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>. MANUEL VALENCA O ORGAO NA HISTORIA E NA ARTE BSAA ~ 1987 DO AUTOR: =0 tine Mestre de Capela do Conventa de Mafra, fr. Jo8o da Soledade, In Colectinea de Estudos, Braga, 1951 0 Arquivo Musical da Real Casa e lgreja de 8, Ant6nio 3 S6, Lisboa, in Colecties de Estudos, 2° Série, Ano 1V, Braga, 1952 No Bicentenério de L. van Beethoven, Seperata do Soletim da Sociedade da Estudos de Morambique, 1874 Uma andlize das caractorieticas musiesin deo de Misceldnea Luso-Afrieana Lisboa, 1975 ongdee chopes, Soparats A radicaidadecristé de «Os Lusiadase, Braga, 1980 =O Orato ig Braga, 1979 Fe 2 mislea sacra em Montarol, Eéitorial Franciscan, —A aro organistica om Braga nos séculos XVIXIK. Soparata de Itineraium, Braga, 1984 ~0 Orgio do Bor Jesus (Braga, Brage, 1895 Em preparaso: A arte organistica em Portugal P. MANUEL VALENGA iplomado em Musicologia pela Unisa (Pretéria) © ORGAO NA HISTORIA E NA ARTE Preficio do Prof. Gerhard Doderer Doutor em Musicologia pela Universidade Julius-Maximilians (WUrzburgo) Prof. do Dep. de Giéncias Musicais da Univ. Nova (Lisboa) BRAGA 1987 Propriedade — Provincia Portuguesa da Ordem Franciscana Capa e fotos — J. M, Fonseca Guimaries e David Antunes Desenhos — Sali Elsio Marques GGeavurat — Simo Guimaries & Fihos Editora — Editorial Francscana- Montatiol- Braga (Capa — Pormenor da fachada do 6refo do Evangelho da Sé de Braga INDICE PREFACIO. se ABREVIATURAS E SIGLAS TABLAS: A gama dos sons, Harménicos astras Equivalensis da altura de some 2 1 —ASPECTOS DA SITUACHO DA ARTE ORGANISTICA EM PORTUGAL Ml —ORIGENS E EVOLUGAO DO ORGAO (BREVE ESBOGO HISTORICO) Na beumm das oxgeas hn 0 rato hidréico an 0 6ret0 pneumitio ‘A primeira decisiva encruihada oo 0 raio € 0 cult religioso a Progressts na evalugi0 do 6YB40 ncn Desasurento regional = . ‘A Tavencio do terlado Grgios Fostvos © Poratives on = ‘A iaveniva dos organizos : ‘A iavengio de pedalera ¢ outos peogiessos 0 Grande O10 rn Descavovimento do Srgio Positive. © Restavo-Expressivo. Antecdantes proximes do érglo Barreca». © rplo barroco e suas caracteistias : © problana do temperament igual {A tpoca durea dos construores de &rpior Ob Srgies de JS. Bach enone © érpio na Tagaerra oe ‘A orgamria na Franga 0 eptotbéico suas caasteristeas ec INTROBUGHO AOS MECANISMOS DO 6RGZO Elements constitutivor do Sree (Os telades 205 vies tpos de orpio diferentes reides A consola a 0s eegsws. : = Tipoe de mecaniamo de ac : a 45 20 (Os sstemas de alimentagdo do ar (lari). (0 snatrialsonoro (canara) Formas de tobos labia e suas medidas Tabos de para Tipos de regitos: fondor, matages © mistuas © rato modern IV —REGISTAGHO: A ARTE DE COMUNICAR NA LINGUAGEM ‘Sonoza DO SRGAO Como resist 0 Oreo. (0s rocursor s0n0%0% ‘Teoria em fungio da pita Expresividade do 6rglo barreco A registaglo dos varios tipos de coral figurade Or concerts de Handel © contributo da época clissica [A égoca tomsntca ‘A época moderna. 0 rpio italiano e a sua revista 0 rgto francés © a sua exola.. (Orsios antigs ingleses e sua registgo ‘A ecola Bamenga de drei. 0 rato iberio e a sua repistagio. V —CoMo SE cutDa Dos 6xGa0S A manutengio do oreio. ‘A limpeza a0 Srp A alinagio do brgio {A reparaslo do orsio ‘Resauragio de orgios bartcos em Portia ‘A favor € contra a moderizacio| ‘Come restaurar, moderna e alargar os recursos do orpio, APOSTILHA GxossdRio MODELO DE INOUERITO DESCRICAO DE ALGUMAS ESPECIES BIBLIOGRAFICAS. suMMaRy DIBLIOGRAFIA GERAL a7 se PREFACIO A miisica instrumental europeia caracteriza-se, desde ha muito tempo, pelas relagdes entre composicao musical e cons- trucg-do respectivo instrumento. Estabeleceram-se interaccoes defLaris)muito préprio entre 0 misico criador que se exprime no matido da linguagem instrumental ¢ 0 artesdo que a este pri- meiro possibilita a ordenagao dos seus gestos sonoros. Aqui, as interacgées foram, desde sempre, extremamente diferenciadas e de uma grande subtilidade, de forma que se torna dificil, em muitos casos, distinguir claramente quais das influéncias miituas acaberam por prevalecer. A alternancia do fluxo de impulsos, sugestées e achegas consubstanciowse no meio de uma fértil criatividade e serviu, constantemente de estimulo, tanto para 0 chomo musicus» como para o homo artifexs. Nao se pode imaginar outra érea em que as linhas das tais interrelagdes tenkam produzido maiores e mais espectaculares resultados do que a da construgdo de drgdos. A longa tradigao da organaria europeia corresponde a rica histdria da construgdo de drgao na Peninsula Ibérica. A partis de um drgio que, durante a Idade Média, se apre. sentou como instrumento de caracteristicas idénticas em todos 05 paises que o utilizaram, verificamos no decorrer dos séculos a evolugdo de uma tipologia organologica cada vec mais diver. sificada que leva, por fim, a um determinado instrumento com particularidades de ordem técnica e actistica préprias, em rela aa @ regido onde se integra o instrumento em questéo. Assint, a Ongellandschalt (regido organistica) de Espanha € Portugal distiiguese-claramente desde a segunda metade do século XVI através de critérios que definem 0 drgao ibérico como p. e, localizagao, disposigio, divisao dos teclados ow trom petaria horizontal Em Portugcl, a época durea da organaria nacional situa se nos séeulos XVII e XVII; durante duzentos anos formowse f@ rico repertério da literatura organistica portuguesa tal como (0 numeroso putriménio-de maravilhosos instrumentos. E sobre- tudo 0 norte do