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São Paulo, quinta-feira, 16 de junho de 1994

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Polícia Militar conta a história pela


metade
MARCELO PAIVA

ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 17/06/94

Neste artigo, a legenda da foto está errada. Na foto, Carlos


Lamarca treina uma bancária para prevençao a assaltos
enquante ele ainda era capitão do Exército.
Polícia Militar conta a história pela metade
A Guerra Fria ainda pulsa. À procura de um herói que
possa servir de exemplo à corporação, a Polícia Militar de
São Paulo surpreendentemente retoma um dos episódios
mais desastrados da história das Forças Armadas
Brasileiras: a Operação Registro.
Entre abril e maio de 1970, na região do Vale do Ribeira,
cinco guerrilheiros comandados pelo ex-capitão Carlos
Lamarca furam o bloqueio de 1.733 soldados vindos da
PM, Polícia do Exército, Regimento de Obuses, 6º Grupo da
Artilharia Costeira, Batalhão de Infantaria, Comando de
Artilharia de Caça Antiaérea, Força Aerotransportada, 5ª
Região Militar e DOPS, impingindo uma humilhante
derrota ao Exército Brasileiro.
Num lance de propaganda com vícios do antigo regime
militar, em que transforma um fracasso num sucesso, o
vídeo produzido pelo Centro de Informações da PM
destaca um herói, o tenente Alberto Mendes Júnior, morto
no dia 10 de maio, após ser julgado traidor e condenado à
morte pelos guerrilheiros Diógenes Sobroza, Yoshitane
Fujimori, Gilberto Faria Lima e Lamarca.
No texto de abertura, sua morte "simboliza o ideal de todos
os policiais que tombam no cumprimento do dever".
Segundo versão da PM, o tenente morre para salvar a vida
de seus companheiros.
Para evitar o transtorno e o alto custo de se enviar
guerrilheiros para Cuba, a VPR de Lamarca instala, em
1969, um campo de treinamento em Capelinha, Vale do
Ribeira. Em 19 de abril de 1970, depois da delação de Celso
Lungaretti, ex-guerrilheiro que conhecia bem a área, uma
vasta operação militar, comandada pelos coronéis Mero
Ferreira e Erasmo Dias, cerca a região à caça de Lamarca.
Começam os tropeços da PM.
O primeiro encontro dos guerrilheiros com a Força Pública
foi em Eldorado Paulista, dia 8 de maio. Os soldados
estavam munidos só de revólveres 38 e sem comando, já
que o sargento Martins, assim que soube que Lamarca
estava se aproximando, foi embora da cidade. Os
guerrilheiros, portando fuzis FAL e metralhadoras INA,
furam o bloqueio colocando três PMs fora de combate.
Horas depois, na estrada para Sete Barras, um novo
confronto, desta vez com o efetivo comandado pelo
tenente Mendes Jr. Após um tiroteio, os guerrilheiros
fazem mais de 16 reféns. Entre as negociações para
soltarem os reféns, fica acertado que o tenente levantaria
a barreira em Sete Barras.
Mas Mendes Júnior leva os guerrilheiros para uma
emboscada. Desconfiado, Lamarca e seu grupo entram
para a mata levando o tenente, enquanto tropas do
Exército vindas de Eldorado trocam tiros com a PM
desavisada, ferindo o coronel Mero Ferreira.
Cercados e sob o bombardeio de helicópteros e aviões, os
guerrilheiros se viram num impasse. Não podiam soltar o
tenente pois ele informaria sua posição. Quando este,
percebendo que poderia ser morto, tenta fugir, arruma
mais um motivo para a decisão que estava para ser
tomada: julgá-lo.
É morto a coronhadas já que, se fuzilado, poderia chamar
a atenção do inimigo. Enterrado no próprio local, seu
corpo só foi encontrado cinco meses depois; o ex-
guerrilheiro Ariston Lurena (que ficou de guarda
enquanto o tenente era "julgado"), preso em agosto de 70,
foi levado de volta para o Vale pelo coronel Erasmo Dias
para indicar e desenterrar o corpo.
A fama de bom atirador de Lamarca apavorava os
soldados. Alguns deles, colocados em vigia, simulavam
tiroteio para evitar o confronto com os guerrilheiros.
O Conselho permanente da 2ª Auditoria de Guerra em SP
absolveu, dia 4 de Agosto de 81, o segundo-tenente José
Carlos Berti Bellini, acusado de não ter perseguido
Lamarca quando este estava na linha de fogo; Bellini fugiu
assim que viu Lamarca apontar-lhe a arma.
O conselho considerou que não houve condições para
prosseguir mata adentro e declarou missão cumprida,
embora sem êxito.
Num relatório confidencial do próprio Exército, escrito
pelo general Canavarro Pereira, comandante do 2º
Exército da época, onde se destacam as expressões "erro",
"falhas lamentáveis", "emprego precipitado da tropa",
"despreparo e falta de motivação dos soldados", é
recomendado que o "combate à subversão" deixe o terreno
militar.
Quanto ao tenente Bellini, o general Canavarro é
implacável: "Não demonstrou a mínima disposição para a
luta, se comportando covardemente ante os terroristas
fugitivos, dos quais esteve a alguns metros de distância e
vergonhosamente retirou sua patrulha deixando que os
mesmos se evadissem sem trocar um tiro sequer."
A morte de Mendes Júnior chocou tanto a polícia quanto os
simpatizantes da guerrilha. A violência cometida contra o
tenente assemelhava-se à tortura dos meios de repressão,
tão combatida e denunciada pelas organizações de
esquerda.
"Então, são farinha do mesmo saco", poderia-se concluir. O
próprio Lamarca parecia se envergonhar. Num relatório
da VPR, editado pela Casa das Américas de Cuba, Lamarca
mente ao escrever que o tenente foi fuzilado e seu corpo
jogado no rio.

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