Você está na página 1de 11
NOVA AGUIA Revista de Cultura para o Século XXI N° 22 — 2° Semestre 2018 Ensaio & Poesia | Temas & Autores CIDADANIA LUSOFONA V Congresso DALILA 100 anos FRANCISCO DE HOLANDA 5 séculos ANTONIO TELMO AGOSTINHO DA SILVA inéditos “oe INDICE EDITORIAL... CIDADANIA LUSOFONA: V CONGRESSO Incervengdes de Adriana Meera (p. 8), BrainaCassamé (p. 10), Delmar Maia Gangalves (p. x3), fer Manuel Cats (p. x2), Isabel Ptr (p. 15), Inna Nahak Borges (p. x6), luisa Timite (p. x8), Maria Dovigo (p. x8), Maiee Hikebrando e Paulo Manuel Senin hrs Pereira (p. 2x), aentin Viegas (p. 23), Zterino Boal (p. 26) e Cartes Mariano Manuel (p. 27). DALILA PEREIRA DA COSTA, 100 ANOS DEPOIS DALILA PEREIRA DA COSTA: NOTA BIO-BIBLIOGRAFICA | Rui Lop. 32 IN VOCAGAO | Nevanie Teter Mendes, 3 35 DALILA PEREIRA DA COSTA A MITOLOGIA PORTUGUESA | tn Bai. 36 DALILA PEREIRA DA COSTA E A NATUREZA MATRIARCAL DE PORTUGAL | Artur Manso 7 A COROGRAFIA SAGRADA NA OBRA DE DALILA PEREIRA DA COSTA | Joaquim Domingues. st ENCONTRO NA NOITE: ACERCA DO ONIRISMO MISTICO DE DALILA PEREIRA DA COSTA | José Rui Tebeira = 16 COM DALILA NO REEGA...GAGO DE ATABE...GINA | Mata José tea. 64 DA SUBLIMACAO DA MULHER NO PENSAMENTO DE DALILA PEREIRA DA COSTA | Maia Lis de Castro Soares. 6 DALILA: © PANO DE FUNDO OU UMA PREMISSA INTERPRETATIVA ESSENCIAL| PS LEMBRANGA DE UMA TESE DE DALILA | Pinharanda Gomes... FRANCISCO DE HOLANDA, 5 SECULOS DEPOIS 0 SENTIDO MBTAPISICO DA CRIACAO EM FRANCISCO DE HOLANDA: ARTE E SER | Antic Perira..80 FRANCISCO DE HOLANDA, OU DE COMO DESENHAR OS NOVOS MUNDOS POR ACHAR | katinia Morera Feit... FRANCISCO DE HOLANDA, © VARAO TLUSTRE, CENSURADO E ESQUECIDO | Detmar Dominga de Carvalho 98 FRANCISCO DE HOLANDA: DA IMITACAO A IDELA | Kalina Mai Sine. 94 FRANCISCO DE HOLANDA E © DIALOGO LUSO-ITALIANO, NO CONTEXTO DO RENASCIMENTO EUROPEU DO SEC. XVI | ts mia. FRANCISCO DE HOLANDA E © FUROR DIVINO | jst Bitzer Milas . sence 106 AVISAO DE LIMA DE FREITAS SOBRE O OLHAR DE FRANCISCO DE HOLANDA | Ua ka a3 ATEORIA ESTETICO-METAFISICA DA PINTURA DE FRANCISCO DE HOLANDA | Manvel Cio Pimertet. ACIDADE DA ALMA EM FRANCISCO DE HOLANDA | Manuel Cerado FRANCISCO DE HOLANDA EA ARTE | Maria de Lourdes Sigad Ganbo. ne TB4 (OS MEDALHOES NA OBRA DE FRANCISCO DE HOLANDA | Maria Teresa Amado 1137 APONTAMENTO SOBRE FRANCISCO DA HOLANDA | Mati Vitor Basts. 143 FRANCISCO DE HOLANDA: A CIRCULAGAO DO SABER EM ARQUITETURA NO SECULO XV! | Pate de ssn ANOCAO DE ARTE COMO PARTICIPAGAO DA\ CRIACAO DIVINA, NO MISTICISMO MANEIRISTA DE FRANCISCO DE HOLANDA | Samuel Dimas 165 ATEORIA DO PINTOR NA OBRA DE FRANCISCO DE HOLANDA | Teresa tous ss e126 “153 170 OUTRAS EVO(O)CACOES AGOSTINHO DA SILVA | Per Martins ALBANO MARTINS | Atti Furr tie st Bo. ANTONIO BRAZ TEIXEIRA | Samuel bimas ANTONIO CABRAL | Manuela Maras... ANTONIO QUADROS | José Langa-Ceth.. CASAIS MONTEIRO | hatin Bra Tet. DORA FERREIRA DA SILVA | Corstanga Marcndes César FERREIRA DEUSDADO | Artur Mans. MANOEL TAVARES RODRIGUES-LEAL | ise Boe Toa. MANUEL ANTUNES | una Sato Mayor Feo ‘MARCIA DIAS | Zfei Boa. OUTROS vOOS EXPRESSAO E SENTIDO DA SAUDADE NA POESIA ANGOLANA E MOCAMBICANA DA GERACAO DE 1985 | Aatine Braz Teta BREVE REFLEXAO SOBRE O ENSINO DA FILOSOFIA EM CABO VERDE | Biter Manuel Gatos PARA UMA DECLARACAO DOS DIREITOS HUMANOS DA MAE | Jasé Eduardo Fano... AFISSURA NA MURALHA OU 0 “PRINCIPIO DA AUTODETERMINAGAO” |e Sint... DOZE DEAMBULAGOES PRO-LUSOFONAS Vet Eta. AUTOBIOGRAFIA 5 | Samuel Dinas EXTRAVOO VIDA CONVERSAVEL ~ SEGUNDA PARTE (CONTINUAGAO} (esta Sea DIALOGOS DO MES DE OUTUBRO (EXCERTO) | tina Tei 262 264 BIBLIAGUIO AVIA LUSOFONA IIT | Wigel Re... ‘AMADEO DE SOU2A-CARDOSO: A FORCA ‘DA PINTORA & 4 “RENASCENGA PORTUGUESA” PENSAMENTO, MEMORIA E CRIAGAO | eat NO REGAGO DE ATAEGINA | ns Rmeita ‘MESTRES DA LINGUA PORTUGUESA | large Chika Reigues 270 272 274 275 POEMAGUIO RENASCER A SUL | Mata ua Fane. EXPRESSAR UM ISMO; PROVA DEVIDA | Ait -3t ABORRECIMENTO | Ath Gril... 74ls DOM SEBASTIAO, O QUE NAO DESCANSA; IBN QASI, TODA A VIDA NA MORTE | ess Caius 213 FAZEMOS METAFORAS; PEREGRINACAO | Smut Dina, : a ROSTO; RESIDUAL; ARRAIS; CUNEIFORME; ANJO | lisa Borges. 26819 ‘CRONOS & KAIROS; PRINCIPIUM SAPIENTIAE | Pala Ferreira da Guha 279 nn 30 MEMORIAGUIO. MAPIAGUIO ASSINATURAS..... COLECGAO NOVA AGUIA BP ns NOVA AGUIA ~ Revista o¢ Cotta —/ Seevia IX WS 22 ~ 2 Seucerse 2008 A CIDADE DA ALMA EM FRANCISCO DE HOLANDA Manuel Curado I. ENXERTAR ARVORES E PINTAR QUADROS Estando em 1571 a viver no monte como lavra- dor, Francisco de Holanda parece retirar-se do mundo ao modo dos antigos patricios romanos. Escrevia ele no seu Da Ciéncia do Desenho, num misto de amargura e de sabedoria, que estava “tio desenganado que nenhuma cousa do mundo me poderé jé tirar deste monte em que vivo, em que mais estimo enxertar uma drvore ¢ vé-la crescer que quantas valias nem riquezas hé em Oriente” (Vasconcelos, 1879, II, p. 5). Nestas palavras, em que se poderia ler o sentido de muitas vidas