é sebo-de-holanda, é só pas-
sar”. Nós agradecemos. Na mesma situação, começou um carteado e
ocorreram em seguida apertos de mão, tapinhas nas costas, chistes
peculiares, cascudos, beliscões, tapas, empurrões e xingamentos no
contexto do jogo, o que foi interpretado como uma arena de ritos de
desafio, cordialidade e integração.
O que vimos foram supostos marginais ou desviantes, bal-
dios, a partir de um lado humano, independente da condição em
que se encontram. PSR são homens e mulheres com regras dentro
de uma natureza cotidiana. E assim questionamos: qual o conjunto
de regras que orientam a conduta das pessoas nas ruas? Podería-
mos pensar na reciprocidade, já historicamente estudada, por ser
um estabelecimento de afinidades entre iguais e diferentes, e ainda
de contrato de relações de sustentação com competidores ou apoia-
dores. Estabelecem-se, por meio dela, sociabilidades tendo em vista
o lugar do outro, a empatia e a alteridade. A sociabilidade observada
no pequeno trajeto como um todo marca ações sincrônicas vividas
por baldios (SIMMEL, 1967). Temos, então, formados os vínculos
de convivência em articulação aos laços comunais, ainda que tênues
e rarefeitos.
Também no âmbito da dádiva, vimos trocas simbólicas de
gentileza e respeito, mas houve ainda um tipo de reprodutibilida-
de negativa a incidir e concorrer para ofensas subjetivas quando a
oferta não se realizava a contento. Observamos a questão a partir
de maus tratos e brigas. Mesmo em espaços de sociabilidade, PSR

- 81 -
estabelecem confrontos, zonas de forças opostas e controvérsias que
compõem o território onde estão em diferentes momentos. Não há
consciência ingênua. Há, sim, instabilidades e precariedades em que
se encontram e realizam a desobediência civil.
As regras das ruas levam os baldios a uma estruturação de
poder estabelecida por vínculos de força. Para funcionar, pessoas
instituem identidades plurais, operadas diretamente por elementos
de persuasão, de violência ou alteridade. No estudo da filosofia, a
alteridade está relacionada ao ato de se colocar no lugar do outro, de
ser o outro, em um exercício inter-relacional de medição de forças.
Como já explicitado, é um exercício de humanidade para o reconhe-
cimento de características recíprocas entre grupos.
Apesar de a tentativa de alcançar o outro ser uma ação utó-
pica, pois é exterior ao eu, temos de salientar que, como estrangeiros
de nós mesmos, talvez nunca sejamos alcançados pelo próprio eu ou
pelo externo. Todorov (1999), acerca do afirmado, destaca sobre a
descoberta do eu e do outro em paralelo à descoberta da vida. “Po-
dem ser descobertos outros em si mesmo e assim percebemos que
não somos uma substância homogênea. Mas cada um dos outros é
um eu também. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos
estão lá e estou aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de
mim” (ID., op. cit., p. 3).
No contexto das PSR do pequeno trajeto, existe pressu-
posto em Bakhtin (1993, p. 15) a destacar que “a linguagem familiar
da praça pública caracterizada pelo uso frequente de grosserias, ex-
pressões e palavras injuriosas” é um tipo de linguagem integrativa,
de caráter mágico e encantador, que faz interagir o eu e o outro. Não
descartamos isso, em tese, de nossa avaliação. No entanto, a lingua-
gem nesses termos é uma forma mediada de se manter em contato
com o que está fora de si. Jocosa, por certo. A bem dizer, irônica e
utilizada em doses, o que nos levou a crer que supostas grosserias no
cumprimento entre grupos do pequeno trajeto estão postas entre o
escárnio e a sátira, relativizando-se a temática.
Salientamos uma passagem para justificar o que defende-
mos.
O senhor Salim, PSR, 51 anos, estabelecido na Praça dos
Remédios, ao se comunicar com seu colega, diz: “seu cabra sem ver-

- 82 -
gonha, venha aqui, vamos conversar com os rapazes [e aponta para
nós, os estrangeiros ali]”. O outro responde: “só te olhei, não tô te
cobrando nada, não, fuleiro”. Ao que notamos, a linguagem aqui é
voluntária e direcionada a se estabelecerem vínculos de cumplici-
dade. Essas são características percebidas não apenas em grupos
endógenos de PSR, mas igualmente entre transeuntes e PSR, domi-
ciliados e PSR, comerciantes e PSR, motoristas e PSR, ambulantes e
PSR. Particularmente nesses atos todos interagem.

[…] o que eles trocam não são exclusivamente bens e rique-


zas, mas bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamen-
te. São, antes de tudo, amabilidades, banquetes, ritos, serviços
militares, mulheres, crianças, danças, festas e feiras, nos quais
a circulação de riqueza não é senão um dos termos de um
contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas
prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma,
sobretudo, voluntária, por meio de regalos e auxílios, embora
elas sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de
guerra privada ou pública (MAUSS, 2003, p. 190).

As PSR, portanto, explicitaram a existência de relações de


cordialidade com donos de restaurantes como sendo estas as prin-
cipais nos seus trajetos. No fim do expediente, sobras de comida
são oferecidas em troca de serviços de retirada de lixo, de lavagem
da calçada ou carros na frente dos estabelecimentos. Proprietários
de restaurantes apresentam, então, uma dádiva e em troca acordam
que a clientela não será importunada, garantindo a freguesia da casa.
Sobre isso, houve uma narrativa recorrente entre os caminhantes do
pequeno trajeto. Para eles, “só passa fome quem quer”.

Se o problema for fome, pode pedir que o pessoal aqui te dá.


Passa fome se quiser. Por aqui, só passa fome se quiser mesmo.
Se você não faz alguma coisa, eles dão; e se você faz alguma
coisa, eles dão também. Só animal preguiçoso mesmo, que não
sabe nem conversar, é que passa fome. Mas a pessoa que sabe
dialogar, ela chega assim e se explica direitinho. “Olha, estou
passando por uma necessidade por causa disso, disso...”. Aí, ó,
em qualquer restaurante desses aqui o pessoal diz “tá bom,
você vai almoçar o tanto que você quiser, o tanto que teu bucho
aguentar”. Aí, deu aquele horário, depois dos clientes saírem,
você leva o lixo lá pra baixo e é só isso o serviço. Aí você pode

- 83 -
comer o tanto que quiser. Deu três da tarde, fecha o restauran-
te. Você leva cinco, seis sacos de lixo lá pra baixo e senta e come
o tanto que seu bucho aguentar (Ademar, PSR, 52 anos).

O sistema de compensação se faz de modo direto, no “to-


ma-lá-dá-cá”, ou seja, por um processo de escambo que remete a
primórdios, quando sociedades se constituíam prioritariamente por
vínculos de fidelidade ou afinidade, em função da cobrança de sa-
crifícios ou itens, de favores, de mulheres, de crianças, de cavalhei-
rismos e promessas, ou de qualquer coisa que lhes apetecesse. Era
uma maneira de estreitar laços de amizade ou estabelecer bônus ou
dívidas, prevenindo futuras guerras e cimentando alianças tempo-
rárias ou duradouras. Não somente isso ocorre no pequeno trajeto
do centro velho, dado que não podemos ser reducionistas acerca
de relações pessoais, pois certamente existem trocas desinteressa-
das ou até aquelas em que se busca a generosidade solidária para se
ajudar alguém sem esperar nada como resposta dadivosa. Mas esse
ponto, a partir de Mauss (2003), que notou a correlação em meio a
fenômenos sociais na Polinésia e regiões do entorno, tendo em vista
a compreensão de vínculos comunais e jurídicos para a obrigação
da transmissão das coisas, não de fato foi abordado por nós neste
específico trabalho.
Todavia, podemos salientar que o vínculo de oferecer algo
se configura um tanto mais profundo na medida em que o modelo
de trato não é só material, mas confidencial, pois apresentar algo a
alguém é também dar algo de si.

Compreende-se logicamente, nesse sistema de ideias, que seja


preciso retribuir a outrem o que na realidade é parcela de sua
natureza e substância; pois aceitar alguma coisa de alguém é
aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma. A conser-
vação dessa coisa seria perigosa e mortal, e não simplesmente
porque seria ilícita, mas também porque essa coisa que vem
da pessoa, não apenas moralmente, mas fisicamente e espiri-
tualmente, essa essência, esse alimento, esses bens, móveis ou
imóveis, essas mulheres ou esses descendentes, esses ritos ou
essas comunhões, têm poder mágico e religioso sobre nós. En-
fim, a coisa dada não é uma coisa inerte. Animada, geralmen-
te individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava

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“seu lar de origem”, ou a produzir, para o clã e o solo do qual
surgiu, um equivalente que a substitua (MAUSS, 2003, p. 200).

