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Robert Louis Stevenson
O demônio da garrafa

Tradução
Andréa Rocha

Capa
O demônio da garrafa

Créditos
Coleção Prosa do mundo
Redes sociais

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NOTA
Qualquer estudioso deste produto nada
rebuscado que é a dramaturgia inglesa do início
do século reconhecerá aqui o nome e a ideia
original de um trabalho que se tornou célebre
nas mãos do formidável O. Smith.{1} A ideia
original está aí, mas espero tê-la transformado
em algo novo. Além do mais, o fato de esta
história ter sido concebida e escrita para leitores
polinésios pode despertar, perto de casa, algum
interesse por aquilo que vem de fora. – R. L. S.

Havia um homem da ilha do Havaí a quem vou chamar de Keawe; porque a verdade é que
ele ainda vive, e seu nome deve ser mantido em segredo; mas ele nasceu perto de Honaunau, onde
os ossos de Keawe, o Grande, permanecem escondidos numa caverna. Ele era um homem pobre,
corajoso e ativo, capaz de ler e escrever como um mestre; além disso, era excelente marinheiro,
tendo navegado por um tempo os navios a vapor da ilha e pilotado os baleeiros na costa de
Hamakua. Um dia, afinal, ocorreu a Keawe dar uma espiada no vasto mundo e nas cidades
estrangeiras, e ele então embarcou num navio com destino a San Francisco.
Trata-se de uma bela cidade, com um belo porto e um número incalculável de pessoas
abastadas; e há ali, em especial, uma colina coberta de palacetes. Certo dia, Keawe caminhava por
essa colina com os bolsos cheios de dinheiro, contemplando com prazer as mansões à sua volta.
“Como são belas essas casas!”, pensava, “e como devem ser felizes as pessoas que nelas habitam,
sem preocupações com o dia de amanhã!” Entretinha-se com esse pensamento quando se viu diante
de uma casa que não estava entre as maiores, mas era toda bem-acabada e enfeitada como um
bibelô; os degraus daquela casa brilhavam como prata, os contornos do jardim floresciam como
guirlandas de flores, as janelas resplandeciam como diamantes; Keawe então parou, maravilhado
diante da superioridade de tudo o que via. Ao parar, notou a presença de um homem que o encarava
através de uma janela tão límpida que Keawe podia vê-lo como se vê um peixe num lago natural
formado junto a um recife. Era um homem idoso, calvo e de barba preta; seu rosto estava carregado
de sofrimento, e ele suspirava com amargura. E a verdade é que, enquanto Keawe olhava para o
homem e o homem olhava para ele, um invejava o outro.
De repente, o homem sorriu, cumprimentou Keawe com a cabeça, acenou para que ele
entrasse e foi a seu encontro na porta da casa.
“Esta é uma bela casa de minha propriedade”, disse o homem, e mais uma vez suspirou
com amargura. “Não gostaria de conhecer os aposentos?”
Assim, ele conduziu Keawe por toda a casa, de cima a baixo, e não havia nada ali que não
fosse da melhor qualidade, o que deixou Keawe admirado.
“De fato”, disse Keawe, “é uma bela casa; se eu morasse num lugar como este, passaria o
dia inteiro sorrindo. Como é possível, então, que o senhor esteja se lastimando?”
“Não há razão”, disse o homem, “para que você não possua uma casa em todos os sentidos
semelhante a esta, ou ainda melhor, se desejar. Você deve ter algum dinheiro, eu imagino.”

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“Tenho cinquenta dólares”, respondeu Keawe, “mas uma casa como esta custa mais do que
cinquenta dólares.”
O homem fez um cálculo. “Lamento que não tenha mais”, disse, “já que no futuro isso
pode ser um problema para você; mas ela será sua por cinquenta dólares.” “A casa?”, indagou
Keawe.
“Não, não a casa”, esclareceu o homem, “mas a garrafa. Preciso lhe dizer que, apesar da
minha aparência de rico e bem-aventurado, toda a minha fortuna, e até mesmo esta casa e seu
jardim, veio de uma garrafa de pouco mais de meio litro. Aqui está ela.”
Em seguida, o homem abriu um compartimento fechado à chave e de lá tirou uma garrafa
bojuda com um longo gargalo; era de um vidro branco como leite, com nuanças das cores do arco-
íris.
Dentro dela, algo se movia indistintamente, como uma sombra ou uma chama.
“Eis a garrafa”, disse o homem; e diante da risada de Keawe acrescentou: “Não acredita
em mim? Então experimente você mesmo. Veja se consegue quebrá-la.”
Keawe ergueu a garrafa e bateu com ela no chão até ficar exausto; o objeto, no entanto,
pulava como uma bola de criança, sem sofrer nenhum dano.
“Que coisa estranha…”, disse Keawe. “Tanto pelo toque quanto pela aparência, esta
garrafa deveria ser de vidro.”
“E de vidro ela é”, retrucou o homem, suspirando ainda mais pesadamente. “Mas o vidro
foi temperado nas chamas do inferno. Um demônio mora aí dentro, e ele é a sombra que podemos
observar em movimento – pelo menos é o que suponho. O homem que comprar esta garrafa terá o
demônio a seu dispor; tudo o que desejar – amor, fama, casas como esta casa, ah!, ou uma cidade
como esta cidade –, tudo é dele à pronúncia da palavra. Napoleão possuiu esta garrafa e por meio
dela se tornou o senhor do mundo; mas enfim decidiu vendê-la e então sucumbiu. Capitão Cook
possuiu esta garrafa e por meio dela conseguiu chegar a muitas e muitas ilhas; mas ele também a
vendeu e foi assassinado no Havaí. Porque, uma vez vendida a garrafa, o poder se vai e a proteção
também; e, a não ser que um homem permaneça satisfeito com o que tem, o mal recairá sobre ele.”
“No entanto, o senhor mesmo fala em vendê-la…”, observou Keawe.
“Tenho tudo o que desejo e estou ficando velho”, explicou o homem. “Há uma coisa que o
demônio não é capaz de fazer: não pode prolongar a vida; além disso, não seria justo esconder de
você; há um inconveniente a respeito da garrafa: se um homem morre antes de vendê-la, arderá
para sempre no inferno.”
“Esse é um inconveniente e tanto, não resta dúvida”, exclamou Keawe. “Eu não me
envolveria com tal coisa. Posso muito bem passar sem a casa, graças a Deus; há, no entanto, um
fato com o qual eu não poderia lidar e é o de ser amaldiçoado.”
“Minha nossa, você não precisa perder o controle da situação”, rebateu o homem. “Tudo o
que tem a fazer é usar o poder do demônio com moderação e depois vendê-lo a outra pessoa, como
faço agora com você, e assim terminar sua vida tranquilo.”
“Bem, observei duas coisas”, disse Keawe. “Durante todo o tempo, o senhor suspira como
uma donzela apaixonada, essa é uma; a outra é que está vendendo esta garrafa por muito pouco.”
“Já lhe disse por que me lastimo”, lembrou o homem. “É porque receio que minha saúde
esteja se deteriorando; e, como você mesmo mencionou, morrer e ir para o inferno é uma lástima
para qualquer um. Quanto a vendê-la por tão pouco, devo explicar-lhe que existe uma
peculiaridade a respeito desta garrafa. Há muito tempo, quando o diabo a trouxe pela primeira vez
à Terra, a garrafa era muito, muito cara, e foi vendida inicialmente a Preste João por vários milhões
de dólares; ocorre que ela não pode ser vendida sem que haja certo prejuízo. Se você a vende pelo
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mesmo preço que pagou, ela volta para você como um pombo-correio. O que aconteceu foi que,
ao longo dos séculos, o preço dela não parou de cair, e agora a garrafa está extraordinariamente
barata. Eu mesmo a comprei de um dos meus ilustres vizinhos nesta colina, e o preço que paguei
foi de apenas noventa dólares. Eu poderia vendê-la por até oitenta e nove dólares e noventa e nove
centavos, mas por nem um centavo a mais, senão a coisa voltaria para mim. Agora, a esse respeito
há duas inconveniências. A primeira é que quando você oferece uma garrafa tão singular como
esta por apenas oitenta e poucos dólares as pessoas acham que você está zombando delas. A
segunda… mas não há pressa quanto a isso, e não preciso referir-me a ela agora. Lembre-se apenas
de que você deve vendê-la somente em troca de dinheiro vivo.”
“Como posso ter certeza de que tudo isso é verdade?”, perguntou Keawe.
“Você pode testar uma parte agora mesmo”, respondeu o homem. “Dê-me os seus
cinquenta dólares, leve a garrafa e deseje receber de volta esses cinquenta dólares em seu bolso.
Se isso não acontecer, dou-lhe minha palavra de honra que desfazemos o negócio e restituo o seu
dinheiro.”
“O senhor não está me enganando?”, perguntou Keawe.
O homem comprometeu-se, fazendo um juramento solene.
“Bem, vou arriscar essa quantia”, disse Keawe, “já que nada de mau pode me acontecer.”
Então deu o dinheiro ao homem, e o homem entregou-lhe a garrafa.
“Demônio da garrafa”, disse Keawe, “quero meu dinheiro de volta.” E, como era esperado,
mal havia dito essas palavras, seu bolso já estava tão pesado quanto antes.
“Com certeza, é uma garrafa maravilhosa”, disse Keawe.
“E agora tenha um bom dia, meu camarada, e que o demônio parta com você!”, disse o
homem.
“Espere”, chamou Keawe. “Não quero mais saber dessa brincadeira. Aqui está, pegue sua
garrafa de volta.”
“Você a comprou por menos do que eu havia comprado”, explicou o homem enquanto
esfregava as mãos. “Ela agora é sua; quanto a mim, tudo o que me interessa é me ver livre de
você.” Com isso, tocou a campainha para chamar seu criado chinês, e Keawe foi conduzido para
fora da casa.
Na rua, com a garrafa embaixo do braço, Keawe pôs-se a refletir. “Se tudo isso a respeito
da garrafa for verdadeiro, posso ter feito um mau negócio”, pensou. “Mas talvez o homem apenas
tenha brincado comigo.” Então a primeira coisa que fez foi contar seu dinheiro; a quantia era
exatamente quarenta e nove dólares americanos e uma moeda do Chile.{2} “Bom, isso parece ser
verdade”, disse Keawe. “Agora vou experimentar a outra parte.”
As ruas, naquela área da cidade, eram tão limpas quanto o convés de um navio e apesar de
ser meio-dia não havia nenhum transeunte. Keawe depositou a garrafa na sarjeta e foi embora. Por
duas vezes olhou para trás, e lá estava ela, leitosa e bojuda onde ele a havia deixado. Olhou para
trás uma terceira vez e virou a esquina; porém mal havia feito isso quando algo bateu em seu
cotovelo, e – ora, vejam só! – era o longo gargalo apontando para o alto; quanto à base bojuda,
achava-se enfiada no bolso de seu agasalho de piloto.
“Isto também parece ser verdade”, admitiu Keawe.
O que ele fez em seguida foi comprar um saca-rolhas numa loja e afastar-se até um lugar
isolado nos campos. Lá, tentou tirar a rolha da garrafa, mas cada vez que enfiava o saca-rolhas, ele
escapava de novo, e a rolha continuava tão intacta quanto antes.
“É um novo tipo de rolha”, disse Keawe, e de súbito começou a tremer e a suar, porque
sentia medo daquela garrafa.
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No caminho de volta ao porto, Keawe avistou uma loja onde um homem vendia conchas e
bastões das ilhas selvagens, além de velhas imagens pagãs, moedas antigas, pinturas da China e
do Japão e todo tipo de coisa que os marinheiros trazem nos baús. Então ele teve uma ideia. Entrou
e ofereceu a garrafa por cem dólares. A princípio o homem da loja riu e ofereceu-lhe apenas cinco;
mas, de fato, tratava-se de uma garrafa curiosa – nunca um vidro como aquele fora soprado por
um ser humano, tão belamente brilhavam as cores sob o branco leitoso e com tal estranheza pairava
a sombra em seu interior. Então, depois de regatear por algum tempo, como é típico de alguém de
sua categoria, o comerciante deu a Keawe sessenta dólares pelo objeto e colocou-o numa prateleira
no centro da vitrine.
“Bem”, disse Keawe, “vendi por sessenta o que havia comprado por cinquenta, ou, para
dizer a verdade, por um pouco menos, visto que um dos meus dólares era chileno. “Agora saberei
a verdade a respeito de outro ponto.”
E assim Keawe voltou para o navio, e, quando abriu seu baú, lá estava a garrafa; havia
chegado mais rápido do que ele mesmo. Nessa viagem, Keawe tinha um companheiro a bordo cujo
nome era Lopaka.
“O que o aflige?”, perguntou Lopaka. “Isso que vê em seu baú?”
Os dois encontravam-se sozinhos no castelo de proa, Keawe o fez prometer que guardaria
segredo e contou-lhe toda a história.
“É um caso bastante estranho”, disse Lopaka. “Temo que você venha a ter problemas com
esta garrafa. Um ponto, porém, está muito claro: como o aborrecimento é inevitável, o melhor é
lucrar com a barganha. Decida-se a respeito do que espera da garrafa; dê a ordem e, se tudo
acontecer como você deseja, eu mesmo comprarei a garrafa; porque tenho meus próprios planos
de obter uma escuna e sair comerciando pelas ilhas.”
“Meus planos não são esses”, disse Keawe. “Pensei em ter uma bela casa com jardim na
costa de Kona, onde nasci, com o sol brilhando à minha porta, flores no jardim, vidro nas janelas,
quadros nas paredes, enfeites e tecidos finos sobre as mesas, tal como na casa em que estive hoje
– apenas um andar mais alta e circundada por varandas, como o palácio do rei; e então viver ali
sem preocupações, divertindo-me com meus amigos e parentes.”
“Bem”, disse Lopaka, “levemos a garrafa conosco ao Havaí, e, se tudo se tornar realidade,
do jeito que você imagina, eu a comprarei, como disse, e pedirei uma escuna.”
Os dois estavam de acordo, e não demorou até que o navio voltasse a Honolulu, levando
Keawe, Lopaka e a garrafa. Mal haviam desembarcado quando encontraram um amigo na praia
que logo foi dando pêsames a Keawe.
“Não sei por que devo receber pêsames”, protestou Keawe.
“Será possível que não tenha ouvido”, disse o amigo, “que seu tio, aquele senhor tão bom,
está morto, e que seu sobrinho, aquele menino tão bonito, se afogou no mar?”
Tomado de tristeza, Keawe começou a chorar e a lamentar-se, esquecendo-se da garrafa.
Mas Lopaka pensava consigo mesmo e, assim que a dor de Keawe se aplacou, disse:
“Estive pensando, não era o seu tio quem possuía terras no Havaí, no distrito de Kau?”
“Não”, respondeu Keawe, “não em Kau: as terras dele ficam nas montanhas, um pouco
mais ao sul de Hookena.”
“E essas terras agora serão suas?”, perguntou Lopaka.
“Serão minhas”, disse Keawe, e mais uma vez começou a lamentar os parentes.
“Não”, disse Lopaka, “não lamente agora. Algo me ocorreu. E se isso for coisa da garrafa?
Sim, porque eis aí o lugar perfeito para a sua casa.”

