Você está na página 1de 163

Universidade Estadual do Ceará – UECE

Leonardo Lima Ribeiro

Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza

Fortaleza
2012

1
Universidade Estadual do Ceará – UECE

Leonardo Lima Ribeiro

Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado


Acadêmico de Filosofia do CENTRO DE
HUMANIDADES – CH DA
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ –
UECE, como requisito parcial para obtenção
do grau de mestre em filosofia.

Orientador. Prof. Dr. Emanuel Ângelo da


Rocha Fragoso

Fortaleza
2012

2
Universidade Estadual do Ceará – UECE
Filosofia

Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza

Defesa em: ___ / ___ / ___ Conceito Obtido: _________


Nota Obtida: _____________

Banca Examinadora

______________________________________________
Prof. Dr. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso (Orientador)

______________________________________________
Prof. Drª. Marly Carvalho Soares

______________________________________________
Prof. Drª. Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Fortaleza
2012

3
à zombeteira vida de Fortaleza,
radicalmente aversa à prática do pensamento...

4
Agradecimentos

Pela oportunidade de realizar a pesquisa que gerou o presente trabalho,


agradeço, além de a todos aos quais dedico a dissertação:
à FUNCAP, pela bolsa de estudos e pelo fomento da minha pesquisa;
ao meu orientador, Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso, pela autonomia
concedida no desenvolvimento deste trabalho, assim como pela
disponibilização de importantes materiais bibliográficos;
à professora Maria Luísa Ribeiro Ferreira, que aceitou o convite de
compor a banca examinadora da minha dissertação;
à professora Marly Carvalho Soares, que aceitou o convite de compor a
banca examinadora da minha dissertação;
ao professor da UNB Evaldo Sampaio, que transformou o meu modo de
ler e expor os textos filosóficos;
ao professor da UFPB Daniel Figueiredo, pelo auxílio para com a
primeira versão de meu projeto de dissertação;
à minha companheira Janaína Monteiro, que me ajudou com a
constituição das extravagantes notas de rodapé desta dissertação;
à minha amiga e professora da língua francesa Francisca Evilene, que me
ajudou a compreender termos de obras as quais estavam para além do meu
frágil idiomatismo francês.
ao meu amigo Alan Santana, que revisou ortograficamente este trabalho
de ponta a ponta;
à Neuman, Almir, Mariana, Diego, Marlus, Marco, Álbio e Alex, pela
alteridade nos momentos difíceis;
ao meu primo e matemático de grande envergadura Diego Ribeiro
Moreira [novamente], pela indicação acerca da obra de Spinoza, “uma das
paixões alegres de Einstein”;
aos amigos Abraão, Carlos, Daniel, Dario, Jayme, Marco [novamente],
Raphael e Victor, em função da amizade inestimável e pelas, como dizia
Maurice Blanchot, revitalizantes conversas infinitas as quais trago sempre
comigo.

5
Existe, entre o Demônio de Sócrates e o meu,
a diferença que o de Sócrates só se manifestava a ele pra proibir, avisar, impedir,
e que o meu se digna aconselhar, sugerir, persuadir.
O pobre Sócrates só tinha um Demônio proibidor;
o meu é um grande afirmador,
o meu é um Demônio de ação,
ou um Demônio de combate.
Ora, eis o que sua voz me cochichava:
“Só é o igual do outro quem pode prová-lo, e só é digno da liberdade quem sabe conquistá-la”.

Charles Baudelaire,
Espanquemos os pobres.

6
RESUMO

RIBEIRO, Leonardo Lima. Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade na Ética de Spinoza


Orientador: Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso; UECE-CH, 2012. Dissertação.

Esta dissertação propõe tratar fundamentalmente do problema da suprema liberdade ou da beatitude


na Ética spinoziana, problema o qual tem a sua solução explicitada no terceiro capítulo. Tal solução
é dada por meio da mediação do terceiro gênero de conhecimento ou ciência intuitiva e daquilo que
dela se segue em última instância, mais precisamente: o amor intelectual da mente intuitiva para
com os atributos pensamento e extensão de Deus. Mas, antes disso, a solução da questão da
liberdade suprema ou da beatitude não é dada sem as exposições anteriores sobre: [a.] a consistência
da ontologia spinoziana a partir da articulação entre os conceitos de substância, atributos e modos
[infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos] – capítulo 1 –; [b.] a força da razão contra a
servidão – capítulo 2 –. Isso é necessário por dois importantes motivos: [1.] não é possível elucidar
o problema da beatitude ou da liberdade suprema em Spinoza sem a pressuposição dos elementos
conceituais [substância, atributos, modos] que estão envolvidos nas operações internas da ontologia
spinoziana. De fato, não é cabível, para Spinoza, anunciar uma ética da liberdade suprema sem a
explicitação antecipada daquilo que a envolve como um a priori: o mecanismo interno de um
determinado sistema ontológico, o qual é mediado pelas noções de substância, atributos e modos.
Esse é justamente o objeto principal do primeiro capítulo da dissertação; [2.] ademais, para elucidar
a liberdade suprema na Ética spinoziana é também preciso anunciar o que a força da razão humana
pode contra a servidão. Em Spinoza não é permitida [como o próprio itinerário da EIII à EV
anuncia] a passagem definitiva à liberdade suprema ou à beatitude sem a mediação de um método
racional que prescreva o seguinte ao homem: o combate frontal à imaginação humana e à servidão
que dela se explicita. Esse é o objeto fundamental do segundo capítulo. Com efeito, a conquista da
liberdade suprema [3º capítulo] só é exposta por meio de uma via indireta [capítulo 2º], a qual
demonstra como o homem deve lutar racionalmente contra a imaginação e a servitude em que
geralmente se encontra mediante a exterioridade. É desse modo então que as exposições a respeito
da ontologia spinoziana e da ordem de suas operações [capítulo 1º] e da força da razão sobre a
servidão [capítulo 2º] são realmente imprescindíveis para a consequente resposta ao problema da
liberdade suprema ou da beatitude [capítulo 3º]. Para tanto, a metodologia que é empreendida neste
trabalho é dada por meio da hermenêutica estrutural da obra Ethica – ordine geometrico
demonstrata [1677].

Palavras-chave: Sistema spinoziano; Potência racional; Ciência Intuitiva; Beatitude; Suprema


Liberdade; Salvação.

7
RÉSUMÉ

RIBEIRO, Leonardo Lima. Science Intuitive et Suprême Liberté dans L’Étique de Spinoza.
Orientador: Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso; UECE-CH, 2012. Dissertação.

Ce travail propose traiter du problème de la suprême liberté ou de la béatitude dans L’Éthique spinozienne.
Le problème mentionné avant, se résoudre dans le troisième chapitre de cette oeuvre-là. La solution est
donnée travers l’intercession du troisième genre de la connaissance ou de la science intuitive, et de ce qui se
suit, plus précisement : l’amour intellectuel de la pensée intuitive vers les attributes pensée et extension de
Dieu. Mais, avant ça, la solution de la question de la suprême liberté ou de la béatitude, ne se réalise pas sans
les exposés antérieurs sur : [a.] la conscience de l’ ontologie spinozienne à partir de l’articulation entre les
concepts de substance, attributes, et modes [infinis immédiats, infinis médiats et finis] - chapitre 1- ;[.b] la
force de la raison contre la servitude - chapitre 2 - . Ça, c’est nécessaire à cause de deux motifs importants :
[1.] ce n’est pas possible d’élucider le problème de la béatitude ou de la suprême liberté chez Spinoza sans la
présupposition des éléments conceptuels [substance, attributes, modes] qui sont engagés dans les opérations
internes de l’ontologie spinozienne. Effectivement, chez Spinoza, ce n’est pas admissible d’annocer une
éthique de la suprême liberté sans l’explication préalable de ce qui l’entoure comme un a priori : le
mécanisme interne d’un tel système ontologique, lequel a la médiation des notions de substance, attributes
et modes. C’est celui-ci justement l'objet du premier chapitre de ce travail; [2] en outre, pour
élucider la suprême liberté dans L’Éthique spinozienne, il faut aussi annoncer ce que la force de la
raison humaine peut contre la servitude. Chez Spinoza, ce n’est pas permis [comme l’itinéraire de
l’EIII jusqu’à l’EV annonce] de passer définitivement à la suprême liberté ou à la béatitude sans la
médiation d’une méthode rationnelle qui prescrive à l’homme: le combat frontal à l’ imagination
humaine et à la servitude que se dévoile de cette imagination. En effet, la conquête de la suprême
liberté [au 3e chapitre] n’est exposée qu’à travers une vie indirecte [au 2e chapitre], laquelle montre
comment l’homme dois se battre rationnellement contre l’imagination et la servitude dans laquelle
il se trouve devant l’extériorité. C’est de cette façon que les exposés concernant l’ontologie
spinozienne et l’ordre de ses opérations [au 1r chapitre], et de la force de la raison envers la
servitude [au 2e chapitre] sont vraiment essentielles pour obtenir la réponse au problème de la
suprême liberté ou de la béatitude [au 3e chapitre]. Pour cela, la méthodologie employée dans cette
oeuvre est donnée par l’herméneutique structurelle de L’Ethica – ordine geometrico demonstrata
[1677].

Mots-clés: Système spinozien; Puissance rationnelle; Science Intuitive; Béatitude; Liberté


supérieure; Salut.

8
Sumário
Nota Preliminar..............................................................................................................................10
Introdução......................................................................................................................................11
Capítulo 1 – Substância, atributos e modos ou da consistência da ontologia de Spinoza...........18
1.1. Causa de si – Substância – Deus...............................................................................18
1.2. Atributos....................................................................................................................25
1.3. Modos – imediatos / mediatos / finitos.....................................................................28
1.3.1. Modos infinitos imediatos ou a estaticidade do universo...............................29
1.3.2. Modo infinitos mediatos ou o devir do universo............................................31
1.3.3. Modos finitos: essência, topos e gênese.........................................................33
1.3.4. Atributos ou Natureza Naturante, Modos ou Natureza Naturada..................39
1.3.5. Os modos finitos na EII..................................................................................45
1.3.6. A mente humana na EII...................................................................................46
1.3.7. O corpo humano na EII...................................................................................50
1.3.8. O conatus, apetite, desejo racional na EIII....................................................59
Capítulo 2 – Da força da Razão ou a superação da Servidão humana..........................................69
2.1. Imaginação ou primeiro gênero de conhecimento na EII.........................................70
2.1.1. Imaginação na EIII ou a produção mental de afetos [affectus] passivos........74
2.2. A Servidão Humana na EIV......................................................................................87
2.3. A Razão ou segundo gênero de conhecimento na EII...............................................92
2.4. Da força da Razão ou a superação da servidão humana na EIV e EV....................101
2.4.1. Objetivo b. ou apresentar os ditames da razão e suas ressonâncias...........102
2.4.2. Objetivo a. ou mostrar o que a razão prescreve contra a servidão, e quais
afetos estão de acordo com as regras [ditames] da razão.....................................111
Capítulo 3 – Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade em Spinoza................................................122
3.1. A ciência intuitiva spinoziana.................................................................................123
3.1.1. A ordem de constituição do universo ou da substância e seus atributos aos
seus modos intrínsecos...........................................................................................124
3.1.2. O intelecto divino ou a percepção ontológica da verdadeira ordem de
constituição do universo.........................................................................................132
3.1.3. O retorno ao problema da ciência intuitiva...................................................135
3.2. A suprema liberdade ou a beatitude........................................................................142
Conclusão....................................................................................................................................153
Referências Bibliográficas..........................................................................................................158

9
Nota Preliminar

Para a Ética, utiliza-se: a) correntemente, a tradução para o português de Tomaz Tadeu –


SPINOZA. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007 –; b) a tradução para o português da Parte I da
Ética, realizada por Joaquim de Carvalho – SPINOZA. Ética. Tradução e notas da Parte I de
Joaquim de Carvalho, tradução das Partes II e III de Joaquim Ferreira Gomes, tradução das Partes
IV e V de Antônio Simões. São Paulo: Abril Cultural, 1ªed., 1972, 2ªed., 1979, 3ªed. 1983.
(Coleção Os Pensadores) –; c) em determinados momentos, o próprio texto em latim, interno à
edição de referência de Gebhardt – SPINOZA. Opera. Im Auftrag der Heidelberg Akademie der
Wissenschaften herausgegeben von Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winter, 1925; 2.Auflage 1972,
4v [SO1, SO2, SO3 e SO4] –.

Relativamente às outras obras, utiliza-se as seguintes edições de referência: a) para o Breve


Tratado – SPINOZA. Tratado Breve. Tradução de Atilano Domingues. Madrid: Alianza, 1990; b)
para o Tratado Teológico-Político – SPINOZA. Tratado teológico-político. Tradução, introd. e
notas de Diogo Pires Aurélio. 3ª ed. Lisboa: Imprensa nacional-casa da moeda, 2004 –; c) Para o
Tratado Político – SPINOZA. Tratado Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires
Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2009; d) Para o Tratado da Reforma da Inteligência –
SPINOZA. Tratado da Reforma da Inteligência. Tradução, introdução e notas de Lívio Teixeira.
2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2004 –; e) Para o Epistolário – SPINOZA. Epistolae. Tradução de
Atilano Dominguez. Madrid: Alianza Editorial, 1988; f) em determinados momentos, o próprio
texto em latim e em nota de rodapé, respectivo à edição de referência de Gebhardt – SPINOZA.
Opera. Im Auftrag der Heidelberg Akademie der Wissenschaften herausgegeben von Carl Gebhardt.
Heidelberg: Carl Winter, 1925; 2.Auflage 1972, 4v [SO1, SO2, SO3 e SO4] –.

Siglas para as obras de Spinoza

E: Ética demonstrada segundo a ordem geométrica – Ethica ordine geometrico demonstrata1


SO1, SO2, SO3, SO4: Obras de Spinoza em latim, internas aos quatro volumes da Spinoza Opera
de Gebhardt
BT: Breve Tratado sobre Deus, o homem e sua felicidade – Korte Verhandeling van God, de
Mensch em deszelfs Welstand
TIE: Tratado da Reforma da inteligência – Tractatus de Intelectus Emendatione
Ep: Cartas – Epistolae
TTP: Tratado teológico-político – Tractatus theologico-politicus
TP: Tratado Político – Tractatus Politicus

1
Siglas e abreviações indicativas da Ética: ax. – axioma –; Ap. – apêndice –; c – corolário –; def. – definição –; d –
demonstração –; s – escólio –; P – proposição –; Pref. – Prefácios –.
10
Introdução

O que é a suprema liberdade [ou a beatitude] para Spinoza? Por que ela é discriminada
aqui como “suprema”? Tratar do problema da suprema liberdade [ou beatitude] a partir da Ethica
[1677] spinoziana envolve a priori dois grandes temas filosóficos: a ontologia; a epistemologia. E,
mais precisamente, tal problema implica necessariamente - como recorte interno dos temas
anunciados – a ontologia e a epistemologia de Spinoza [1632-1677]. Assim, responder com
consistência à questão da liberdade suprema em Spinoza exige: [i.] ontologicamente: o mecanismo
da ontologia do autor; [ii.] epistemologicamente: [ii.a] a força da razão sobre a servidão; [ii.b] a
ciência intuitiva [terceiro gênero de conhecimento] humana do mecanismo da ontologia spinoziana.
[i.] Em Spinoza - como boa parte da corrente metafísica tradicional - não é possível elucidar
o problema ético da beatitude ou da liberdade suprema sem a pressuposição do mecanismo da
ontologia do autor. Com efeito, o primeiro capítulo do presente trabalho questiona: por que tudo
que há na ontologia spinoziana é a presença da substância, seus atributos e modos? E, como atua
afinal o mecanismo da ontologia de Spinoza? As instâncias que constituem a ontologia spinoziana
são os conceitos de substância, atributos e modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos, finitos].
Ademais, tal ontologia tem seu mecanismo análogo a uma determinada ordem de articulação desses
conceitos [da substância e seus atributos para os modos]. Isso é apresentado por meio da
interpretação das definições e axiomas da primeira parte da Ética [EI – Deus / De Deo], as quais
necessitam do contínuo suporte de algumas proposições, demonstrações, corolários e escólios que
estão dispostos na mesma parte da obra citada. Mas isso não basta.
Na primeira parte da obra é encontrada de forma imediata a articulação ontológico-
spinoziana dos conceitos de substância, atributos e modos, os quais, pelo menos aparentemente,
respondem aos problemas explicitados no primeiro capítulo. No entanto, não se deve pensar que
esses conceitos e suas relações estão elucidados em sua completude apenas na EI. É por isso que é
necessária, como suporte dessa primeira parte, a utilização de algumas das definições, axiomas,
proposições e demonstrações das segunda e terceira partes da Ética [EII – A natureza e a origem da
mente / De Naturâ, & Origine Mentis; EIII – A origem e a natureza dos afetos / De Origine, &
Naturâ Affectuum].
E por que se acredita na precisão dessas duas outras partes? Porque elas apresentam ao leitor
teoremas que se conectam diretamente com a ontologia spinoziana e seus elementos constituintes,
ambos expressos na EI. Nesse itinerário, a segunda parte da obra ajuda a complexificar a noção de
modos finitos a partir dos conceitos de corpo e mente; a terceira parte, já em outra esteira, põe os
modos finitos sob o escopo das noções fundamentais de conatus, apetite e desejo, noções as quais
11
permitem, por fim, o pleno entendimento da ligação ontológica entre a essência dos modos finitos e
os atributos constituintes da substância.
Então, no primeiro capítulo desta dissertação não pode ser concebida a interpretação do
mecanismo da ontologia de Spinoza como aquilo que está simples e plenamente demarcado na EI.
De outro modo, é necessária a hermenêutica de uma ontologia que tem sua imagem concretizada
por meio da relação entre conceitos fundamentais [substância, atributos e modos] presentes nas três
partes citadas [EI, EII, EIII]. Ademais, a prova de que essa relação é possível deve ser apresentada
aqui de antemão, tendo em vista o critério ou o rigor da cientificidade que é exigência
imprescindível para a execução de uma dissertação coerente. Então, aqui vai à prova:
Ao realizar a tarefa de explicar na EI “a natureza de Deus e suas propriedades [...]” e de se
preocupar “em afastar os preconceitos que poderiam impedir que minhas demonstrações
[demonstrationes] fossem compreendidas [perciperentur]” (EIAp.; SO2, p.77), Spinoza anuncia no
prefácio da EII que passa “agora a explicar aquelas coisas [modos finitos] 2 que deverão seguir-se
necessariamente da essência de Deus [Dei], ou seja, da essência [essentiâ] do ente eterno e infinito
[Entis aeterni, & infiniti]” (EIIPref.; SO2, p.84). Com efeito, o filósofo é bastante claro nesse
prefácio, quando diz que pretende tratar mais detalhadamente do conceito de modos humanos
finitos [mente/corpo]3, com maior enfoque na noção de mente, a qual está implicada na perspectiva
dos três gêneros de conhecimento [imaginação, razão, ciência intuitiva].
Da mesma forma, o autor é bem preciso quando demarca os objetivos da EIII, ao fim do
prefácio dessa mesma parte: “tratarei da virtude dos afetos [affectuum], bem como da potência

2
Colchetes e observação nossos.
3
No artigo A presença do método nas definições iniciais da parte II da Ética de Spinoza, Sérgio Luís Persh diz aos
seus leitores que é apenas à primeira vista que “Espinosa tem dificuldades no articular as partes I e II da Ética”, ainda
acrescendo que “o próprio texto, desde o começo da segunda parte, parece trair os pressupostos metodológicos seguidos
com rigor na primeira parte” [PERSH, in Cadernos Espinosanos, nº. XXI, Jul-Dez, 2009, p.84-86]. No entanto, o
comentador problematiza “se não há uma ordem rigorosa que preside as definições da parte II [...] se a disposição
formal das quatro definições iniciais já não oferece o esboço desse desenvolvimento, garantindo a elas então uma
unidade tão coesa quanto a das definições da primeira parte [...]” [Idem., p.109]. Cabe detalhar que o comentador busca
responder positivamente a esta problemática. Nesse sentido, a questão primordial de Persh [2009] tem o objetivo de
defender uma unidade ou coesão absoluta entre as quatro primeiras definições da EII a partir daquilo que Spinoza
chama no Tratado da Reforma da Inteligência de cálculo da quarta proporcional [dois está para quatro assim como três
está para seis], de modo a provar que, tanto quanto as definições da EI, as definições da EII também tem o mesmo rigor
metodológico implantado na EI. Mesmo havendo distoância entre o que o comentador vislumbra e o que é pretendido
aqui [garantia de que é possível relacionar adequadamente pelo menos as partes EI e EII] não se pode deixar de levar
em consideração que Sérgio Persh oferece a este trabalho uma indicação importantíssima, esta a qual aponta para o
detalhe de que a primeira definição da EII [definição acerca do corpo] tem como pressuposto a proposição XXV da EI.
A definição primeira da EII aponta que “por corpo compreendo um modo que exprime, de uma maneira definida e
determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa extensa. Veja-se o corol. da prop. 25 da PI”. Ou
seja, o ponto de partida da EII é realmente a EI. Assim, Persh diz que “quanto a primeira definição, é interessante notar
atentamente a remissão feita ao corolário da proposição 25 [...] Note-se, pois, que a definição de corpo mais parece uma
proposição demonstrada na sequência da parte I da Ética. Todavia, enquanto definição, ela exprime de modo positivo
aquilo que, no começo da parte I, foi descrito de maneira simplesmente negativa: finita é uma coisa que se limita por
outra da mesma natureza [...] Vale ressaltar esse caráter positivo da definição de corpo enquanto modo certo e
determinado da essência divina” [PERSH, 2009, p.110].
12
[potentiâ] da mente sobre eles [...] E considerarei as ações e apetites humanos4 exatamente como se
fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos [quaestio de lineis, planis, aut de
corporibus esset]” (EIIIPref; SO2, p.138). Portanto, o autor é claro quando diz que, além da
exposição sobre Deus na EI e da natureza da mente [que leva em consideração o conceito de corpo
do modo finito que lhe é correspondente] na EII, é também necessário tratar da potência da mente e
das ações e apetites humanos [conatus] [um dos objetivos da EIII], os quais também devem ser
esclarecidos para a completa obtenção da apresentação acerca dos modos humanos finitos.
Nesse sentido, é justamente por meio da explicitação de conceitos fundamentais [substância,
atributos, modos] spinozianos e de suas relações, expostas nas três primeiras partes da Ética, que,
por conseguinte, apresenta-se o mecanismo da própria ontologia spinoziana. Tudo isso acaba
justificando, no final das contas, o próprio título do primeiro momento deste trabalho: Substância,
atributos e modos ou da consistência da ontologia de Spinoza.
[ii.a] Também para elucidar a liberdade suprema na Ética de Spinoza é necessário [antes de
tratar da ciência intuitiva como ápice da epistemologia spinoziana] anunciar o que a força da razão
humana pode contra a servidão. E por quê? De modo primeiro, porque em Spinoza não é permitida
[como o próprio itinerário da EIII à EV anuncia] a passagem definitiva à ciência intuitiva e à
liberdade suprema que dela imediatamente se segue sem a mediação de um método epistemológico-
racional que prescreva o seguinte ao homem: o combate frontal à imaginação humana e à servidão
que dela se explicita. Com efeito, a conquista da liberdade suprema só pode ser exposta a posteriori
a partir de uma via indireta [segundo capítulo], a qual demonstra como o homem deve lutar
racionalmente contra a sua imaginação e a servitude em que geralmente se encontra mediante a
exterioridade. Essa via, obviamente, só serve de prescrição ao homem que pretende: redescobrir a
força afirmativa da sua essência interior [imanente aos atributos pensamento e extensão divinos] e,
por conseguinte, conquistar um primeiro nível de liberdade, determinada em níveis antropológicos.
Ademais, ao fim do segundo capítulo se anuncia também que a questão da liberdade suprema
spinoziana não está resolvida, já que ele discrimina estritamente uma liberdade sob certos limites
antropológicos, liberdade a qual anuncia um modelo de homem livre [racional] que se pauta apenas
na luta contra a servidão das paixões em sociedade, e não no amor incondicional pelos atributos
pensamento e extensão de Deus intuídos [objeto incondicional da liberdade suprema].
Assim, o segundo capítulo responde fundamentalmente ao seguinte problema: o que pode a
razão humana contra a servidão em Spinoza? Para que esse problema seja solucionado é preciso à
anunciação do objetivo que ressoa como resposta a tal problema: demonstrar em filigrana que a
razão é o esforço [conatus] de produção ativa de ideias mentais em si e por si e que, por meio de tal