Em comparação, também Godelier (1996) avalia a impor-


tância do dar, do receber e do retribuir para o funcionamento de
sociedades. São estruturas que fundamentam elos de respeitabilida-
de, demonstrando o valor dos atos comunais e as respostas a partir
deles, dentro de teores sentimentais. Noutra linha de pensamento,
há coisas que a gente vende por necessidade financeira e coisas que
a gente não se apega e distribui de forma desprendida. Sobre isso,
o autor manifesta duas vertentes da dádiva, uma ligada à solidarie-
dade e outra à superioridade. Explica ainda que, quando se dá algo,
acaba-se repartindo com alguém o que é seu, praticando assim a
solidariedade.
A questão da superioridade, por sua vez, implica no esta-
belecimento de estados de grandeza moral, pois quem recebe um
presente fica em falta com a pessoa que doou. Para além da dádiva,
o autor trabalha em O enigma do dom outros intercâmbios sociais
ligados ao ato de se dar ou não se dar, a exemplo de situações em que
são envolvidos aspectos do sagrado. Nesse âmbito, configura-se o
ato como exercício daquilo que não se doa de modo inconsequente,
mas intencional. A ideia expressa uma troca de dons enquanto dá-
diva generosa, aproximando pessoas não apenas de modo material,
mas espiritual. O dar, no trâmite do sagrado, não implica em esperar
retribuição ou desafogar a culpa, como quiçá aconteça com a esmo-
la. Na essência, a dádiva para Godelier (2001) busca o estabeleci-
mento de laços, vínculos subjetivos que instituem endividamento
mútuo em um pacto de confiança, fé ou amor ao semelhante, ou
ainda segundo graça divina.
Percebem-se semelhanças ainda hoje, desta forma, em
uma tentativa de traduzir o estudo clássico de Mauss (ID., op. cit.)
junto ao suposto por Godelier (1996). Em nossa impressão, o des-
crito, em parte, dá-se no pequeno trajeto, onde a dádiva funciona
como atividade nutritiva às relações funcionais e mesmo que espo-
radicamente para a conservação de analogias similares no primor-
dial do ganho e da retribuição. Sendo essas relações pautadas ou não

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pelo uso de dinheiro, ocorrem ainda por solidariedade direta com
o outro.
O senhor tá querendo saber o que abalou ou o que melhorou?
[E ficou bastante sério, quase chateado]. Eles fazem o melho-
ramento da praça, mas não se lembram das pessoas ao redor.
Os políticos não ajudam na parte social, na nossa parte. Mas
aqui o que acontece é o seguinte: tendo ou não tendo comida,
um ajuda o outro. A gente já não tem, mas a gente consegue
um ajudar o outro. Se eu tenho uma bermuda velha e a dele tá
furada, eu arranjo pra ele e assim vai. E vice-versa (Ademar,
PSR, 52 anos).

Para ganhar a vida nas ruas do centro velho de Manaus,


dentro do pequeno trajeto, é necessário ter ações cotidianas e ati-
tudes propositivas frente a percalços da existência. Por conta disso,
as PSR acomodadas com mais frequência dentro dos microtrajetos
componentes dali, não conseguem ficar muito tempo em um mes-
mo lugar, configurando-se como andarilhas recorrentes, dado que
perambulam em diversos pontos de fuga e naturalmente ficam fa-
digadas por estarem por muito tempo sem um coió privado. Nas
ruas do pequeno trajeto, todos se conhecem. O movimento entre
pares faz parte da rotina de integração e ganho, configurando-se
como parte da trama diária de sobrevivência pelos territórios onde
se transita.
Nesse plano, microtrajetos se revelam mediante processa-
mentos de disputa formados às margens do sistema territorial co-
mumente adotado nos trajetos grande e médio, constituindo outra
realidade das relações das PSR com seus pares. Valores, comporta-
mentos, códigos, éticas de rua, morais, lideranças, solidariedades,
cumplicidades e vigarices são alguns padrões comportamentais que
se fazem observáveis muito mais nessas localidades, podendo variar
para a exacerbada ou mediana rigidez dependendo do grupo.
No interior do pequeno trajeto existem conexões que li-
gam, a saber, a Praça Pedro II ao conjunto de praças da Catedral
(Praça 15 de Novembro, Praça da Matriz, Praça Osvaldo Cruz), que
por sua vez se integram à Praça Tenreiro Aranha e esta última se
associa à Praça Heliodoro Balbi e à Igreja Nossa Senhora dos Re-

- 86 -
médios (Praça dos Remédios e sua vizinhança). Dessa forma, pro-
ximidades geográficas subsistem apesar de distanciamentos quanto
a suas peculiaridades. Contudo, esses pequenos trajetos desempe-
nham funções importantes. Ao serem atrelados a microtrajetos,
compõem-se em aglutinação, assemelhados a corredores de passa-
gem que permitem interações simbólicas. Funcionam enfim como
um emaranhado de redes que resguardam relações humanas em
moldes interconectados, permitindo possibilidades de migração de
um trajeto a outro.
Microtrajetos consistem em meios intermediários para se
transitar em diversos espaços até o completo estabelecimento das
PSR em determinado ponto. Nas redes das relações, cruzam-se his-
tórias com enredos parecidos, as quais apontam para representações
salutares. Gradativamente, nesses trajetos, indivíduos podem es-
maecer ou simplesmente parar de lutar por trabalho, família e vida
social, entregando-se ao acaso, à sorte das ruas. Desse aspecto, fala
a nós uma PSR do pequeno trajeto quando indagada sobre o motivo
que a levou a estar na referida territorialidade.

Porque eu tive várias encrencas na minha vida, vários proble-


mas mesmo na minha vida. Aí eu fui desistindo aos poucos
de lutar e, quer saber, eu não vou pagar mais banco, não vou
pagar mais ninguém e também não vou ficar no hospital direto,
não! E assim foi. Cada um tem um tipo de zimbra aqui (sic!). Aí
misturam as coisas, aí é problema familiar, problema financei-
ro, falta de perspectiva e aí vai. Você entra assim, num funil,
aí você vai afinando até você pegar e dizer “é aqui mesmo”. E
pronto, acabou-se. Daqui eu não sei como é que eu saio. Porque
pra gente fazer o funil ao contrário é mais complicado. Té doi-
do, é! (Ademar, PSR, 52 anos).

O baldio assume um lugar autônomo em sua narrativa e


se apresenta como responsável pela sua situação, responsável pela
sua escolha. Ele descreve a vida por si e nos parece que não formula
discurso hermético, referendando a tese do oprimido-versus-opres-
sor (uma tese real e efetiva, diga-se por ênfase). Acima de tudo, ele
se mostra como silenciado, marginalizado. É um baldio quem fala,
quem é dono de sua história existencial, e, sobretudo, quem não

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nega essa história, quem não se insere na ideia de comiseração, de
objeto estático, mas assume sua responsabilidade e o peso que o Es-
tado e o mercado imputam a si, como agentes exploradores. As cir-
cunstâncias socioeconômicas e de saúde lhe impuseram, por outro
lado, uma visão que tem muito de política, de contra-hegemônica
(SPIVAK, 2010). E parafraseando Spivak (ID., op. cit.), pergunta-
mos: “pode o baldio falar?”.
As pessoas em situação de rua do centro velho de Manaus,
vistas como subalternas, podem não ter um lugar amplo para sua
fala na polifonia da cidade, mas seus gritos de resistência nas ruas e
praças ecoam sem cair na banalidade e no sítio comum das genera-
lidades. Nesses gritos, desespero e dor são vistos como loucura e va-
gabundagem e não significam absolutamente nada ao passante oca-
sional do universo das PSR. Com isso, a integração entre citadinos
e sem-tetos é abafada pela sugestiva mudez da opinião dos comuns.
Falas como a de Ademar (ver citação anterior), assim sen-
do, dentre tantas outras pessoas que notamos, são guardadas para
eles mesmos, os baldios, porque são o que os fazem existir. Se não
falam, sucumbem ao anonimato e à pecha de subalternos, deixan-
do de participar da história, omitindo-se na construção de uma vi-
são de baixo, que se faz legítima de ser contada (BURKE, 1992). O
próprio Burke (op. cit.) analisa que “retratar o socialmente invisível
ou ouvir o inarticulado, a maioria silenciosa dos mortos, é um em-
preendimento mais arriscado do que em geral é o caso na história
tradicional” (ID., p. 26).
Semelhante ponto de vista é assumido por Sharp (1992)
quando aponta o recrudescimento de uma visão estritamente elitis-
ta do passado em favor de histórias e descrições do presente, menos
assimétricas. Com isso, pensamos na perspectiva objetiva do lugar
de fala das PSR do centro antigo, integradas ao pequeno trajeto,
que tendem a sublinhar contrapontos em suas memórias, tateando
intencionalidades para descrever e reposicionar sua existência nas
ruas. Acerca da temática, Foucault (2003a) afirma:

