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Tópicos

1. O lugar da mulher na Grécia Antiga (gênese da exclusão, o casamento, a relação


dela com a pólis) - 3 páginas
2. Eurípides e a representação das mulheres - 1 página
3. Ifigênia e Polixena - 1 página
3.1. A relação entre casamento e sacrifício - 1 página
3.2. A morte como liberdade - 2 páginas
4. Conclusão - 1 página
CABALLERO, Cecília. A gênese da exclusão: o lugar da mulher na Grécia
Antiga.
(CABALLERO, Cecília. A Gênese da exclusão: o lugar da mulher na Grécia Antiga.
Sequência (Florianópolis), Florianópolis, SC, v. 38, p. 125-134, 1999.)
● O objetivo do artigo é (re)construir a história das mulheres antigas através da
inserção delas num sistema social pautado na organização histórica da relação entre os
sexos.
● A mulher grega vivia sua existência como moça, esposa e mãe e até mesmo a
sua própria morte dentro da reclusão da casa, longe dos olhares públicos.
● Como se conhece a Grécia Antiga a partir daqueles que eram considerados
cidadãos (ou seja: homens livres atenienses), o discurso histórico, filosófico e literário
se constrói desconsiderando a mulher tanto como cidadã quanto como objeto de
conhecimento, reforçando a superioridade masculina no domínio político e social.
● A casa reunia a mulher, os filhos, a terra e os escravos → lugar de sujeição →
relações desiguais estabelecidas pelo patriarca → o homem era senhor de sua mulher,
de seus filhos e de seus escravos, portanto a casa estava sob o seu domínio → pater
familias.
● “Enquanto a oikia era o lugar de sujeição, a pólis era o espaço dos cidadãos,
dos iguais” (CABALLERO, 1999, p. 126).
● Na sociedade grega primitiva, “tudo o que dizia respeito à religião era
patrimônio exclusivo da família” (CABALLERO, 1999, p. 127). Como era proibida a
participação de estranhos, a manutenção, organização e transmissão dos ritos sagrados
era feita pelos homens da família → a religião doméstica, portanto, se transmitia de
linhagem masculina em linhagem masculina (geração), uma vez que a mulher, através
do casamento, além de mudar de casa, se desligava completamente da família paterna,
adotando, assim, todos os ritos da família do marido, porém não era permitida a
participação de estranhos, então criava-se um ciclo vicioso, marginalizando a mulher
no seio de sua própria família e, doravante, de sua comunidade.
● A mulher era tutelada: antes do casamento, por seu pai e depois do casamento,
por seu marido, que passará a exercer a função de pater familias sobre ela.
● Nessa sociedade grega primitiva, portanto, não existia nenhum vínculo
matrimonial, mas sim procurava-se reproduzir os laços de consanguinidade, nos quais
o marido estaria sempre uma geração acima de sua esposa e, desta forma, apto a
tutelá-la.
● A mulher da sociedade grega primitiva, através do casamento, portanto, era um
meio de trocas de riqueza entre as famílias e de estabelecimento de alianças.
● A pólis grega surge, então, através de casamentos legítimos e, por conta disso,
procurará continuar reproduzindo casamentos legítimos a fim de transmitir a geração.
● Existem dois modelos principais de emergência das póleis:
○ “Organização social hierárquica das casas” (CABALLERO, 1999, p. 129), na
qual o cruzamento entre as casas é o que firma o grupo social.
■ Necessidade de espaço, acúmulo de forças e riqueza → transformações
na família, no casamento e no estatuto da mulher.
■ Condições para ser considerado cidadão: 1) “estar sujeito a uma
autoridade exercida por quem detém a maior riqueza na pólis”
(CABALLERO, 1999, p. 129); 2) pertencer a uma casa, o que
significava que a pessoa era livre; 3) possuir um lote de terra, o que
“simbolizava a integração com a comunidade” (CABALLERO, 1999,
p. 129).
■ A partir dessas três condições, a cidade vai se formar a partir da
“herança sucessória”, “que reunia a transmissão de poder, casas e
terras” (CABALLERO, 1999, p. 129), mas agora sem distinção de
gênero → fim dos laços de consanguinidade através do casamento e a
permanência da ligação entre a mulher e sua família paterna → a
mulher, então, passa a poder transmitir herança, conferindo aos seus
filhos força e poder, mas não a geração → sua única função é produzir
legitimidade.
■ Mulher como cidadã de segunda classe, uma vez que as práticas da
cidadania lhe são proibidas.
○ Organização a partir da oikia através do casamento a fim de “constituir uma
sociedade aberta” (CABALLERO, 1999, p. 129), cuja base é a “circulação de
mulheres através de casamento” (CABALLERO, 1999, p. 129) → modelo
ateniense.
■ “[...] O casamento em Atenas é fruto de uma construção “jurídica”
própria e historicamente datada, com objetivo claro de permitir a
construção de uma cidade supostamente democrática” (CABALLERO,
1999, p. 130).
■ Enfraquecimento do poder aristocrático e sacerdotal e
descontentamento das classes mais pobres → pano de fundo para a
instauração do regime democrático ateniense.
■ Sólon → redefine a comunidade cívica e estabelece um novo modelo
matrimonial.
■ Sólon resolve abolir o lote de terra como condição para a cidadania a
fim de impedir a concentração de poder nas mãos de uma minoria rica e
assim “atribui a cada classe uma parcela de poder na cidade conforme a
sua representação numérica, reservando os cargos mais altos para os
homens mais ricos” (CABALLERO, 1999, p. 131). Dessa forma, todos
os cidadãos têm a possibilidade de exercer alguma função pública e,
portanto, são aptos à cidadania. → Fim da organização hierárquica
ateniense. → As casas passam a formar famílias livres e semelhantes
politicamente, mas não economicamente, uma vez que as diferenças de
riquezas não foram abolidas (CABALLERO, 1999, p. 131). → Sólon
cria, então, um sistema matrimonial adaptado a essa realidade.
■ A partir do novo sistema matrimonial instituído por Sólon, a mulher é
impedida de se tornar filha de seu marido, sendo extinguidos os laços
de consanguinidade, mas ainda é incapaz, sendo uma eterna menor.
Ainda, a mulher deixa de ser uma propriedade que pode ser dada de seu
pai para o marido, o que se transfere agora é o poder sobre ela. O
casamento, portanto, passa a ser a transferência de tutela da mulher e
seu dote do pai para o marido. → “Desta forma, a mulher deixa de ser
um meio de transmissão e acúmulo de riquezas para passar a ser uma
forma de aglutinar as casas na Grécia Antiga” (CABALLERO, 1999, p.
132). → Ao poder casar as filhas dos ricos com os filhos dos pobres e
vice-versa, garante-se os vínculos entre as famílias e uma suposta
convivência democrática, afastando os riscos de uma guerra civil.
■ “No entanto, a Atenas democrática reservou à mulher um papel
paradoxal. Se, indiretamente, encontram-se na forma de sua
constituição, para que possam efetivamente concorrer para a
consolidação, elas deverão sempre ser consideradas incapazes de
praticar qualquer ato da vida pública, o que equivale a sua
desconsideração como cidadãs” (CABALLERO, 1999, p. 133).
LESSA, Fábio de Souza. O Matrimônio na Historiografia Grega.
