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Coisa Julgada Inconstitucional: Avanços e Retrocessos da Relativização da Coisa Julgada positivada no Código de Processo Civil : (análise dos §§12 a 15 do artigo 525 e dos §§ 5o a 8o do artigo 535, do CPC/2015)
Coisa Julgada Inconstitucional: Avanços e Retrocessos da Relativização da Coisa Julgada positivada no Código de Processo Civil : (análise dos §§12 a 15 do artigo 525 e dos §§ 5o a 8o do artigo 535, do CPC/2015)
Coisa Julgada Inconstitucional: Avanços e Retrocessos da Relativização da Coisa Julgada positivada no Código de Processo Civil : (análise dos §§12 a 15 do artigo 525 e dos §§ 5o a 8o do artigo 535, do CPC/2015)
Ebook442 pages5 hours

Coisa Julgada Inconstitucional: Avanços e Retrocessos da Relativização da Coisa Julgada positivada no Código de Processo Civil : (análise dos §§12 a 15 do artigo 525 e dos §§ 5o a 8o do artigo 535, do CPC/2015)

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O estudo da coisa julgada e da mitigação da estabilidade das decisões transitadas em julgado é fascinante. Porém, a abrangência da temática indica ser impossível contemplá-la em sua totalidade. Em vista dessa necessidade de delimitação do objeto de estudo, e por razões de concatenação lógica, optou-se por enfrentar genericamente alguns pontos essenciais que gravitam em torno da coisa julgada. Para contextualizar o tema, indispensável trazer à baila fundamentos históricos dos quais radicam os alicerces que sustentam a coisa julgada. Os aspectos históricos emergem como parte imprescindível do trabalho. Sem eles, é impossível que se reconheça o real papel da coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro.
Fixadas tais premissas, fundamentais para o debate, torna-se possível caminhar rumo à investigação específica das normas insculpidas nos §§12 a 15 do artigo 525 e nos §§ 5º a 8º do artigo 535, do CPC/2015, normas que substituíram os antigos artigos 475-L, §1º e 741, parágrafo único, ambos do CPC/1973. As normas veiculadas nesses artigos são responsáveis pela positivação da tese relativizadora no Direito Processual Civil, consagrando a doutrina da coisa julgada inconstitucional. Trata-se de um permissivo para que se leve a efeito a desconstituição de sentenças transitadas em julgado em sede de cumprimento de sentença em virtude de declaração de inconstitucionalidade realizada pelo Supremo Tribunal Federal, antes ou depois da decisão individualmente proferida.
LanguagePortuguês
Release dateJul 1, 2021
ISBN9786525202570
Coisa Julgada Inconstitucional: Avanços e Retrocessos da Relativização da Coisa Julgada positivada no Código de Processo Civil : (análise dos §§12 a 15 do artigo 525 e dos §§ 5o a 8o do artigo 535, do CPC/2015)

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    Coisa Julgada Inconstitucional - Fabiana Marcello Gonçalves Mariotini

    1. ASPECTOS PROPEDÊUTICOS

    1.1 A MUDANÇA DO PERFIL DA JURISDIÇÃO, SEUS ASPECTOS INEGOCIÁVEIS E OS DOIS LADOS DA MOEDA DA UBIQUIDADE CONSTITUCIONAL: A IMPORTÂNCIA DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS

    Na jurisdição, o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja, as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade e, como tais, têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos fáceis⁸.

    Antes de falar sobre a coisa julgada em si, uma reflexão se faz necessária. O Direito e os seus institutos são vocação do nosso tempo⁹. Não podemos pretender enxergar o Processo Civil de hoje com os olhos voltados para o ontem. O CPC/2015 demonstra cabalmente essa mudança, criando um Direito Processual antenado à contemporaneidade, sem perder de vista as garantias fundamentais. Isso fica claro quando o legislador opta por trazer para dentro do diploma processual normas fundamentais que passam a servir de norte para o intérprete.

    O Direito Processual Civil mudou. Seus institutos mudaram e se tornaram mais flexíveis e dinâmicos, mas esse dinamismo não é ilimitado. O poder judiciário já não mais monopoliza o exercício da jurisdição; as partes ganharam uma descomunal relevância no cenário processual; a virtualização do processo possui contornos cada vez mais amplos; pensa-se em mecanismos participativos para além daqueles previstos no CPC/2015; dentre outras não menos relevantes inovações. Muita coisa vem sendo relida e ressignificada, até mesmo o acesso à justiça¹⁰. Mas qual é o limite disso?