por- ‘tuguesas, mormente a de um Herculano em Vale de Lobos, h4 uma li¢io curiosa. £ esta: Holan- da olha para a sua vida de um modo semelhante ao modo como olhou para a arte. Enxertar uma 4rvore nao se confunde com pintar um quadro; irmana as duas tarefas, contudo, a convicgao de que é a vontade de alguém que dirige os eventos. Neste sentido, o ir viver para o monte é também uma obra de arte, assim como esta é um mero. conjunto de acgées iniciadas por uma vontade. Holanda notabilizou-se por desenvolver uma teoria da criagio artistica, Ndo sendo um filé- sofo, sentiu-se motivado a tentar compreender como surge uma obra, um dos problemas inte- lectuais mais complexos que se conhece porque tem a ver com a génese da criatividade humana. E tendo em atencio este problema que se pode afirmar que hé toda uma teoria implicita no que afirma sobre a decisio patricia de se retirar da vida publica. Essa “teoria”, como poderia ser des- ita com generosidade, € comum ao que defen- deu a respeito da criagio da obra de arte, Nao € evidente, contudo, que essa “teoria” seja ver- dadeira. Veja-se o que fundamenta esta suspeita. Parece ndo haver relacio entre enxertar e pintar. Contudo, numa obra técnica como é o tratado Da Fabrica que Falece a Cidade de Lisboa, em que Holanda lista uma importante série de melhoramentos que a capital do pais necessita- va com urgéncia (fortes, muralhas, chafarizes, pontes, calcadas puiblicas, cruzeiros ¢ marcos milidrios, entre outros), 0 trabalho sobre a alma humana é aproximado aos trabalhos de natureza mais material. A surpresa é tanto maior quanto faz depender estes tiltimos do que se fizer a res- peito da primeira: “Tem tanto cada um de nés que fazer em a fortaleza e repairo de sua alma € no reino da espiritual cidade dela, que bem podera eu dissimular por agora de tratar da for- tificagéo € repairo do reino e cidade material de Lisboa” (Vasconcelos, 1879, I, p. 13 Segurado, 1970, p. 71). Como afirma no capitulo II des- se livro, “Da cidade da alma primeiro, e de sua fortaleza”, o cuidado da alma deve orientar tudo © que se fizer a respeito das cidades concretas onde vivem as pessoas. E é precisamente aqui que se encontra um dos contributos intelectuais de Holanda que tem permanecido um pouco i sombra da sua obra pioneira como teorizador da pintura, como cronista da vida de artistas famo- sos ¢ até como grande desenhador por direito proprio. O que tem permanecido & sombra é a sua concepcéo de alma; dir-se-ia hoje, a sua psicologia filosdfica, mas dir-se-ia com impro- priedade porque, havendo de facto uma psico- logia filos6fica, ha sobretudo uma cosmologia metafisica que coloca a tealidade animica néo apenas no centro da vida do individuo, mas na fronteira comum entre a interioridade das pes- soas € 0 Criador. As palavras iniciais da dedicatéria a D. Sebastio podem parecer um mero aceno a uma tradigio ética ¢ religiosa. Contudo, a anatomia da mente humana a que se dedica Holanda € as decisées Francise tedricas que toma a respeito do que acontece no santo dos santos onde surge a criatividade artistica, verdadeira maternidade de tudo 0 que sucede na vida humana, fazem com que 0 seu pensamento sobre a cidade da alma seja espe- cialmente importante. Tentando compreender © que acontece no processo criativo dos artistas, afirma-se no Da Pintura Antiga que, sendo a in- vencao “a mais nobre parte da pintura, néo se vé de fora, nem se faz com a mao, mas somente com a grande fantasia ¢ a imaginagao” (1984, p. 42). E nesta terra da imaginagéo que Holanda esmitiga 0 processo de vinda ao mundo do que nao existia anteriormente, do que é novo. Pre- cisamente, como é que isso acontece? A andlise feita pelo pintor portugués ird propor uma res- posta voluntarista a esta questo. Veja-se como, II. 0 QUE CHEGA A IMAGINAGAO O inicio do processo criativo reside numa ma- nifestacao da vontade. E isto que Holanda afir- ma sem ambiguidade: “Quando o vigilante ¢ excelentissimo pintor quer dar algum princfpio e alguma empresa grande, primeiramente na sua imaginagéo faré uma ideia e hd-de conce- ber na vontade que invencéo tenha a tal obra” (1984, p. 42), Sublinhe-se como este texto per- mite duas leituras. Em primeiro lugar, Holanda parece estar a afirmar que surgiu qualquer coisa na imaginacao ¢ que, depois disso, a vontade da estrutura ao que surgiu. Em segundo lugar, todo © texto parece um teatro da vontade: ¢ ela que comega por fazer uma ideia ¢ continua a dar-lhe forma. A escolha entre estas duas leituras é faci- litada porque a sequéncia do proceso criativo que se segue a este primeiro momento é também totalmente dominada pela notag4o voluntaris- ta. Depois do trabalho da vontade que deseja alguma coisa, “assentard e determinaré na sua fantasia com grande cuidado e adverténcia a fer- mosura, 0 modo, o estado e descuido ou pronte- za que quer que tenha aquela figura ou histéria que determina fazer” (1984, p. 42). No cadinho da imaginagao, a vontade estructura a ideia. Este trabalho de concepgéo é