Você está na página 1de 4
68 O CRISTAO SECULARIZADO satide e na forga em todo o vigor; n&o quando estivermos assustados ¢om 0 pecado, mas em nossa agao plenay.* Com. preendéssemos e, sobretudo, levassemos esta mensagem do Deus imanente a nossa vida de cada dia e de toda hora, a existéncia e a atividade humana de hoje teriam outro aspecto, e og mo- vimentos ateus, principalmente os do humanismo sem Deus, ficariam sem suporte. Nao teriam ent@o motivos para se escan- dalizarem com um Deus verdadeiramente transcendente (isto é: que nao faz parte déste mundo, ndo se confunde nem se iden- tifica com 0 universo e que esta acima da criagéio, em soberana independéncia, conforme as definigdes do Vaticano I contra os panteistas, cf. Dz 1782, 1783, 1805). Assim Deus encontraria lugar também na Cidade Secular da qual fala H. Cox. Nem Bonhoeffer teria necessidade de denunciar a constante tentagao de querermos fazer descer 4 cena da natureza e da vida um auténtico deus ex machina. Bem disse alguém que foi o deus ex machina de muitos cristéos que produziu a idéia de uma machina sine deo, de um universo sem Deus. Faziamos intervir Deus quando davamos com lacunas que n&o sabiamos como preencher. Assim, por exemplo, Newton, como acentua Charles Birch, «nao podia determinar as Srbitas exatas dos planétas nos térmos de sua mecanica. Conseqiientemente supunha que Deus intervinha pessoalmente quando éles saiam fora de sua trajetéria. O universo era um relégio automético que no conjunto funcionava bem, mas que podia avariar-se. Era portanto necessdrio que Deus tornasse a acerté-lo»." Eis um tipico deus ex machina. Ele hoje nao mais funciona. Jé nao podemos nem devemos falar assim de Deus. Este Deus hoje declarado morto. Deus nao esta de Preferéncia nos limites, nas deficiéncias, nas criaturas irrealizadas, para tapar buraci las, | ‘Os e remediar defeitos. Deus esta de preferéncia no centro, na saiide, na alegria, na agdo da criatura realizada, N6s que aceitamos e tentamos viver a verdade s6bre Deus, po- demos facilmente sucumbir & tentagdo de falar de Deus de qualquer maneira (nao seria contra o segundo mandamento?). Somos entao forjadores de verdadeiras caricaturas de Deus. E é relati- vamente facil constatar a existéncia de caricaturas de Deus, prin cipalmente na religiosidade popular e nos Conceitos sobre Deus rejeitados pelos fautores do Ateismo ou da Teologia Radical da SP: Bonhoeffer, Resisténcia ¢ Submissdo, Paz ¢ Terra 1968 p. 152. ; TA idéia e 0 texto citado sio de John A, T. Robinson, Pee quisa em térng de Deus, Moraes 1968, 0 livto continee’e uueare” come: Gado com o Honest to God. Vale a pena tomar ott inendc tgs peo cupagdes pastorais de Robinson. I. PERANTE DEUS ONTEM E HOJE 69 morte-de-deus. O Concilio alude a isso quando verifica que emui- tos se representam um Deus de tal modo que aquela fic¢zo, que Ales recusam, de maneira alguma € 0 Deus do Evangelhio»' (OS 190/253). E’ entao facil proclamar que «ésse Deus» morreu ou deve morrer. Assim, para dar alguns exemplos colhidos so- bretudo nos livros da Teologia Radical (da «morte de deus») ou nas obras dos ateus clissicos, se poderia dizer que morreu ou deve morrer: — 0 deus ex machina; — © deus tapa-buracos para ocultar ou completar as fraquezas hu- manas; — 0 deus hipstese de explicagio ou de trabalho; — 0 deus de uma seguranca terrena; — 0 deus que salva dos desenganos ‘da vida; — 0 deus que vela para que as criaturas nunca chore — 0 deus que afasta a miséria desta vida; — 0 deus que resolve nossos problemas; — 0 deus que apaga nossas saudades ocultas; — 0 deus dpio do povo; — 0 deus curandeiro; — 0 deus alienante; — 0 deus comerciante pagador de promessas; — 0 deus eternamente escandalizado com os homens; — 0 deus desmancha-prazeres; — © deus super-homem; — 0 deus tirano, barbudo, sentado sobre as nuvens com carranca de