    A coisa julgada é o ponto final do exercício da jurisdição estatal. Admitir uma mudança no perfil jurisdicional¹¹ não gera, em caráter obrigatório, a necessidade de flexibilizarmos a coisa julgada. É preciso saber onde e como o processo civil pode ser dinamizado, sempre havendo uma especial atenção à noção de devido processo legal. As garantias fundamentais do processo compõem o corpo mínimo do Direito Processual Civil. Tais garantias são responsáveis pela existência de um processo seguro, resultado da superação do Estado autoritário que outrora vigorava.

    A jurisdição ganhou novos contornos, mas permanece sendo um dos componentes basilares da Teoria Geral do Processo, devendo obediência a essas garantias fundamentais. É claro que não podemos mais afirmar que a jurisdição é apenas uma emanação do poderio estatal, parcela de poder exercitada pelo Estado-juiz, o poder judiciário exercendo sua função típica¹². Pensar na jurisdição como atributo da soberania é uma relíquia da era do gelo¹³, o que não significa dizer que todo instituto que se relacione ao respeito aos poderes estatais também deva assim ser encarado. É o caso da coisa julgada.

    Pensar em uma jurisdição flexível e adaptável a um sistema multiportas é legítimo. Só não se pode perder de vista que, se a porta mais adequada for a solução adjudicada, na qual o Estado-juiz decidirá a lide a ele submetida, alguma rigidez garantística continua se fazendo necessária. E, mesmo nos casos em que a consensualidade se impõe, o judiciário continuará atuando como fiscal do cumprimento das garantias fundamentais (juiz como gate keeper).

    Uma dose de dinamicidade, como ocorre, por exemplo, na formação da coisa julgada em sentenças estruturantes, é condição para a sobrevivência do processo. Nessas hipóteses, a coisa julgada há de ser mais flexível para viabilizar a existência do processo estrutural, o qual demanda uma decisão matriz que se desdobre em seguidas decisões adaptativas (provimentos em cascata)¹⁴. Mas essa não é a regra, não sendo possível tratarmos situações excepcionais como se regra fossem.

    Entendemos que existem aspectos (ainda) inegociáveis na jurisdição estatal, sendo um deles a rigidez da coisa julgada (com exceção das hipóteses de cabimento da ação rescisória), que, como veremos a fundo, é imperativo da segurança jurídica. Trata-se de garantia fundamental do processo porque se aquele a quem o juiz atribuiu o pleno gozo de um direito não puder, daí em diante, usufrui-lo plenamente sem ser mais molestado pelo adversário, a jurisdição nunca assegurará em definitivo a eficácia concreta dos direitos dos cidadãos¹⁵.

    Como bem recorda Ferrajoli¹⁶, na jurisdição, o fim não justifica os meios, dado que os meios, ou seja, as regras e as formas, são as garantias de verdade e de liberdade e, como tais, têm valor para os momentos difíceis, assim como para os momentos fáceis. As garantias fundamentais do processo asseguram a lisura dos meios para que os fins sejam legítimos, tudo em consonância com a Constituição Federal.

    Nesse aspecto, vale a advertência feita por Daniel Sarmento¹⁷ a respeito do que se convencionou denominar de ubiquidade constitucional. O constitucionalismo é uma realidade, uma necessidade que surge como a melhor alternativa possível¹⁸. Interessa-nos de forma próxima a constitucionalização do Processo Civil, fenômeno que integra o centro dos debates acerca do garantismo processual.

    A Constituição se tornou onipresente, permeando os debates que envolvem o Direito, o que é extremamente positivo. Alguns ramos do Direito sofreram os influxos constitucionais mais imediatamente, enquanto outras áreas se valiam da Constituição em caráter subsidiário. Quanto mais premente a necessidade de limitação do Estado pelo Direito¹⁹, mais instantânea a influência da Constituição Federal.