O insignificante cessa de pertencer ao silêncio, ao rumor que


passa ou à confissão fugidia. Todas as coisas que compõem o

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comum, o detalhe sem importância, a obscuridade, os dias sem
glória, a vida ordinária, podem e devem ser ditas, ou melhor,
escritas. Elas se tornaram descritíveis e passíveis de transcri-
ção na própria medida em que foram atravessadas pelos meca-
nismos de um poder político. Durante muito tempo, só os ges-
tos dos grandes mereceram ser ditos sem escárnio; o sangue,
o nascimento e a exploração davam direito à história. E, se às
vezes acontecia aos mais humildes terem acesso a uma espécie
de glória, era por algum feito extraordinário ― o resplendor de
uma santidade ou a enormidade de uma maldade. Que pudesse
haver na ordem de todos os dias alguma coisa como um segre-
do a ser levantado, que o não essencial pudesse ser, de certa
maneira, importante, isto permaneceu excluído até que viesse
a se colocar sobre turbulências minúsculas o olhar branco do
poder e da glória (FOUCAULT, 2003a, p. 11).

Considerando o destacado e entendendo a proposição em


face do pequeno trajeto, notemos o que é interpretado neste mesmo
livro, A vida dos homens infames (2003a), quando se destacam seres
quase fictícios e suas vivências verbais atreladas à sorte de alguns
documentos onde constam resquícios de suas falas.

Mas o recoleto apóstata, mas os pobres espíritos perdidos pe-


los caminhos desconhecidos, estes são infames com a máxima
exatidão; eles não mais existem senão através das poucas pa-
lavras terríveis que eram destinadas a torná-los indignos para
sempre da memória dos homens. E o acaso quis que fossem
essas palavras, essas palavras somente, que subsistissem. Seu
retorno agora se faz na própria medida segundo a qual os ex-
pulsaram do mundo. Inútil buscar neles outros rostos ou con-
jecturar outras grandezas. Eles não são mais do que aquilo
através do que se quis abatê-los: nem mais, nem menos. Assim
é a infâmia estrita, aquela que, não sendo misturada nem de
escândalo ambíguo nem de uma surda admiração, não compõe
com nenhuma espécie de glória (FOUCAULT, 2003a, p. 06).

De alguma forma, seres humanos invisíveis e marginali-


zados do pequeno trajeto conseguem constituir suas histórias nas
ruas mesmo sendo vidas afetadas pelos caminhos da desordem e da
ira do Estado e do mercado. Conseguem falar abertamente de suas
aflições, amarguras, medos e sonhos, muitas vezes com sangue nos
olhos. Outras vezes, com ternura. Na proposição de Salim, PSR, é

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especificado:
Eu me sinto melhor, sabe como é, pegando o ar livre. Me sinto
melhor aqui do que, sabe como é que é, dentro de casa, preso.
Certo? [...] Tenho meus colegas. Ganho meu dinheirinho. Tem
as pastoras que vêm lá de baixo me ajudar. Medo eu tenho.
Mas o que eu posso fazer? Eu me deito toda hora da noite, sabe
como é, pedindo a Deus que a morte possa chegar pra mim sem
muita dor. Que me leve devagar. E então com a morte eu posso
sair do fundo desse poço. Eu quero sair, mano, eu quero sair
daqui, ter um lugar para mim. Mas depende de a morte tocar
no meu coração e me tirar desse lugar errado (Salim, PSR, 51
anos, 2018).

Por fim, interessa ressaltar: os microtrajetos, como peças


a compor o pequeno trajeto, são interligados. O discurso de Salim
é seminal para entendermos isso. Ele conta do peso das responsa-
bilidades, reabilitações, regras e clausuras, divagações e angústias,
além dos prazeres e do sexo. Tudo é socialmente inaceitável para o
higienismo moderno. Mas para os baldios é uma vida que esgota e
consome se isso não tiver. É um preço alto, como pondera o próprio
Salim. Tão elevado que a existência indócil das ruas é mais sedutora
se comparada aos desafios impostos pela sociedade, com seu ideal
de família e moralidade. Tudo nas ruas guarda uma ambiguidade no
próprio seio regimental.

Não, não me sinto feliz. Mas também não sou triste. Eu me sinto
feliz por passar uns dias por aqui. Eu peço até uma ajuda de
umas pessoas aí. Mas eu queria era que chegassem comigo e
dissessem pra eu sair daqui. Se pedissem, eu diria: “meu filho,
me tira desse lugar que aqui não é meu lugar”. Queria alguém
pra me colocar em um lugar melhor. Eu sou safado, eu sou sem
vergonha, de morar na rua. Todo dia, todo dia eu bebo cachaça.
Olha aqui, olha aqui pra mim. Eu bebo minha cachaça, sabe,
mas não brigo com ninguém, não mexo com ninguém. Fico re-
parando meus carros aqui. Não vivo na bagunça com ninguém.
Querer uma casa de recuperação? E aí? Como eu posso ir pra
lá? E lá eu e não vou sair pra nenhum canto? Porque eu fumo
e bebo. Ficar isolado lá? Levar pra um abrigo e lá não fumar e
não beber? E aí, mano, eu bebo e fumo? Assim eu não quero
ficar, não! Eu quero a vida livre pra beber minha cachacinha
(Salim, PSR, 51 anos, 2018).

- 90 -
CAPÍTULO V

Relações notívagas em coiós e pousios


5.1 As coisas e pessoas da noite
No tópico que segue foi meta ponderar acerca da relação
das pessoas no centro velho da cidade com a noite e seus engendra-
mentos. Após tratarmos dos trajetos em suas territorialidades, foi
assumida a problemática do tempo enquanto agente da vida. Por
isso, tomamos a noite como lugar do sobrenatural, do fantástico e
da referência ao mágico e admirável para os baldios. O noturno, ao
aflorar medos e desejos, também guarda pecados e oculta transgres-
sões com menor dificuldade. À noite, pessoas saem em busca do
algo inusitado, da surpresa, do inesperado, da quebra de uma rotina
de trabalho pesado e sofrimento. É o princípio da hora do lazer, e
lazer, para as PSR, vem movido por euforia.
Os notívagos partem da melancolia à excitação e dão uma
guinada psíquica com a ajuda de combustíveis desinibidores (psi-
cotrópicos), que não podem faltar. Delumeau (1989) fala da noite
como submundo e esfera underground, em que pecado e escuridão
são agentes solidários, capas de proteção, formam pretextos ideais
para a resistência. “Fantasmas, tempestades, lobos e malfeitores ti-
nham a noite por cúmplice. Esta, como muitos medos de outrora,
entrava como componente considerável e era o momento onde os
inimigos do ‘homem de bem’ tramavam sua revolta, no físico e no
moral” (p. 138).
No aspecto da sobrevivência, no entanto, a noite já foi vis-
ta como um horário a ser evitado, pois é na pouca visibilidade que
adversários aproveitam para agir e combater. A noite induz à guerra
(ID., op. cit.). Sobre a temática, em Essa música foi feita por mim!
Relações amorosas, paixões e cotidiano presentes na música brega em
Manaus (COSTA, 2014) é posto o correlacionamento de hábitos no-
tívagos a regras e condutas próprias seguidas por grupos de PSR do
centro de Manaus. No estudo, foi tomado como fenômeno de cons-