a parte mais relevante do processo criativo, ¢ © que se Ihe segue limita- -sea exteriorizar, pelo trabalho da mao, 0 que jé se alcangou no recato da imaginagao. O artista, ye Houanon, 5 Steutes Dereis ny QB nesse momento, pode “jé estar contente e qua- se descansado, pois tem assegurado aquilo que desejava e tinha por incerto, ¢ 0 tem como um alvo a que enderecar sempre a mao, guardado no mais secreto ¢ encerrado lugar que temos” (1984,, p. 43). Deste ponto de vista, a segun- da leitura torna-se dominante: como se vé que boa parte do proceso criative gira em torno da vontade, assume-se que no seu primeirissi- mo momento também foi uma vontade que se manifestou. A primeira leitura desaparece com- pletamente do horizonte do intérprete, tal como desapareceu do horizonte do autor. ‘Como grande te6rico da criagao artistica, Holan- da esté fascinado com 0 que acontece no lugar secreto e encerrado em que tudo comeca. Ele ~ ou até qualquer pessoa que pense a fonte da ctiatividade ~ € levado a fulanizar esse processo, surgimento do novo assinala o desejo eféme- ro ow a vontade determinada; nao se repara que a fulanizagéo subjectiva do processo é sempre o segundo momento, um momento que acontece depois de uma imagem, conceito, ideia, decisio ‘ou emocao terem chegado ao espirito ¢ si mes- mo. Chega 4 pessoa qualquer coisa, de que ela precipitadamente se apropria, Eo que todas as pessoas fazem no seu quotidiano, aliés. Quando se esté num cruzamento a decidir para onde se deve ir, a certa altura chega a decisio & pessoa, ¢ cla encaminha os seus passos segundo o que lhe aconteceu interiormente, como se a decisio ti- vesse vindo de fora e tivesse entrado no seu espi- rito. A vida humana é um oceano de momentos em que as pessoas sio visitadas por contetidos gue Ihes chegam consciéncia. Ninguém se casa, ou vai as compras, ou decide escrever um livro, ou pintar isto ou aquilo sem que alguma coisa acontega no fluxo das suas consciéncias. A finura da andlise que Holanda faz a este mo- mento do processo criativo é novével. Como se trata de um momento especialmente subtil, a tocar 0 evanescente, os leitores das suas obras fixam sobretudo a rica teorizagao de tudo 0 que se segue a esse momento, do proceso artistico as referéncias & histéria da arte ¢ as recomendacées a governantes. Holanda apropria-se de algo que surge na imaginacao, Interpreta esse surgimento como uma manifestacao da vontade, fulaniza-o a0 modo de um sujeito que quer fazer alguma SS vs coisa. Neste sentido, Holanda contribuiu para uma doutrina ocidental da criatividade. Esta passa a ser entendida como fruto de um traba- Iho da vontade. Ora, o préprio Holanda, com as leituras mani- festas que fez em Itdlia do Corpus Hermeticum, do mitico Hermes Trismegisto, ¢ de autores do Platonismo Médio, como Alcino, do século IT .C,, que alids cita ostensivamente (1930, p. 100; 1984, p. 44; cf. Alcino, 1993, IX.1-2, p. 16), est4 claramente dividido a este respeito. Que nao haja divida nenhuma que ele atribui cores voluntaristas a0 processo da criatividade. Contudo, se 0 segundo episédio da criativida- de jé tem as cores de um sujeito que deseja ¢ quer alguma coisa, as observagées que faz. sobre © primeirissimo momento da criatividade séo muito inquietantes. Repare-se na descrigao da urgéncia que o artista sente em fixar rapidamen- te 0 que Ihe veio ao espirito, temendo que, na rapidez das ideias, Ihe fuja aquela intuigéo que longamente procurou: “Como neste ponto cle se tiver, pord velocfssima execugéo 4 sua ideia e conceito, antes que com alguma perturbacéo se Ihe perca ¢ diminua; e se pudesse pér-se com o estilo na mao e fazé-la com os olhos tapados, melhor seria, por nao perder aquele divino furor ¢ imagem que na fantasia leva” (1984, p. 43). Ora, é aqui precisamente que esta 0nd do pro- blema. Holanda teatraliza maravilhosamente a cena do processo criativo, As pessoas estéo de olhos tapados & espera de alguma coisa boa, & espera do que as determinaré: uma deciséo, um, amor, uma ideia, uma imagem, uma inspiragio. Esperam algo, e vem-lhes muitas vezes algo. Os mais industriosos ¢ pacientes néo querem, con- tudo, somente algo; esperam que Ihes venha a ideia virtuosa, a forma inigualével ou o conceito excelente; melhor ainda, querem o absolutamen- te novo. Tentando o gesto impossivel de precisar © que néo depende da pessoa, € nisto 0 grande artista é igual a qualquer outra pessoa, Holanda fala de um “divino furor”, fala de uma “imagem que na fantasia” surge (1984, p. 43). A questio & filosoficamente importante. A capacidade de pintar nio se aprende, mas nasce com alguns ho- mens, como se fosse seu destino; estas pessoas Jancam as outras um raio da luz que, a seu tem- po, Ihes foi dada por graga do céu (1984, p. 30). NOVA AGUIA - Revists a Cocrons pana 0 Sécute XXT ” ———————————— eeee—— 22 — 2 Semtstae 2018 Da mesma forma, ninguém se dé a si mesmo 0 “divino furor”; as pessoas podem dedicar uma vida inteira & procura do “divino furor”, mas ele nao Ihes acontecer