    Ao longo do século XX, o Direito Constitucional foi se robustecendo até alcançar o patamar de disciplina condicionadora e informadora da ordem jurídica infraconstitucional e, sobretudo, das vertentes do Direito Público²⁰. O Direito Processual Civil, apesar de historicamente oscilar entre o público e o privado, também foi se adequando a essa nova realidade.

    O processo civil ora tende mais para o privatismo, ora tende mais para o publicismo. O pêndulo, inicialmente tendente para o privatismo, condizia com a fraqueza do Estado. Em seguida, o Direito Processual Civil passa por uma fase marcadamente publicista, ganhando corpo discussões sobre a sua constitucionalização.

    Apesar das concessões feitas ao privatismo pelo CPC/2015, não mais se admite o privatismo de outrora, mas sim, uma versão garantística, renovada deste. O Direito Processual passa cada vez menos a se ajustar à dicotomia público / privado, mas se reconhece que, a despeito disso, a constitucionalização se faz presente.

    Muitos debates processuais nos remetem à Constituição Federal. Os debates sobre a coisa julgada, por exemplo, desaguam invariavelmente na Constituição Federal, tanto para fins de argumentação daqueles que defendem a intangibilidade da coisa julgada quanto para aqueles favoráveis ao relativismo.

    A constitucionalização do Direito Processual é uma vitória. Mas essa conquista também suscita problemas. Como alerta Daniel Sarmento²¹, constitucionalizar um ramo do Direito pode retirar determinados atos do alcance das maiorias, além de ocasionar a proliferação de decisões fulcradas em princípios constitucionais de baixa densidade normativa, construídas com base na discricionariedade do julgador. Essa é, inegavelmente, uma face negativa da constitucionalização, que precisa de algum modo ser refreada.

    Especificamente sobre a coisa julgada, a retirada do alcance das maiorias se mostra positiva, desde que exista algum mecanismo de revisão (no caso, as ações rescisórias). Ao se defender a prevalência do princípio da segurança jurídica, impede-se a revisão de decisões judiciais transitadas em julgado a bel prazer do freguês – decisões transitadas em julgado não podem se encontrar na esfera de disponibilidade do jurisdicionado. Com a ação rescisória, possibilita-se um controle, que consiste em um prazo de depuração da decisão, que só ficará totalmente intangível após o decurso do lapso temporal de 2 (dois) anos.

    Da mesma forma, as rescisórias são capazes de amenizar a subversão metodológica pela qual vem passando o Direito, ao permitir o seu manejo por violação manifesta de norma jurídica (artigo 966, inciso V, CPC/2015). Logo, se um juiz forja um sentido para uma norma constitucional, caberá ação rescisória, que poderá ser bem sucedida caso fique provado que a norma constitucional não comporta um dado significado.

    A constitucionalização, apesar de relevante, não pode servir de justificativa para barrar a evolução do Direito Processual Civil, não podendo retirar sempre o poder de condução do processo das maiorias, tendência cada vez mais presente. Por isso, a coisa julgada, que é constitucional, se sujeita a temperamentos. A Constituição Federal não pode ser utilizada com a duvidosa finalidade de justificar tudo. O que se tem, assim, é uma constitucionalização de concessões e proteções: concede-se em prol da evolução e protege-se em favor do garantismo. Esse pensamento deve sempre nortear os debates que envolvem a constitucionalização.

    Por essa razão, a segurança jurídica, materializada na coisa julgada (proteção), traz consigo um instrumento imprescindível: a ação rescisória (concessão). A rescisória mitiga a ampla proteção conferida pelo instituto da coisa julgada e minimiza problemas atinentes à constitucionalização, seja ao permitir que em determinados casos haja revisão de decisões transitadas em julgado (permitindo controle excepcional pelas maiorias), seja ao funcionar como instrumento de gestão da aplicação das normas constitucionais (impedindo que a sua textura aberta prejudique a higidez das decisões judiciais). Temos, portanto, um mecanismo processual inteligente que confere segurança jurídica: ao mesmo tempo em que se exalta o valor constitucional da coisa julgada, os seus efeitos são atenuados por mecanismos criados pelo legislador sem violar garantias fundamentais do processo.