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“Se for isso mesmo”, queixou-se Keawe, “matar meus parentes é uma maneira muito
perversa de me servir. Mas pode ser, de fato, pois foi justamente num lugar como esse que imaginei
a casa.”
“A casa, entretanto, ainda não foi construída”, disse Lopaka.
“Não, e provavelmente nem será!”, explicou Keawe. “Apesar de meu tio plantar um pouco
de café, fava e banana, não será nada que possa me manter confortavelmente. E o resto daquela
terra é a lava preta.”
“Vamos até o advogado”, sugeriu Lopaka. “Essa ideia não me sai da cabeça.”
Então, ao se encontrarem com o advogado, descobriram que nos últimos dias o tio de
Keawe enriquecera tremendamente e que havia uma quantia em dinheiro.
“Eis o dinheiro para a casa!”, exclamou Lopaka.
“Se está pensando em construir uma casa”, disse o advogado, “tenho aqui o cartão de um
novo arquiteto, de quem já me disseram maravilhas.”
“Cada vez melhor!”, exclamou Lopaka. “Agora tudo se torna claro. Continuemos a
obedecer às instruções.”
Então eles seguiram até o arquiteto, que tinha em sua mesa alguns projetos de casas.
“O senhor gostaria de algo fora do comum”, disse o arquiteto. “O que acha disto?”,
perguntou, entregando um desenho a Keawe.
Quando Keawe pôs os olhos no trabalho, não pôde conter um grito de admiração, porque
aquela era a imagem que tinha em mente, retratada com precisão.
“Ficarei com a casa”, pensou. “Por mais que não goste da maneira como a estou recebendo,
ficarei com ela e talvez desfrute do bem que vem com o mal.”
Então, explicou ao arquiteto tudo o que desejava, como gostaria de mobiliar a casa, os
quadros nas paredes e os bibelôs sobre as mesas; depois perguntou ao homem, sem rodeios, quanto
ele cobraria pela empreitada.
O arquiteto fez muitas perguntas, pegou uma caneta e se pôs a calcular; quando terminou,
anunciou exatamente a quantia que Keawe herdara.
Lopaka e Keawe trocaram olhares e balançaram a cabeça.
“Está claro”, pensou Keawe, “que devo possuir essa casa, quer queira, quer não. É uma
casa que vem do demônio e temo que isso não vá me render coisas boas. Porém, de algo estou
certo: enquanto eu possuir esta garrafa, não farei nem mais um pedido. Mas, uma vez
comprometido com a casa, talvez até me permita desfrutar do bem que vem com o mal.”
Ele então acertou tudo com o arquiteto e os dois assinaram um contrato; mais uma vez
Keawe e Lopaka seguiram de navio até a Austrália, pois haviam combinado que não interfeririam
em nada, deixando o arquiteto e o demônio da garrafa construírem e decorarem a casa como bem
entendessem. A viagem foi agradável, embora o tempo todo Keawe se mostrasse muito ansioso,
uma vez que jurara não expressar nem mais um desejo sequer nem aceitar nenhuma ajuda do
demônio. Quando voltaram, o prazo se esgotara. O arquiteto comunicou-lhes que a casa estava
pronta, e Keawe e Lopaka compraram uma passagem no Hall e desceram em direção a Kona para
ver a casa e verificar se tudo havia sido feito de acordo com a imagem que Keawe tinha em mente.
Lá estava a casa, junto às montanhas, visível a quem passava de navio. Acima, a floresta
subia até as nuvens de chuva; abaixo, a lava preta descia em penhascos escarpados, onde estavam
enterrados os reis de tempos remotos. Um jardim com flores de todas as cores crescia em torno
daquela casa; e de um lado havia um pomar de papaia e do outro um pomar de fruta-pão; bem em
frente, voltado para o mar, o mastro de um navio fora armado, ostentando uma bandeira. Quanto
à construção, tinha três andares, com aposentos grandes e varandas amplas em cada um deles. As
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janelas eram de vidro de tão boa qualidade que chegavam a ser transparentes como água e claras
como o dia. Móveis de todos os tipos decoravam os cômodos. Quadros exibiam-se nas paredes em
molduras douradas: pinturas de navios, de homens lutando, de mulheres belíssimas e de regiões
extraordinárias; em lugar nenhum do mundo existiam quadros de cores tão vívidas como aqueles
que Keawe encontrou pendurados em sua casa. Quanto aos objetos decorativos, eram
extremamente refinados: relógios de carrilhão e caixinhas de música, bonequinhos que
balançavam a cabeça, livros ilustrados, armas valiosas de todas as regiões do mundo e os mais
elegantes quebra-cabeças para preencher as horas de lazer de um homem solitário. E, como
ninguém iria querer morar em aposentos como aqueles, mas apenas circular por eles e admirá-los,
as varandas haviam sido construídas com tamanha amplidão que toda uma cidade poderia com
prazer habitá-las; e o próprio Keawe não sabia dizer qual preferia, se a dos fundos, de onde se
podia sentir a brisa da terra e olhar por sobre as hortas e as flores, ou se a da frente, de onde se
podia sorver a aragem do mar, contemplar lá embaixo a íngreme parede das montanhas, observar
a passagem do Hall por entre Hookena e as colinas de Pele, cerca de uma vez por semana, ou ainda
as escunas percorrendo a costa em busca de madeira, fava e bananas.
Quando já tinham visto tudo, Keawe e Lopaka sentaram-se na varanda da frente.
“E então”, indagou Lopaka, “está tudo como você planejou?”
“Não tenho palavras para expressar”, disse Keawe. “Está melhor do que sonhei, estou
profundamente satisfeito.”
“Há apenas uma coisa a considerar”, disse Lopaka. “Tudo isso pode ter acontecido
naturalmente, sem a interferência do demônio. Se eu comprar a garrafa e no final das contas não
conseguir uma escuna, terei colocado minha mão no fogo por nada. Dei-lhe a minha palavra, eu
sei, mas ainda assim acredito que você não se oporia a me conceder mais uma prova.”
“Prometi não aceitar mais nenhum benefício”, disse Keawe. “Já me envolvi demais com
isso.”
“Não estou pensando em benefícios”, replicou Lopaka. “Pensei apenas em ver o demônio
propriamente dito. Não há nada a ganhar com isso, portanto nada de que se envergonhar; no
entanto, se eu o vir uma única vez, terei certeza a respeito de toda esta história. Assim, satisfaça
meu desejo e deixe-me ver o demônio; depois disso, e aqui está o dinheiro em minha mão,
comprarei a garrafa.”
“Receio apenas uma coisa”, disse Keawe. “O demônio pode ser feio demais de olhar, e ao
vê-lo uma vez que seja você pode perder completamente a vontade de comprar a garrafa.”
“Sou um homem de palavra”, garantiu Lopaka. “E aqui está o dinheiro entre nós dois.”
“Muito bem”, concordou Keawe. “Eu mesmo estou curioso. Então venha, vamos dar uma
olhada em você, Senhor Demônio.”
Tão logo disseram isso, o demônio olhou para fora da garrafa e em seguida voltou ligeiro
para dentro, como um lagarto; e ali ficaram Keawe e Lopaka, petrificados. A noite chegou sem
que nenhum dos dois tivesse pensamento algum para externar ou mesmo voz para expressá-lo;
então, Lopaka empurrou o dinheiro na direção de Keawe e pegou a garrafa.
“Sou um homem de palavra”, disse, “e preciso ser, do contrário não tocaria esta garrafa
nem com meu pé. Bem, vou conseguir minha escuna e um ou dois dólares para o meu bolso; depois
me livrarei deste demônio o mais rápido possível. Para dizer a mais pura verdade, a aparência dele
me desencorajou.”
“Lopaka”, disse Keawe, “faça o possível para não me levar a mal. Sei que já é noite, que
as estradas não são boas e que o caminho pelos túmulos é um lugar ruim de atravessar tão tarde,
mas devo dizer que depois que vi aquele pequeno rosto não vou conseguir comer, dormir ou rezar
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até me livrar dele. Darei a você uma lanterna, uma cesta para guardar a garrafa e qualquer um dos
quadros ou enfeites de minha casa que lhe agrade: vá de uma vez e durma em Hookena com
Nahinu.”
“Keawe”, disse Lopaka, “muitos homens se ofenderiam com isso, acima de tudo quando
estou sendo tão cordial e fazendo-lhe um favor ao manter minha palavra e comprar a garrafa; além
disso, a noite e o escuro, e o caminho pelos túmulos devem ser dez vezes mais perigosos para um
homem com tal pecado na consciência e com tal garrafa embaixo do braço. Entretanto, de minha
parte, estou eu mesmo tão extremamente aterrorizado que não tenho coragem de culpá-lo. Portanto
aqui vou eu, e Deus permita que você seja feliz em sua casa e eu afortunado com minha escuna, e
que no final ambos cheguemos ao céu apesar do demônio e da garrafa dele.”
E assim Lopaka desceu a montanha; e Keawe permaneceu na varanda da frente da casa, a
ouvir o tilintar das ferraduras do cavalo e a observar a lanterna indo embora, brilhando pelo
caminho, e depois descendo o íngreme penhasco das cavernas, onde os mortos do passado estão
enterrados; e durante todo o tempo ele tremeu, juntou as mãos, rezou pelo amigo e deu glória a
Deus que ele próprio tivesse escapado daquele infortúnio.
Mas o dia seguinte nasceu muito radiante, e aquela sua nova casa era tão agradável de
contemplar que ele esqueceu os temores. Os dias foram passando, e Keawe deixou-se ficar ali,
numa alegria constante. Foi na varanda dos fundos que ele se instalou; era lá que comia e passava
o tempo, e lia as histórias dos jornais de Honolulu; mas quando alguém passava por lá, Keawe
entrava e admirava os aposentos e os quadros. E a fama da casa espalhou-se por lugares distantes;
em toda a Kona ela era conhecida como Ka-Hale Nui – a Casa Grande –, e às vezes como Casa
Reluzente, porque Keawe mantinha um chinês que passava o dia inteiro tirando o pó e lustrando
tudo; e os vidros, e os dourados, e os belos objetos e os quadros resplandeciam luminosos como a
manhã. Keawe, por sua vez, estava com o coração tão agigantado que só andava pelos aposentos
cantando. E quando os navios despontavam, ele ia até o mastro e hasteava sua bandeira.
E desse modo o tempo passou, até que um dia Keawe foi a Kailua visitar um amigo. Lá ele
se alimentou como num banquete e na manhã seguinte foi embora assim que pôde, cavalgando
com vigor, porque estava impaciente para contemplar sua bela casa; além disso, a noite que se
aproximava era a noite em que os mortos de outros tempos vagavam pelos arredores de Kona; e já
tendo se envolvido com o demônio, Keawe estava ainda mais cauteloso com a possibilidade de
encontrar-se com os mortos. Um pouco depois de Honaunau, avistando ao longe, notou uma
mulher que se banhava à beira-mar; parecia uma garota madura, mas ele não deu importância.
Então viu a camisa branca agitar-se ao vento enquanto ela a vestia e depois seu holoku {3}
vermelho; e quando se aproximou dela, ela já estava pronta, longe do mar e à beira do caminho
com o holoku vermelho, toda refrescada do banho, e seus olhos eram brilhantes e bondosos. Bastou
Keawe contemplá-la para que puxasse as rédeas.
“Eu pensei que conhecesse todas as pessoas desta região”, disse ele. “Como é possível que
eu não a conheça?”
“Sou Kokua, filha de Kiano”, respondeu a jovem, “e acabei de voltar de Oahu. Quem é
você?”
“Logo contarei quem sou”, disse Keawe, desmontando do cavalo, “mas não agora. Tenho
uma ideia em mente e, se souber quem eu sou, talvez já tenha ouvido falar de mim e pode não me
dar uma resposta verdadeira. Antes de mais nada, diga-me uma coisa: você é casada?”
Ao ouvir isso, Kokua soltou uma gargalhada. “Pelo visto, é você quem faz todas as
perguntas”, disse ela. “E você, é casado?”