pais onde, no seio das comunidades eclesidsti- cas, a miisica littirgica consegue ser estimulo, que se transforma emt multiplas acces de ordem pedagdgica e artistica. A secula: rizagdo € 0 profundo anticlericalismo dos séculos XIX ¢ XX fizeram que o thesaurus orpanisticus constitua hoje em dia, wma eranca bem reducida. Asta heranca, no entanto, tem vindo a prestar-se cada vez mais atengao em Portugal, desdé que as primeiras publicacées das obras de Seixas, Coelho e Araujo suscitaram o desejo de as ‘ouvir através da sua linguagem musical propria. Gracas a inter: vengio da entao Direcgao-Geral dos Monumentos Nacionais e da Fundagao Calouste Gulbenkian — esta tiltima com um espi- rito bem mais rigoroso do que a primeira — existe hoje um pequeno nismero de drgdos histéricos ndo somente em condigées operacionais mas também, pelo menos em alguns casos, em con: dicdes satisfatorias no que diz respeito a critérios dos processos dos respectivos restauros. Musicélogos estrangeiros e nacionais publicaram as partituras dos organistas conservadas en: arqui- vos portugueses e através de edicdes fonograficas conseguimos apreciar muitas destas pegas realizadas nos antigos instrumen- tos de Faro, Evora, Coimbra, Obidos, Porto e Lisboa, Criowse, enfim, no dmbito da Secretaria da Cultura uma Comissao da Defesa ¢ Recuperasdo dos Orgaos Portugueses com a intencao de valorizar 0 «patriménio cultural portugués de que os drgdos constituem uma parcela importanie quer pelo seu valor histérico quer pelas suas potencialidades de divulgacao da literatura nacional da especialidades (MEC, Portaria 155/87 de 05.03.1987), reconhecendo assim as autoridades responsdveis gue ainda «grande parte do efectivo organistico se encontra em condigées degradadas e que 0 seu restauro deve obedecer aos melhores critérios de reconstituicao das caracteristicas originais que importa respeitar, e as melhores condigées de funcione: mento» (ibidem) 8 0 tivro 0 Orgio na Historia e na Arte da autoria do Rev. Be M, Valenca strge, portanto, numa altura em gue 6 tratamiento bibliogréfico das varias drees da arte urganistica assume uma importancia particular. Sem pretender ser wt: estudo especia licado que reclame dirigir-se apenas aos mais profundos come. cedores da organaria ¢ da respectiva literatura musical € musi colégica, vai, certamente, dar satisjacdo a todos agueles que dese- jem excontrar uma boa e solida introdugéo a esta matéria tao inesgotdvel como 0 universo sonoro, apaixonante e sempre subtil, do «rei dos instrumentos», Lisboa, em Outubro de 1987 Prof. Doutor Gerhard Doderer iC ADREVIATURAS E SIGLAS AL = autor al = alemto BMP = Eiblioeca Municipal do Porto meena de Ch. = contra ed. —editade por, ecigao ‘sp. = espanol Es = Estamps Flautado @ = Flautado de & pés fol. = fio fe. frances DM = Harvard Dictionary of Music, ed. W. Apel, 2. ed, Londtes, 1973, Ibid, = Hbidem, no mesmo lugar idem ~ igual, © mesmo (autor, obea) ing, = ints a = italiano Jat, aim Ls = Livro mi. = moro, falco em Die Musk in Geschichte und Cepenvrt ed, F. Blume, Kase, 1962, = nasido em ‘ob.cit— obra citada antes pp. = pésina, piginas port. = portoguts Se. sep. = segue, squintes Sie = assin, fetes ou text Ve = Vea, ver, ves, vol = volume NB, — 0 Glossrioinserto nouro lugar oferece 0 Semtido de outes abeviaturas de ‘carder musica u ‘A GAMA DOS SONS REPRESENTADA POR LETRAS ALFABET!CAS (scam) oc det ~ RESSONANCIA SUPERIOR SERIE DOS HARMONICOS NATURA ‘A REPRESENTACAO DA ALTURA DE SOM SUA EQUIVALENCIA NA ESCRITA DA LINGUAGEM FALADA: enc: ee a eG 7 fi Ds Ses lisellaoueiel o sek = Me seltel ce Portugal Dae aaa Kensie l=~=i~esi—“‘i Cte Imus Ge Flentrop Do a ee ae ® Wiliams COC z = SMirewe ae e = 1203 4 6 8 6 7 ‘A pumeragio india a correspondéncis entre as figuras da pauta ¢ of sstencs NIB. — W. Apel no Harvard Dictionary of Masi indica tt sistemas princi. ‘Lame no exist uriformidade nesta matéria, Outros pormenores podem encairar- -s2.n0 volume do mesmo autor — The notation of polyphonic music, 0-160, 8 ed Cambridge, Mass. 1983, p. 21 e segs. — sobre o uso de letra alfabticas em vex da notaglo musical, As resantes equivalénest indieadas nesta tAbua foram assaladas para ajudar a Feitura de obras suplementars. Na exposigdo pesscal seguio sistema do 4D M, acompanhado, por vezes, do sistema portugus ASPECTOS DA SITUAGAO DA ARTE ORGANISTICA EM PORTUGAL Se folhearmos as paginas das catilogos de publicagdes inter nacionais sobre literatura musical ¢ musicologia, verificamos que, nos tiltimos anos, tém sido editadas numerosas obras sobre a arte organistica na Peninsula Ibérica. Sdo estudos musicolégicos, comu- nicagdes a congressos, edigSes de miisica antiga, e breves estudos ou artigos de revistas, que focam aspectos da misica de érgio e da orga aria na Espanha e em Portugal. Ha ainda dissertagdes universi- irias, que no chegam a ser publicadas, no obstante © seu mérito académico, reconhecido pelos professores e entidades responséveis, pelo nivel intelectual das Faculdades de Misica. Naturalmente, as teses apenas sio acessiveis a um nimero restrito de leitores, Além disso temos algumas edigdes de discos reproduzindo gravagves de musica para SrgZo de autores portuguese. ‘A arte e cultura portuguesas ocupam lugar modesto, talhado A dimensio das estreitas terras lusitanas, no seio da histéria geral da velha Europa. Ha mesmo um ar de espanto, quando se descobre em Tirandentes (Brasil) um érgio, que se supée com probabilidade ser de origem portuguesa, ou entio se confirma que o