(LESSA, Fábio de Souza. O Matrimônio na Historiografia Grega. Phoinix , v. 2, p. 83-89,
1996.)
● “O matrimônio está diretamente vinculado à garantia, nos limites das póleis
gregas, da transmissão da legitimidade cívica e dos bens familiares, através da
procriação de filhos legítimos” (LESSA, 1996, p. 83).
● A maior importância social adquirida pela mulher é pelo casamento.
● Objetivos do casamento: reprodução natural de filhos legítimos, principalmente
homens, uma vez que eles eram os responsáveis pela garantia da descendência além de
exercerem a função de cidadãos; conservação e ampliação dos bens familiares;
manutenção do culto dos ancestrais e, consequentemente, do sistema políade (LESSA,
1996, p. 83); estabelecimento de vínculos de reciprocidade entre famílias, garantindo a
estabilidade política.
● A “efetivação do casamento”, portanto, “pressupõe a co-habitação permanente
do casal, o nascimento de filhos e a fidelidade feminina” (LESSA, 1996, p. 88).
● O desejo e o prazer sexuais não eram objetivos do casamento, para isso
existiam as hetairai e as pornai: “Com efeito, as hetairas as temos para o prazer, as
pallakés para o cuidado cotidiano do corpo, e as esposas para procriar legitimamente e
ter uma fiel guardiã dos bens de casa” (Referência: DEMÓSTENES. “Contra Neera”.
ln: Discursos Privados. Madrid: Gredos, 1983, LIX. 122).
● O casamento era o único meio possível pelo qual a mulher poderia realizar o
seu papel na sociedade. Por isso, caso as mulheres não dessem filhos, a sociedade
considerava que ela não havia cumprido com a sua função principal e, dessa forma, o
casamento poderia ser anulado, afinal todos os cidadãos deveriam deixar herdeiros.
Ainda, impedir uma mulher de se casar era uma punição severa dentro dessa
sociedade.
● Segundo Apolo na peça Eumenides de Ésquilo, a “mãe não é quem gera aquele
que se diz seu filho, mas é só a alimentadora do gérmen nela recentemente depositado.
Gera quem o deposita. Ela, como uma estranha, salvaguarda o pequenino rebento, a
não ser que algum deus impeça. Vou te dar uma prova da afirmação, de que pode haver
pai sem mãe” (Referência: ÉSQUILO. Euménides. Trad. J.A. de Sousa. Braga:
Livraria Cruz, 1966, vv. 654-660). Dessa forma, é o pai o responsável por transmitir a
geração, a mãe é apenas uma produtora de legitimidade.
● A esposa perfeita era casta, obediente, atenta às tarefas domésticas e atenciosa
com o marido.
● O casamento era um ato religioso privado, condicionado às regras reconhecidas
e praticadas pela família. Não eram necessários a intervenção dos poderes públicos e
nem a existência de um registro.
● Por se casarem por volta dos 13 anos, as mulheres são colocadas na eterna
condição de menor: o matrimônio é a transferência da sua tutela do seu pai para o seu
marido, que será responsável por dar continuidade a sua educação. A mulher, portanto,
seria sempre dependente do homem, seja ele seu pai, seu esposo, seus filhos ou, na
ausência destes, o parente masculino mais próximo.
● Juridicamente, a mulher precisa do casamento para existir. Dessa forma, “sua
existência social está condicionada à presença masculina” (LESSA, 1996, p. 87).
● Todos esses pressupostos acerca do casamento valiam especificamente para as
mulheres bem nascidas, condição que não é equivalente a uma grande parcela do
grupo feminino nas poléis.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga - Livro II, Capítulo II: O
casamento.
(COULANGES, Fustel de. O Casamento. In: ______. A Cidade Antiga. São Paulo: Editora
das Américas S.A, 1961, p. 59-68. E-book. ISBN 9788572327800. Disponível em:
https://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/cidadeantiga.pdf. Acesso em: 02 mar. 2022.)
● O casamento foi a primeira instituição que a religião doméstica estabeleceu.
● Nos primórdios, a mulher quando se casava era completamente desvinculada
da casa paterna. Ela abandonava os deuses domésticos do lar paterno e passava a
invocar os deuses do esposo. Era uma mudança de religião, praticava-se outros ritos e
entoava-se outras orações.
● O casamento, portanto, é um rito de passagem, uma cerimônia sagrada através
da qual a mulher era iniciada no culto de sua nova família.
● A cerimônia matrimonial entre os gregos era realizada em três atos:
○ 1º) Enghyesis. Realizava-se na casa do pai. Era oferecido um sacrifício e ao
fim deste, o pai declara que dá a filha ao homem que a pediu. A mulher precisa
ser oficialmente desligada do lar paterno, deve estar livre de todos os laços e
vínculos dessa religião doméstica para poder ingressar na nova religião
doméstica do lar do esposo.
○ 2º) Pompé. É a transição entre o lar paterno e o lar do marido. A jovem é
colocada sobre um carro com o rosto coberto com um véu e na cabeça uma
coroa, seu vestido deveria ser branco, como em todos os atos religiosos.
Durante todo o percurso é cantado o hino religioso himineu. Ao chegar na casa
do esposo não pode entrar por si mesma, é preciso ser simulado um rapto, no
qual a noiva deve gritar um pouco e as mulheres que a acompanham fingem
defendê-la. O noivo, então, pega a mulher no colo e, sem deixar o pé dela
encostar na soleira da porta, adentra com ela em casa.
○ 3º) Télos. “À frente do fogo sagrado, a esposa é colocada em presença da
divindade doméstica. É aspergida com água lustral, e toca o fogo sagrado.
Dizem-se orações. Depois os esposos compartilham um bolo, um pão e
algumas frutas” (COULANGES, 1961, p. 64).
● Ao se casar, a mulher passa a cultuar os mortos de seu marido, eles se tornam os seus
antepassados, ela passa a fazer parte da família e única e exclusivamente da religião de
seu esposo.
● O homem e a mulher se unem pelo laço do mesmo culto e das mesmas crenças.
ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade das Mulheres, Capítulo 1.
(ANDRADE, Marta Mega de. Uma prática do imaginário: o teatro e a fabricação da
cidadania. In: ______. A “cidade das mulheres”: cidadania e alteridade feminina na Atenas
Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001, p. 18-35.)
● O teatro em Atenas é mais do que um meio de entretenimento, ele é um evento
religioso que se tornou uma instituição cívica junto com a consolidação das
instituições democráticas no fim do século VI a.C.
● Através do teatro, questões são levadas ao público e, consequentemente, são
debatidas.
● As práticas sociais são levadas ao teatro e são imitadas, formando uma
imagem familiar aos espectadores. Essa imagem é uma interpretação da vida
cotidiana e das práticas sociais que produzem esse cotidiano. Logo, o teatro oferece
uma imitação da pólis, sendo a cidade espectadora de sua própria imagem. Imitação é
“a imagem teatralizada da vida cotidiana, naquilo que dela se produz como comum ao
conjunto dos atenienses” (ANDRADE, 2001, p. 20).
● “O teatro não é um reflexo da realidade social; ele é realidade social na medida
em que é a própria realidade social que o fabrica, como um de seus mais atraentes
produtos” (ANDRADE, 2001, p. 24).
