1. O texto discute a ruptura de 1985/1988 no Brasil com o reconhecimento legal de direitos coletivos e de grupos, e a permissão de ações civis coletivas. 2. Isso ampliou a legitimidade para defender interesses de grupos étnicos minoritários. 3. Facilitou o acesso à justiça para promover direitos coletivos.
1. O texto discute a ruptura de 1985/1988 no Brasil com o reconhecimento legal de direitos coletivos e de grupos, e a permissão de ações civis coletivas. 2. Isso ampliou a legitimidade para defender interesses de grupos étnicos minoritários. 3. Facilitou o acesso à justiça para promover direitos coletivos.
1. O texto discute a ruptura de 1985/1988 no Brasil com o reconhecimento legal de direitos coletivos e de grupos, e a permissão de ações civis coletivas. 2. Isso ampliou a legitimidade para defender interesses de grupos étnicos minoritários. 3. Facilitou o acesso à justiça para promover direitos coletivos.
trado com base no princípio da ‘igualdade de condições’ para acesso e permanência na escola; no entanto, dando aulas há 28 anos na Faculdade de Direito da USP, para, em média, 250 alunos por ano, e tendo tido aproximadamente 7.000 alunos, dou meu testemunho de que nem cinco eram negros!” (Professor Antonio Junqueira de Azevedo, in Folha de S. Paulo de 15-11-96, pág. 3-2)
“Educação: passaporte seguro para a liberdade,
arma indispensável na luta pela igualdade” (Jurista brasileiro anônimo)
“Education is perhaps the most important
function of state and local governments. Compulsory school attendance laws and the great expenditures for education both demonstrate our recognition of the importance of education to our democratic society. It is required in the performance of our most basic public responsibilities, even service in the armed forces. It is the very foundation of good citizenship. Today it is a principal instrument in awakening the child to cultural values, in preparing him for later professional training, and in helping him to adjust normally to his environment. In these days, it is doubtful that any child may reasonably be expected to succeed in life if he is denied opportunity of an education. Such an opportunity, where the state has undertaken to provide it, is a right which must be made available to all on equal terms”.(Trecho extraído da decisão “Brown v. Board of Education of Topeka” da Suprema Corte dos EUA, 1954) Joaquim B. Barbosa Gomes é Doutor em Direito Público pela Universidade de Paris-II (Panthéon-Assas). Membro do Ministério Público Federal. Professor-Adjunto de Direito Sumário Administrativo da UERJ. Ex-Consultor Jurídico 1. A ruptura de 1985/1988: o reconhecimento do Ministério da Saúde. Visiting Scholar da dos direitos coletivos e de grupos e o advento Columbia University School of Law, New York. das ações civis coletivas. 2. Legitimação para Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 307 defesa de interesses de grupos étnicos mino- Constituição em 5 de outubro de 1988, ritários. 3. Facilitação do acesso à Justiça. 4. Os anunciou uma mudança vital nesse campo. obstáculos à ação eficaz do MP. 5. As deficiências Pelo menos do ponto de vista jurídico-formal, estruturais do MP. trata-se de um divisor de águas, pois as inovações produzidas por esses dois atos normativos cuidam precisamente de instru- A luta por transformações sociais e pela mentos jurídicos de proteção e defesa de promoção da justiça social constitui tarefa a direitos de grupos sociais específicos, ou de ser levada a cabo mediante esforço eminen- direitos e interesses afetos à coletividade temente coletivo. como um todo (Public Interest Law). No plano jurídico, essa singela constata- De fato, o Congresso Nacional, consta- ção se traduz, na maioria dos países ociden- tando a existência de uma lacuna no orde- tais, na possibilidade de utilização de namento jurídico brasileiro, e também instrumentos legais de promoção e defesa de sabedor da necessidade de se incentivar a direitos de natureza coletiva, seja por meio implementação de direitos que transcendam de entidades formadas por grupos específicos a esfera individual, buscou criar instru- oriundos da sociedade civil (associações, mentos de defesa e promoção dos chamados ONG’s etc.), seja por meio de órgãos gover- direitos “coletivos” e “difusos”, perante o namentais concebidos e instituídos com o fim Poder Judiciário. específico de promover a efetiva igualdade e Em 1985, portanto, foi editada a chamada de defender os direitos de determinadas Lei da Ação Civil Pública, que autoriza o categorias sociais vulneráveis. Poder Executivo federal e estadual, as O sistema jurídico brasileiro, que tem suas associações constituídas há mais de um ano raízes mais antigas no Direito continental e o Ministério Público a proporem ações civis europeu1, durante muito tempo ignorou por perante o Poder Judiciário, em defesa de completo essa evidência. E o que é ainda mais grave, o establishment jurídico nacional2 sempre direitos e interesses difusos e coletivos. A foi majoritariamente individualista. É indisfar- Constituição de 1988 veio reforçar essa lei, çável o desconforto sentido por muitos opera- atribuindo enormes poderes ao Ministério dores do Direito em relação aos instrumentos Público para agir em defesa de tais direitos e de defesa coletiva da sociedade ou de alguns interesses, inclusive o de conduzir investi- de seus segmentos mais necessitados. gações próprias por meio do chamado Entretanto, cresce a cada dia a consciência Inquérito Civil Público, novidade absoluta acerca da maior eficácia dos instrumentos no Direito brasileiro. coletivos de aplicação do Direito e de busca Nas palavras de José Carlos Barbosa da Justiça Social. Embora, ressalte-se, a Moreira, o Poder Legislativo, por meio das tendência de se aplicar o direito por meio de novas normas introduzidas em 1985 e 1988, iniciativas de caráter meramente individual fez “irromper o social na paisagem do ainda seja prevalecente, vislumbram-se no processo”, com isso deixando em segundo horizonte, porém, claros sinais de mudança. plano a concepção individualista até então predominante. Ao fazê-lo, o Congresso 1. A ruptura de 1985/1988: o ampliou a legitimação para postular em juízo reconhecimento dos direitos coletivos e das entidades jurídicas vocacionadas à de- fesa e à promoção dos interesses das massas3. de grupos e o advento das ações civis Essa foi, sem dúvida, uma mudança coletivas crucial no domínio da aplicação do Direito e Com efeito, a aprovação pelo Congresso terá certamente, num futuro próximo, profun- Nacional, em 1985, da Lei nº 7.347/85, com- das repercussões no campo da eficácia das plementada pela promulgação da nova normas jurídicas em nosso país. 308 Revista de Informação Legislativa Com efeito, a noção de interesse público por exemplo, todos os cidadãos brasileiros ou interesse geral da coletividade passou nos descendentes de africanos, as mulheres, os últimos tempos por certas modificações índios, os membros da minoria judaica, os conceituais, a ponto de se cogitar, com uma adeptos desta ou daquela confissão religiosa, boa dose de precisão, da diferenciação entre em suma, todos aqueles grupos que, no nosso a) direitos e interesses gerais de toda a sistema jurídico, têm legitimação para coletividade; b) direitos e interesses de reivindicar direitos que lhes são próprios, seja determinados grupos; e c) direitos individuais por razões históricas ligadas à sua inserção indisponíveis. Isso significa que, ao invés da na comunidade nacional, seja por peculiari- tradicional dicotomia entre direitos do dades que os distinguem daqueles que indivíduo e direito da coletividade, admite- compõem o contingente majoritário no seio se a existência de uma categoria intermediária da nação brasileira. de direitos, situada a meio caminho entre os Já o grupo social indeterminado ou de difícil direitos puramente individuais e os direitos e determinação seria aquele cujos direitos e interesses gerais da sociedade como um todo4. interesses trazem igualmente a marca da No Brasil, a partir de 1985 e com mais transindividualidade. Noutras palavras, precisão a partir de 1988/905, não há dúvida trata-se de direitos e interesses que “depas- de que essa categoria intermediária de sam a esfera de atuações dos indivíduos direitos admite uma outra diferenciação: a isoladamente considerados, para surpreendê- que separa os direitos pertencentes a uma los em sua dimensão coletiva”6. Entretanto, categoria “determinada” ou “determinável” em relação a esse grupo, haveria indefinições de pessoas e aquela pertinente a um grupo importantes: a que se refere à individuali- “indeterminado” de indivíduos. Por exem- zação das pessoas titulares dos direitos e plo, podem seguramente ser catalogados interesses reivindicados e a concernente ao como membros de uma categoria determi- alcance das lesões eventualmente infligidas nada ou determinável de pessoas: a) os aos membros desse grupo. Isso porque, nesse moradores de um edifício; b) os empregados caso, em se tratando de dano aos direitos e de uma empresa estatal ou de um conglome- interesses do grupo, a lesão se dissemina “por rado de empresas privadas; c) os membros um número indefinido de pessoas, tanto dos corpos docente e/ou discente de uma podendo ser uma comunidade, uma etnia ou Universidade; d) as