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“Na verdade, Kokua, não sou”, respondeu Keawe, “e nunca havia pensado em ser até este
momento. Mas eis a mais pura verdade: conheci você na beira desta estrada, vi seus olhos, que são
como as estrelas, e meu coração partiu em sua direção tão veloz como um pássaro. Então, agora,
se não deseja nada de mim, me diga, e eu seguirei meu caminho; mas se não me considera pior do
que qualquer outro rapaz, me diga também, e esta noite eu me desvio para a casa de seu pai e
amanhã falo com o bom homem.”
Kokua não disse palavra alguma, mas olhou para o mar e riu.
“Kokua”, disse Keawe, “se não disser nada, tomarei como uma resposta positiva; então
caminhemos até a porta de seu pai.”
Ela seguiu na frente dele, ainda sem dizer palavra; apenas virava para trás de vez em quando
e depois olhava de novo ao longe, mantendo os cordões do chapéu na boca.
Assim que chegaram à porta da casa, Kiano veio até a varanda, gritou surpreso ao ver
Keawe e saudou-o pelo nome. Diante disso, a moça voltou-se para ele, pois a fama da enorme casa
tinha chegado a seus ouvidos e, com certeza, era uma grande tentação. Durante toda aquela noite,
os dois estiveram muito felizes, e a jovem, sob o olhar dos pais, mostrou-se ousada e zombou de
Keawe, porque era muito espirituosa. No dia seguinte, Keawe conversou com Kiano e encontrou-
se sozinho com a jovem.
“Kokua”, disse ele, “você zombou de mim a noite toda, e ainda é tempo de me mandar
embora. Não lhe disse quem eu era porque tenho uma casa tão magnífica que receei que você
pudesse pensar muito sobre a casa e pouco sobre o homem que lhe ama. Agora que já sabe de tudo,
se deseja que esta seja a última vez em que nos vemos, diga neste instante.”
“Não”, disse Kokua; mas dessa vez ela não riu nem Keawe pediu mais nada.
E foi desse modo que Keawe cortejou Kokua; tudo se passara muito rápido, mas o mesmo
se dá com uma flecha e ainda mais ligeiro com a bala de um rifle, e, no entanto, ambas podem
atingir o alvo. As coisas não só haviam transcorrido de modo acelerado como tinham ido longe
também, e a lembrança de Keawe não saía da cabeça da jovem; ela ouvia a voz dele no intervalo
das ondas que batiam contra a lava, e por aquele rapaz que vira apenas duas vezes ela teria deixado
mãe, pai e suas ilhas nativas. Quanto a Keawe, seu cavalo subiu voando o caminho da montanha
sob o penhasco dos túmulos; e o ruído dos cascos, e o ruído de Keawe a cantar de felicidade
ecoavam nas cavernas dos mortos. E foi ainda cantando que ele afinal chegou à Casa Reluzente.
Ali, sentou-se na ampla varanda e fez sua refeição, enquanto o chinês se admirava de ouvir como
o patrão cantava entre uma garfada e outra. O sol se pôs por trás do mar, e a noite chegou; Keawe
caminhou pelas varandas à luz dos lampiões, tendo as montanhas à sua frente, e sua cantoria
chamou a atenção dos que estavam nos navios.
“Aqui estou eu em minha sublime morada”, disse a si mesmo. “A vida não poderia ser
melhor; este é o topo da montanha; à minha volta tudo se inclina para um plano inferior. Pela
primeira vez vou iluminar os aposentos e me banhar em minha luxuosa banheira, com água quente
e fria, e depois dormir sozinho no leito dos meus aposentos nupciais.”
Assim, o chinês recebeu uma ordem e teve de se levantar da cama para acender as
fornalhas; e enquanto trabalhava no andar de baixo ao lado da caldeira, percebeu que o patrão
cantava alegre no andar de cima, nos quartos iluminados. Quando a água começou a esquentar, o
chinês gritou para avisá-lo, e Keawe dirigiu-se ao banheiro; o empregado continuou a ouvi-lo
cantar enquanto Keawe enchia a banheira de mármore; e o ouviu cantar, e o canto se tornou
entrecortado enquanto ele se despia; de repente, parou. O empregado esforçou-se para ouvir
alguma coisa; gritou em direção ao andar superior e indagou se estava tudo bem; Keawe respondeu
que sim e ordenou-lhe que fosse se deitar; mas não houve mais cantoria na Casa Reluzente; e a
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noite toda o chinês ouviu os pés de seu senhor a dar voltas e mais voltas pelas varandas, sem
descanso.
A verdade do que houve foi esta: enquanto se despia para o banho, Keawe notou na pele
uma mancha, como uma mancha de liquens numa rocha, e nesse instante parou de cantar. Ele
conhecia o aspecto daquela mancha e sabia que fora acometido pelo mal chinês.{4}
Ser acometido por essa doença é uma enorme tristeza para qualquer homem. E seria
igualmente uma tristeza para qualquer um abandonar uma casa tão bela e tão espaçosa e ser
obrigado a se afastar de todos os amigos para acabar na costa norte de Molokai, entre o imenso
penhasco e os quebramares. Mas o que será que isso representava no caso do homem Keawe, ele
que havia encontrado seu amor um dia antes, ele que o havia conquistado naquela manhã e que
agora via todas as suas esperanças se estilhaçarem num instante, como vidro?
Permaneceu sentado na borda da banheira por algum tempo, depois saltou com um grito e
correu para fora, pondo-se a andar de um lado a outro, de um lado a outro da varanda, como alguém
em desespero.
“De bom grado eu poderia deixar o Havaí, a terra dos meus ancestrais”, pensava Keawe.
“De bom grado eu poderia deixar esta minha casa aqui nas montanhas, localizada nas alturas e
toda envidraçada. Muito corajosamente, eu poderia ir para Molokai, para os penhascos de
Kalaupapa, e lá viver com os acometidos pela doença, e lá descansar, longe dos meus ancestrais.
Mas que mal fiz eu, que pecado paira sobre minha alma para ter encontrado Kokua refrescada da
água do mar ao entardecer? Kokua, a aprisionadora de almas! Kokua, luz da minha vida! Talvez
eu nunca a despose, talvez eu nunca mais olhe para ela, talvez eu nunca mais toque nela com
minhas mãos; e é por isso, é por você, oh Kokua!, que derramo meus lamentos!”
Agora, observem que tipo de homem era Keawe, porque ele poderia ter vivido ali na Casa
Reluzente por anos e ninguém teria percebido sua doença; mas para ele nada daquilo importava,
se tivesse de perder Kokua. E, da mesma forma, ele poderia casar-se com Kokua apesar do estado
em que se encontrava, como tantos outros o teriam feito, porque têm alma de porcos; mas Keawe
amava a jovem corajosamente e de maneira alguma a magoaria nem colocaria sua vida em perigo.
Já passava da meia-noite quando a lembrança daquela garrafa veio à sua mente. Keawe deu
a volta até a varanda dos fundos e procurou relembrar o dia em que o demônio olhara para fora, e
só de pensar nisso o sangue correu gelado em suas veias.
“Que coisa pavorosa essa garrafa”, pensou Keawe, “que pavoroso é o demônio, e que coisa
pavorosa é arriscar-se às chamas do inferno. Mas que outra esperança tenho eu de curar-me dessa
doença ou de me casar com Kokua? Ora!”, continuou, “será que depois de desafiar o demônio
apenas para conseguir uma casa, eu não seria capaz de enfrentá-lo de novo no intuito de ficar com
Kokua?”
Imediatamente lembrou-se de que no dia seguinte o Hall passaria por ali a caminho de
Honolulu. “Devo me dirigir primeiro para lá”, pensou, “e ver Lopaka. A maior esperança que
tenho agora é encontrar aquela mesma garrafa da qual fiquei tão feliz em me livrar.”
Nem por um instante ele conseguiu dormir; a comida ficou atravessada em sua garganta;
enviou, no entanto, uma carta a Kiano e, quando o navio a vapor estava para chegar, desceu a
cavalo beirando o penhasco dos túmulos. Chovia; seu cavalo se deslocava pesadamente; ele olhou
para o alto, na direção das bocas negras das cavernas, e invejou os mortos que ali dormiam, já
livres dos infortúnios; e então recordou-se de como cavalgara por lá no dia anterior e ficou
impressionado. Desceu até Hookena, e, como sempre, lá estavam todos reunidos à espera do navio
a vapor. Sentados no abrigo diante da loja, alguns gracejavam e comentavam as notícias; mas no
peito de Keawe não havia assunto a ser tratado, e ele sentou-se entre aquelas pessoas e contemplou
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em silêncio a chuva que caía sobre as casas, depois a arrebentação batendo contra as rochas, sem
conseguir conter os suspiros que lhe subiam pela garganta.
“O Keawe da Casa Reluzente está desanimado”, um disse ao outro. De fato, ele estava, e
não era uma surpresa.
O Hall chegou, afinal, e o baleeiro levou-o a bordo. A área junto à popa do navio estava
cheia de haoles {5} que haviam visitado o vulcão, como é costume deles; o centro da embarcação
era ocupado pelos kanakas {6} e na parte dianteira havia touros selvagens de Hilo e cavalos de Kau;
mas Keawe, em seu pesar, permaneceu afastado de todos, tentando localizar a casa de Kiano. Lá
estava ela, bem na costa, junto às pedras negras, sombreada pelos coqueiros, e perto da porta
encontrava-se um holoku vermelho, não maior do que uma mosca e, como tal, indo para lá e para
cá. “Ah, rainha do meu coração”, gritou ele. “Vou arriscar minha querida alma para conquistar
você!”
Não demorou e a noite caiu, as cabines foram iluminadas e os haoles se sentaram para jogar
cartas e beber uísque, como é costume deles; Keawe, porém, andou pelo convés a noite toda; e
durante todo o dia seguinte, enquanto o vapor avançava protegido do vento através de Maui e
Molokai, ele ainda caminhava de um lado a outro como uma fera enjaulada.
Já começava a anoitecer quando passaram pelo Diamond Head e chegaram ao cais de
Honolulu. Keawe desembarcou em meio à aglomeração e pôs-se a perguntar por Lopaka. O que
se sabia é que ele se tornara proprietário de uma escuna – não havia melhor em toda a ilha – e saíra
numa aventura até Pola-Pola ou Kahiki; portanto não havia como contar com sua ajuda. Keawe
lembrou-se de um amigo de Lopaka, um advogado que vivia na cidade (não devo dizer o nome
dele), e procurou informar-se sobre o homem. Disseram que ele enriquecera de uma hora para a
outra e que era dono de uma bela residência na praia de Waikiki; isso deu uma ideia a Keawe, ele
contratou uma carruagem e dirigiu-se à casa do advogado.
A casa era novíssima, as árvores do jardim ainda não passavam da altura de uma bengala,
e quando o advogado apareceu exibia o ar de um homem bem satisfeito.
“Em que posso ajudá-lo?”, perguntou ele.
“O senhor é amigo de Lopaka”, disse Keawe, “e Lopaka comprou de mim certa mercadoria
que talvez o senhor possa me ajudar a localizar.”
O rosto do advogado tornou-se bastante sombrio. “Não vou fingir que não sei do que o
senhor está falando, Mr. Keawe”, disse ele, “embora este seja um assunto desagradável de tratar.
Pode estar certo de que não sei de nada, mas tenho um palpite, e se o senhor tentar num
determinado local creio que poderá descobrir alguma coisa.”
E ele deu o nome de um homem, que, mais uma vez, é melhor que eu não repita. Foi assim
durante dias, Keawe dirigindo-se de um a outro, sempre deparando com roupas, carruagens e casas
novas e belas, e com homens de ar muito satisfeito, embora o rosto deles invariavelmente se
fechasse quando Keawe tocava no assunto de seu interesse.
“Sem dúvida, estou no caminho certo”, pensou Keawe. “Todas essas roupas e carruagens
novas são presentes do pequeno demônio, e esses rostos felizes são rostos de homens que
obtiveram seu lucro e se livraram da abominável criatura em segurança. Quando eu encontrar
algum rosto pálido e ouvir suspiros, saberei que estou perto da garrafa.”
Então finalmente aconteceu de recomendarem a ele que procurasse um haole na Beritania
Street. Quando chegou à porta, mais ou menos no horário da última refeição do dia, encontrou os
costumeiros sinais da casa nova, do jardim recém-plantado e da luz elétrica brilhando nas janelas;
mas quando o proprietário apareceu, um choque de esperança e medo percorreu Keawe; porque