a elas. Nao tiveram boa sorte. Isso nfo Ihes aconteceu. Os grandes escritores ¢ os grandes artistas passam tormentos inenarré- veis & espera dessa tal imagem luminosa que na fantasia Ihes podera surgir, sem nenhuma certe- za, como é evidente, porque néo hé uma corres- pondéncia directa entre 0 trabalho do desejo ou da vontade e o resultado. A boa imagem poder surgir na fantasia da pessoa errada, sem que ela esteja preparada para a escutar, fixar ¢ promover Nao tem sentido dizer que os artistas ¢ outros criadores humanos constroem partes do furor divino ou partes da imagem, para depois, em bloco, serem visitados pelo préprio furor ou pela prépria imagem. Seria absurdo que se dessem a si proprios o furor ¢ a imagem antes de lhes acontecer 0 furor ¢ a imagem. Tem sentido, di- ferentemente, como Holanda descreve com um cuidado fenomenolégico assinalével, tentar fixar com urgéncia 0 que rapidamente se desvanecerd. ‘A boa ideia surge em bloco na terra estranha da fantasia, ndo na terra do desejo, nem na terra da vontade, ¢ muito menos na terra da razéo. IIL. 0 TEATRO DA CRIATIVIDADE ‘As leituras neoplaténicas © herméticas de Ho- Janda inspiram-no a reflectir muitas vezes sobre a chegada em bloco da boa ideia ao espirito. Se existisse um algoritmo racional para a criativida- de humana, e se ele fosse conhecido, tudo seria muito diferente. Feliz ou infelizmente, nao se conhece esse algoritmo (tendo 0 cuidado de néo confundir 0 que sé conhece com o que existe, tudo indica que ele parece ndo poder existir de todo). Hé uma outra Iégica a actuar na vida hu- mana geral e, mais em particular, nos pequenos pedacos dela que a ritmam ao longo do tempo: os momentos de decisio ou de inovacéo. Ho- Janda tem a ousadia de irmanar 0 que surge na vida das pessoas a um material onirico. Como © que est em causa no € apenas 0 momento da grande ctiaggo artistica, mas a vida banal de qualquer pessoa, poder-se-ia dizer que Holanda tem a este respeito a convicgao de que a vida hu- mana é fundamentalmente onitica. Veja-se 0 que a Francisca og Hoa cle encontra a boiar no rio dos eventos que é a consciéncia do artista: “A ideia na pintura é uma imagem que hé-de ver o entendimento do pintor com olhos interiores em grandissimo siléncio segredo, a qual hé-de imaginar e escolher a mais, rata ¢ excelente que sua imaginagio prudéncia puder alcangar, como um exemplo sonhado, ou visto em o céu ou em outra parte” (1984, p. 43). Sublinhe-se a dinmica principal desta teatrali- ragéo da criatividade. Por um lado, hé actos sub- jectivos, hd uma fulanizacao do processo. O pin- tor é, a este respeito, um embaixador de todos os seres humanos; ele esforca-se por fazer silén- cio, por ver bem as imagens que lhe surgem aos olhos interiores; tenta ser o escriba competente que regista 0 que acontece no solo interior. Por outro lado, hé 0 que Ihe surge, uma imagem fu- gaz como um sonho, que, nao podendo ser deste mundo, Holanda, 3 falta de melhor explicagio, presente que ela deriva de um mundo onirico vasto. A imagem nio é deste mundo porque é precisamente dela que 0 artista ou o decisor ou ohomem banal estéo & espera, e esto todos eles a espera de algo que os determine. Holanda re- para que h4 aqui qualquer coisa que merece ser explicada. Contudo, perante a enormidade da mera possibilidade de que a criatividade, a de- cisio e a determinagao venham “de fora”, recua para uma posicéo de conforto intelectual. Ho- Janda interpreta a chegada da ideia & consciéncia como se se tratasse de uma acco voluntéria que depende do sujeito. Procede desse modo num crescendo de apropriagéo. As consequéncias da ideia ea sua expressio no mundo revelam essa apropriagio, pois que a pessoa que foi visitada pela ideia quer “depois arremedar e mostrar fora com a obra de suas maos propriamente como 0 concebeu e viu [sc. a0 exemplo sonhado] dentro em seu entendimento” (1984, p. 43). Se as diligéncias para fixar 0 conceito ou mate- rializar a forma da imagem que surge ainda se compreendem como uma apropriagao justifica- da por parte do sujeito, 0 que € espantoso é a doutrina que Holanda veicula de que a vonta- de humana pode ascender até a tim Ambito que & em Ultima andlise, de natureza divina. Este €0 cimulo da leitura voluntarista do proceso ctiativo que Holanda transmitiu & posteridade. Afirma ele que “a ideia éa mais altissima coisa na 5 Senos Derais ny B pintura, que se pode imaginar dos entendimen- tos; porque, como é obra do entendimento e do espitito, convém-lhe que seja muito conforme a si mesma; € como isto tiver, ir-se- alevantando cada vex mais ¢ fazendo-se espirito ir-se-A mes clar com a fonte e exemplar das primeiras ideias, que é Deus” (1984, p. 44). Simplificando o que este texto afirma, tem-se 0 seguinte: o entendi- mento ou 0 espitito criam a ideia voluntaria- mente; a ideia, como é a fonte de toda a acco humana, nela incluindo a pintura, é 0 assunto mais alto da vida humana; de acordo com este estatuto nobre, tenderé a sublimar-se cada vez