primeiro Srgio de tipo europeu instalado na China (Pequim) foi construido por um Jesuita portugués — P. Tomas Pereira (1645-1708). () Interessa assinalar desde ja que o interesse de muitos estran- geiros pela nossa arte organistica é auténtico e por demais evidente, Por isso julgc que as pessoas cultas deste pais se deveriam sentit interpeladas a dar uma resposta adequada, abandonando atitudes de indiferenca e apatia perante o problema da arte organistica, Nio s6 elas, mas também o homem da rua, tem de reconhecer realidade 0 valor do fendmeno artistico representado pelo érgio, pelos organciros e pelos organistas compositores, que fizeram arte em Portugal e criaram beieza ao longo de varios séculos, Porianto, ocorre perguntar: Nao seré ttil, a0 abrir deste tra- balho, tragar-se uma panorémica geral da situagdo actual da miisica cem relagio com a arte organistica entre nés? Julgo que sim. Ha cerca de uma dizia de anos um violinista, meu amigo, 1” procurou nas lojas da expecialidade, em Lisbos, um arco de violino para substituir 0 velho, j4 com poucas sedas. Com estranheza veri ficou terem pouca vantagem sobre 0 seu velho arco aqueles que se encontravam 4 venda, Desanimou do intento, Poucos meses depois, a0 visitar uma pequena cidade africana da ant'ga Rodésia, encontrou por metade do prego 0 ambicionado arco de violino. A ocorréncia agarrou-sehe & meméria como um dos sintomas da situagio da rmisica e dos instrumentistas deste pais 4 beira-mar plantado, de amenidade climética, 0 episédio diz um pouco da situagdo da miisica entre nos. E sabido que 0 ensino geral ministrado no nosso pais tem escurado de forma evidente a educagio mosical de virias geragées, rio obstante os apelos de podagogos e de musicos de reconhecida autoridade como, p. ex., Mério SimBes Dias, que foi professor no Instituto de Coimbra e deixou vasta colaboragie no suplemento do «Comércio do Porton sob 0 titulo — «Cultura ¢ Arter. E notério nio ‘er existido em Portugel durante este século qualquer misico edicado também as letras, scia ele Alfredo Pinto (Sacavém), M. Sampayo Ribeiro, F. Lopes Graga, ou outro, que se tenha prontn do publicamente em termos de salisfagdo com: a situagio da misica entre nés, em seus variados aspectos. Nao o fizeram por atituée der- Totista, mas constrtiva, como ficou demonstrado pela sua acco. ‘A politica educacional dos governs em relagdo & mibsica foi fobviamente equacionada de acordo com as exigéncias da maioria Ga sociedade portuguesa, Ao desinteresse desta pelo problema cor- responden a resposta daqueles. Por outra parte os apelos e sugestdes dios misicos profissionais e amadores nfo constituiram peso de op- nido publica suficiente para dar um rumo diferente aquela politica Para além do circulo de pessoas esteitament ligadss & misiea € de recordar um dos ensaios de Fidelino de Figteiredo em que se defende a misica como eixo de toda a educagdo pré-universitiria, Em Misica e Pensamento esereve: «0 ensino médio ou formador nio pode carecer de uma armacio interna que una e concent todas 2 influéncias escolaresreccbidas pelo educando ¢ as dria para um certo ideal ou tipo humano, peculiar de uma época e de um quadro social) E logo aponta esse principio unifcador: «0 eixo novo, que proponho para toda a eduragio, da infantil até a0 limiar Universidade, €'a Misican, No seu pensar entendia ser a Misica — 18 com maidiscula — «a chave do mundo total da civili desenvolver as razdes comprobatérias da sua opiniio afirma: «Pela sua forga de emogdo ¢ comunicabilidade foi, durante séculos, a mais, eficiente aliada da especulagéo diaigctica; ancilla ancillae teologiae ©) ajudou a amphificayao do cristianismo local em catolicismo impe- Fial. © érgio de foles articula-se & histéria religiosa tio estreitamente como a Summa de Tomaz de Aquino». ____ Dir-se-4 que a linguagem do A. peca por empolamento ora- t6rio, fruto do ardor das suas conviegdes, mas niio deixa de ser funda- ‘mentalmente verdadeira, Por certo poder-se-ia ter ume visio menos ambiciosa e em certos pontos corrigida da funcio da miisica no quadro educativo. Basicamente importa garantir na formagio da pessoa humana o ppleno desenvolvimento das suas tendéncias superiores, nomeada- ‘mente artisticas, sem as quais ficaria reduzida a sua capacidade cria- dora, expressiva e Idica, ‘Sem uma educagdo bisica musical torna-se dificil mais tarde criar © gosto pela miisica nos seus miltiplos aspectos, quase inexgo- taveis. Se a educagdo musical é transferida para a iniciativa pura- mente individual teré na maioria dos casos um caricter instintivo «, portanto, permanece no estado de subdesenvolvimento ¢ de ama- dorismo. Ao contrario do que alguns pensam, nunca 0 génio com nome na historia nasceu entre os abrolhos, sem escola de algum mestre, Por outta parte, a fungo educativa entregue aos meios de comiinicagdo social fatha nos objectvos essenciais. Frequentemente, eles mesmos earecem de orientagio artistica com honrosa excepoio da R D P no segundo programa em FM, Talvez sob a sua influéncia algumas pessoas se voliem decididamente para o cultivo da grande Imisica, Porém slo 0s tipos de misiea mais acessiveis, de Gxito facil ¢ de luero répido, que absorvem o talento e as energias de muita gente nova. Deinamese absorver pelos tipos de «pré-Misica»ligada 4 gindstca corporal, como pura libertagdo das energas. A unifcagio dda personalidade por meio da Misica preferem a desintegragio ¢ 2 confusio oniriea Fora dos Conservaterios 0 fulero da avgao pedagégica-musi- cal