Você está na página 1de 14

OLAUDAH EQUIANO E A DUPLA CONSCIÊNCIA NO ATLÂNTICO NEGRO

RAFAEL ANTUNES DO CANTO


UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
rafael_docanto@hotmail.com

Durante o período que compreende os séculos XV à XIX milhares de homens


cruzaram o Atlântico trabalhando nas embarcações que transformaram para sempre o
mundo como era conhecido. Homens de todas as cores, classes sociais, herdeiros das
mais diversas culturas que se possa imaginar, em algum momento tornaram-se
“companheiros de bordo” 1 durante esse período que gestou o que nomeamos na história
de Modernidade. É claro, nem todos esses sujeitos vieram a bordo das embarcações a
trabalho. Grande parte deles apenas subiu e desceu em algum momento das caravelas,
naus, bergantins, chalupas e briques apenas como passageiro 2 . Mas, essas máquinas
extraordinárias que cruzavam o Atlântico e que durante muitos séculos mantiveram 1
praticamente a mesma forma de navegar – a partir das velas e dos ventos – tinham de
ser orquestradas, e quem o fazia era um grande número de trabalhadores e entre eles,
muitos escravos ou ex escravos. O que buscamos encontrar a partir dessa narrativa que
utilizamos como fio condutor é o cotidiano desses homens, que além de lutarem
diariamente contra as forças da natureza, foram obrigados a lutar também contra a
discriminação e o racismo e que apesar disso encontraram nessa faina uma forma de
liberdade que ao que parece, apesar de brutal propiciava um campo de possibilidades
imenso em se tratando de chances de tornar-se livre ou de sobreviver, em relação à
escravidão das Plantations, do novo mundo 3 . Aliado a isso encontramos no convés

1
Companheiros de bordo é um conceito utilizado na história marítima para designar aqueles homens que
trabalham juntos nas embarcações, convivem quase que tempo integral e que aos poucos vão fazendo
parte um da vida do outro. Tem sido bastante utilizado por Marcus Rediker e é peça chave no
entendimento da vida de Olaudah Equiano, autor da fonte principal utilizada nessa pesquisa.
2
Citamos aqui diversos tipos de embarcações que no período em questão eram utilizadas mais ou menos
de acordo com a carga a ser transportada e a distância a ser percorrida.
3
A ideia de um Campo de Possibilidades, propiciado pela vida no mar buscamos nos estudos de
Alessandro Portelli. O autor que não é historiador mas que trabalha com narrativas de ex escravos e com
literatura Afro americana utiliza desse conceito que a nosso ver é uma importante ferramenta para buscar
entender o porque de a vida embarcado ser uma válvula de escape para os escravizados. Além disso,
dentro dessa perspectiva Portelli nos faz refletir sobre como essa experiência como a de Gustavus Vassa
dessas embarcações a em seus porões o espaço onde diversas culturas similares ou
completamente díspares foram obrigadas a conviver e sobreviver juntas, dependendo
muitas vezes do conhecimento de uma, de outra ou mesmo de todas. Nesse contexto
procuramos ampliar o conceito de cultura além dos limites ligados à língua, religião,
formas de relacionamento. Procuramos acrescentar a isso o cotidiano de um espaço
confinado onde homens, em grande medida, eram obrigados a sobreviver conciliando os
seus mais diversos racismos e experiências4.
Se buscarmos enquadrar esse trabalho em uma linha de pesquisa histórica seria
certamente a da História Social. E dentro dessa, a História Social dos trabalhadores do
mar, ou mais ainda, dos escravos ou ex escravos trabalhadores do mar. Sendo assim,
esse trabalho busca de certa maneira contar a partir de uma história, uma
experimentação narrativa, a experiência de vida que poderia ser a de muitos outros
homens do período, mas que foi registrada apenas por um ou dois homens. A fonte
principal que utilizamos nesse trabalho foi à autobiografia de Olaudah Equiano, africano
escravizado aos onze anos de idade, na região que compreende a atual Nigéria e que ao
2
longo de sua vida, trabalhando como marinheiro comprou sua liberdade, navegou por
diversos lugares trabalhando como marinheiro livre. Equiano ou Gustavus, seu nome
europeu casou em Londres e participou ativamente do movimento abolicionista na
Inglaterra, deixou um texto escrito em inglês relatando sua vida desde o sequestro na
África até a carta que enviou a Rainha pedindo a abolição da escravatura.
A experiência embarcada desse africano pelos diversos portos do Atlântico, do
Mediterrâneo, sua participação na Guerra dos Sete Anos, na primeira expedição ao Polo
Norte, na formação do que se tornaria Serra Leoa poderia facilmente ser incorporada ao
cânone de literaturas de viagens do período, ao lado de Humboldt ou Darwin. Não fosse
por ele ter sido escravo e vivido a narrado as agruras a que um marinheiro ou viajante
escravo e posteriormente ex escravo esteve sujeito nesse período.
Equiano nos apresenta, em grande medida, as Zonas de Contato de que nos fala
Mary Louise Pratt, aonde os diversos sujeitos de uma centena de culturas diferentes