4
Grifos nossos.
13
esforço, é possível a superação da servidão da própria mente. De resto, isso proporciona
reflexivamente o alcance da liberdade do homem [mente-corpo] sob limites antropológicos5.
Ademais, para atingir o objetivo de responder ao problema fundamental apontado é necessário
precisar duas outras inquirições secundárias. A primeira inquirição é: qual a condição da servidão
humana em Spinoza?; a segunda das inquirições é: o que é a servidão humana para Spinoza?
Além disso, no caso do segundo capítulo, trabalha-se metodologicamente com a
interpretação das partes II, III, IV [A servidão humana e a força dos afetos / De Servitute Humanâ,
seu de Affectuum viribus] e V [A potência do intelecto ou a liberdade humana / De Potentiâ
Intellectûs, seu de Libertate Humanâ] da Ética, partes as quais estão destinadas a auxiliar as
respostas às três problemáticas enunciadas: [1.] a condição da servidão [que é, como fica provado, a
imaginação]; [2.] a própria servidão; [3.] o que pode a razão contra a servidão [problema
fundamental do segundo capítulo].
Justifica-se aqui a utilização de tais partes da obra nos respectivos sentidos: [a.] certas
passagens proposicionais das partes II [a partir da EIIPXVIIs] e III [a partir da EIIIPXIs] são de
grande serventia para o trato do problema da condição da servidão [a imaginação]; [b.] já certas
proposições concernentes à parte IV permitem evidenciar o itinerário do problema da própria
servidão humana [EIVPI a EIVPXVIII]6; [c.] elementos da parte II permitem a elucidação da
problemática da razão humana [a partir da EIIPXXIXs]; [d.] trechos da EIV iniciam o escopo da
própria razão mental contra a servidão humana [do escólio 7 da EIVPXVIII em diante]. E, na EV8
[EIPI a EIPXXs], há a clara defesa ética da força da razão mental sobre a servidão da própria
mente.
[ii.b] Com esse “prelúdio” [capítulos 1 e 2], pode-se responder com consistência ao
problema da liberdade suprema ou da beatitude no terceiro capítulo [Ciência Intuitiva e Suprema
Liberdade em Spinoza]. Contudo, a resolução desse problema não pode ser dada de supetão, já que
ela passa pela mediação de uma segunda questão e dos desdobramentos que dela se seguem.
Portanto, uma questão complementar ao problema da liberdade é apresentada no terceiro capítulo: o
5
Portanto, neste capítulo não se visa chegar à liberdade em seu nível absoluto, ou seja, divino, o que será abordado
apenas no último capítulo deste trabalho. Trata-se aqui então de uma liberdade concernente especificamente aos limites
homem, sendo, por conseguinte, relativa e não-plena.
6
A temática da servidão humana é um dos dois grandes objetivos dispostos na EIV [a servidão humana ou a força dos
afetos]. No início do prefácio desta parte da obra o autor chama “de servidão a impotência humana para regular e refrear
os afetos”. É por isso que propõe, “nesta parte, demonstrar a causa disso e, também, o que os afetos têm de bom ou de
mau”.
7
Neste escólio está disposto o segundo grande objetivo da EIV: “Disse que iria tratar, nesta parte, apenas da impotência
humana [ou da servidão] [...]”. No entanto, também “decidi tratar separadamente a questão do poder da razão sobre os
afetos”.
8
Logo nas primeiras linhas do prefácio da EV [a potência do intelecto ou a liberdade humana] Spinoza expõe seus dois
objetivos principais com esta parte da obra: “Nesta parte, tratarei, pois, da potência da razão, mostrando qual é o seu
poder sobre os afetos e, depois, o que é a liberdade e a beatitude da mente. Veremos, assim, o quanto o sábio é mais
potente que o ignorante [...] Aqui tratarei, portanto, como disse, apenas da potência da mente, ou da razão, e mostrarei,
sobretudo, qual é o grau e a espécie de domínio que ela tem para refrear e regular os afetos”.
14
que é a ciência intuitiva?
O problema da ciência intuitiva [ou terceiro gênero de conhecimento modal] em Spinoza é
envolvido primeiramente por algo que se antecipa a ele. Este algo que se antecipa à ciência intuitiva
é aquilo que torna possível a sua efetuação – da ciência intuitiva – enquanto forma de
conhecimento. Afinal, o que é isto que se antecipa à ciência intuitiva e que ao mesmo tempo torna-
se o objeto ou a condição de sua efetuação? É explícito que para haver a ciência intuitiva é
necessária à existência anterior de uma ordem ontológica determinada, a qual anuncia de certa
maneira como os conceitos de substância, atributos e modos se encadeiam causal e logicamente.
Conclui-se: a ordem referida é uma ordem que, quando intuída adequadamente, apresenta a maneira
pela qual o universo [modos ou efeitos] é constituído a partir de sua causa eficiente [substância e
seus atributos]. Se é assim, tem-se então uma ordem a qual é demarcada num ponto de partida – a
causa eficiente ou a substância e seus atributos [natureza naturante] – e naquilo que se segue no
interior deste ponto de partida – os modos infinitos imediatos, mediatos e os modos finitos
[natureza naturada] –. Então, aqui está o real objeto de intuição humana.
Ademais, a ciência intuitiva spinoziana não pressupõe apenas uma ordem de encadeamento
causal entre os conceitos de substância, atributos e modos, pois também pressupõe o intelecto
infinito de Deus. Por quê? Porque, segundo Spinoza, ao mesmo tempo é também necessária à
presença existencial de um intelecto – divino – o qual seja inerente à ordem em questão. Sem esse
intelecto não é possível a ciência intuitiva. Portanto, a ciência intuitiva spinoziana pressupõe uma
dupla presença: [1.] a de uma ordem ontológica – da causa eficiente ou da essência da substância e
seus atributos para a essência daquilo que neles se segue [seus modos]; [2]. a de um intelecto
[propriamente gnosiológico] que é imanente a esta ordem, e que a compreende antecipadamente em
um nível ontológico. Estes dois enunciados são justamente a razão de ser da demonstração da
EVPXXV, na qual Spinoza diz aos seus leitores o seguinte: “o terceiro gênero de conhecimento
[tertium cognitionis genus - ciência intuitiva modal] procede da ideia adequada [adaequatâ ideâ] de
certos atributos de Deus [Dei attributorum] para o conhecimento adequado da essência da coisas
[adaequatam cognitionem essentiae rerum]” [modos], “[...] E quanto mais compreendemos as
coisas desta maneira, tanto mais [...] compreendemos a Deus [Deum intelligimus]”(EVPXXVd.;
SO2, p.296). Ou seja, há aqui uma ordem dada dos atributos da substância para os modos que neles
se seguem; e há também um intelecto ontológico que propicia a ciência intuitiva dessa ordem. É
então a partir da existência desses dois planos – a ordem em questão e o intelecto ontológico que
lhe é inerente – que é possível a ciência intuitiva modal.
Disso, como se observa no capítulo em questão [3º], afirma-se que a ciência intuitiva é a
adequada compreensão humana [na mesma perspectiva do intelecto divino] de uma determinada
ordem ontológica, a qual parte da essência da substância e seus atributos pensamento e extensão
15
para a essência dos modos humanos [mente/corpo]; que a ciência intuitiva também permite o
conhecimento adequado da essência ativa dos atributos pensamento e extensão de Deus e da
essência ativa dos modos humanos que dos primeiros se seguem.
Com efeito, seguem-se três grandes consequências da ciência intuitiva: a suprema perfeição
da essência [mente/corpo] humana que se segue dos atributos pensamento e extensão; o afeto de
suprema alegria da mente intuitiva para com a essência do homem [mente/corpo]; o amor
intelectual da mente intuitiva para com os atributos pensamento e extensão de Deus, os quais
constituem de determinada maneira a essência do próprio homem [mente/corpo]. De resto, é
justamente a partir dessa terceira consequência da epistemologia intuitiva que se pode dizer no
terceiro capítulo, ao fim e ao cabo, o que é, para Spinoza, a beatitude ou a liberdade suprema.
Portanto, é a partir de uma ordem de inquirições que se dá [no terceiro capítulo] por meio
dos pressupostos da ciência intuitiva humana [a ontologia spinoziana e do intelecto de Deus], da
própria ciência intuitiva humana e, por conseguinte, daquilo que dela se decorre [a suprema
perfeição; a suprema alegria; o amor intelectual a Deus], que é admissível a anunciação da solução
do problema fundamental deste trabalho: o da liberdade suprema ou da beatitude do homem. Para
tanto, é necessária a interpretação metodológica ou a análise da estrutura das últimas proposições –
XXI a XLII – da EV9, já que é especificamente ao final dessa parte da obra que Spinoza cumpre o
seu programa mais fundamental, a saber, o programa “do caminho que conduz à liberdade [...viâ,
quae ad Libertatem ducit]” superior (EVPref.; SO2, p. 277).
Como se percebe de maneira geral, a metodologia que é empreendida neste trabalho é dada
por meio da hermenêutica estrutural da Ethica – ordine geometrico demonstrata [1677]. Contudo,
ressalta-se que a própria Ética, para ser adequadamente interpretada, necessita, para além dela
mesma [no próprio corpo do texto ou nas notas de rodapé], de um importante suporte: as outras
obras de Spinoza, tais como o Breve Tratado [Korte Verhandeling – 1656/1661.], o Tratado da
Reforma da Inteligência [Tractatus de Intelectus Emendatione – 1660/1663], as Cartas [Epistolae
– 1661/1676], o Tratado Teológico-Político [Tractatus Theologico-Politicus – 1670] e o Tratado
Político [Tractatus Politicus – 1677]10.
De resto, no trabalho também estão presentes em notas de rodapé: [a.] exposições, críticas
ou não, sobre a história da filosofia [a qual implica, por exemplo, Sócrates, Platão, Aristóteles,
Plotino, Santo Agostinho, Hobbes, Descartes etc.], o que é imprescindível para a compreensão
contextual da própria filosofia de Spinoza; [b.] elucidações, críticas ou não, acerca das visões de
intérpretes spinozianos [Marilena Chauí, Chantal Jaquet, Delbos, Lívio Teixeira etc.] a respeito dos

9
Para essa análise, sem dúvida, é também necessário o apoio de proposições de outras partes da Ética, tais como as
proposições da EII.
10
Cf. Nota preliminar, aonde está anunciado quais as edições de referência utilizadas acerca dessas obras.
16
conceitos spinozianos; [c.] anunciações, críticas ou não, das leituras críticas de determinados
filósofos [tais como Leibniz, Hume, Shopenhauer, Nietzsche etc.] a despeito da filosofia de
Spinoza; [d.] discussões, críticas ou não, concernentes às concepções de Spinoza as quais envolvem
este trabalho.

17
Capítulo 1
---
Substância, atributos e modos ou da consistência da ontologia de Spinoza
---

Não está morto o que no eterno jaz,


No tempo a morte é de morrer capaz.

Abdul Alhazred, Necronomicon.

Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes


e perguntei se o meu desenho lhes dava medo.

Saint-Exupéry, O pequeno príncipe.

Este primeiro capítulo trata da questão da ontologia de Spinoza, a qual é dada pelas
conexões entre elementos que, articulados como devem estar, sustentam-na, isto é, dão consistência
ao seu mecanismo. Formalmente é importante a anunciação de tal questão, de acordo com os
parâmetros acadêmicos. Desse modo, ela é expressa do seguinte modo: por que, para Espinosa,
tudo que há em sua ontologia é a presença da substância, seus atributos e modos? O
posicionamento dessa questão não deixa de entrever a ênfase no eixo que a explica, ou melhor, que
a responde sob a forma de objetivo. E qual seria ele? Justamente o de mostrar que as instâncias que
constituem a ontologia spinoziana são substância, atributos e modos [infinitos imediatos, infinitos
mediatos, finitos], demonstrando que a ontologia do filósofo atua em sua plenitude apenas por
meio da articulação desses conceitos.

1.1. Causa de si – Substância – Deus

Logo na primeira definição da EI [Deus ou De Deo] os leitores se deparam com a seguinte


explanação: “por causa de si entendo aquilo cuja essência [essentia] envolve a existência
[existentiam]; ou por outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como
existente”(EIDef.I; SO2, p. 45)11. O que o autor trata logo de início nessa expressão é que há uma

11
No Tratado da Reforma da Inteligência [Tractatus de Intellectus Emendatione] Spinoza aponta diretamente para as
condições de elaboração de uma boa definição, assim como indica o melhor modo de descobri-la. Nesse sentido, no
parágrafo 94 aponta que “pelo que caminho certo da descoberta é formar pensamentos a partir de alguma definição
dada, coisa em que se procederá com tanto maior felicidade e maior facilidade quanto melhor houvermos definido um
ser qualquer. Pelo que o ponto capital de toda esta segunda parte do método só em uma coisa consiste, isto é, em
conhecer as condições de uma boa definição, e depois no modo de descobri-las”. Certamente Spinoza tem essa
passagem como pressuposto para a montagem da própria Ética. Essa passagem precisa ser elucidada de modo a se
compreender a maneira pela qual o filósofo se dá com as próprias definições, as reais “portas de entrada” da Ética.
18
causa de si, uma “causa” que se justifica apenas por “si” mesma. Esta causa então é algo que
“permanece sobrevivendo” simplesmente a partir de si. Isto ganha ênfase pela exposição acerca de
dois termos: essência e existência12. O que se pode interpretar disso é que a essência desta causa é

Spinoza diz que as condições de uma boa definição e o melhor modo de descobri-las são aquilo que faz parte da
segunda parte do método. Essa segunda parte tem como pressuposto uma primeira parte intrínseca ao próprio método. A
primeira parte está resumida no parágrafo 49 do Tratado da Reforma do Intelecto: “primeiramente, estabelecemos o fim
ao qual desejamos dirigir todos os nossos pensamentos. Descobrimos, em segundo lugar, qual é a melhor percepção
[dentre os quatro modos de percepção apresentados no parágrafo 19], com o auxílio da qual poderemos alcançar nossa
perfeição; descobrimos, em terceiro lugar, qual é o caminho primeiro a que a mente deve ater-se para bem principiar,
isto é, inquirir segundo leis certas, a fim de que prossiga segundo a norma de qualquer ideia verdadeira dada. Para fazer
isso corretamente, o Método deve exigir o seguinte: Primeiramente, distinguir de todas as outras percepções a ideia
verdadeira e preservar a mente das demais [ideia verdadeira a qual é independente dos dados dos sentidos e que apenas
pela sua própria força se preserva das outras ideias oriundas dos sentidos]. Em segundo lugar, traçar regras para
perceber, segundo essa norma, coisas ainda não conhecidas. Em terceiro lugar, estabelecer a ordem, para que não nos
cansemos com coisa inúteis. Depois de conhecer este Método, vimos, em quarto lugar, que ele será perfeitíssimo,
quando tivermos a ideia do Ser Perfeitíssimo [ou seja, para além da força específica de uma ideia verdadeira interno-
finita, é preciso tomar consciência de que ela está conectada interiormente com um ser maior que ela própria: o Ser
Perfeitíssimo]. Daí que, já de início, se deve tomar isto na máxima consideração, a fim de chegar o mais depressa
possível ao conhecimento desse Ente”. Todas estas indicações acerca da primeira parte do Método ainda não envolvem
a expressividade ou a força da escrita de uma definição [segunda parte do método]. Antes disso, Spinoza sustenta que é
preciso um método que faça o homem perceber o que é especificamente interior à sua mente, independente dos dados
sensíveis, de maneira a fazer com que este mesmo homem tome consciência da atividade interna específica de sua razão
mental, isto é, ato de produzir e ordenar adequadamente ideias interiores. No entanto, como foi dito, esta produção e
ordenação interna de ideias por parte do homem não pode estar isolada de um Ser Perfeito que é a condição da atividade
mental do próprio homem. Este ente, portanto, deve estar conectado ao homem, no próprio interior do indivíduo, como
bem aponta Lívio Teixeira na introdução ao Tratado da Reforma da Inteligência: “em suma, as definições que
aumentam o nosso conhecimento são as que se fazem pelo conhecimento intuitivo ou do quarto modo de percepção, e
para saber que o que são as coisas reais ou físicas a que elas se referem devemos indentificar-nos com o Ser
Perfeitíssimo [...] É evidente que a ordem e unificação só podem ser alcançadas a partir de um ser que seja a causa de
todas as coisas e cuja essência deve ser causa de todas as ideias [...] Estamos, aqui, no âmago da doutrina espinosana, no
ponto em que se deve justificar a passagem, crucial no sistema, da sua epistemologia para a sua ontologia, que lhe
servirá de base para as definições iniciais da Ética, para as proposições em que prova apriorísticamente a existência da
Substância, de Deus e que, mais adiante, lhe permitirá demonstrar que a ordem e conexão das ideias são as mesmas que
a ordem e conexão das coisas” [TEIXEIRA, 2004, in Tratado da Reforma da Inteligência, p. XL-XLI]. Como se
observa, Spinoza acredita poder constituir um segundo momento para o seu método, agora explicitamente expressivo, e
não mais “introspectivo”. A expressão da definição pressupõe então uma espécie de experiência interna a qual ainda não
é linguística. Só assim é possível expor posteriormente boas definições sob certas condições e “desse ponto de vista,
cremos que será correto afirmar, desde já, que podemos considerar as definições do livro I da Ética não como princípios
arbitrários ou dogmaticamente postos por um filósofo cuja formação ou cuja intuição filosófica fundamental aconteceu
ser de inspiração monista, mas como criações da mente humana que se mostraram válidas pela capacidade de explicar a
realidade que tiveram as ideias que delas se deduzem. Trata-se, pois, de um processo analítico segundo o qual, de certo
modo, são as consequências que justificam os princípios ou definições iniciais da Ética” [IDEM., p. XLII]. Assim,
Spinoza aponta no parágrafo 95 do Tratado que “a definição, para que seja perfeita, deverá explicar a essência íntima da
coisa [Ser Perfeitíssimo] e evitar que ponhamos no lugar dela certas propriedades [...] Requer-se que o conceito da
coisa, isto é, a definição, seja tal que considerada só, não em conjunto com outras, todas as propriedades possam ser
deduzidas da mesma [...]”, daí por exemplo a concepção de causa de si, que é exposta apenas a partir dela mesma sem
envolver outros termos e que, do mesmo modo, constitui a propriedade das coisas finitas que dela derivam. Desse
modo, logo adiante [parágrafo 97] o filósofo enuncia quatro requisitos para a correta exposição a respeito da coisa
incriada [causa de si]: “I. Que exclua toda causa, isto é, que o objeto, para sua explicação, não necessite de nada além
do seu próprio ser; II. Que, uma vez dada a definição da coisa, não haja lugar para perguntar se ela existe; III. Que, em
relação à mente, não contenha substantivos que possam ser adjetivados, isto é, a definição não deve explicar-se por
meio de abstrações; IV. E por último (quase não é preciso dizê-lo) requer-se que da definição de uma coisa possam ser
deduzidas todas as suas propriedades. Tudo isso é manifesto a quem reflete com cuidado”.
12
Marilena Chauí no primeiro tópico do último capítulo [O ser absolutamente infinito e as coisas singulares] de
Nervura do Real [item a do primeiro tópico] realiza muito bem a articulação entre os termos essência e existência os
quais concernem à causa sui. Segundo ela “Na Parte I, a definição i,1 enuncia que é causa de si a essência que envolve
a existência e a natureza do que só pode ser concebido como existente. A causa sui é princípio de realidade, fundamento
de inteligibilidade e situa a Parte I no absoluto, isto é, naquilo que afirma a si mesmo como identidade inteligível da
essência e da existência” [Nervura do Real, 1999, p.748].
19
confirmada apenas pela sua própria existência, sem depender assim da existência de qualquer outra
coisa que lhe seja exterior. Se há algo cuja essência só se confirma a partir da existência de si, sem
precisar depender da existência de qualquer coisa que lhe seja exterior, certamente este algo deve
sua essência constituinte apenas a si mesmo. Portanto, a causa de si é totalmente “responsável” por
si13.
Isto é confirmado pela terceira definição da EI, a qual aponta que na causa de si também está
incutido o valor de substância: “por substância [substantiam - causa de si] entendo o que existe em
si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual
deva ser formado” (EIDef.III; SO2, p. 45)14. A causa de si então é algo que também se denomina

13
Delbos, na terceira lição de seu O espinosismo, crê que esta percepção do conceito spinoziano de causa de si é
herdeira concepção da causa de si cartesiana, a qual é exposta de forma análoga a do próprio Spinoza: “[...] quaisquer
que sejam as origens primeiras e quaisquer que tenham sido as vicissitudes do conceito de “causa de si”, é sem dúvida
alguma a Descartes que Espinosa tem-no tomado. Em suas Respostas às primeiras objeções, Descartes [...] mostra
como a noção de “causa de si”, tem preferência à fórmula em que Deus é sem causa, a vantagem de exprimir a
imensidade de essência “positivíssima” de que resulta a existência divina [...] Descartes fornecia os elementos da
definição de causa de si dada pela Ética, e era para Deus que ele introduzira e justificara este conceito” [DELBOS,
2002, p. 37-8]. Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso em seu trabalho As definições de causa de si, substância e atributo
na Ética de Benedictus de Spinoza é consonante com Delbos quando aponta que “sem a causa sui definida, Spinoza não
poderia provar a existência divina e nem sequer postular a sua existência”, ainda acrescendo que “esta definição é
fundamental ao sistema spinozista [...] a causa de si funda a ontologia spinozista porque possibilita que aquilo que o
entendimento finito concebe da coisa e o que a coisa é em si sejam postos como idênticos [...]” [FRAGOSO, in
UNOPAR Cient., Hum. Educ., v.2, nº1, 2001, p.84]. Ora, é exatamente devido a essa herança cartesiana que Spinoza
pôde adaptar o conceito em questão às suas próprias exigências, tornando possível à sua maneira a demonstração acerca
do movimento real pelo qual o próprio ser [causa de si] se autoproduz e se intelige, o que para Descartes seria
inconcebível, como bem expressa Maurício Rocha em seu artigo Spinoza e o Infinito – a posição do problema [2009]:
“Spinoza não pensará mais a causa sui como lugar da incompreensibilidade divina [tal como Descartes: observação
nossa], mas como modelo de inteligibilidade integral do real [...]” [ROCHA, in Conatus, v.3, nº5, 2009, p. 78].
14
Sem dúvida, para se compreender o conceito da substância spinoziana exige-se um critério: o da comparatividade
com a substância de dois outros filósofos fundamentais. Portanto, é necessário se apontar o que seja diferencialmente a
substância de Spinoza relativamente à de Descartes e à de Aristóteles. Isto é defendido por comentadores tais como
Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso, especificamente em seu artigo As definições de causa de si, substância e atributo
na Ética de Benedictus de Spinoza [2001]. Assim, no escopo do empreendimento comparativo referido acima o autor
passa a defender que Aristóteles é o filósofo que concebe que a “a substância [ousía] é o sujeito de inerência das
diversas propriedades ou qualidades [...], tendo, [em contrapartida] absoluta autonomia ontológica” relativamente “às
propriedades ou qualidades”, estas as quais “não usufruem desta autonomia e não podem existir sem a substância”. É
por isso que a substância aristotélica “é definida como sendo por si (in se), por oposição aos acidentes [propriedades]
que são em outra coisa (alio)”. Já na obra de Descartes é também afirmada “a autonomia ontológica da substância”, a
qual tem suas propriedades ou qualidades, tal como a escolástica, herdeira de Aristóteles. Ou seja, para esses dois
autores [Aristóteles/Descartes] os acidentes ou a propriedade ou qualidade intrínseca a substância estão como que, de
certo modo, apartados da própria substância. Ora, se esses acidentes [propriedades ou qualidades] estão como que
apartados da substância, apesar de se manterem internamente nela, não se pode negar que eles [os acidentes] são
concebidos por esses dois autores como “substâncias” distintas da própria substância na qual estão alocados. No caso de
Aristóteles, há uma espécie de plurisubstancialismo composto por inúmeras substâncias, como, por exemplo, as várias
substâncias individuais em matéria e a forma substancial pura extramaterial ou teológica. Já em Descartes, basicamente
há a presença de três substâncias [substância infinita; substância pensamento; substância extensão]. Desse modo, como
se pode observar, nem em Aristóteles nem em Descartes o termo substância pode ser considerado como unívoco, já que
há uma pluralidade de substâncias que estão como que apartadas umas das outras, o que faz com que a totalidade do Ser
esteja constituída, na visão desses autores [Aristóteles/Descartes], de substâncias isoladas umas das outras. É nesse
sentido que Fragoso [2001] discerne que Descartes preserva em sua inteireza o sentido que Aristóteles havia dado ao
termo substância, particularmente o termo que está disposto nas “Categorias”. E por quê? Porque, tanto quanto
Aristóteles, Descartes estabelece “uma gradação de sentidos para o termo substância: um sentido forte quando aplicado
a Deus e um sentido mais fraco quando aplicado às coisas criadas”. Ora, é isto que não garante a univocidade radical da
totalidade em Aristóteles e em Descartes. Em suma, é exatamente este fator que distancia Spinoza desses dois outros
autores, já que para Spinoza a substância ou a totalidade é uma só, sendo, portanto, unívoca. Como consequência, a
20
Substância, a qual “não pode ser produzida por outra substância”(EIPVI), sendo, por conseguinte,
“necessariamente infinita” [necessariò infinita] (EIPVIII; SO2, p.49). Esta infinitude é
caracterizada por Spinoza como algo que não se extingue, o que reitera o fato dela ser causa de si,
sem haver nada que exteriormente possa colocá-la, assentá-la em seu próprio plano. Caso isso
ocorresse, seu caráter de infinitude seria bastante problemático, tendo em vista que haveria algo
exterior ao infinito que seria a causa da existência deste próprio infinito, o que é inconcebível
logicamente. Para Spinoza “é absurdo afirmar isso de um ente absolutamente infinito e sumamente
perfeito. Logo, não há, nem em Deus, nem fora dele, qualquer causa ou razão [infinita] que suprima
[ou mesmo que ponha]15 sua existência[...]” (EIPXId.alternativaI). Se esse conceito spinoziano
fosse exposto desse modo ele poderia ter a característica daquilo que o autor menos pretende que
ele contenha em si, ou seja, a característica presencial da finitude: “Diz-se finita em seu gênero
aquela coisa que pode ser limitada por outra da mesma natureza” (EIdef.II; SO2, p. 45)16. É
justamente por isso que de modo oposto a causa de si ou substância infinita possui internamente
uma homologia estrutural entre essência e existência, permitindo disso extrair a informação de que
tal causa de si ou substância tem uma essência que não depende de nada que advenha de fora de si
mesma, ou seja, não precisa de nenhum conceito exterior a si para existir, já que existe em si e por
si, não sendo, portanto, finito. Algo que existe em si e por si é um conceito que não exige o conceito
de outra coisa do qual deva ser formado, sendo, por conseguinte, infinito por si mesmo.
A reiteração disso é claramente dada nas proposições VII [demonstração] e XX, as quais
reforçam o enunciado acima. No caso da demonstração da proposição VII da primeira parte da
Ética, vê-se o autor enunciar que “uma substância não pode ser produzida por outra coisa [...] Ela
será, portanto, causa de si mesma, isto é [...], a sua essência envolve a existência, ou seja, a sua
natureza pertence o existir” (EIPVIId.). Essa anunciação do conceito de uma causa de si que “se
conserva em si” apenas por seu próprio conceito tem sua justificativa nos termos essência e
existência, os quais, numa aparente relação dual, complementam-se. No entanto, essa relação dual é
realmente aparente, tendo em vista que, para Spinoza, essência e existência deve obedecer a uma
espécie de regime de identificação plena, justamente porque o autor precisa concluir que a
substância é aquilo que é causa de si e que, portanto, se conserva eternamente em si mesma. Para
tratar deste regime de identificação plena entre esses dois termos o autor precisa dizer que essência

substância spinoziana é constituída internamente não de outras substâncias, mas é “suporte de atribuições” as quais lhes
são inerentes ou fazem imediatamente parte de seu próprio “organismo” [Cf. FRAGOSO, in UNOPAR Cient., Hum.
Educ., v.2, nº1, 2001, p. 85-88].
15
Colchetes e observação nossos.
16
A esta definição, Spinoza acrescenta dois exemplos: “Por exemplo, diz que que um corpo é finito porque
concebemos um outro maior. Da mesma maneira, um pensamento é limitado por um pensamento”. Como ver-se-á
posteriormente, essa característica é típica dos modos humanos os quais são singularidades finitas compostas
internamente de mente e corpo finitos e que dependem de causas/coisas exteriores para existir. Esses modos, como será
visto, seguem-se do conceito de Substância.
21
e existência não podem ser encarados como termos separados ou isolados um do outro. Desse
modo, a solução encontrada pelo autor para demonstrar que não há uma relação entre esses dois
termos isolados [postos de modo a justificar o conceito de causa de si] está dada na proposição XX:
“a existência de Deus [Substância ou causa de si]17 e sua essência são uma e mesma coisa”
(EIPXX; SO2, p. 64)18. O que se infere disso é que para justificar o ser em si e por si daquilo que é
causa de si [e que, portanto, se conserva existindo em si] Spinoza precisa defender que a
sustentação de base deste conceito é mantida pela identidade absoluta entre essência e existência.
Isto se explicita com o apontamento spinoziano de que não há existência nem essência isolados,
assim como esses termos estão incutidos no próprio conceito de causa de si. Esta então é a
enunciação que Spinoza encontra para definir que seu conceito de causa de si é algo eterno que
contém internamente a essência e a existência como termos absolutamente idênticos. De outro
modo, a identidade entre os dois termos garante a Spinoza a defesa de que nem existência nem
essência são exteriores ao conceito de causa de si. Caso um desses termos fosse exterior a causa de
si poderia se subentender que um outro princípio [uma essência ou existência exterior] geraria a
própria causa de si, o que para o autor seria um equívoco que colocaria seu próprio sistema em
xeque.
A partir desse apontamento a respeito da essência e da existência da causa de si cabe
anunciar duas outras propriedades19 [fora a da infinitude] intrínsecas à própria causa de
si/substância, para além da infinitude a qual já fora abordada, a saber, a noção de eternidade e a
noção de liberdade. Quanto à noção de eternidade, também por meio dela o autor pretende inferir
que o conceito de causa de si/substância não tem carência de nada que lhe seja exterior [essência ou
existência outras], na medida precisa em que tem uma existência justificada apenas por si. É por
isso que se trata do termo “eternidade”, inerente aos termos substância ou causa de si. Por
eternidade Spinoza compreende a definição de uma coisa que existe eternamente. Desse modo, a
substância ou causa de si é uma existência conceitual que possui a especificidade de ser uma coisa
eterna, e o que é eterno não precisa de nada mais do que de si mesmo para garantir a sua própria