mais, confundindo-se a certa altura com uma realidade que jd nao é humana, Deus. Se se fizer a analogia desta scquéncia com um prédio de muitos andares, 0 que permite ascender de um andar para o seguinte ¢ 0 elevador da vontade. No ré5-do-chao do edificio esta 0 equivoco ini- cial: como nio se percebe de onde surgiu a ideia, esta é interpretada apressadamente como sendo o resultado de uma obra do entendimento ¢ do espirito; ora, todas as obras, como se vé em fases posteriores do processo criativo, so uma activi- dade da vontade; vai dai que aquilo qué aconte- ce depois apropria-se retrospectivamente daquilo que aconteceu no primeiro momento. No topo do edificio, ha um outro equivoco: como se che- gou a sublimagio através do esforco da vontade, e esta poderia ser ilimitada (Holanda nfo afirma em parte nenhuma que a vontade tem limites), © modo que o teorizador encontra para colocar um limite ao império da vontade é o de a irma- nar a uma realidade supra-humana. Varios equivocos estruturam, pois, esta apro- ptiagéo pela vontade do processo criativo. O momento de expresso material da ideia exige a competéncia técnica do artista, tal como exige 0 dominio da escrita por parte do escritor, ¢ tal como exige 0 dominio das armas e do coman- do de soldados por parte do general. Como esta parte do processo parece totalmente fulanizada, porque hé um agente que faz efectivamente as coisas (prepara a tela, mistura as cores, posicio- na o bloco de mérmore, afia a pena ¢ prepara a tinta, etc.), néo se repara que cada um dos seus momentos também é um encontro com a ideia. E necessério amplificar cada um desses momentos com uma lupa fenomenolégica; caso BS vo contrério, como a sequéncia é muito répida, pa- receré que apenas a vontade esteve presente. O artista teve uma visio interior que deseja colocar na tela; contudo, também tera visdes interiores do modo de preparagao da tela ou da tabua, da escolha da luz que deve acompanhar o trabalho, e de centenas de outras pequenas decisées. Por suposigao absurda, um criador poderd ter uma boa ideia, mas nao lhe vir de seguida as ideias para a escolha dos materiais, ou a vontade de fa- zer objectos. Como Holanda interpreta esta se- gunda parte do processo criativo como 0 campo de intervencéo de uma vontade soberana, por contdgio faz com que esta vontade suba a mon- tante do proceso. A chegada da imagem ou da ideia ou da decisio parece o resultado feliz da volicao privilegiada de um criador; € isso que ele quer dizer ao afirmar, ¢ repita-se, que “a ideia (...) € obra do entendimento ¢ do espitito”. Ora, a ideia ndo é obra do entendimento ¢ do espirito; mas, diferentemente, acontece 0 en- tendimento e no espirito. Nao hé nesta zona do psiquismo humano um processo oficinal seme- Ihante ao que acontece no esttidio de um artista ow na oficina de um artesio. Se, nestes sitios, (0 verbo que domina é “fazer”, naquela zona os verbos accitaveis so “esperar” e “nao fazer”. Estes equivocos tém certamente vérias justi- ficagées: umas ligadas & histéria intelectual do assunto (ver abaixo); outras ligadas & sua biogra- fia. Holanda, como artista, estava habituado a ver que as obras surgem depois de um conjunto esforcado de diligéncias. Este modelo artesanal da produgao de objectos influenciou a sua nogo de obra do entendimento e do espitito. As prati- cas exteriores contagiaram a pratica interior. To- davia, se as primeiras conseguem produzir algo que ateste 0 valor das diligéncias, na segunda, por muito que se faca, nao se pode garantir a vinda do raio de luz, a vinda do furor divino ou avinda da graca. IV. MODELOS FILOSOFICOS DA CRIATIVIDADE Do ponto de vista da histéria intelectual do Ocidente, ha em tudo isto um deralhe que é muito relevante. As leituras neoplatnicas de Holanda foram suficientes para ele reparar que 6 advento das imagens é um assunto misterioso NOVA AGUIA — Revista a Couture FA pp We 22 — 2° Sencsrae 2018 Seeuin IX que merece ser pensado. Contudo, 0 Neoplato- nismo é empurrado para fora da interpretagéo por influéncia de Platao, mas também do Plato- nismo Médio. Esta escola filoséfica juntou que no Timeu platonico estava separado. Em vez de 0 Demiurgo dar forma & matéria através da vi- sao dos modelos eidéticos, surge a nocao de que Deus teria um segundo intelecto onde estariam as primeiras ideias que sio o modelo da Criagio, ideias que, por sua vez, sio a origem de todas as ideias humanas, A doutrina do segundo in- telecto foi muito importante na construcéo in- telectual do Cristianismo porque o Deus cristio nao poderia nunca assumir 0 papel menor de um demiurgo platénico que, mirando o plano eidético, impée forma a uma matéria desprovi- da de forma. O plano cidético moveu-se, por conseguinte, para 0 ambito do préprio Cria- dor, como se fosse 0 seu segundo intelecto. Esta doutrina garante a ortodoxia possivel: Deus nio imita uma realidade que esteja fora de sie que seja co-eterna com Ele (cf. Armstrong e Markus, 1970, pp. 18-19). Aplicada ao processo criativo dos