pessoas pertencentes a mesmo toda a humanidade” 7. Noutras uma determinada etnia; e) as adeptas de palavras, para dar exemplos mais concretos, determinado culto ou religião. Os elementos- seriam titulares de direitos difusos a) os chave de caracterização em todos esses moradores anônimos de uma cidade ou de um exemplos são, de um lado, o caráter transindi- Estado; b) os consumidores de determinado vidual do direito ou interesse tutelado; de produto espalhados por todo o país; c) ou outro lado, a noção de appartenance ou ainda, os contribuintes de determinado membership que anima os membros do grupo, tributo de incidência geral e indiscriminada. vinculados uns aos outros em razão do Vários autores, brasileiros e estrangeiros, interesse comum decorrente do fato de tentaram traçar o conceito e a diferenciação pertencerem a um universo de pessoas entre essas categorias de direitos, que, como dotadas de certas características distintivas já dito, constituem novidade no sistema facilmente identificáveis; ou, no dizer da lei, jurídico do Brasil. Albino Zavaski, por do fato de existir, entre os titulares do referido exemplo, assim se pronuncia sobre o tema: direito, uma “relação jurídica-base” comum “Do ponto de vista objetivo, asse- a todos os integrantes do grupo ou categoria. melham-se os interesses difusos aos Nessa categoria jurídica determinada ou coletivos: ambos são indivisíveis, não determinável, poderiam ser enquadrados, podendo ser satisfeitos nem lesados Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 309 senão de forma que afete a todos os dizer que, em outras épocas, não possíveis titulares, difusa ou coletiva- existissem exigências de intervenção mente considerados. O que os diferencia do mesmo tipo, intervenções difusas. são seus aspectos subjetivos: embora Mas o que desejo enfatizar é que hoje ambos sejam transindividuais, a indeter- esse problema emerge com uma impor- minação dos sujeitos titulares é absoluta tância extraordinária, sem precedentes quando se trata de interesses difusos, mas na história do homem. O problema é relativa em se tratando de interesses jurídico é muito simples. Como prote- coletivos. É que, nos difusos, a ligação ger essa categoria, essa massa, esses entre os titulares decorre de mera interesses difusos (do consumidor, do circunstância de fato, enquanto os meio ambiente, etc?). Certo, uma titulares dos interesses coletivos têm a primeira resposta é óbvia: o legislador ligá-los, entre si ou com o obrigado, pode aprovar leis de direito substancial uma relação jurídica-base” 8. que protejam o consumidor, o ambiente, Um autor que também enfrentou o tema as minorias raciais, civil rights, direitos foi o jurista italiano Mauro Cappelletti, e o civis etc. Aí está apenas um primeiro fez na perspectiva de busca de uma solução passo, não mais. Porque especifica- mente o interesse difuso necessita de para problemas sociais, isto é, aqueles uma proteção judiciária, processual, problemas para cuja solução não basta a ação sempre que violado. Não basta que isolada de um único indivíduo, mas a exista uma lei de direito material que iniciativa conjunta de Governo, de movimen- exija lealdade, por exemplo, em matéria tos sociais e organizações não-governamen- publicitária. Não basta isso. É preciso tais nacionais e estrangeiras. Diz Cappelletti antes uma proteção adequada no caso com muita propriedade: de fraude publicitária”9. “O que são os chamados direitos São, portanto, muito próximas as noções difusos? Para entender-se perfeita- de interesses “difusos” e “coletivos”. En- mente o tema, é preciso, antes de tudo, quanto os primeiros dizem respeito a direitos abandonar os esquemas dogmáticos e e interesses importantes para a coletividade puristas. É necessário entender a como um todo, os últimos se destacam por questão social, primeiro. Pois a questão serem pertinentes a um grupo suscetível de social está na base dos interesses identificação. difusos. Só a partir daí se podem A proximidade e a semelhança desses compreender os aspectos propriamente conceitos faz surgir um primeiro problema: o jurídicos. Acima de tudo compreen- da legitimidade para a defesa de cada tipo dendo o problema social e a sua nova, de direito ou interesse, já que são múltiplos mas já enorme e crescente, importância os atores autorizados pela Constituição e na sociedade contemporânea. Então, pelas leis brasileiras a agir em defesa de compreenderemos por que este tema direitos metaindividuais. tem sido negligenciado pelos juris- tas(....)”. “Quando surge o problema 2. Legitimação para defesa de interesses social, o direito logo deve intervir, deve tratar de resolvê-lo, ou de colaborar na de grupos étnicos minoritários resolução do mesmo. Esse é o direito De saída, uma reflexão se impõe: quem realista, não um direito abstrato, detém legitimidade para a promoção e a dogmático, direito das nuvens. Qual é defesa dos interesses de determinado grupo o problema jurídico que corresponde étnico – apenas as entidades representativas ao problema social característico da desses grupos ou os órgãos que agem em sociedade contemporânea? Não posso nome de toda a coletividade? 310 Revista de Informação Legislativa À primeira vista, a questão parece de fá- cadas a decidir ações coletivas em outras cil solução, pelo menos no plano jurídico. Na áreas, como, por exemplo, na área de prática, ela não o é, e as dificuldades impostos... inerentes ao seu deslinde só ainda não Resta saber se tal atuação se faria a título vieram à tona por força da ligeireza e do mal de tutela de defesa dos direitos difusos ou disfarçado desdém com que a situação social coletivos. Em se tratando de atuação do do negro e de outras minorias é tratada na Ministério Público, a questão me parece sociedade brasileira. irrelevante, eis que a legitimação consti- Dada a avassaladora predominância de tucional foi outorgada pelo legislador uma visão conservadora nos meios jurídicos constituinte em termos deliberadamente brasileiros, não constituiria nenhuma sur- irrestritos (“outros interesses difusos e presa o eventual surgimento de corrente de coletivos”)10. Vale dizer, ainda que, nesse pensamento tendente a desqualificar o fator caso, os direitos e interesses protegidos étnico-racial como elemento determinante de tenham, em sua essência, uma indisfarçável legitimação para efeito da ação civil pública. natureza de classe ou de grupo, é plenamente Aliás, uma tal corrente de pensamento não viável a sua tutela por iniciativa do Ministério seria estranha às tradições jurídicas brasilei- Público, como de resto pode ocorrer em outros ras, que tendem sempre a deixar de lado a domínios em que estejam em jogo direitos discussão da essência das coisas para coletivos e não difusos. Já as associações só privilegiar a abordagem de aspectos secun- podem agir a título de defesa de direitos e dários, periféricos, processuais... interesses de grupo ou classe. Isto é, prevalece Porém, no caso específico do objeto desse aqui o princípio da especialização: somente estudo, existem obstáculos de peso a essa as associações que, de acordo com os seus possível tentação diversionista: de um lado, a estatutos, tenham como objetivo a defesa de própria Constituição Federal que, em seu direitos de certas minorias poderão ingressar artigo 129, III, declara o Ministério Público em juízo com ação civil em nome delas. habilitado a propor ações civis públicas para De toda sorte, o que nos parece absoluta- defesa de “outros interesses difusos e mente relevante é o fato de que, efetivamente, coletivos”. Como já vimos, a promoção dos o fator étnico constitui um critério inegável direitos constitucionais dos negros brasileiros de classificação, para efeito de enquadramento pode ser enquadrada tanto como direito do tipo de tutela a ser reivindicada perante o coletivo quanto como direito difuso. De outro, Poder Judiciário. a Lei Orgânica do Ministério Público da Por outro lado, vista sob o ângulo da União, que acrescentou ao elenco de atribui- Justiça Social, que constitui um dos pilares ções desse órgão a defesa dos direitos das do sistema constitucional brasileiro11, a busca “minorias étnicas” (L.C. 75/93, art. 6º, VII, b), de solução aos problemas de grupos étnicos atribuição essa exercitável justamente pela minoritários interessa não só a esses grupos via da ação civil pública. Portanto, no plano mas também à sociedade brasileira como um puramente normativo, não existe qualquer todo, ao Estado brasileiro e, cada vez mais, obstáculo à atuação do MP na proteção aos às forças econômicas hegemônicas no País, direitos de grupos étnicos minoritários. Ao que têm todo o interesse em ver integradas à contrário, existe autorização expressa, como sociedade de consumo as grandes massas já visto. Isso significa que a propositura de marginalizadas da nossa sociedade, compos- ação civil pública com vistas à defesa de tas majoritariamente por pessoas de ascen- direitos e interesses de minorias étnico- dência africana. Isso contribuiria, sem raciais independe de autorização legislativa dúvida alguma, para a preservação da paz específica, ao contrário do que vêm decidindo social, para a cessação do alijamento social e algumas cortes brasileiras, quando convo- da marginalização de um grupo social de Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 