ficou-se a dever ao apoio dado pela Fundagao Gulbenkian de 1959-75 aos cursos gratuitos de aperfeigoamento dos professores de misica. Foram introduzidos na educagio musical os métodos do Orff-Schulwerk, sob a ofientagio de discentes do Orff-Institut de Salzburgo, eo do Pro, Edgar Wilielms. Por esses cursos passaram muitas centenas de pessoas. O movimento alargou-se com a realiza- ‘gio de semanas de cursos intensivos e de seminérios sobre educagio musical com a intervengdo de mestres estrangeiros como Schaeffer a colaboragio de portugueses. Durante 12 anos se realizaram cursos de didactica musical subsidiados pela mesma Fundaggo Gulbenkian, Houve também cursos de iniciaggo musical infantil. Quer dizer que dentro de alguns seotores culturais ¢ nos maio- res centros populacionais se trabalhou a sério na pedagogia musical com sentido de modernidade, Porém a falta de continuidade dos planos educativos com um trabalho de alta qualidade veio inutilizar ‘grande parte dos esforgos segundo a opinido de Constanga de Capde- ville que se dedicou intensamente a esta actividade. Se no fosse a descontinuidade das melhores iniciativas estariamos numa situago de paridade com os paises da Europa mais desenvolvidos neste campo. ‘Através de cducagio adequada desde a infincia seria possivel despertar verdadeiros talentos musicais e levar muitos jovens a seguir ‘uma carreira musical superior. ‘A promos social cultural dos miisicos ndo foi encarada entre nés com a seriedade ¢ eficiéncia que urgia ter tid no decurso de quase todo este século XX. No inicio dos anos 70 pugnei pela ideia de que se deveria criar a Faculdade de Misica agregada as universidades portuguesas (Jornal «Noticias» de Lourenso Marques, 24-T-T1), Sugetia-se fazé-lo segundo 0 modelo anglo-saxio, tal como & corrente em virios paises desse ambito. Mediante esse curso uni- versitério a carreira de misico em nada se poderia sentir diminuida, frente as deniais carreiras liberais com curso superior. A dignificagdo do estatuto social dos artistas tornou-se um sentimento agudo na sua consciéncia ,em parte como reacgdo duma falta de consideragio € de reconhecimento da sociedade portuguesa. Recorde-se que no pasado a Universidade de Coimbra, tinica no pais, contava entre os seus docentes o Mestre de Musica, como Mateus de Aranda (1544) e Pedro Talésio (c. 1618). 20 Era a tradi¢do medieval prolongada na Renascenga. Como resultado, ‘ou por coincidéncia, verificou-se entio a época de meior esplendor «da misica portuguesa, e, mais determinadamente, o apageu da nossa arte organistica. Foi em 1620 que M. Rodrigues Coelho publicou as suas Flores de Misica, primeira obra de miisica instrumental impressa no nosso pais. Em nossos tempos Coimbra teve apenas um Instituto de Miisica, sem plena autonomia, lutando com imensas dificuldades para sobreviver numa cidade de tradigdes culturais, que merecia ter uma Faculdade de Miisica pelo menos desde os principios deste séeculo. A nossa era de especializagdes tem presencizd> 0 surgir de nhovas ciéncias anteriormente consideradas como ramcs secundérios ‘em formagdo. Uma das que se destacaram de forma independente foi chamada — Ciéncias Musicais ow Musicologia. ‘Nos principios do século pasado existiam virios conheci- ‘mentos e capitulos esparsos da teoria musical os quais se coordena- Tam pouco a pouco, se aperfeigoaram e, depois de sistematizados, vieram a dar origem rigorosamente & musicologia, Em 1863, Chri- sander, musiodlogo alemio de grande prestigio, defenden a idcia de que 0s estudos musicais deviam ser elevados a0 nivel dos demais, conhecimentos cientificos pelo rigor © profundidade dos seus prin- cipios. Referia-se cle sobretudo aos estudos de carécter histérico de investigagao. E ndo tardou que a musicologia comecasse a ser reconhecida como verdadeiro curso universitério. Nos Estados Unidos da América a Universidade de Harvard dew-Jhe esse reconhecimaento em 1870. Desde entdo o prestigio desta instituigio nesse campo nunca, deixou de se avolumar. Em 1885, Guido Adler, professor de musicolcgia em Praga Viena, tentou descrever o campo da nova ciéncia. E ra musicologi incluiu a paleografia musical, as formas musicais, a histéria da com- posigio © dos instrumentos, a teoria musical, a harmonia, ritmo ¢ melodia, a estética, a didéctica musical, 2 filosofia dz arte e a etno- grafia musical. Foi na mesma altura que na preparagio musical dos professores de miisica se introduziu a psicologia e pedagogia musi- ais. Desenvelveu-se a historia da musica e alargou-se © papel da filosofia da miisica, bem como a histéria dos sistemas da estética musical. Recentemente o estudo das notagdes musicais através da 2 hisvoria recebets um impulso notivel e permitiu uma visio mais clare das relagbes entre os sons ¢ os sinais que os representam ‘Apés a I Guerra Mundial alguns Conservatorios de misica, sobretudo nos E, U. da América do Norte, filiaram-se nas universi« dades principiaram a conferir graus académicos. Foi um longo camirho andado no espago de menos de vm séeulo. Apés largo periodo de busca de si mesma a Musicologia pode ser definida pela International Encyclopedia of Music and Musicians (1952) nestes termos: «A Musicologia é a cigncia que trata da pro- dugdo, da apresentacdo € da aplicagao do fendmeno chamado som». (H. Lang). Em Portugal foi a Universidade Nova de Lisboa que veio recentemente dar uma resposta a esta necessidade eriando o Departa- mento de Ciéncias Musicais, agregado Faculdade de Ciéncias Sociais e