artistas, esta doutrina auxilia a mensurar a distancia que vai da ideia A materializagio da ideia. E este acto que justifica o elogio das obras e 0 reconheci mento do mérito do artista a produzi-las. Esta avaliacdo do mérito é recorrente no pensamen- to de Holanda: “quando ele [sc. © pintor] tiver igualado a bondade de sua fantasia € imagina- 40 com as suas méos, entio Ihe devem de pér tuma capela de loureiro na cabega em sinal de vencimento ¢ gléria” (1984, p. 43). O proble- ma é que a distancia‘que vai da obra & ideia é também a que vai da ideia humana ao protétipo da ideia que esta no segundo intelecto de Deus, porque, como ¢ evidente, se Holanda entendea ideia como obra do entendimento, é, ela propria j fruto da vontade ¢ da diligéncia humanas. A avaliagéo do mérito nao deve acontecer apenas entre a obra artistica ea ideia humana, mas en- tre a obra e a tinica ideia que importa, a divina O paradoxo do pensamento de Holanda sobre a ctiatividade expressa-se de modo simples. Por um lado, se a leitura voluntarista do processo criativo for levada ao extremo, todas as ideias pa- recerio obra humana, ¢ como todas as ideias de- rivam de uma ideia divina, segue-se que mesmo — Francisco at Hous, § Stoetas Derois esta parecerd estar perigosamente préxima das diligéncias humanas. Por outro lado, se se aceitar que a ideia chega ao artista no segredo da sua fantasia ¢ entendimento, mas que néo depende fundamentalmente dele (tecordem-se as palavras sobre o furor divino ou sobre o exemplo sonha- do), tudo na arte parecerd vir de fora e, como a arte acontece no vasto tecido da vida humana, segue-se que, por maioria de razao, tudo na vida humana pareceré também vir de fora. A respeito da primeira dificuldade, ¢ dentro da ortodoxia da época, nio se coloca de todo a questio de desrespeitar Deus com a iluséo de que seres especialmente dotados, como os ar- tistas, poderdo chegar ao protétipo perfeito de todas as ideias. Holanda tem perfeita conscién- cia da desmesura que aparta 0 mais perfeito dos ctiadores humanos em relagio ao Criador divi- no: “Ali toda a ideia altissima ficard pequena, ali todo 0 grande entendimento ficaré vencido; ali toda a mao mestriosa (se. habil, cheia de pericia] tremerd e nao saberd mover-se quando quer que houver de mostrar com arte e pintura a imen- sidade incircunscrita do imortal Deus” (1984, pp. 65-66). A respeito da segunda dificuldade, 0 entendimento do papel do ser humano nas deci- s6es que toma entraria em colapso. Se as grandes ideias dos artistas surgem como visitas exterio- res a0s seus espititos, as modestas decisoes das pessoas comuns também as visitariam nos mo- mentos de escolha. A interpretagao ocidental da vida humana perderia os seus referenciais filos6- ficos mais s6lidos: responsabilidade pelas deci- ses, liberdade nas acg6es, mérito na avaliagao dos resultados, etc. Nenhum destes caminhos pode ser facilmente percortido. Estas linhas de pensamento em rota de colisio originam outras dificuldades. Entre as artes ha como que uma hierarquia, e, no topo dessa hie- rarquia, esté a pintura. A questio reside na nogio de Holanda de que a propria pintura é sublimada pelo desenho, que é como a sua esséncia: “quem quiser saber em que consiste toda ciéncia e forca desta arte que celebro, saiba que ela consiste toda no desenho, ou debuxo” (1984, p. 44). A duivida esté instalada. Como se pode afirmar que toda a forca da pintura esté no desenho, se este tece depois da imaginacao e do encontro com a ideia? Mais uma ver, percebe-se 0 paradoxo em acon- que se enreda Holanda. Uma hierarquia de cién- cias que tem no seu cume o desenho ¢ a pintu- ra aponta para uma linha platénica que, no seu extremo mais alto, permitiria a contemplagao da ideia de Bem. Dizendo de outro modo, a nogio de desenho ou de pintura em Holanda aproxi- da nogio de uma Ciéncia Perfeita, tao perfeita que se ultrapassa a si mesma no esforgo de contemplar a fonte de todo o ser, a ideia de Bem. Onde esto a pintura e, sobretudo, o de- senho poderia estar a dialéctica platénica ou 0 jogo das contas de vidro de Hermann Hesse. A Ciéncia do Desenho é uma das mais interessantes express6es da aspiragéo profunda e antiga a uma Ciéncia Perfeita que 0 pensamento portugués produziu. Porém, se tudo depende do que acon- tece no santo dos santos da chegada ao espirito de uma imagem ou decisio ou contetido ou in- tuicao criadora, ou qualquer outra coisa, a hierar- quia das ciéncias € irrelevante. Vem ao espirito 0 que acontece &s pessoas (artistas, generais, donas de casa...), ¢ que elas nunca podem propiciar ou forcar suficientemente. Para sair deste paradoxo, num texto de velhice como 0 Da Ciéncia do Desenho, Holanda pro- curaré uma solugio hfbrida. O desenho nio & uma ciéncia humana no topo de uma hierarquia de conhecimentos nem tim resultado posterior a uma chegada da ideia divina ao entendimento humano; diferentemente, é jd um sinal da pre- senga efectiva de Deus no entendimento hu- mano. Isto é, nao sio os contetidos, quaisquer