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ali estava um jovem, branco como um cadáver, de olheiras profundas, o cabelo muito ralo e no
semblante a expressão de um homem a caminho da forca.
“É aqui, com certeza”, pensou Keawe, e então para aquele homem ele de modo algum
ocultou seu propósito: “Vim comprar a garrafa”, anunciou. Diante dessas palavras, o jovem haole
da Beritania Street cambaleou e apoiou-se na parede.
“A garrafa!”, exclamou, ofegante. “Comprar a garrafa!” Então, parecendo estar sufocado,
agarrou Keawe pelo braço, levou-o até uma sala e serviu duas taças de vinho.
“À sua saúde”, disse Keawe, que convivera bastante com haoles nos tempos em que
navegava.
“Sim”, acrescentou, “estou aqui para comprar a garrafa. Qual é o preço agora?”
Diante disso, o jovem deixou a taça escorregar por entre os dedos e olhou para Keawe com
uma expressão fantasmagórica.
“O preço”, disse ele, “o preço! O senhor não sabe o preço?”
“É por esse motivo que estou lhe perguntando”, retrucou Keawe. “Mas por que está tão
preocupado? Há algo de errado a respeito do preço?”
“Perdeu muito valor desde a sua vez, Mr. Keawe”, disse o jovem, gaguejando.
“Muito bem, então devo pagar uma quantia menor por ela”, ponderou Keawe. “Quanto lhe
custou?”
O jovem estava branco como uma folha de papel. “Dois centavos”, disse.
“O quê?”, exclamou Keawe. “Dois centavos? Ora, então o senhor só pode vendê-la por
um. E aquele que a comprar…” As palavras morreram na língua de Keawe; aquele que a comprasse
jamais poderia vendê-la novamente. A garrafa e o demônio da garrafa permaneceriam com ele até
sua morte e então o carregariam para o quinto dos infernos.
O jovem da Beritania Street caiu de joelhos. “Pelo amor de Deus, compre a garrafa!”,
gritou. “O senhor pode levar junto toda a minha fortuna. Eu estava maluco quando a comprei por
aquele preço.
Eu desviara dinheiro em minha loja; de outro modo, estaria perdido; teria acabado na
prisão.”
“Pobre criatura”, disse Keawe, “você foi capaz de arriscar sua alma numa aventura tão
desesperada para evitar a merecida punição de sua própria desgraça, e, no entanto, crê que eu
poderia hesitar diante do amor. Dê-me a garrafa e o troco, que estou certo de que você já tem. Aqui
está uma moeda de cinco centavos.”
Foi como Keawe supôs: o jovem tinha o troco separado numa gaveta; a garrafa mudou de
mãos, e mal os dedos de Keawe tocaram o gargalo ele já havia murmurado o desejo de se tornar
um homem sem manchas. Como era de esperar, quando chegou em seu quarto e se despiu diante
do espelho, sua pele estava perfeita como a de uma criança. E o mais estranho foi que, nem bem
ele tinha constatado esse milagre, algo dentro de si já se modificava: ele não se importava mais
com o mal chinês e tampouco com Kokua; apenas um pensamento o dominava: ali estava ele,
preso ao demônio da garrafa por toda a eternidade, sem nenhuma esperança senão a de
transformar-se para sempre em cinzas nas chamas do inferno. Com os olhos da mente viu ao longe
as chamas arderem, e sua alma amedrontou-se, e a escuridão se apoderou da luz.
Quando voltou a si, Keawe lembrou-se de que naquela noite a banda tocava no hotel. Para
lá se dirigiu, pois temia ficar sozinho; e ali, entre rostos alegres, andou de um lado a outro,
acompanhou o ritmo das canções, viu Berger marcar o compasso e, durante o tempo todo, ouviu o
crepitar das labaredas e contemplou o fogo vermelho a arder no poço sem fundo. De repente, a