tempestade s6 espreitando 0 momento de apanhar-nos na fraqueza; — 0 deus projecdo das angiistias, das-insegurancas, dos desejos; — © deus solucéo aparente para os problemas que nés mesmos n&o conseguimos resolver; — 0 deus dos mitos; — 0 deus acima das nuvens; — 0 deus da natureza; — 0 deus demiurgo que age no mundo da natureza e suscita o ter- ror sacro; — © deus soberano que tem necessidade de servidio; | = © deus que garante a ordem social e os regimes estabelecidos; — 0 deus seguranca dos bem-pensantes que auxilia as sociedades em seu policiamento; — 0 deus refigio dos pacifistas; = © deus vingador dos inimigos; = 0 deus sustentdculo dos guerreiros; , = © deus nacional ‘que d4 a vitéria aos exércitos; — 0 deus dos burgueses; : — 0 deus idolo mide que os homens levantam para tranqii inde i ; i ento ea necessidade — © deus que satisfaz a inquietagéo do sentimé do folclore; aay ccttnc ana; = 0 deus que deve cobrir as insuficiéncias a pexittaa hua ae —0 deus que depende da ineapacidade do ho vida em sentido pleno; i real- =o deus que deixa ‘este mundo ter uma aparéncia melhor que mente tem; 70 © CRISTAO SECULARIZADO 6 deus que fataliza 0 homem e Ihe tira 0 senso de responsabilidade; 6 deus incapaz de impedir os cataclismos do mundo; = C deus que so se manifesta na limitagio humana da velhice € da doenca; 0 deus adocicado reftigio dos sentimentais; $b deus que constrange e oprime a liberdade do homem e sua plenitude; 6 deus eterno celibatario dos espagos... Com tais e tantos elementos colecionados nao seria dificil escrever um tratado sdbre Deus que O deixasse numa posi¢éo Hidicula, irracional e desprezivel. Afinal, tudo neste mundo pode er ridicularizado, até as coisas ¢ pessoas mais sérias, mais reais e mais fundamentais. Tudo pode ser descrito em forma de re- presentacdes burlescas. E as caricaturas bem feilas geralmente exprimem e acentuam de modo intencionalmente exagerado certos aspectos criticaveis nas pessoas e nos fatos. Mas elas nao retra- tam a realidade. E? apenas um modo humano, picante ¢ impie- doso, de criticar. Ja 0 velho zombador Xenéfanes mofava assim: «Os etiopes fabricam deuses de cabelos prétos e nariz achatado; os trdcios, ao invés, pintam-lhes cabelos ruivos e olhos azuis; @ tivessem maos os animais, soubessem pintar e esculpir, nao ha dtivida de que os cavalos fariam idolos de forma eqilina, e aquéles dos bois ostentariam forma bovina>. Ha, nas caricatu- ras, um fundo de verdade que deve ser considerado com serie~ dade. Devemos, porém, tomar muito cuidado na rejeicéo de um conceito apresentado em forma de caricatura. E ésse cuidado deve ser supremo quando queremos falar do Ser Supremo. Da experiéncia de n4o poucos ateus tedricos sabemos que éles jul- garam poder rejeitar simplesmente a Deus com a recusa suméria de uma caricatura de Deus que éles, talvez, encontraram na religiosidade popular ou mesmo oficial de seu ambiente ou que @les, quicé, até fantasiaram, sem nenhum esfdrgo sério, sincero e honesto de conhecer ou encontrar o Deus sem caricatura. Por isso 0 Concilio convida humanamente os ateus «a refletir com toda a objetividade sdbre o Evangelho de Cristo» (GS 21g/ 208). a Soe ae Possives ou reais caricaturas de nosso conceito sdbre Deus. a vi itlell esioreo de depuracdo do que nao poucos dos que aceitam a Di LeapetE Oh one Nhe ana douttina falaz @ vivem’ sua vide em tie. fata sobre) Dem de modo tio infeliz ee vida religiosa, moral e social revelar a genuina face de Det peop edincosrenteli que, emBtcr ee Deus ¢ da Religizo, antes a escondem ce GS 19¢/254). Por isso o Cardeal-Patriarca Maximo 1V Seish, no, dia, 276 965, podia dizer na Aula Coneiliar que 8 40 bem perto da Igreja quando procuram uma FREI BOAVENTURA KLOPPENBURG, O.F.M. O Cristao Secularizado O Humanismo do Vaticano II editéra VOZES limitada Petropolis RI 1970

Você também pode gostar