    Em síntese, a jurisdição mudou, mas a necessidade de observância de um conteúdo mínimo no âmbito do Direito Processual não é negociável, o que não significa dizer que a própria lei não possa fazer concessões excepcionais que preservem o cerne das garantias fundamentais. A coisa julgada integra um conteúdo mínimo inegociável, afirmação que não pode ser compreendida cegamente. Qual é o limite das concessões feitas pelo legislador? A resposta a essa indagação pode ser inferida a partir do seguinte trecho²²: não podemos nos distrair olhando as constelações no céu e cair no poço. Caminhar, guiando-se pelas estrelas, mas sempre com os pés firmes no chão. Olhemos a Constituição, ela é o guia, mas sejamos racionais e observemos a realidade que nos cerca.

    1.2 O CONCEITO DE COISA JULGADA NO TEMPO

    Ao discorrer sobre os conceitos de coisa julgada, Alexandre Senra²³ põe em evidência que à palavra coisa julgada correspondem conceitos diversos e outras tantas definições, mas, numa primeira aproximação, todos esses conceitos doutrinários acabam por convergir para um ponto comum: a ideia de estabilidade. Pouco importa se encaramos a coisa julgada como a conversão da instabilidade para estabilidade²⁴; como eficácia proveniente da inimpugnabilidade²⁵ ou como capa protetora que imuniza as sentenças²⁶, desde que se chegue ao ponto de partida necessário: trata-se de uma forma de estabilidade processual.

    Uma forma de facilitar a análise do conceito de coisa julgada é estabelecendo, de antemão, a necessária separação entre espécie e gênero: coisa julgada formal e coisa julgada material. Esses conceitos serão tratados com maior rigor em momento posterior. Todavia, cumpre adiantar que, quando se faz menção à coisa julgada material, está-se diante de um gênero, o qual comporta a espécie coisa julgada formal.

    Diferentemente do que o senso comum faz crer, não estamos diante de espécies de um mesmo gênero, eis que, quando se fala em conceito de coisa julgada no tempo, o foco é o gênero, qual seja, a coisa julgada material. Existem, por óbvio, divergências sobre o assunto, havendo autores que mencionam que a coisa julgada deve ser vista como um fenômeno único, afirmação que, apesar de discutível, reforça a ideia de que não existiriam duas espécies de coisa julgada, mas somente um único gênero²⁷.

    Ao lançarmos um olhar sobre a concepção de coisa julgada material, é elucidativo investigar as mutações sofridas ao longo do tempo, especialmente no período moderno. É sobre o desenvolvimento do conceito de coisa julgada que centraremos nossos esforços a seguir.

    Diversos estudiosos que se propõem a investigar a evolução do conceito da coisa julgada, utilizam como ground zero a concepção de Liebman²⁸, a qual se difundiu no Brasil por intermédio da Escola Processual de São Paulo. Liebman²⁹ reconhece na sentença uma eficácia maior do que aquela que é inerente a outros atos emanados pelo Estado, qualidade denominada autoridade da coisa julgada, composta pela coisa julgada formal e material. A coisa julgada formal seria a indiscutibilidade da sentença como efeito da preclusão recursal, enquanto a coisa julgada material (chamada por Liebman de substancial) seria a imutabilidade dos efeitos que a sentença produz.

    Como sublinhado por Tesheiner³⁰, a teoria de Liebman é a dominante entre nós, não podendo ser ignorada. Mas, não se pode perder de vista o fato de que a conceituação da coisa julgada encontra na contribuição de Giuseppe Chiovenda³¹ o seu ponto de partida. Ao afirmar que a jurisdição representava a atuação da lei, definia-se a coisa julgada como decorrência da vontade legislativa afirmada. De acordo com o autor, a coisa julgada seria o próprio bem da vida reconhecido por intermédio da atuação da vontade da lei.

    A partir desse entendimento, é compreensível que, modernamente, a coisa julgada seja definida como a consagração da vontade legal concretizada pelo juiz, abandonando a anterior concepção romana, que definia a coisa julgada como fenômeno intrínseco à consumação da relação processual³². A contribuição de Chiovenda deu concretude à coisa julgada, tornando o seu conteúdo mais inteligível, apesar da aproximação do conceito com a res iudicata romana, o que poderia vir a ser considerado um retrocesso.