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tituição das pessoas em situação de rua o fato de elas serem propen-
sas a atividades sociais das 19h às 5h. A pesquisa foi desenvolvida
na medida em que se propuseram reflexões de que a noite, apesar
de representar a temporalidade em que espaços do não-trabalho são
mais observados, é também um período em que tomam lugar coisas
referentes a esferas esplêndidas, imaginárias, fascinantes e de base
deslumbrante.
É na noite, em boa parte, que afloram desejos latentes. É
nela que perversidades tendem a ser praticadas ou escondidas. Se
uma PSR de qualquer um dos trajetos do centro velho parte para
a noite em busca do inusitado, da surpresa, da diversão e quiçá da
delinquência, ela encontra certamente. No caso das territorialidades
por nós especificadas, entendemos que a noite auxilia no oculta-
mento de mazelas do dia a dia, no gasto ou empenho financeiro do
que não se possui, nas vantagens, mentiras e piadas que se conta.
Movidos pela euforia envolvente do ambiente do centro da cidade,
baldios adotam o período da noite como sendo o mais aderente a si
mesmos.
Nesse âmbito, é parcimonioso destacar que no centro de
Manaus existem lugares pouco comuns para muita gente. Lugares
tolerados pelo poder público, que saem nos jornais (e quase sempre
em páginas policiais) e são vistos como supostos antros asquerosos
de prostituição e consumo de entorpecentes, próprios da margina-
lidade e da degeneração etc. Mas entre notívagos e boêmios, traba-
lhadores e vagabundos, PSR que também frequentam espaços do
não-trabalho, esses lugares em suma são localidades para se divertir
e viver. Falamos aqui de uma diversão e de um experimento de vi-
vência resumidos quase sempre a reuniões para se beber e fumar e
transar. E nada mais. Ou seja, são em verdade pontos onde se equi-
libra o labor incessante ao lazer, em uma simbiose viciante.
Bebe-se de tudo, desde a tradicional cachaça (corote, came-
linho ou granada), consumida dentro e fora de casas noturnas, bares
e inferninhos, até a caipirinha, o conhaque de alcatrão e a vodca. O
consumo de drogas também tem um cardápio variado. Tabaco, ma-
conha, cocaína, oxi, merla e crack. Naturalmente o que vai decidir o

- 92 -
tipo de bebida ou fumo ou sintético inalado é a condição financeira
dos indivíduos. Muitos não conseguem suportar a vida nas ruas
sem se entorpecerem, buscando um escape ou sustentação. Outros
não pensam mais nisso. Só querem usar. Comumente, começa-se
com uma cerveja, para chamar a atenção de mulheres e homens que
são convidadas/os a tomar um copo e se integrarem a grupos com
algum dinheiro — quando se tratam de conjuntos territoriais di-
ferentes. Depois que acaba o dinheiro da cerveja, passa-se para a
caipirinha ou o conhaque, naturalmente mais baratos.
Algumas pessoas no centro com quem dialogamos deno-
minam o terceiro estágio de “kit pobreza”, quando se tem um arru-
mado de itens de baixo custo financeiro, composto de corote (aguar-
dente barato), derby (cigarro mais barato do mercado) e kissuque
(marca de corante artificial usado para o preparo de refrescos). O
tripé de elementos gera uma mistura que dá mais cor e sabor para a
aguardente, facilitando a ingestão. Geralmente, homens bebem e fu-
mam mais que mulheres, usando latinhas ou copos como substratos
com os quais se agarram para não ficarem de “mão abanando”, ou
seja, livres de um trago. Mulheres preferem mais cigarros e pedem
para parceiros ou parceiras acenderem. Dão ou pedem também ci-
garros emprestados, jogando fumaça no pescoço de companheiras
ou companheiros e, assim, participam com vitalidade de troças e
chistes noturnos. Elas não raro comandam rodas de bebida e tiram
sarro de homens para mostrar domínio de espaços ou mesmo terri-
tórios. Há todo um jogo de sedução marcado por sutilezas e lingua-
gem corporal subjetiva, semelhante a rituais de conquista de apoio
e poder.
Em muitos espaços do centro estão instaladas casas notur-
nas, bares ou clubes que funcionam para atender o gosto popular.
Nas imediações do porto e da Manaus Moderna temos as famosas
casas Recanto da Natureza, Mauá, Bigode, Aquarela, Scorpion, Jet-
-Set, Flanboyam, Gringos Bar e Remullo’s. Todos eram ou são uma
mistura de bar, prostíbulo, casa de jogo e boca de fumo. A maior
parte das PSR notívagas que não entram em casas noturnas esta-
ciona nas imediações, consumindo álcool, maconha, cocaína, oxi,

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jogando, comendo churrasquinho-de-gato e mangueando restos de
cerveja ou cigarro. Nesses espaços, na linguagem popular, “rola um
baculejo”, ou seja, ocorrem abordagens policiais, principalmente se
houver aglomeração ou briga.
Batidas policiais constantes funcionam da seguinte forma:
a festa é paralisada com a chegada de PMs, que conduzem e revis-
tam homens de um lado e mulheres de outro. Todos encostados nas
paredes, com mãos na cabeça, de costas, com pernas abertas, para
serem revistados. Quem se recusa ou questiona pode levar umas
tapas e ser detido. Por causa disso, a esperteza constitui-se como
característica importante para sobreviver na noite, configurando-se
também como tática de posicionamento moral. Cuidados quanto a
golpes, furtos e brigas devem ser constantes partindo desses jogos
de poder e ajudam a tornar as PSR “invisíveis no universo das co-
dificações da transparência generalizada” (CERTEAU, 1994, p. 98).
No conhecido golpe “boa noite, cinderela” a ação do al-
goz consiste em colocar o remédio “ropinol” (ruhypnol) na bebida
da vítima. A droga, assemelhada a clonazepam, adormece e faz cair
no sono qualquer indivíduo, facilitando, dessa forma, a subtração
de pertences. A polícia, nesse sentido, constantemente generaliza
ações, reprimindo o golpe e todos os baldios que estão nas ruas do
centro velho são suspeitos antes de qualquer coisa. Nos momentos
da revista policial, não há ninguém fora do patamar da dúvida. Per-
cebemos também que a PM não consegue debelar a maioria dos
casos, talvez por falta de estrutura, condescendência ou banalização
da situação.
O Estado minimamente se faz presente e o mercado dá de
ombros, até mesmo porque o comparecimento de policiais não é re-
gular e muitos dos fardados afirmam ser esse tipo de marginalidade
endêmica dos pontos das PSR centrais da urbe. De todas as formas,
há algum esforço a ser mantido, mesmo que de modo precário. O
disciplinamento de condutas, o enquadramento e a normatização
por meio de mecanismos de repressão policial em face à marginali-
dade notívaga seguem acontecendo. A maneira do Estado de vigiar
atitudes por meio da polícia, além de monitorar comportamentos
e movimentos de corpos, assim como disciplinar gestuais psicofí-

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sicos, principalmente dos mais vulneráveis e miseráveis, denota
justamente a potencial força que se pretende aparentar e usar para
desgastar os baldios.
O Estado, assim, almeja manter o corpo social sob contro-
le para que não ultrapasse determinado limiar, tornando-se nocivo
ao higienismo. Para a repressão, o mau comportamento aliado à ile-
galidade não pode ser tolerado e os atos vis dos sem-teto exigem,
por parte do Estado, uma punição severa e exemplar. Desta feita,
não ameaçando o sistema dá-se a lógica de funcionamento útil dos
espaços para o governo. O papel da PM, então, passa a ser o forne-
cimento de domínios a determinados comportamentos, como no-
tamos, sendo que “até pedras podem tornar-se dóceis e conhecíveis
[pelo uso da violência]” (FOUCAULT, 1987, p. 197).
Além do lazer, existe igualmente o trabalho na noite. Boa
parte das PSR procura latas de cerveja vazias e papelão e isopor para
reciclar no período. Amassam latinhas e colocam em um grande
saco, assim como fazem com demais materiais, mas sem deixar
muitas vezes de aproveitar o resto de cerveja nelas e beber. Existem
pessoas que vivem da noite e em torno dos eventos gira um mercado
informal imenso. São ambulantes que vendem objetos, comidas e
inutilidades para sobreviver.
Há quem venda cachaça e cerveja em caixa de isopor, flo-
res de cera, chapéus, camisetas com foto e nome de ídolos, além de
foto instantânea, CDs e DVDs piratas, bombons, queijo quente, ovo
de codorna, carne no espeto e coquetel de pinga. E esse último item
seria indispensável antes de uma boa noitada a dois, a três. Inclusi-
ve os anúncios de pousadas e motéis são pintados nas paredes dos
estabelecimentos com referência a bebidas. “Pousada a R$ 20,00,
com apartamento de tv e ventilador. Com frigobar e garagem são
acrescidos R$ 10,00 em cada 1 hora. Três horas a R$ 30,00 na pro-
moção. Temos guaraná em pó. Temos cerveja e batida de guaraná...”.
São serviços informais que garantem a vida de muitas pessoas que
estão ali.
Nosso trabalho, portanto, ao enfocar trajetórias de pes-
soas em situação de rua, procurou notar a movimentação pelo cen-

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tro à noite, por ser mais atrativo e oferecer maiores oportunidades
de ganho, tendo como bônus não haver o calor excessivo do dia.
Determinados baldios, dentro de seus territórios, acreditam ainda
ser a melhor opção por causa da vigilância e do abuso de violência
contra eles. O ideal é dormir durante a tarde e começo da noite, em
local seguro, e trabalhar durante uma parte da madrugada e ainda
pela manhã. E nas atuais condições, em Manaus, a noite realmente
transforma espaços e cria um universo de afeto mais bem posicio-
nado e abrangente, dado haver espacialidade na urbe noturna em
termos menos periculosos. Até mesmo porque existe uma cidade
invisível à noite. Uma metrópole que se move.
Por exemplo, quando visitamos no período noturno um
estabelecimento que durante o dia funcionava como local de venda
de roupas, bijuterias e brinquedos, verificamos sua transformação
em boteco, dando lugar a mesas e pessoas em busca de diversão e
sexo. Os espaços do trabalho e do não-trabalho, como percebemos
nesse ponto comercial, confundem-se em ambientes mistos. Inclu-
sive se fôssemos pensar na noite ao longo da história de Manaus
perceberíamos como ela foi ficando cada vez mais atrativa para a
diversão e o entretenimento. A pessoa moderna e contemporânea é
filha da noite. Antes, o tempo noturno era a hora do pouco descanso
e do raro recolhimento que existia, dado que períodos de trabalho
variavam de 14 a 18 horas por jornada. No passado, à noite, famílias
ficavam em casa e era o momento de restabelecimento de forças e
preparo para um novo dia. Agora, essa realidade mudou em inúme-
ros sentidos.