311 importância vital na construção da naciona- mais dramática prova da ineficiência e do lidade brasileira. Sob esse ângulo, pois, o caráter às vezes artificial, puramente mimé- enquadramento jurídico dos direitos dos tico, de algumas peças do sistema jurídico. negros brasileiros se faria na categoria de De fato, em seu art. 129, a CF 1998 inclui direitos difusos, e não de direitos de uma entre as funções institucionais do MP a de classe de pessoas12. “promover o inquérito civil e a ação Como um dos detentores da legitimação civil pública, para a proteção do para propor Ação Civil Pública, o Ministério patrimônio público e social, do meio Público é de longe a instituição que reúne as ambiente e de outros interesses difusos e melhores condições para obter sucesso nessa coletivos”. empreitada, que é de interesse de toda a Note-se que a Constituição não inclui sociedade brasileira, como já dissemos. Com expressamente a defesa dos direitos das efeito, nos diversos domínios em que as ações minorias entre os interesses a serem tutelados civis públicas são taxativamente admitidas por meio da ação civil pública. À primeira (meio ambiente, defesa do consumidor, vista, esse suposto silêncio do texto constitu- mercado financeiro, defesa do patrimônio cional poderia constituir um poderoso público), o MP é, sem dúvida alguma, entre argumento para os segmentos conservadores os legitimados, a instituição mais atuante. e imobilistas do establishment jurídico brasi- Isso decorre de alguns fatores, entre os quais: leiro, que aí encontrariam a base jurídica a) a boa qualificação jurídica dos membros formal para entravar toda e qualquer ação do Ministério Público e o prestígio profissional do Ministério Público em defesa das minorias de que desfrutam na sociedade brasileira; marginalizadas13. b) a fragilidade financeira e organizacional Contudo, é a própria Constituição, no das associações voltadas à defesa de interesses mesmo artigo 129, inciso III, que outorga ao coletivos e de grupos, ainda bastante inci- Ministério Público a atribuição de propor pientes e rudimentares no Brasil; c) a notável ação civil pública para defesa de “outros ausência, entre os brasileiros em geral, interesses difusos e coletivos”. Vale dizer, a daquilo que os povos anglo-saxões apro- previsão constitucional é ampla, sem qual- priadamente denominam espírito de commu- quer cláusula restritiva. Portanto, não há nity, deficiência agravada pela nossa secular obstáculo jurídico sério à ação do Ministério tendência a acreditar que deve vir do Estado em defesa dos direitos da minoria negra a solução para todos os problemas sociais. brasileira14. Não resta dúvida de que a Constituição Ainda no plano constitucional, guarda Federal elegeu o Ministério Público como um pertinência com o tema da afirmação dos instrumento privilegiado de promoção e direitos da comunidade negra a seção rela- defesa dos direitos coletivos e difusos. A tiva à cultura (seção II do capítulo III do título leitura de alguns de seus dispositivos nos VIII), artigos 215 e 216, assim concebidos: conduz à conclusão de que essa Instituição “Art. 215. § 1º: O Estado protegerá foi alçada à condição de Promotor da as manifestações das culturas popula- Cidadania e dos direitos coletivos, como tem res, indígenas e afro-brasileiras, e das sido dito à exaustão. Rompeu, assim, a de outros grupos participantes do Constituição de 1988 com uma longa e já bem processo civilizatório nacional (...); estabelecida tradição dessa Instituição, que, Art. 216. Constituem patrimônio até então, dedicava-se preferencialmente ao cultural brasileiro os bens de natureza desempenho do papel de mero fiscal da lei e material e imaterial, tomados indivi- de titular da ação penal, o que é muito pouco dualmente ou em conjunto, portadores quando se sabe que o Brasil é um país em que de referência à identidade, à ação, à a persecução penal constitui precisamente a memória dos diferentes grupos for- 312 Revista de Informação Legislativa madores da sociedade brasileira, nos ações civis públicas em defesa das minorias quais se incluem: a) as formas de oprimidas, a título de defesa de interesses expressão; os modos de criar, fazer e difusos. Tais interesses, como já vimos, viver; somados aos dos demais grupos étnicos que § 4º Os danos e ameaças ao patri- formam a identidade nacional, constituem, mônio cultural serão punidos, na à luz do dispositivo constitucional acima forma da lei”. transcrito, o chamado patrimônio cultural Como se vê, a própria Constituição brasileiro. Ou seja, um típico interesse difuso. Federal (art. 215) singulariza os brasileiros Não bastasse isso, a Lei Complementar de descendência africana, ao assegurar a nº 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público proteção do Estado às suas manifestações da União) veio tornar ainda mais explícita essa culturais específicas. Reconhece-lhes, por- atribuição do MP, ao dispor em seu artigo 6º: tanto, a condição de grupo social portador “Art. 6º – Compete ao MPU: de certas características histórico-culturais, VII – Promover o inquérito civil e diferenciadoras dos demais elementos ação civil pública para: componentes da Nação. No plano estrita- a) proteção dos direitos constitu- mente jurídico, o art. 215 imprime de forma cionais; inequívoca aos direitos e interesses dos ne- b) proteção do patrimônio público gros em geral, assim como dos índios e dos e social, do meio ambiente, dos bens e descendentes de europeus, a marca de direito direitos das comunidades indígenas, coletivo, de classe. Em suma, reconhece-lhes à família, à criança, ao adolescente, o caráter de grupo dotado de direitos ao idoso, às minorias étnicas e ao específicos em face da sociedade brasileira15. consumidor.” Já o art. 216 vai mais longe: diz que o Por fim, no plano da lei ordinária, a patrimônio cultural brasileiro se compõe dos própria Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/ bens de natureza material ou imaterial 85) outorgou ao MP os instrumentos de ação oriundos das três raças que compõem a nossa necessários à defesa dos direitos de minorias. nação, e que qualquer dano causado a um Com efeito, concebida inicialmente como ou a todos os elementos componentes desse instrumento de defesa do meio ambiente, do patrimônio (“tomados individualmente ou consumidor e do patrimônio cultural (bens e em conjunto”) será reprimido na forma da direitos de valor artístico, estético, histórico, lei. Aqui não se trata mais de direitos de grupo turístico e paisagístico), na sua versão ou de classe, mas de direitos pertencentes a original essa lei teve amputado, por força de toda a coletividade (“patrimônio cultural brasileiro”). Poderá, assim, ser considerada veto do Presidente José Sarney, o dispositivo violação de direitos difusos toda e qualquer que possibilitava o ajuizamento da ação para ação (privada ou governamental) tendente a defesa de “outros interesses difusos”. O sufocar, a suprimir, a escamotear, a mitigar a argumento jurídico usado para justificar o importância da contribuição de cada uma veto foi o de que a amplitude dessa expressão das três raças na construção da naciona- findaria por causar insegurança jurídica. lidade brasileira. Nesse sentido, pois, o Foi necessário aguardar a promulgação combate à opressão e à situação de quase- da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do ausência de direitos em que vive a maioria Consumidor) para que o quadro normativo dos negros no Brasil constitui, sem dúvida da ação civil pública viesse a se completar, já alguma, um direito difuso a ser perseguido que esse Código veio não apenas restaurar o na via da ação civil pública. dispositivo vetado cinco anos antes, mas Portanto, os artigos 215 e 216 da Carta de também dar a definição precisa do que são 1988 reforçam o entendimento de que o MP direitos difusos, direitos coletivos e direitos está constitucionalmente autorizado a propor individuais homogêneos (art. 81)16. Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 313 Assim, a partir de 1990, como diz a interesses de milhares, e até mesmo de Procuradora Thaís Graeff em sua dissertação milhões, de pessoas ao mesmo tempo. de Mestrado17, Some-se a isso o fato de que o inquérito “a ação civil pública passou a ser ins- civil público conduzido pelo Ministério trumento de defesa de todo e qualquer Público, procedimento preparatório à ação interesse difuso ou coletivo, transfor- civil pública, permite a celebração de ajustes mando-se em poderoso instrumento de entre as partes em confronto, visando à preservação do patrimônio público e adequação aos desígnios da lei, os chamados dos direitos de minorias, bem como Compromissos de Ajustamento de Conduta. veículo de demandas sociais na busca Tais compromissos têm-se revelado mais da efetiva realização de direitos eficazes do que o ajuizamento de ações, pois, constitucionalmente assegurados”. muitas vezes, os direitos difusos envolvem questões estruturais, de larga repercussão 3. Facilitação do acesso à justiça social, que não podem ser resolvidas à base de uma simples e, em muitos casos, abrupta Também no plano da efetividade das decisão judicial. normas constitucionais e legais pertinentes à tutela de interesses difusos e coletivos, a 4. Os obstáculos à ação eficaz do MP presença do Ministério Público se reveste de grande importância, na medida em que a Resta saber, contudo, se esse complexo atuação dessa Instituição pode ser vista como arcabouço constitucional e legal tem obtido um utilíssimo instrumento de superação das repercussão na vida diária da instituição dificuldades de acesso à Justiça. Ministério Público e, por via de conseqüência, Com efeito, é sabido que a Justiça no Brasil do Poder Judiciário. Mais: é imperioso é cara, morosa e inacessível ao cidadão também indagar se esses poderosos instru- comum. “Imagine-se o cidadão comum mentos de intervenção do poder público na litigando com uma grande multinacional em área social são sequer do conhecimento de busca do seu direito a um meio ambiente alguns órgãos do Poder Executivo, que saudável” (Thais Graeff, ob. Cit., p. 44)18. Ou, também têm legitimidade para utilizá-los. diríamos nós: imagine-se um grupo de Tome-se por exemplo a educação, que é cidadãos negros em luta contra o Estado ou um setor crucial e que tem um impacto contra o poderoso cartel do ensino privado desproporcional sobre os negros, pois eles lucrativo brasileiro, a fim de fazer valer o seu constituem a maioria esmagadora dos pobres direito, de cunho constitucional, de ver os brasileiros. A educação é um tema que se filhos contemplados com o acesso à boa enquadra perfeitamente no conceito de educação... “direitos difusos”: a Constituição Federal diz Em princípio, a ação civil pública seria expressamente que a “educação é um direito um excelente meio de remover tais obstáculos, de todos e dever do Estado e da família”. já que ela não expõe individualmente cada Noutras palavras, um típico exemplo de pessoa interessada, tampouco implica gastos direito que é ao mesmo tempo individual, isto por parte do cidadão beneficiário da tutela. é, suscetível de ser postulado pelo cidadão a Isso porque, proposta pelo Ministério Público título pessoal, e difuso, por ser um dever do ou por associações, a Ação Civil Pública não Estado para com todos aqueles que vivem no acarreta condenação em honorários de território nacional. advogado nem despesas processuais. 19,20 Por Mas a educação é precisamente um outro lado, evita-se o congestionamento do exemplo perfeito do divórcio entre lei e Poder Judiciário, eis que uma só ação é realidade, entre meras proclamações jurí- suficiente para dar solução a problemas de dicas e direitos efetivamente assegurados. Às 314 Revista de Informação Legislativa vésperas da virada do milênio, até o nível de giados terão acesso23. Ou seja, a perfeita ensino médio, as escolas que oferecem boa perpetuação do ciclo vicioso da miséria e da qualidade de ensino no Brasil são, em geral, exclusão. as escolas privadas. Apesar de privadas, Esse nosso sofisticado (chancelado pelas essas escolas recebem diversos tipos de leis24) sistema de opressão social e racial, se financiamento governamental, seja sob a confrontado com o de outros países, traria à forma de ajuda direta para construção e tona a intolerável incivilidade das nossas reforma de suas instalações, seja por meio de relações sociais. À guisa de comparação, isenções fiscais de diversas naturezas21. tome-se mais uma vez como exemplo os Somente as famílias dotadas de considerá- Estados Unidos, país que, como o Brasil, teve veis recursos financeiros têm meios de longa história de escravidão, mas que as elites matricular seus filhos em escolas privadas. conservadoras brasileiras têm especial horror Negros, portanto, estão excluídos desse em ver comparado ao Brasil. Esquecem-se de sistema, em razão de injustos artifícios que lá, como aqui, negros foram durante criados pela própria lei. séculos considerados como objeto e, mesmo A injustiça se torna ainda mais intolerável após a emancipação legal, continuaram em se tratando de ensino universitário. Aqui alijados dos mecanismos suscetíveis de conduzir ao aprimoramento pessoal e a equação se inverte: as boas universidades humano. Lá, o alijamento se operou por meio são as públicas. Contrariamente ao que se de leis e de decisões judiciais aplicáveis em passa nos EUA, em que há uma grande todo o território do país (v. Plessy v. Ferguson, diversidade de instituições de ensino univer- 1896). Aqui, por meio do “jeitinho” brasileiro sitário, no Brasil boa qualidade de ensino de fazer as coisas.25 Lá, o problema vem sendo universitário se confunde com universidade corajosamente enfrentado por todas as forças pública. Pouquíssimas universidades pri- atuantes no espectro político. A mobilização vadas oferecem ensino de razoável qualidade. da sociedade em favor dos direitos civis nos Contudo, o acesso à Universidade pública é anos 60 resultou na aprovação pelo Congresso ultralimitado: a seleção dos alunos se faz do Programa de Direitos Civis, um complexo, mediante o exame “vestibular”, no qual são minucioso e vasto conjunto de atos norma- aprovados, em sua maioria esmagadora, pelo tivos que apregoam várias medidas de menos para os cursos de maior prestígio, promoção no campo cível, mas que no Brasil apenas os alunos egressos das escolas já começa a ser deturpado como se se tratas- privadas, que, além de terem tido o privilégio se meramente de um “sistema de quotas”. de freqüentar boas escolas, indiretamente Os resultados desse programa, passados financiadas com recursos públicos (que pouco mais de trinta anos de aplicação, são deveriam imperativamente ser usados para simplesmente espetaculares26. financiar o ensino público universal, e não o Na área da educação, insista-se mais ensino canalizado para uma pequena uma vez, o combate aos efeitos da discrimi- minoria), ainda dispõem de recursos finan- nação racial nos EUA se faz por diversos ceiros para freqüentar cursos específicos de métodos, uns aparentemente heteredoxos preparação para tal exame de admissão ao (affirmative action programs), porém conce- curso superior.22 bidos com prazo certo de duração como único Em resumo: o dinheiro dos impostos meio de extirpar a mentalidade escravocrata, pagos por toda a sociedade é canalizado, responsável por aquele tipo de discriminação primeiro para subsidiar a escola privada de disseminada, estrutural, não necessaria- ensino fundamental e médio à qual apenas mente ancorada em leis; outros por meio de os ricos têm acesso; em segundo, para mecanismos jurídicos revestidos de induvi- financiar integralmente a universidade dosa sofisticação, como é o caso do capítulo pública a que somente esses mesmos privile- das Civil Rights Laws de 1964, que, ao invés Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 315 de se limitar a condenar a discriminação A ação civil pública, portanto, conduzida racial por meio de normas proibitivas vagas, por ONG’s e pelo Ministério Público, seria como se faz no Brasil, optou por uma postura um ótimo instrumento de combate a esse mais afirmativa, pró-ativa, de promoção, sistema viciado de criação de “injustiças impondo o dever de promoção da “diversi- legitimadas pelo Direito”. E isso não apenas dade” em todo e qualquer estabelecimento no campo da educação, mas também no das de ensino ou programa educacional que se relações de emprego29 e muitos outros, em beneficie de qualquer tipo de ajuda governa- que o Brasil se notabiliza por uma insupor- mental federal (Discrimination in federally tável injustiça. assisted programs). Como se vê, é o Estado, Resta saber se esse formidável instru- usando de suas prerrogativas de supremacia mento de combate jurídico vem sendo utili- para impor não apenas às instituições de zado adequadamente. ensino públicas, mas também às privadas beneficiárias de qualquer tipo de apoio governamental, a obrigatoriedade de inclusão, 5. As deficiências estruturais do MP em percentuais compatíveis com a respectiva No âmbito federal, não obstante a boa presença de cada grupo em uma dada receptividade que o assunto tem em alguns comunidade, de representantes de grupos setores do Ministério Público Federal, sociais historicamente marginalizados, que especialmente da Procuradoria Federal dos de outra maneira não teriam acesso à Direitos do Cidadão e das suas Procuradorias educação de boa qualidade, já que esta Regionais dos Direitos do Cidadão, é forçoso normalmente é reservada ao atendimento dos reconhecer que muito pouco foi feito até hoje. interesses das classes sociais dominantes, em É bem verdade que somente agora, passados caso de inércia do Estado.27 quatorze anos desde a sua instituição, as Em suma, embora não seja a única, a educação é uma das áreas em que o conceito ações civis públicas começam a ter um de “direitos difusos” se adapta perfeitamente. impulso positivo na vida institucional Nela se encontra entrelaçada a questão racial brasileira. Até há bem pouco tempo, militava e os mecanismos legais por meio dos quais o contra a sua evolução o effet de blocage do Direito brasileiro exclui os negros e os pobres Judiciário, consistente ora em abortar abrupta- em geral do processo de aprimoramento mente, ainda no nascedouro, certas ações social. mais indigestas, invariavelmente por meio É certo que um empreendimento dessa de technicalities ou mumbo jumbo, isto é, envergadura incumbe prioritariamente ao medidas judiciais estapafúrdias de conteúdo poder público e às lideranças políticas meramente processual, ora por intermédio de