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A poesia lírica (parte 1)
André Alonso
Meta da aula
Apresentar uma visão geral da lírica antiga.
objetivos
CARACTERÍSTICAS DA LÍRICA
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[1] Camões (trecho do soneto no 5)
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Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
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Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
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O nascimento do “eu” poético
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A questão do “eu” poético na Grécia arcaica não é simples. A noção
de individualidade dos gregos era bem diferente da nossa. A sociedade
grega era pesadamente comunitária. A nossa, ao contrário, é extremamente
individualista, o que seria impensável para um grego do período arcai-
co. Para um grego, a projeção do “eu” dava-se no âmbito comunitário,
para nós, em oposição a ele. É, entretanto, inegável, que a lírica apresenta
algo que não encontramos em Homero e, em certa medida, Hesíodo:
o “eu”. Diferente de Homero, Hesíodo coloca-se em seus poemas, o
seu “eu”, com elementos de sua história pessoal, está presente em sua
obra. Mas é um “eu” um tanto impessoal, objetivado. Hesíodo apresenta
detalhes de sua vida, mas não externa seus sentimentos com a naturali-
dade e a força que veremos na lírica. O “eu” de Hesíodo é mencionado
em seus poemas, mas estes não o deixam aparecer: são poemas didáticos,
falando dos deuses e dando conselhos aos homens. Na lírica, o “eu”
encontrará definitivamente seu espaço. Vemos o poeta colocar seus
sentimentos em exposição, desnudar-se diante de sua audiência, falar de
suas paixões, medos, ódios. O que vimos nos trechos de poetas nossos
de língua portuguesa, as diversas diferenças, isso já encontrávamos na
lírica antiga. Nela o “eu” encontra sua porta de entrada para a literatura
ocidental. E dela não sairá mais:
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As ocasiões para composição e apresentação de poesia eram bem
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variadas na cultura grega arcaica. Uma primeira modalidade de poesia
a desenvolver-se é, sem dúvida, de cunho popular. São cantos diversos,
anônimos, sobre os mais variados temas ligados aos diferentes âmbitos
do quotidiano: trabalhos, núpcias, jogos infantis etc. Aqui estamos em
um ambiente familiar ou doméstico, do qual tomam parte os membros
de uma família – incluídos os empregados –, que cantavam canções
populares na realização de suas tarefas, durante brincadeiras ou festas.
As canções podem, ainda, inserir-se no âmbito de uma festa popular,
como é o caso do exemplo seguinte:
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em louvor a alguém, homem ou deus, em comemoração a um evento ou
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em celebração a uma vitória militar ou esportiva, para que sejam canta-
dos – muitas vezes por um coro – diante de um vasto público na cidade.
Todos os três âmbitos de desenvolvimento da poesia lírica – domés-
tico, social (com amigos e conhecidos) e civil (na cidade) – apontam para
um elemento comum, que é o coletivo. A poesia desenvolve-se não soli-
tariamente, mas em grupo – maior ou menor, conforme a circunstância.
Ela tem um caráter social, aglutinador, comunitário, e é um elemento
de criação e de fortalecimento de laços e de relações.
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Jastrow
Figura 10.3: Jovem de pé, tocando o aulós (flauta dupla) em um banquete (século V a.C.).
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Banquet_Euaion_Louvre_G467.jpg
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Você já se perguntou de onde vem o nome de um dos mais famosos instrumentos musicais de nosso
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tempo, a guitarra? Talvez você fique surpreso ao saber que vem da Grécia antiga, mais especifica-
mente de um instrumento de cordas chamado κιθάρα (kithára). Há um outro instrumento de cordas
que nós chamamos “cítara” e cujo nome é claramente derivado da palavra grega. Mas o nome
“guitarra” vem da mesma palavra. Compare: kithára e guitarra. A palavra “guitarra”, para nós,
indica um instrumento de cordas ligado a um amplificador, usado em diversos gêneros musicais, mas
famosa, seguramente, pelo seu uso no rock. Originalmente, guitarra é sinônimo de violão, o que
podemos ver em outras línguas, nas quais o violão é chamado de guitar (inglês), guitare (francês),
chitarra (italiano), Gitarre (alemão). Em grego moderno, “violão” diz-se… κιθάρα (kithára). O que nós
chamamos normalmente de “guitarra” é a “guitarra elétrica”, razão pela qual, em outras línguas,
a guitarra está frequentemente qualificada pelo termo “elétrica” (electric guitar, em inglês; guita-
re électrique, em francês etc.). Repare ainda que chamamos quem toca guitarra de “guitarrista”.