    Vale lembrar que, de acordo com a concepção romana, a coisa julgada derivava da estrita obediência às formas estabelecidas, pois, naquela época, vigorava um formalismo exacerbado. Assim, no período romano, respeitadas as formalidades existentes, a coisa julgada existiria. Em caso negativo, não haveria que se falar em coisa julgada, o que acabava por gerar certa confusão entre as noções de nulidade e inexistência.

    Em outras palavras, no Direito romano, as sentenças eram estáveis por representarem a consumação das relações processuais formalmente escorreitas. A aproximação com a doutrina de Chiovenda se evidencia na medida em que, para ele, as sentenças representavam a concretização da lei pelo juiz, que era considerado portador da vontade da lei. Guardadas as devidas proporções, ambas as concepções eram formalistas.

    Apesar de também definir a coisa julgada, Chiovenda³³ reconhecia a fragilidade das definições conferidas ao instituto, chegando a afirmar, em sua obra Sulla cosa giudicata, que o modo de entender a autoridade da coisa julgada se submete a lentas e progressivas transformações, o que permite admitir a existência de inúmeros conceitos ao longo da história para definir um só instituto. Tratar-se-ia, portanto, de um conceito em eterna construção.

    Autor igualmente importante no processo de construção do conceito de coisa julgada foi Francesco Carnelutti³⁴. Ao propor um aperfeiçoamento do conceito chiovendiano, Carnelutti afirma que a força da coisa julgada, mais do que possuir razão de ser ancorada na vontade das leis, representa a concretização de uma autoridade proveniente do Estado. Assim concebida, a manifestação do juiz, além de que concretizar a vontade das leis, representa a declaração da vontade estatal, tornando concreta a norma abstrata pelas sentenças.

    Consoante Ada Pellegrini³⁵, as orientações de Chiovenda e Carnelutti não divergem de forma substancial. Ambas enxergam na coisa julgada um efeito da sentença, diferentemente de Liebman, diga-se de passagem. Fato é que as contribuições de Chiovenda e Carnelutti foram de grande valia para a conceituação do instituto da coisa julgada, possuindo, repise-se, alguns pontos de contato com a res iudicata romana, sendo o principal deles o zelo pela certeza e segurança das regras, o que denota uma preocupação histórica do Direito Processual Civil.

    Esse resgate do conceito romano acabou mitigando o enfraquecimento que a coisa julgada havia sofrido no período feudal, quando deixou de refletir a aplicação das regras para assumir um caráter de verdade judicial, ideia esta que encontra respaldo na conhecida máxima de que a coisa julgada transforma o quadrado em redondo, altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro.

    Retomando a importante doutrina de Liebman, saliente-se que foi ele o responsável pela precisa distinção entre coisa julgada e efeitos da sentença. Segundo a lição de Liebman, coisa julgada é uma qualidade da sentença – e não um dos seus efeitos³⁶, razão pela qual uma sentença pode produzir efeitos ainda que não haja formação de coisa julgada. Assim entendida, a coisa julgada não seria um efeito, mas uma qualidade especial denominada autoridade, que reveste a sentença de atributos, tais como imutabilidade, indiscutibilidade e estabilidade.

    Alguns autores encampam a ideia de que definir a coisa julgada como qualidade quer dizer muito pouco, nada dizendo sobre a sua causa³⁷. O que nos parece, em verdade, é que a definição de Liebman é mais relevante por promover uma ruptura entre o instituto da coisa julgada e a eficácia da sentença (cujos laços eram defendidos tanto nas obras de Chiovenda, quanto nas de Carnelutti) do que por definir a coisa julgada como qualidade. Vale assinalar, conforme análise de Talamini³⁸, que já em Chiovenda era possível notar um esboço de superação da noção antes reinante, sendo lançadas afirmações que se prestam a distinguir os efeitos da sentença da autoridade da coisa julgada. Liebman teria apenas aperfeiçoado um rascunho já existente.

    Hodiernamente, ao falarmos em coisa julgada, pensamos na autoridade das decisões transitadas em julgado, autoridade esta que não pode ser confundida com uma eficácia, pois, mais do que isso, representa uma qualidade inerente às sentenças. Essa, talvez, tenha sido a grande contribuição de Liebman: afixar a definição quase como um mantra, para que não mais fosse a coisa julgada classificada como efeito da sentença. Destaca Dinamarco³⁹ que a distinção entre eficácia da sentença e a autoridade de seus efeitos é uma das mais elegantes conquistas da ciência processual no século das luzes processuais, sendo a consciência de que se trata de dois fenômenos distintos a chave para a solução de muitos problemas teóricos e práticos relacionados com o instituto.