5.2 Prazeres historicamente reconhecidos


A chegada dos séculos XIX e XX, com suas alterações tec-
no-industriais e científicas, com a eletricidade servindo para muitas
outras coisas além de iluminar, assim como a popularização de ci-
nema, rádio, televisão, internet e celulares, além do avanço da inte-
ligência artificial, gerou amplas mudanças no cotidiano das cidades.
Botecos, bares, restaurantes, padarias e confeitarias, bailes e festas
populares, cabarés, teatros, praças e ruas, casas de show, enfim, tudo

- 96 -
isso, passou a atrair cada vez mais pessoas para a noite. E no centro
velho de Manaus, obviamente, não aconteceu de maneira diferen-
ciada. Mas a atração da vida noturna veio junto com paradoxos e o
maior deles foi concernente à constituição da moralidade em meio
ao véu e às sombras das 19h às 5h.
Durand (1997) situa que “a noite pode recolher valoriza-
ções negativas precedentes, pois as trevas são sempre caos e ranger
de dentes e sujeitos leem na mancha negra de Rorschach (psiquiatra
e psicanalista freudiano suíço) [...] a agitação desordenada das lar-
vas. S. Bernardo compara a noite ao caos, enquanto o poeta Bous-
quet fala da noite viva e voraz” (p. 92). O autor sugere nesse trecho
que a noite, por muito tempo, afronta a humanidade com mistérios
ocultos e sobrenaturais, imaginários envoltos por tópicos relaciona-
dos a bruxarias, feitiços, encantamentos, magias e fantasmagorias,
os quais tomam impulso após o pôr do sol. O receio diante do que
se pode encontrar na noite fez a humanidade encará-la com cautela
e criar um código de leitura do outro para as horas seguintes ao
lusco-fusco.
Ainda nas palavras de Durand (1997), nota-se que a
“solidez de ligações isomórficas na noite é sempre valorizada
negativamente. Significa dizer que o diabo é quase todo o tempo um
ser das trevas e da escuridão” (p. 92). Noutros termos, a partir de
histórias infantis, também aprendemos que a noite deve ser temida
e durante esse período é o imaginário popular que se destaca. Desde
a tenra infância, a noite é a hora proibida, é o intermédio preferido
dos terríveis pesadelos, demônios e da morte. A falta de luz natural
angustia e envolve, desnorteando em alguma medida a razão, con-
forme se aprende historicamente. “Mas existe psicologicamente a
base do medo ao escuro como símbolo de terror fundamental e ris-
co natural, acompanhado de um sentimento de culpa. A valorização
negativa da noite significa, segundo Mohr, pecado, angústia, revolta
e julgamento (ID., op. cit., p. 91).
Delumeau (1989) declara que a noite é cheia de desassos-
segos e, por isso, aponta que há “razões convergentes que explicam
a inquietação engendrada e os esforços da civilização urbana para

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fazer recuar o domínio da sombra e prolongar o dia via ilumina-
ção artificial (p. 99). Evidente que, por passar a mensagem por meio
de uma metáfora, Delumeau (op. cit.) sugere que a aproximação da
hora crepuscular sempre pôs a alma humana em situação ética ma-
niqueísta, enaltecendo o confronto do dia com a noite, ligado ao
bem contra o mal, à luz contra a escuridão. Até mesmo na bíblia
cristã, escrita na medida dessa consciência e que foi e é até hoje mui-
to influente no ocidente, há 334 versículos em referência à noite,
como no livro de Gênesis, 1:18, que relata o seguinte: “[...] e viu
Deus que isso era bom; viu Deus que a luz era boa; e fez separação
entre a luz e as trevas”; no livro de Isaías, 45:07, onde está uma co-
notação dual em relação à noite, quando Deus diz: “[...] Eu formo
a luz e crio as trevas; Eu faço a paz e crio o mal; Eu sou o Senhor e
faço essas coisas”.
Voltando ao problema em Delumeau, destacamos que não
era frequente a presença de pessoas, principalmente mulheres, na
noite, no passado, pois o autor sugere que havia a associação do re-
ferencial noturno com “mulheres decaídas”, ou seja, mulheres que
tinham se “perdido” e passavam a “viver da noite”, prostituindo-se.
Um preconceito, por certo! Mas a mulher da noite — e no salienta-
do pelo autor temos ainda a pecha sexista — parecia não deixar de
apresentar um brilho irresistível, envolta em mistérios e sensuali-
dade, despertando paixões arrebatadoras e amores impossíveis. No
entanto, mesmo assim era recriminada e havia deslegitimidades.
A mulher da noite, para Durand (IB., op. cit.), por outro
lado não se entregava facilmente a desejos e nem a sentimentos ao
sabor de fanatismos, mas os despertava e os vivia com fruição. Era
uma amante profissional esperta e se mostrava acima de saudades,
ciúmes, culpas ou ressentimentos. Ela procurava parceiras ou par-
ceiros para se satisfazer sexualmente e economicamente, como ho-
mens sempre fizeram, porém sofria ataques por isso, por ser livre
em suas escolhas.
Não obstante a modernidade do presente, em Manaus,
a noite nas ruas do centro velho é vivida com uma mesma inten-
sidade contida nas contradições do passado, incluindo-se perigos
como violência, roubo, estupro, além de misoginia. No caso das

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mulheres sem-teto dos três diferentes trajetos, elas rechaçam a de-
signação de “prostitutas”, pois não vivem dos ganhos da noite, como
afirmam. Percebemos que há quem integre grupos de mulheres que
se relacionam com objetivo de ganho material, só que aqui se tra-
ta de um amor-transação, tal e qual interpretamos, dentro de um
tipo de relação de troca, onde cada indivíduo busca compensação
por uma satisfação compartilhada, por uma atividade mediada. No
amor-transação, há sempre o ressarcimento por trás de um gesto,
geralmente envolvendo dinheiro, perfumes ou roupas, bem como
bebidas, cigarros, drogas e até caronas para coiós. Mais uma vez,
então, trazemos o suposto da dádiva para entender esse métier.
A atividade das PSR, apesar de não ser exclusivamente no-
turna, assim o é essencialmente. Mostra-se com vivacidade durante
a noite quando nos apegamos a suscitar com exatidão mistérios, se-
gredos velados, conflitos e arcos da solidão. A noite com conotações
negativas de perigo e medo, é também o lugar comum do deleite.
Nesse sentido, os baldios se apresentam como sugerem Delumeau
(1989) e Durand (1997), preferindo a busca por “[...] prazer e tam-
bém por perdição, porque na noite, cada vez mais de modo voraz,
estendem-se tentáculos por domínios da intimidade” (1997, p. 85).
Em ambientes noturnos, vemos a transformação de mentes e cor-
pos, sobretudo na medida em que trajes e comportamentos fogem
do lugar simples, óbvio, do cotidiano. Na noite do centro velho da
cidade, a ousadia sobrepõe-se à moral, modificando-a como melhor
lhe convém, ou desmistificando-a, ou zombando dela, do politica-
mente correto, mostrando vieses presentes.
Caberia lembrar Bakhtin (1993) quando se refere ao gro-
tesco tomado como estereótipo ou signo diacrítico de conduta.
“[...] O grotesco conserva uma natureza original, diferen-
cia-se da vida cotidiana, preestabelecida e perfeita. É ambivalente
e contraditório. Parece disforme, monstruoso e horrendo se con-
siderado do ponto de vista da estética clássica da vida cotidiana”
(BAKHTIN, 1993, p. 22). A citação, tendo como fonte a leitura da
estética rabelaisiana, ajusta-se às figuras reais e imaginárias que po-
voam o noturno e se fazem cúmplices nos trajetos do centro antigo

- 99 -
de Manaus. Corpos desfilando sensualidade em meio a uma massa
despadronizada, sem etiqueta e muito menos rigidez social formal.
Tudo embalado por inebriantes ruídos e música efusiva.
A madrugada no centro é multiforme. É território anta-
gônico que proporciona usos do espaço urbano para trabalho, di-
vertimento e moradia, e jamais de maneira harmônica. O que ocor-
rem são disputas em espaços de tensões de todas as ordens. O fato,
destacamos, está suposto também em uma passagem da pesquisa
histórica realizada por Deusa Costa (2014), tomando como referên-
cia a Manaus no século passado.