17
Observação e grifo nossos.
18
Tratar-se-á da nomenclatura Deus, que é análoga à Substância e Causa de si, adiante. Como ainda não foi abordada,
é preciso deixar bastante claro [nesta nota] que se utiliza neste momento de exposição apenas as características
intrínsecas do termo, as quais ajudam a solucionar o problema da relação dos termos essência e existência com a causa
de si ou substância. Precisa-se aqui a necessidade de incorporar elementos que fortaleçam o sentido dos dois conceitos
[Causa de Si; Substância] apresentados anteriormente. Isto garante a coerência e mesmo a consistência desta exposição.
Logo adiante, o termo Deus será retomado, dando-se toda a importância que este conceito “merece”. Cabe também
observar aqui que os conceitos de Deus, Substância e causa de si são tidos por Spinoza como termos similares os quais
garantem um único e complexo sentido, ou seja, os três termos são conceitos que se interrelacionam de tal modo que
juntos acabam por se tornar a unidade interativa de um só e mesmo conceito, já que Deus, Substância e Causa de si são
uma só e mesma coisa.
19
Cabe apontar aqui que a substância de Spinoza têm inúmeras outras propriedades, tais como imutabilidade,
perfeição, potência etc. Basicamente aqui, no primeiro capítulo deste trabalho, estão sendo explicitadas as propriedades
intrínsecas às definições da primeira parte da obra.
22
existência. Esse tipo especial de existência é então algo inerente à própria essência da Coisa,
Substância ou Causa de si, a qual é eterna porque jamais perece. Conclui-se então aqui: a essência
da substância é ter sua existência como eterna e infinita; quanto à noção de liberdade, pode-se
considerar a substância de Spinoza como sendo também plenamente livre tendo em vista que algo
que é eterno certamente é livre para permanecer consistentemente apoiado sobre si mesmo.
Diferentemente de um homem que poderia ter uma sensação passageira de liberdade, a substância
spinoziana é necessariamente livre. O autor trata então da liberdade da substância/causa de si na
sétima definição da EI: “diz-se livre [libera] a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de
sua natureza e que por si só é determinada a agir” (EIDef.VII.; SO2, p.46)20. Portanto, este conceito

20
No Breve Tratado o tema da liberdade enquanto aquilo que é propriamente pertencente à substância já havia sido
abordado. Nesta obra, Spinoza chega a frisar que a substância encontra-se numa espécie de homologia com liberdade e
perfeição, quase não havendo distinção entre os três termos [substância, liberdade e perfeição]. Isso está
especificamente disposto no quarto capítulo [De las obras necesarias de Dios] da primeira parte do BT [De Dios y de
cuanto le pertenece], aonde o filósofo expõe da seguinte maneira o que entende por liberdade: “la verdadera liberdad
no es en absoluto otra causa que la causa primeira, la cual no es de ningún modo coaccionada o forzada, sino que, en
virtud de su perfección, es causa de toda perfección” [BT, parte I, capítulo 4, (5)]. Marilena Chauí, no ensaio [Ciência
do afetos] alocado em sua obra Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa [2011], apresenta uma interessante
discussão acerca das diferenças entre a noção de liberdade da tradição e a concepção de liberdade que é própria de
Spinoza. Nesse escopo, a autora diz que “partindo das distinções aristotélicas, a tradição teológico-metafísica posterior
estabeleceu um novo conjunto de distinções com que pretendia separar liberdade e necessidade. Dizia que é “por
natureza” o que acontece “por necessidade” e, ao contrário, que é “por vontade” o que acontece “por liberdade” ”.
Sendo assim, de acordo com a tradição referida a natureza em si mesma não contém em si mesma liberdade, já que nela
mesma não há a possibilidade da corrupção de suas leis. Ou seja, a natureza é incorruptível e, portanto, tudo o que lhe é
intrínseco [coisas finitas] é arrastado pelas leis naturais as quais são inabaláveis. Com efeito, tudo o que está imerso na
natureza, de acordo com a visão da tradição em questão, não têm forças para “romper” com as regras do mundo natural.
Desse modo, nem mesmo o homem possui liberdade, a não ser pela mediação de um outro princípio, o qual nenhuma
outra criatura finita contém internamente, ou seja, a vontade. A vontade, nesse sentido, não é posta no homem por meio
de uma necessidade natural [causa eficiente], mas por algo exterior a ela: a vontade de Deus enquanto princípio exterior
ao universo, ou seja, transcendente. Assim, “identificando o natural e o necessário, de um lado, e o voluntário e o livre,
de outro, essa tradição afirmou que Deus, sendo onipotente e onisciente, não poderia agir por necessidade, mas somente
por liberdade e, portanto, somente por vontade. Da mesma maneira, feito à imagem e semelhança de Deus, o homem
era concebido como um agente livre porque dotado de vontade livre”. Assim, “agir em vista de fins [exteriores a
natureza] pressupõe inteligência ou razão; por isso mesmo a ação voluntária era tida como ação inteligente enquanto a
operação natural ou necessária era tida como automatismo cego e bruto”. Desse modo, agindo por meio dessa vontade
inteligência extramundana é possível uma escolha deliberada sobre o necessário. Ora, é assim que Deus efetua-se no
mundo da natureza ou necessidade, transformando-a de fora, é por isso que “apenas Deus tem o poder sobre o
necessário, o possível e o contingente e foi por decisão absolutamente livre de Sua vontade, isto é, por uma decisão
contigente, que o mundo foi criado do nada”. É justamente contra essa teologia que Spinoza se posiciona radicalmente,
constituindo uma diferente noção de liberdade. Em realidade, seu Deus/substância [o de Spinoza] não é mais conceito
exterior à necessidade, sendo, portanto, uma livre necessidade de afirmar-se em si e por si no próprio mundo. Assim,
Spinoza “elabora uma ontologia do necessário, cujo ponto de partida é um conceito muito preciso, o de substância” e
“compreende-se, então, porque em lugar das distinções tradicionais entre “por natureza/por vontade” e “por
necessidade/por liberdade”, a única distinção verdadeira admitida por Espinosa é a que existe no interior da própria
necessidade: o necessário [que é livre] pela essência [substância/Deus] e o necessário [que é livre] pela causa [coisas
finitas]”. Portanto, “a liberdade não é, pois, escolha voluntária nem ausência de causa necessária, e a necessidade não é
mandamento, lei ou decreto externos que forçariam um ser a existir e agir de maneira contrária à sua essência” [Cf.
CHAUÍ, 2011, p. 121-26]. É mesmo como bem conclui Fragoso [2006]: “[...] Liberdade em Spinoza significa
autodeterminação, ou, ainda, a capacidade de se autodeterminar, oposta, por sua vez, não à necessidade, mas à coação,
ao constrangimento. [...] Em outros termos: a liberdade de Deus em Espinosa fundamenta-se numa relação com a
necessidade, se distinguindo da liberdade divina tradicional, fundamentada no livre arbítrio para agir e para criar, numa
relação com uma vontade absoluta ou com um entendimento criador” [FRAGOSO, 2006, in Phisolosophica, p.159-70].
É nesse sentido que, junto com Christophe Miqueu [em a aposta do spinozismo ou o fim do finalismo / artigo exposto
no livro O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche] é possível dizer que o Deus de Spinoza é uma espécie de
ferramenta imanente de combate a qual insurge diretamente contra o Deus transcendente cristão, o qual estaria apoiado
23
“age exclusivamente pelas leis de sua natureza [naturae legibus] e sem ser coagido por ninguém”
(EIPXVII; SO2, p.61), ou seja, “não pode existir, pois, fora dele, nenhuma coisa pela qual ele seja
determinado ou coagido a agir” (EIPXVIId.).
É justamente por isso que a Substância, coisa ou causa de si, sendo uma existência infinita,
livre e eterna, também recebe uma outra denominação na definição VI da EI: Deus [Deo]
(EIDef.VI.; SO2, p.45)21. Por Deus Spinoza compreende “um ente absolutamente infinito [absolutè
infinitum][...]” (EIDef.VI.; SO2, p.45). Esta definição parece importante para terminar-se de montar
o quadro específico do conceito de Substância, Coisa eterna ou Causa de si. Substância, Coisa
eterna ou Causa de si designam um conceito o qual representa algo que “deve” sua existência
apenas a si mesmo e que, por isso, é uma coisa livre, permanecendo existindo eterna e
infinitamente: tal é o regime de existência de sua essência. A representação de um conceito infinito
que permanece como uma existência viva por toda a eternidade lhe garante a própria liberdade de si
para consigo. De acordo com isso Spinoza permite inferir que esse conceito “indestrutível” o qual
fora exposto é então livre, infinito e eterno. Aos olhos de Spinoza, essas três propriedades [expostas
em três das oito definições da primeira parte da obra] permitem concomitantemente defender que
seu conceito de substância é também imutável, ao passo em que permanece como eternidade,
liberdade e infinitude inabalável. Tal é a natureza da essência do conceito de Deus de Spinoza, isto
é, uma existência que mostra-se às vistas como sendo a própria essência imutável de Deus /
Substância / Causa de Si. Ora, é justamente por isso que esse conceito é livre, infinito e eterno, nada
o corrompendo, nada alterando sua lógica, na medida em que ele tudo pode.

sobre uma tese criacionista, “amplamente dominante na época de Spinoza”. Segundo o comentador, essa tese representa
uma vertente “sobre-humana, do poder divino. Ocupando simbolicamente o prólogo do antigo testamento, ela
permanece sustentada numa tradição filosófica quase onipotente”. E qual seria essa tradição filosófica que seria a
grande aliada da teologia cristã? De acordo com Miqueu, os principais representantes dessa tradição foram Platão,
Santo Agostinho, Tomás de Aquino, os escolásticos e Descartes: “todos os grandes nomes da filosofia ocidental, cada
um de maneira singular, caucionaram – ou foram interpretados da maneira como foram caucionados – a ideia de uma
criação emanada de uma divindade de poder absoluto [...] Esse Deus transcendente, legislador e criador, que atravessa
toda a história da filosofia ocidental, constitui o suporte, implícito e partilhado, sobre o qual os diversos relatos a
respeito do Deus-rei puderam se edificar. Trata-se de uma verdadeira rocha conceitual que alimenta por séculos a
ontologia tradicional, e condiciona a certeza do ignorante nessa ficção” [MIQUEU, 2009, in O mais potente dos afetos:
Spinoza e Nietzsche, p.120-21]. Então, para Miqueu, o posicionamento antagônico de Spinoza se insurge diretamente
contra uma dupla face, a qual é constituída pelos cânones de parte da filosofia ocidental [especificamente os filósofos
que foram citados] e pela teologia cristã que obteve todo o suporte da ontologia tradicional. Certamente essa postura
“subversiva” de Spinoza se explica em grande parte pela opção da substituição conceptual de um Ente transcendente
por um especificamente imanente, ou seja, unido diretamente as suas “criaturas” em vida, não as tendo, portanto,
abandonado. Assim, o Deus de Spinoza certamente não é um deus escondido, velado, mas algo internamente presente
em todos os indivíduos, estes os quais apresentam o Deus imanente sob modulações diferenciais de perfeição. Com
efeito, a noção de culpa ou mesmo de pecado perde toda a pertinência na filosofia de Spinoza, não havendo mais
qualquer espécie de dívida eterna, já que todos homens são “tensões” diretas de um Deus imanente.
21
Ora, é exatamente isso que Farias Brito aponta no quarto capítulo [o ponto culminante da filosofia dogmática:
monismo de Spinoza] do livro I de sua obra Finalidade do Mundo [1957]. Nessa obra, o comentador defende a tese de
que “[...] tudo afinal tem sua causa primeira, originária na substância, e só a substância tem sua causa em si mesma.
Sendo assim, é evidente que a substância é o ser absoluto, o ser perfeitamente ilimitado e infinito. Ora, o ser
perfeitamente ilimitado e infinito é Deus[...] Logo a substância é Deus. Efetivamente assim é, sendo que nos termos da
filosofia de Spinoza, quando se diz substância, diz-se Deus, do mesmo modo que, quando se diz Deus, diz-se
substância. Deus é a Substância; a substância é Deus” [BRITO, 1957, p. 188].
24
Spinoza parece sugerir exatamente isto com a demonstração e o escólio de sua proposição
XI, em que diz o seguinte:

[...] uma coisa existe necessariamente se não houver nenhuma razão ou causa que a
impeça de existir. Se, pois, não pode haver nenhuma razão ou causa que impeça
que Deus exista ou que suprima a sua existência, deve-se, sem dúvida, concluir que
ele existe necessariamente. Mas se houvesse tal razão ou causa, ela deveria estar ou
na própria natureza de Deus ou fora dela, em uma outra substância, de natureza
diferente. [...] Mas é absurdo afirmar isso de um ente absolutamente infinito e
sumamente perfeito. Logo, não há, nem em Deus, nem fora dele, qualquer causa ou
razão que suprima sua existência e, portanto, Deus existe necessariamente
(EIPXId.). Muitos, entretanto, poderão talvez não ver facilmente a evidência dessa
demonstração, porque estão acostumados a considerar somente aquelas coisas que
decorrem de causas exteriores. [...] Com efeito, as coisas que são produzidas por
causa exteriores, consistam elas de muitas ou de poucas partes, devem tudo o que
têm de perfeição (ou seja, de realidade) à virtude da causa exterior e, assim, sua
existência tem origem unicamente na perfeição da causa exterior e não na sua
própria causa. Em oposição, nada do que uma substância tem de perfeição é devido
a qualquer causa exterior e, assim, também a sua existência deve decorrer
unicamente de sua própria natureza, existência que nada mais é, portanto, do que
sua própria essência (EIPXIs.).

1.2. Atributos

Um segundo problema surge agora nesta exposição: além das características fundantes
apontadas a respeito deste plano conceitual-substancial de Spinoza, o que mais ele contém em si, o
que se relaciona com ele em seu interior, afinal? A continuação da definição VI da EI, continuação a
qual se imprimiu logo acima em seu lugar reticências, responde a esta pergunta. Repetir-se-á então
aqui essa definição em sua integralidade: “Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é,
uma substância que consta de infinitos atributos [attributis], cada um dos quais exprime uma
essência eterna e infinita” (EIDef.VI.; SO2, p. 45). Nessa definição então já se pode brevemente se
vislumbrar o que se passa no interior de Deus, ou seja, um segundo conceito interno ao plano de um
Deus que acaba de ser reiterado pela via da interpretação desse autor. Este segundo conceito tem
como significante a palavra-conceito “atributos”, palavra-conceito interno à Substância ou Deus. O
que foi dito sobre cada um dos atributos logo acima? É razoável que se ressalte: cada um deles
essencialmente constitui o próprio interior da substância ou Deus, assim como cada um deles, por
isto, exprime de modo específico a essência eterna e infinita de Deus, Substância ou Causa de si.
Esses atributos são então, primeiramente, essências expressivas [seres formais ou quididades]
específicas as quais são internas à substância ou Deus.
Na citação acima sobre os atributos, Spinoza acrescenta a eles mais informações: os
atributos são também infinitos. Nesse sentido, os mesmos são expressões específicas infinitas as
quais são gêneros distintos e internos à essência da Substância. Nessa explicação da definição VI
25
Spinoza reitera isto ao apontar que, no entanto, os atributos são infinitos apenas em seus gêneros,
ou seja, em suas especificidades expressivas. Esta anunciação é o que garante o fato da distinção da
substância para com cada um dos atributos, já que a substância é absolutamente infinita e não
infinita “em seu gênero” expressivo. Desse modo, o autor aponta que cada um dos atributos
“pertence à essência do que é absolutamente infinito [Substância/Deus]” (EIDef.VI.explic.) e,
portanto, cada um deles é aquilo que exprime [enquanto infinitos] interna e diferencialmente a
mesma essência: a da Substância. Assim, cada uma dessas qualidades atributivas infinitas tem sua
singularidade expressiva, isto é, possui uma expressão muito típica, “comunicando” a Substância do
seu “jeito”.
No entanto, é importante atentar para o que está exposto na proposição X da EI, na qual é
dito que cada um dos atributos da substância também “deve ser concebido por si mesmo [per se
concipi debet]” (EIPX; SO2, p. 51). O que se pode apontar primeiramente como esclarecimento
deste enunciado é que os infinitos atributos da substância não são interdependentes, ou seja, cada
um deles atua em si e por si. No entanto, eles são caracterizados dessa maneira à medida que são
expressões ou gêneros infinitos de algo no qual estão instanciados: a substância. Os atributos então
são instâncias infinitas próprias da substância absolutamente infinita, os quais também permanecem
em si e por si22. Neste sentido, os atributos de Spinoza não são concebidos em si e por si tal como a

22
No capítulo De la providencia de Dios da primeira parte do Breve tratado é possível se observar que a noção de
atributos, enquanto aquilo que também é concebido em si por si, já está bastante consolidada: “acabamos de ver que los
atributos [...] son cosas o, ablando con más propriedad, un ser que existe por sí mismo y que, por tanto, si da a conocer
a sí mismo y se demuestra por sí mismo”. Disso, Spinoza extrai a seguinte conclusão: “De los atributos de un ser que
existe por sí mismo, y éstos no exigen ningún género o algo por lo cual sean mejor entendidos o explicados, porque,
como son atributos de un ser que existe por sí mismo, también ellos deben ser conocidos por sí mismos” [BT, parte I,
capítulo VII, (10)]. Analisando a proposição X da EI em respeito a essa questão, Chauí [em Nervura do Real] aponta
que essa concepção spinozista a qual informa que os atributos são concebidos em si e por si não permite que haja, em
contrapartida, uma distinção numérica entre eles. Ou seja, cada um dos atributos são concebidos em si e por si, mas não
podem se diferenciar uns dos outros como se fossem números matemáticos [Atributo nº1, atributo nº2, atributo nº3 etc.].
Assim, a intérprete acresce que “[...] os atributos não constituem um certo número de seres ou substâncias [...]”. Mas
por quê? Chauí justifica isso argumentando que os atributos não são números distintos ou puros que contrastariam entre
si, já que eles, na verdade, distinguem-se apenas na maneira de expressar um mesmo ser, a Substância. Desse modo,
“em sentido rigoroso e literal, os atributos são inumeráveis [...] cada atributo existe simultaneamente com todos os
outros na substância cuja essência constitui [...] É ao exprimi-la [a substância] diferenciadamente que a exprimem
como absolutamente infinita e se exprimem como infinitos em seu gênero” [CHAUÍ, 1999, p. 840-43]. Nesse itinerário,
como bem aponta Delbos [2002], “há naturezas que são perfeitas em seu gênero e cuja essência encerra a existência
necessária [substância]. São manifestamente, para Espinosa, os atributos. A partir disso, acrescenta, se supomos que um
ser que exprime uma perfeição infinita só em seu gênero existe por sua natureza, com mais razão devemos supor que
existe por si um ser que exprime todas as perfeições de todo gênero [...]” [DELBOS, 2002, p. 48-49]. Por meio dessa
leitura de Delbos, Emanuel Fragoso [artigo As definições de Causa sui, Substância e Atributo na Ética de Benedictus
de Spinoza – 2001] aponta então que os atributos spinozianos, além de serem concebidos em si e por si na substância e
de não se categorizarem como números [como crê Chauí], não são também qualidades exemplares apresentadas como
simples analogias distintas da substância única [simples relação distante de semelhança]. É isso que faz Spinoza negar,
por conseguinte, a visão da tradição teológico-cartesiana pela qual os atributos se apresentam como analogias ou
similitudes substanciais distantes [longínquas] da substância “principal e incognoscível” por meio da qual advém:
“particularmente quando Descartes descreve ou define a natureza de Deus que segundo ele necessariamente envolve
existência, faz entrar nela perfeições sem limites, como ele diz, mas perfeições que em sua maioria são [...] qualidades
exemplares [...] das quais [...] estão muito longe [...] de constituir a essência única e indivisível de Deus [...]”
[DELBOS, 2002, p. 43-5]. E o que são então os atributos então para Spinoza? Ora, “é o que constitui a substância ou
26
substância o é, mas de um modo diferente. Conclui-se: os atributos concebem-se em si e por si
enquanto simultaneamente são expressões singulares que estão no interior da própria substância.
Isto está claramente expresso na EIPXIX e em sua demonstração, aonde Spinoza diz que “todos os
atributos de Deus são eternos” porque “à natureza da substância [...] pertence a eternidade. Logo,
cada um dos atributos deve envolver a eternidade e, portanto, são, todos, eternos”. No mesmo
sentido, Spinoza infere o seguinte:

“fica claro, assim, que, ainda que dois atributos sejam concebidos como realmente
distintos, isto é, um sem a mediação do outro, disso não podemos, entretanto,
concluir que eles constituam dois entes diferentes, ou seja, duas substâncias
diferentes. Pois é da natureza da Substância que cada um de seus atributos seja
concebido por si mesmo, já que todos os atributos que ela tem sempre existiram,
simultaneamente, nela, e nenhum pôde ter sido produzido por outro, mas cada um
deles exprime a realidade, ou seja, o ser da substância [...] Como consequência,
nada é igualmente mais claro do que o fato de que um ente absolutamente infinito
[substância]23 deve necessariamente ser definido (como fizemos na def. 6) como
consistindo de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência precisa

essência pela qual a substância é efetivamente uma substância e é reconhecida como tal pelo intelecto; ou seja, os
atributos são o princípio ontológico da substância porque constituem a sua realidade e o princípio de sua inteligibilidade
porque a fazem conhecer como tal [...]”, vide EIDef.IV. [FRAGOSO, in Unopar Ciên. Hum. Educ., v.2, nº1, 2001, p.
88-89]. É exatamente nesse sentido que, na proposição XIII [Uma substância absolutamente infinita é indivisível] e nas
cartas XXXV e XXXVI à Juan Hudde, Spinoza aponta que tais expressões ou atributos da substância não a dividem
tendo em vista que a mesma é absolutamente indivisível, ou seja, os atributos da substância não a dividem já que se a
dividissem sua totalidade “sairia” do interior de si mesma. Ademais, caso isto ocorresse poderia haver a possibilidade
dos atributos metamorfosearem-se em novas substâncias, o que o autor vê como um grave problema, já que, para ele,
gerar um universo-substância a partir de outro universo-substância seria um absurdo. Tal problema poderia também
estar distribuído em dois eixos spinozianos: se os atributos se transformassem em novas substâncias ou naturezas
distintas Deus, primeiramente, poderia ser considerado finito, uma natureza universal entre tantas outras [esa
Naturaleza podría ser comprendida como finita – Ep.XXXV]; de modo segundo, Deus poderia ser destruído pelas
outras substâncias naturais que surgem de si e as quais o dividiriam [se ocurriera esto podría ser destruido y, por tanto,
no existir, lo que sería contrario a la definición – Ep.G.XXXV/Ep.XXXVI: Tradução de Atilano Dominguez, 1988],
tornando-o assim imperfeito; em contrapartida, Spinoza diz então na proposição XIII da EI que “uma substância
absolutamente infinita é indivisível” [EIPXIII], e isso justifica o fato dos atributos permanecerem no âmago da
substância não se “destacando” dela, o que garante a mesma o caráter de ser o Deus o qual contém e preserva tudo em
seu interior. No entanto, mesmo a substância sendo unívoca, não se pode deixar de inferir junto com Ponczkec [Uma
definição geométrica e uma interpretação física para os atributos de Spinoza, in Conatus, v. 1, nº1, 2007] que os
atributos são como que distintos planos geométricos projetivos da substância, sendo, portanto, aquilo que de algum
modo a divide por dentro [cisões internas]. Negando tanto as teorias - três interpretações canônicas acerca dos atributos
de Deus - de Erdmann [atributos como formas intelectuais], de K. Thomas [atributos como substâncias] e de Kuno
Fischer [atributos como forças], este do qual Farias Brito [1957] se põe como partidário acerca da noção de atributos,
Ponczek diz eisteinianamente que os atributos devem em realidade ser entendidos como “projeções [grifo nosso] da
substância em subespaços infinitos [...], ou seja, os atributos seriam planos [...] de dimensionalidade necessariamente
menor que a da substância”. Ou seja, para Ponczek, a substância é como se fosse uma espécie de grande campo em vias
de projeção. No entanto, tal campo [substância] é certamente constituído ou, em realidade, dividido em planos
[subespaços/atributos] geométricos dos mais variados, pelos quais a própria substância [campo infinito] se projeta
“luminosamente” em diferentes matizes expressivos: “Desta forma, proponho que os atributos sejam projeções da
substância em subespaços dimensionalmente menores”. Ora, se é assim, em defesa aqui da visão de Ponczek, não se
pode deixar de concluir que a substância spinoziana é aquilo que “fisicamente” [diferentemente do que o próprio
Spinoza acredita e a maioria de seus comentadores] está verdadeiramente repartida [dividida] em seu próprio interior
por inúmeros planos geométricos [atributo distintos], os quais estão a recobri-la sob diferentes “texturas” projetivas de
si mesma: “[...] A cada plano-atributo corresponde uma projeção distinta da mesma substância. [...] Em cada plano ela
se projeta de forma distinta, segundo a essência da substância desvelada em cada um dos ângulos de projeção
(atributos): Afinal, o que são os atributos divinos: formas intelectuais [ERDMANN], substâncias [K. THOMAS], forças
[FICHER] ou planos de projeção [PONCZEK]?” [PONCZEK, in Conatus, v. 1, nº1, 2007, p. 82-86].
23
Grifo e observação nossa.
27
– eterna e infinita” (cf. EIPXs.).