● A tragédia é didática e apresenta aos atenienses exemplos de ação, visando
tornar os homens melhores, ou seja: “torná-los soldados, senhores da cidadania e dos
destinos de sua cidade” (ANDRADE, 2001, p. 22).
● De acordo com Aristófanes, a verdadeira arte trágica está em Ésquilo, uma vez
que ao apresentar ao público exemplos de ação e vida, cria uma identificação do
cidadão com a pólis: o cidadão se torna a cidade como um todo.
● Já Eurípides busca em suas tragédias questionar a cidade e os valores
atenienses, o vínculo entre o espectador e a pólis é estremecido já que Eurípides mexe
em suas peças na cidade como referencial de vida. No contexto de Eurípides da Guerra
do Peloponeso, a identidade da cidadania se abre como questão e, dessa forma, a pólis
como organização humana também se abre como questão.
● “Em outras palavras, as tensões, as ambiguidades, presentes nas peças como na
estrutura poética da tragédia grega, favorecem que a contradição atinja a própria a
vivência da pólis: frente a frente com seu próprio “artifício” (isto é, eu caráter de
nómos, grosso modo “convenção”). No teatro de Eurípides, por exemplo, esse
movimento de se defrontar com o artifício da cidade produz-se na exploração do
feminino como alteridade, e, por isso mesmo, dentro da contradição entre o si-mesmo
da pólis e a alteridade, o estranhamento, o diferente” (ANDRADE, 2001, p. 23).
● “A cidadania ateniense do século V a.C exclui a mulher” (ANDRADE, 2001,
p. 28). “O cidadão, nascido de pai e mãe atenienses, é um homem e não uma mulher”
(ANDRADE, 2001, p. 29).
● São três os elementos característicos da democracia ateniense: 1)
predominância da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder; 2) publicidade
da vida, ou seja, o acesso público às leis e a participação em debates públicos; 3)
princípio da isonomia: todos os cidadão são iguais.
● Contrariamente, o espaço de direito feminino era no universo doméstico, mas
mesmo nele deveria se manter em silêncio, evitando se apresentar, perguntar ou
escutar conversas. Esse modelo, porém, era mais voltado para as mulheres bem
nascidas, para as mulheres mais humildes e até mesmo para as hetairai, o “modelo
politicamente correto do feminino dificilmente se encaixa” (ANDRADE, 2001, p. 29).
● “[...] Cidade e feminino seriam, por definição, figuras incompatíveis”
(ANDRADE, 2001, p. 29). Porém, a mulher e a pólis estão interligadas em muitos
momentos: nas festas religiosas, nas quais “a mulher atua de forma decisiva para
garantir a permanência da cidade, sua hegemonia, seus cidadãos” (ANDRADE, 2001,
p. 29); no mito originário de Atenas, no qual o voto da mulher garante o nome de
Atena à cidade; no teatro cômico com a utopia das mulheres governando a cidade.
● Ainda, a mulher pode transmitir os direitos à propriedade fundiária (para
homens, no entanto) e também confere legitimidade à cidadania masculina: a partir de
451 a.C, para ser considerado cidadão precisaria ser filho de pai e mãe atenienses.
● Apesar de a mulher ser excluída do poder político, ainda há possibilidades de
relacionamento com a pólis: “a cidade exclui do poder a mulher, mas integra o
feminino, submetido, pela via do casamento legítimo, e da religião” (ANDRADE,
2001, p. 35).
● Cidadania política e cidadania civil:
○ “A cidadania política compreenderia o exercício das magistraturas, a armação
como hoplita, a votação nas assembléias. Nela, estariam classificados os
homens nascidos de pai e mãe atenienses, entre dezoito e sessenta anos”
(ANDRADE, 2001, p. 30).
○ A cidadania civil abrangeria a comunidade ateniense como um todo, incluindo
aqueles excluídos do poder político, levando-se em consideração a sua relação
com a cidade e a contribuição dos seus papéis para a sociedade.
● Esta subdivisão da cidadania em política e civil pode ser admitida para
representar a cidadania feminina como possível e diferente da cidadania masculina. No
entanto, deve-se levar em consideração que essa divisão em político/civil é uma
oposição anacrônica e que as ações femininas não estão fora do político, mas que ao
levar em conta essa separação resolve apenas a questão da participação feminina fora
da relação com o político.
● A cidadania da mulher, portanto, emergiria da própria oposição entre
masculino/feminio e da alteridade do feminino: “uma cidadania do Outro, na medida
que relaciona profundamente a alteridade do feminino com a própria pólis dos
atenienses” (ANDRADE, 2001, p. 32).
● A relação do feminino com a pólis é muitas vezes passiva: “a mulher reproduz
homens iguais a seus pais; realiza rituais religiosos para a manutenção do status quo,
ou seja, do domínio masculino da cidade” (ANDRADE, 2001, p. 32). No entanto, essa
passividade não impede a cumplicidade entre as duas.
● A Guerra do Peloponeso é responsável pelo desequilíbrio da cidadania
democrática ateniense. A cidadania, por sua vez, está diretamente ligada à pólis como
estrutura de organização social. A expressão do coletivo no poder dá lugar ao privado.
E é nesse contexto de dissolução da cidadania democrática que Eurípides e Aristófanes
escrevem, “fazendo emergir os elos que ligam o feminino à cidade” (ANDRADE,
2001, p. 35).
ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade das Mulheres, Capítulo 4.
(ANDRADE, Marta Mega de. Eurípides, ou quando a mulher fala da cidade. In:
______. A “cidade das mulheres”: cidadania e alteridade feminina na Atenas Clássica.
Rio de Janeiro: LHIA, 2001, p. 94-123.)
● Assim como o bárbaro representa o Outro, a alteridade frente à cultura grega, o
feminino, no teatro de Eurípides, representa a alteridade dentro da própria cultura.
● Eurípides evidencia a cidadania como experiência masculina e questiona a
pólis e seus valores democráticos através do feminino. As mulheres são responsáveis
por lamentar a cidade em ruínas, por discursar contra a guerra, por defender a Justiça
através do “lógos político reservado aos andres” (ANDRADE, 2001, p. 94).
● Eurípides, transpõe, dentro do espaço do teatro, a bela-morte do hoplita, do
guerreiro, para as mulheres. Dessa forma, o autor estreita a relação entre o feminino e
o universo da pólis.
● A pólis é muito mais que uma “cidade-estado”, é um referencial cultural.
● A lamentação e o choro cabem às mulheres, por isso a derrota e a destruição da
cidade só podem ser contadas pelas palavras das mulheres.
● Solo da pátria → ligação entre as mulheres e a pólis a qual pertencem → as
mulheres identificam-se com o solo da pátria porque estão enraizadas nele → aos
homens está associado o deslocamento/movimento, às mulheres está relacionada a
imobilidade: elas não se deslocam, devem permanecer no interior da casa → relação
entre o feminino, o oîkos e o enraizamento à terra pátria.
● No lar paterno, a parthénos (filha virgem) é responsável por manter a lareira
→ “ligação da jovem virgem com a fixação da casa ao solo” (ANDRADE, 2001, p.
98). Já a relação da esposa com o oîkos e, consequentemente, com o solo da pátria, é
na fixação do “oîkos do marido no tempo” através da “procriação de filhos legítimos”