que sejam (pictéricos, conceptuais, emotivos, religiosos, ligados a decis6es individuais, etc.), que sio relevantes, porque o continente em que acontecem jé é, ele préprio, uma frontei- ra comum ao divino e aos seres humanos: essa fronteira € a ciéncia do desenho. Actualizando ‘os termos desta equacao, dir-se-ia que a racio- nalidade que o desenho manifesta jé faz. parte de uma ordem geral do mundo que nao é de feitura humana. A pergunta famosa de Wigner, o laureado Nobel em Fisica de 1963, sobre a espantosa capacidade de a matemdtica expressar © mundo fisico, é uma expresso tardia desta li- nha de pensamento (1979, pp. 222-237). Um conjunto de conhecimentos humanos — a ma- temética — parece ter a capacidade misteriosa de expressar 0 vasto mundo que nao é humano. mar-se- EH a2 NOVA AGUIA ~ Na sua época, Holanda olha para a ciéncia do desenho deste ponto de vista: como & possivel © desenho representar com tanta fidelidade a ordem do mundo? A resposta que dé a esta in- terrogacao fecunda é a de que a ordem divina estruturou a prépria racionalidade humana. Nas suas préprias palavras, diz ele que “escrevo daquela ciéncia (...) naturalmente dada por 0 sumo mestre Deus gratuita no entendimento, procedida de sua cterna ciéncia a qual se cha- ma Desenho, ¢ néo debuxo nem pintura; 0 qual desenho assi natural no entendimento por Deus (...) € uma cousa tio grande e um dote tao divino, que 0 mesmo Deus obra nele natu- ralmente, obra cle em todas as obras, manuais ou intelectuais que podem ser feitas ou imagi- nadas” (Vasconcelos, 1879, II, p. 6). Como se vé facilmente, esta solugio hibrida dissolve toda a criatividade humana na fonte de tudo: 0 proprio Deus. Como os contetidos artisticos derivam de um continente que é 0 desenho, ¢ este, por sua vez, deriva da ciéncia inctiada de Deus, néo é possivel reclamar auto ria humana para qualquer obra. Tudo de bom tem uma origem nao humana. Nas palavras da Epoca, esta em causa a gléria que deve ser dada aos ctiadores ¢, sobretudo, a0 Criador por ex- celéncia: “E assi como este desenho criado no entendimento ou imaginativa é nascido na eter- na ciéncia, incriada na nossa, assi a noséa ideia criada dé a origem e invengio a todas as outras obras, artes ¢ oficios que usam os mortais. ( De que resulta toda a gloria deste negécio ( ao dador e inventor de todos os entendimentos, que é Deus” (Vasconcelos, 1879, II, p. 6). ‘Compreende-se os constrangimentos intelectuais de Francisco de Holanda frente a0 problema momentoso da origem da criatividade humana. As suas leituras platénicas, neoplaténicas do Platonismo Médio (nomeadamente de Alcino, autor do Didaskalikos ton Platonos dogmaton, confundido durante muitos séculos com Albi- no) chocam com o respeito incondicional que deve a0 pensamento oficial da ortodoxia catéli- ca, néo fosse ele um protegido de D. Joao IIL, 0 introdutor da Inquisigao em Portugal. A tese da frontcira comum ou do hibridismo, como se po- deria designar, esta cheia de problemas. Nao se trata de inveja dos criadores menores em relacao evista ae Curun 0 Stzawo 1X1 We 22 ~ 2° Seucstee 2018 ao maior dos criadores. Repare-se em alguns problemas especificos que, independentemente dos constrangimentos epocais, se enfrentariam se hoje fosse defendida. Parece necessério acres- centar, por exemplo, a doutrina do segundo in- telecto de Deus 0 remendo de uma hipotétic douttina de um terceiro intelecto de Deus, re- partido por entre os entendimentos dos seres racionais. Além disso, como a énfase € colocada ‘mais na natureza do continente do que do con- teiido, hi ainda o problema de os seres humanos fazetem malfeitorias com os seus continentes. Se a grande arte se deve de facto a Deus, porque as boas ideias surgem num entendimento que, ele proprio, € obra de Deus, segue-se que os con- teiidos menos acertados também derivam des- ses continentes criados no espirito humano por Deus. Facilmente se encontra um clevado ntime- ro de problemas insandveis se se continuar por esta linha de pensamento. Outra consequéncia desastrosa deriva deste hibridismo. Os casos do desenho ¢ da pintura estéo localizados na vida humana. A ser verdadeira a tese do hibri todos os momentos da vida humana, e no ape- nas os do desenho e os da pintura, derivam da actuagdo divina no entendimento humano. Isso significaria que a totalidade da accéo humana seria comandada por Deus. Como se esperatia, salta-se de um mal para outro ainda pior, isto da frigideira para a fogueira. Com estas dificuldades teéricas que deriva dos caminhos contraditérios do seu pensamen- to, Francisco de Holanda auxilia a compreen- det 0 que qualquer pessoa tem dificuldade em ver. Tudo se joga no centro da cidade da alma. Holanda dé a entender que hé uma natureza onirica no contetido da ideia, bem como no céu onde parece acontecer, A questio filoséfi- ca é ada natureza tiltima das imagens. O caso & especialmente claro quando néo hi correlato representacional no que se quer pintar, Encon- trar a forma certa para