De todos os atributos que constituem o interior da substância interessam aqui apenas dois:
pensamento e extensão. No corolário da proposição XI da EI Spinoza aponta que “a coisa extensa24
e a coisa pensante” são atributos de Deus25. E por que apenas estes dois atributos interessam aqui?
Porque eles são as únicas das expressões qualitativas pertencentes à Substância que o intelecto
humano percebe em seu interior como aquilo que está presente em sua essência interna. Portanto, é
assim que Spinoza julga só poder dar nomenclatura a dois dos atributos da substância, já que ele se
acredita enquanto homem o qual percebe internamente em si apenas pensamento e extensão.

1.3. Modos – imediatos/mediatos/finitos.

Neste tópico, primeiramente, tratar-se-á das concepções spinozanas de modos [modum]


infinitos imediatos e modos infinitos mediatos. Isto é, conceitos que se antecipam, juntamente com
os atributos da substância, aos modos finitos, e que são ao mesmo tempo imprescindíveis para a
compreensão dos próprios modos finitos. Assim, os modos infinitos imediatos e mediatos também
ajudam a demarcar posteriormente o conceito de homem [modo finito humano] na filosofia de
Spinoza. Esta cronologia de exposição é dada então em respeito à própria ordem de pensamento de
Spinoza, para o qual o homem ou modo finito não pode essencialmente ser concebido sem a
mediação dos modos infinitos imediatos e mediatos. Por quê? Porque de acordo com o filósofo é
imprescindível fazer com que os modos finitos não sejam definidos como produções imediatas ou
mediatas dos atributos da Substância, pois poderiam oferecer a denotação de que seriam tão
absolutos quanto os próprios atributos. Isto está explícito na demonstração da proposição XXVIII
da primeira parte da Ética, aonde Spinoza diz que: “tudo o que é determinado [determinatum] a

24
Em Espinosa e a relação Todo/Partes, a comentadora portuguesa Maria Luísa Ribeiro analisa a concepção de
extensão na filosofia de Spinoza como aquilo que não é composto de partes ou corpos distintos isolados uns dos outros,
visão comum e abstrata acerca da matéria. Para ela, esta “é uma concepção que não nos conduz à essência da matéria,
antes corresponde a uma visão fácil e superficial da mesma, induzindo-nos em erro [...] Trata-se de um conhecimento
parcial pois não atende à dimensão ontológica da matéria, impossível de alcançar pela imaginação. [...]”. Sendo assim,
de acordo com a comentadora [o que parece pertinente] a extensão ou matéria infinita é como se fosse um só corpo
imensurável em mistura continua, não havendo, portanto, como defini-la a partir de distribuições espaciais ou corpos
isolados uns dos outros: “Para o filósofo a Substância inclui na sua essência uma matéria ou extensão infinita que,
devido a tal infinitude, não pode ser mensurável nem composta de partes finitas. A sua convicção é que a Substância
corpórea é infinita, única e indivisível”. Desse modo, Spinoza “tem da matéria uma percepção diferente,
compreendendo que ela não tem partes. Quando falamos delas estamos a considerá-las modalmente e não realmente”
[Cf. FERREIRA, in Conatus, v. 4, nº 8, 2010, p. 90-91]
25
Cabe apontar também aqui que o corolário completo está implementado na EI do seguinte modo: “Segue-se, em
segundo lugar, que a coisa extensa e a coisa pensante ou são atributos de Deus ou são afecções dos atributos de Deus”
[EIPXIVcorol.II]. É importante esclarecer que o termo afecções será tratado adiante no que diz respeito aos modos
humanos: ambos são expressões análogas as quais ainda não foram trabalhadas neste texto; já a respeito dos atributos
da substância, eles também estão denunciados de modo bastante enfático nas primeira e segunda proposições da EII [De
naturâ, & origine mentis – Da natureza e da origem da mente] aonde Spinoza aponta que “o pensamento é um atributo
de Deus” e a “extensão é um atributo de Deus”.
28
existir e a operar é assim determinado por Deus [...] Ora, o que é finito e tem existência determinada
não pode ter sido produzido pela natureza absoluta [ou imediata ou mediatamente] 26 de um atributo
de Deus, pois tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus é infinito e eterno”
(EIPXXVIIId.; SO2, p. 69). Portanto, os modos finitos não são produções imediatas ou mediatas
dos atributos da substância, mas são aquilo “pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma
maneira definida e determinada” (EIPXXVc.). E o que vai garantir a maneira definida e
determinada pela qual os atributos se exprimem nos modos finitos? Justamente o que Spinoza
intitula de modos infinitos imediatos e mediatos27. É assim que o filósofo, especificamente nas
proposições XXI, XXII e XXIII da EI, concebe [antes dos modos finitos] essas noções, de maneira
a concluir [já na demonstração e no escólio da proposição XXVIII] que os modos finitos seguem
destes modos infinitos e não imediatamente nos atributos da substância. É então imprescindível
aqui a análise dessas proposições. Deste modo e com esta justificativa, pode-se argumentar que
após a exposição sobre os dois tipos de modos infinitos haverá a reiteração da concepção de modos
finitos.

1.3.1. Modos infinitos imediatos ou a estaticidade do universo

Na proposição XXI Spinoza expõe o seguinte: “tudo o que se segue da natureza absoluta de
um atributo de Deus deve ter sempre existido e ser infinito, ou seja, é, por via deste atributo, eterno
e infinito” (EIPXXI). Nesse escrito o filósofo não diz o nome daquilo que se segue dos atributos,
deixando apenas subentendido que aquilo que se segue de qualquer um dos atributos de Deus é tão
eterno e infinito quanto os próprios atributos. Portanto, aquilo que insurge imediata e diretamente
dos e nos atributos de Deus é tão eterno e infinito quanto os próprios atributos. E qual seria a
nomenclatura daquilo que insurge imediatamente dos atributos e que é tão “supremo” quanto eles?
Esta resposta está dada na demonstração da mesma proposição que foi citada acima, só que é uma
resposta que está referida apenas àquilo que emerge imediata e exclusivamente do atributo
pensamento. Em tal demonstração Spinoza diz que “se a ideia28 de Deus [idea Dei], no pensamento,
ou alguma outra coisa [...] em algum atributo de Deus, se segue da necessidade da natureza absoluta

26
Colchetes e observação nossos.
27
Lívio Teixeira [2001] diz que essa doutrina dos modos infinitos [imediatos e mediatos] “é das mais difíceis do
espinosismo”. Para o comentador, esta dificuldade se dá porque em nenhum dos textos há o aprofundamento destas duas
concepções:“O filósofo mesmo não a explicou suficientemente. Além do texto do BT referente aos modos universais
[...], a doutrina dos modos infinitos se encontra nas proposições XXI-XXVIII da Ética, Parte I. Também a carta dirigida
a G.H.Schuller, e em resposta a expresso pedido deste, Espinosa dá como exemplo dos modos infinitos imediatos, “para
o Pensamento, o entendimento absolutamente infinito, para a Extensão, o movimento e o repouso”. Mas, apesar da
dificuldade em encontrar passagens que melhor elucidem o que são os modo infinitos, os dois textos citados pelo
comentador anunciam “uma diferença e uma hierarquia entre o atributo pensamento (cogitatio) e o entendimento
(intelectus), assim como entre o atributos extensão e o “movimento e ou repouso” ” [TEIXEIRA, 2001, 166-167].
28
grifo nosso
29
desse atributo, isso deve necessariamente ser infinito” (EIPXXId.; SO2, p. 65). Portanto, aquilo que
emerge imediatamente do atributo pensamento é o que Spinoza chama de ideia.
E o que insurge imediatamente dos e nos outros atributos? O filósofo não responde em
nenhuma das partes da Ética. No entanto, o autor bem responde nos relatos da carta LXIII em
referência a Schuller 29 e no capítulo IX [Da natureza naturada] que está disposto na primeira parte
do Breve Tratado. Nessa última obra Spinoza diz que:

Por aquilo que concerne [...] aos modos ou criaturas que dependem imediatamente
de Deus ou que são criados por ele, não conhecemos mais do que dois deles, a
saber, o movimento na matéria e o entendimento na coisa pensante. Pois bem, nós
dizemos que estes têm existido desde toda a eternidade e permanecerão imutáveis
por toda a eternidade (BT, parte I, capítulo IX, (1))30.

O que este trecho do Breve Tratado tem para oferecer aos seus leitores? Certamente, nesse
fragmento existem elementos que acrescem informações importantes à demonstração da proposição
XXI da EI. Primeiramente, aquilo que Spinoza chama de ideia nessa demonstração da EI, ou seja,
aquilo que se segue imediatamente do atributo pensamento é denominado no BT de entendimento.
Portanto, o que “sobressai-se” imediatamente do/no atributo pensamento é a ideia ou entendimento
divino, o qual é correlato ao atributo em questão [pensamento]; de modo segundo, Spinoza não
expõe na demonstração da proposição XXI da EI a nomenclatura de qualquer outra coisa que surja
imediatamente de qualquer outro atributo. No entanto, no trecho do BT citado há uma informação

29
“Desearia ejemplos de aquellas cosas que son inmediatamente producidas por Dios y de aquellas que lo son
mediante alguna modificación infinita. A mí me son del primer género el pensamiento y la extensión, y del segundo, el
entendimiento en el pensamiento,y el movimiento, en la extensión, etc”. [Ep.LXIII. Tradução de Atilano Dominguez,
1988].
30
Tradução nossa. No original [Ed. Atilano Dominguez]: “Por lo que toca [...] los modos o creaturas que dependen
inmediatemente de Dios o son creados por él, no conecemos más que dos de ellos, a saber, el movimiento en la materia
y el entendimiento en la cosa pensante. Pues bien, nosostros decimos que éstos han existido desde toda la eternidad y
permanecerán inmutables por toda la eternidad.” - Analisando justamente essa passagem do Breve Tratado, Delbos
[2002] diz que a mesma reflete de modo muito claro o que são os modos infinitos imediatos para Spinoza: “essa
resposta de Espinosa é suficientemente clara, e está em acordo com a passagem do Breve Tratado (1ª parte, cap. IX) em
que nos diz que, dentre os modos que dependem imediatamente de Deus, conhecemos dois: o movimento na matéria e o
intelecto na coisa pensante”. O comentador ainda diz mais sobre os modos infinitos imediatos, apontando que eles são
como que, spinozianamente falando, “filhos de Deus”,“seus primogênitos criados desde toda a eternidade e subsistindo
sem alteração desde toda eternidade [...]” [DELBOS, 2002, p.65-67]. Em acréscimo a isto, Fragoso [2001] aponta que
“os modos infinitos imediatos são os que “resultam necessariamente da natureza absoluta de Deus” (Ip.21) ou que
“resultam da natureza absoluta de qualquer atributo de Deus” (Ip.21)”. Como resultados da natureza absoluta de Deus
os modos infinitos imediatos [entendimento/movimento] são então aquilo que se segue imediatamente de Deus,
justamente porque são “os herdeiros” delbonianos da absoluta natureza de Deus. Mas não é só isso. Diferentemente dos
atributos de Deus dos quais se seguem é preciso também deixar claro que, à luz da diferença para com eles, os modos
infinitos imediatos estão no tempo [duração], “ou seja, nesta proposição a “eternidade” [dos modos infinitos imediatos]
está sendo relacionada com o tempo; trata-se mais especificamente de uma existência sem começo e nem fim do que de
uma “eternidade” propriamente dita. Nesse sentido dado, a “existência eterna” [dos modos infinitos imediatos] aqui
referida é justamente a duração, pois Spinoza define-a como a “continuação indefinida da existência” (Iid5)”. É desse
modo que o comentador conclui que a forma de existência dos modos infinitos imediatos é dita de maneira diferente
daquela que é dita dos atributos da substância. É por isto que nesses últimos [atributos] “a eternidade é um tipo
específico da existência que não tem nenhuma relação com a duração e o tempo” [FRAGOSO, in Semina: Ci. Soc.
Hum, 2001, p.36].
30
preciosa que discerne sobre aquilo que se segue imediatamente do/no atributo extensão:
“movimento”. Esse movimento é o que Spinoza infere como sendo a lei infinita que se segue do/no
atributo extensivo. Portanto, há uma lei infinita de movimento que “inscreve-se” de/em uma
extensão infinita.
Que conclusão é possível tirar a respeito da correlação de pensamento e de extensão com o
que surge imediatamente deles? Que a extensão atributiva de Deus é de antemão absolutamente
imutável, impondo posterior e imediatamente em si uma lei de movimento infinito, lei que também
é imutável. O mesmo ocorre com o pensamento, que também é imutável e faz emergir a posteriori a
lei da ideia ou entendimento infinito que também possui, de modo semelhante, imutabilidade, como
o próprio Spinoza demonstra na citação do BT. Conclui-se: esses dois modos infinitos imediatos [lei
do entendimento que se segue do pensamento e lei do movimento que se segue da extensão] são
modos pelos quais pensamento e extensão “inscrevem leis” eternas, estáticas e imutáveis no
universo. É preciso aqui a recorrência a um exemplo: o pensamento, atributo pertencente à
eternidade substancial a priori, “transmuta-se” em lei imutável, infinita e eterna da ideia no “topos”
do universo eterno. Este modo infinito imediato [ideia do pensamento] é assim em realidade o
modo imediato ou lei da ideia pela qual o pensamento eterno [da/na Substância] incide em um
universo igualmente eterno. Ora, o mesmo ocorre com todos os outros atributos da Substância 31, os
quais incidem no plano do universo sob a forma de leis ou modos infinitos imediatos estáticos.
Nesse sentido, os modos infinitos imediatos não são propriamente os atributos da substância, mas
são a “porta de entrada” dos atributos da Substância no universo. Ou melhor, os modos infinitos
imediatos são aquilo por meio do qual os atributos constituem imediatamente o universo.

1.3.2. Modos infinitos mediatos ou o devir do universo

Após informar aos seus leitores quais são as duas leis ou modos infinitos imediatos do/no
universo os quais o homem tem a capacidade de designar, Spinoza sente a necessidade de precisar o
que dá mutabilidade a esses modos no universo. Por quê? Porque caso não houvesse nada que
pusesse esses modos imediatos ou leis estáticas em modificação o próprio mundo não passaria de
uma espécie de grande imagem morta, parada. Desse modo, para Spinoza é preciso que exista algo
o qual seja interno a todas essas leis estáticas ou modos infinitos imediatos e que, no entanto, se
diferencie deles, ou seja, que não seja estático. Então, para o filósofo há a necessidade de algo

31
Spinoza só dirá ao longo de toda a sua obra quais são os atributos e os modos infinitos imediatos que o homem pode
conhecer, ou seja, pensamento e extensão, ideia e movimento. Não há como o filósofo apontar os nomes dos outros
atributos e modos já que, como foi apontado acima na citação do BT, “Por lo que toca [...] los modos o creaturas que
dependen inmediatemente de Dios o son creados por él, no conecemos más que dos de ellos, a saber, el movimiento en
la materia y el entendimiento en la cosa pensante”.
31
diferenciado relativamente aos próprios modos infinitos imediatos e que os “arraste” ao longo da
imensidão do universo, ou seja, é preciso um elemento interno a esses modos e que imponha a eles
os seus devires. Apenas deste modo o universo terá realmente sua vida mutável “argumentada”.
É então especificamente para defender a mutabilidade na natureza ou no universo que
Spinoza faz uma investigação acerca do que constitui mediatamente o universo. O que seriam então
os modos infinitos mediatos para Spinoza? A resposta a questão está inserida na proposição XXII
sob o significante modificação infinita. Nessa proposição “tudo o que se segue de algum atributo de
Deus, enquanto este atributo é modificado [modificatum] por uma modificação [modificatione] tal
que, por meio deste atributo, existe necessariamente e é infinita, deve também existir
necessariamente e ser infinito”. O que esta proposição tem para oferecer às interpretações?
Primeiro: ela fornece aos intérpretes de Spinoza o informe de que, juntamente com os modos
infinitos imediatos estáticos, os atributos produzem em si uma só e mesma modificação infinita
mediata e universal no interior de todos os modos infinitos imediatos; segundo: que há então uma
modificação infinita mediata que dá “impulso vital de modificação” aos próprios modos infinitos
imediatos, os quais estão “de antemão” estáticos; A esta modificação infinita universal, Spinoza
intitula então de modos infinitos mediatos. Assim, para o autor, não basta que o universo constituído
a partir dos atributos de Deus tenha simplesmente leis fixas internas [modos infinitos imediatos],
mas é também preciso que essas leis possuam em si o próprio motor de suas modificações [modos
infinitos mediatos]. Em tal itinerário, na medida exata em que os atributos empreendem em si a
insurgência dos modos infinitos imediatos, também se põem a “talhar” em si modificações infinitas
mediatas nos modos infinitos imediatos (EIPXXII; SO2, p. 66)32.
Ademais, há um detalhe que é preciso ser apresentado aqui: diferentemente dos modos
infinitos imediatos, os quais são distintos em cada um dos atributos - como é o caso do modo
infinito imediato entendimento no atributo pensamento e do modo infinito imediato movimento no
atributo extensão -, as modificações infinitas mediatas [modos infinitos imediatos] não são
essencialmente diferentes em cada um dos atributos. De outro modo, as modificações infinitas

32
Delbos, em seu O espinosismo [2002], diz aos leitores que muito mais complicado do que tratar dos modos infinitos
imediatos é abordar sobre os modos infinitos mediatos: “temos mais dificuldades para determinar quais são para
Espinosa os modos infinitos mediatos”. Com base na carta de Spinoza a Schuller, aonde o filósofo denomina os modos
infinitos mediatos como a facies totius universi quae eadem manet, Delbos levanta o seguinte problema: “O que é esta
facies totius universi quae eadem manet que está em questão na carta a Schuller?”. Para o comentador esta questão tem
a resposta dada do seguinte modo: “Estaríamos [...] bastante inclinados a admitir que a facies totius universi é, expressa
na linguagem ontológica que é própria da doutrina, a lei da conservação da mesma quantidade de movimento tal como
Descartes propusera [...] É [também] permitido supor que a ordem total das alma eternas, ordem em que elas constituem
uma unidade anterior a suas determinações singulares, que forma no Pensamento o modo infinito e eterno mediato, seja
simétrica à facies totius universi” [DELBOS, 67-69]. O que Delbos basicamente está dizendo com isso é que há uma
mesma ordem em conservação de produção ou modificação de ideias advinda do pensamento e uma mesma ordem em
conservação de produção ou modificação de movimentos corporais. É isso que faz Chauí [1999], na mesma perspectiva
dizer que “a facies totius universi, é a fisionomia do universo inteiro, isto é, a conservação e a constância das causas e
de suas leis sob infinita mudança [...] ” [CHAUÍ, 1999, p.878].
32
mediatas são como que, em realidade, uma única e mesma modificação, a qual modifica da mesma
maneira todos os modos infinitos imediatos estáticos - sejam eles a lei estrita do entendimento no
atributo pensamento ou a lei do movimento no atributo extensão. Assim, realmente há um enorme
interesse por parte de Spinoza em estabelecer a presença da vida mutante na natureza do universo,
esse o qual jamais poderia discernir-se como um velha máquina quebrada ou paralisada.
Nesse escopo, o autor se põe então a crer que os dois tipos de modos [infinito imediato e
infinito mediato] enunciados simultaneamente por meio dos atributos são aquilo que apresenta a
real paisagem do universo (EIPXXIXs.). É em consequência disso que o filósofo conclui ao fim da
demonstração da proposição XXIII:

Portanto, um modo que existe necessariamente e é infinito deve ter se seguido da


natureza absoluta de um atributo de Deus, ou imediatamente (como na prop. XXI),
ou por meio de uma modificação que se segue da natureza absoluta deste atributo,
isto é (pela prop. prec.), que existe necessariamente e é infinita (EIPXXIIId.).

1.3.3. Modos finitos: essência, topos e gênese

É importante agora observar o que é dito na quinta definição da EI e no terceiro axioma da


mesma parte da obra. A definição a qual é feita remissão indica o seguinte: “por modo compreendo
as afecções [affectiones] de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa [in alio], por
meio da qual também é concebido” (EIDef.V.; SO2, p. 45). Já o axioma requisitado diz: “de uma
causa [substância] dada e determinada segue-se necessariamente um efeito” por intermédio de seus
atributos (EIAx.III.). Que efeitos são esses a que Spinoza se refere neste axioma? Os efeitos são
exatamente os modos afirmados na EIDef.V, isto é, aquilo que se segue e está em outra coisa [causa
de si]. Portanto, os modos são efeitos que se seguem e que estão ou habitam numa causa
[substância + atributos], como bem é dito na quinta definição da primeira parte da Ética33. Pode-se
dizer de antemão que existem três efeitos ou modos que se seguem e que permanecem internamente
nos atributos da substância: modos infinitos imediatos, modos infinitos mediatos e modos finitos.
Como se sabe, os dois primeiros efeitos [modos] já foram abordados. Desse modo, é
necessária agora a inquirição acerca do que são os modos finitos enquanto efeitos de uma causa,
33
Em seu Espinosa: uma filosofia da liberdade [2005, 2ª ed] Marilena Chauí infere sobre duas maneiras de ser ou
existir, uma delas estando relacionada aos atributos e a outra estando relacionada aquilo que se segue destes atributos,
ou seja, os seus efeitos: “há, assim, duas maneiras de ser e de existir: a da substância e seus atributos (existência em si e
por si) e a dos efeitos da substância (existência em outro e por outro). A essa segunda maneira de existir, Espinosa dá o
nome de modos da substância. Os modos ou modificações são efeitos necessários produzidos pela potência dos
atributos divinos. À substância e seus atributos, enquanto atividade infinita que produz a totalidade do real, Espinosa dá
o nome de Natureza Naturante. À totalidade dos modos produzidos pelos atributos, dá com o nome de Natureza
Naturada” [CHAUÍ, 2005, p.44]. Aprofundar-se-á posteriormente as noções de Natureza naturada e de Natureza
naturante enquanto respectivamente atributos e modos da substância.
33
estes os quais também são internos a esta causa. De acordo com o que é informe aqui deve tornar-
se presumível que o estudo a ser empreendido nestas linhas textuais é basicamente o da inquirição
sobre os modos finitos que são análogos aos homens. Nesse sentido, problematizar aqui sobre certo
itinerário filosófico que diz respeito à natureza de certos modos finitos é o mesmo que indagar sobre
a natureza humana. Ademais, esse estudo aprofundado acerca dos modos finitos, também não deve
esquecer de levar em consideração a importância tanto dos atributos quanto dos seus modos
infinitos analisados, já que os mesmos é que permitem uma explicação mais adequada dos próprios
modos finitos.
Como exórdio talha-se o seguinte problema: por que Spinoza demarca com tanta precisão o
caráter intrínseco de finitude desses modos? Porque o filósofo busca ressaltar [como já foi dito
acima no início deste tópico 1.3] o fato de que os modos finitos não podem ser definidos como
produções imediatas dos atributos da Substância, pois assim poderiam oferecer a denotação de que
seriam tão infinitos e perfeitos quanto os próprios atributos e os modos infinitos imediatos e
mediatos que dos atributos se seguem. Isto está explícito na demonstração da proposição XXVIII da
primeira parte da Ética, na qual Spinoza diz que: “[...] o que é finito e tem existência determinada
não pode ter sido produzido pela natureza absoluta de um atributo de Deus, pois tudo o que se segue
da natureza absoluta de um atributo de Deus é infinito e eterno”, isto é, modos infinitos imediatos e
mediatos (EIPXXVIIId.). E o autor ainda diz mais sobre os modos finitos:

ora, tampouco pode ter se seguido de Deus ou de um atributo seu, enquanto


afetado de uma modificação que é eterna e infinita [modos infinitos mediatos] 34
(pela prop. XXII). [...] portanto, [...] deve ter sido determinado a existir e a operar
ou por Deus ou por um atributo seu, enquanto modificado por uma modificação
que é finita [modo finito]35 e tem uma existência determinada (EIPXXVIIId.).