possa ter sido a de diversos outros escravos, mas no entanto como não existem muitos relatos escritos,
sendo assim ela se torna uma experiência social partilhada por imenso grupo.
4
Em se tratando do conceito de cultura, buscamos a conceituação utilizada por Jaime Rodrigues em seu
artigo Cultura Marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil (secs.XVIII – XIX). O
autor busca ampliar a ideia de cultura adicionando os elementos constitutivos do dia-a-dia, do cotidiano
para demonstrar a particularidade desse grupo de indivíduos em especial.
iriam se encontrar e trocar seus conhecimentos 5 . Nos mostra o mundo da dupla
consciência de Paul Gilroy, onde um homem acaba por ter dois nomes, um africano de
batismo, Olaudah Equiano e outro europeu, Gustavus Vassa, vivendo ao mesmo tempo
dois mundos, uma dupla consciência. Olaudah aprende a viver esses dois mundos e se
destaca como marinheiro nas embarcações pela curiosidade em aprender mais e mais
para poder se tornar livre e seguir a vida sendo dono de seu destino6.
Analisando a história de vida de Gustavus Vassa, um dos temas que nos parece
mais importante a ser estudado acerca das discussões historiográficas diz respeito à
questão dos limites impostos pelas estruturas a as limitações dos determinados sujeitos
em certos momentos históricos. O autor que nasce livre em África passa grande parte
da vida escravizado e volta à situação de indivíduo livre sofre as pressões das estruturas
a que está sujeito, a que seu tempo histórico lhe impõe, nos fazendo refletir acerca
desses limites. De acordo com Perry Anderson essas barreiras são maleáveis ou não
dependo mais do que tudo, do momento histórico em que estão sendo pressionadas.
Equiano vive na África com liberdade, o Atlântico, a América e a Europa como escravo
3
e depois como homem livre em um período histórico onde o tráfico internacional de
escravos nunca deixa de existir7.