nacionais mais expressivas, cujo poder de liminares altamente contestáveis, impostas impulsão não deve ser menosprezado. Seria de cima para baixo pelos órgãos jurisdi- um equívoco imaginar que a segregação de cionais de revisão e de cúpula do Judiciário fato do negro no Brasil se resolveria com base Federal. Noutras palavras, no seu período apenas em ações judiciais. O exemplo dos de amadurecimento inicial, as ações civis EUA está aí para nos mostrar o contrário: públicas têm servido para expor às escânca- sem a firme determinação do Governo federal ras os vícios e as chagas perpétuas do sistema sob Kennedy, Johnson, Carter, Clinton e até jurídico brasileiro como um todo: o individua- mesmo de alguns republicanos28, os negros lismo exacerbado, o formalismo outrancier, a norte-americanos não teriam obtido o que já falta de racionalidade e de praticidade da conseguiram, que é muito se comparado com grande maioria dos instrumentos de ação etc. a triste situação dos negros brasileiros, que Diante desse quadro, não surpreende que o vivem num país que ironicamente se auto- balanço geral das ações civis públicas seja proclama uma “democracia racial”! tão esquálido, e que na coluna referente à 316 Revista de Informação Legislativa proteção dos direitos das minorias, por parte regime constitucional anterior a 1988: muitos do Ministério Público, nada haja para se membros da Instituição ainda agem (ou são analisar! forçados a agir por força da estrutura Tal estado de coisas reflete, não é ocioso organizacional traçada pela L.C. 75/93) frisar, o conhecido drama institucional de como se a sua missão mais importante ainda muitas nações, o qual é particularmente fosse a de defender a União em Juízo; não agudo no Brasil: o da profunda dissociação poucos se dedicam quase exclusivamente a entre direito positivo e direito efetivamente atuar em litígios de cunho individual, aplicado, entre norma formal e realidade cumprindo o papel de custos legis. Ou seja, institucional concreta. Tal clivagem, a bem existe atualmente no MPF um grande número da verdade, vem inteiramente ao encontro da de profissionais experimentados que se acurada reflexão de Norberto Bobbio, para dedicam a atividades que são seguramente quem, em se tratando de direitos do homem, subalternas se comparadas ao papel ativo “deve-se ter em mente, antes de mais nada, reservado à Instituição pela Constituição e que teoria e prática percorrem duas estradas pelas Leis de regência da chamada “tutela diversas e a velocidades muito desiguais”. coletiva”. Poucos Procuradores são afetados Pensamento esse também compartilhado a este setor de Promoção de Direitos e pela ilustre autora da dissertação já mencio- Interesses Difusos, quase todos eles jovens nada, que constata o “abismo verificado entre recém-ingressados na Instituição, não raro direitos reconhecidos e direitos assegurados movidos por um edificante entusiasmo pela efetivamente no Brasil”, isto é, a enorme causa da regeneração da nossa triste e distância existente entre os instrumentos vexaminosa praxis social e institucional, mas, legais de que se dispõe para tentar interferir em realidade, desprovidos do indispensável com essa realidade no âmbito do Judiciário e apoio das esferas dirigentes da Instituição, do Ministério Público, e a realidade cruel da ainda muito impregnadas do esprit d’antan31. vida cotidiana dessas instituições. Um contingente expressivo de procuradores Como já dito, a Constituição de 1988 experientes – profissionais com cerca de 10- transformou o Ministério Público em verda- 15 anos de exercício – está inteiramente deiro “promotor da cidadania”. Colocou-o alijado da atuação ativa no campo dos como ponte entre a sociedade e o Estado, direitos difusos ou coletivos, seja por razões dando-lhe poderes para muitas vezes de ordem legal e estrutural concernentes à contrariar e impedir a realização de ações organização e ao funcionamento do Órgão, pelo próprio Estado, quando ilegais ou seja porque esta é uma matéria ainda de lesivas ao interesse da coletividade. Para isso, raríssima aparição no âmbito da jurisdição dotou-o de autonomia administrativa e de segundo e terceiro graus em que atuam financeira, concedeu aos seus membros esses Procuradores. Noutras palavras, o garantias funcionais idênticas às da Magis- Ministério Público Federal, por força de uma tratura. Em suma, retirou-o da esfera de certa inércia institucional e de uma pésanteur influência do Poder Executivo. típicas das instituições estatais, vem de certa Mas os problemas organizacionais, forma ignorando o seu novo papel constitu- estruturais e até ideológicos da Instituição cional, privilegiando a tarefa de emissão de não têm permitido que ela exerça plenamente pareceres em casos de natureza eminente- a sua missão. mente privada e relegando a um plano Com efeito, o Ministério Público Federal, secundário a missão que a Constituição lhe passados mais de dez anos da promulgação outorgou – de defesa de direitos e interesses da Constituição de 1988,30 continua funcio- difusos e coletivos, inclusive os direitos das nando como se, na prática, o sistema grandes massas, das minorias humilhadas jurisdicional ainda estivesse sob a égide do e sem voz na vida pública do país. Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 317 Diante desse quadro de omissão e com- Notas prometimento do Estado brasileiro, só resta às organizações não-governamentais que se 1 É importante salientar, porém, que a partir de dedicam ao combate à discriminação racial: 1891, quando o Brasil deixou de ser a única Monarquia do continente americano e adotou o a) exercer pressão constante junto aos federalismo e o regime presidencial ao estilo dos EUA, órgãos competentes do Poder Executivo as instituições político-jurídicas norte-americanas (especialmente o Ministério da Justiça), a fim passaram a ter grande influência no país. V. Jacob de despertá-los para a necessidade de Dolinger, “The influence of American constitutional assumir o papel ativo de promoção e execu- law on the Brazilian legal system”, in American Journal of Comparative Law, Fall 1990 38 nr 4 p. 803/837. ção que a Constituição e as leis lhes atribuem 2 A expressão “establishment jurídico nacional” e que, infelizmente, vem sendo, de certa forma, tem aqui uma significação pouco precisa, reconhece negligenciado em prol de uma atuação o autor: trata-se de um pequeno grupo de profis- meramente protocolar; sionais do Direito, composto essencialmente por b) provocar, com freqüência e por todos autores de obras jurídicas de impacto no plano os meios possíveis, o Ministério Público, nacional e por advogados de prestígio e clientela afluente, quase todos estreitamente vinculados à subtraindo essa Instituição do estado de estrutura de mando do País. Esses profissionais letargia institucional em que ela se encontra, exercem sobre o sistema jurídico brasileiro uma no que concerne ao tema da discriminação influência maior que a exercida, por exemplo, por racial; scholars e advogados europeus em seus respectivos c) buscar estabelecer canais de contato países. Seguramente, têm prestígio e poder inalcan- çáveis por profissionais com perfil semelhante em freqüentes e institucionalizados com o MP, países de common law, como os EUA. Essa forma de de modo a criar parcerias para atuação na poder é, em muitos casos, excessiva e injustificada, área de defesa de direitos coletivos e difusos; e só se explica pelo isolamento cultural em que d) promover gestões junto aos Poderes vivemos, cujo efeito mais devastador reside na falta Executivo e Legislativo, no sentido de que de referências, de parâmetros de comparação. Ilustra à perfeição o poder de certos causídicos brasileiros a sejam feitas alterações na Lei de Ação Civil seguinte comparação, feita, reconheça-se, assim meio Pública, de modo a adaptá-la ao atendimento à la sauvette: o Doyen Georges Vedel, o mais dos interesses específicos das minorias prestigiado e influente jurista francês das três últimas raciais. Por exemplo: a criação de um Fundo décadas, mundialmente conhecido, não tem em seu específico para depósito de quantias oriundas país uma influência sobre as instituições comparável à que desfruta, entre nós, alguém como, digamos, o de condenações judiciais cíveis ou criminais advogado e ex-ministro Saulo Ramos... Numa motivadas por ofensas de cunho racial, com palavra, a compreensão do Direito brasileiro, dos a conseqüente utilização desses recursos na seus avanços e recuos, passa necessariamente pela promoção de cursos de formação destinados análise dessas nuanças sócio-culturais. a formar lideranças e a chamar a atenção de 3 V. sobre Ação civil pública, entre outros: José importantes decision-makers para a situação Carlos Barbosa Moreira – Tutela Jurisdicional dos Interesses Coletivos ou Difusos – in “Temas de Direito crítica em que se encontram os negros no Brasil; Processual”, 3ª série, Saraiva, 1984, p. 193-197; Ada e) abandonar a ação militante fechada, de Pellegrini Grinover – A problemática dos interesses gueto, pela qual vêm pautando suas condutas; difusos – in “A Tutela dos Interesses Difusos”, Coord. é fundamental que a luta pelos direitos dos Ada Pellegrini Grinover, ed. Max Limonad, SP, 1984, negros seja levada a cabo também por p. 29-45; Rodolfo de Camargo Mancuso – 1) Interesses Difusos, ed. RT, 1988; 2) Interesses Difusos: pessoas pertencentes aos segmentos não- conceito e colocação no quadro geral dos interesses, in negros da sociedade brasileira; Revista de Processo, nº 55, 1989, p. 165-179; 3) f) solicitar ajuda a organismos inter- Ação Civil Pública – ed. RT, 1994; Antonio Augusto nacionais e ONG’s voltados à defesa de Mello de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nelson Nery direitos humanos, para que pressionem o Junior – A Ação Civil Pública e a Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos, ed. Saraiva, 1984, p. 54-59; Governo brasileiro, no sentido de forçá-lo a Hugo Nigro Mazzilli – A Defesa dos Interesses Difusos assumir a sua responsabilidade na pro- em Juízo, ed. Saraiva, 1997; Hely Lopes Meirelles – moção dos direitos dos negros. Mandado de Segurança, Ação popular e Ação Civil 318 Revista de Informação Legislativa Pública – Ed. RT, São Paulo, 1989; Roy R. Friede – própria lei admite expressamente a concomitância Ação Cautelar, Ação Civil Pública e Ação Popular – Rio de ambas (art. 1º) Hely Lopes Meirelles, p. 120, de Janeiro, ed. Forense Universitária, 1993; José Mandado de Segurança, Ação Civil Pública, Carlos Barbosa Moreira – Ação Civil Pública – Sepa- Mandado de Injunção, Habeas Data, RT – 12ª rata da Revista Trimestral de Direito Público, SP, edição). 