Humans, Funcionando ha poucos anos jé est dando os primeiros passos na formagio de alunos ¢ comesa 2 ter apreciével projeogdo no nosso meio. Ainda existe entre nés uma larga drea de investigagio musical em aberto. E necessario o talento © 0 esforgo dde muitos investigadores, a fim de se revelar toda a riqueza da nossa cultura__musical Por outra parte, os alunos que se quiserem aperfeigoar nas universidades estrangeiras terdo mais facil acesso 20s seus cursos, depois de terem frequentado musicologia entre nés. ‘Além disso imporiava criar condicBes no pais para que se abrissem perspectivas atraentes aos artistas ¢ deixasse de ser um evidente acto de coragem abragar a profssio de misico. Ate aqui a maior parte deles tirou outra formatura ou procurou emprego alternativo, quando no simultineo. ‘Actuaimente desenham-se melhores perspectivas para 0s mais dotados. Multiplcaram-se as escolas regionais de misiea com 0s programas do Conservatério Nacional orientados pela moderna pedagogia musical, com pessoal docente razoavelmente qualifieado na maioria dos casos. Em Lisboa existem duas escolas de drgio, E em conserva~ térios de misica regionais, como em Tomat, Porto ¢ Braga, pelo menos, verifica‘se 0 mesmo, embora em circunstineias diversas. 2 A direegio do Servigo Diocesano de Masica Litirgica do Porto tem escola de drgio e tomou a iniciativa de eriar uma oficina de organaria a fim de se proceder ao restauro de érgios. A organiza- ‘lo conta com a generosidade de pessoas de variados estratos sociais e de associagdes interessadas na cultura musical. 44 se esta preparando © pessoal que fara parte da oficina de organaria sob orientagio de ‘um grande mesire organciro da Alemanha, As palavras ¢ os simples Projectos foram ultrapassados, (*) ‘Ao longo de alguns anos, por meio de artigos sobre Srgiios antigos espalhados por terras de Portugal, tentei eriar linguagem apropriada para os deserever de sorte a provocar nos Ieitores a curio sidade pelo aspecto cultural que eles representam. Iniciar na historia ena arte do drpio foi uma tarefa estimulante para mim, Sei também, por revelagdo de varias pessoas, que esses artigos esparsos foram lidos com surpresa e agrado. Sinto-me grato pelo apoio que me deram. Desejaria que esta obra tivesse © mesmo sucesso ¢ aprofundas- se no espirito dos leitores as ideias até agora suscitadas & flor da pele, © corpo central desta obra foi escrito dalibsradamente de ‘modo & atingir, ndo apenas um pequeno grupo de especialistas, que conhece mais e methor, mas antes um piblico dotado de curiosidade e vasto leque de interesses. Naturalmente ser4 uma leitura para conservadores e encarrega- dios de museus,reitores de igreias dotadas de Gres antigos, adaminis- tradores de fratemidades © confrarias rcligiosas, historiadores de arte, arquitectos e engenheiros, Dirige-se também a todos os que gostam de misica, no seu scntide mais elevado: curiosos da histria regional, em seus miltiplos aspectos; pessoas envolvides na con- servacio do patriménio aristico de suas teras; cultores da lingua- gem e da palavra escrita, Uns e outros poderio talver encontrar estas paginas motivo de interess, ilustacio, reflexdo e estimulo 41 sua vida de pensamento, Poder vir‘ ser mesmo estimulo de aegdo. Bom seria partir daqui para uma acgio de recuperagio de tudo © que representa a arte organistca no nosso pais. E tempo de acabar com um estigma de cardcter nacional, Afecta © nosso brio, ‘Temos sido acusados de abandonar ¢ degradar vergonhosamente © nosso espélio cultural Agora que entramos na comunidade europeia de mercado, ¢ se procura a integragdo cultural, & tompo de recuperar alguns dos 2B valores em vias de completo desaparecimento. Alertar a consciéneia nacional e mostrar-Ihe © caminko para solucionar problemas cultu- ais ¢ artisticos, faz parte ainda dos objectivos desta obra. Estimular ‘0s responsdveis pelos pelouros da cultura nas autarquias a mandar fazer um levantamento dos drgiios existentes nas suas areas, como se tem feito na Franca, na Bélgica, na Holanda ¢ na Espanha. E depois disso activar mecanismos capazes de levar A restauracio dos, instrumentos de maior valor. Data de 1955 a publicagdo do levantamento de orgios dos séoulos XVII e XVIII realizado em Portugal c Espanha pelos téenicos holandeses, M. A. Vente e W. Kok, tendo como um dos seus objecti- ‘vos iniciar uma «modesta organografia ibérica». Por crdem alfa- bética, enumeraram vinte € duas cidades ou localidades portuguesas conde encontraram érgios dignos de estudo. (*) Esteves Pereira fer em 1970 um levantamento na diocese do Porto, sem pretender também ser exaustivo na sua pesquisa © inventario compreende os seguintes drgdos: Sé do Porto (dois da capela-mér), Mosteiro de Arouca, Ierejas do Bonfim, Vitoria, Carmelitas, Taipas e Cedofeita, da cidade do Porto; igrejas de Vilar do Paraiso e de Valadares; de Santa Marinha e Convento do Corpus Christi de Gaia; mais as igrejas do Calvario, Freiras, Misericérdia ¢ Hospital N.* S.