5
O trabalho de Mary Louise Pratt busca analisar exatamente os espaços onde diversos sujeitos de culturas
diversas estão expostos no período que pretendemos analisar. A autora utiliza como textos de referência
os diários de viagem de diversos viajantes conhecidos no continente americano e africano. Entre os
viajantes estão Alexander Von Humboldt, Felipe Guaman Poma de Ayala, Mungo Park, David
Livingstone, John Speke e outros. Pratt analisa como se dá o contato entre os europeus e os diversos
povos de uma perspectiva diversa, que consideramos bastante produtiva em comparativa com a visão que
Equiano vai apresentando durante sua narrativa.
66
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. O livro a as reflexões do autor
foram fundamentais na construção e reflexão do que se pretendia nesse trabalho. Pensar o Atlântico e as
embarcações como meios de transmissão de culturas e construção das identidades encaixa perfeitamente
na narrativa de vida de Equiano. Ao mesmo tempo, o autor questiona vigorosamente as ideias de uma
cultura negra seja ela qual for, e problematiza a situação dos Afro Americanos e Anglo Americanos
estejam eles na situação que se encontrem. Gilroy também faz uso de autores africanos, não só para
encontrar um entendimento entre essas culturas e esses saberes, mas para transitar no caminho que leva a
constituições das culturas desde o século XVIII no Atlântico.
7
Dentro das discussões historiográficas a que esse trabalho se propõe essa talvez seja a mais importante.
Sem buscar mitificar os feitos desse sujeito e ao mesmo tempo sem submeter o sujeito completamente
inerte dentro das malhas das forças sociais buscamos encontrar um meio termo onde possa ser possível
refletir sobre o que potencializou a vida de Olaudah e quais foram as estruturas que o limitaram.
Acreditamos que a discussão acerca dos limites entre as estruturas e os sujeitos seja ponto fundamental
para analisar a vida desse homem. Nem os limites podem submeter à vida do sujeito, nem o sujeito é
totalmente capaz de ultrapassar os limites impostos por algumas estruturas em certos momentos
históricos. A partir da vida embarcado de Equiano podemos de alguma forma, enxergar o agente de sua
vida. A estrutura do barco, da vida das gentes do mar permitiu a alguns escravos ascender socialmente e
alguns deles, como Equiano, puderam comprar sua liberdade. Essa mesma estrutura das embarcações,
Os principais trabalhos em relação ao estudo da Autobiografia de Equiano estão
focadas nos núcleos de estudos de narrativas de ex escravos tanto na América do Norte,
quanto na Inglaterra. Mais aprofundados nas questões da literatura do que propriamente
a história. Entretanto, em 2009 foi publicada uma obra de fôlego buscando o contexto
histórico a respeito da ligação entre Equiano e as comunidades Igbo da Nígeria. Esse
trabalho foi organizado por um conhecido historiador Chima Korieh e os textos buscam
conectar a obra de Olaudah com a história dessas comunidades. São análises bastante
profundas e atualizadas em relação à forma de analisar o continente africano8.
Existem em torno de setenta relatos similares ao de Equiano já catalogados e
muitos outros que ainda necessitam estudos. Nesses dois espaços acadêmicos o da
história e o da literatura afro americana as pesquisas acerca desse modelo de narrativa já
possuem um tipo de análise bastante aprimorada em se tratando de alguns temas
recorrentes nesses textos. Desde a construção da identidade do narrador até os
acontecimentos durante suas jornadas são formas bastante similares e seguem, em
grande maioria, um objetivo a que se propunham no período em que foram produzidas,
4
a abolição da escravidão. Além disso, outro ponto crucial que tem sido analisado diz
respeito à religiosidade desses sujeitos. Grande parte deles desconhecia a religião cristã
e aos poucos foram se evangelizando a ponto de, como no caso de Gustavus, querer
tornar-se pregador9.
Utilizar esse tipo de narrativa como fonte para o foco que nos propomos nesse
trabalho enriquece em muito o mesmo, pois a busca pelo cotidiano dos homens do mar
não era um dos objetivos da escrita quando as narrativas afro-americanas foram
produzidas. Mas é interessante notar que como as embarcações eram os grandes meios

rígida e brutal, de certa maneira foi uma brecha encontrada por alguns sujeitos para se tornarem donos de
sua vida em um mundo onde isso lhes era negado. Contudo, através dos textos dos autores citados,
podemos refletir o quanto esses limites podiam ser estendidos e a quanto algumas estruturas aprisionavam
mais ainda determinados indivíduos.
8
Essa tem sido umas das grandes questões em relação aos estudos africanos atuais. O continente africano
é imenso, tem mais de cinquenta países, uma centena de etnias e diversas línguas. Não há como estudar
profundamente a “África”. O que se pode marginalmente é estudar uma parte da África, ou um grupo,
uma região. Os livros que tratam do assunto no Brasil, acabam por sintetizar, muitas vezes, aquilo que
não pode ser sintetizado. É preciso que se busque essas distinção entre as diversas Áfricas. Dentro dessa
perspectiva procuramos utilizar pesquisadores que tem se sobressaído nessa questão, principalmente em
relação ao estudo das comunidades Igbo, de onde Equiano foi sequestrado. Além de Chima Korieh outro
pesquisador utilizado foi Victor Uchendu.
9
O campo de estudos das literaturas afro americanas ou narrativas escravas é bastante profícuo. Duas são
as obras que pudemos analisar e que apresentam de forma bem importante o tema: African, American,
autobiography e The Slave’s Narrative.
de locomoção daquele período, alguns desses autores não fogem a regra e acabam por
vincular-se a essas “zonas de contato” seja trabalhando nelas ou mesmo utilizando-as
como veículo, de comercio ou mesmo de fuga. Como nos casos de Frederick Douglas,
Olaudah Equiano, Mahommad Baquaqua ou Rufino.
Dos dez capítulos da obra, os dois primeiros são destinados a descrever sua vida
e sua comunidade na África antes de ser sequestrado. A importância desse relato em
relação à história da África é incontestável. Primeiro, pois diversos africanistas, como
John Thornton consideram o relato de Equiano a descrição primeira das comunidades
Igbo antes do contato com os europeus. Além disso, seu texto relata diversos elementos
da cultura da sua região que de certa forma podem compor, junto a outros relatos a
realidade de uma África, que apesar de já ter contato com os europeus a mais de
duzentos anos ainda continuava quase intocada, visto que o autor nunca tinha visto um
homem branco. Nessa linha de pensamento é que hoje caminham os estudos acerca do
continente africano. Desmistificando a ideia de que os povos africanos foram simples
vitimas dos estrangeiros. As sociedades africanas foram agentes fundamentais na
5
história de seu continente e devem aos olhos da história, participar da agência de seu
passado10.
Podemos dividir em dois pontos distintos a vida de Equiano a que nos propomos
estudar. Um primeiro ponto é a etapa de vida que consideramos ser a mais rica da vida
desse africano, sua vida como marinheiro. Desde os primeiros momentos, quando foi
embarcado a força na costa ocidental do continente africano e imaginava que seria
engolido por aquele imenso barco de madeira que possuía entranhas, onde foi
apresentado aos instrumentos de navegação, que mais pareciam “mágicos”, ainda como
escravo. Vivendo, depois disso, as diversas relações com seus companheiros de bordo
como grumete ou ajudante nas embarcações onde esteve sempre acompanhando seus
donos, fossem eles capitães, tenentes de embarcações de comercio ou buques de guerra.
Nesse período vivencia batalhas navais e transita por embarcações que acabaram
tornando-se famosas por suas participações na Guerra dos Sete anos, entre França e
Inglaterra. Conhece de perto a morte e comandantes que iriam definir o curso do
conflito. Olaudah pertence a um Tenente e dessa forma pode viver a bordo com o