Esses trechos da demonstração referida têm muito a dizer. Spinoza infere nesses fragmentos
de texto que os modos finitos não podem desvelar-se a partir da natureza absoluta de Deus ou dos
atributos. Portanto, os modos finitos não são então produções imediatas nem de Deus nem dos
atributos, como bem já foi explicitado no parágrafo anterior. Além disso, há algo a mais e do qual os
modos finitos também não se seguem. Este algo a mais é a modificação infinita ou os modos
infinitos mediatos. E qual a importância dos modos infinitos mediatos ou modificação infinita na
última citação? Sua relevância é dada agora não no que concerne especificamente a retomada ou a
reiteração do próprio significado dos modos infinitos mediatos [modificação infinita]. De outra
forma, a relevância ou função dos modos infinitos mediatos nesse fragmento é dada da seguinte
maneira: a modificação infinita ou modos infinitos mediatos servem na citação para enfatizar que os

34
Grifo, observação e colchetes nossos.
35
Idem.
34
modos finitos também não são produzidos [da mesma maneira em que não seguem imediatamente
dos atributos] por eles. Mas não é só isso. Para o filósofo é também preciso dizer que os modos
finitos não são produzidos pela totalidade de uma modificação infinita tendo em vista o escopo de
uma tripla investigação: [1] acerca do que realmente são os modos finitos, [2] acerca de “onde” se
“localizam” os modos finitos e [3] acerca da gênese da finitude dos modos finitos. Tratar-se-á agora
do primeiro eixo da investigação e, logo em seguida, dos segundo e terceiro eixos.
[1]. O que são os modos finitos? Há um segundo conceito para demarcá-los de forma mais
clara? Spinoza responde que sim. Para o filósofo os modos finitos são modificações finitas, como
bem está disposto em trecho da EIPXXVIIId citado acima. Assim, demonstra-se a importância da
modificação infinita [modos infinitos mediatos] neste eixo, tanto para enfatizar que os modos
finitos não se seguem da sua totalidade [modificação infinita] quanto para ressaltar que,
comparativamente à modificação infinita, os modos finitos são em realidade modificações finitas.
Ora, se os modos finitos são modificações finitas que não podem se seguir da totalidade de uma
modificação infinita [modo infinito mediato], não é menos óbvio que eles não deixam de estar em
vínculo estrito com ela. Por quê? Porque a demonstração da EIPXXVIII deixa subentendido que há
realmente uma conexão notável entre as modificações finitas [modo finito] e a modificação infinita
[modo infinito mediato], apesar das diferenças hierárquicas ou de grau entre esses dois conceitos. É
este vínculo que é preciso ser estudado agora, de modo a tratar do “topos” em que os modos finitos
estão no plano do sistema de Spinoza.
[2]. “Onde” estão “imersos” ou qual o “topos” dos modos finitos no plano do sistema de
Spinoza? Em acordo com o vínculo estrito o qual fora apresentado no final do último parágrafo,
certamente os modos finitos [modificações finitas] estão imersos no plano dos modos infinitos
mediatos [modificação infinita]. Portanto, os modos finitos são modificações finitas que estão
“encerradas ou acontecem” em uma modificação infinita universal, mesmo e apesar dos modos
finitos não advirem da e não serem a própria totalidade da modificação infinita [modos infinitos
mediatos]. Mas essa anunciação ainda não é suficiente para expor aos interpretes de Spinoza qual é
o plano do sistema do filósofo em que os modos ou modificações finitas estão “assentados”. Por
quê? Ora, porque a modificação infinita [modos infinitos mediatos] na qual as modificações finitas
[modos finitos] estão “imersas” não está a priori isolada no universo, ou seja, a modificação infinita
[modo infinito mediato] está relacionada a priori no universo com algo distinto dela e, portanto, as
modificações finitas [modos finitos] devem também estar imersas naquilo com o qual a modificação
infinita está em relação.
Já se apontou anteriormente que os atributos de Deus produzem imediatamente no universo
os modos infinitos imediatos, isto é, leis estáticas das quais só podem ser conhecidas pelo homem
como leis estáticas do entendimento [advindos do atributo pensamento] e leis estáticas do
35
movimento [advindos do atributo extensão]. Mas não é só isso. Junto com essas leis [modos
infinitos imediatos], os atributos fazem insurgir uma modificação universal [modo infinito mediato]
a qual possa modificar essas leis, estabelecendo assim um fluxo no universo que não poderia ser,
como foi dito há pouco, apenas uma imagem estática morta, sem vida. Ora, se a modificação
universal tem a “função” de impor modificação infinita às leis [entendimento/movimento] do
universo com as quais está em relação, não se pode dizer que os modos finitos estão simplesmente
imersos numa modificação infinita sem sentido. Portanto, os modos finitos são modificações finitas
imersas em uma modificação infinita [modo infinito mediato] de modos infinitos imediatos [leis do
entendimento advindo imediatamente do atributo pensamento e as leis de movimento advindo
imediatamente do atributo extensão]. Nesse itinerário, é possível dizer que o modo finito está
imerso em uma espécie de “máquina universal em contínua modificação de entendimento e de
movimento”. Portanto, os modos finitos são modificações finitas “localizadas” internamente em
uma grande máquina universal que se segue dos/nos atributos pensamento e extensão, máquina a
qual é posta em funcionamento pelas “exigências” dos modos infinitos mediatos [modificação
infinita] às leis estáticas [entendimento/movimento] ou modos infinitos imediatos.
Se é assim, também é permitida a conclusão de que é justamente por estarem “localizados”
em uma grande máquina universal em modificação que os modos finitos são também como que
internamente análogos à grande máquina em que estão, só que sob a perspectiva da finitude.
Conclui-se: os modos finitos são simultaneamente modificações finitas de ideias ou entendimento e
modificações finitas de movimento. Por que então os modos finitos são limitados, já que
internamente são a homologia da própria máquina em questão? É nesse sentido que se deve pôr o
escopo da investigação acerca da gênese da finitude desses modos. De outra maneira, é preciso
agora se anunciar como os modos finitos são de fato produzidos enquanto finitos, ou seja, para além
das respostas sobre o que são e sobre qual o plano do sistema o qual esses modos finitos ocupam.
[3] Qual é então a gênese da finitude dos modos? Esta resposta também está dada na
vigésima oitava proposição da EI e em parte da demonstração da mesma proposição. A proposição
XXVIII faz Spinoza escrever, em razão da questão da gênese da finitude dos modos finitos, o
seguinte:

nenhuma coisa singular, ou seja, nenhuma coisa que é finita e tem uma existência
determinada, pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja
determinada a existir e a operar por outra causa que também é finita36 e tem uma
existência determinada; por sua vez, essa última causa tampouco pode existir nem
ser determinada a operar a não ser por outra, a qual também é finita e tem uma
existência determinada, e assim por diante, até o infinito (EIPXXVIII).

36
Grifos nossos.
36
O que Spinoza indica a respeito da gênese da finitude dos modos finitos na proposição
XXVIII da primeira parte da Ética? Especificamente que eles são coisas singulares as quais são
produzidas por outras coisas singulares, isto é, cada modo finito é determinado a existir finitamente
por outro modo finito. Todavia, esses modos finitos causados ou determinados por outros modos
finitos também determinam ou causam outros efeitos finitos, isto é, modos finitos outros, e assim
sucessivamente até o infinito. Com efeito, Spinoza completa essa ideia na demonstração da
proposição em questão:

Em segundo lugar, por sua vez, essa causa – ou seja, este modo [...] - deve
igualmente ter sido determinada por outra, a qual é igualmente finita e tem uma
existência determinada, e essa última (pela mesma razão), por sua vez, por outra, e
assim por diante [...] até o infinito (EIPXXVIIId.).

É nessa lógica que ocorre a existência de uma espécie de empreendimento infinito e eterno
de geração de modos finitos ou coisas singulares que determinam ou causam outros modos finitos
ou coisas singulares, estes os quais também engendram outras singularidades finitas como seus
efeitos.
Nesse sentido, o que impõe então de fato limite ou finitude existencial aos modos humanos,
o que lhes formata sob “rédeas curtas”, sob o caráter de espécie finita? Relembrando: os modos
finitos são essencial ou internamente modificações de leis de ideia e modificação de leis de
movimento corporal. Ora, se os modos finitos são essencialmente modificação de ideias e
modificação de movimentos, tal como na grande máquina universal na qual estão imersos, não
haveria a priori nada que impusesse primordialmente um limite aos modos, ou seja, finitude
existencial, já que os modos finitos espelham direta e internamente o mecanismo da própria
maquina universal conceituada [modos infinitos mediatos ou modificação universal dos modos
infinitos imediatos, isto é, da lei estática da ideia ou entendimento e da lei estática do movimento].
Então, o que impõe barreiras às atividades essenciais desses modos finitos para dar garantia à
constituição da espécie humana são os próprios modos finitos. Portanto, o que impõe limites de
existência aos modos finitos, que a priori e essencialmente não teriam limites ou finitude, já que
estão imersos e espelham a atividade da grande e potente máquina do universo ou natureza, são as
existências finitas das causas modais exteriores aos próprios modos finitos, estes os quais são
constantemente coagidos por tais causas. Ou seja, a gênese da finitude da existência dos homens
[por exemplo] é justamente o que os coage a partir de fora, isto é, outros homens sob regime de
existência finita.
Assim, para Spinoza, a ação ou essência interna de um homem é ser modificação interna
ideal-corporal que a priori não implantam nesse homem os seus próprios limites. Primordialmente
37
o homem quer mais é dar vazão às suas forças interiores, afirmá-las a todo custo. Estas forças
internas são a própria essência do homem, forças as quais, como se verá posteriormente, são o que
na EIII Spinoza intitula de conatus37. E, de outro modo, o que impede a totalidade ou plenitude da
vazão das forças internas de um homem são, diferentemente dele mesmo, as existências finitas das
causas exteriores a este indivíduo, ou seja, outros homens, por exemplo. É expressamente nesse
sentido que a proposição XXVIII diz que as coisas que são finitas têm existências expressamente
limitadas a partir das existências finitas de outras coisas, isto é, outras coisas [externas] que limitam
e constituem a finitude das coisas sobre as quais agem. Então, a questão da genética da finitude do
modo é posta como uma espécie de importante fator de limitação empreendida no sentido de fora
para dentro, isto é, uma espécie de coação exterior à constituição interna modal. Conclui-se: a
constituição interna do modo humano [apesar de ter basicamente sua força interna instanciada na e
por causa da natureza ou máquina universal constituída pelos modos infinitos imediatos e mediatos]
passa a qualificar-se a posteriori como finita por meio das existências finitas de causas exteriores
ou singularidades outras que lhe impõe limites de ação interna 38. Com efeito, para Spinoza é
especificamente dessa forma que a espécie humana [como exemplo de modo finito] se constitui
geneticamente.
Assim, a respeito do homem enquanto finito pode-se dizer que ele é fundamentalmente o
seguinte: uma atividade interna “alocada” no interior da natureza/universo – que é relação entre
modos infinitos imediatos e modos infinitos mediatos, insurgidos nos atributos pensamento e
extensão da substância -, ao passo simultâneo em que tem a sua própria atividade interna reduzida

37
Serão analisadas posteriormente as definições EIIIPVI, EIIIPVII, EIIIPVIII, EIIIPIX, todas elas acerca da noção de
conatus.
38
É exatamente isso que demonstra Maurício Rocha em seu artigo Spinoza e o infinito: a posição do problema [2009].
Nesse texto, o comentador diz que internamente a essência do modo é basicamente a própria essência da causa que o
põe, “implanta-o” por dentro. Portanto, é como se de fato o modo finito fosse internamente uma produção infinita de
ideias e uma produção infinita de movimentos que se seguem dos/nos atributos pensamento e extensão da substância:
“Daí o modo ser aquilo que “não tem fim pela sua causa” - a substância [+atributos] que o produz -, e sim pela[s] [...]
causas externas, que atuam sobre ele, afetando-o”. Portanto, “o modo é em parte indivisível em relação à força que o
define [...] e limitado, diante dos outros modos [...]” finitos em observação exterior. É então realmente como se a priori
os modo finitos não tivessem internamente qualquer tipo limitação. Dessa maneira, o interior do modo finito tem uma
força de existir que está como que “acoplada” a uma “causa [interior] que o “produz e conserva” ”. É por isso que
“sustentando-o internamente, a potência de existir do modo enraíza-se nele como afirmação ilimitada da existência,
tendência indefinida e indivisível. Tal é o ponto de vista que obtemos sobre o modo, a partir de sua causa” interior.
Disso Rocha [2009] extrai duas conclusões fundamentais: [1]. “a indivisibilidade e a infinitude são propriedades
internas ao modo, se compreendermos que essa tendência definida de existir é causada nele, imediatamente, pela
potência eterna e infinita da substância - da qual o modo é uma afecção”; [2]. a finitude modal é constituída
extrinsecamente, isto é, “qualquer divisão só pode ser extrínseca”. Assim, para o comentador não se deve ter outra
interpretação acerca dos modos finitos, pois “o avesso dessa compreensão seria o “desatino” ” [ROCHA, in Conatus,
v.3, nº5, 2009, p. 75-76]. É como Fragoso [2009] bem anuncia em A concepção de natureza humana em Benedictus de
Spinoza: o modo finito “deve necessariamente ser concebido e existir por outro além dele mesmo, ou seja, o modo finito
[grifo nosso], em razão de sua finitude” e, portanto, “não pode determinar por si mesmo sua existência” finita. E,
recorrendo a uma análise de Leon Brunschvicg a partir de seu Spinoza et ses Contemporains [1971], ainda exprime que
“[...] Para Brunschvicg, a existência do homem deve ser determinada com a utilização de “auxiliares”, a observação
sensível ou a experiência, que atuarão provisoriamente como um ponto de partida desta Ciência humana (Brunschvicg
3,p.55-58)”. [FRAGOSO, in Cadernos Espinosanos, nº. XXI, Jul-Dez, 2009, p.84-86].
38
pelas existências finitas das coisas exteriores. Desse modo, acredita-se que, de acordo com Spinoza,
o homem é uma espécie de “contorno” finito que contém internamente certa atividade ou
modificação de entendimento e de modificação de movimento. Ora, é nesse escopo que Spinoza
implanta a ideia de que os modos finitos são aquilo “que exprime [exprimit] a natureza39 de Deus de
uma maneira definida ou determinada” (EIIPXdII.; SO2, p. 93) e devem “ter se seguido, portanto,
de Deus ou de um atributo seu enquanto considerado como afetado de uma certa maneira”
(EIPXXVIIId.). Os modos finitos, ou em especificidade os homens, sofrem necessariamente a
coação do exterior que lhes impõe finitude ou limite existencial e, devido a isso, passam a espelhar
a atividade da natureza que lhes é interior de uma maneira menos potente que a própria natureza na
qual estão imersos. É então por isso que os modos finitos [dos quais se tomou o exemplo do
homem] exprimem internamente a máquina universal ou natureza [modos infinitos imediatos
entendimento/movimento em modificação infinita] que se segue dos atributos [pensamento e
extensão] de Deus [Substância], só que de uma maneira determinada, definida, ou mesmo, bastante
precisa. Está respondida então a questão da gênese da existência finita dos modos, assim como a
inquirição acerca de qual é a relação da finitude da existência de um modo finito com a sua própria
essência.

1.3.4. Atributos ou Natureza Naturante, Modos ou Natureza Naturada

Para haver ainda maior aprofundamento acerca dos modos finitos na EI [antes de passar-se
para uma investigação acerca dos mesmos na EII] é importante analisar atentamente o que diz o
escólio da proposição XXIX da EI. Por que este escólio deve ser analisado aqui? Porque ele ajuda
Spinoza a desembocar na ideia de que a Substância [juntamente com atributos pensamento e
extensão] é um conceito imanente aos modos finitos, o que é de grande relevância para entender de
forma ainda mais adequada aquilo que concerne à interioridade dos modos finitos.
No escólio em questão Spinoza intitula os modos abordados neste trabalho [infinitos
imediatos, infinitos mediatos e finitos] de outra maneira, enunciando que são a Natureza Naturada
[natura naturata] que se segue de Deus e que, apesar de seguirem de Deus, não deixam de
continuar a existir na Natureza Naturante [natura naturans] ou atributos de Deus.

[...] por natureza naturante [naturam naturantem] devemos compreender o que


existe em si mesmo e por si mesmo é concebido, ou seja, aqueles atributos da
substância que exprimem uma essência eterna e infinita, isto é, [...] Deus, enquanto
é considerado uma causa livre. Por natureza naturada [naturam naturatam], por
sua vez, compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus, ou

39
Grifo Nosso.
39
seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de
Deus, enquanto considerados como coisas que existem em Deus, e que, sem Deus,
não podem existir nem ser concebidos (EIPXXIXs.; SO2, p.71)40.

E para quê Spinoza ainda se ocupa, mesmo após ter definido e demonstrado o que são os
atributos e os modos, de qualificá-los respectivamente como Natureza Naturante e Natureza
Naturada? As qualificações impostas por Spinoza servem para ressaltar que há intensa conexão
entre dois planos distintos da natureza de sua Substância. Ou seja, na percepção do filósofo a
natureza da substância deve estar cindida em duas dimensões [natureza naturante e natureza
naturada] as quais permanecem, no entanto, intimamente conectadas. Por que esta conexão é
perseverante? Ora, porque ambas as dimensões [natureza naturante/natureza naturada] são o
próprio Deus ou a Substância encarada sob duas perspectivas distintas. Afirma-se com isso que o
Deus de Spinoza é um conceito que está bipartido por natureza naturante [atributos] e natureza
naturada [modos]. Então, realmente há uma forte conexão entre a dimensão ou plano dos atributos
[natureza naturante] que constituem internamente a própria substância e a dimensão ou plano dos
modos [natureza naturada] que dela se seguem. Por isso, é possível afirmar que o filósofo pensa
que a íntima conexão entre atributos e modos só pode ser reiterada a partir de nomeações
morfológicas que permitam ambos os conceitos [atributos/modos] expressarem ainda mais às
claras as suas relações inerentes. Por que ainda mais às claras? Porque Natureza naturante
[atributos] e Natureza naturada [modos] são termos morfologicamente bastante semelhantes,
diferentemente de atributos e modos. Dessa forma, é exatamente pela escolha desses termos
[natureza naturante/natureza naturada] enquanto nomes análogos aos atributos e aos modos que
Spinoza acredita poder expressar de maneira “evidentíssima” que atributos e modos estão

40
Nos oitavo [de la naturaleza naturante] e nono [de la naturaleza naturada] capítulos de Breve Tratado o autor já
havia especificado de maneira bastante distinta o que são natureza naturante e natureza naturada: “antes de pasar a otra
cosa, dividiremos ahora brevemente toda la naturaleza, a saber, em naturaleza naturante y naturaleza naturada. Por
naturaleza naturante entendemos un ser que captamos clara y distintamente por sí mismo y sin tener que acudir a algo
distinto de él, como todos los atributos que hemos descrito hasta aquí, y ese ser es Dios; pero su naturaleza naturante
era un ser (sí lo llamaban) aparte de todas las sustancias. La naturaleza naturada debemos dividirla en dos: una
universal y otra particular. La universal consta de todos los modos que dependen inmeditatamente de Dios [...] La
naturaleza particular consta de todas las cosas particulares que son causadas por los modos universales. De suerte que
la naturaleza naturada necesita algunas sustancias para ser correctamente concebida [...] [1] Por lo que toca a la
naturaleza naturada universal o a los modos o creaturas que dependen inmeditamente de Dios o son creados por él, no
conocemos más que dos de ellos, a saber, el movimento en la materia y el entendimiento em la cosa pensante. Pues
bien, nosotros decimos que éstos han existido desde toda la eternidad y permanecerán inmutables por toda la
eternidad: una obra ciertamente tan grande como correpondía a la grandeza del artíficie. [2] Por lo que se refiere al
movimiento, em particular dado que pertenenece más propiamente a la ciencia natural que a ésta – como por ejemplo,
que ha existido desde toda la eternidad y permanecerá inmutable por toda la eternidad, que es infinito en su género,
que ni existe por sí mismo ni puede ser concebido por sí mismo, sino únicamente por medio de la extensión [...] es un
hijo, hechura o efecto inmediatamente creado por Dios. [3] En cuanto al entendimiento en la cosa pensante, es, lo
mismo que el primero, un hijo, hechura o creación inmediata de Dios, también creado por él desde toda la eternidad y
que permanece inmutable por toda la eternidad. Pero esta propiedad suya es única, a saber, entenderlo todo clara y
distintamente em todos los tiempos. Y di él emana uma infinita o perfectísima satisfacción inmutable, que no puede
dejar de hacer lo que hace” [BT, parte I, capítulos 8 e 9, (12);(1);(2);(3)].
40
realmente interligados.
Sabendo agora que os atributos [natureza naturante] e os modos [natureza naturada] são
dimensões distintas porém íntimas, já que ambas são em Deus sob diferentes itinerários
conceituais, pergunta-se: há alguma relação de dependência de um desses planos relativamente ao
outro? O filósofo diz que sim. Para Spinoza a natureza naturante é o plano dos atributos o qual em
seu conjunto são o próprio “organismo interno” da substância, como já foi demonstrado
anteriormente no tópico destinado a explicar os próprios atributos. E a natureza naturada ou os
modos? Certamente os modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos] não são as
constituições internas da substância tal como os atributos, mas são aquilo que se segue dos
atributos, ou seja, aquilo que insurge a partir do “organismo atributivo” da própria Substância.
Assim, apesar de haver estreita relação entre natureza naturante e natureza naturada, a natureza
naturada ou modal é total e necessariamente dependente da natureza naturante ou atributiva para
existir. É como bem aponta a citação acima, a qual expõe que “por natureza naturada [...]
compreendo tudo o que se segue da necessidade da natureza de Deus, ou seja, de cada um dos
atributos de Deus, isto é, todos os modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos] Nota
Preliminar dos atributos de Deus [...]” (EIPXXIXs.).
A partir disso será possível responder a uma outra pergunta. O que se instaura a partir da
relação de dependência da Natureza Naturada para com a Natureza Naturante? Certamente uma
hierarquia. A Natureza Naturante [atributos] é aquilo que faz seguir Natureza Naturada [todos os
modos]41. Portanto, há aqui o “incutimento” da seguinte ideia: uma das naturezas [natureza