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banda tocou Hikiao-ao, uma música que ele cantara com Kokua, e aquela melodia o fez recobrar
a coragem.
“Agora está feito”, pensou, “e mais uma vez vou me permitir desfrutar o bem que vem com
o mal.”
O que se passou então foi que ele voltou ao Havaí no primeiro vapor e logo que tudo pôde
ser arranjando casou-se com Kokua e levou-a à Casa Reluzente, no alto da montanha.
A situação entre os dois era tal que quando estavam juntos o coração de Keawe se
acalmava, mas, tão logo ele ficava sozinho, passava a remoer pensamentos terríveis, e ouvia o
crepitar das labaredas e contemplava o fogo vermelho a arder no poço sem fundo. De fato, a jovem
se entregara a ele completamente; seu coração disparava na presença de Keawe, sua mão estava
sempre pronta a segurar a dele, e de tal maneira ela era, dos fios de cabelo até as unhas dos pés,
que ao vê-la não havia quem não se alegrasse. Kokua era de natureza agradável. Tinha sempre
uma palavra delicada. Muito musical, vivia de lá para cá na Casa Reluzente, e ela própria era o
que havia de mais luminoso naqueles três andares, sempre cantando como um passarinho. Keawe
a contemplava, a ouvia com encantamento, mas depois encolhia-se num canto e chorava, e gemia
de pensar no preço que ela lhe custara; depois, cabia-lhe secar os olhos, lavar o rosto e sentar-se
ao lado dela nas amplas varandas, acompanhando-a nas canções e retribuindo, sem ânimo, seus
sorrisos.
Chegou um dia, porém, em que os pés de Kokua começaram a se tornar pesados, e as
cantorias mais raras; e então não era apenas Keawe que chorava isolado, mas um se afastava do
outro, e os dois se sentavam em varandas opostas, com toda a extensão da Casa Reluzente a separá-
los. Keawe encontrava-se tão submerso em seu desespero que mal notou a mudança, apenas ficou
satisfeito que dispusesse de mais horas para sentar-se sozinho e refletir sobre seu destino e que não
estivesse tão amiúde condenado a impor um rosto alegre a seu coração doente. Um dia, ao entrar
em silêncio pela casa, ele ouviu o que parecia ser uma criança soluçando, e lá estava Kokua, de
rosto colado ao chão da varanda, chorando desesperadamente.
“Você tem razão em chorar nesta casa, Kokua”, disse ele. “E, no entanto, eu deixaria que
me cortassem a cabeça para que você (ao menos) tivesse sido feliz.”
“Feliz!”, lamentou-se ela. “Keawe, quando você vivia sozinho na sua Casa Reluzente, era
considerado a definição do homem feliz por todos na ilha; a alegria e a música estavam em sua
boca, e seu rosto era tão luminoso quanto o nascer do sol. Então você se casou com a pobre Kokua;
e só o bom Deus sabe o que há de errado com ela, mas desse dia em diante nunca mais sorriu.
Oh!”, lamentou-se, “de que mal eu sofro? Pensei que fosse bonita e sabia que o amava. De que
mal sofro eu para entristecer meu marido desta forma?”
“Pobre Kokua”, disse Keawe. Então sentou ao lado dela e tentou segurar sua mão, mas ela
se desvencilhou bruscamente. “Pobre Kokua”, repetiu ele. “Minha pobre criança… minha linda.
E pensei nisso tudo para poupá-la! Pois bem, saberá a verdade. Só então você se compadecerá do
pobre Keawe; só então entenderá o quanto ele a amou no passado – a ponto de desafiar o inferno
para possuí-la –, e o quanto ainda a ama (o pobre condenado), a ponto de conseguir evocar um
sorriso quando a contempla.”
E então ele contou tudo a ela, desde o começo.
“Você fez isso por mim?”, perguntou ela chorando. “Ah, bem, então nada mais me
importa!” Kokua o abraçou e chorou sobre ele.
“Oh, minha pequena!”, disse Keawe, “acontece que quando penso no fogo do inferno eu
me importo bastante!”