(ANDRADE, 2001, p. 98).
● A imobilidade é ligada à esposa legítima → “Ser gyné gameté [esposa] é
corresponder a um estatuto reconhecido pelo discurso masculino dos gregos”
(ANDRADE, 2001, p. 98). → “O enquadramento do feminino se dá através da
disposição daquilo que é e daquilo que cabe à mulher casada” (ANDRADE, 2001, p.
98). → A régua do feminino, portanto, é medida através do que se espera de uma
mulher casada, uma vez que esse seria (ou deveria ser) o destino de todo o conjunto
feminino da pólis.
● “Os votos masculinos escolhem Poseidon, mas os votos femininos elegem
Atena. Como reparação, os homens da cidade e a deusa epônima retiram às mulheres a
prerrogativa de votar e participar das assembléias. Exclusão do governo (LORAUX,
1990, pp. 119-153.). Na autoctonia dos atenienses, portanto, as narrativas míticas
confluem para fundamentar, de um lado, a cidadania masculina e, de outro lado, a
exclusão do universo político, reservada ao feminino” (ANDRADE, 2001, p. 96-97).
● “Patrís é o elo que comunica a pólis a seus lares, e os cidadãos-em-armas, os
hoplitas, ao solo ancestral. Se a terra pátria é a terra em que a pólis se enraíza, ela o é
em dois sentidos: em primeiro lugar, é o solo em que as casas reproduzem, no tempo, a
cidade através de seus cidadãos; em segundo lugar, porém, é o solo em que a cidadania
se enraíza, na medida em que os cidadãos reconhecem sua afinidade (philia) pela
figura da autoctonia” (ANDRADE, 2001, p. 101).
● Marta Mega de Andrade deduz que a relação entre as mulheres e a cidade seria,
portanto, através de uma identificação da pólis com a “terra dos pais”. “A integração
do feminino à cidade seria verificada, em se admitindo uma tal dedução, nos
momentos em que pólis e patrís formassem uma unidade” (ANDRADE, 2001, p. 101).
→ Esses momentos de unificação seriam através da oração fúnebre e das festas
cívicas, nas quais as mulheres representam um grande papel, tanto na cidade quanto
em relação a ela. Essas festas, portanto, são “o momento em que o lugar do feminino
diz respeito à comunidade, ao público, à pólis” (ANDRADE, 2001, p. 102), momento
de exercício de sua “cidadania cívica” ao intervir “como esposa e mãe nos destinos da
cidade”, mas não por sua própria decisão, mas sim pela necessidade de realização dos
“ritos a ela reservados nas celebrações da cidade” (ANDRADE, 2001, p. 102). → A
cidadania “cria um elo entre os cidadãos autóctones e a pátria, em que a identidade
mesma exclui a participação feminina. Mas a mulher é chamada a intervir de forma
marcante quando a pátria entra em jogo nas festas cívicas” (ANDRADE, 2001, p.
102). → “Confirmação, portanto, da ligação entre a admissão do feminino no seio da
vida pública da cidade nos momentos e nos lugares em que a pólis inscreve-se no solo
natal, no solo das casas” (ANDRADE, 2001, p. 102).
● “Quando as mulheres falam de sua cidadania, falam do lar paterno e da cidade
como pátria” (ANDRADE, 2001, p. 105). → “Ter cidadania é encontrar apoio contra
uma injustiça, é poder retornar à casa paterna, é, enfim, pertencer a uma comunidade,
seja da família, seja da cidade, em relação aos próximos, em relação ao estrangeiro”
(ANDRADE, 2001, p. 105). → Pólis como pátria, terra dos pais e como o próprio lar
paterno → “Privar-se dele é encontrar-se ápolis, sem cidadania e sem cidade”
(ANDRADE, 2001, p. 105). → “A cidadania feminina consiste no nascimento e
pertença a uma casa cidadã. Estabelece-se, ainda, pelo casamento legítimo”
(ANDRADE, 2001, p. 106).
● O feminino como imutável, imóvel e dominante do espaço doméstico → É a
partir dessa imutabilidade que o sacrifício mortal de Ifigênia, Polixena e Macária se
torna uma espécie de liberdade.
● Hécuba → Ela fala e é ouvida como senhora da casa, é matrona, mãe e
ordenadora de um oîkos no qual se reproduzem soberanos e governantes. → Como
esposas e mães de cidadãos, as mulheres participam “na construção da unidade e
identidade entre a cidadania (o grupo de cidadãos) e a pólis” (ANDRADE, 2001, p.
109). → No entanto, “é ainda “de fora”, em seu espaço doméstico, que a mulher
intervém indiretamente na formação do cidadão” (ANDRADE, 2001, p. 109).
● Polixena, Ifigênia e Macária são jovens virgens. Polixena era princesa de Tróia,
mas após a queda da cidade se tornou escrava. Macária é exilada e suplicante. Ifigênia
é filha de Agamêmnon e vive em uma família abastada. Das três, a que teria mais
chances de seguir o curso imposto pela condição feminina (se casar), é Ifigênia.
● “Pois ao decidirem pelo sacrifício, é justamente a liberdade, a glória e o
renome que as virgens almejam, e que a comunidade lhes promete. Interrompe-se o
destino privado do feminino e, pelo consentimento ao sacrifício, Ifigênia, Macária, e
Polixena, merecem o louvor público reservado à bela-morte” (ANDRADE, 2001, p.
110-111).
● A oração fúnebre (epitháphios lógos) é dedicada a glorificar a cidade através
do enaltecimento da areté (virtude/excelência) dos seus cidadãos.
● A valorização do hoplita não se deve somente ao ato que implicou sua morte
(ergon), mas pela sua decisão de sacrificar sua vida pela cidade, por si próprio e pela
coletividade. A decisão é ato inerente ao estatuto de liberdade e, portanto, a decisão
de se sacrificar é própria de uma natureza livre.
● Eurípides não tem a intenção de representar o epitháphios lógos, mas sim de se
apropriar para falar da bela-morte no gênero feminino. → “Diante de sua própria
morte, as jovens pronunciam um epitháphios lógos. Assim como na oração fúnebre a
cidade eterniza-se em sua areté como coletividade, as jovens assumem o papel do
orador para dizerem, de si mesmas, uma oração fúnebre. Cada uma delas se eterniza,
de certa forma, ao consentir na morte pela Memória de seu ato” (ANDRADE, 2001, p.
113).
● A virgindade, de acordo com Marta Mega de Andrade, seria “um estado de
passagem” que “indica que a moça está prestes a tornar-se esposa” (ANDRADE, 2001,
p. 115).
● Ao se tornar cativa de guerra e, portanto, escrava, Polixena teve sua virgindade
interrompida. A fim de retomar ao que estava destinada e, ao mesmo tempo, se tornar
livre, Polixena dá-se como noiva a Hades. Sua liberdade, porém, não consiste em optar
por se sacrificar ou não, mas sim a de deixar de ser escrava através da morte. Querer a
morte frente ao destino de cativa é afirmar sua liberdade. Além disso, Polixena não
permite que nenhum homem a toque, ela mesma oferece seu pescoço a Neoptólemo,
filho de Aquiles e responsável por imolar a virgem. Após sua morte, nenhum grego
toca em seu corpo, reconhecendo a areté de Polixena.
● “A honra, a medida, das virgens que se apresentam ao sacrifício tem um
sentido diverso. Elas tornam as jovens livres diante da coletividade que pede sua
morte; elas justificam, para o feminino, a Lembrança e o louvor, não aqueles dos
epitáfios privados, mas sim os devidos por toda uma coletividade, no sentido de honra
pública, política. As jovens ganham espaço na publicidade. Com isto, é possível