10
Para pensar essa questão o trabalho que mais consideramos pertinenente é MBEMBE, Archille. As
formas africanas de Auto inscrição. Revista de estudos Afro-asiáticos, ano 23, nº1,2001, p.171-209.
mesmo. É provável que grande parte dos oficiais tivesse permissão para possuir um ou
mais escravos e que esses os acompanhassem a bordo. Posteriormente, Gustavus passa a
entender como funcionam as embarcações e fazer seus pequenos comércios angariando
fundos para comprar sua liberdade. Ao longo desse período vai aprendendo a conhecer
as diferentes faces da escravidão ao longo do Atlântico, onde um negro escravo tem
mais proteção diante da lei do que um negro livre. Aqui, Gustavus já navegou da África
para a América, foi a Europa, conheceu Londres, cidade por que se apaixona, vai ao
Canadá11 e transita por diversas ilhas das Índias Ocidentais. Mas é em 1765 quando
compra sua liberdade por volta de seus 20 anos que se pode dizer que inicia sua jornada
como marinheiro agora livre. Depois de um período inicial trabalhando para seu antigo
dono o Sr. King, onde passa por um naufrágio, Equiano decide retornar a Inglaterra e
passa a trabalhar como Camareiro, embarcando para onde desejar. Nessa altura da vida
Olaudah já conta com uns vinte e cinco anos e desses, mais de dez, embarcado. Conhece
como poucos as rotas que levam as ilhas das índias, sabe falar inglês perfeitamente,
escreve, e sabe rudimentos de aritmética. Em certo momento de doença do capitão e dos
6
outros responsáveis pela navegação da embarcação onde trabalhava é Equiano quem
leva o barco a salvo para seu destino, passando a ser conhecido como o Capitão Negro.
Em sua vida como marinheiro, diversas foram às vezes que Equiano trabalhou em
embarcações que levavam cativos de um porto a outro, detalhe que, ao ler a obra é
possível identificar seu constrangimento. Contudo, Olaudah foi homem de sua época
viveu o mundo que estava a sua disposição. Ser marinheiro era uma porta, um imenso
“campo de possibilidades” que se abrir para sujeitos sem possibilidade alguma, como
eram os escravos. Sempre que se refere a outros escravos, ou seu povo, ou mesmo seus
compatriotas, Olaudah procura mostrar o quanto pôde ser prestativo a essas almas que
não tiveram a mesma sorte que ele. Cabe aqui uma reflexão. Em se tratando do
continente africano no período descrito, não existia qualquer sentimento de unidade,
seja de estados ou mesmo pais. O máximo que existia era uma identificação com o