O mercado público Adolpho Lisboa, por exemplo, era um dos


locais que pontuava vários ritmos de funcionamento da cida-
de. De dia a população local acorria até ele para abastecer-se
e para trabalhar, trazendo à tona a cidade do trabalho, que
acordava cedo para iniciar às 5h30min seu labor. O comércio
ambulante praticado em seu entorno, tendo como protagonis-
tas em disputa portugueses e sírios, movimentava aquela área
para além do fechamento do mercado. À noite, já num outro
ritmo de vida, o ritmo do lazer popular, os vários botequins co-
meçavam a lotar-se dos trabalhadores do Porto, e do corpo. A
prostituição tomava a cena e virava a madrugada, colocando
em ação a polícia local e sua atitude moralizadora e repressiva
(ID., op. cit., p. 200).

A negação da ordem estabelecida se apresenta no centro


após a meia-noite, principalmente porque é como se a partir dessa
hora fossem estabelecidas lógicas próprias de utilização de espaços.
Logo que os últimos ônibus saem da estação da Matriz, geralmente
em comboio, o centro fica entregue a baldios e suas marginalidades
de resistência. A lei da rua é decretada por toda a madrugada e até
as primeiras horas da manhã. Parece até um salvo conduto para a
delinquência. Cada pessoa ou grupo se protege como pode, pois se
sabe que não há naquele momento a garantia de nada. São cons-
truídos vínculos de credibilidade pelos quais pessoas que estão nas
ruas se agregam como forma de pertencimento a diferentes trajetos,
a coiós ou a territórios, e neles sentem-se de alguma forma seguras.
A sensação de segurança que outsiders conseguem à noi-
te pode dar a eles a noção subjetiva e objetiva de fazerem parte de

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algo maior que suas individualidades, como uma comunidade de
segurança, um comum. Ser parte de alguma coisa, pertencer a essa
coisa, coloca-os em um patamar de igualdade dentro de conjunturas
imbricadas em que se inserem. “Territórios são, assim, elaborados
pelos próprios moradores de rua, nos bairros e nas cidades, confi-
gurando-se conforme cartografias subjetivas [...] demarcando de-
terminados espaços físicos e sociais, desenrolando-se uma rede de
relações (PAIS e BLASS, 2004, p. 220).
Relações noturnas são circunstanciais, principalmente
porque se mostram afrouxadas, negociáveis e renováveis ou não.
Inexiste terra firme ou substrato que prenda baldios a grupos de
pousio dentro de espaços de afetividade. Isso depende muito de
crenças e atitudes individuais, pois cada trajeto onde estejam as PSR
vai influenciar diretamente nas perceptions du rôle constituintes das
representações de cada grupo. A ligação aos grupos depende de ca-
racterísticas peculiares, análogas, que os aproximam, ou díspares, a
realizarem atração. Na noite do centro velho transitam lavadores e
guardadores de carro, feirantes, desempregados, usuários de entor-
pecentes, vendedores de iguarias, michês, travestis, prostitutas, ta-
xistas, mototaxistas, canoeiros e donos de barcos. E ainda mendigos,
pedintes, crianças e adolescentes, usurpadores e aproveitadores. São
pessoas que demarcam suas territorialidades apropriando-se sim-
bolicamente e fisicamente do espaço público.
É um espaço totalmente diferente do dia. É uma antítese.
É o recinto da vilania, do vigarismo, onde há temores de todas as
ordens e o poder constituído (Estado) é inapto em termos de assis-
tência e desmedidamente violento quando o assunto é lei e ordem.
A partir da noite, entendida enquanto contexto de relações estabele-
cidas, existe um universo cultural vasto destacado mediante formas
de sensibilidade e insensibilidade do cenário em análise. A noite se
configura como uma fina rede de confrontos e intensidades em dis-
puta, constituindo-se, segundo sua mítica, como modificadora de
relações formais e informais, sendo isso um sintoma do modo como
seus personagens dialogam, via estruturas materiais e imateriais de
existência, fazendo o jogo do poder quando lhes é conveniente ou
da resistência quando decidem contrapor o estatuto da cidade.

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Ao anoitecer, o centro toma o ritmo de um espaço de con-
tra-uso, diferente da urbe diurna, pois é quando até mesmo pressões
relacionadas à vigilância do Estado podem ser burladas com menor
dificuldade. Nessa hora, acontece o entrelaçamento de diferentes
humanidades, em uma mistura das PSR de diversos trajetos em uma
folia da multiplicidade. A escuridão no centro dá vazão a emoções
relacionadas a sentidos breves. Lefebvre (2001, p. 84), em estudos
acerca do abordado, considera a cidade “cheia de atividades suspei-
tas porque fermenta a delinquência; é um centro de agitação”. Para
o autor, portanto, os baldios que se aventuram como notívagos (e
não são poucos) compõem espaços e tempos de práticas perigosas,
em um mundo da subversão. A noite constitui-se como mecanismo
dinâmico e por vezes onírico e idílico, chegando a ser surreal, onde
vicissitudes e fantasias se misturam em relatos e contradições.
A noite é um espaço-tempo fronteiriço e “[…] dessa si-
tuação [da realidade e da fantasia] nascem ambiguidades críticas:
a tendência para a destruição da cidade e a tendência à intensifi-
cação do urbano e da problemática urbana” (LEFEBVRE, 2001, p.
85). Desse ponto de vista, resta destacar que, à noite, por conta das
inconsistências descritas, trajetos se misturam, se agregam ou se
diluem entre tensões e desejos. Além da quebra da normatividade
diurna, o desequilíbrio vindo com a noite e seus medos não deixa
de ser um momento em que se fundam inseguranças por conta do
imprevisível. Nesse momento, vulnerabilidade e exposição ficam
alargadas e passam a viger regras próprias de desvio, sejam elas a
favor ou contra as PSR.
Por exemplo, anos atrás, entre 2016 e 2017, inúmeros as-
sassinatos começaram a ser notificados, com teores de crueldade,
pelas áreas do centro velho de Manaus. Baldios eram mortos e a sus-
peita recaia sobre traficantes, os quais estavam agindo supostamente
com a ajuda da polícia. A investigação foi inconclusiva, mesmo após
crimes brutais, como o que ocorreu no fim de 2016 quando foram
encontradas em recônditos em Manaus partes do corpo de uma PSR
dentro de malas. Pedaços dos órgãos da vítima, retalhada, estavam
depositados em locais diferentes da cidade: uma mala foi encontra-

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da na rua Belém, bairro Nossa Senhora das Graças; outra na calça-
da do cemitério São João Batista, centro, no mesmo dia. De acordo
com suposições iniciais da DRFD8, tratava-se de um baldio que fora
assassinado e esquartejado a mando de traficantes. O mesmo teria
sido morto por estar afugentando a clientela das bocas de fumo.
São situações que acontecem nas ruas, onde o “tribunal
do crime” julga e condena tendo como únicos parâmetros suas pró-
prias leis. A situação também é relatada na fala da nossa interlocuto-
ra Cristiane e de seu companheiro Daniel. “Ixi! É matança mesmo,
é de faca, é de pau, é de tantas coisas. Brigam por tudo. Por causa
de uma dose, por causa de uma pedra [de crack ou oxi], por causa
de mulher e de marido, por causa de roupa, por causa de calcinha,
por causa de tudo. Tudo que você possa imaginar” (Cristiane, PSR).
A narrativa é dura e verídica. As PSR redefinem-se ade-
quando atitudes e marcam suas dinâmicas diurna e noturna no cen-
tro velho segundo escolhas situacionais. Em um universo multifa-
cetado, baldios se diluem na multidão e entre espaços habitados,
confundindo-se com transeuntes corriqueiros do centro e sendo
denominados de vagabundos. Mesmo em se tratando de estereóti-
pos recorrentes, amparados na figura do “mendigo”, as pessoas em
situação de rua vão se desmanchando em seus laços porque hoje
não podemos afirmar com certeza se o sujeito sem-teto se identifi-
ca ou é identificado como tal. A denominação se estendeu a partir
de uma generalidade tamanha que acabou se perdendo em termos
semânticos. Não podemos negar a presença de atos de mendicância
(mangueio) e seu lugar secular de fala ou de silêncio no cenário his-
tórico da cidade. Todavia, temos que ponderar com sensatez sobre
o fenômeno, porque entre baldios que trabalham com assiduidade e
têm seus cotidianos marcados pela luta contra morticínio e extermí-
nios poucos se assemelham a seres em condições de vagabundagem
no sentido da raiz da definição.
Nas ruas, cada pessoa evoca para si um lugar de confor-
to no espaço público e dele faz uso com as armas de que dispõe.
O acontecer histórico desenrola-se como em um jogo cênico, com
personagens diversas em seus refúgios incontestes e espaços afetivos