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“Não diga isso”, exclamou ela. “Nenhum homem se perde por amar Kokua, sem cometer
nenhuma outra falta. Digo a você, Keawe, vou salvá-lo com estas mãos, ou perecer em sua
companhia. Imagine! Você me amou e me deu sua alma… acha que em troca não morrerei para
salvá-lo?”
“Oh, minha querida! Você pode morrer cem vezes, mas que diferença isso faria”, lamentou-
se Keawe, senão a de me deixar sozinho até que chegue a hora da minha danação?”
“Você não sabe de nada”, disse ela. “Fui educada numa escola em Honolulu; não sou uma
garota qualquer. E lhe garanto: vou salvar o meu amor. O que foi que disse a respeito de um
centavo? Ora, o mundo não é todo americano. Na Inglaterra eles têm uma moeda chamada farthing
que vale mais ou menos meio centavo. Oh! Tristeza!”, gritou ela. “Isso quase não adianta nada,
porque o comprador estará perdido, e não encontraremos alguém tão corajoso quanto o meu
Keawe! Mas, espere, há a França; lá eles têm uma pequena moeda chamada cêntimo que vale cinco
para cada centavo, ou mais ou menos isso. Melhor impossível. Vamos, Keawe, vamos até as ilhas
francesas; vamos ao Taiti, o mais rápido que um navio puder nos levar. Lá teremos quatro
cêntimos, três cêntimos, dois cêntimos, um cêntimo; quatro possíveis vendas para realizar; e nós
dois para persuadir o negócio. Venha, meu Keawe! Beije-me e afaste suas preocupações. Kokua
vai defendê-lo.”
“Dádiva dos céus!”, exclamou ele. “Não creio que Deus vá me punir por desejar algo tão
bom! Seja então como você quiser; leve-me para onde desejar: deposito minha vida e minha
salvação em suas mãos.”
No dia seguinte, logo cedo, Kokua dedicava-se aos preparativos. Pegou o baú que Keawe
levava ao navegar e, em primeiro lugar, acomodou a garrafa num canto; depois, encheu o baú com
suas melhores roupas e com os mais magníficos objetos de decoração da casa. “Isso é porque
precisamos parecer gente rica. Senão, quem vai acreditar na garrafa?” O tempo todo na sua
organização ela estava alegre como um passarinho; apenas quando olhava para Keawe é que as
lágrimas escorriam de seus olhos, e então ela precisava correr e beijá-lo. Quanto a Keawe, ele
havia tirado um peso da alma; agora que compartilhara seu segredo e tinha alguma esperança
diante de si, parecia um novo homem, seus pés estavam mais leves sobre a terra, e ele voltara a
respirar com prazer. Entretanto, o terror ainda o espreitava, e volta e meia, como uma vela que se
apaga com o vento, a esperança morria dentro dele, e então ele via as chamas se agitando e o fogo
vermelho queimando no inferno. Espalhou-se pelas redondezas que eles viajaram aos Estados
Unidos a passeio, o que foi considerado algo deveras estranho – porém não tão estranho quanto
seria a verdade, se alguém pudesse adivinhá-la. Assim, embarcaram no Hall para Honolulu e de
lá no Umatilla para San Francisco, com uma multidão de haoles; em San Francisco seguiram no
bergantim do correio, o Tropic Bird, com destino a Pepeete, a principal cidade francesa nas ilhas
do Sul. Lá chegaram depois de uma viagem agradável, num dia de ventos alísios moderados, e
puderam contemplar a arrebentação junto aos recifes, Motuiti com suas palmeiras, a escuna
costeando o litoral, as brancas residências da cidade espalhadas pela orla em meio às árvores
verdes e, no alto, as montanhas e nuvens do Taiti, a ilha da sabedoria.
Julgaram que o mais sensato seria alugar uma casa, e foi o que fizeram, bem em frente à
residência do cônsul britânico, de modo a ostentar muito dinheiro e a chamar a atenção com suas
carruagens e cavalos. Visto que estavam de posse da garrafa, isso era muito fácil; porque Kokua
era mais audaciosa que Keawe e sempre que achava necessário convocava o demônio e lhe pedia
vinte ou cem dólares. Nesse ritmo, logo ficaram conhecidos na cidade; e os estrangeiros do Havaí,
seus cavalos e suas carruagens, os belos holokus e as ricas rendas de Kokua tornaram-se assunto
de muitos comentários.
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Passado algum tempo, fizeram progressos na língua taitiana, que de fato é semelhante à
havaiana, a não ser por determinadas letras; e assim que se sentiram mais à vontade para se
expressar, começaram a oferecer a garrafa. É preciso considerar que não se tratava de um assunto
de abordagem simples; não é fácil convencer as pessoas de que você está sendo sincero quando o
que está à venda, por apenas quatro cêntimos, é uma inesgotável fonte de saúde e riqueza. Além
disso, eles precisavam explicar os perigos da garrafa; e assim algumas pessoas não acreditavam
na coisa toda e riam, enquanto outras davam mais importância à parte sombria da história, ficavam
muito sérias e se afastavam de Keawe e Kokua como se eles tivessem parte com o demônio. Longe
de ganhar terreno, os dois começaram a perceber que eram evitados na cidade; as crianças fugiam
deles aos gritos, o que era intolerável para Kokua; os católicos faziam o sinal da cruz; e todos, sem
exceção, passaram a se desvencilhar de suas investidas.
A depressão tomou conta deles. Eram capazes de passar a noite na nova casa, depois de um
dia cansativo, e não trocar uma palavra, ou então o silêncio era quebrado por Kokua, que de repente
desabava no choro, aos soluços. Às vezes, rezavam juntos; às vezes, apoiavam a garrafa no chão
e passavam a noite inteira observando a sombra dentro dela. Em momentos como esses tinham
medo de descansar. Custavam a pegar no sono e, se um dos dois cochilava, era apenas para acordar
e encontrar o outro chorando em silêncio no escuro, ou, talvez, para acordar sozinho, o outro tendo
fugido da casa e daquela garrafa para andar de um lado a outro sob as bananeiras do pequeno
jardim ou para vagar pela praia sob o luar.
Foi assim uma noite, quando Kokua acordou. Keawe tinha saído. Ela passou a mão pelo
lençol, e o lugar dele estava frio. Então o medo desabou sobre ela, e Kokua sentou-se na cama.
Um débil luar atravessava as venezianas. O quarto estava claro, e ela pôde ver a garrafa no chão.
Do lado de fora ventava forte, as árvores imensas da avenida chiavam intensamente, e as folhas
caídas chocalhavam na varanda. Em meio a tudo isso, Kokua percebeu outro som; se era de uma
fera ou de um homem, mal soube dizer, mas era triste como a morte e atingiu sua alma. Levantou-
se devagar, abriu a porta e olhou para o jardim iluminado pela lua. Lá embaixo, sob as bananeiras,
estava Keawe, prostrado, a boca na poeira, gemendo no chão.
A primeira intenção de Kokua foi correr até ele e consolá-lo; a segunda a deteve
poderosamente. Keawe vinha se comportando como um homem corajoso diante de sua mulher.
Não lhe pareceu justo intrometer-se num momento em que, envergonhado, ele fraquejava. Com
isso em mente, recuou para dentro da casa.
“Céus!”, pensou ela, “como tenho sido descuidada, como tenho sido fraca! É ele, não eu,
quem se encontra nesse perigo eterno; foi ele, não eu, quem sofreu a maldição da alma. É pelo
meu bem e pelo amor de uma criatura de tão pouco valor e de tão pouca serventia que ele agora
contempla tão de perto as chamas do inferno… ai… e sente o cheiro da fumaça desse lugar, deitado
lá fora, ao vento e sob o luar. Serei tão pobre de espírito que nunca, até este momento, desconfiei
do meu dever? Ou será que já o tinha enxergado, mas virei-lhe as costas? Ao menos agora ergo
minha alma com as mãos do meu afeto; agora digo adeus às escadarias brancas do paraíso e ao
rosto expectante de meus amigos. Um amor por um amor, e que o meu se iguale ao de Keawe!
Uma alma por uma alma e que seja a minha a perecer!”
Kokua era uma mulher hábil com as mãos, e logo estava vestida. Pegou o troco, aqueles
preciosos cêntimos que eles guardavam o tempo todo a seu lado, pois a moeda era pouco usada, e
eles haviam feito uma provisão num escritório do governo. Quando já ia longe pela avenida,
nuvens surgiram trazidas pelo vento, e a lua foi encoberta. A cidade dormia, e ela não sabia para
onde ir até que ouviu alguém tossindo junto às árvores.
“Velho homem”, disse Kokua, “o que faz aqui fora, nesta noite fria?”
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O velho homem mal conseguia se expressar por causa da tosse, mas ela percebeu que ele
era velho, pobre e forasteiro na ilha.
“O senhor me faria um favor?”, perguntou Kokua. “De um estrangeiro para outro e de um
velho homem para uma jovem mulher, o senhor ajudaria uma filha do Havaí?”
“Ah”, disse o velho homem. “Então você é a bruxa das oito ilhas, e até mesmo minha velha
alma você tenta envolver. Acontece que ouvi falar de você e desafio sua maldade.”
“Sente-se aqui”, pediu Kokua, “e deixe-me contar uma história.” E assim ela contou a ele
a história de Keawe do começo ao fim.
“E agora”, continuou, “sou a mulher dele, a quem ele comprou com a felicidade da própria
alma. E o que devo fazer? Se eu mesma fosse até ele e me oferecesse para comprar a garrafa, ele
se recusaria. Mas se for o senhor, ele vai vendê-la prontamente; vou esperá-lo aqui; o senhor a
comprará por quatro cêntimos, e eu a comprarei mais uma vez por três. E que Deus dê coragem a
uma pobre moça!”
“Se estivesse mentindo”, disse o velho homem, “acho que Deus a abateria com a morte.”
“Ele o faria!”, gritou Kokua. “Tenha certeza disso. Eu não poderia ser tão traiçoeira, Deus
não suportaria.”
“Dê-me os quatro cêntimos e espere por mim aqui”, disse o velho homem.
No momento em que Kokua se viu sozinha na rua, seu ânimo sucumbiu. O vento rugia nas
árvores, e aquilo lhe parecia o movimento impetuoso das chamas do inferno; as sombras agitavam-
se junto à luz da rua e lhe davam a impressão de ávidas mãos de criaturas demoníacas. Se tivesse
tido força, teria fugido, e se tivesse tido fôlego, teria gritado bem alto; na verdade não pôde fazer
nem uma coisa nem outra e permaneceu ali na avenida, trêmula como uma criança aterrorizada.
Por fim, viu que o velho homem retornava com a garrafa nas mãos.
“Fiz o que você mandou”, anunciou ele. “Deixei seu marido chorando como uma criança;
esta noite ele vai dormir com facilidade.” E entregou a garrafa a Kokua.
“Antes de entregá-la a mim”, disse Kokua com voz ofegante, “permita-se desfrutar do bem
que vem com o mal: peça para livrar-se de sua tosse.”
“Sou um homem velho”, replicou o outro, “e perto demais do portão da sepultura para
aceitar um benefício do demônio. Mas o que houve? Por que não pega a garrafa? Está hesitante?”
“Não, não hesito!”, exclamou Kokua. “Apenas sinto-me fraca. Preciso só de um momento.
É minha mão que resiste, minha carne se esquiva da coisa maldita. Só um momento!”
O velho homem olhou com bondade para Kokua. “Pobre criança”, disse, “você tem medo;
sua alma lhe causa apreensão. Bem, deixe-me ficar com a garrafa. Sou velho e nunca mais poderei
ser feliz neste mundo, e quanto ao próximo…”
“Dê-me!”, disse Kokua ofegante. “Tome o seu dinheiro. O senhor acha que sou tão
desprezível assim? Vamos, dê-me a garrafa.”
“Deus a abençoe, criança”, disse ele.
Kokua escondeu a garrafa sob seu holoku, disse adeus ao velho homem e foi embora pela
avenida, sem se importar com a direção. Porque agora todos os caminhos eram iguais para ela e
levavam, do mesmo modo, ao inferno. Às vezes andava, às vezes corria; às vezes gritava bem alto
pela noite, às vezes deitava-se na beira da estrada, junto ao chão empoeirado, e chorava. Tudo o
que ouvira sobre o inferno voltava-lhe à mente; Kokua viu as chamas ardendo, sentiu o cheiro da
fumaça e sua carne a ser consumida pelas brasas.
Era quase dia quando recobrou os sentidos e voltou à casa. Foi exatamente como disse o
velho homem: Keawe dormia feito criança. Kokua deteve-se e mirou o rosto dele.