4. Procedentes jurisprudenciais entre tantos p. 1-18, 1992; Paulo Afonso L. Machado – Ação outros: RESP 98.648/MG, Rel. Min. José Arnaldo, Civil Pública: meio-ambiente, consumidor, patrimônio DJU de 28-4-97; RESP 31.547-9/SP, rel. Min. cultural, tombamento – Ed. RT, 2ª edição, SP, 1987; Américo Luz, DJU de 8-11-93, pg. 23-5-46. 5. Não José dos Santos Carvalho Filho – Ação Civil Pública: cabe exame, em sede de recurso especial, a existência Comentários por artigo – ed. Freitas Bastos, Rio de ou não da conexão, continência, litispendência ou Janeiro, 1995; Ada Pellegrini Grinover, Antônio coisa julgada se, primeiramente, o acordão Herman de Vasconcellos e Benjamin, Daniel Roberto hostilizado não tratou de nenhuma dessas entidades Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Kazuo Watanabe, processuais e, em segundo, quando inexiste prova Nelson Nery Júnior e Zelmo Denari – Código absoluta da caracterização de qualquer uma delas. Brasileiro de Defesa do Consumidor, ed. Forense 6. Recursos especiais improvidos. (RESP nº 167783- Universitária, RJ, 1998. MG, 1ª Turma, rel. Min. José Delgado; julgado em 2- 4 Os direitos individuais homogêneos, segundo o 6-98; in DJU de 17-8-98, p. 00038)”. STF, são subespécie dos direitos coletivos (RE nº 11 A Constituição Federal brasileira, em seu art. 163231-SP, Rel. Min Mauricio Correia). 3º, IV estabelece como um dos “objetivos funda- 5 É importante salientar que, embora essas mentais” da República: “promover o bem de todos, importantes modificações tenham sido introduzidas sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e no Direito brasileiro desde 1985, a definição mais ou quaisquer outras formas de discriminação”. menos exata das novas categorias de direitos só veio 12 Nesse ponto, nosso entendimento coincide com a ser feita em 1990, quando o Congresso aprovou o o de Hugo Nigro Mazzilli, que assim se manifesta: Código de Defesa do Consumidor, o qual, em seus “Às vezes, a defesa de interesses de um grupo artigos 81 e seguintes, dá a definição legal de Direitos determinado ou determinável de pessoas pode convir Difusos, Direitos Coletivos e Direitos Individuais à coletividade como um todo. Isto geralmente ocorre Homogêneos. em diversas hipóteses, como quando a questão diga 6 Rodolfo de Camargo Mancuso, Comentários ao respeito à saúde ou à segurança das pessoas; ocorre, Código de Proteção do Consumidor, ed. Saraiva, 1991, também, quando haja extraordinária dispersão dos p. 274/275. interessados, a tornar necessária ou, pelo menos, 7 Mancuso, op. cit., p. 275. conveniente a sua substituição processual pelo órgão 8 Albino Zavascki – Ministério Público e Ação Civil do Ministério Público(...) ocorre, ainda, quando Pública, in Revista do Ministério Público do Rio interessa à coletividade o zelo pelo funcionamento Grande do Sul, v. 32, p. 117/124. correto, como um todo de um sistema econômico, 9 Mauro Cappelletti, “A Tutela dos Interesses social ou jurídico”. Difusos” in AJURIS, 1985, nº 33/174. 13 O temor de que isso venha realmente a 10 Confira-se, nessa mesma linha de entendimento, acontecer é plenamente justificável à luz da curta importante acórdão do STJ: “Processual Civil. mas significante experiência já acumulada em Ministério Público. Ação Civil Pública. Dano ao matéria de ação civil pública. Por falta de conheci- Erário. Legitimidade. 1. Impossível, com base nos mento, ou simplesmente por má-fé, têm-se tornado preceitos informadores do nosso ordenamento rotineiras, especialmente na esfera da Justiça Federal, jurídico, deixar de se reconhecer ao MP legitimidade decisões de juízes que extinguem liminarmente ações para propor ação civil pública com o objetivo de civis públicas propostas pelo MPF em defesa do proteger patrimônio público, especialmente, quando patrimônio público. Invariavelmente, a alegação baseia o seu pedido em prejuízos financeiros nesses casos é de que seria preciso uma lei específica causados a ele por má gestão (culposa ou dolosa) dando legitimação ao MP para atuar em cada caso! das verbas orçamentárias. 2. Com efeito, não poderia Se tais absurdos ocorrem em domínios taxativamente a Ação Civil Pública continuar limitada apenas aos previstos na Constituição como objeto da chamada interesses difusos ou coletivos elencados em lei tutela coletiva, da alçada do MP, é de se imaginar ordinária, quando preceitua a Carta de 1988 que é quantos disparates virão à tona quando o MP função do MP promover ‘Ação Civil Pública, para a finalmente se dispuser a tomar iniciativas efetivas proteção do patrimônio público e social, do meio em defesa de certas minorias, especialmente a negra! ambiente e de outros interesses coletivos ou difusos’ 14 É importante salientar que os Ministérios (art. 129, III), tout court (e não os ‘interesses coletivos Públicos dos Estados e o Ministério Público do e difusos indicados em lei’) (Milton Flaks, in Revista Trabalho teriam nesse domínio um papel muito mais Forense v. 32, pp. 33 a 42). 3. Nem mesmo a ação ativo do que o Ministério Público Federal, cujas popular exclui a ação civil pública, visto que a atribuições são fixadas à luz de critérios orgânicos, Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 319 rationi personae, ao contrário do que ocorre nos EUA, 19 Aqui se impõe mais um esclarecimento onde a violação da legislação federal de direitos civis, endereçado àqueles não familiarizados com a praxis por si só, é suficiente para determinar a competência jurisdicional brasileira (os que lerem este paper na do Judiciário federal, et partant, dos chamados US sua versão em inglês). No sistema jurídico do Brasil, Attorneys. salvo raríssimas exceções, a parte perdedora em um 15 Numa perspectiva de direito comparado, v. processo de natureza civil é sempre condenada pelo Judith Baker (ed.), “Group Rights”, University of juiz a pagar ao ganhador o correspondente às Toronto Press, 1992; Charles Taylor, “Multiculturalism despesas processuais por este adiantadas e uma and The Politics of Recognition”, Princeton University soma relativa aos honorários do Advogado do Press, 1992; s/direito do consumidor, v. Samuel vencedor, independentemente da natureza do ajuste Issacharoff – Group Litigation of Consumer Claims: financeiro entre este e o seu advogado. Na Ação Lessons from the American Experience – Revista AJURIS, Civil Pública, porém, essa regra de compensação edição especial, vol. I, Porto Alegre, março de 1998. financeira do advogado da parte contrária não tem 16 “Art. 81 (...) Parágrafo único: A defesa coletiva aplicação quando o autor da ação civil pública será exercida quando se tratar de: I – interesses ou sucumbe. Essa exceção constitui um incentivo direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste importante à atuação das entidades voltadas à defesa Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de direitos de minorias pobres e marginalizadas, que de que sejam titulares pessoas indeterminadas e não dispõem de recursos suficientes para contratar ligadas por circunstâncias de fato; II – interesses ou bons advogados. Nos EUA, o Congresso se deu conta direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste da importância dessa questão, ao instituir, não faz Código, os transindividuais de natureza indivisível muito tempo, sistema parecido com o brasileiro, de que seja titular grupo, categoria ou classe de permitindo que nos processos judiciais envolvendo pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por civil rights o vencedor possa se reembolsar dos gastos uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos com attorney’s fees. Eis aí, portanto, uma boa e rara individuais homogêneos, assim entendidos os coincidência entre os dois sistemas! V. Civil Rights decorrentes de origem comum”. Attorney’s Fees Awards Act of 1976. 