* do Carmo, em Penaficl OA. fez.consideragées sobre o estado de conservagdo de cada instrumento ¢ forneceu dados referentes is suas caracteristicas (*) Em 1972 veio a lume o inventério de caixas de Srgios barro- cos espalhados pelo pais da autoria de Carlos de Azevedo, 0 qual compreende, segundo 2 sua classiicagdo, 32 drgios positivos e 16 portativos. O volume inclu, além das belas gravuras das fachadas dos referidos érgios, indicayées relativas & posigio e plano tonal Gos instrumentos. (°) Mais recentemente, 0 investigador australiano, W. D. Jordan, publicou um estudo sobre 13 érgios do século XVI construidos nas regiges de Braga, Guimardes © Lamego. (*) Em 1981 a Direorio Geral dos Eaificios s Monumentos Nacionais encarregou Esteves Pereira de elaborar um relat6rio minu- cioso sobre o numero e o estado de conservagao dos érgios & data enistentes nas ilhas de $. Miguel, Terceira e Santa Maria. O levanta- 24 mento deu conta de 16 érgios, em maior ou menor estado de degra- dagiio, susceptiveis de restauro ou de simples melhoramento, sobre- tudo da ventilagdo. Seria util publicar-se um estudo completo sobre esse trabalho de pesquisa. (E. Pereira, Os érgios da Sé, in Wha Ter- ceira, Ano 1X, Agosto, 1986). Em vista de proxima reparagio, 0 Instituto Portugués do Patriménio Cultural encomendou, 20 mesmo organciro que fez 0 levantamento, alguns trabalhos de desmontagem de érgios. Ha poucos anos enviei um inguérito em forma de circular a varias pessoas e eniidades sobre dregs antigos a sua guarda, a fim de colher clementos de informagio. A médie de 30% das res- postas dé uma ideis do interesse suscitado pelo inquérito. Consta-me que na regio do Algarve alguém esta tentando fazer um levanta- mento completo dos orgios existentes. Ai estd um tema para gente nova fazer uma tese a finalizar um curso de Musicologia. Oral esta obra pudesse suscitar em pessoas com habilidade artesanal o desejo de trabalhar em organaria: mecinica, carpintaria, serralharia, desenho e fundi¢do. A orientagio de uma indistria de Srgios com 0 devidos requisitos, tal como no passado se fez, seria, um projecto ambicioso, Infelizmente, no campo da cultura e das artes hd quem nutra desinteresse pelas formas ¢ expressdes de actividades que nio sejam da moda entre a sociedade envolvente. Mas tanto as vontades como 8 gostos se podem mudar. No século passado, Ramalho Ortigio, falande do culto da arte em Portugal, deplorava o abandono a que as obras de arte tinham sido votadas por grande parte da populagio e pelas préprias autori dades governamentais. Nas velhas casas senhoriais tinham-se deixa- do ao abandono grande mimero de pesas valiosas: «Nos sétdos dessas antigas casas havia acumulagdes seculares de méveis inutiliza- dos... desusados manieérdios, velhos cravos de charo, abandona- das espinetas, em cujo teclado amarelecido se teriam dedilhado as primeiras composigées de Palestrina e Cimarosa...»(*) Outras obras de arte cram vendidas a0 desbarato para fora do pais Haveré no presente mudanga de atitude? Talvez coincida 25 fem parte, Noutros aspectos parce (er havido mudanga, mas no muito significativa. - Até que ponto interesse um drgio HA mais de meio séoulo foi escrita uma monografia sobre 0 santuério do Bom Jesus do Monte (Braga) onde se deseroveram com todo 9 pormenet 05 aspectos arquitecténicos e deeorativos do mesmo templo. (1) Nem-uma tiniea palavra sobre o érgio ali bem visivel, ‘mesmo como elemento decorative, Qualquer observador vulgar o teria feito, HA bem pouco tempo foi publicada uma obra de arte sobre uma das Igrejas mais visitadas da velha Lisboa, com abundante ilus- tragdo de magnifico aspecto grafico, (2) Uma das gravuras mostrava ‘0 coro alto, com 0 érgio nele instalado, embora truneado na imagem. ‘A respectiva legenda reza: «Aspectos da Igreja (tecto, balaustrada do coro © érgio)». Mas, por estranho que paresa, o érgio estava texcluido do elenco das obras de arte pertencentes ao mesmo templo. Talvez fosse desculpavel fazé-lo em razio dum critério puramente visual, dado que a caixa do érgio nao apresenta trabalho de talha. Contudo os tubos tém uma decoragio curiosa, poueo usual. Além disso o aspecto musical foi completamente ignorado. © som faz parte do ambiente artistic, tal como a luz e as cores. O papel artistic, que o instrumento teve desde o terceiro quartel do século passado, naquela igreja, nfo mereceu a devida consideragdo. Mais ainda, esse instrumento é um dos raros exemplares de drgio de tipo ingles exis- tentes em Portugal, porque foi construido na época de transigo do instrumento tradicional para o moderno. Representa um valor artis tico mesmo no presente. Pode-se agora perguntar porque razJo escritores ¢ artistas cestrangeiros tém tomado tanto interesse pelos melhores érgios de Portugal, incluindo 0 de Bom Jesus (Braga). Fundamentalmente, parese-me existir uma marcada diferenga de cultura musical. Apreciam os drgios ¢ a misica de Srgzo. Tem cultura e sensibilidade, Por isso se verifica ter existido um prolongado € repetido interesse por parte de estrangeiros em relagio com 0 nosso Srgio barroco © a musica criada pelos organistas. 26 Desde ja poderemos citar os nomes de M. A. Vente, W. Kok, A.G. Hill, M. 3. Kastner, G. Doderer, H. Klotz, Peter Williams, P.G. Andersen, W. D. Jordan, A. Corliss, J. Wyly, Sybil Marcuse, J.R. Shannon, B. Hudson, Michacl Kearns, W. Leslie Sumner, Klaus Speer, Betnardette Nelson, B. Brewster Hoag e M. Kratzens- tein, s trabathos de musicologia respeitantes arte organistica em Portugal produzidos por autores estrangeiros vim referidos na bibliografia geral. O conteiido de alguns deles é resumido numa seegio especial. Todos esses escritores, partithando interesses comuns, pro- duziram obras de valor desigual e de cardcter diferente, como dis- tinta é a autoridade dos seus estudos. Por certo que os de investigasdo sobrelevam os demais na importancia, dada a cscassez de documentos nesta rea da miisica portuguesa, HA ainda as obras de divulgagio cuja importincia deriva primordislmente da vastidio