11
Na realidade o Canadá não existe nesse momento histórico. A região onde Equiano navega é a região
disputada entre Ingleses e Franceses e que posteriormente iria se tornar o país que conhecemos por
Canadá. Região essa, que ainda hoje possui as duas línguas como línguas oficiais, pois em algumas
províncias, como são chamados os estados do país a língua francesa se impôs, apesar da dominação
inglesa.
grupo, ou mesmo a tribo a que o sujeito pertencia. Equiano é um dos primeiros homens
a escrever, definindo-se como “Africano” 12.
O segundo ponto de imensa importância a ser analisado diz respeito ao momento
onde o autor recorda sua vida na África antes de ser sequestrado. Sua comunidade, sua
família, sua cultura, suas tradições. Equiano foi raptado quando tinha onze anos. Idade
suficiente para recordar-se de grande parte do mundo onde vivia. Suas lembranças são
fundamentais para historiadores entenderem as relações entre os europeus e os africanos
no período. Além disso, o relato de Olaudah, como já dissemos aqui é ponto
constitutivo das heranças dos povos Igbo da atual Nigéria. Seu texto, aliado ao romance
de Chinua Achebe, O mundo se despedaça, são pedras fundamentais das comunidades
dessa região. Equiano tem recordações ricas em relação à alimentação, aos rituais de
casamento, a estrutura familiar e social da comunidade, a forma de agricultura de
comercio. Dentre os elementos de que o autor se recorda, um dos mais importantes diz
respeito à escravidão no continente africano. As formas de escravidão existentes em sua
comunidade (seu pai possuía escravos) e a grande diferença dessas formas e do tráfico
7
internacional de escravos a que o próprio autor vai tornar-se vítima. Essa análise é
muito importante em se tratando de estudos africanos, pois distingue as formas de
submissão a que os estavam sujeitos os africanos dentro de seu continente e o imenso
comercio de seres humanos que se montou entre os séculos XIV e XIX no Atlântico,
fomentado e gerido pelas elites dos três continentes, África, América e Europa. O
estudo da escravidão na áfrica conta com importantes obras e vem sendo cada vez mais
aprofundada. Entre elas estão os trabalhos de Paul Lovejoy e John Thornton, que já foi
citado anteriormente e no caso especifico dos Igbo Victor Uchendu. Esses trabalhos
apontam para um tipo de escravidão onde o sujeito nunca é despido de sua identidade,
fica submetido ao longo da vida toda ou por um tempo determinado ao jugo de um
dono. Essa diferenciação torna-se essencial como já foi dito em relação à coisificação a
que os africanos foram sujeitos quando arrancados de seus espaços embarcados em
navios e enviados a outro continente.

12
De acordo com Elikia M´bokolo a África passa a existir na modernidade a partir do momento em que
alguns homens passam a se identificar como Africanos. Elikia M´bokolo é talvez hoje um dos maiores
pesquisadores do continente africano com a visão de um conhecimento africano partindo da própria
África, que buscamos nesse trabalho. Entre suas principais obras estão o livro África Negra, traduzido
recentemente para o português pela Universidade Federal da Bahia.
Como já citamos aqui, a vida embarcada de Equiano, foi a ponto principal onde
buscamos fazer análises voltadas aos estudos conhecidos por pós coloniais, tentando, da
melhor forma possível, não aprisionar a vida tão rica desse sujeito, a seu período como
escravizado. É claro que é impensável aos olhos de um historiador analisar a obra de
Olaudah sem refletir sobre a escravidão. Contudo, queremos mostrar, como outros
trabalhos veem buscando, que existia uma vida dentro da própria escravidão, que alguns
sujeitos puderam, apesar da brutalidade desse sistema superar algumas estruturas, e que
o mundo das Gentes do mar, com suas distintas regras, e uma imensa mobilidade tanto
geográfica quanto estrutural possibilitou um espaço de ascensão aos homens que
buscavam uma melhor vida, nesse caso os escravos.
Dentre os conceitos operados por pesquisadores da área da história marítima,
como Marcus Rediker, um dos que mais chama a atenção é o de “companheiros de
bordo”. Homens privados de uma casa, distantes da família por longos períodos
labutando incessantemente contra as forças da natureza e contra a brutalidade dos
capitães, acuados por doenças muitas vezes desconhecidas acabavam por tornarem-se
8
amigos, irmãos, onde muitas vezes sua vida dependia dos outros13.
De acordo com João Jose Reis em O Alufá Rufino, onde a pesquisa se foca na
vida desse indivíduo que labuta como cozinheiro em um barco negreiro, Rediker diz que
os cozinheiros não faziam parte da tripulação, pois sua faina diária era solitária e
distinta dos outros homens do mar. Contudo, concordamos aqui com os autores do
Alufá, que sim, o cozinheiro era peça chave em um mundo onde a comida e água de
qualidade eram pontos determinantes na sobrevivência do sujeito e como nesse caso em
especial, da carga da embarcação. Ao longo da narrativa de Olaudah diversas são as
experiências que esse marinheiro esteve sujeito em relação ao companheirismo de
bordo. Nem sempre existia, ou mesmo, nem sempre era positivo. Muitas vezes
marinheiros mais experientes aproveitavam-se de sua situação como novato ou como
negro para trapacear, roubar ou mesmo coisas piores. Como quando Olaudah paga a um
marinheiro para conseguir um bote para sua fuga e esse desaparece com seu dinheiro.

