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POUL Tudo isto é triste e000 contactos | & Email “Life is a story told by an idiot” W. Shakespeare que levou os politicos da Finlandia e Suécia a pedirem a adesaio 4 NATO nao foi a invasao da Ucrania pela Rissia e o medo de verem isso replicado nas suas fronteiras, mas sim o falhango da invasao da Ucrania pela Rissia. Se essa invasdo tem sido um sucesso militar para Moscovo, como era de prever, nem a Finlandia nem a Suécia se teriam movido da sua zona de conforto, de neutralidade, onde viveram pacificamente desde 0 pés-guerra. Mas quando, em meados de Abril, viram o sucessor do Exército Vermelho a patinar na Ucrania, incapaz de conquistar as grandes cidades e, sobretudo, batido em armamento, em tecnologia de informagaio em treino de combate pela ajuda decisiva que a NATO forneceu e fornece & Ucrania, os dois paises nérdicos comecaram a pensar que, tal como a Ucrania, também eles, beneficiando da mesma ajuda, estariam melhor defendidos sob 0 escudo da NATO do que sob a politica de “finlandizagao” ou neutralidade das suas politicas externas. Afinal, o urso vermelho nao passava de um urso de papel. A menos, é claro, que 0 urso nao se lembre de langar mao do argumento nuclear... Porém, basta olharmos para os mapas dos sucessivos alargamentos da NATO na Europa para percebermos como a Riissia tinha razfio ao ver ali um movimento de alastramento unicamente destinado a cercé-la por todos os lados. A extraordindria hipétese de “peace in our life time” de que falava Chamberlain 50 anos antes e que milagrosamente se materializara com a derrocada da URSS e da Cortina de Ferro foi deitada a perder pela voragem cega da visio expansionista da NATO e dos fabricantes de armas que a sustentam e se sustentam dela. Como dizia Sartre, mas a despropésito, daqui nfo saio e daqui ninguém me tira. IusTRAgACHUGO PINTO Por forga da meméria de 1939 € dos 1340 km de fronteira com a Russia, a Finlandia mantém um desproporcionado Exército de 350 mil efectivos e outros tantos reservistas, num pais com metade da populacao de Portugal. Antes de a aventura de Putin na Ucrania ter comecado a patinar a vista de todos, consumando um erro estratégico e politico que ficaré para a histéria, 30% dos finlandeses eram a favor da adesiio 4 NATO: hoje sao 70%. Ja 0 caso da Suécia é diferente: com 0 dobro da populagio finlandesa, a Suécia tem um décimo dos seus efectivos militares. A neutralidade entre os dois blocos da Guerra Fria nao foi apenas uma decisao de politica de defesa, mas também de politica externa, determinada por razdes ideolégicas, intrinsecamente ligadas ao SPD de Olaf Palme e que deu a Suécia um prestigio internacional que agora ficara reduzido a coisa nenhuma. E pior para um povo orgulhoso da sua diferenca e que esta dividido nesta questo: tamanha era a pressa que nem sequer o consultaram. Todavia, 0 aliado-incémodo Erdogan, o ditador-amigo da Turquia, ameaca estragar a adeso dos dois nérdicos a NATO. E para levar a sério? Nao, nao é. 0 novo sultdo otomano é tio democrata e recomendavel quanto Putin: trata o Estado de direito, os direitos individuais, os adversdrios politicos e a imprensa que pretende ser independente com o mesmo nulo respeito que o novo czar russo. Porém, é eterno candidato 4 UE e membro determinante da NATO, cujo flanco sul e leste preenche, e mantém relagées “curiosas” com o Kremlin. Mas Erdogan é subornavel, embora 0 prego a pagar seja moralmente abjecto. Trata-se de sacrificar os curdos — uma vez mais. Os curdos, relembra-se, so cerca de 30 milhes de apatridas dispersos por seis paises do Médio Oriente, definidos em todas as enciclopédias como “a maior nagao sem Estado do mundo”. Varias vezes Ihes prometerem um Estado e todas as promess foram perseguidos e massacrados por todos os extremismos islamicos nos paises onde esto ea todos deram luta: foram alvo de uma “guerra santa” no Irdo, decretada por Khomeini, dizimados por Sadam Hussein no Iraque, atacados com armas quimicas na Siria do assassino Assad, aliado de Putin, e perseguidos sem tréguas pelo fanatico Erdogan na Turquia, onde vivem 15 milhées de curdos, constituindo 20% da populacao turca. Combateram o ISIS no Iraque ¢ 0 Daesh na Siria, onde Obama lhes prometeu uma patria em troca e onde, combatendo a frente e ao lado dos marines, salvaram milhares de vidas americanas, para depois serem abandonados por Trump 's foram traidas — sobretudo pelo Ocidente. De fé islamic: as represalias dos turcos, perante a revolta silenciada dos proprios comandantes americanos. O seu Exército, o tnico que verdadeiramente combateu os terroristas islamicos, tinha companhias chefiadas por mulheres diplomadas em Londres, em Paris, nos Estados Unidos. Combatendo por uma patria sempre prometida e sempre atraicoada. Para Erdogan, toda esta gente so “terroristas”, membros do PKK: basta sonhar com um Curdistao para se ser terrorista. E acontece que alguns deles se refugiaram na Finlandia e, sobretudo, na