41
Farias Brito, em Finalidade do Mundo [1957], tenta solucionar a relação entre natureza naturante e natureza naturada
por meio da seguinte pergunta: como pôde a natureza naturada [universo modal] resultar da natureza naturante
[Substância + atributos] ou como pôde o finito resultar do infinito?. Para o comentador, esse problema filosófico é
análogo a três outras questões primordiais: o mundo teve um começo no tempo? / o mundo foi produzido por algum
poder estranho? / o mundo foi produzido por Deus? A respeito de todas essas questões, não se pode dizer que Spinoza
fora o primeiro a deduzi-las no escopo da filosofia. As quatro indagações têm em realidade sua gênese problemática em
dois sistemas bem mais antigos. O primeiro deles é “o idealismo absoluto, que tem a sua forma característica na escola
eleática”, a qual só admite como princípio criador [natureza naturante] da natureza naturada o espírito. Nele, “o mundo
ou a matéria [natureza naturada] com suas inúmeras modalidades não existe de fato, é apenas uma aparência, uma
ilusão dos sentidos, sem nenhuma significação substancial”; o segundo dos sistemas é o chamado “atomismo ou
materialismo absoluto, cujos principais representantes na antiguidade são Epicuro e Demócrito”. Este sistema diz que a
natureza naturada é o próprio real, “o mundo, isto é, o conjunto das cousas finitas”, as quais “resolvem-se numa
infinidade de átomos [...] e fora dos átomos nada mais pode ser admitido”. Portanto, no sistema epicureo-democritiano
só há natureza naturada, não havendo espaço para a admissão da natureza naturante. Desse modo, tais sistemas “são,
como se vê duas negações antagônicas, uma, a negação do finito; outra, a negação do infinito”. Todavia, em nenhum
desses dois casos resolve-se de fato a questão relacional entre natureza naturante [Deus/infinito] e natureza naturada
[Mundo/finito], já que o primeiro dos sistemas afirma a absoluta positividade da natureza naturante [Deus], imputando
paralelamente características de falsidade à natureza naturada [universo] – eleátas –, e o outro reitera unicamente a
natureza naturada [mundo], incutindo inexistência à natureza naturante [Deus] – atomistas –: “não é isto resolver a
questão das relações entre o finito e o infinito; Mas anulá-la pela destruição de um dos termos. Será a solução razoável?
[...] Como negá-los assim sem mais exame?”, se pergunta Farias Brito. Portanto, nenhuma dessas duas escolas resolveu
de fato o problema da relação entre infinito [natureza naturante ou Deus] e finito [natureza naturada ou universo]: “é a
infância do espírito humano”, aponta o comentador. Com efeito, passaram anos e insurgiram também dois outros
sistemas [herdados diretamente pela modernidade], os quais também não conseguiram sanar definitivamente tal
questão: “há outros dous [dois] sistemas que chamarei modernos, pois embora sejam também de origem antiga e não
41
possam, por isto, serem apresentados propriamente como modernos, são, pelo menos, os que em maior escala
conseguiram a adesão dos pensadores modernos”. Quais são eles? O Dualismo e o Monismo supernaturalista, responde
Farias Brito. O primeiro deles intui que se deve admitir a existência tanto do infinito quanto do finito, intitulados
respectivamente de Deus [infinito/natureza naturante] e de Matéria [finito/natureza naturada]. Deus neste caso é
considerado não como o criador do mundo ou matéria, mas seu dedicado ordenador inteligente, ou melhor, seu
arquiteto espiritual, o qual organiza o universo, o constrói “com elementos” preexistentes e internos ao próprio
universo [matéria]. E o monismo supernaturalista? Este também vê importância em se admitir a existência de ambas as
realidades [finito/natureza naturada/universo modal – infinito / natureza naturante/Deus+atributos]. No entanto, ao
contrário do dualismo, o monismo defende que a natureza naturada é literalmente criada por meio da natureza naturante
[infinito/Deus], “sendo que só Deus existia necessariamente originariamente [...] e se o finito ou o mundo também
existe, é que foi produzido pelo infinito” divino. Segundo Farias Brito, havendo a admissão de que a hipótese monista
supernaturalista seja a mais coerente é preciso problematizar: “como foi o mundo produzido por Deus? Três são, à
primeira vista, as únicas soluções que podem ser apresentadas: o mundo foi produzido por criação; o mundo foi
produzido por emanação; o mundo foi produzido por desenvolvimento. Daí três outros sistemas nos limites mesmos do
monismo: o da criação, o da emanação e o do desenvolvimento, ou como se diz em nossos dias, da evolução”. Porém, é
preciso concluir com Farias Brito: nenhum de todos estes sistemas é conciliável com a doutrina de Spinoza: “não se
ignora que o spinozismo é a negação do dualismo, e de fato, se há algum princípio que deva ser considerado como o
fundamento e base dos princípios de Spinoza, é o da unidade da substância”, ou seja, o do próprio monismo. Mas,
mesmo o sistema de Spinoza sendo monista, é preciso apontar que esse pensador tem a pretensão de combater os três
tipos de monismo citados [monismo emanativo / monismo criativo / monismo evolutivo]. Primeiro, para Spinoza “o
mundo não foi produzido por criação” porque para que isso ocorresse seria preciso que o próprio mundo tivesse sido
criado do nada “o que é absurdo”; “nas mesmas condições, não pode o mundo ter sido produzido por emanação. Se
assim fosse, alguma cousa teria saído de Deus para transformar-se no mundo, de onde se segue que Deus teria perdido
parte de sua essência, que Deus se tornara menos do que fora primitivamente, o que é absurdo”; e por fim “o mundo por
desenvolvimento”: “Esta é das três soluções a mais importante, porque é a que tem por si a teoria hoje preponderante,
isto é, a teoria da evolução”. Todavia, “se o mundo foi produzido por desenvolvimento, segue-se como consequência
que o mundo é Deus mesmo desenvolvendo-se ou aperfeiçoando-se [...] Deus como o mundo é Deus desenvolvendo-se,
Deus tornando-se mais perfeito; Deus sem o mundo é Deus ainda imperfeito ou pelo menos, Deus em um grau menor
de perfeição”. Para Spinoza essa percepção seria absurda, pois se Deus procurasse se desenvolver na medida em que se
realiza no mundo ou universo modal ele seria imperfeito. Em contrapartida, Deus/Substância “não pode ser imaginado
como imperfeito, nem tampouco como podendo aperfeiçoar-se, pois toda a eternidade encerra em si toda a perfeição.
Logo, não se pode compreender e explicar a produção do mundo também por desenvolvimento” ou evolução, finaliza
Farias Brito. É contrariando estes três tipos de monismo que Spinoza desenvolve a sua própria teoria monística, a qual,
deixe-se bem claro, não deixa de ser hipotética, já que um problema adventício de tantos séculos de filosofia não
poderia resolver-se de um só golpe por um simples autor. Então, “neste caso, como se deve compreender a [hipotética]
produção do mundo, segundo Spinoza?” Para Farias Brito, a teoria spinoziana da criação do mundo é única na história
da filosofia. Para Spinoza o mundo teria sido talhado por “dedução [...] o mundo é a consequência eterna de Deus.
Assim, dando-se Deus, logo se segue necessariamente o mundo. O mundo resulta, pois, de Deus, como a conclusão das
premissas, como o teorema do axioma. Ora, a conclusão e as premissas existem de toda a eternidade; assim também o
teorema e o axioma; assim também Deus e o mundo”. É por isso que tanto Deus como o mundo na filosofia de Spinoza
são coeternos. E nesse sentido em que se apresenta como “manifesta a influência do método matemático” em toda a
obra do filósofo. Este método então não pode ser encarado como mera forma de exposição de proposições, mera
formalidade, já que ele é, de acordo com Farias Brito, a alma de tudo: “as cousas deduzem-se umas das outras
matematicamente; o mundo deduz-se de Deus, também matematicamente. A sucessão dos fatos, a ordem das cousas e a
marcha dos acontecimentos não são, pois, uma cooperação de atividade mas apenas uma dedução de princípios. A obra
de criação universal não é uma questão de inteligência e vontade, mas apenas um processo lógico” [BRITO, 1957, p.
219-223]. Este processo lógico é o que faz Maria Luísa Ribeiro Ferreira [2010] indicar o seguinte sobre as relações
entre natureza naturante [Deus+atributos] e natureza naturada [universo modal]: “embora as coisas (modos) [natureza
naturada] tenham o seu ser em Deus [+ atributos], elas não são divinas pois Ele não faz parte da sua natureza ou
essência. Há uma fronteira nítida entre a natureza naturante – Deus enquanto potência que necessariamente se manifesta
– e a natureza naturada – Deus como manifestação ou concretização nos modos existentes. No primeiro caso temos uma
Natureza infinita que não podendo deixar de produzir efeitos [modos], não está no entanto dependente deles. A
substância e seus infinitos atributos são Natureza naturante. Os modos, sejam eles finitos ou infinitos são natureza
naturada” [FERREIRA, in Conatus, v. 4, nº 8, Dez., 2010, p. 85-86]. Todavia e apesar desta fronteira inserida no centro
de duas realidades naturais distintas, não há também como deixar de frisar positivamente com Chauí em Nervura do
Real aquilo que Maria Luísa Ferreira apenas expõe como ponte para fundamentar a separação ou distinção entre as duas
naturezas distintas [naturante/naturada]. Chauí então prioriza, diferentemente de Ferreira [2010], não a distinção, mas a
unidade relacional entre as duas naturezas [naturante-atributiva/naturada-modal] a partir da famosa expressão
spinoziana Deus sive Natura: “[...] os atributos [natureza naturante], que devem ser afirmados da Natureza ou de Deus,
contêm as essências de todas as coisas criadas [...] Em outras palavras, na essência de Deus estão contidas as essências
dos modos [natureza naturada] [...]”. Portanto, é necessário que a natureza naturante [corpo dos atributos os quais
42
naturante] é “superior” a outra [natureza naturada], já que a primeira faz a segunda existir assim
como perseverar existindo. Isso é sustentado no escólio da EIPXXIX pela inferência de que os
modos [natureza naturada] são produções necessárias que surgem “agrilhoadamente” daquilo que é

constituem o organismo de Deus] contenham em si “as essências que constituem a Natureza Naturada [...]” ou o
universo dos modos. Para a comentadora, é isso que justifica a conhecida expressão de Spinoza Deus sive Natura, que
literalmente tem a intenção de apontar para “a Natureza Naturada [universo modal], enquanto compreendida e contida
na Natureza Naturante [atributos de Deus], formando a Natureza inteira [...]” [CHAUÍ, 1999, p. 896-902], ou seja, a
somatória ou união das duas naturezas. É realmente como se a Natureza de Deus estivesse constituída por duas faces
acopladas [naturante atributiva / naturada modal] uma na outra. É desse modo que a Natura da expressão Deus sive
Natura é uma Natura dupla. É permitido assim concluir que o Deus sive Natura é o mesmo que Deus, ou seja, Natureza
naturante [atributiva] + Natureza Naturada [modal]. Ainda analisando essa fórmula Deus sive Natura, Ivan
Domingues [1991] não a interpreta nem como Ferreira [2010] nem como Chauí [1999]. Ou seja, o comentador não
pensa essa expressão nem como uma espécie ponte para a distinção entre natureza naturante [atributos] e natureza
naturada – modos – [FERREIRA] e nem como unidade imanente entre as duas naturezas em questão [CHAUÍ]. É por
isso que o comentador reitera em filigrana que há em realidade uma grande contradição na expressão Deus sive Natura,
justamente porque ao mesmo tempo em que ela diz que Deus é homologamente duas naturezas conciliadas uma na
outra [naturante-atributiva/naturada-modal] em uma unidade [Natura], também “esconde sob a equivalência do sive a
oposição” entre essas duas naturezas. Ou seja, segundo o comentador existem “dois mundos” [duas naturezas]
fundamentalmente distintos e que estão apresentados internamente como o duplo da Natura exposta na fórmula Deus
sive Natura. Desse modo, para o comentador, o primeiro dos mundos/natureza é sem dúvida o Deus da teologia judaico-
cristã o qual carrega em si propriedades tais como infinitude, eternidade e perfeição; já o segundo deles se apresenta a
partir das pesquisas de ponta realizadas na época, isto é, a partir da “concepção científica elaborada pela física nova [...]
uma natureza mecânica e matematizável que ele encontra nas obras de Galileu e Descartes – o primeiro, procurando
enquadrar a natureza na linguagem do número, da figura e das linhas; o segundo, procurando oferecer-nos a figura da
essentia conforme essa linguagem, a essência matemático-mecânica ou a pura extensão e sua figuração geométrica”. E
como unir esses dois mundos/naturezas e estabelecer seus contrastes em uma Natura a qual é o próprio Deus?
Domingues, na esteira de Desanti, diz que, para tanto, fora preciso a remissão de Spinoza ao período pré-tomista, o qual
tinha Santo Anselmo como um de seus grandes representantes. Para ele, a tentativa da conciliação por oposição dessas
naturezas/mundos distintas uma relativamente a outra, já havia sido empreendida pelo próprio Santo Anselmo: “já
existia o conceito que permitia reunir estes dois pólos contraditórios na unidade de um mesmo ser e assim nos oferecer
um novo modelo de racionalidade – o ens a se causa sui de Santo Anselmo [...] este conceito existia. [...] Tratava-se não
somente da ideia dogmática do Deus 'criador do céu e da terra', mas da ideia capaz num sentido de tornar algo profano o
ser por excelência; era a velha noção de ens quo majus esse non potest, elaborada antes do tomismo, entre outros por
Anselmo. Esta era, por assim dizer, uma noção de dupla entrada. De um lado, ela se abria à via da mística pura: a crença
num ser para além de todos os seres, que seria sua fonte, em relação ao qual nenhum ser nada seria. De outro, ela se
abria à lógica, à antiga lógica do Ser vinda dos eleatas: a ideia de um ser que se basta a si mesmo que porta em si sua
própria razão de ser, e que, para existir, não tem necessidade senão de si mesmo (causa sui); nesta última entrada ela
permitia, de um modo puramente idealista, a elaboração da ideia de necessidade, e podia adquirir um sentido profano”
[DOMINGUES, 1991, p.111-112]. É exatamente no escopo deste último período da citação de Ivan Domingues que é
possível dizer que Deus com seus atributos é causa livre e necessária [natureza naturante] a qual é imanente aos efeitos
profanos necessários que do próprio Deus/substância se seguem. É nesse itinerário que Delbos, na segunda lição [a
expressão primeira do princípio da unidade de substância em Espinosa] de O espinosismo [2002], aonde analisa o
conteúdo da proposição XVIII da EI [Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas], já dizia que “uma
causa imanente, pois, também pode ser dita um todo, no sentido de que seus efeitos, que estão nela, têm nela sua
unidade. Assim, Deus é causa imanente dos seres que ele faz ser e com eles formam um todo, o Todo” [DELBOS, 2002,
p. 27]. Entretanto, é estritamente esta afirmação que faz o comentador problematizar mais adiante na sua quinta lição
[Deus e seus Modos] sobre como é que esta unidade entre Deus e seus efeitos é possível, ou melhor, como é que os
efeitos de Deus permanecem a ele unidos. Nesse sentido, Delbos anuncia aos seus leitores que isso só é solucionado por
meio de uma espécie de relação de hierarquia entre os elementos do trinômio substância-atributos-modos, hierarquia na
qual o elemento atributos é uma espécie de conectivo entre a maior [elemento-substância] e a menor [elemento-modos]
gradação de realidade. Ou seja, “poder-se-ia imaginar que a noção de substância, a de atributo e a de modo formam na
doutrina espinosana uma hierarquia regular, sendo a noção de atributo como o intermediário que une a igual distância a
noção de substância e a noção de modo” [Idem., p. 61-62]. Para Farias Brito [Finalidade do mundo – 1957], reflexões
como essa tornam patente o erro de Malebranche no que concerne a sua interpretação acerca de Spinoza. Tal
interpretação inferia que Deus é aquilo que está no universo, imputando em Spinoza um sentido filosófico
“diametralmente oposto” do próprio Spinoza. Em realidade, “tanto importa afirmar: - Deus está no universo; como: -
universo está em Deus. É a significação precisa da intuição monística que é o fundo do pensamento filosófico de
Spinoza” [BRITO, 1957, P. 195-196].
43
necessariamente livre [substância e seus atributos: natureza naturante].
[1] Sobre o que é necessariamente livre: como já foi dito no primeiro tópico deste trabalho
[1.1. Causa de si – Substância – Deus], assim como está expresso no escólio da proposição XXIX,
o que é livre para Spinoza é Deus, Causa de si ou Substância. Ora, para o filósofo esta liberdade
divina deve se traduzir analogamente como uma força de expressão que é própria de Deus, força a
qual se anuncia por meio dos atributos que são interiores ao próprio Deus. É como se Deus
mostrasse para si mesmo que é necessariamente livre porque sua afirmatividade expressiva é dada
apenas por meio dos seus próprios atributos, os quais são seus constituintes internos. Portanto,
Substância ou Deus não precisa de outra coisa a não ser de si e de seus atributos para se afirmar,
sendo, nesse sentido, livre. Ou seja, a força da expressão dos atributos que se insinua como
liberdade de Deus ocorre simplesmente por meio de Deus mesmo. Assim, os atributos [natureza
naturante] os quais são internos à Substância ou Deus concernem diretamente ao plano dimensional
do que é verdadeiramente livre [Substância].
[2]. O que se segue do que é necessariamente livre? É como bem testemunha o escólio da
EIPXXIX: Há aqui então um segundo tipo de necessidade, ou seja, aquela das coisas necessárias
as quais são postas pelo que é necessariamente livre [Deus]. Isto é, essas coisas necessárias não são
livres para afirmarem-se internamente a partir de si mesmas, já que são determinadas por outra
coisa [livre necessidade divina] que não elas mesmas, ou seja, pelas expressões [atributivas] livres e
próprias da Substância. É nesse itinerário que Spinoza pode concluir que nenhuma natureza
naturada ou modo [infinito imediato, infinito mediato e finito] é internamente livre, mas é instância
que, para existir, precisa ser inteira e necessariamente dependente das expressões atributivas
[natureza naturante] de Deus.
Acredita-se então que é exatamente isto que o autor vislumbra no momento em que constitui
a EIDef.V, enfatizando que “por modo [qualquer um deles]42 compreendo [...] aquilo que existe
em43 outra coisa, por meio da qual também é concebido”. A conclusão disso é conduzida da
seguinte maneira: é apenas aparente a percepção de que os modos [infinitos imediatos, infinitos
mediatos e finitos] não resguardam em si, após terem se seguido dos atributos, a dependência para
com os próprios atributos divinos. Portanto e após terem se seguido dos atributos, os modos não
deixam de estar imersos no interior dos atributos da substância. É isto que justifica a preposição em,
que é utilizada tanto na quinta definição da EI quanto no escólio da EIPXXIX. Em é o conectivo
que permite Spinoza inferir que os modos que se seguem de Deus também estão em Deus. Nesse
escopo, aquilo que se segue dos atributos da substância/Deus [todos os modos em questão]
permanecem inseridos nos atributos e, portanto, não se “desgrudam” deles, pois são eles que

42
Observação e grifo nossos.
43
Grifo nosso.
44
também [além de fazerem emergir ou seguir] garantem à existência de todos os modos. Conclui-se:
os modos não têm autonomia interior, ao contrário da substância com seus atributos. É exatamente
neste sentido que Spinoza se permite apontar que, tanto na quinta definição quanto no escólio da
proposição vinte e nove da EI, os modos são aquilo que se segue dos atributos de Deus na mesma
medida em que permanecem neles.
Sabe-se agora que os modos infinitos imediatos, a modificação infinita e os modos finitos
não estão isolados de Deus, pois, pelo contrário, perduram nele. Ora, se é assim, uma importante
conclusão acerca dos próprios modos finitos deve aparecer aqui: sabe-se que o modo humano finito
[natureza naturada finita] tem sua própria essência em um mecanismo universal [modos infinitos
imediatos entendimento/movimento sob modificação infinita ou modos infinitos infinitos mediatos]
o qual se segue e está contido nos atributos [natureza naturante] pensamento e extensão de Deus.
Portanto, o interior do modo finito humano também está no interior da Substância ou Deus, ou,
mais especificamente, nos atributos [natureza naturante] pensamento e extensão divinos. Devido a
isso, Spinoza não caracteriza a sua substância como transcendente ou mesmo isolada de suas
“criaturas”, já que ela permanece unida a estas mesmas “criaturas”. Neste escopo, seu conceito de
substância, juntamente com os atributos pensamento e extensão [natureza naturante], é tão imanente
aos modos infinitos imediatos e mediatos [naturezas naturadas infinitas] quanto também é imanente
aos próprios modos finitos [natureza naturada finita]. É como o próprio autor aponta na proposição
XVIII da EI: “Deus é causa imanente [immanens], e não transitiva [transiens], de todas as coisas”
(EIPXVIII; SO2, p.63). Ou seja, “Deus é causa [imanente] de todas as coisas que nele existem -
quae in ipso sunt - [...]” (EIPXVIIId; SO2, p.64) e, portanto, “tudo o que existe, existe em Deus [in
Deo est], e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido” (EIPXV; SO2, p.56).
Assim, mostra-se neste tópico a importância de uma análise acerca do escólio da EIPXXIX,
o que é realmente de grande relevância para entender consequentemente e de forma ainda mais
adequada aquilo que concerne à interioridade modos finitos.

1.3.5. Os modos finitos na EII

Após ter realizado uma intensa exposição sobre sua ontologia [constituída de Substância,
atributos e modos na primeira parte da Ética], Spinoza ainda sente necessidade de complexificar a
noção dos modos finitos na EII [Naturâ, & Origine mentis]. Como isso ocorre? No prefácio dessa
parte da obra o filósofo diz claramente que tem basicamente o objetivo de explicar “aquelas coisas
que deverão seguir-se necessariamente da essência de Deus, ou seja, da essência do ente eterno e
infinito” (EIIPref.). No entanto, Spinoza tem consciência [pelo o que demonstrara na EI] de que as
coisas que se seguem necessariamente da essência de Deus [particularmente de seus atributos
45
pensamento e extensão] são os modos infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos. Ora, por
saber que existem três elementos que se seguem da essência de Deus o filósofo sente que ainda
deve argumentar no prefácio da EII sobre o apego à pesquisa acerca dos modos finitos. É nesse
itinerário que o autor da Ética justifica a ênfase estrita no problema dos modos finitos, afirmando
que “embora tenhamos demonstrado, na prop. 16 da P1, que dela [essência de Deus ou
substância]44 devem se seguir infinitas coisas, de infinitas maneiras, não explicarei, na verdade,
todas, mas apenas aquelas que possam nos conduzir, como que pela mão, ao conhecimento da
mente humana45 [mentis humanae] e de sua beatitude suprema [summae beatitudinis]46” (EIIPref.;
SO2, p.84). Portanto, a pesquisa de Spinoza na EII está delimitada ao estudo da mente humana,
assim como pelo estudo daquelas coisas que ajudam a fazer com que a própria mente seja melhor
compreendida. E o que são essas coisas que ajudam a explicar o que seja a mente humana? Ora,
para o filósofo, a mente é uma das constituintes dos modos humanos finitos, ao lado daquilo que ele
intitula de corpo [corpus]. Desse modo, as coisas que também ajudam a entender o que seja a
mente humana são os corpos humanos finitos. Concluindo: o filósofo pretende na EII anunciar o
que são a mente e o corpo dos modos finitos humanos 47. Aqui, primeiramente haverá o estudo dos
modos finitos a partir da noção de mente e tratar-se-á, logo em seguida, dos modos humanos a partir
da noção de corpo.

1.3.6 A mente humana na EII

O que é a mente humana para Spinoza? Para ele, a mente humana é modificação ou
produção de ideias internas “porque é uma coisa pensante [res est cogitans]” (EIIDef.III; SO2,
p.84). E o que são essas ideias que se seguem desta modificação [produção] mental? São conceitos
continuamente advindos da própria “mente” (EIIDef.IIIexplic.). Nesse sentido, a mente é produção
ininterrupta de ideias ou conceitos internos, sem depender de qualquer percepção dos sentidos, já
que a percepção indica “que a mente humana é passiva relativamente ao objeto” exterior (Ibidem.).

44
Observação e grifo nossos.
45
Grifo nosso.
46
Grifo nosso. Tratar-se-á da questão da beatitude apenas no segundo capítulo deste trabalho, já que tal problema
filosófico está totalmente correlacionado com a concepção de intuição [terceiro gênero de conhecimento]. Aqui,
portanto, há uma atenção especial à mente e o corpo humano, dois elementos essenciais que auxiliam à pesquisa sobre o
que são modos humanos finitos.
47
Nessa parte da obra Spinoza não trata apenas da mente e do corpo intrínsecos aos modos finitos, mas também busca
enfatizar toda uma teoria do conhecimento que é destinada a abordar a imaginação, a razão e a intuição [os três gêneros
do conhecimento] mentais. Não se pretende aqui neste capítulo tratar desta teoria do conhecimento de Spinoza,
justamente porque ela levaria a caminhos distintos relativamente ao itinerário que vem sendo construído até aqui, o qual
empreende uma espécie investigação das provas acerca dos elementos fundamentais que constituem a ontologia do
autor, isto é, substância, atributos e modos. Contudo, mais adiante [segundo capítulo] a questão da teoria do
conhecimento será aprofundada a partir do escopo da razão e, por conseguinte [terceiro capítulo], haverá a exposição
acerca da noção de intuição. É nesse sentido que se permitirá posteriormente a retomada da EII na esteira da teoria do
conhecimento de Spinoza.
46
Desse modo, a produção intelectiva ou mente humana não pressupõe uma passividade relativa ao
exterior para agir, ou melhor, não pressupõe a dependência dos órgãos dos sentidos relativamente à
matéria externa em captação. Então, a mente de um homem é, de outro modo, uma ação viva que
exprime por si ideias ou conceitos em si mesma. É exatamente desta maneira que o “homem pensa
[homo cogitat]” (EIIAx.II.; SO2, p.85)48 para Spinoza.

48
No último capítulo [os modos de percepção na estrutura da Ética] de A doutrina dos modos de percepção e o
conceito de abstração na filosofia de Espinosa Lívio Teixeira atenta constantemente para o problema de se considerar a
mente humana em Spinoza como sendo uma coisa fechada em si mesma, a qual constitui ideias a partir de sua
substância. Segundo o comentador, esse tipo de interpretação deve ser sempre evitada quando se trata da concepção de
mente em Spinoza, mesmo e apesar do autor tê-la denominado [a mente] na EIIDef.III de “coisa pensante”: “É verdade
que já na Definição III encontramos algo que parece coincidir com a concepção tradicional de alma substancial [...]
Essa expressão, contudo, deve ser entendida, de acordo com a analogia dos textos, como simples cogitatio, simples
modo não substancial de perceber as coisas [...] Na verdade, a definição de alma não se encontra nesta Definição III,
que é a definição da ideia, mas na proposição XI: “O que constitui, primeiramente, a alma [mente] humana não é nada
senão a ideia de uma coisa singular que existe em ato” ”[TEIXEIRA, 2001, p.172]. É em sentido muito similar a este
de Lívio Teixeira que, no artigo O problema do desinteresse na filosofia de Spinoza [2009], Marcos Ferreira da Paula
intui que a mente ou ideia não é certamente uma substância, mas é um processo ou “o resultado imanente da atividade
produtora [advinda] do atributo pensamento”, sendo ela [mente ou ideia] própria “um grau de potência da potência
infinita” do intelecto que advém do “atributo” pensamento “e, portanto, é também uma ação que exprime de maneira
certa e determinada a ação da Natureza sob o atributo pensamento [...]” [PAULA, in O mais potente dos afetos: Spinoza
e Nietzsche, 2009, p.236-237]. Isso também é defendido por Ivan Domingues em O grau zero do conhecimento: o
problema da fundamentação das ciências humanas [1991]. Para ele não há verdade mental dada por meio de um sujeito
hermeticamente fechado em si mesmo, mas há uma verdade de produção ideal que está incutida no indivíduo o qual
contém em si a universalidade de um intelecto que se segue do atributo pensamento de Deus, ou seja, o próprio
processo de criação de ideias universal e que está para além do indivíduo enquanto sujeito hermético. É por isso que “o
ponto de partida do conhecimento não pode ser a ideia do eu (alma) [...] mas a ideia [advinda do atributo pensamento]
de Deus [...] Ora, ao contrário do que diz Descartes, na espontaneidade de seu funcionamento, o elemento do espírito
não é a dúvida ou o erro, mas a verdade, e sendo o que é, uma potência produtora da verdade, ele vai de verdade em
verdade, se sabe em cada instante como verdade e encontra no interior de si mesmo o index da verdade ou sua medida”
como já dizia Gueroult [DOMINGUES, 1991, p. 98-99]. É por isso que também, segundo José Ezcurdia [Imanência e
amor na filosofia de Espinosa – 2008], a mente “o sujeito é uma modificação do atributo pensamento, quer dizer, uma
ideia pela qual é possível o conhecimento, em termos de princípio [...] Nesse sentido, o próprio sujeito, justamente
enquanto modo do atributo pensante, não pode conhecer mais que ideias”. É isso que faz com que este intérprete
conclua que a ideia em Spinoza não é realizada a partir dos dados sensíveis exteriores remanescentes da matéria, como
se a mente ou intelecto do indivíduo se resumisse a se constituir a partir da recepção passiva das impressões dos
sentidos: “Spinoza não vê no intelecto uma prancha de cera, na qual se imprimam as formas provenientes da
sensibilidade e se articulariam em imagens sensíveis e conceitos universais, mas vê nele uma força pensante, um
pensamento vivo e ativo como o atributo do qual é modificação e expressão, capaz de criar seus próprios objetos”. E
assim “o sujeito determina-se como ideia que atualiza sua forma na produção de conceitos, que são objeto de seu
conhecimento”. É aqui então que se encontra a veia idealista de Spinoza, diz Ezcurdia, já que, para o comentador, a
demarcação epistemológica spinoziana “cai dentro de um enfoque idealista em que o objeto de conhecimento do sujeito
são seus próprios conceitos ou representações e ele não precisa mais do que destes para determinar a verdade”. Mas há
algo a mais nesse sentido, que faz com que o filósofo distoe da tradição filosófica da adequatio externa. Para se validar
como verdadeira, a ideia da mente em Spinoza não tem necessidade de adequar-se à objetos exteriores, ou seja,
transcendentes, já que é totalmente adequada a si em si mesma, não precisando fazer remissão a objetos outros que a
validem enquanto verdade: “Assim, a tradicional definição de verdade como a adequação ou correspondência do
intelecto à coisa [transcendente] é deslocada pela coerência entre as ideias e a noção de ideia adequada. Para Espinosa
o conceito de adequação assinala a certeza interna e a verdade intrínseca da ideia”. Por quê? Porque diferentemente da
tradição da adequatio externa à coisa transcendente, é possível apontar com Spinoza que o indivíduo já contém
imediatamente em si a força ou potência da verdade intelectiva universal do atributo pensamento de Deus, não
precisando, portanto, “pedir autorização” a objetos transcendentes para se afirmar enquanto verdade. Assim, finaliza
Ezcurdia, “O autor vê no sujeito uma potência de pensamento capaz de criar ideias que são objetos de seu
conhecimento. Na medida em que essas ideias tenham os traços próprios da ideia adequada serão verdadeiras e não
requererão uma correspondência com uma forma transcendente para determinarem-se como tais [...] É aqui que
Espinosa utiliza os conceitos cartesianos de clareza e distinção como critério fundamental para determinar a verdade
intrínseca ou o caráter adequado das ideias. Toda ideia que seja simples, que se conheça em si mesma e se distinga de
todas aquelas com as quais guarda relação, em suma, toda ideia que seja clara e distinta, é objeto de uma conhecimento
47
Todavia, se os homens não param de produzir suas próprias ideias por meio das suas mentes
a priori não-passionais, isto só pode se dar porque as mentes finitas dos modos humanos estão
antecipada e internamente inseridas num outro “âmbito”, em outra coisa que não elas mesmas, e
que, portanto, dependem diretamente. Nesse sentido e de acordo com Spinoza, sempre é preciso,
para se entender a mente do homem, levar em consideração o seguinte: para agir tal como age, a
mente humana deve anteriormente estar incutida [como já foi parcialmente anunciado nos tópicos
anteriores] em uma modificação infinita ativa [modo infinito mediato advindo identicamente de
todos os atributos] a qual modifica as leis estáticas do entendimento do universo [modo infinito
imediato que se segue do atributo pensamento]. Aqui, há uma modificação infinita que é produção
infinita do entendimento universal, a qual é a priori ou anterior ao homem. Como consequência, há
a ação mental interna ao homem [contínua produção ou modificação ideal-conceitual], que ocorre
porque ela pressupõe a dimensão anterior na qual está inserida, a saber, a própria modificação
produtiva universal de ideia ou entendimento 49. Assim, Spinoza conclui na demonstração da EIIPIV
que o entendimento ou intelecto infinito em modificação infinita deve conter em si as mentes dos
modos finitos (EIIPIVd.), já que “a essência do homem é constituída por modificações definidas
dos atributos de Deus” (EIIPXc.). O mesmo pode se dizer para o corpo humano, como se verá
adiante.
Cabe ainda reiterar que esta “produção ou modificação intelectiva infinita” é um ser que se
segue e que permanece no atributo pensamento de Deus, já que o “ser formal [esse formale]50 das
ideias reconhece Deus como sua causa, enquanto Deus é considerado apenas como coisa pensante, e
não enquanto é explicado por outro atributo” (EIIPV; SO2, p. 88). Se é assim, pensa o autor, o
intelecto em modificação [produção] de ideias ou mente humana [que é coparticipante de um
intelecto infinito em modificação/produção] também se segue e está presente no pensamento de