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“Agora, meu marido”, disse ela, “é sua vez de dormir. Quando acordar, será sua vez de rir
e cantar. Mas para a pobre Kokua – ai de mim, que nunca desejei o mal a ninguém –, para a pobre
Kokua nada de dormir, nada de cantar, nada de se deleitar, seja na terra ou no céu.”
E, assim dizendo, Kokua deitou-se ao lado de Keawe, e sua desgraça era tamanha que num
instante ela caiu num sono profundo.
No fim da manhã, seu marido a acordou e deu-lhe a boa notícia. Keawe parecia bobo de
alegria, já que não tomou conhecimento da aflição de Kokua, por mais que ela mal conseguisse
disfarçar. Que as palavras não lhe saíssem da boca, isso não importava; era Keawe quem falava.
Ela não conseguia comer nada, mas quem teria notado? Porque Keawe raspara o prato. Kokua o
observou e o escutou como quem escuta alguma coisa estranha num sonho; havia momentos em
que ela se esquecia ou duvidava e então colocava a mão sobre a testa; saber que estava condenada
e ouvir seu marido a tagarelar parecia monstruoso demais.
Todo o tempo Keawe comia e falava, e planejava a hora de voltar, e agradecia a ela por tê-
lo salvado, e acariciava-a e dizia que no fim das contas ela fora uma ajudante e tanto. Ele riu do
velho homem que tinha sido tolo o suficiente para comprar aquela garrafa.
“Parecia um senhor decente”, observou Keawe. “Mas não se pode julgar pelas aparências.
Afinal, por que o velho canalha teria pedido a garrafa?”
“Meu marido”, disse Kokua humildemente, “a intenção dele pode ter sido boa.” Keawe riu
como um homem zangado.
“Ah! Que tolice”, gritou. “Um velho trapaceiro, se você quer saber; e, além disso, um velho
asno. Se já era bem difícil vender a garrafa por quatro cêntimos, por três será praticamente
impossível. A margem não é ampla o suficiente, a coisa começa a cheirar a queimado… brrr!”, fez
Keawe, estremecendo. “É verdade que eu mesmo a comprei por um centavo, quando não sabia
que existiam moedas menores. Fui um tolo por ter sofrido; nunca haverá outro igual; e quem quer
que esteja com aquela garrafa agora vai com ela para o inferno.”
“Oh, meu marido”, disse Kokua. “Não é algo terrível salvar-se graças à ruína eterna de
outro? A mim me parece que eu não conseguiria rir. Seria respeitosa. Seria tomada de melancolia.
Rezaria pelo pobre coitado que estivesse de posse da garrafa.”
Então, porque percebeu a verdade do que ela dissera, Keawe ficou ainda mais raivoso.
“Que tolice”, gritou. “Você pode ser tomada pela melancolia, se quiser. Não é o que se espera de
uma boa esposa. Se realmente se importasse comigo, ficaria envergonhada.” E em seguida saiu,
deixando Kokua sozinha.
Que chance teria ela de vender aquela garrafa por dois cêntimos? Nenhuma, Kokua se deu
conta. E, mesmo que tivesse alguma, ali estava seu marido apressando-a para longe, em direção a
um país onde nada era menor do que um centavo. E ali estava − no dia seguinte a seu sacrifício −
o marido abandonando-a e culpando-a.
Kokua nem mesmo tentou tirar proveito do tempo que lhe restava, em vez disso
permaneceu em casa, pôs a garrafa à vista e fitou-a com um medo indizível. Depois, com
abominação, afastou-a de si.
Mais tarde, Keawe voltou e convidou-a para um passeio.
“Meu marido, sinto-me doente”, disse ela. “Estou sem ânimo. Desculpe-me, não consigo
me alegrar com nada.”
Diante disso, Keawe se enfureceu mais do que nunca. Com ela, porque pensou que
estivesse remoendo o caso do velho homem; e consigo mesmo, porque achava que ela tinha razão,
e isso fazia com que sentisse vergonha de estar tão feliz.

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“Essa é a sua lealdade!”, gritou ele. “Esse é o seu afeto! Seu marido acaba de salvar-se da
ruína eterna em que havia caído por amor a você… e você não consegue alegrar-se com nada!
Kokua, você tem um coração desleal.”
Ele saiu mais uma vez furioso e vagou pela cidade o dia todo. Encontrou amigos e bebeu
com eles; contrataram uma carruagem e dirigiram-se para o campo, e lá beberam de novo. O tempo
todo Keawe sentia-se pouco à vontade, porque se divertia enquanto sua mulher estava triste, e
também porque no fundo do coração sabia que ela tinha mais razão do que ele; e a consciência
disso o fez beber ainda mais.
Àquela altura, um velho e rude haole bebia com ele, um homem que fora contramestre de
um baleeiro, fugitivo, garimpeiro em minas de ouro e condenado em diferentes prisões. O sujeito
tinha uma mente vulgar e uma boca imunda; adorava beber e ver os outros embriagados; e
empurrava o copo a todo instante na direção de Keawe. Em pouco tempo, já não havia mais
dinheiro entre os que estavam no grupo.
“Ei, escuta aqui!”, disse o contramestre, “você é rico, foi o que andou dizendo por aí. Você
tem uma garrafa ou uma bobagem qualquer.”
“Sim”, disse Keawe, “sou rico; vou voltar e pegar algum dinheiro com a minha mulher; é
ela quem o guarda.”
“Essa não é uma boa ideia, parceiro”, disse o contramestre. “Nunca confie seus dólares a
um rabo de saia. Todas as mulheres são falsas como a água; fique de olho nela.”
Aquelas palavras penetraram fundo na mente de Keawe, uma vez que ele se achava um
tanto alterado pela bebida.
“Não me espanta que seja realmente falsa”, pensou ele. “Por que outro motivo teria ficado
tão desanimada com a minha libertação? No entanto, mostrarei a ela que não sou homem para ser
enganado. Vou pegá-la em flagrante.”
Quando voltaram à cidade, Keawe ordenou ao contramestre que esperasse por ele na
esquina, junto à antiga prisão, e seguiu sozinho pela avenida até a porta de casa. Já era noite outra
vez; a luz estava acesa, mas não se ouvia nenhum barulho; Keawe então contornou a casa em
segredo, abriu a porta dos fundos com cuidado e olhou para dentro.
Lá estava Kokua no chão, o lampião a seu lado; diante dela uma garrafa de um branco
leitoso, bojuda na base e com um longo gargalo; enquanto olhava para a garrafa, Kokua torcia as
mãos.
Por um longo tempo, Keawe ficou ali parado, apenas olhando, sem entrar. Primeiro sentiu-
se atordoado; depois foi invadido pelo medo de que algo tivesse dado errado na transação e que a
garrafa tivesse voltado para ele como voltara a San Francisco; diante desse pensamento, seus
joelhos fraquejaram, e os vapores do vinho saíram de sua cabeça como névoa dissipando-se de um
rio pela manhã. Foi assim que outro pensamento lhe ocorreu; um pensamento bem estranho que
fez seu rosto queimar.
“Preciso ter certeza disso”, pensou.
Fechou a porta e mais uma vez contornou a casa cuidadosamente, e então entrou pela porta
da frente fazendo barulho, como se tivesse acabado de chegar. E vejam só! Quando abriu a porta,
não havia mais nenhuma garrafa à vista; e Kokua, que se encontrava sentada numa cadeira,
levantou-se de repente como alguém que tivesse acabado de acordar.
“Passei o dia bebendo e me divertindo”, disse Keawe. “Estive em boa companhia e vim
apenas buscar mais dinheiro para poder voltar a beber e farrear com meus camaradas.”
Seu rosto e sua voz eram tão graves como numa sentença de juiz, mas Kokua achava-se
perturbada demais para perceber.
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“Você está certo em usar seu próprio dinheiro, meu marido”, disse ela com voz trêmula.
“Oh, estou certo em tudo o que faço”, disse Keawe, e foi direto ao baú para pegar o
dinheiro.
Então Keawe aproveitou e olhou para o canto onde eles guardavam a garrafa e notou que
ali não havia garrafa nenhuma.
Com isso, o baú levantou-se do chão como uma onda do mar, e a casa girou em torno dele
como uma espiral de fumaça, porque naquele instante ele se deu conta de que estava perdido e que
não havia escapatória. “Era o que eu temia”, pensou. “Foi ela quem comprou a garrafa.”
Então ele voltou a si e se levantou; mas o suor lhe escorria pelo rosto tão espesso como a
chuva e tão frio como a água de um poço.
“Kokua”, disse ele, “hoje eu disse a você algo de que me envergonho. Agora volto a farrear
com meus alegres companheiros”, e ao pronunciar isso, ele riu baixinho. “Mas vou desfrutar
melhor da bebedeira se você me perdoar.”
Na mesma hora ela abraçou os joelhos dele; cobriu-os de beijos com lágrimas a lhe escorrer
pelo rosto.
“Oh”, lamentou-se ela. “Tudo o que eu queria era uma palavra de ternura.” “Nunca
pensemos mal um do outro”, disse Keawe e saiu da casa.
Acontece que o dinheiro que ele havia separado não passava de algumas moedas daquela
reserva de cêntimos que eles tinham feito assim que chegaram. Com certeza Keawe não se sentia
nada inclinado a beber. Sua esposa oferecera a alma dela por ele, e agora cabia a ele oferecer sua
alma por ela; para Keawe não havia outro pensamento no mundo.
Na esquina, junto à antiga prisão, o contramestre o aguardava.
“Minha mulher está com a garrafa”, disse Keawe, “e, a não ser que você me ajude a
recuperá-la, não haverá mais nenhum dinheiro ou bebida esta noite.”
“Você está mesmo falando sério sobre a garrafa?”, exclamou o contramestre.
“Vamos para junto da luz”, disse Keawe. “Pareço estar brincando?”
“É verdade”, disse o contramestre. “Você parece tão sério quanto um fantasma.”
“Bem, então”, disse Keawe, “aqui estão dois cêntimos. Você deve ir ao encontro de minha
esposa e oferecer-lhe isto pela garrafa, e ela (se não estou enganado) a dará a você imediatamente.
Volte aqui, e eu a comprarei por um cêntimo; porque esta é a lei da garrafa – que ela seja vendida
por uma quantia sempre menor. Mas, seja lá o que venha a acontecer, nunca diga uma palavra
sobre tê-la procurado a meu pedido.”
“Parceiro, fico imaginando, você não estaria me fazendo de bobo?”, perguntou o
contramestre.
“Se eu estiver, você não tem nada a perder”, rebateu Keawe.
“Isso é verdade, parceiro”, disse o contramestre.
“E se você duvida de mim”, acrescentou Keawe, “pode experimentar. Logo que deixar a
casa, deseje ter o bolso cheio de dinheiro, ou uma garrafa do melhor rum, ou o que lhe apeteça, e
poderá constatar a eficácia da coisa.”
“Muito bem, kanaka”, disse o contramestre. “Vou tentar; mas se você estiver se divertindo
às minhas custas, vou me divertir às suas custas com uma barra de ferro.”
Dito isso, o baleeiro partiu pela avenida; e Keawe ali ficou, à espera. Encontrava-se
próximo ao local onde Kokua esperara na noite anterior; mas Keawe estava mais decidido e em
nenhum momento vacilou em seu propósito; apenas sua alma achava-se amargurada pelo
desespero.