17 Thais GRAEFF – “Cidadania e Tutela dos 20 Tanto no Brasil quanto nos EUA, a exclusão Direitos Difusos – Uma análise do Papel do Ministério da condenação do perdedor ao pagamento de certas Público.” Dissertação de Mestrado – Departamento despesas processuais em demandas de cunho de Direito – PUC-RJ, 1996. coletivo funda-se na própria natureza do litígio, na 18 Cappelletti, no estudo aqui já citado, faz uso sua importância para a sociedade como um todo. da imagem Davi versus Golias, para demonstrar a Nos EUA, porém, onde as despesas com advogado ineficácia das soluções individualistas para os são estratosféricas, a alteração apontada na nota problemas envolvendo lesão de interesses jurídicos anterior foi motivada por um fator adicional: de massa. Diz ele: “Pensemos, ainda uma vez, no incentivar a advocacia individual pro bono, em defesa fenômeno do consumidor. Quando uma lesão é de causas nobres, que promovam a coesão social, a produzida em forma massiva, de massa, não apenas igualdade efetiva entre os cidadãos. Note-se, eu sendo consumidor, mas muitos, muitos outros contudo, que as Cortes controlam com rigor o sendo consumidores também, o meu direito, minha exercício desse tipo de advocacia. Não é permitida, lesão, não passa de um fragmento do dano total. Eis em nenhuma hipótese, a advocacia temerária o ponto, jurídico, de partida. Interesses difusos, (frivolous suits). interesses fragmentários, não são totalmente 21 Um grande número de escolas se autodeno- privados, nem inteiramente públicos. Aquilo que minam instituições sem fins lucrativos. Com isso, denominei, parafraseando Pirandello, interesses em são isentas de tributos. Trata-se em realidade de busca de autor (interessi in cerca di autore), porque uma fraude jurídica legitimada pelo Congresso. No não têm um proprietário, um titular, são difusos(...)” ano de 1998, a imprensa anunciou com estupefação “Suponhamos a emissão ilegal de fumaça, ou a e indignação o caso de um senhor proprietário de poluição das águas de um rio, lago, onde vamos escolas privadas consideradas instituições sem fins passar as férias. Se somente o indivíduo pode agir, o lucrativos. O ilustre senhor se desloca pelo país com que poderá obter? Lembre-se que a solução um meio de transporte bem especial: um jato privado tradicional diz caber ação ao vizinho, ao proprietário, de última geração, formalmente registrado como e não a quem se vê perturbado, por exemplo, no propriedade da escola! gozo de férias. No caso em tela, é lógico que apenas 22 Nos EUA, um sistema de educação como o um herói terá coragem, resistência, e mesmo fundos brasileiro seria fulminado na via judicial por inconsti- para intentar uma ação contra um grande poluidor. tucionalidade à luz de múltiplos fundamentos Sem falar que este terá normalmente uma força jurídicos. O principal entre esses seria a doutrina do econômica muito superior à do indivíduo singular disparate impact, que pretendemos abordar com maior prejudicado”.(p. 174-5) profundidade em outro estudo. Ao aplicar tal 320 Revista de Informação Legislativa doutrina, as Cortes de Justiça não se limitam a 26 De acordo com os dados apresentados no verificar a compatibilidade vertical, aparente, magnífico estudo conduzido por um ex-Presidente semântica, das normas infraconstitucionais com da Universidade Harvard e ex-Diretor da Faculdade dispositivos específicos da Constituição, mas, ao de Direito daquela mesma Universidade, Derek Bok, contrário, escrutinizam os seus “resultados” à luz em colaboração com um ex-Presidente da Universi- do objetivo constitucional que se quer atingir, que é a dade de Princeton, William Bowen, os avanços igualdade efetiva. Assim, uma norma ou medida obtidos pelos negros norte-americanos na área da governamental que tenha toda a aparência de ser educação, em conseqüência do programa de direitos plenamente compatível com a Constituição (facially civis, são impressionantes, sobretudo se levarmos neutral provision), quando examinada sob a ótica dos em conta o fato de que, até o início dos anos 60, resultados que ela produz ou poderá vir a produzir, negros eram proibidos de freqüentar os mesmos locais pode ser considerada inconstitucional em função do públicos, as mesmas escolas, os mesmos locais de impacto desproporcional (Disparate impact) que diversão freqüentados pelos brancos. O mencionado produzirá em certos segmentos vulneráveis da estudo revela, por exemplo, que o percentual de sociedade. E isso será o bastante para a respectiva negros formados em Universidades e escolas invalidação. No Brasil, a utilização de técnicas de profissionais pulou, entre 1960 e 1995, de 5.4% para interpretação jurídica revestidas de tamanha 15.5% do total de graduandos; nas faculdades de sofisticação conduziria inexoravelmente à constata- Direito, o progresso foi de 1% para 7.55%, ou seja, ção que as elites dirigentes brasileiras procuram a mais de 700%; em Medicina, de 2.2%, em 1964, para todo custo escamotear: a de que inúmeras políticas 8.1% em 1995; as empresas americanas em geral, públicas adotadas entre nós, ainda que não que, no início dos anos 60, não tinham negros em concebidas com a intenção clara de promover a cargos executivos (como no Brasil de hoje!), exclusão dos negros, têm nestes a sua clientela atualmente abrigam 8% de negros nas posições de predileta, pois qualquer medida governamental executivos e administradores; o número total de tomada em detrimento dos pobres em geral atinge agentes públicos eleitos negros (governadores, de forma “desproporcional” os negros, que compõem prefeitos, delegados, juízes, promotores, xerifes etc.) o grupo social numericamente mais expressivo entre passou, entre 1965 e 1995, de 280 para 7.984! V. os pobres. O mais desatento observador estrangeiro “The Shape of the River: Long-Term Consequences of percebe isso no primeiro contato com a realidade Considering Race in College and University Admissions”, brasileira; mas, entre nós, até mesmo pessoas de Derek Bok e William Bowen, ed. Princeton integrantes do segmentos mais refinados da University Press, 1998. intelligentsia nacional fogem a esse debate. No meio 27 O caso Bob Jones University, julgado pela Corte jurídico, então, a discussão desse tipo de questão Suprema dos EUA em 1982, apesar de conter seria considerada anátema! Nessa esfera, prefere-se, particularidades específicas da sociedade americana, candidamente, enfrentar os problemas decorrentes em que o ódio racial é bastante disseminado, traz do racismo pela via do Direito penal, a qual, se é não obstante lições jurídicas úteis a todos aqueles certo que deve continuar a ser explorada, não pode que pensam seriamente em meios eficazes de combate de forma alguma ser a única, tampouco ser aquela ao racismo, especialmente essa forma de racismo na qual o Estado e as organizações anti-racistas estrutural, entranhada nas instituições e em todos despendem a maior parte das suas energias, como os quadrantes da vida social, embora não imposto ocorre atualmente. por normas jurídicas explícitas. Em Bob Jones, a 23 É importante assinalar que os alunos das Corte Suprema considerou legítima a decisão da universidades públicas não pagam um único centavo Receita Federal Americana (Internal Revenue Service- pelo ensino que recebem. Tudo é gratuito, até mesmo IRS) de cancelar a isenção de tributos de que era as instalações esportivas, os estacionamentos onde beneficiária uma instituição privada de ensino que, os alunos deixam os seus carros! E todos acham isso a par de não praticar a saudável recomendação do perfeitamente legítimo! Governo no sentido de se instituir classes escolares 24 V. Michael Mitchell – Racism and Brazilian Legal multi-étnicas, mantinha uma política de admissão Culture: Nineteenth Century Antecedents, 1999, ainda francamente racista, além de normas internas que, inédito. sob o pretexto de convicção religiosa, proibiam 25 Eis a arguta observação feita por um atento relacionamentos afetivos entre pessoas de raças participante de seminário co-organizado por nós na diferentes. Faculdade de Direito da Universidade de Columbia, 28 Nos EUA, tem sido decisiva a ação do Estado NY, em março de 1999, acerca do que todos no Brasil na busca de soluções para o problema da opressão sabem mas evitam discutir abertamente, isto é, que de minorias raciais, sexuais, religiosas e de origem entre nós a discriminação racial prescinde de leis nacional. Várias instituições governamentais atuam explicitamente racistas: ”So, Professor, you mean that nesse setor. Destaque-se, em primeiro lugar, o in Brazil racist laws aren’t needed to discriminate blacks?”). importantíssimo papel desempenhado pelo Solicitor Brasília a. 36 n. 142 abr./jun. 1999 321 General (a segunda maior autoridade do Ministério discriminação; c) um número significativo de da Justiça americano, equivalente ao nosso conquistas das minorias raciais, das mulheres e de Advogado-Geral da União), cuja principal atribuição deficientes físicos nas últimas três décadas ocorreu é defender os interesses do Governo dos Estados graças à ação dessa agência governamental, cuja Unidos perante a Corte Suprema. Foi graças à missão institucional se desenrola tanto na esfera intervenção decisiva do Solicitor General que os negros, judicial, mediante ações visando a compelir as as mulheres e os cidadãos de origem latina ganharam empresas e o Governo a promover a igualdade e a muitas das batalhas judiciais travadas perante a diversidade, quanto