E quem toca cítara? Citarista ou citaredo. Por que será que não temos “guitarredo”?
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ATIVIDADE
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RESPOSTA COMENTADA
1. As possibilidades de resposta são variadas. Há, no entanto, alguns
elementos que você deve abordar. Mostre a distinção que há entre
a épica (Homero), a poesia didática (Hesíodo) e a lírica, no que
respeita ao tratamento do “eu”. É importante você insistir no fato de
que lírica, épica e didática são contemporâneas, que não há uma
anterioridade temporal, e que a lírica se destaca das outras duas,
entre outras coisas, pelo tratamento dado ao “eu”. Talvez você possa
introduzir a distinção entre o “eu” do poeta e o “eu” como recurso
literário, mostrando que nem sempre eles são identificáveis.
Uma possibilidade interessante seria questionar a identificação
automática entre “subjetivismo” e “eu”. Você pode argumentar, por
exemplo, que em Homero, ainda que não haja a presença do “eu”,
nem por isso deixa de haver um subjetivismo, pois a visão apresen-
tada nos poemas homéricos é a visão do autor, é um recorte que
ele faz da realidade e que está, portanto, impregnado de elementos
subjetivos. Procure mostrar que subjetivismo é um conceito que
não se reduz à expressão do “eu”, mas que pode ser muito mais
vasto e sutil.
2. Não há uma temática que seja específica da lírica. A especificida-
de temática da lírica é tratar de qualquer tema. Enquanto a épica
trata dos feitos heroicos que se passam, normalmente, em bata-
lhas, a lírica aborda qualquer tema: guerra, amor, ódio, juventude,
velhice, vinho, sexo, viagens, mitos etc. Mesmo quando trata de um
tema como a guerra, a lírica claramente se distingue da épica, por
abordá-lo com tons diferentes, dependendo do poeta. Um mesmo
tema pode ser abordado sob visões completamente opostas em
dois poetas líricos.
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faz valer sua excelência. Mas a guerra não é um tema exclusivo da poesia
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épica. Na lírica, encontramos poetas que dela tratam, com abordagens
bem distintas e mesmo opostas. Vejamos, inicialmente, dois poemas da
lírica grega, um de Calino e outro de Tirteu (ambos do século VII a.C.),
seguidos de um trecho de outro poema deste último:
[1] Calino
[2] Tirteu
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e, depois de gozar muitas delícias, descerá ao Hades.
Quando envelhecer, distinguem-no os cidadãos, e ninguém
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(40) quererá prejudicá-lo, faltando ao respeito ou à justiça.
Todos à uma, novos, ou da sua idade, ou mais velhos,
na sua terra lhe cedem o lugar.
E agora, que todos os homens tentem chegar aos píncaros
desta excelência, sem desviar seu ânimo da guerra
(fr. 9 Diehl, vv. 15-8; 23-44, tradução de M. H. R. Pereira).
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uma nova característica do herói: seu valor não mais como indivíduo,
mas enquanto membro de uma coletividade cujos atos heroicos rever-
tem para a cidade. Os soldados não combatem individualmente, mas
em grupo (Tirteu, texto 2, v. 15: “Ó jovens, permanecei em combate ao
lado uns dos outros”).
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deixa saudades, / não o lamenta o grande nem o pequeno, se algo sofrer”
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(Calino, vv. 16-7); “Será odioso àquele a quem se dirigir, / cedendo à
necessidade e à penúria horrenda, / envergonha a sua estirpe, deturpa
a bela figura, acompanham-no a desonra e a infâmia. / Se, pois, não há
para o vagabundo cuidado algum, / nem respeito pela sua linhagem”
(Tirteu, texto 2, vv. 7-12);
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[1]
“Eu sou o servidor do Senhor dos combates
e conhecedor dos amáveis dons das Musas”
(fr. 1 Diehl, tradução de M. H. R. Pereira).