Suécia, que, honrando a suas tradigées, os acolheram como refugiados politicos — como outrora acolheram os resistentes a ditadura do Estado Novo ou os dirigentes africans das colénias portuguesas. Quatro dos refugiados curdos sao até deputados no Parlamento sueco, supremo insulto para Erdogan. Ele exige a extradicao de 30 e tal deles para as prisdes turcas em troca de nao se opor a entrada da Finlandia e Suécia na NATO. Isso, provavelmente, nao obterd, mas obterd a promessa de que a porta se fechara doravante a novos pedidos de asilo politico de curdos. E, para facilitar ainda mais as coisas, Biden jé levantou um embargo de venda de armas 4 Turquia (em vigor, vejam a ironia, devido as relagées privilegiadas de Erdogan com a Riis 0 de a) e pediu ao Congresso a aprova um pacote de “ajuda militar” — isto é, venda de armas (avides F-16 e misseis) — a Turquia e para ser usado contra os curdos. Tudo vai acabar com palmadinhas nas costas e juras de amor para sempre. Todos, com excepgio de Vladimir Putin, concordam com o direito da Ucrania a sua soberania e a integridade territorial da sua patria — que, todavia, sé existe ha 30 anos. Jé quanto aos curdos e ao prometido Curdistao, pelo qual esperam ha séculos, nao ha pressa, nem amigos, nem aliados, nem palavras dadas. Digam-me ld que tudo isto nao é maravilhoso e que faz todo o sentido? Em tempo de guerra, dizem, nao se limpam armas. Limpam-se consciéncias. O que levou os politicos da Finlandia e Suécia a pedirem a adesao 4 NATO no foi a invasao da Ucrania pela Russia e o medo de verem replicado nas suas fronteiras, mas sim o falhanco da invasao da Ucrania pela Russia 6s, porém, estamos bem. Votamos a tudo sim, o que nao nos custa nada. Ajuda ‘humanitédria 4 Ucrania? 1,1 milhdes de euros: o custo de um T1 no centro de Lisboa. Participagdo na mobilizagdo extra de forgas da NATO? Claro: 165 tropas para a Roménia e, la para Setembro, talvez a tinica das cinco fragatas em condigdes de navegar (e que, relembre-se, foram compradas para combater submarinos soviéticos no Atlantico Norte quando ja nao havia nem submarinos deles nem mesmo Uniao Soviética) possa finalmente zarpar para algures, uma vez estabelecidos todos os subsidios da tripulagao. Mas, como insistiu o Presidente e assentiu (nado muito convicto, é certo) o PM, vamos investir mais nas Forgas Armadas, como convém aos tempos que se vivem. Para variar, vai ser estudado um novo conceito estratégico de Defesa Nacional, que é sempre um fantastico exercicio de banalidades com o condao de, uma vez pronto, ja estar desactualizado. No essencial, tudo resumido e Ucrania bem meditada, vai-se concluir pela urgéncia nas promogées do pessoal e uma recomendagao dos chefes para restabelecer o SMO, pois faltam soldados para 0 basico: limpar os quartéis, cozinhar as refeicdes, conduzir as viaturas, fazer sentinela aos expostos paidis. E mais umas quantas compras de material a americanos ou franceses, com os habituais negécios escusos de comissées, para garantir os indispensdveis 2% do PIB em despesas militares que o clube NATO exige. Mas se o Estado poupa na ajuda A Ucrania, a sociedade civil nao. Os portugueses gostam de receber, é uma qualidade nossa, genuina. Até agora, recebemos 35 mil refugiados ucranianos. Nao é muito, comparado com paises vizinhos da Ucrania, mas se ndo recebemos mais é porque nao quiseram vir mais. Em contrapartida, o grande “amigo” da Ucrania, os Estados Unidos, gracas a cuja “ajuda” a Ucrania tem conseguido humilhar os soldados de Putin, j4 gastou ou vai gastar para cima de 40 mil milhGes de euros de “ajuda militar” ao pais de Zelensky. Parte da “ajuda” sera paga pela Ucrania, outra parte pela NATO e a maior parte, espero, pelos contribuintes americanos, via Pent4gono. De qualquer maneira, um negocio fabuloso para a Lockeed Martin, a Northrop Grumman ou a General Dynamics. Porém, para além das armas, Joe Biden anunciou que os Estados Unidos também se iriam mobilizar no campo humanitario: estariam dispostos a acolher até 100 mil refugiados ucranianos. & imenso? Nao, é ridiculo. Se considerarmos que os EUA tem 27 vezes a populacéio portuguesa e que nés j recebemos 35 mil ucranianos, eles deveriam receber 945 mil. Mas duvido que até os 100 mil venham a receber. Vender armas é muito mais rentavel. Por isso, e saudando a entrada de suecos e finlandeses na NATO, ele ja tratou de anunciar que podem estar tranquilos, porque nos planos dos Estados Unidos e da NATO passa a estar a militarizacao em forga do Baltico. Foi a melhor resposta que encontrou a reacgao moderada de Putin, dizendo que nada de substancial se alterava desde que, justamente, o Baltico no se transformasse num novo territério de armas apontadas a Russia. Eu sei, tudo isto sao pormenores. Tudo isto é chato, tudo isto obriga a pensar, tudo isto é triste. Slavia Ucrania!, e nao se pensa mais no assunto. Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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