    No anteprojeto do Código de Processo civil de 1973, definia-se a coisa julgada como sendo uma qualidade da sentença, numa clara adesão à teoria de Liebman⁴⁰. Ainda assim, muito embora a relevância da contribuição de Liebman seja manifesta, no momento da conversão do projeto em lei, preferiu-se falar em eficácia da sentença⁴¹. Sem sombra de dúvidas, não agiu corretamente o legislador ao afastar o conceito de Liebman no artigo 467, do CPC/1973, pois a coisa julgada material não é uma eficácia, mas verdadeira autoridade.

    O CPC/2015 corrige o equívoco ao estabelecer, em seu artigo 502, que coisa julgada material é a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso. Igualmente, no artigo 433, o legislador menciona a autoridade da coisa julgada, ao tratar da arguição de falsidade. O texto do CPC/2015, corrigindo um equívoco histórico, substitui a expressão eficácia por autoridade, o que não altera o sentido da norma, mas a dota de maior técnica. E o que seria essa autoridade? Uma situação jurídica revelada com o trânsito em julgado⁴².

    Ainda realizando uma análise conceitual, há que assinalar que a teoria de Liebman padecia de um equívoco. Apesar de entender que coisa julgada não se confundia com eficácia da sentença, o autor mencionava que a imutabilidade e indiscutibilidade decorrentes da coisa julgada deveriam incidir sobre os efeitos da sentença. Ocorre que o imutável e indiscutível não são os efeitos da sentença, mas a sentença em si. Se alguma coisa escapa ao selo da imutabilidade, são os efeitos da sentença⁴³. Quando um juiz profere sentença terminativa, ele produz uma decisão que somente tem efeitos nos limites do processo em que é proferida. Por outro lado, quando a sentença é definitiva, ela também produz consequências fora do processo: a essas consequências práticas que extrapolam o processo em que a sentença definitiva foi proferida, Liebman⁴⁴ deu o nome de efeitos da sentença.

    Está claro que a imutabilidade aludida não se refere aos efeitos da decisão de mérito, que podem ser mudados (...). A imutabilidade vai referida ao conteúdo da decisão de mérito: declaro, condeno, constituo, desconstituo, modifico, mando⁴⁵.

    A despeito das controvérsias que giram em torno da conceituação da coisa julgada, um entendimento é unívoco: ainda que várias sejam as fórmulas destinadas a explicar o misterioso instituto da coisa julgada, fazem-na todos em última análise equivaler à criação de uma declaração irrevogável⁴⁶.

    Portanto, independentemente da natureza da coisa julgada (se é ou não um efeito da sentença⁴⁷ ou uma característica especial denominada autoridade que incide sobre a sentença ou, para Liebman, sobre os efeitos de sentença), ninguém ousa negar que a coisa julgada é o auge da segurança nas relações jurídicas, instrumento indispensável à afirmação da autoridade do Estado⁴⁸.

    1.3 O SISTEMA BRASILEIRO DE ESTABILIDADES: TRÂNSITO EM JULGADO, PRECLUSÃO, COISA JULGADA FORMAL (PRECLUSÃO MÁXIMA) E COISA JULGADA MATERIAL

    Trânsito em julgado, preclusão, coisa julgada formal (preclusão máxima) e coisa julgada material são fenômenos interrelacionais, sendo certo que o trânsito em julgado de uma decisão faz com que ocorra a preclusão máxima. Antonio do Passo Cabral⁴⁹ alude ao fato de que a coisa julgada não é a estabilidade por excelência, sendo a preclusão a forma mais genérica de estabilidade, afirmação que reconhecemos como verdadeira. Entendemos, no entanto, que a coisa julgada, ainda que não seja a única estabilidade, é o auge do sistema de estabilidades.

    A preclusão é a perda de uma faculdade processual dentro de um mesmo processo. A preclusão máxima dentro do processo, de acordo com o nosso entendimento, ocorre com a formação da coisa julgada formal, que é resultante do trânsito em julgado. Consolidada uma decisão, esta passa a ser indiscutível⁵⁰, viabilizando a formação da coisa julgada formal, que é o degrau que antecede a coisa julgada material.