expressar vicios, virtudes, pecados, lugares da sobrevida, como 0 Céu e 0 Inferno, ¢ outras verdades abstractas ndo pode ter como referéncia alguma coisa que exista no mundo exterior ¢ de que se tem experiéncia, nem algo que jé exista previamente na mente do artista. Alguma raz4o haverd que justifique que vicios e pecados, por exemplo, sejam representa- smo, Fuasciseo o¢ Hounns, § Steutas Depots dos por “deformidades ¢ quimeras monstruosas enormes” (1984, p. 67), mas essa razio é de dif- cil apreensio. A complicar as coisas, est4 ainda a nogéo que Holanda parece ter da universalidade dos pilares mais importantes do processo criati- vo, acreditando ele que “os preceitos da pintura antiga serem jé semelhados por todo 0 mundo, até os antipodas” (1984, p. 41; cf. p. 38). Pen- sando contrafactualmente, a intuigéo criadora poderia dar-se com pontos pretos ¢ brancos, ou com ruidos estridentes, ou até com fragmentos, em ver de formas pregnantes; em vez de quime- ras monstruosas, unhas de animal, ou caudas, ou ainda olhos fora de rostos. O ponto a sublinhar & que as observagdes que Holanda faz sobre a fon- te do processo criativo apontam para conjuntos coerentes de imagens e para a universalidade do processo, Tudo isto, como se disse, num contex- to de furor divino. O amago da pintura reside precisamente aqui. Caracteriza a pintura como um “copioso tesouro de infinitas imagens e figu- ras elegantes” (1984, p. 20). Esse copioso tesouro brota de um fundo a que os cultores de artes es- peciais procuram aceder, fundo esse que também estrutura a vida das pessoas. Infelizmente, Ho- Janda ndo desenvolveu uma teoria das imagens, da sua natureza tiltima ¢ do seu poder sobre a vida humana. A razdo parece estar no papel mui- to generoso que atribuiu 4 vontade no primeiro momento da criacio artistica. O “fazer” eclipsou o “esperar” ¢ 0 “nao fazer”, V. CODA Para terminar, impée-se uma recapitulacio necessariamente répida. O que se viu? Isto: a re- flexéo sobre a pintura de Holanda enfrentou, com coragem intelectual, © problema da criatividade. Em ordem a desvelar o que se esconde no assunto ‘momentoso, avanca com o velho motivo do cui- cado da alma e prope uma psicologia filoséfica. Confrontado com a questo da origem das ima- gens, das ideias e dos conceitos, tenta formular uma doutrina voluntarista do proceso criativo. Uma longa lista de problemas surge em conse- quéncia. Dois aspectos sao especialmente relevan- tes. Um é de ordem intelectual: 0 aparente afasta- mento da concep¢io neoplaténica sobre a origem das imagens. O outro, de ordem pragmética, tem 3B a ver com o que se disse no inicio: a retirada do mundo no final da vida, isto é, Holanda, como pessoa, viveu segundo uma forma imagética que © ultrapassa, tal como milhdes de pessoas jé vi veram os seus tiltimos anos de vida. Dizendo de outro modo: Holanda nao repara que, através do pragmatismo da sua vida, acaba por aceitar 0 que recusou pela argumentagio racional. Uma ima- gem aconteceu-lhe e moldou a sua vida: pareceu- -lhe acertado ir viver para o monte. Como se vé, os problemas ligados & compreensio da origem da criatividade humana e do papel que as imagens tém na vida humana nfo so exclusi- vos da teoria da pintura. Este é um pequeno ca- pitulo de um assunto mais vasto. © importante é ter consciéncia de que a interpretacao problemé- tica do processo criativo ¢ de tomada de decisio que foi proposta por Francisco de Holanda con- tribuiu para criar no Ocidente a ideologia de que as pessoas esto a0 comando das suas vidas. O esquema teérico de Platao e de Aristételes orga- niza ha séculos 0 entendimento do que acontece na vida humana; o problema com este esquema éque cle nao explica satisfatoriamente a primeiro momento do processo criativo eo que se esconde na mais banal das decisées de um ser humano. Neste sentido, ao prefetir esse esquema em des- favor do modelo neoplaténico, Holanda con- tribuiu para fixar uma doutrina acerca da accéo humana. Em certo sentido, o Ocidente continua refém e vitima dessa doutrina. REFERENCIAS Alcino (Alcinous] (1993). The Handbook of Platonism. Trad., intt.¢ comentario de John Dillon, New York: Oxford Uni- versity Press, Armstrong, A. H.; € R. A. Markus (1970). Fé Cris e Filosofia Grega. Trad. José Barata Moura. Lisbou: Uniso Grifica. Holanda, Francisco de (1930). Da Pintuna Antiga. Livro I, Par- te Tebrca. Livro Il, Didlogos em Roma. 2. ed. Ed. Joaquim de Vasconcelos. Porto: Renascenga Portugues. Holanda, Francisco de (1984). Da Pintura Antige. Inez, nota ¢ co- rmentitos de José da Felicidade Alves. Lisboa: Livros Horizonte. Segutado, Jorge (1970). Francixco D°Ollanda. Lisboa: Edigbes Excelsior, Vasconcelos, Joaquim de (1879). Francisco de Holanda: Da Fa- rica que flece t Cidade de Lisboa — Da Citncia do Desenbo. Edligo critica (Segundo o autégrafo inédito de 1571). Por- to: Imprensa Portuguesa. ‘Wignes, Eugene P. (1979). Symmetries and Reflections: Sciensific Esays, Woodbridge CT: Ox Bow Pres.

Você também pode gostar