imediato e, por isso, fonte de verdade. [...] A análise das ideias, sua redução aos elementos simples em que se compõem
e a determinação de seu caráter claro e distinto, são o princípio para satisfazer cabalmente a forma ativa do intelecto e
produzir ideias adequadas, ideias que possuem a verdade como forma intrínseca” [EZCURDIA, in Cadernos
Espinosanos, nº. XIX, Jul-Dez, 2008, p.26-27].
49
É justamente essa percepção que leva Emanuel Fragoso, em As definições de causa sui, substância e atributo na
Ética de Benedictus de Spinoza, a estabelecer que entre o intelecto infinito do pensamento de Deus e o intelecto humano
há apenas uma diferença de intensidade ou de grau quantitativo e não uma distinção de qualidade, como era o caso de
Descartes: “a distinção entre o entendimento humano e o entendimento infinito ocorre apenas no aspecto quantitativo,
não havendo distinções no aspecto qualitativo como ocorre no cartesianismo. Essa semelhança qualitativa entre os
entendimentos é devida às diferentes considerações acerca da natureza da causa: Deus é transcendente na filosofia de
Descartes e imanente na filosofia de Spinoza. Por ser causa imanente, no spinozismo o entendimento humano é uma
parte do entendimento divino, ainda que se mantenha a distinção quantitativa entre os entendimentos: o entendimento
divino (que tudo entende) tudo conhece e o entendimento humano (que recai apenas sobre as coisas e os eventos que lhe
são dados) não pode e nunca poderá conhecer tudo o que Deus conhece; ou seja, a distinção no aspecto quantitativo é
apenas na capacidade de possuir ideias adequadas, que é limitada no homem e infinita em Deus. Se consideramos o
entendimento infinito “enquanto se explica [explicatur] pela natureza da alma” (II, proposição 11, corolário e II,
proposição 43, demonstração), o entendimento humano (enquanto percebe as coisas verdadeiramente) é uma parte do
entendimento infinito de Deus, sendo idêntico a ele e conhecendo as coisas como Deus conhece (GUEROULT, 1997,
v.1, p.32)” [FRAGOSO, in UNOPAR Cient., Ciênc. Hum. Educ., v. 2, nº1, 2001, p.84).
50
Spinoza aqui se refere ao ser do intelecto em devir.
48
Deus, pois “o seu ser objetivo – ou seja, as ideias – não existem a não ser enquanto existe a ideia
infinita” (EIIPVIIIc.) que está compreendida no atributo pensamento divino. Portanto, as ideias que
se seguem tanto do atributo pensamento de Deus quanto das mentes das coisas singulares,
reconhecem que estão em Deus enquanto ele é coisa pensante, pois, como já dizia Spinoza na
demonstração EIPXXXI:

por intelecto [...] não compreendemos um pensamento absoluto, mas apenas um


modo definido do pensar [...] Portanto (pela def.5), ele deve ser concebido por meio
do pensamento absoluto, isto é [...], por um atributo de Deus que exprima a
essência eterna e infinita do pensamento, de maneira tal que sem esse último ele
não pode existir nem ser concebido. Por isso (pelo esc. da prop. 29), ele deve estar
referido à natureza naturada e não à natureza naturante, o mesmo ocorrendo com os
demais modos de pensar (EIPXXXI).

Ora, é especificamente por isso que ao final da demonstração da terceira proposição da EII o
filósofo argumenta que toda ideia ou conceito em produção pela mente de um modo finito “não
existe senão em Deus” (EIIPIIId.), ou melhor, no intelecto infinito em modificação que se segue e
que se encontra no atributo pensamento de Deus. Assim, a mente humana é coisa pensante em ato
(EIIPIX) a qual produz, por isso, ideias, já que é coparticipante de um entendimento ou intelecto
infinito em modificação [autoprodução], o qual recria-se eternamente no âmago do pensamento de
Deus. Neste itinerário, infere Spinoza que as ideias em produção [modificação] pela mente são “um
modo singular do pensar [...]”, ainda acrescentando no escólio da proposição XXI da EII que

a ideia da mente humana e a própria mente são uma só e mesma coisa, concebida,
neste caso, sob um só e mesmo atributo, a saber, o do pensamento. Afirmo que o
existir da ideia da mente e o existir da mente seguem-se, ambos, em Deus, da
mesma potência do pensar, e com a mesma necessidade (EIIPXXIs.).

Esse fragmento de texto oferece uma nova informação acerca da natureza da mente humana:
a homologia entre ideia e mente. Por que apontar que há uma homologia entre ideia e mente a partir
do que Spinoza diz no escólio da proposição acima? Ora, porque a ideia a qual Spinoza se refere
neste escólio não é algo estático, mas sim aquilo que está se recriando a si mesmo, incessantemente
em modificação. Assim, para o filósofo é exatamente isso que é a mente: ideia que se recria
continuamente a si mesma. Contudo, ainda há algo mais. Cada ideia produzida representa aquilo
que ele chama na EIIPXI de o ser atual da própria mente: “o que, primeiramente, constitui o ser
atual da mente humana [actuale mentis humanae esse] não é senão a ideia [...]” (EIIPXI; SO2, p.
94). Ou seja, cada ideia desvela a existência atual da própria mente. Neste escopo, a mente não é
ideia estática, mas é ideia em recriação ou modificação contínua de ideias. É possível aqui então
afirmar que, a partir do que foi dito, a própria mente parece ser regida por uma espécie de
49
necessidade “incontrolável” de desvelar suas modificações vitais enquanto ideias em modificação.
Para Spinoza essa modificação contínua de ideias ou mente em mudança afirmativa faz
surgir como consequência uma ordem interna de apresentação das ideias, intitulada por Spinoza na
EIIPVII de ordem e conexão das ideias [ordo & connexio idearum]. Portanto, esta ordem e conexão
é uma sequência de ideias que se desvela ao passo em que a mente não para de se apresentar sob
forma de ideias diferenciais. Assim, a contínua modificação [produção] de ideias ou a mente
humana anuncia-se em modificação, a qual faz surgir uma ordem sequencial de ideias [ordem e
conexão das ideias] que se seguem ininterruptamente umas das outras. Para explicar melhor isso,
escolhe-se aqui um exemplo: a mente, primeiramente, apresenta seu estado atual de vida sob a
forma de uma ideia 'x', logo após sob o estatuto de uma ideia 'y', que é seguida da representação de
uma ideia 'w', e assim por diante. O que há aqui nesse exemplo requisitado é a formulação da
sequência ou ordem de criação de ideias xyw. Todavia, essa ordem não é uma simples sequência de
efetuação de ideias. E por que ela não é uma simples ordem de exposição de ideias internas? Ora,
porque ela é uma sequência que anuncia a continuidade ou o “histórico de vida” da mente humana
enquanto ideia em modificação. Nesse sentido, Spinoza também permite mostrar aos seus leitores
que uma ideia é produzida por uma ideia, esta a qual também havia sido produzida por outra ideia, e
assim sucessivamente até o infinito 51. É estritamente a isto que o autor denomina de ideia da ideia
ou a própria forma da ideia.

[...] a ideia da ideia [idea ideae], não é senão a forma da ideia [forma ideae],
enquanto esta última é considerada como um modo de pensar, sem relação com o
objeto [objectum - corpo]52. Com efeito, quando alguém sabe algo, sabe, por isso
mesmo, que o sabe, e sabe, ao mesmo tempo, que sabe o que sabe, e assim até o
infinito (EIIPXXIs.; SO2, p.109).

1.3.7. O corpo humano na EII

Agora, tendo-se bem definido o que é a mente humana para Spinoza, cabe perguntar: o que é
o corpo para o filósofo? De acordo com a primeira definição da EII o corpo [corpus] é um modo
finito “que exprime, de uma maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto
considerada como coisa extensa [res extensa]” (EIIDef.I.; SO2, p.84.). O que se pode concluir desta
definição? Primeiro: o corpo é tanto quanto a mente um constituinte dos modos finitos humanos, ou
seja, o modo humano é constituído essencialmente de mente e corpo finito. Portanto, todo modo
finito humano que possui mente também contém um corpo; segundo e mais importante ainda: o
corpo é constituído a partir de uma lógica interna muito semelhante com a da mente. Demonstrar-

51
Cf. EIIPXIXd.
52
Colchetes e observação nossos.
50
se-á esta lógica agora.
Foi-se há pouco dito que a mente humana é expressamente o seguinte: é modificação
[produção] de ideias, já que é coparticipante de um entendimento infinito em modificação, este o
qual recria-se eternamente no âmago do pensamento de Deus. Paralelamente e com base nisso, se
pode inferir que o corpo interno de um modo humano é essencialmente modificação ativa de
movimentos internos, já que é coparticipante de uma lei de movimento universal [modo infinito
imediato do atributo extensão] em modificação [modo infinito mediato que se segue igualmente de
todos os atributos]. Esta lei do movimento em modificação universal recria-se [se autoproduz]
eternamente no âmago da extensão de Deus, tal como a lei do entendimento que está imerso no
atributo pensamento de Deus. Portanto, o corpo é aquilo que internamente modifica [produz]
movimentos, já que coparticipa de uma modificação universal de lei de movimento que se segue e
que está inserida no atributo extensão de Deus. Ora, é por isso que a definição I da EII acerca do
estatuto do corpo diz que ele internamente exprime de maneira definida e determinada a essência
de Deus, enquanto considerada como coisa extensa. Conclui-se: os modos humanos finitos são
internamente constituídos de uma dupla expressão: são ativa e essencialmente expressão [1]. mental
ou aquilo que existe como expressão ativa de modificação ou produção continua de ideias internas e
[2]. corpo ou aquilo que existe como expressão ativa de modificação ou produção continua de
movimentos internos.
Ademais, Spinoza reitera no escólio da EIIPXXI o seguinte: “[...] a mente e o corpo, são um
único e mesmo indivíduo53 [idem esse individuum], concebido ora sob o atributo do pensamento, ora
sob o da extensão” (EIIPXXIs.; SO2, p.109). O que o autor busca enfatizar com essa citação é que,
corpo e mente são expressões que, apesar de distintas, apresentam de forma equivalente [“des-
hierarquizada”] a interioridade de um mesmo modo finito. Nesse caso, tanto a mente quanto o
corpo têm expressões específicas as quais apresentam com igual valor um mesmo modo finito. Em
outras palavras: tanto a mente quanto corpo têm o mesmo grau de importância existencial em um
modo finito, apesar de eles estarem inscritos de forma distinta em um mesmo homem: “segue-se
disso que o homem consiste de uma mente e de um corpo, e que o corpo humano existe tal como
sentimos” (EIIPXIIIc.). E, afinal, o que se deve compreender por união entre mente e corpo em um
modo finito?

Ninguém, entretanto, poderá compreender essa união adequadamente, ou seja,


distintamente, se não conhecer, antes, adequadamente, a natureza do corpo. [...]
Tampouco podemos negar que as ideias [mentais] 54, tais como os próprios objetos
[corporais]55, diferem entre si [...] (EIIPXIIIs.).

53
Grifo nosso.
54
Colchetes e observação nossos.
55
Idem.
51
Então, para se compreender a união entre mente e corpo Spinoza tem a necessidade, como
bem está exposto no escólio da EIIPXIII, de complexificar a natureza do corpo, para além do que se
levantou até aqui a respeito dele neste tópico. Mas para tratar da natureza do corpo [a garantia de
uma correta compreensão acerca da união entre mente e corpo nos modo finitos] é preciso antes [a.]
sentí-lo, percebê-lo internamente enquanto existente, o que foi explicitado acima no corolário da
EIIPXIII. É isso que Spinoza pretende fazer em algumas proposições da EII, de maneira a
responder subsequentemente [b.] qual é a natureza do corpo? e [c.] como se compreender a união
de corpo e mente nos modos finitos humanos?.
[a.] Como Spinoza percebe ou sente o corpo? - A décima segunda proposição da EII contém
em parte a resposta deste problema. Nela, o filósofo diz que “se o objeto da ideia que constitui a
mente humana é um corpo, nada poderá acontecer nesse corpo que não seja percebido [percipiatur]
pela mente” (EIIPXII.; SO2, p.95.). Esta proposição permite a leitura que aponta o corpo como
objeto de percepção da mente. O que isso quer dizer? Que além da mente humana perceber-se
enquanto recriação de ideias, ela também percebe internamente um outro objeto que não ela mesma,
a saber, aquilo que é designado por Spinoza como corpo. De acordo com isso, ou seja, com a
capacidade perceptiva que a mente humana tem de observar o corpo, ela [a mente] pode
concomitantemente inferir o que acontece no próprio corpo como seu objeto. Todavia, esta
inferência mental acerca do que acontece no corpo não é o próprio corpo, mas é a ideia da natureza
do corpo. Ou seja, os acontecimentos da natureza do corpo só são percebidos pela mente porque ela
os converte em ideias mentais. Portanto, o que é percebido pela mente não são os próprios
acontecimentos corporais, mas são acontecimentos corporais transmutados em representações ou
ideias da mente. É portanto assim que a mente sente sob a forma de ideias os acontecimentos do
corpo. É por isso que Spinoza reitera na proposição XIII da EII que o objeto de percepção da mente,
para além dela mesma “é o corpo, ou seja, um modo definido da extensão, existente em ato, e
nenhuma outra coisa” (EIIPXIII), e “segue-se disso que o homem consiste de uma mente e de um
corpo, e que o corpo humano existe tal como o sentimos” mentalmente (EIIPXIIIc.). Com isso está
provada a existência do corpo, só que sob o estatuto das representações ideais que a mente constitui
a seu respeito, pois para o autor “ninguém determinou, até agora, o que pode um corpo, isto é, a
experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza
enquanto considerada apenas corporalmente [sem que seja determinado pela mente] – pode ou não
pode fazer” (EIIIPIIs.). Portanto, “o corpo, por si só, [...] é capaz de muitas coisas que surpreendem
a sua própria mente” (Ibidem.).
Nesse escopo, cabe apontar que nem o corpo se reduz às interpretações ou representações
ideal-mentais e nem a mente se reduz à linguística, isto é, mente sob a forma de corpo sonoro-
52
textual. Então, é preciso fazer a seguinte observação: corpo e mente têm “purezas” expressivas que
lhes são próprias ou intrínsecas. Ora, desse modo, quando Spinoza pretende sentir o corpo ou
percebê-lo enquanto ideia mental não é para reduzí-lo a esta ideia, mas é para enunciar que existe
uma atividade corpórea interior ao modo finito a qual independe das representações mentais que se
fazem a partir dele [atividade corpórea].
[b.] O que é a natureza do corpo humano para Spinoza? - Certamente ela está muito bem
explicitada em alguns postulados, axiomas e lemas intrínsecos à EIIPXIII. O primeiro postulado da
EIIPXIII apresenta aos curiosos da filosofia spinozana o seguinte acerca do corpo humano: “o corpo
humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um dos quais é altamente
composto” (EIIPXIIIpost.I). O que o filósofo aponta com isto é que o homem é interna e
corporalmente uma multiplicidade de elementos corporais ou indivíduos singulares “fluídos [...]
moles, e [...] duros” (EIIPXIIIpost.II) os quais estão em relação numa unidade [o homem]. E o que
são os corpos fluídos, moles e duros em relação nessa unidade humana? Bem, duros são “os corpos
cujas partes se justapõem mediante grandes superfícies; [...] moles, por sua vez, os que se
justapõem mediante pequenas superfícies; e [...] são fluídos, enfim, aqueles corpos cujas partes se
movem umas por entre as outras” (EIIPXIIIAx.III). Então, aqui as coisas parecem ficar mais claras
acerca do interior do corpo humano na concepção spinozista. Para o autor, ele é constituído pela
unidade de três liames fundamentais: [1.] grandes superfícies visíveis [duras] nas quais se
justapõem ou se acoplam certos corpos; [2.] superfícies menores [moles] em proporção de
tamanho e nas quais se justapõem certos corpos; [3.] interpenetrabilidade livre entre corpos
fluídos que não se justapõem ou se acoplam, mas são transversais uns aos outros.
Ademais, para manter viva ou em conservação tal conjuntura interna, o corpo humano tem
precisão de “muito outros corpos [exteriores]56, pelos quais ele é como que continuamente
regenerado” (EIIPXIIIpost.IV). É por isso que para Spinoza esta interna multiplicidade em unidade
corporal tem necessidade, para perseverar existindo afirmativamente, de ser afetada por “outros
corpos [exteriores] 57 de muitas maneiras” (EIIPXIIIpost.III). Todavia, o corpo interior de um
homem [por exemplo] não pode ser afetado exteriormente de qualquer modo, já que é preciso que
internamente o próprio corpo humano mantenha conservada a partir de si as suas relações internas,
dadas “pela união de corpos” duros, moles e fluidos (EIIPXIIId.lemaIV). É desse modo que “esta
união (por hipótese), ainda que haja uma mudança contínua de corpos, é conservada” (Ibidem). De
acordo com isso, cabe concluir que internamente o indivíduo mantém em si sua unidade corporal
por meio de uma atividade de conservação interna que nada deve aos objetos exteriores. Desse
modo, há um princípio ativo e interno de conservação de unidade o qual mantém as relações entre

56
Colchetes e observação nossos.
57
Idem.
53
as partes intrínsecas desta unidade em perfeito funcionamento. Sabe-se a partir de agora que a
regeneração do corpo de um homem, por exemplo, não é efetuada pelos objetos exteriores os quais
este homem absorve, mas é realizada por uma atividade interior, esta a qual faz com que a unidade
corporal “capture” afirmativamente elementos exteriores no intuito de utilizá-los como
“instrumentos de reparo” de si mesmo. Ora, esta ideia é justamente aquilo que ajuda Spinoza a
traduzir uma percepção de corpo humano bastante distinta: o corpo humano é interna e antes de
qualquer coisa, para além dos seus componentes em unidade [corpos duros, moles e fluidos], uma
atividade de conservação de unidade ou forma interior. Tal atividade então é força de conservação a
qual é produzida a partir de si mesma, e não algo insurgindo, por conseguinte, a partir da
passividade relativa ao que vem de fora. Em tal escopo “vemos, assim, em que proporção um
indivíduo composto pode ser afetado de muitas maneiras, conservando, apesar disso, sua própria
natureza” (EIIIPXIIIsII.).
Ora, cabe reiterar ainda que esta força de conservação da forma interna do corpo não é,
todavia, algo que pretende manter esta forma estática, sem vitalidade. Muito pelo contrário, esta
força de conservação de forma interior é especificamente aquilo o qual também permite, com sua
potencialização, que a unidade formal-corporal de um homem se torne cada vez mais “robusta”,
“forte”, e, como resultado, mais “insubmissa” relativamente às coisas exteriores que procuram
destruí-la. Consequentemente, havendo aumento de potência desta força interna, a unidade interna
corporal-formal não deixa de se alterar para “melhor”. Nesse sentido, o que há na realidade é a
força de uma afirmatividade interior que busca continuamente se impor como ativa e não-
passivamente, e, na medida em que se coloca a si e utiliza com mais empenho ou “maestria” a
exterioridade em seu favor, não deixa de fazer com que a própria unidade ou forma interna do corpo
se altere, transformando-a em algo “superior”. Assim, tal forma interna se torna superior justamente
porque a força de atividade interior a fortalece, ou melhor, complexifica as relações de movimento e
repouso entre as partes que compõem a unidade corporal. Ora, tal complexificação é justamente
aquilo que permite a ela, a unidade formal-corporal, tornar-se exponencialmente mais viva do que
antes58.

58
Para CHAUI [ensaio “afastar a tristeza”, constado em Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa 2011] o corpo
humano espinosista é sobretudo “um ente singular dinâmico. [...] o equilíbrio interno de cada corpo é obtido por
mudanças internas contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema centrípeto e centrífugo de ações e
reações, que se transforma sem perder a identidade toda vez e sempre que for conservada a proporção de movimento e
repouso entre seus constituintes. Isto significa que o corpo [...] é um ser originário e essencialmente relacional: é
constituído por relações internas entre corpúsculos que forma suas partes e seus órgãos e pelas relações entre eles, assim
como por relações externas com outros corpos ou por affecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por
eles afetado sem se destruir, regenerando-se, transformando-se e conservando-se graças às relações com outros. O
corpo, sistema dinâmico complexo de movimentos internos e externos, pressupõe e afirma a intercorporeidade como
originária sob dois aspectos: de um lado porque ele é um ser singular, uma união de corpos; de outro, porque sua vida se
realiza na coexistência com outros corpos externos. Não só o corpo está exposto à ação de todos os outros corpos
exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é
54
E quais são as provas disto? As provas disto são dadas a partir do que havia sido concluído
spinozanamente acerca do corpo humano no segundo parágrafo deste tópico: essencialmente o
corpo de um modo humano é modificação interna de movimentos, pois coparticipa interiormente [e
não externamente] de uma lei de movimento universal [modo infinito imediato do atributo
extensão] em modificação [modo infinito mediato que se segue igualmente de todos os atributos].
Tal lei do movimento em modificação universal conserva-se recriando-se ou reafirmando-se
eternamente no âmago da extensão de Deus. Ora e portanto: internamente o corpo é primeiramente
modificação ou força de produção de movimento extensivo, e que, por isso, também fortalece sua
forma interna [unidade entre as partes duras, moles e fluidas], complexificando-a continuamente
para “melhor”.
[c.] Como se compreender a união de corpo e mente nos modos finitos humanos? - Só após
a exposição acerca da natureza do corpo humano é que Spinoza julga que tem condições de analisar
com competência como se decorre a união entre mente e corpo em um modo finito. Sobre isso, o
final do primeiro escólio da proposição XIII é esclarecedor:

digo, porém, que, em geral, quanto mais um corpo é capaz, em comparação com
outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, ou de padecer
simultaneamente de um número maior de coisas, tanto mais sua mente é capaz, em
comparação com outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de
coisas. E quanto mais as ações de um corpo dependem apenas dele próprio, e

necessário à conservação, regeneração e transformação de outros corpos” [CHAUÍ, 2011, p. 72-73]. Cabe-se apontar
que não se pode concordar plenamente com a exposição de Chauí acerca da noção de corpo em Spinoza. Por quê?
Porque ela defende uma espécie de interrelação [centrífuga e centrípeta] radical entre elementos interiores e exteriores
como aquilo que é o verdadeiro motivo ou a razão de ser da vitalidade afirmativa de um corpo humano vivo. Apesar da
coerência da exposição enquanto intrínseca à contemporaneidade, não se pode dizer que Spinoza [enquanto metafísico
que é] pensa literalmente deste modo acerca das razões de ser de um corpo humano. Acredita-se que uma leitura mais
atenta do filósofo não pode dar aos intérpretes qualquer aval para se dizer que os motivos das afirmações e estados de
equilíbrio de um corpo humano se dêem unicamente por meio interatividade de elementos que lhe são interiores com
aqueles que lhe são exteriores. Ora, se isto fosse correto na filosofia do autor não haveria uma dedicação toda especial
de sua parte em enfatizar que a força de um modo finito [mental/corporal] se dá primeira e unicamente a partir da força
de sua própria interioridade. Sem dúvida, esta força modal [mental e corporal] que se posiciona a si no mundo é
anunciada muito mais em decorrência dos princípios metafísicos ativos que estão espelhados no interior deste modo do
que devido a elementos exteriores os quais lhes servem como objeto de interação física. Ou seja, [como já foi dito no
corpo do texto principal] as afirmações dos modos finitos em Spinoza, tanto no que diz respeito as suas mentes quanto
aos seus corpos, não se dão por meio de uma interatividade ou permuta física do interior com o exterior, mas, e muito
pelo contrário, decorrem-se de forças vitais internas aos modos os quais estão como que “acoplados” a princípios
metafísicos muito precisos, a saber, o pensamento como atributo que põe intelecto infinito em limite de força nos modos
finitos e a matéria ou extensão como atributo que põe movimento em limite de força nestes mesmos modos finitos.
Ambos [intelecto do pensamento e movimento da extensão], são princípios metafísicos internalizados nos modos
finitos, o que garante todo um esforço interior por parte destes modos finitos em reiterar suas próprias forças internas
mentais e corporais. Portanto, não se pode dizer que a interrelação interior/exterior é a razão ou “segredo fundamental”
do ser do corpo de um modo finito. E se há uma interatividade do interior deste corpo com elementos exteriores é
justamente para que este mesmo corpo humano utilize o que é exterior em função da suas potências interiores, as quais
dobram a sua revelia os elementos físicos externos quando absorvidos, aumentando, portanto, sua potência de
afirmação. É apenas em seu último período gramatical que Chauí parece manter sua interpretação em relação parental
com a filosofia de Spinoza, quando diz aos leitores que não só o corpo está exposto à ação de todos os outros corpos
exteriores que o rodeiam e dos quais precisa para conservar-se, regenerar-se e transformar-se, como ele próprio é
necessário à conservação, regeneração e transformação de outros corpos.
55
quanto menos outros corpos cooperam com ele no agir, tanto mais sua mente é
capaz de compreender distintamente. É por esses critérios que podemos reconhecer
a superioridade de uma mente sobre as outras [...]” (EIIPXIIIsI.).