    Os conceitos acima elencados serão tratados conjuntamente e de forma não exaustiva, sendo traçadas apenas as noções que julgamos importantes para esse estudo. O que se deseja é possibilitar o estabelecimento de um link entre trânsito em julgado, preclusão máxima e coisa julgada material, evidenciando o objetivo destas manifestações: estabilização das situações jurídicas, de forma a evitar que as partes possam requerer nova análise de um objeto. Impede-se, ainda, que o juiz efetue nova análise sobre decisões já proferidas no processo, o que faz com que Nelson Nery Jr.⁵¹ lecione que a perda da faculdade para praticar determinado ato abrange não somente as partes, muito embora estas sejam as principais destinatárias, mas também o juiz, que não poderá decidir novamente a respeito de questões já preclusas.

    A preclusão é faceta da segurança jurídica, assim como ocorre com a coisa julgada material. A ideia de que a preclusão é igualmente importante para que o processo caminhe adiante, sem retornar a etapas pretéritas e rumando sempre para um fim rápido e eficiente⁵² é antiga. A origem da preclusão remonta ao Direito romano-canônico⁵³, surgindo como uma penalidade àquele que não impulsionasse a marcha processual⁵⁴.

    O grande responsável pela sistematização da preclusão como conhecemos hoje foi Chiovenda⁵⁵, que se preocupou em analisar o instituto de forma genérica, adotando um único conceito que abarcasse todas as hipóteses de preclusão então existentes. Foi assim que Chiovenda conceituou a preclusão como a perda, extinção ou consumação de uma faculdade processual devido ao atingimento dos limites previstos em lei para o seu exercício⁵⁶.

    A noção de preclusão demonstra que não pode haver condescendência com retrocessos dentro do processo, precipuamente ao se levar em conta que este é instrumento do exercício da jurisdição, composto por um conjunto de relações ou vínculos jurídicos unitariamente direcionados a um fim: a prestação jurisdicional⁵⁷.

    O processo possui objetivo finalístico. Se o processo deve andar sempre para frente, basta que seja proibido o retorno a situações jurídicas pretéritas para que isso se concretize. Assim, a coisa julgada formal seria o ponto máximo preclusivo. E por que não a coisa julgada material? Por que a preclusão é fenômeno que se opera dentro do mesmo processo. A coisa julgada material, por outro lado, seria um fenômeno relevante para novos processos. Por isso, tecnicamente, não podemos denominar a coisa julgada material de preclusão.

    Diante de tais considerações, é possível afirmar que a coisa julgada formal seria uma espécie de preclusão máxima existente no ordenamento jurídico brasileiro⁵⁸. Tanto é assim que Humberto Theodoro Jr. ⁵⁹ afirma que a coisa julgada formal representa o último elo da cadeia das sucessivas preclusões que encaminham a relação processual para a coisa julgada material, esta, sim, um fenômeno que ultrapassa a preclusão e se manifesta fora do processo em que a sentença foi proferida.

    Ocorrido o trânsito em julgado, a preclusão máxima, que seria aquela ocorrida com a formação da coisa julgada formal, apresenta-se como uma consequência lógica. Deriva daí que, sempre que há trânsito em julgado, é possível falarmos em constituição da coisa julgada formal. A relação de causa/consequência existente entre trânsito em julgado e preclusão máxima é extremamente clara, sendo evidenciada na doutrina de Paulo Henrique dos Santos Lucon⁶⁰, que menciona que, enquanto a coisa julgada atinge o conteúdo decisório da sentença, o trânsito em julgado seria o fato jurídico que gera a coisa julgada.

    É pertinente sublinhar, todavia, que a autoridade da coisa julgada não se restringe à preclusão dos recursos, pois a proteção à coisa julgada não estaria completa se não fosse vedado o reexame das decisões já transitadas em julgado em outro processo, fenômeno que recebe o nome de coisa julgada material. Aqui temos a grande vedete do sistema de estabilidades.