de piblico atingido. De referir em primeiro lugar as grandes enciclopédias de misica: Die Musik in Geschicht und Gegenwart de F. Blume, 0 Grove's Dictionary, © a Nova Enciclopédia Briténica. Séo obras que figuram em todas as ‘grandes bibliotecas. Nem menos tera contribuido para a divulgasio da nossa arte organistica 0 Harvard Dictionary of Music de Willi Apel, cuja autoridade é reconhecida por todos os centros académicos mundiais ¢ faz parte da bagagem de qualquer pessoa com 0 curso superior de mmisica Ao compulsar toda essa literatura, julgo ser reconhecivel que fas obras de M. Santiago Kastner tiveram influxo decisivo sobre todos 0s estudiosos da arte organistica na Peninsula Ibérica. A sua autoridade € indiscutivelmente recenhecida. E, porque se integrou perfeitamente no ambiente ibérico, ndo incorre nos erros que outros estudiosos estrangeiros de real valor por vezss incorreram ao lidar ‘com nomes e termos portugueses, ou na Ieitura de textos antigos. E em caso de divida socorre-se dos scus numerosos amigos conhece- dores da misica e da linguagem. Os outros estrangeiros no tém as mesmas vias de acesso a consulta quase sempre necessiri. 7 “Trarei A colasiio dois exemplos distanciados cerca de um século. Numa obra impressa em 1883, A. G. Hill apresenta entre os registos do Srgio do Bom Jesus (Braga) um certo «Canaveo> (sic), jdentificado pelo eseritor como um jogo aparentado com a «Musette>, na tentativa de esclarecer um mistério. ('*) Reflectindo pessoalmente sobre este quebra-cabegas descobri ter estado escrito, junto do puxador do registo a palavra «Canareo», ou candrio. O transeritor tinha-se enganado numa simples consoante, Nao se tratava de um registo de palheta, semelhante @ «Musette», ‘mas de um «jogo de brinquedo» composto por um tubo labial com ‘a extremidade superior mergulhada numa pequena tina de dgua para ‘gorgolejar, imitando © canto do candrio, Verifiquet pessoalmente ser assim. ‘Na mesma lista apresentada por A. G. Hill aparece uma Flauta doce. Ora através do contrato para a feitura do érgio, assinado por Manuel de 4 Couto, nio figura aquele registo, mas sim 0 Flautado de doze. ‘Neste caso, contudo, 0 erro poderia ter resultado de qualquer gralha impertinente, 0 segundo exemplo pode colher-se na obra de Peter Williams publicada em 1980 — A new History of the Organ. (4) Referindo-se ao érgio do Evangetho da Sé de Braga o A. atribui a sua construgio a um organciro anénimo: «Anonymous Duilder 1737-8», © erro é evidente. Qualquer visitante do maravilhoso coro da Sé de Braga pode ler a inscrigdo gravada nos medalhées, ‘oucartelas, que encimam aconsola: «Fr. Simon Gallaecianus — Fecit Anno 1738). Héem 1800 havia sido transcrita esta inserigdo por Ernesto Vieira, (4) Ninguém pode ignorar este dado histérico. Na mesma obra hé inexatiddes de nomenclatura de registos referentes ao sobredito drgo que 0 A. ndo teria cometido se tivesse sido auxiliado pelo conselho de pessoa entendida na matéria de lingua portuguesa, Talvez seja momento para nos interrogarmos a ver se no seremos nds préprios as culpados por havermos cescurado as tarefas da investiyngiic ¢ da divulgagdo deixando.as aos estrangeiros, 28 Ha mais ainda, Quando qualquer estrangeiro pretende ver divulgados em lingua portuguesa os seus estudos depara frequente- mente com tradutores, comselheiros © publicistas ineapazes deo aiudar por ignorincis da matéria da terminologia edequada. Indu. zem no erro ou nio o sabem corrgir. Em eonsequéncia disso pode kerse num trabalho bastante recente assinado por um investigador de lingua inglesa as seguintes lamentiveis confusoes Texto: a) «Comparamse estes exemplos 20s pipos (si) semethantes que se véem na fachada do érgio, no coro-baixo da igreja de Santa Clara-a-Nova, constnuido no’ ano de 1743 por D. Manoel de S. Bento Gomes.» ') a provavel que 0 compasso (sie) do érgto orii- aal (séoulo XVI) tena sido prolongado do Fé do baixo 20 Dé...» (*) © A. falava de tubos eno de epipos», bem como de extensio do teclado € nao de wompasso». Aqui se revela a ignorancia das coisas mais elementares da terminologia musical em portugués, que devia fazer parte do apetrechamento de qualquer escritorculto. Mas s6 em face do original se poderia recompor as frases deturpadas ou obscuras Noutro artigo sobre érgios do convento de Mafra podem ler-se frases incorrectas deste género: «Estes registos esto mistura- dos ¢ foram colocados no someiro de cima, Nao existiam, original- mente, no consolo (sic) do érgio, os puxadores destes registos». (9) © que o A. quer dizer é que as Misturas (ou Cheio do érgio) foram colocadas num someiro suplementar, por falta de espago, ¢ o$ puxa- ores destes registos, pela mesma razio, no figuravam original- mente na consola. Toda a gente medianamente culta distingue «um consolo» de «uma consola» de drgio, Problemas de linguagem resul- antes da perda da tradigio organistica, Recentemente, por ocasido da inauguragio de um novo érgio veio a lume um opisculo com excelente apresentagio tipogréfica, de esperar que o texto fosse igualmente cuidado em todos os pormenores, Mas, mais uma ver. se verificou a falta de terminologia para se traduzir 0 contrato e fornecer outras indicayées respeitantes 40 préprio instrumento. Assim lemos: Registertraktur em vez de epuxadores de registos»; Wellenbretter em vez de «abreviaslor; Schwellwerk em vez de Eco», etc. (8) 2» Nio se nega que tais publicagves, apesar das incorreesoes ou caréncia de vernaculidade contidas, representem uma valida