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Pareceu-lhe uma eternidade o tempo que foi obrigado a esperar antes de ouvir uma voz
cantando na escuridão da avenida. Reconheceu-a como a voz do contramestre; mas era estranho
como soava bêbada de uma hora para outra.
Em seguida, o homem surgiu trôpego sob a luz dos lampiões. Trazia a garrafa do demônio
debaixo do casaco; carregava outra garrafa nas mãos; e mesmo quando já podia ser visto, ergueu-
a até a boca e dela bebeu.
“Você está com a garrafa”, disse Keawe. “Posso vê-la.”
“Não se aproxime!”, gritou o contramestre pulando para trás. “Dê um só passo na minha
direção, e eu arrebento a sua boca. Achou que podia me enrolar, não foi?” “O que você está
querendo dizer?”, gritou Keawe.
“O que eu estou querendo dizer?”, gritou de volta o contramestre. “Esta é uma garrafa
muito boa, é mesmo; é isso o que quero dizer. Como foi que a consegui por dois cêntimos é algo
que não consigo entender; mas o que eu sei é que você não vai ficar com ela por um.”
“Você quer dizer que não irá vendê-la?”, perguntou Keawe ofegante.
“Não, senhor!”, gritou o contramestre. “Mas deixo você beber um pouco do rum, se
quiser.”
“Ouça o que estou dizendo”, alertou Keawe. “O homem que possui esta garrafa vai para o
inferno.”
“Creio que eu vá de qualquer maneira”, replicou o marinheiro, “e esta garrafa é a melhor
coisa que já encontrei para me acompanhar. Não, senhor!”, gritou ele outra vez. “A garrafa agora
é minha e se quiser que procure outra.”
“Será possível?”, gritou Keawe. “Para o seu próprio bem, eu lhe imploro: venda-me a
garrafa!”
“Não dou a mínima para o que diz”, retrucou o contramestre. “Você pensou que eu fosse
bobo; agora vê que eu não sou, e estamos conversados. Se não vai tomar um gole do rum, tomo eu
mesmo. À sua saúde, e muito boa noite!”
Com isso, saiu caminhando pela avenida em direção à cidade, e lá se vai a garrafa para fora
da história.
Keawe, por sua vez, correu ao encontro de Kokua, ligeiro como o vento; e enorme foi a
alegria dos dois naquela noite; e enorme, desde então, tem sido a paz de todos os seus dias na Casa
Reluzente.

1 Stevenson refere-se à peça The Bottle Imp [O demônio da garrafa], de R. B. Peake, que
esteve em cartaz em 1828 no Theatre Royal e foi protagonizada por Richard John Smith, conhecido
como Obi Smith. [N.E.]
2 No século XIX, o peso chileno era moeda corrente nas ilhas do Pacífico; seus habitantes
se referiam a ele como dólar do Chile. [N. T.]
3 Holoku: vestido longo usado até hoje pelas havaianas. Foi inspirado nos trajes ingleses
do início do século XIX e desenvolvido por influência dos missionários. [N. T.]
4 Lepra ou hanseníase. Os havaianos não possuem uma palavra para designar essa
enfermidade, e a expressão ma’i Pake significa literalmente “doença chinesa”. [N. E.]
5 Haole: modo como os havaianos se referiam aos estrangeiros brancos. [N. T.]
6 Kanaka: havaiano ou nativo das ilhas do Sul. [N. T.]

© Cosac Naify, 2013

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Este conto integra o livro O clube do suicídio e outras histórias, coletânea de contos de
Robert Louis Stevenson, traduzido por Andréa Rocha e publicado na coleção Prosa do Mundo, a
coleção de clássicos da Cosac Naify.

Concepção original da coleção: Augusto Massi, Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr.

Revisão: Arthur Bueno e Maria Fernanda Álvares


Projeto gráfico original da coleção: Fábio Miguez
Adaptação e coordenação digital: Antônio Hermida
1ª edição eletrônica, 2013

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

COSAC NAIFY
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01223-010 São Paulo SP
[55 11] 3218-1444
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Atendimento ao professor [55 11] 3218-1473
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Bônus:
O DEMÔNIO DA GARRAFA – (Lenda popular)

O Diabinho da Garrafa, também conhecido como Famaliá, Cramulhão, ou capeta da


garrafa, é um pequeno demônio que nasce de um ovo e é criado por um humano, normalmente que
tenha pacto com o diabo, para satisfazer seus desejos materialistas.
A lenda era predominante em Portugal e sua fama chegou logo depois ao Brasil, pelos
rituais de São Cipriano encontrados no seu famosíssimo e proibido Livro de Capa Preta. O livro
ensina invocações de outros demônios, mas vamos falar sobre o da garrafa, que no final também
pode ser colocado em uma caixa.
Em algumas regiões, depois do pacto, o ovo será fecundado pelo próprio demônio e, às
vezes, é posto até por um galo; nesta versão, uma pessoa deve procurar tal ovo (que tem o tamanho
de um ovo de codorna) e levá-lo em uma encruzilhada debaixo do braço esquerdo, à meia-noite;
após a hora, volta-se para casa com o ovo e o deixa chocar por 40 dias.
Do ovo que foi chocado, de uma das duas maneiras explicadas acima, nascerá um diabinho,
um pequeno demônio de 15 cm, que pode variar até 20 cm. O diabinho tem uma forma macabra;
ele é preto, meio humanoide, com chifres, rabo, etc.; logo que nascido, deve-se trancá-lo em uma
caixa de prata ou comumente numa garrafa transparente e tampar bem.
O Cramulhão deve ser alimentado todo sábado, à meia-noite; para isso, deve-se pôr o dedo
mindinho na boca da garrafa, ou em um pequeno buraco feito na caixa, para que ele possa beber
sangue, e assim realizando os desejos de seu dono; quem consegue ter um diabinho assim,
conseguirá tudo o que desejar na vida, assim como sua riqueza irá aumentando até o final da vida;
no entanto, não existe almoço grátis e logo após morrer, já que vai direto para o inferno.
Será que alguém aqui teria coragem?

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Conto folclórico brasileiro

O DIABO NA GARRAFA
Demônio escaldado tem medo de água fria

Certo homem, que tinha todos os motivos do mundo para desconfiar da esposa, necessitou
viajar a um país distante. Preocupado com o que poderia acontecer durante sua ausência, pediu ao
demônio que vigiasse a mulher. O diabo concordou prontamente – e se transformou num serviçal.
A mulher, contudo, era muito esperta e percebeu que havia algo estranho naquele
empregado que fiscalizava todos os seus movimentos e lhe fazia as vontades com extrema rapidez.
Chamou, então, o demônio, e disse:
“Vejo que você é um empregado com dotes excepcionais, capaz de verdadeiros milagres...
Mas duvido que consiga fazer uma coisa...”.
O demônio, envaidecido, e querendo provar seu poder, respondeu:
“Posso fazer tudo o que a senhora me pedir – e muito mais”.
A mulher, aproveitando-se do exagerado amor-próprio do diabo, sugeriu, apontando para
uma garrafa vazia sobre a mesa:
“Pois duvido que você consiga entrar naquela garrafa”.
O capeta, sem perceber a arapuca, enfiou-se no vasilhame. E antes que ele pudesse escapar,
a mulher fechou a garrafa com uma rolha.
Nas semanas que se seguiram, a mulher desfrutou de sua liberdade como bem entendeu,
comprovando todas as desconfianças do marido. Quando este retornou de viagem, depois de ser
recebido com extremo carinho pela esposa, perguntou pelo empregado.
“Ah, meu amor”, respondeu a mulher, “um dia, não sei por qual motivo, ele ficou enfezado
e simplesmente partiu...”
E enquanto o marido pensava sobre o que poderia ter acontecido, ela completou: “Será que
não era o demônio? Veja só o cheiro de enxofre que ficou nesta casa desde que ele foi embora!”.
De fato, a casa fedia a alguma coisa que a mulher, de caso pensado, queimara sem que o
marido percebesse.
“Por que você não pega esta garrafa, vai à igreja e enche-a de água-benta? Depois jogamos
a água pelos cantos da casa e nos livramos desse cheiro do Inferno...”
O marido, que além de ciumento era um simplório de marca maior, obedeceu. Quando
chegou à igreja, aproximou-se da pia de água-benta e, tirando a rolha, começou a encher a garrafa.
Mas quando a primeira gota caiu sobre o demônio, este fez o vasilhame explodir – e, queimado
pela água-benta, disparou rumo ao Inferno para nunca mais voltar. O marido, sem nada entender,
ainda meio tonto por causa da explosão, voltou para casa. E, para alegria da esposa, continuou
viajando a trabalho – mas sem conseguir que o demônio aceitasse tomar conta de sua mulher.

OBSERVAÇÃO
Esta obra deve ser utilizada, exclusivamente, para fins didáticos em
sala de aula para leitura, análise textual e produção de texto; em
hipótese alguma poderá ser reproduzida, por quaisquer meios, para
fins comerciais; todos os direitos são reservados à Cosac Naify.

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