8 DRFD: Delegacia de Roubos, Furtos e Defraudações.

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para seu proveito ou de outrem. No teatro da vida, no centro velho
de Manaus, as PSR podem ser apenas pontualmente identificáveis
durante o dia, mas à noite se destacam com facilidade na paisagem
quase deserta. Diferente do trato diurno, a noite, com seus marcos
históricos, parece fomentar alguns outros cenários factuais configu-
rados sem notabilidade pela maioria da população. São realidades
que fazem parte de uma costura sincrética dentro de uma esfera no-
tívaga, com suas intermediações dialéticas.
Realidades as quais, até aqui, almejamos indicar e dar
suporte neste Baldios 2. Buscamos descrever e explicar a ideia de
que a existência de diferentes trajetos no centro de Manaus, princi-
palmente à noite, cada um com sua peculiaridade, é uma forma de
delimitar e tornar afetivos os espaços públicos. São trajetos que se
configuram como domínios marginais, orientados, de alguma for-
ma, por alimentação, trabalho, psicotrópicos, lazer e sexo, só para
citar poucas das motivações. E sublinhamos a noite porque o cami-
nho noturno, para as PSR, é um templo de perdição. É ao anoitecer
que as coisas acontecem. Parece que a noite e a madrugada vêm por
um momento restaurar lugares sentimentais no centro velho. As re-
lações notívagas trazem a liberdade de pertencimento e são, acima
de tudo, motivo de resgate da vida.
O entardecer mostra quem realmente são os baldios e
quem está somente de passagem. À noite, as pessoas em situação
de rua procuram logo seus lugares de coió, ou seja, seus abrigos e
pontos de pertença. E para as PSR o habitar vai além do morar, por-
que consiste em conversas com seus pares, em amizades frouxas, em
arrumar camas de papelão e dividir comida e bebida, em se integrar
ao meio físico e mental dos sujeitos e da cidade depois do poente.
Nesse momento, baldios tornam-se sujeitos de si mesmos e usam
suas identidades desviantes para admitir que são quem são porque
estão emaranhados em sua condição de rua. Na noite, usam leques
e constelações de representatividade para se diluir entre transeuntes
e compor suas invisibilidades e marginalidades.
É na noite que as PSR tentam construir suas vidas com os
restos dos outros. Tanto no trabalho, ao recolherem papelão, isopor,

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latinhas de alumínio e restos de comidas, ou no lazer, fumando pon-
tas de cigarro e tomando restos de bebidas deixadas nas mesas e nas
calçadas. São baldios que se aproveitam do que a sociedade rejei-
ta. Portanto, também os trajetos noturnos feitos por eles compõem
uma estrutura análoga à arquitetura de lugares e sujeitos que vivem
em meio à tragédia humana, que enfrentam bestialidades e abusos
físicos e psíquicos. Os baldios lidam com estranhamentos diversos.
São habitantes de uma cidade que desconhecemos e, por isso, tive-
mos como meta descrever seus caminhos de uso e contra-uso em
Baldios, trajetos de dor e resistência em Manaus.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não há dúvidas de que enveredamos pela etnografia para
investigar lugares e registrar subjetividades e objetividades de traje-
tos percorridos por baldios, considerando ainda sua relação com a
noite. Tateamos espaços afetivos que produzem presenças e ausên-
cias. Contamos uma história comumente difícil de conhecer, por-
que está deteriorada. Uma história de corpos e pensamentos erran-
tes que flutuam com discursos mudos, calados pela invisibilidade
e pela marginalidade. São relatos de exclusão que se adensam cada
vez mais com novos vulneráveis que surgem, que se juntam a velhos
violentados, somando mais histórias de exclusão e dor.
A tentativa foi penetrar na geografia humana, nas his-
tórias esquecidas e na comunicação de sentidos das PSR, desven-
dando possíveis elementos ora opacos, incrustados nos caminhos
desses conjuntos viventes da Manaus central. Refizemos trilhas do
ontem e do agora, que permanecem manifestas nas atualidades
dos baldios. Foram redes percorridas para além do palpável, con-
figuradas também no pertencimento simbólico e na reapropriação
dos lugares públicos. Essencialmente, as redes indicaram pontos os
quais indivíduos chamam de lares. Foi no centro velho onde identi-
ficamos elementos que impulsionam memórias afetivas e territórios
de pertença. Elementos tais que determinam, sem dúvida, manifes-
tações e tentativas de inversão da qualificação pejorativa do senso
comum, a qual perverte sempre à lógica sócio-antropológica pelo
viés negativo.
As PSR dão vazão a heterotopias possíveis nos trajetos,
criando cenários idílicos e oníricos, tornando um pouco mais su-
portável seu pequeno grande mundo. Traçam caminhos incertos
como suas próprias vidas e apontam estradas sem rumo, sem desti-
no, sem objetivo certo, em mais um dia, uma semana, um mês, um
ano ou uma vida de perambulação nas ruas. Parece que nada mais
importa diante das heterotopias, que já ultrapassaram a linha da au-
toestima. Entretanto, dão a entender que a vida flui mesmo assim,
ao sabor da vazante e da cheia dos rios.

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As PSR fazem escolhas supostamente inconscientes. Mas
em tudo há um modus operandi, que se mantém em movimento
para agir rumo à sobrevivência nas redes de relações estabeleci-
das. Nos trajetos os baldios vivem a cidade, praticam condutas a
seu favor e podem escolher seu próprio caminho. Eles percebem a
sensação de liberdade que isso carrega. A busca pelo livre-arbítrio,
porém, de alguma forma é um laço ilusório no centro antigo de Ma-
naus. Esse suposto constitui-se, então, no caos instalado nas vidas
dessas humanidades. É como se a liberdade, o território e as pessoas
se enfrentassem dia após dia.
Em Baldios, trajetos de dor e resistência em Manaus o ato
de investigar trilhas coletivas permitiu um acesso a vários pontos
de toda uma cadeia lógica de percepções, representações, perten-
cimentos, invisibilidades e domínios. Vimos que nos caminhos in-
certos da vida nas ruas as PSR vão sumindo, desaparecendo em um
tipo de transparência que se dilui no caos da cidade. Elas envere-
dam por estradas tortuosas. Nesses caminhos, escolhem enfrentar
a dor de existir, que se torna muito maior ante a invisibilidade que
as assola e, assim, uma das conclusões observadas não é a de que os
baldios tomam para si as ruas, mas sim que as ruas os consomem e
os agarram com força. Os trajetos estudados, em suma, estruturam
vários estilhaços de uma cadeia complexa de artimanhas.
O mundo das ruas é um lugar voraz que pode acabar com
os sujeitos por inteiro e nada mais restará do que foram outrora.
As PSR vão para as ruas tentando se libertar, começar algo novo,
esquecer mazelas do passado, mas essa libertação não acontece. Por
certo, a partir disso, estados de adoecimento físico e metal acabam
se tornando crônicos e semeados dentro de um processo de margi-
nalização que em suma é uma ação reducionista da pessoa em sua
humanidade.
O que nos parece é que as PSR sinalizam para si mesmas
a insegurança intermitente, do não papel na sociedade, porque se
compreendem enquanto seres que deixarão de ter lugar na conta-
bilidade da comunidade caso não lutem por isso, como sujeitos de
direito e de registros, indivíduos ditos e postulados. Se não houver

- 108 -
resistência, as PSR correm o risco de passar pela história silencio-
samente e sob o discurso do não-dito, conduzidas ao limiar do es-
quecimento. Correm o risco de serem fantasmas a vagar com suas
silhuetas disformes, sem rostos, sem nomes, sem designação.
Nesses tempos instáveis, a marcar a trilogia Baldios, e em
que dialogamos com o contraditório de nós mesmos, tentamos re-
cuperar uma fagulha discreta de ambivalência para compreender o
outro em seus trajetos de vida e de luta no centro antigo da Manaus.
Por meio do estranhamento e até mesmo da ação conflitante, alme-
jamos encontrar sentido nas vidas despedaçadas que identificamos,
mostrando que por detrás de cada uma delas há sempre um motivo
para viver.
Por fim, destacamos encerando por aqui que, assim como
no volume 1 desta trilogia, em livro denominado Baldios, os invisí-
veis desapossados da cidade (MARTINS e ALBUQUERQUE, 2021),
importou neste segundo volume refletir acerca de problemáticas
sociais para tentar expor mazelas que não são notadas de manei-
ra manifesta, sendo estas concorrentes para a miséria humana em
seus desdobramentos territoriais (de trajetos) e temporais (da noi-
te). Porquanto, esperamos que o trabalho sugestione reflexões como
mecanismos de conhecimento e denúncia, contribuindo para a am-
pliação de estudos sobre essas pessoas e considerando a elaboração
de políticas públicas sérias, de inclusão, que as tratem de forma hu-
mana e justa.