afirmar que a areté e a sophosyné das jovens virgens são virtudes viris” (ANDRADE,
2001, p. 116).
● Ifigênia, por sua vez, decide voluntariamente pela morte para o bem comum
dos gregos, o que trará à virgem glória e renome. De acordo com a própria Ifigênia,
sua vida não existe apenas para os seus familiares, ela não pertence a sua família, mas
a todos os gregos e para seu bem comum, deslocando a figura da mulher de dentro da
casa para o público.
● O destino de Ifigênia se justapõe: de um lado, a aguarda um destino feminino
de ter filhos e se casar, de permanecer no privado, mas de outro ela discursa a favor
de dar sua própria vida em prol da coletividade, da pólis, do público. Ifigênia troca seu
destino individual pelo destino da sociedade grega, põe as necessidades da pólis acima
de seus desejos pessoais.
● A bela-morte das mulheres, portanto, é “um deslocamento feminino das
virtudes próprias à cidadania” (ANDRADE, 2001, p. 120), é “uma forma de relação
ideal da mulher com a coletividade” (ANDRADE, 2001, p. 121). É na bela-morte
feminina que “a mulher aparece dentro do universo masculino, do universo político,
no sentido de coletivo, de público, da cidade” (ANDRADE, 2001, p. 121).
● O que faz Macária, Polixena e Ifigênia dignas de serem lembradas não é uma
espécie de ato viril por aceitarem serem sacrificadas, é “a transposição do espaço
privado e interior, conveniente à natureza feminina, em direção ao universo da
discussão, da palavra, da Memória, espaço exterior próprio à natureza masculina”
(ANDRADE, 2001, p. 121)
● “Não se oculta, de forma alguma, a feminidade de Macária, Polixena, e
Ifigênia. Por feminidade, compreende-se a destinação do feminino em uma cultura. As
virgens não escondem em momento algum que interrompem seu destino feminino em
nome da glória, pela liberdade da coletividade, enfim, pelo renome e memória
públicos. Sendo realçados pelo teatro de Eurípides os signos da feminidade, as figuras
femininas transpõem, para seu universo, um discurso exclusivo do universo
exclusivamente masculino da cidadania na pólis” (ANDRADE, 2001, p. 122).
MARQUARDT, Cristina Rosito. Ifigênia em Áulis: A função
religiosa, o papel das mulheres e a simbologia do sacrifício na
tragédia euripidiana.
(MARQUARDT, Cristina Rosito. Ifigênia em Áulis: A função religiosa, o papel das
mulheres e a simbologia do sacrifício na tragédia euripidiana. Tese (Doutorado em
Literatura Comparada) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2007.)
● De acordo com Cristina Rosito Marquardt (2007, p. 110), a tragédia é a
representação (mímesis) de uma ação nobre (spoudaías) e por isso os personagens
deveriam ser melhores que os homens atuais. Ainda, a tragédia não apresenta as coisas
como elas são, mas como poderiam ser dentro da “ordem do verossímil e do
necessário” (MARQUARDT, 2007, p. 111).
● Em Eurípides as mulheres podem tanto aparecer como a representação de um
grande mal, que tem suas raízes em Pandora, quanto como tão virtuosas a ponto de
“representar a grandeza que os homens parecem ser já incapazes de demonstrar”
(MARQUARDT, 2007, p. 111), verdadeiras heroínas capazes de sacrifícios em prol de
um bem maior.
● A castidade era uma qualidade apenas para as mulheres e não para os homens.
● O destino da mulher não está em suas mãos: a ela não lhe é dada a opção de
não casar e nem de escolher seu próprio marido.
● O casamento desliga a mulher completamente da casa paterna, fazendo com
que ela deixe para trás seus pais, seus irmãos e seus deuses de devoção. “Deve
adaptar-se à nova casa, aos novos costumes e ao marido desconhecido, sem ter
recebido para isso prévia preparação” (MARQUARDT, 2007, p. 116).
● Os domínios do marido são muito mais amplos que os da mulher. O homem
não tem como única possibilidade a dedicação ao oîkos, pode se dedicar à “pólis, aos
negócios, aos amigos, às concubinas, às prostitutas e, eventualmente, à guerra”
(MARQUARDT, 2007, p. 117). Enquanto, à mulher, só lhe resta suportar a vida no
oîkos, seja essa infeliz para ela ou não.
● As virgens, na obra de Eurípides, se aproximam ao estatuto de hoplita
justamente por ainda não serem mulheres, ou seja, não terem se casado nem tido
filhos. Isso as relaciona com Atena, que além de virgem, é guerreira. “Como deusa, lhe
é permitida glória de lutar nas batalhas. Às virgens mortais, ao contrário, concede-se,
da guerra, apenas a bela morte” (MARQUARDT, 2007, p. 119).
● A mulher na Grécia Antiga:
○ Período Neolítico (10.000 a.C-3.000 a.C):
■ Por conta da função feminina de trabalhar a terra e, portanto, de prover
alimentos e das habilidades de armazenamento dos produtos das
colheitas e da tecelagem, as mulheres tinham “uma grande importância
e um espaço proeminente na sociedade” (MARQUARDT, 2007, p.
120).
○ Período Micênico (1600 a.C-1100 a.C):
■ Com o crescimento dos agrupamentos humanos e a organização em
cidades, surge uma necessidade de defender os territórios e, portanto,
aumenta-se a importância dos guerreiros, que acabam por invadir “um
espaço ritual que antes era exclusivamente dedicado às divindades
femininas, mantenedoras da fertilidade dos campos, dos animais e das
mulheres e, portanto, da sobrevivência dessa sociedade”
(MARQUARDT, 2007, p. 121). “Essa importância da contribuição
feminina nas sociedades primitivas era, portanto, de ordem religiosa e
não política, mas dava à mulher um status e um espaço importantes
nessa sociedade” (MARQUARDT, 2007, p. 122).
○ Período clássico:
■ É a partir do período arcaico que a situação da mulher no clássico
começa a se delinear: os legisladores Drácon e Sólon passam a “regular
o contexto que cada mulher, esposa, estrangeira ou prostituta deveria
ocupar” (MARQUARDT, 2007, p. 124). As leis procuravam controlar
o comportamento sexual das mulheres “e ordenar a reprodução em
grupos familiares e, por consequência, grupos de cidadãos, fato
essencial para a cidade nascente” (MARQUARDT, 2007, p. 124).
■ O lugar da mulher era dentro da casa, no oîkos. Somente as mulheres
cujos maridos não conseguissem adquirir e manter pelo menos uma
escrava poderiam frequentar o exterior.
■ “A mulher é inteiramente dependente econômica e juridicamente de seu
senhor, kúrios, que pode ser o pai, o marido ou o parente mais
próximo” (MARQUARDT, 2007, p. 125).
■ Sob determinadas condições, o dote deveria ser devolvido à família da
noiva e caso não fosse devolvido, o homem teria que pagar o valor de
seu próprio bolso acrescido de juros. Isso protegia as mulheres casadas,
uma vez que impedia divórcios por motivos fúteis da parte do homem e
permitia o divórcio sério e o resgate da mulher pela família em caso de
maus tratos. Ainda, o pai da noiva podia, caso a mulher não tivesse tido
seu primogênito, retomar sua filha.
■ O estatuto da mulher na Grécia Antiga poderia ser explicado “como
uma consequência da passagem de uma agricultura ‘nômade’, no
paleolítico, para a de tipo intensivo. A mulher, que no contexto anterior
era a prestigiada guardiã do oíkos, torna-se mais um ventre insaciável,