[2]
“Na minha lança está meu pão amassado, na lança
o vinho ismárico; bebo apoiado na lança”
(fr. 2 Diehl, tradução de M. H. R. Pereira).
[3]
“Algum Saio se ufana agora com o meu escudo, arma excelente,
que deixei ficar, bem contra a vontade, num matagal.
Mas salvei a vida. Que me importa aquele escudo?
Deixá-lo! Hei-de comprar outro que não seja pior”
(frag. 6 Diehls, tradução de M. H. R. Pereira).
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Outra mulher, ao entregar ao filho o escudo e ao exortá-lo, disse:
“ou com ele ou sobre ele” (Plutarco, Apophthegmata Laconica,
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241f, 5-6).
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seja tão bom quanto o que ele abandonou. Se ele não tivesse fugido, ele
estaria morto. Seu escudo teria sido capturado pelo inimigo e ele não
poderia, morto que estava, sequer comprar um novo escudo. O trecho
é marcado por essa consequência cínica: vivo, perdi um escudo, mas
consigo outro; morto, perdi a vida e o escudo. A tradução que citamos
não expressa toda a crueza de Arquíloco ao contrapor escudo-honra a
fuga-vida. Ele dá mostras de um claro desprezo pelo escudo ao dizer
“Deixá-lo”. O original grego é muito mais forte: ἐρρέτω, o que pode ser
mais adequadamente traduzido por “que ele (o escudo) vá para o infer-
no!”. A expressão mostra, com clareza, o desprezo que Arquíloco tem
pelo escudo – “arma excelente” – em comparação com o dom precioso
de sua vida. Um escudo tão bom quanto o perdido pode ser comprado;
a vida, não. E, para poder comprá-lo, é preciso estar vivo.
O escudo, em um primeiro nível, é apenas o objeto material, que
pode ser comprado. Mas é, também, a honra que o poeta-guerreiro
abandona no campo de batalha. A mensagem, então, adquire uma nova
dimensão: é preferível viver desonrado a morrer ou, ainda, fugir para
conservar sua vida não é motivo de desonra, pois só pode estar desonrado
quem está vivo. O poema de Arquíloco coloca, portanto, a vida humana
em uma outra dimensão. A moral homérica colocava certos valores como
superiores à vida. Em Arquíloco, a vida mesma é fundamento desses
valores, pois sem ela estes não existiriam.
O fragmento de Arquíloco vai contra toda a moral homérica.
O poeta louva, por assim dizer, uma atitude antiépica, exalta o anti-
heroísmo, preconiza a covardia. O comportamento apresentado por
Arquíloco – abandonar o escudo – era extremamente desonroso. Era
preferível perder a vida a perder o escudo, como vimos pelos dizeres das
mulheres espartanas citados por Plutarco. Mas o poeta valoriza a vida
acima de tudo. A vida vale mais que o escudo. O escudo não era de má
qualidade: “arma excelente”, diz o poeta. A vida, entretanto, tem um
valor maior: “mas salvei a vida!”.
Temos em nossa cultura uma visão semelhante expressa no ditado
popular “mais vale um covarde vivo do que um herói morto”. Em inglês,
há também um ditado que se aproxima bem da visão de Arquíloco: “He
who fights and runs away, lives to fight another day”, o que poderia ser
livremente traduzido para o português como “Quem combate e foge
velozmente vive para combater novamente”.
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Atividade final
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Atende aos Objetivos 1 e 2
Agora, compare o tratamento dado no poema ao tema da guerra com aquele que
Calino, Tirteu e Arquíloco empregam nos poemas que deles vimos.
RESPOSTA COMENTADA
Não há uma resposta única. Utilize sua sensibilidade e sua criatividade. Apenas a
título de exemplo, as fotografias mencionadas por Cecília poderiam ser relacionadas
aos lamentos mencionados por Calino (vv. 18-9) e Tirteu (texto 3, vv. 27-8). Você
deve utilizar, na medida do possível, conceitos e informações que aprendeu nesta
aula ou em alguma aula anterior.
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