13
Dentre os pesquisadores que utilizamos para refletir sobre história marítima e as gentes do mar estão:
Marcus Rediker, Peter Linebaught, Jaime Rodrigue, Luis Geraldo da Silva. É importante pensar que
alguns desses pesquisadores transitam entre a história da escravidão e o que denominamos história das
Gentes do mar ou marítima. Contudo é importante ver o quanto esses dois temas que aparentemente não
são normalmente conectados estão quase que indissociáveis no contexto do que Paul Gilroy vai nomear
de Atlântico Negro.
Entretanto, após esse incidente Equiano relata que os outros marinheiros ficaram com
raiva desse homem que o havia trapaceado. Na grande maioria das vezes essa
camaradagem foi à “tábua de salvação” do autor. Ou muitas vezes foi o que fez o
mesmo expor-se a situações de risco por outros companheiros, o que não seria
necessário.
Desde pesquisas históricas acerca da vida no mar no período da idade média ou
mesmo dos descobrimentos que a questão dos marinheiros como um grupo social coeso
e com fortes tendências anárquicas vem sendo estudado. Peter Linebaught em seu
famoso ensaio, Todas as montanhas atlânticas estremeceram, apresentou a importância
desses homens traçando seu desenvolvimento social desde a Revolução Inglesa até o
período em questão.
A condição de escravos dentro da embarcação submeteu esses sujeitos a dois
tipos de violência. Primeiro, mesmo como marinheiros por mais que fossem ótimos no
que faziam, eram sempre os que menos ganhavam, além disso, podiam sofrer penas
mais pesadas que os marinheiros livres, como nos diz Jaime Rodrigues. Em segundo
9
lugar, muitos foram obrigados, como no caso de Equiano, e Rufino, a trabalharem em
embarcações que traficavam escravos, os tumbeiros, ou navios negreiros. Não temos o
relato de Rufino quanto a sua posição sobre o assunto, mas Equiano foi categórico, em
diversas passagens de sua obra. Falando da brutalidade com que os escravos eram
sujeitos nas embarcações. Sua descrição dos primeiros momentos aprisionado no navio
negreiro, junto à descrição de Mahommed Baquaqua é de pavor, medo e desejo de
morrer.
As embarcações eram grandes centros cosmopolitas, onde sujeitos de todas as
nações se mesclavam. No período estudado algumas nações ainda tinham sua condição
bastante questionada ou posta à prova. Conforme Jaime Rodrigues, os marinheiros se
comunicavam por duas línguas principais, o inglês Pidgin e o Português Criollo. Ambas
eram línguas híbridas faladas nas embarcações e nos portos de todo Atlântico. Ao que
se sabe, poucas semanas embarcadas como trabalhador permitiam ao sujeito entender
um pouco do que os marinheiros falavam. O que para os outros passageiros era
completamente ininteligível. Além do mais os dialetos falados na costa africana das
diversas culturas que foram embarcadas como escravos incorporaram-se a essas línguas
fazendo com que fosse bastante interessante ter escravos ou ex escravos no staff de
marinheiros.
Uma das questões que mais nos chamou a atenção em relação ao texto de
Olaudah e de sua trajetória de vida, diz respeito ao campo de possibilidades que a vida
como marinheiro podia proporcionar ao escravo ou ex escravo. Em se tratando de
estudos no Brasil o trabalho do professor Luis Geraldo da Silva apresenta muito bem a
situação desses homens em relação à faina marítima no nordeste brasileiro. Em Recife,
onde as pequenas embarcações eram uma grande fonte de renda, os negros eram usados
como escravos de ganho. Além disso, muitos deles, posteriormente foram incorporando-
se a essa tradição marítima, mesclando suas culturas com a dos índios e dos europeus
dando inicio a uma linhagem de pescadores, construtores de barco, taifeiros e todas as
diversas profissões que são mescladas a as “Gentes do Mar” 14.
Além de Luis Geraldo, Jaime Rodrigues também contribui com uma série de
pesquisas e artigos, além de sua tese de doutoramento mostrando o quanto a cultura
marítima do atlântico foi permeada por escravos, ex escravos, negros forros ou livres15.
10
Aparentemente a história da navegação no atlântico acaba por apresentar apenas
os europeus como seus sujeitos constitutivos desse mundo. Entretanto, o convés das
embarcações foi vivenciado pelas mais diversas culturas, entre elas as africanas.
O período que nos propomos analisar nessa dissertação gira em torno diz do
período de vida de Equiano, mais ou menos entre 1745 e 1790. Entretanto, como a vida
das Gentes do mar sendo analisada por diversos pesquisadores em épocas distintas,
muitas vezes vamos nos referir a períodos que ficam fora desse escopo. Contudo,
acreditamos que entre 1600 e 1850 por mais longo que pareça esse período, a vida
daqueles que tinham como faina a lide no mar, seja de longo curso ou mesmo de
cabotagem não se modificou tanto. Principalmente em virtude de dois pontos
fundamentais. Primeiro, diz respeito às embarcações. Essas se moviam da mesma forma
durante todo período, por meio da força dos ventos e da labuta dos braços humanos.