    Apesar da ideia de preclusão recursal ser inerente à coisa julgada, ela é apenas uma faceta do instituto. De forma não muito técnica (já que, como dito, a preclusão opera dentro do processo), pode-se inferir que, enquanto a coisa jugada formal representa uma espécie de preclusão máxima interna, a coisa julgada material seria a preclusão externa, irradiando os seus efeitos para fora do processo⁶¹. A coisa julgada formal seria a preclusão máxima endoprocessual e a coisa julgada material uma estabilidade extraprocessual ou panprocessual, alinhando-se à doutrina de Luiz Machado Guimarães⁶².

    Forma-se, assim, o sistema brasileiro de estabilidades, que pode ser, como aduzido por Cabral⁶³, mais ou menos rígido, variando com a tradição jurídica de cada ordenamento. Para o autor, ainda que na ausência da lei, haveria necessidade de um modelo de estabilidades, que poderia ser extraído de outros pontos do sistema, tanto de regras positivadas quanto dos princípios gerais de regência.

    Nem tudo se resume à coisa julgada, existindo uma gama de estabilidades processuais que, interligadas, formam uma espécie de organismo, composto por estruturas que interagem entre si, executando diversas funções essenciais dentro do sistema jurídico processual. Mas é a coisa julgada que nos interessa mais proximamente.

    1.4 ESTABILIZAÇÃO DA TUTELA ANTECIPADA: A CONSAGRAÇÃO DO SISTEMA DE ESTABILIDADES NO CPC/2015

    Quando da defesa de dissertação de mestrado que deu origem a essa obra, o CPC/2015 ainda não vigorava, razão pela qual não foi feita referência à estabilização da tutela antecipada como modalidade de estabilidade processual. Com a entrada em vigor do CPC/2015, surgiu a necessidade de abordar o tema, em especial porque essa modalidade de estabilização ratifica o entendimento de que nem tudo se resume à coisa julgada.

    Sim, não há dúvida de que o CPC/2015 trata de várias estabilidades⁶⁴, não havendo razão que justifique a surpresa de alguns juristas, que indagam se a estabilização da tutela antecipada prevista no artigo 304 equivaleria à coisa julgada e qual a razão da diferenciação, como se a justificativa para tanto fosse apenas burocrático-formal.

    A norma do artigo 304 gera inequívocos ganhos. Em breve síntese, se a parte obtiver uma tutela antecipada e a parte contrária não interpuser recurso, esta se tornará estável, somente havendo possibilidade de reversão caso proposta demanda própria. Eduardo José da Fonseca Costa⁶⁵ aduz que, na estabilização de tutela antecipada, obtém-se em caráter definitivo, uma tutela secundum eventum defentionis, imputando-se ao réu o ônus da iniciativa do contraditório.

    A estabilização da tutela antecipada é uma das grandes novidades do CPC/2015, e pode ser assim explicada: concedida a tutela de urgência satisfativa nos termos do artigo 303 (isto é, com base em uma petição inicial incompleta em razão da extrema urgência existente ao tempo da propositura da demanda) e não tendo o réu interposto recurso contra a decisão concessiva da tutela antecipada, esta se tornará estável, devendo o processo ser extinto sem resolução do mérito (artigo 304, § 1º)⁶⁶. A dúvida que paira é: o que é essa estabilidade?

    No CPC/1973, não havia tal previsão, tendo a tutela antecipada o tradicional caráter de provisoriedade. Ainda que a parte prejudicada pela concessão de uma tutela antecipada sequer se manifestasse nos autos do processo, o trâmite processual ocorria ordinariamente até a prolação de uma sentença de mérito que confirmasse a tutela sumária antes concedida.

    O regime anterior, mais formalista, obrigava o titular de um direito material a aguardar até o final do processo para finalmente poder usufruir, com definitividade, de um bem da vida, ainda que a outra parte sequer interviesse no processo. Essa forma burocrática de enxergar o processo vem sendo alterada e o CPC/2015 nos faz crer que o enfraquecimento do formalismo é uma realidade inevitável.

    A estabilização da tutela antecipada é um avanço, visto existir uma necessidade real de se prevenir possíveis violações de forma eficaz, em oposição à cultura do mero ressarcimento, da resolução em perdas e danos. É inconteste a importância da tutela antecipada para fins de garantia da efetividade dos direitos, retirando do seu titular o ônus

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