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- 110 -
POSFÁCIO

A questão do outro: a sensibilidade

Isaías dos Santos


Mestre em Ciências da Educação pelo Saint Alcuin Of
York Anglican College (Chile). Membro do Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Ambientes Amazônicos (CNPq/Ufam)

Tzvetan Todorov, em A conquista da América, postula inú-


meras das perspectivas sobre o descobrimento do nosso continente
no contexto da relação de Colombo (e mesmo de Cabral) com os
nativos do norte do continente e das terras baixas da América do
Sul, descrevendo fielmente “a questão do outro”. O livro sugere ce-
nários historicamente datados, mas não menos importantes de se
compreender e destacar. Por meio de Todorov, é possível desenvol-
ver um olhar denso e detalhado acerca da força da conquista sobre
os outros europeus, que por sua vez desrespeitaram nossos espaços
e nossas histórias, esmaecendo nossas afetividades estabelecidas
com territórios ancestrais dentro de uma ação de extrema violência
social.
Se no passado, durante a exploração da América, nativos
perderam seu hábitat de forma ríspida e cruel, no presente, mais
de 500 anos depois, a história se repete com diferentes nuances —
em menores proporções, por certo, mas com semelhante teor salva-
cionista e triunfalista, tal e qual outrora os navegadores Colombo e
Cabral desterraram nosso povo. E foi exatamente esse teor que os
autores procuraram enfatizar em Baldios, trajetos de dor e resistência
em Manaus.
Sob respaldo da etnografia, Martins e Albuquerque tra-
çam importante compreensão do lugar do outro no âmbito das pes-
soas em situação de rua do centro velho de Manaus. Eles exploram
a capital amazonense, metrópole da floresta amazônica, tomando os
territórios das PSR como fontes de investigação e análise. Os baldios

- 111 -
da cidade, conforme afirmam os autores, agrupam-se como indiví-
duos que resistem e protestam, sendo que a rua, para eles, é um lar
porque guarda a simbologia da autonomia. E foi exatamente isso
o pesquisado. Ao almejarem compreender trajetos de pessoas em
situação de rua, supuseram políticas públicas sérias, com ações inin-
terruptas, para recuperar suas histórias de vida.
As PSR são compreendidas socialmente como invisíveis e
marginais porque ocupam territórios considerados ocultos e inde-
sejáveis. Invisibilidade e marginalidade que na trilogia Baldios, e es-
pecificamente neste segundo volume, são retratadas mediante dores
e angústias que reestruturam os sujeitos da urbe e seus trajetos. Uma
urbe que carrega em si a condição de modelo de cidade partida,
fragmentada. Aqui falamos de uma urbe com um ethos que expressa
a relatividade de pessoas miseráveis, sujeitando-as a situações pre-
cárias de vida. Um ethos que conduz a uma representação negativa
que o sujeito periférico tem no contexto social. E tal representação é
característica da herança colonizadora e de invenção da Amazônia,
onde negros, indígenas, caboclos, ribeirinhos, quilombolas e rurais
— além de imigrantes e refugiados — são vistos e entendidos como
sujeitos negativos.
Nos trajetos expostos em Baldios 2, a expansão das vivên-
cias se manifesta como estágio de uma trama surgida a partir de
conflitos, rezingas e tumultos, que fazem parte da dura labuta das
ruas, onde o medo e os sofrimentos são unificados a ambientes e
caminhantes que neles rodeiam. De igual maneira, as ruas foram
também atmosferas de investigação porque significam territórios
usados para ocupação e ancoragem de sentimentos. No livro, as ruas
são ainda caminhos de peregrinações e nomadismos porque se for-
mam a partir de pontos de descanso, saúde e nutrição.
Ao término de mais essa jornada, resta sublinhar nossos
agradecimentos aos autores por nos presentearem com uma análise
que, em termos gerais, mostra a necessidade de se compreender a
dor dos outros. E ciência é isso também: interpretar processos his-
tóricos e sociais com o teor da humanidade para que possam ser
pensadas propostas e mudanças significativas.

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Declarações, entrevistas, conversas
Tentamos, por meio de fontes orais, de pessoas em situa-
ção de rua, transeuntes, ONGs, instituições religiosas e entidades
governamentais fazer um recorte da realidade presente no centro
velho de Manaus. Propusemos o retrato transversal de um cenário
mutável e fugidio. Segue lista de participantes diretamente contata-
dos, todos PSR.

Jackson, mecânico;
Gertrudes (Dona Tude), dona de casa;
Salim da Silva, vigia;
Cláudio, serviços gerais;
Ademar, marceneiro e serviços gerais;
Agenor Alves da Silva, eletricista aposentado;
Roberto Soares de Oliveira, estivador;
Cristiane, manicure;
Daniel Souza da Silva, guardador de carro;
Adriano Ramiro de Souza, topógrafo;
Breno, marceneiro;
Sérgio, poeta e açougueiro;
Laércio Gomes da Silva, pedreiro;

- 118 -
SOBRE OS AUTORES
Noélio Martins
Possui licenciatura em História pela Universidade Federal
do Amazonas (2001), especialização em História Cultural no Cla-
retiano Rede de Educação (2014), mestrado em Sociedade e Cul-
tura na Amazônia pela Ufam (2005) e doutorado em Sociedade e
Cultura na Amazônia também pela Ufam (2019). É pesquisador
do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Ne-
pam), da Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, é Profes-
sor Efetivo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
do Amazonas (IFAM/Campus Manaus), onde atua como docente
e pesquisador. Trabalhou como professor bolsista na Universidade
do Estado do Amazonas (UEA), no Plano Nacional de Formação de
Professores (Parfor) e no curso de especialização em Metodologia
do Ensino de História da UEA.

Renan Albuquerque
É Professor Adjunto IV da Faculdade de Informação e
Comunicação (FIC) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Possui graduação em Comunicação Social pela UniNiltonLins (2001),
especializações em Psicopedagogia pela Universidade Cândido
Mendes/RJ (2002), Comunicação Empresarial pela UniNiltonLins
(2004) e Psicologia Social também pela UniNilltonLins (2005). É
mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba
(2008) e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Univer-
sidade Federal do Amazonas (2013). Tem pós-doutorado em Antro-
pologia pela PUC-SP (2017), com período de intercâmbio na Uni-
versidade Nacional da Colômbia (UNAL). No presente, desenvolve
estágio de pós-doutoramento em Psicologia Social pela PUC-SP
(2019-21) e em Humanidades na Universidade de São Paulo (2021).
Na Ufam, foi Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/Ufam). Coorde-
nou o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
(2018-20). Orienta pesquisas em nível de mestrado e doutorado.

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Lidera o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazôni-
cos (Nepam/CNPq) e chefia o Laboratório de Editoração Digital do
Amazonas (Leda/Ufam). Foi membro do Conselho Consultivo da
Compós (2018-2020). Tem experiência em pesquisas sobre conflitos
na Amazônia e impactos socioambientais, desenvolvendo estudos
em áreas rurais, ribeirinhas, indígenas e com atingidos por barra-
gens. Recebeu em 2007 o prêmio de Menção Honrosa, outorgado
pelo corpo parlamentar da Assembleia Legislativa do Estado do
Amazonas, pelas atividades desenvolvidas no âmbito jornalístico do
bioma Amazônia.

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Este livro foi compilado a partir de incentivos técnicos
do Laboratório de Editoração Digital do Estado do Amazonas
(LEDA), vinculado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Ambientes Amazônicos (Nepam/CNPq).

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