14
São dois os trabalhos do professor Luiz Geraldo que utilizamos como base para o entendimento dessa
questão em relação ao Brasil. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica das gentes do mar. Secs.
(XVII ao XIX), e Os pescadores na história do Brasil.
15
Do professor Jaime Rodrigues são inúmeros os trabalhos utilizados, citamos aqui apenas alguns: De
costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro
(1780-1860), Cultura marítima: marinheiros e escravos no tráfico negreiro para o Brasil
(sécs. XVIII E XIX), Para uma história da experiência africana no mundo do trabalho atlântico (séculos
XVIII e XIX) e Marinheiros forros e escravos em Portugal e na América portuguesa (C.1760- c.1825).
Além disso, eram fabricadas de madeira, o que permitia uma certa modificação com as
questões de velocidade e tonelagem, mas que não modificava em nada a qualidade de
vida de seus tripulantes. O segundo ponto diz respeito às condições de vida dos
embarcados, a questão das doenças, da má alimentação, da violência nos castigos.
Praticamente, todos esses elementos adentraram o século XX juntos com as tripulações,
mesmo essa afirmação parecendo exagero. Basta lembrar a Revolta da Armada no
Brasil e da Revolta do Encouraçado Potenkim no Império Russo. Castigos brutais e
péssimas condições de alimentação e higiene como ponto de tensão entre as tripulações
e os comandantes. Sendo assim, nos permitimos transitar por um espaço maior em
relação às bibliografias, visto que a vida dos homens do mar não se modificou muito ao
longo de um grande período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro da proposta do encontro, seu tema principal, e o simpósio em questão
História das sociedades africanas: fontes, temas e perspectivas de estudo, acreditamos
11
ser de imensa importância, no mínimo, o fato de apresentar a fonte com a qual estamos
trabalhando, Narracion de la vida de Olaudah Equiano, el Africano visto que essa não
possui tradução para o português, e ao que sabemos não existe nenhum trabalho
utilizando diretamente o texto de Equiano no Brasil. Somente isso, acreditamos, já seria
de grande importância para que futuros pesquisadores pudessem adentrar ao mundo dos
Igbos, através do texto do autor. Quanto a nossa perspectiva de buscar ver o autor como
um marinheiro do período e “navegar” pelo mundo das Gentes do mar por meio de um
ex escravo pensamos ser uma forma distinta de enxergar a África e os africanos, um dos
objetivos a que nos propomos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes
EQUIANO, Olaudah. Narracion de la vida de Olaudah Equiano, El Africano. Madrid;
Miraguano ediciones, 1999.
EQUIANO, Olaudah. The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, Or
Gustavus Vassa, The African.1789. Disponível em: http://www.gutenberg.org. Acesso
em: 08/11/2012.
EQUIANO, Olaudah. The life of Olaudah Equiano. The interesting narrative of the life
of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, the african. Written by Himself. Edited by
Joanna Brooks, U.S.A. , R.R. Donnelley & Sons Company, 2004.