na esfera administrativa, por Corte Suprema nas últimas décadas, em busca de meio de variados procedimentos administrativos de igualdade efetiva no acesso à educação, ao mercado natureza investigatória, que podem desembocar em de trabalho e a outros setores da vida coletiva em acordos que em muito se assemelham aos “Com- que são discriminados. A intervenção do Solicitor promissos de Ajustamento de Conduta”, próprios General se dá não apenas nos casos judiciais em que da nossa ação civil pública. Como se vê, ao contrário o Governo seja parte no litígio, mas também naqueles do que pensam alguns influentes juristas brasileiros, envolvendo entidades e pessoas privadas. Neste paladinos de um ultrapassado individualisme à último caso, em que atua como Amicus Curiae (“Amigo outrance, mesmo na pátria do liberalismo econômico da Corte”), sua intervenção se opera por meio da a busca pela igualdade efetiva não se faz sem a chamada Amicus Brief, peça jurídica por meio da intervenção decisiva, afirmativa, quase militante, do qual ele influencia as decisões da Corte, transmitindo- Estado. Entre os representantes da elite brasileira, lhe as posições da Administração Federal nos litígios quem tem-se declarado favoravelmente à ação do que são submetidos à decisão desta (V. Lincoln Estado para promover o acesso dos negros à Caplan, “The Tenth Justice: The Solicitor General and educação e ao mercado de trabalho é o embaixador the rule of Law” – ed. Alfred Knopf, NY, 1987). e ex-Ministro da Fazenda Rubens Ricúpero. Confira- Ainda no âmbito do Justice Department, cujas se, a esse respeito, trecho de artigo no qual, com o atribuições correspondem grosso modo às que brilhantismo e a lucidez habituais, ele analisa as atualmente no Brasil se distribuem entre o Ministério posturas de Brasil e EUA sobre a questão: “Os da Justiça, Ministério Público Federal e a Advocacia- americanos abominam a intervenção do Estado na Geral da União, existe um outro órgão com esfera econômica e, salvo em crises como a da importantes competências na área de defesa dos Depressão, preservam no domínio privado tudo o direitos de minorias, podendo agir tanto na esfera que, direta ou indiretamente, tem a ver com a administrativa quanto na Judicial: é a Civil Rights produção. Em compensação, são ativistas e Division (v. Brian K. Landsberg, “Enforcing civil militantes para exigir a ação do governo, às vezes rights: race discrimination and the Department of intrusiva e dura, a fim de corrigir injustiças raciais e Justice”, University Press of Kansas, 1997); outro promover a mudança social. Nós, em contraste, órgão de vital importância nessa área é a chamada herdeiros dos monopólios e companhias de comércio Equal Employment Opportunity Commission-EEOC, da colônia, nos comprazemos com empresas estatais uma agência reguladora independente, colegiada, a vender gasolina, exportar minério de ferro, prestar com membros nomeados pelo Presidente após serviço telefônico e até administrar hotéis. Reagimos, aprovação do Senado, dotada de poderes investiga- porém, indignados cada vez que se sugere que o tórios e capacidade postulatória, incumbida de governo faça algo para promover o ingresso de negros promover a “diversidade”, isto é, a real presença de nas universidades e carreiras de prestígio do serviço minorias e de mulheres em todos os setores do público ou intervir para reduzir a incomensurável mercado de trabalho, inclusive no setor público. Para taxa de injustiça social. Se em economia estamos um país, como o Brasil, cujo Direito público a cada entre os campeões mundiais de um estatismo quase dia mais se aproxima do Direito norte-americano, a sem qualificações, em matéria social o nosso laissez- EEOC apresenta peculiaridades importantes: a) as faire é de dar inveja aos puristas do liberalismo do reclamações por discriminação no acesso ao emprego século 19”.(Folha de S. Paulo, 31-8-96, p. 2-2) ou nas relações de trabalho perante ela formuladas 29 Na área do emprego, citem-se alguns números submetem-se à regra da obrigatoriedade da exaustão que envergonhariam qualquer pessoa medianamente da instância administrativa, isto é, o ajuizamento de civilizada, mas que no Brasil não causam o menor qualquer ação judicial por discriminação só é possível impacto. Tomemos por exemplo alguns setores de após a EEOC emitir o chamado Right to sue; b) ela prestígio na vida pública brasileira: o Brasil tem cerca tem poderes quase-judiciais, podendo aplicar de 800 juízes federais. Desses, os negros mal chegam pesadas multas às empresas ou a entidades a uma dezena; o Ministério Público Federal tem cerca governamentais que deixem eventualmente de de 600 Procuradores, entre os quais apenas 6 negros; promover a diversidade nas suas relações de a Diplomacia, a mais racista das instituições trabalho, e até mesmo estipular indenizações em brasileiras, não conta com mais do que 3 diplomatas favor de pessoas que tenham sido vítimas de negros num quadro em que há cerca de 1000 322 Revista de Informação Legislativa diplomatas!; as Universidades públicas brasileiras, dá o nome de “comunidade negra”. Não por culpa sobretudo nos seus cursos de maior prestígio, não ou deficiência pessoal dos membros da Instituição, têm sequer 3% de alunos negros, o que é um absurdo mas como resultado do tipo de política governa- num país em que a população negra é superior a mental posta em prática em nosso país nas últimas 40% do total; nas universidades, são pouquíssimos três décadas, sem falar nos efeitos perversos do mito os professores negros, não sendo incomum encontrar da “democracia racial”. Egresso majoritariamente Departamentos desprovidos de um único represen- da classe média e da classe média alta, o novo tante dos afro-descendentes; nem mesmo em Estados continente de promotores e procuradores da com forte presença negra na população a represen- República, que atualmente formam maioria no seio tação dos negros é mais significativa. No Rio de do MP, teve a sua mentalidade formada no Janeiro, por exemplo, havia, em 1995, apenas 4 excludente sistema educacional vigente no país no negros entre os cerca de 400 Juízes Estaduais (v. período acima mencionado. São todos oriundos de “Veja Rio”, de 17-5-95, p. 13); a televisão brasileira escolas privadas, onde quase não há negros. é avassaladoramente branca...Essas cifras, chocantes, Perderam, em razão disso, a oportunidade de causam a cada dia mais perplexidade e embaraços freqüentar escolas verdadeiramente multi-étnicas na às autoridades brasileiras em suas relações no tenra idade, período que marca de maneira indelével Exterior. Internamente, porém, a indiferença é geral... a formação das pessoas, que faz despertar nelas os 30 Antes da Constituição de 1988, o Ministério sentimentos de fraternidade e igualdade, pouco Público Federal brasileiro, à semelhança do Justice importando as origens e as classes sociais a que cada Department dos EUA, exercia basicamente duas um pertença. Numa palavra, salvo as raríssimas funções constitucionais importantes: a) persecução exceções de praxe, ajusta-se como uma luva a esses penal dos crimes de natureza federal; b) defesa da jovens guerreiros do MP, que a sociedade brasileira União em juízo. No segundo e terceiro graus de começa justificadamente a apreciar, com um misto jurisdição, os Procuradores se limitavam, em sua de admiração e estupefação, a observação aguda grande maioria, a emitir pareceres nos processos em feita pelo também jovem escritor Diogo Mainardi, curso nos Tribunais, quase sempre em questões de em artigo publicado na revista “Veja” de 28-4-99 pouco ou nenhum interesse público. Por outro lado, sob o título “Onde Estão os Negros?”, no qual não havia uma distinção nítida entre os Procuradores comentava o livro America in Black and White, de afetados a uma ou outra dessas funções. Esse sistema Stephan e Abigail Thernstrom. Disse Mainardi: caótico marcou indelevelmente essa Instituição centenária e contribui enormemente para sua relativa “...Ao ler o livro, fui estabelecendo alguns paralelos ineficiência na nova ordem constitucional. com a minha própria vida no Brasil. Estudei numas 31 Nesse passo, faz-se imperativa uma obser- catorze escolas. Vergonhosamente, nunca tive um vação, endereçada sobretudo aos militantes em prol colega negro. Nunca tive um chefe negro. Nunca das causas de minorias, quanto a um aspecto votei num negro. Nunca vi um sócio negro no meu relacionado ao que denominaremos pretensiosa- clube. Nunca convidei um negro para jantar. E assim mente “a dimensão sociológica do MP do novo por diante. O Brasil é um regime de apartheid milênio”. Sob essa ótica, com efeito, as perspectivas disfarçado.....Eu sou de São Paulo. É provável que não são das mais encorajadoras. Isso porque o MP, em outras cidades brasileiras o negro seja menos como de resto todas as demais instituições brasileiras discriminado. Que o preconceito seja menos de prestígio, singulariza-se por um impressionante evidente. Pouco importa. O fato é que, nos anos 60, desconhecimento a respeito das questões atinentes a os americanos eram muito mais racistas do que esse vasto contingente humano a que comumente se nós. Eles melhoraram. Enquanto nós pioramos”.
Referências bibliográficas conforme original.
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