tanto no plano da alimentação, quanto no sexual” (MARQUARDT,
2007, p. 126).
■ A idade de casamento da jovem era por volta dos 13/14 anos porque se
tinha medo de perder o controle sobre elas: quando não estão casadas e
ainda virgens, as mulheres são consideradas como não pertencentes à
civilização e à vida adulta e, por isso, são vistas como selvagens que
precisam ser adestradas através do casamento.
● “Os poemas homéricos consolidarão uma figura feminina com funções mais
restritas na sociedade, mais próxima, portanto, à da época clássica” (MARQUARDT,
2007, p. 122). A mulher surge como meio de reprodução e de preservação do grupo
familiar e como ser nocivo, bebendo das águas da Pandora de Hesíodo.
● De acordo com Semonides de Amorgos, são dez os tipos de mulheres: “[...] a
semelhante a uma porca, que desgraçará o homem transformando a casa em um
verdadeiro chiqueiro; a semelhante a uma vaca, ignorante de tudo, do bem e do mal,
tem como única ocupação comer, não se preocupando em expandir os bens do marido;
a semelhante ao mar, inconstante, podendo ser igualmente boa ou má, dependendo de
seu humor variável; a semelhante a uma égua, bela e sempre preocupada com sua
beleza, jamais trabalha e só não é uma maldição para homens suficientemente ricos
para sustentar seus luxos e ócio; a última dentre as descritas é única dentre os dez tipos
de mulheres que é uma benção para o homem: aquela semelhante a uma abelha, esposa
amorosa, boa mãe e trabalhadora incansável” (MARQUARDT, 2007, p. 124).
● O nascimento do primogênito marcava a passagem definitiva da mulher para a
família do marido (MARQUARDT, 2007, p. 127).
● O pretexto mais importante para se tirar uma jovem virgem (parthénos) da
segurança de sua casa (oîkos) era o casamento. Não é à toa que foi assim que
Agamêmnon conseguiu atrair sua filha Ifigênia para o próprio sacrifício em Áulis.
● O casamento é o ritual final de uma série de rituais (Arrephoría, Arktéia,
Kanephóros) aos quais as jovens atenienses eram expostas desde pequena a fim de
prepará-las para a “completa integração à comunidade adulta e civilizada”
(MARQUARDT, 2007, p. 142).
● A “exposição erótica” — às quais as jovens eram conduzidas através dos
rituais a fim de que se acostumassem com o fato de serem desejadas e aprendessem,
então, a se manterem resguardadas para que pudessem gerar filhos legítimos para a
pólis — era “essencial à formação da parthénos e à sua transformação em guné,
quando do casamento” (MARQUARDT, 2007, p. 150).
● O casamento é um ritual que garante a civilização, é através dele que se
estreitam as alianças entre a pólis e entre as póleis.
● O casamento com Hades o qual é relacionado ao sacrifício de Ifigênia e de
Polixena representa o papel que a mulher desempenha na sociedade grega. Virgens, o
único destino possível para elas é o casamento, mas interrompido pelo sacrifício será
retomado em seu encontro com Hades.
● “Além disso, como uma passagem ritual, o casamento marca a morte da
menina, a parthénos, para o nascimento da mulher adulta. A morte simbólica pelo
derramamento de sangue da defloração aproxima-se da morte real do sacrifício”
(MARQUARDT, 2007, p. 157). → “O próprio estatuto de virgem é questionado pelo
sacrifício” (MARQUARDT, 2007, p. 157). → Agamêmnon e Hécuba.
LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher.
(LORAUX, Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: Imaginário da Grécia Antiga.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.)
● “Quando a vítima é uma virgem, o sacrifício é tragicamente irônico, por
assemelhar-se demais ao casamento” (LORAUX, 1985, p. 72).
● “Nas representações partilhadas da vida social, cabe à morte ser metáfora do
casamento porque, durante todo o cortejo nupcial, a moça morre por si mesma [...]”
(LORAUX, 1985, p. 73).
● “Casamento no Hades, união com Hades: no âmago do sacrifício ou da
execução, o destino trágico das párthenoi inscreve-se no fundo dessa tensão do no e do
com e, como se toda virgem devesse inelutavelmente realizar-se como esposa [...]”
(LORAUX, 1985, p. 73).
● “[...] Trata-se efetivamente de dois bens preciosos que a virgem dá com sua
vida; dois bens aos quais ela renuncia para sempre: os filhos que ela não terá, e a
virgindade intacta que ela vai perder com a vida no instante do degolamento”
(LORAUX, 1985, p. 77).
● “Pode-se então formular algumas proposições: num certo nível de
generalidade, na tragédia euripidiana a morte de um ser jovem provoca
necessariamente a evocação de suas núpcias e, nessa perspectiva, a virgem sacrificada,
esposa de Hades, nada mais é que uma encarnação entre outras do equivalente da
morte e do casamento. Mas existe também em Eurípides uma língua, obscura para
dizer o obscuro, em que a morte sanguinolenta das párthenoi é pensada como uma
maneira anômala, atópica, de consumar a virgindade em feminilidade. Como se,
talvez, a decapitação valesse por um defloramento: garganta cortada, Ifigênia,
Polixena e Macária são párthenoi apárthenoi, virgens não-virgens. Assim, sob o signo
do impensável, as virgens trágicas de Eurípides dão o passo que satisfaz ao mesmo
tempo os deuses irritados e os sonhos dos espectadores.” (LORAUX, 1985, p. 78-79).
● “Para ser fasto, todo sacrifício animal deve mostrar a aquiescência da vítima.
Mesmo imaginado por um autor trágico, um sacrifício humano não poderia deixar de
enquadrar-se nessa regra. A não ser que se queira apresentar esse sacrifício como um
puro assassínio, onde a moça conduzida à imolação não consente” (LORAUX, 1985,
p. 80-81).
● “Sob a aparência de respeitar a regra da aquiescência, transforma-se o
assentimento em escolha livremente feita e a morte infligida em morte voluntária, para
não dizer em morte gloriosa. Tudo está no lugar, porém nada tem agora o mesmo
sentido” (LORAUX, 1985, p. 82).
● “Eurípides prefere em geral conferir à párthenos coragem e liberdade de
decisão, qualidades que, na realidade pouco trágica da vida, as instituições negam à
moça grega” (LORAUX, 1985, p. 85).
● “Macária, Polixena, Ifigênia: libertas do pai quando este as condena à
imolação, pois desviam para seu próprio uso a liberdade de escolha característica do
kyrios, as virgens euripidianas se apropriam do sacrifício que se lhes impõe como sua
morte, uma morte que lhes pertence” (LORAUX, 1985, p. 85-86).
● “Com efeito, a morte gloriosa não é procurada, é aceita: da mesma forma que
os cidadãos de Atenas e de Esparta se inclinam diante de um imperativo ditado pela
cidade, as virgens aceitam um destino de que se apropriam” (LORAUX, 1985, p. 86).
● “Às párthenoi, então, uma morte heróica e o louvor imortal” (LORAUX, 1985,
p. 88).
EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis.
(EURIPIDES. Bacchae, Iphigenia at Aulis and Rhesus. Tradução David Kovacs.
Londres/Cambridge: Harvard University Press, 2002.)
● Versos 620-623 | 459-460:
AGAMÊMNON
A pobre virgem—virgem? Por que ainda a chamo assim se Hades logo fará dela sua
esposa? (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 459-460).