Bibliografia

ACHEBE, Chinua. O mundo se despedaça. São Paulo; Cia das Letras, 2009.
ANDERSON, Perry. Estrutura e sujeito, in. A crise da crise do Marxismo. São Paulo,
Brasiliense, 1994.
ANDREWS, Willian L. African American Autobiography: A colection of critical
Essays. New Jersey; Prentice – Hall. Inc, 1993.
BAQUAQUA, Mahommad Gardo. Biografia e narrativa do ex-escravo afro-brasileiro /
Mahommad Gardo Baquaqua; tradução Robert Krueger – Brasilia: Editora da
Universidade de Brasilia, 1997.
BYRD, Alexander X. Captives and Voyagers: Black migrants across the eighteenth –
century, British Atlantic world. Louisiana; Thomson-Shore, Inc, 2008.
CARRETA, Vincent. Olaudah Equiano: The interesting narrative and Other Writings.
New York; Penguin books, 1995. 12
CLIFFORD, James. A Experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX.
Rio de Janeiro: UFRJ.
DAVIS, Charles T. e GATES, Henry Louis Jr.. The Slave’s Narrative. New York;
Oxford University press, 1985.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo; Editora 34 Ltda, 2012.
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro : FGV,
2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte :
Editora UFMG, 2003.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo; Cia das Letras, 2013.
____________ e RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro; Nova
Fronteira, 2012.
KORIEH, Chima J. Olaudah Equiano and the Igbo World. Trenton NJ; Africa World
Press, Inc, 2009.
LLOYD, Christopher. As estruturas da história. Rio de Janeiro, Zahar, 1995.
LOVEJOY, Paul and LAW, Robin. The Biography of Mahommad Baquaqua: his
passage from slavery to freedom in África and América. Princeton, Marcus Weiner
Publishers, 2003.
LOVEJOY, Paul. A escravidão na África:uma história e suas transformações. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2002.
LINEBAUGH, Peter. REDIKER, Marcus. A Hidra de muitas Cabeças: marinheiros,
escravos e plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo; Cia das
Letras, 2008.
_______________. Todas as montanhas atlânticas estremeceram. Revista Brasileira de
História – ANPUH, Ano 3 Nº 6.
MACEDO, Jose Rivair. História da África. São Paulo, Contexto, 2013.
MBEMBE, Archille. As formas africanas de Auto-inscrição. Revista de estudos Afro-
asiáticos, ano 23, nº1,2001, pp.171-209.
M`BOKOLO, Elikia. África Negra: História e civilizações tomo I (até o séc. XVIII).
Salvador; EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2009.
____________. África Negra: História e civilizações tomo II (do século XIX aos nossos
dias. Lisboa; Edições Colibri, 2011.
OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. De Manoel Congo a Manoel de Paula. Porto Alegre,
Edições EST, 2006.
PETERSEN, Silvia Regina Ferraz. Introdução ao estudo da História: temas e textos.
Porto Alegre; Edição do Autor, 2013.
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: Narração, interpretação e significado
nas memórias e nas fontes orais. Rio de Janeiro, Revista Tempo, vol. 1 nº2, 1996.
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: Relatos de Viagem e Transculturação.
13
Bauru, SP: EDUSC, 1999.
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: Uma história humana. São Paulo, Cia das
Letras, 2011.
REIS, João Jose, Flavio dos Santos Gomes, Marcus J.M. de Carvalho . O Alufá Rufino:
tráfico, escravidão e Liberdade no Atlântico Negro. São Paulo, Cia das Letras, 2010.
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do
tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo, Cia das Letras,
2005.
SANCHES, Manuela Ribeiro (org). Deslocalizar a Europa: antropologia, arte, literatura
e história na pós-colonialidade. Lisboa: Edições cotovia, 2005.
SANTOS, Flavio Gonçalves dos. Portos e cidades: movimentos portuários, Atlântico e
diáspora africana. Ilhéus; Editus, 2011.
SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa, e o rito: Uma etnografia histórica sobre as
gentes do mar (sécs. XVII ao XIX). Campinas, SP: Papirus, 2001.
_________. Os pescadores na história do Brasil. Recife; comissão pastoral dos
pescadores, 1988.
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400 –
1800. Rio de Janeiro; Elsevier, 2004.
XAVIER, Regina. Biografando outros sujeitos, valorizando outra história: Estudos
sobre a experiência dos escravos. In. SCHMIDT. Benito Bisso. O biográfico:
perspectivas interdiciplinares. Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2000.

14

Você também pode gostar