con- tribuigdo em prol da arte organistica. Contudo a falta de cultura musical, ¢, mais particularmente fem relagdo com a arte organistica, torna-se palpivel. Que dizer da imagem do érgdo na mente'da maioria das pes- soas da nosst sociedade? sentimento mais generalizado entre nés acerca dos érgios que ornamentam os templos & de que se trata de antigualhas de som Darbaro, irremediavelmente condenadas a0 desaparecimento com © progresso de novas tecnologias. Alguns pensam em svbstitui-los por instrumentos electrénicos comiputurizados, reproduzindo com alta fidelidade os sons dos melhores instrumentos, Estes sf 08 mais ‘sclarecidos, embora ndo vejam o problema em toda a sua amplitude, Outros contentam-se com um pequeno instrumento, semelhante aos que sio usados pelos conjuntos de musica pop. Nem se preocupam ‘com 0 facto de que possuam uma bateria de ritmos de danga. Nao pensam usé-la, por certo. Contudo pagam-na, sem disso tirarem qualquer proveito. Mas sio instrumentos que no tém sequer a digni- dade de um mediano harménio de palhetas, Infelizmente nic so apenas as pessoas de cultura mediocre ‘as que desvalorizam o papel artistic dos érgiios antigos. Na revista inglesa, The Organ (Abril de 1955), dois especia- listas em organaria, M.A. Vente e W. Kok, afirmaram que em Portugal ndo existia, praticamente, interesse pelos érgios, nem pela sua construgio. Ajuntavam que a maioria das reparagdes feitas por organeiros portugueses eram uma calamidade, devido no tanto a falta de recursos financeiros, como por causa da perda das tradigbes locais da construgio de instrumentos. Pormenorizando, afirmavam que, as vezes, porque os foles vasavam um pouco de ar, embora o resto do instrumento estivesse em condigdes de tocar, colocavain a0 lado do orgio um harménio e assim resolviam © problema, Esta solusdo era mais dispendiosa. Finaimente acrescentavam que o valor {stético © musical dos érgios nao chegava a ser entendido pelos pro= rios organeiros em actividade. Enfim, para o piblico em geral 0 SreIo 56 contava como pega decorativa, ¢ por isso conservava-se 30 2 fachada, embora o interior se encontrasse completamente vazio, Por todas estas razdes concluiam gue a quase totalidade dos 61 fencontrados em Portugal no estavam em condigaes de se tocar. Outro aspecto preocupante denunciado nesse estudo er o ‘compo-tamento da Comisso dos Monumentos Nacionais, Ao tempo, a norma geral, adoptada por ela, constituia o «inimigo nimero um» dos érgios barrocos de Portugal. Ao fazer-se a restauragdo de uma igreja romana ou gética o érgio do século XVIi ou XVIII tinha de desaparecer em razao da coeréncia estética. Foi assim que o magnifico ‘rgio da Sé de Portalegre foi sacrificado, bein como o da Sé de Silves, Apesar de tudo, 20 tempo da sua visita a Portugal, os citados autores pressentiram alguns indicios de mudanca de altitude num sector restrito, de que iam j4 resultando beneficios. Estavam em curso reparacdes de érgdos em Evora, Lisboa ¢ Ociras, entregues a0 cuidado de pessoal devidamente qualificado. Este repositério de incontestaveis acusagies antecedia 0 seu precioso estudo acerca das caracteristicas € do estado dos érgios mais importantes existentes em Portugal. Uma pagina que reforga parte das acusagées referidas © mani- festa o pensar de responsaveis pelo tesouro artistico de Portugal — sem se pOr em causa o seu amor & arte e a0 pais — foi-nas deixa- da por Anténio Lino (1914) na obra: A Arte na Idede Média. (') Tratava-se da restauragdo da igreja da Colegiada de S. ta Maria de Guimardes. No coro existia (¢ existe ainda em parte) um 6rgio «cuja complicada floresta de tubos» — segundo palavras de Antouiv de Azevedo, que A. Lino transcreve — acaba por «mutilar © encobrir» a primitiva Fabrica gética, (2) A, Lino, cuja profissionalidade, cultura e amor & arte € evidente declara candidamente o seu pensar nestes termos: «Entre a riqueza, apesar de arruinada, do emolduramento riquissimo do janelio ¢ 0 6rgio, que embora decorativo e com qualquer coisa de chinesice, ‘mais proprio para pavilhdo musical de palacete mundano do século passado, ndo hesitariamos na escatha: era o drgio que se tinha de climinar. E com isso s6 lucraria a grandiosidade da igreja, com 0 desaparecimento do falso coro, para mostrar em toda a imponéncia 05 eapitkis ¢ 0 iltimo arco, que 0 coro corta pelo meio». (®) Pela descrigao feita qualquer pessoa conhecedora de drgios pode deduzir que se tratava de instrumento digno de ser restaurado bu reconstruido noutro local da mesma igreja. Havia ainda a alterna tive de o transferir para outra igreja ou para um museu. E porque no em «pavilho musical de palacete mundano»? O essencial era preservé-lo. Mas quem seria capaz de realizar um destes projectos? Para avaliar a situagio fisi recentemente visitar a Colegiada de S. ta Maria, Verifiquei que o 6rgio instalado adulteragdes no passado as mios de organeiros sem escrapulos. De relance podemos ver que 6 érgio foi desfigurado nas caracteristicas sonoras e reduzido a um terco dos seus recursos. Ajunte-se que 0 regio estd em vias de adequada restauragio, continuando instalado no mesmo lugar. ‘Apesar de tudo € caso para se perguntar se nao seria melhor solugdo colocar o vitral na rosicea da fachada, conforme o projecto de A. Lino, ¢, a0 mesmo tempo, reconstruir o dro de modo a deixar desimpedida a vista do mesmo vitral pela parte de dentro da igreja. De ambos os lados do coro hi suficiente espago para se montar em

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