● Versos 1514-1524 | 1080-1084:


CORO
Sobre teus cabelos, virgem, os gregos colocarão uma guirlanda como se fosses uma
corça das montanhas ou uma novilha imaculada e então mancharão de sangue o teu
pescoço (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1080-1084).

● Versos 1560-1567 | 1110-1114


AGAMÊMNON
Mande a garota para fora da tenda. A água lustral está pronta, assim como os grãos
de cevada para serem lançados ao fogo sagrado e as corças, que devem ser imoladas,
antes do casamento [com bastante sangue para a deusa Ártemis] (EURÍPIDES,
Ifigênia em Áulis, vv. 110-1114).

● Versos 1799-1805 | 1269-1275


AGAMÊMNON
Não foi Menelau que me persuadiu ou me convenceu acerca de seus propósitos—foi
a Hélade. É a ela que obedeço e por ela devo sacrificar a ti. Ao que nos concerne,
minha filha, ela deve ser livre e os gregos não devem ter suas esposas forçadamente
sequestradas (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1269-1275).

● Versos 1934-1965 | 1374-1391


IFIGÊNIA
Ouça, mãe, os pensamentos que ocorreram a mim enquanto refletia. Foi determinado
que devo morrer e quero fazê-lo gloriosamente, limpando-me de todas as máculas.
Considere comigo, mãe, a realidade de tudo o que estou falando. A Hélade, em toda
a sua glória, agora olha para mim e a mim depende o poder de saírem os navios e
destruir Tróia, para que os bárbaros jamais façam algo contra as mulheres
novamente [e impedi-los de sequestrar as mulheres da Hélade, já que elas pagaram
pela perda de Helena, a quem Páris raptou]. Todo esse resgate será alcançado através
da minha morte e o renome que alcançarei por libertar a Hélade me fará abençoada.
Verdadeiramente, não é certo que eu deva ser tão apaixonada pela minha vida: você
me gerou para todos os gregos em comum e não apenas para você. Inúmeros
hóplitas e inúmeros remadores, já que seu país foi injustiçado, ousarão lutar
bravamente contra os inimigos e morrer pela Hélade: deveria minha singela vida
ficar no caminho disso tudo? Que justo apelo poderíamos fazer contra esse
argumento? (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1374-1391).

● Versos 1974-1978 | 1397-1403


IFIGÊNIA
Ofereço-me à Grécia!
Sacrifiquem-me e saqueiem Tróia! Este será o meu legado, que para mim equivale
aos meu filhos, ao meu casamento, ao meu bom nome! Os gregos, mãe, devem
reinar sobre os bárbaros e não o contrário: eles são escravos, mas os gregos são
homens livres! (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1397-1403).
● Versos 2070-2079 | 1467-1473
IFIGÊNIA
Vocês, jovens mulheres, entoem um hino à Ártemis, filha de Zeus, em virtude do que
aconteceu comigo! Deixem os filhos de Danaus fazerem silêncio absoluto! Deixem
que preparem o cesto sacrificial, que a cevada faça o fogo arder! Deixem meu pai ir
à direita do altar! Estou indo embora para dar aos gregos salvação e vitória!
(EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1467-1473).

● Versos 2103-2104 | 1502-1503


IFIGÊNIA
…você me criou para ser a luz da salvação para a Grécia. Não me entristece minha
morte (EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, vv. 1502-1503).

● Versos 2157-2168 | 1551-1562


SEGUNDO MENSAGEIRO
Ela se posicionou ao lado do pai e disse: “Pai, venho até você. Eu, voluntariamente,
concedo que seus homens me levem até o altar da deusa e me sacrifiquem, se é isso
que o oráculo requisita. No que depender de mim, todos vocês terão boa sorte, irão
vencer a guerra e retornar à terra natal! Assim, não deixe que nenhum homem me
segure: eu bravamente submeto meu pescoço à lâmina” (EURÍPIDES, Ifigênia em
Áulis, vv. 1551-1562).
EURÍPIDES. Hécuba.
(EURÍPIDES. Duas tragédias gregas: Hécuba e Troianas. Tradução Christian Werner. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.)
● Versos 202-210:
POLIXENA
Eu, tua filha, não mais, não mais
com tua aflita velhice, em aflição,
serei escrava.
A mim, um filhote tal como uma novilha
aflita nutrida na montanha, aflita
verás [...]
arrancada da tua mão,
degolada, para o Hades,
baixada à escuridão da terra, onde, entre mortos,
miserável, jazerei (EURÍPIDES, Hécuba, vv. 202-210).

● Versos 211-215:
POLIXENA
Mãe, por ti, desvalida,
choro com mui plangentes trenos,
mas minha vida, ultraje e ruína
não chorarei depois: para mim, morrer
ocorreu ser a melhor fortuna (EURÍPIDES, Hécuba, vv. 211-215).

● Versos 260-266:
HÉCUBA
É o dever de imolação humana que os conduz
ao túmulo, onde mais convém o sacrifício bovino?
Ou, querendo a seu turno matar os que mataram,
Aquiles, com justiça, aponta-lhe a morte?
Mas para ele essa não fez nada de mal.
Ele deve pedir Helena como vítima para o túmulo:
aquela, de fato, destruiu-o e para Tróia o conduziu (EURÍPIDES, Hécuba, vv.
260-266).

● Versos 309-320:
ODISSEU
Para nós, Aquiles é digno de honra, mulher,
após morrer belamente, como varão, pela Hélade.
Não é isto vergonhoso, se, quando vivo, como amigo
o tratamos, mas, quando morto, não o tratamos mais?
Pois bem: o que alguém dirá caso de novo surgir
um exército reunido e uma luta de inimigos?
Iremos combater ou prezaremos a vida,
vendo que quem morre não é honrado?
E para mim, enquanto vivesse, mesmo que pouco
tivesse no dia-a-dia, tudo seria suficiente;
mas o meu túmulo eu quereria que fosse visto
sendo honrado: de fato, a graça é duradoura (EURÍPIDES, Hécuba, vv. 309-320).

● Versos 346-371:
POLIXENA
pois por certo te seguirei, graças à necessidade,
desejando morrer; por outro lado, se eu não quiser,
parecerei vil e uma mulher que preza a vida.
Por que devo viver? Bem, meu pai era o senhor
de todos os frígios; isso era a prima coisa de minha vida.
Depois fui nutrida em meio a belas esperanças,
noiva para reis, causando uma emulação não pequena
pelas bodas àquele em cuja casa e fogo-lar eu entraria.
Eu, a desvalida, era uma senhora para as troianas,
chamativa entre as mulheres e as moças,
semelhante aos deuses, exceto, unicamente, pela morte.
Mas agora sou uma escrava. Primeiramente, o nome,
não sendo costumeiro, me faz desejar morrer.
Depois, talvez, senhores crus no espírito
eu obteria, um que por dinheiro me comprasse —
a irmã de Heitor e de diversos outros! —,
e, impondo-me a obrigação de cozer o pão em casa,
de varrer a casa e de pôr-me ao lado do tear,
me obrigasse a conduzir um dia dolorido;
minha cama um escravo algum dia comprado
sujaria, honrada, no passado, por soberanos.
Não mesmo: afasto dos meus olhos livres
este brilho, junto de Hades pondo meu corpo.
Leva-me, pois, Odisseu, e, levando, destrói-me:
nem oriunda da esperança nem de uma crença vejo
coragem junto a nós de forma que eu devesse ser feliz (EURÍPIDES, Hécuba, vv.
346-371).

● Versos 377-378:
POLIXENA
morto, porém, seria muito mais afortunado
que vivo: viver não belamente é uma grande aflição (EURÍPIDES, Hécuba, vv.
377-378).

● Verso 420:
POLIXENA
Morrerei como uma escrava, sendo de um pai livre... (EURÍPIDES, Hécuba, v. 420).

● Versos 415-416
POLIXENA
... sem noivo, sem um himeneu que eu devia ter obtido (EURÍPIDES, Hécuba, vv.
415-416). *

*De acordo com a nota do tradutor, Christian Werner (p. 14): “O número dos versos
indica a sequência em que eles aparecem nos manuscritos. Tal ordem, porém, é
alterada pela maioria dos editores modernos; optamos pela ordem adotada na edição
preparada por J. Digie”.

● Versos 432-438:
POLIXENA
Leva-me, Odisseu, tendo-me envolto a cabeça com peplos,
pois antes de ser imolada tenho meu coração fundido
com trenos e fundo o da mãe com gemidos.
Ó luz: é-me possível pronunciar teu nome,
e nada há exceto o tempo em
que caminho
até a espada e a pira de Aquiles. (EURÍPIDES, Hécuba, vv. 432-438).

● Versos 543-552:
TALTÍBIO
Depois, tomando pelo cabo, a espada dourada
puxou da bainha e para os jovens selecionados
do exército aqueu sinalizou que tomassem a virgem.
Mas ela, quando percebeu, anunciou tal palavra:
“Ó argivos devastadores da minha cidade,
morro de bom grado: que ninguém toque na minha
pele, pois oferecerei o pescoço com coragem.
Para que eu, pelos deuses, morra livremente,
matai-me deixando-me livre, pois entre os mortos
envergonho-me de ser chamada escrava, sendo rainha” (EURÍPIDES, Hécuba, vv.
543-552).

● Verso 608-613:
HÉCUBA
E tu, serva antiga, tendo tornado o vaso,
depois de imergir traze para cá da água marinha,
para que, com a última água lustral, minha filha,
noiva sem noivado, virgem sem virgindade,
eu banhe e ponha à vista (EURÍPIDES, Hécuba, vv. 608-613)

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