Como se pode observar na citação, o modo finito humano basicamente se apresenta para
Spinoza como um composto de dois elementos cruciais: corpo e mente. Mas isto é só o prelúdio
desse fragmento de texto, pois nele Spinoza também introjeta uma característica comum aos
elementos corpo e mente. Que característica é esta? Aquela que aponta que quando há afirmação
vital interna do corpo há, consequentemente, afirmação vital interna da mente, e que quando há
padecimento do corpo há, consequentemente, padecimento da mente. Isto é, mente e corpo são
elementos de um modo finito que ou se afirmam simultaneamente ou se degeneram
simultaneamente. Da mesma forma e de acordo com a citação: quanto mais houver uma atividade
interna ao corpo que o afirme a partir de si mais há uma atividade inerente à mente que tem o poder
de afirmá-la por si mesma. Ou seja, corpo e mente de um modo finito possuem internamente uma
atividade comum de anunciação 59, a qual permite que ambos possam se tornar ao mesmo tempo

59
Antes de chegar em Spinoza, a questão da união do corpo com a mente constitui-se ao longo da tradição filosófica
por meio de dois grandes legados, aponta CHAUÍ [2011]. O primeiro deles foi o legado platônico, o qual justificava a
união da alma com o corpo por meio do fato de que alma é aquilo que deve comandar o corpo como uma espécie de
piloto no navio. É portanto como se o corpo estivesse alojado em outra entidade, a alma, a qual o conduzia para todas as
direções que bem pretender; já o outro legado fora o aristotélico, “que define o corpo como órganon, isto é, instrumento
da alma, que dele se vale para agir no mundo e relacionar-se com as coisas”. Esses dois legados guardaram raízes
comuns, embora fossem explicitamente distintos um do outro. Enfim, desses dois legados emanou-se um terceiro, a
saber, “a ideia de que a alma é uma substância dotada de faculdades, isto é, funções específicas e autônomas, existentes
em estado potencial, que ela atualiza se dispuser das condições corporais adequadas para isto”. Esse último legado é
aquele que permitiu alguns filósofos [Vide, por exemplo, Maimônides em Os oito capítulos – Shemona Perakin]
interpretarem que já que a alma é uma espécie de substância a qual controla o corpo [instrumento de sua afirmação]
deveria então haver não uma única alma, mas uma alma para cada um dos elementos deste corpo, de modo ao indivíduo
poder controlar plenamente seu próprio corpo: “donde as ideias de localização anatômico-fisiológica das faculdades
anímicas: a vegetativa, no fígado, a motriz, nos membros locomotores e prenseis, a autodefensiva ou colérica, no
coração, a racional no cérebro”. Esses três legados se expandem ao longo do inesgotável fluxo da história até se
tornarem objetos da percepção cartesiana, que os altera drasticamente: “Descartes introduz uma separação radical entre
corpo e alma, definindo-os como substâncias de essências diferentes – res cogitans, a alma; res extensa, o corpo -, cada
qual seguindo suas leis próprias, sem comunicação ou relação de causalidade mútua, pois uma substância é o que existe
em si e por si e não se relaciona causalmente com outras de natureza diversa da sua”. Assim, em Descartes, “[...]
contrariamente ao que supunha a tradição greco-romana, a alma não é princípio da vida e do movimento do corpo, este
explicitando-se inteiramente pelas leis da mecânica; e que o corpo não é causa dos pensamentos e sentimentos na alma,
estes devendo ser explicados inteiramente pela essência da substância pensante”. No entanto, este dualismo alma/corpo
dado pela separação entre alma e corpo foi tão severo em Descartes que o mesmo não conseguiu justificar como
realmente se daria a união entre os elementos em questão, mesmo sabendo que seria “preciso admitir que, de alguma
maneira, a alma precisa de contato direto com o corpo e este com ela para que ela possa agir sobre os movimentos dele
(ainda que ela não os cause) e ele possa agir sobre sentimentos dela (ainda que ele não os cause), sem o quê não haveria
paixão nem ação”. Desse modo, mesmo sob o suporte de sua glândula pineal isso não fora realmente possível, tendo em
vista que não haviam provas de sua hipotética existência. Assim, não havia em Descartes a argumentação científica de
como a alma poderia utilizar-se do corpo em seu favor e vice-versa, já que estão totalmente separados um do outro. É na
tentativa de se solucionar este problema da união corpóreo-mental que insurge Spinoza “perante a tradição e o dualismo
cartesiano”, empreendendo uma inovação sem precedentes. Para esse filósofo, nem a alma nem o corpo são
considerados como substâncias, já que em realidade “são modificações ou expressões singulares da atividade imanente
de uma substância única e infinita. O que o atributo pensamento efetua produzindo ideias e mentes, o atributo extensão
efetua produzindo movimentos e corpos. Trata-se de duas atividades simultâneas de uma única substância que se
exprime de duas maneiras diferentes, ou seja, são efeitos simultâneos da atividade de dois atributos substanciais de igual
força ou potência de igual realidade. Isto significa que a comunicação entre corpo e mente está dada de princípio –
56
mais potentes ou afirmativos a partir de si mesmos, sem qualquer relação com os objetos exteriores.
Estes objetos exteriores são, em contrapartida, aquilo que pode diminuir as atividades internas
comuns a corpo e mente, acarretando subsequentemente na perda e destruição de suas forças
internas.
A proposição VII da EII reafirma tal atividade comum de uma outra maneira. Nela Spinoza
diz que “a ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas” (EIIPVII;
SO2, p.89)60. Aqui, o filósofo intitula respectivamente as ações afirmativas e simultâneas da mente
e do corpo como ordem e conexão das ideias [atividade mental] e ordem e conexão das coisas
[atividade corporal]. Neste escopo, o filósofo é mais cabal do que no primeiro escólio da
proposição XIII: ele diz que as atividades ou ordens e conexões internas implicados na mente e no
corpo são “o mesmo”, ou seja, são idênticas. Portanto, a atividade de produção de movimento
corporal e a atividade de produção de ideias mentais são iguais na maneira de se afirmar.
E por que para Spinoza o corpo enquanto atividade de produção de movimento e a mente
enquanto atividade de produção de ideias são homólogas? Ora, porque o autor nunca deixa de ter
em vista a sua ontologia, a qual faz seguir os modos finitos de maneira precisa e determinada. O que
isso quer dizer? Quer dizer que para responder a pergunta acima, além de ser necessário se perceber
a “homologia” das atividades implicadas nos corpos e mentes dos modos finitos, é também preciso
observar o que põem ontologicamente estas atividades enquanto homólogas. Portanto, é preciso
sempre levar em consideração, para se compreender tal homologia e, subsequentemente, a união da
mente e do corpo num modo finito, os atributos [pensamento e extensão] da Substância - os quais
fazem seguir modos infinitos imediatos e mediatos -.
Relembrando – [a.] os atributos: os atributos de Deus/Substância/Causa de si são seus
constituintes internos e que, por isso, exprimem de maneira específica [cada um deles a “sua
maneira”] o próprio Deus/Substância/Causa de si. Ora, na medida em que exprimem Deus, os
atributos fazem seguir imediatamente de si mesmos modos infinitos imediatos e mediatamente de si
mesmos modos infinitos mediatos, ambos os quais já foram demonstrados respectivamente nos
tópicos 1.3.1 e 1.3.2. deste capítulo; [b.] modos infinitos imediatos: no caso do atributo pensamento,
segue-se imediatamente no universo o modo infinito ou lei estática do entendimento. No caso do
atributo extensão, segue-se imediatamente no universo o modo infinito ou lei estática do
movimento; [c.] modos infinitos mediatos: ao mesmo tempo em que cada uma dessas leis emergem
dos atributos distintos para o universo, os mesmos atributos também fazem insurgir aquilo que dá
modificação infinita a cada uma dessas leis estáticas presentes no universo. A esta modificação

ambos são expressões simultâneas de uma só e mesma substância - e, de outro lado, que a singularidade do homem
como unidade de um corpo e de uma mente é imediata – a união não é algo que lhes acontece, mas aquilo que um corpo
e uma mente são quando são corpo e mente humanos” [CHAUÍ, 2011, p. 72-77].
60
Ordo, & connexio idearum idem est, ac ordo, & connexio rerum.
57
infinita que se apresenta dos atributos ao universo, Spinoza intitula de modos infinitos mediatos. E
para quê esta modificação necessita ser incutida em cada uma das leis estáticas [entendimento e
movimento] ou modos infinitos imediatos advindos dos atributos pensamento e extensão? Ora,
como já foi dito anteriormente: para que o próprio universo ou natureza tenha vida, ou que não seja,
portanto, a imagem de uma pintura morta. Assim, com a modificação infinita [modo infinito
mediato] dando devir à lei estática do entendimento [modo infinito imediato], há no universo uma
produção [modificação] infinita de entendimento ou intelecto. Do mesmo modo, com a modificação
infinita [modo infinito mediato] dando devir [modificando] à lei estática do movimento [modo
infinito imediato], há no universo uma produção infinita de movimento corporal. No entanto, cabe
atentar que a modificação infinita a qual põe em devir essas duas leis não é duas modificações
infinitas, mas uma só e única modificação infinita que “arrasta” da mesma maneira qualquer uma
das leis a priori estáticas do universo 61 [advindos dos atributos de Deus], seja ela entendimento,
movimento, ou qualquer outro. Assim, para Spinoza, é dessa maneira que insurge uma modificação
[modificação infinita ou modo infinito mediato] que atua com a “mesma intensidade de
modificação” sobre entendimento e movimento; [d.] modo finito humano: é internamente de um
lado, como já foi ressaltado neste trabalho, a própria atividade ou modificação [produção] de ideia
universal [lei do entendimento em modificação universal] sob o regime da finitude, a qual é gerada
por meio das causas exteriores [outros modos finitos]. De outro lado, o modo finito humano
também é internamente a própria atividade ou modificação [produção] de movimento corporal
universal [lei do movimento em modificação universal], só que sob o regime de uma finitude
gerada a partir das causas exteriores [outros modo finitos]. Ora, não há como deixar de afirmar que
o modo humano é então a própria modificação universal de entendimento [mente] e modificação
universal de movimento [corpo] sob o escopo da finitude. Se é assim, a mente e o corpo de um
modo finito também modificam [tal como a modificação universal ou modos infinitos mediatos]
com a mesma “intensidade” entendimento e o movimento. Portanto, a finita atividade modal ou
modificação de movimento corporal e a finita atividade modal ou modificação [produção] de ideias
mentais tem a mesma “intensidade atuante”, ou seja, são homólogas porque têm o mesmo grau de
intensidade atuante. É por isso então que no modo finito “a ordem e conexão das ideias é o mesmo
que a ordem e conexão das coisas” (EIIPVII).
A partir disso é então possível compreender adequadamente o que seja a união entre corpo e
mente em um modo finito, não deixando de se ter em vista suas afirmações singulares ou próprias,

61
Aqui há a referência a apenas duas leis ou modos infinitos imediatos, os quais são imanentes aos atributos
pensamento e extensão. Quanto as demais leis de/em outros atributos, não há como apresentá-los, já que Spinoza não os
anuncia em sua obra. De qualquer maneira, os modos infinitos imediatos do entendimento e do movimento são os
únicos que realmente interessam tanto à Spinoza quanto a este trabalho, pois eles bastam para explicitar qual o ponto de
partida da formação da natureza humana.
58
que, apesar de serem singulares, atuam na mesma intensidade ou, em linguagem spinozista, na
mesma ordem e conexão [de ideias e de coisas em movimento]. Na proposição XXI da EII Spinoza
diz que a “a ideia da mente, deve [...] estar unida ao seu objeto, isto é, à própria mente, da mesma
maneira em que a mente está unida ao corpo” (EIIPXXId.). O que esta demonstração tem a
oferecer? Ela permite dizer que a maneira pela qual se pode compreender a união entre mente e
corpo se dá especificamente a partir da seguinte hipótese: a mente também deve ter o corpo a priori
como objeto de percepção, ou seja, aquilo que está para além da própria mente enquanto objeto de
percepção de si mesma62. Ora, devido a isso, a mente é capaz de produzir representações ideais não
apenas sobre si mesma, mas também acerca do corpo ou de seu estado atual, sendo este, por
conseguinte, o único modo de conhecê-lo, tendo em vista que “a mente humana não conhece
[cognoscit] o próprio corpo humano e não sabe que ele existe senão por meio das ideias [que produz
a partir]63 das afecções [affectionum]” ou modificações específicas do corpo (EIIPXIX; SO2, p.
107). Consequentemente, a mente produz certas ideias a respeito do corpo porque também pode
“observar” “o próprio corpo humano”, percebendo-o “como existente em ato” (EIIPXIXd.).
Portanto, “tudo o que acontece no corpo humano [...] deve ser percebido pela mente” (EIIPXIVd.).
Nesse sentido, é apenas a partir desta representação ideal que a própria mente tem como
inferir que está unida ao corpo, mesmo tomando a consciência de que, em contrapartida, a atividade
corporal não se reduz às ideias as quais são produzidas a seu respeito, já que toda ideia
representativa é, ainda assim, mental e não corporal. Assim, conclui-se que a mente está unida ao
corpo porque este é objeto daquela, o que é provado por meio de postulados que “não contêm
praticamente nada que não seja percebido pela experiência [...]” (EIIPXVIIs.). No entanto e como
se deve ter em vista spinozianamente, as atividades de ambos [corpo e mente] têm de ser defendidas
enquanto duas expressões singulares e distintas as quais estão incutidas num mesmo modo finito, já
que a mente é produção ou modificação de ideias e o corpo é produção ou modificação de
movimentos corporais. É justamente isso que foi explicado nos parágrafos anteriores antes de se
chegar à explicação mais aprofundada sobre a união entre mente e corpo.

1.3.8. o conatus, apetite, desejo racional na EIII

Partindo de linhas objetivas muito claras64 Spinoza dá nomenclatura na EIII [a origem e a

62
Cf. EIIPXX, em que Spinoza diz que “da mente humana existe, em Deus, uma ideia o conhecimento, ideia que se
segue em Deus, e a ele está referida, da mesma maneira que a ideia ou conhecimento do corpo humano”, ou mesmo o
início da demonstração da EIIPXXIII, aonde está expresso que “a ideia ou o conhecimento da mente (pela prop.20)
segue-se em Deus e a Deus está referida da mesma maneira que a ideia ou o conhecimento do corpo”.
63
Colchetes e observação nossos.
64
Cf. prefácio EIII, em que Spinoza diz que tratará “da virtude dos afetos, bem como da potência da mente sobre eles
[...] E considerarei as ações e apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de
59
natureza dos afetos / de origine, & naturâ affectuum] a um conceito [conatus] o qual teve o seu
prelúdio na EII. E qual é este prelúdio inerente ao conatus? Como acima foi apontado, é justamente
aquilo que diz respeito às atividades, forças ou potências intrínsecas e respectivas a mente e ao
corpo em um mesmo modo finito. Já se sabe então que antes mesmo da entrada na EIII [cujo
destino é o trato do conatus e a força dessa noção sobre os afetos] Spinoza faz prevalecer de
antemão na EII a ideia de que no homem existem forças internas e específicas de mente e corpo, os
quais a priori independem do que vem de fora, mas que em contrapartida necessitam de um plano
ontológico anterior e interior a eles. E que plano é esse? Como já foi anunciado: uma modificação
infinita do entendimento intrínseca ao atributo pensamento e modificação infinita do movimento
intrínseca ao atributo extensão, ou seja, elementos os quais permitem respectivamente que mente e
corpo de um modo finito existam essencial e afirmativamente tal como existem. Nesse escopo, além
de essencialmente não buscarem ser determinados por causas externas, mente e corpo também e do
mesmo modo não se determinam um ao outro, já que são singularidades afirmativas distintas que
emergem daquilo que se segue [respectivamente uma modificação infinita do entendimento e
modificação infinita do movimento] de atributos distintos [pensamento e extensão].

Todos os modos de pensar têm por causa Deus, enquanto ele é uma coisa pensante
e não enquanto ele é explicado por um outro atributo [...] Portanto, o que determina
a mente a pensar é um modo do pensamento e não da extensão, isto é, [...] não é
um corpo. Isso quanto a primeira parte. Em segundo lugar, o movimento e repouso
de um corpo devem provir de um outro corpo, o qual foi, igualmente, determinado
ao movimento ou ao repouso por um outro e, em geral, tudo que acontece a um
corpo deve provir de Deus, enquanto ele é considerado como afetado de algum
modo da extensão e não de algum modo do pensamento [...], isto é, não pode provir
da mente, a qual [...] é um modo do pensamento. Era a segunda parte. Logo, nem o
corpo pode determinar a mente, etc (EIIIPIId.).

Assim, para não dar a impressão de que deve haver dependência da mente relativamente ao
seu corpo interior, assim como para não incutir uma dependência do corpo relativamente à mente,
Spinoza precisa defender a percepção de que ambos têm suas próprias forças ou princípios ativos
essenciais enquanto distintos, os quais devem agir “à sua maneira”. É por isso que [adiante e para
além da EII] na segunda proposição da EIII o filósofo conclui que “nem o corpo pode determinar a
mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso, ou a qualquer outro
estado (se é que isso existe)” (EIIIPII)65.

corpos”.
65
Lívio Teixeira, em seu A Doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa, diz
aos seus leitores que os fatos de que nem a mente determina o corpo e nem corpo de um modo finito determina a sua
mente são fundamentados consistentemente na filosofia de Spinoza porque são como que consequências diretas da
metafísica do autor, na qual os atributos pensamento e extensão de Deus são incomunicáveis. É por isso que “os modos
de cada atributo se explicam exclusivamente por outros modos do mesmo atributo”. Portanto, os modos em questão
[mente e corpo] não se determinam um ao outro justamente porque estão instanciados em atributos distintos
60
Com efeito, tendo como ponto de partida este prelúdio da EII [o qual ainda perdura nas
primeiras proposições da EIII] acerca das atividades internas específicas de corpo e de mente é que
Spinoza introduz o seu conceito de conatus. E por que ele introduz este conceito na EIII? Porque
para o autor é como se ainda não fosse suficiente o apontamento que discerne sobre quais as
atividades essenciais típicas da mente e do corpo. Com efeito, para o filósofo é também preciso que
essas atividades mentais-corporais [a priori ilimitadas] se esforcem para se afirmar na finitude

[pensamento e extensão], estes os quais, por conseguinte, também não comandam ou determinam um ao outro: “[...]
Espinosa não nega a relação metafísica entre eles, pois que ambos são modos de dois atributos de uma mesma
substância; nem a relação lógica, porque a ordem e a conexão das ideias é a mesma e a conexão das coisas. Nega apenas
a interação ou a relação de causalidade [grifo nosso] entre duas supostas substâncias. De fato, falando dessa relação,
Spinoza nunca deixa de assinalar que a causa do movimento ou do repouso só se pode encontrar na extensão, assim
como a causa dos modos do pensamento só pode estar no pensamento”. E assim o comentador finaliza: “a não o
interpretarmos assim, será necessário admitir desajustamento e contradição” tanto na Ética quanto no Breve Tratado
[TEIXEIRA, 2001, p.143-151]. De um ponto de vista muito parecido com o de Lívio Teixeira, M. Chauí, em Espinosa:
uma filosofia da liberdade [2005], reitera então que “corpo e alma não estão numa relação hierárquica de comando, o
corpo comandando a alma na paixão e no vício, a alma assumindo o comando sobre o corpo na ação e na virtude. Corpo
e alma são isonômicos, isto é, estão sob as mesmas leis e sob os mesmos princípios, expressos diferencialmente.
Rompe-se, portanto, a longa tradição hierárquica que definira a alma como superior ao corpo e devendo ter comando
sobre ele” [CHAUÍ, 2005, p. 54]. Todavia, aqui se pergunta: atualmente isto ainda é válido? Mesmo Spinoza negando
toda a tradição hierárquica a qual Chauí faz referência, não é possível negar também a ideia spinoziana de que a mente
humana não pode determinar ou ser causa de, por exemplo, um movimento corporal exterior? O neurocientista Miguel
Nicolelis, em estudos experimentais recentes, prova que de fato é possível que uma mente determine os movimentos
dos corpos exteriores, sem que para isso seja necessária a mediação útil ou mecânica de seu próprio corpo. Ou seja,
Nicolelis demonstra que um indivíduo pode apenas com a sua própria mente pôr em movimento outros corpos
exteriores, sem precisar usufruir da força física de seu corpo em tal empreendimento. Como isso ocorre? [1.] As redes
ou circuitos neuronais do cérebro, quando formados, são responsáveis pelas trocas contínuas de mensagens
eletroquímicas entre neurônios [sinapses]. Tais trocas são espécies de sinfonias comunicacionais que se decorrem por
meio de neurônios advindos de diferentes partes do cérebro. Isto se dá justamente ao “passearem” [os neurônios] pelos
“caminhos” das complexas redes ou circuitos que ocupam toda a “envergadura” do cérebro. O resultado dos contínuos
contatos entre os neurônios que desandam em circuitos cerebrais comuns é justamente a troca de mensagens
eletroquímicas, isto é, a liberação de pequenas descargas elétricas, ou seja, sinapses; [2.] e depois disso? Nicolelis diz
que ao “recrutar maciças ondas multivoltaicas de descargas elétricas” dos neurônios, as redes ou circuitos cerebrais
geram “cada ato de pensamento, criação, destruição, descoberta, ocultação, conquista, sedução” etc. Neste
empreendimento, observa-se como os pensamentos humanos se formam a partir das trocas das descargas elétricas dada
entre neurônios os quais são recrutados e se comunicam em circuitos neuronais específicos; [3.] não é apenas possível a
observação de como os pensamentos humanos se formam, mas é também permitido o registro de tais pensamentos em
plataformas digitais, o que o autor chama de interfaces cérebro-máquina [ICM]; [4.] ademais, observando e registrando
as sinfonias eletroquímicas que proliferam os pensamentos de alguns macacos, por exemplo, percebe-se que também é
possível, por conseguinte, não só registrar esses pensamentos, mas traduzí-los, decodificá-los: “A partir daí,
conseguimos traduzir esses pensamentos motores em comandos digitais que puderam ser usados para gerar movimentos
em máquinas [corpos outros que não o dos macacos] que foram criadas sem nenhum intuito de reproduzir a intenção
dos pensamentos de um primata. Nesse momento, nossas ICMS se depararam, quase que por acidente, com uma forma
de liberar o cérebro das restrições impostas pelo corpo e, nesse processo, permitir que o sistema nervoso de primatas
controlasse diretamente o funcionamento de ferramentas virtuais, eletrônicas e mecânicas, como forma de expressar
seus desejos mais íntimos de interação e exploração do mundo ao seu redor. Apenas por meio do pensamento”, ou seja,
sem a mediação da mecânica do próprio corpo do primata para isso [NICOLELIS, Muito além do nosso eu: a nova
neurociência que une cérebro e máquinas – como ela pode mudar nossas vidas, 2011, p.17-23]. Portanto, a ideia
spinoziana de que a mente não pode determinar os movimentos corporais certamente não é mais válida hoje em dia,
mesmo que aqui se dê primazia a uma noção de mente [ou relações elétricas entre matérias neuronais] a qual Spinoza [e
a filosofia em grande peso] jamais admitiria. Ademais, de modo algum isso quer dizer que haja aqui um movimento
interpretativo em defesa da tradição teológico-metafísica, a qual infere que o corpo deve ser um mero instrumento ou
subalterno de uma mente ou alma que está a priori em relação direta com os valores pessoais de um Deus transcendente
[objeto de profundas críticas do próprio Spinoza]. Defender que, contrariamente a Spinoza, a mente tem a capacidade
de mobilizar corpos distantes de si, não implica a inferição de que a mente aqui em questão está relacionada à Deus,
qualquer que seja ele. Trata-se aqui então apenas da força da mente “abandonada” a si mesma, ou melhor, apenas em
companhia da música das descargas elétricas que nela se condensam e formam, por isso, pensamentos na geografia do
cérebro.
61
existencial [produto da causas exteriores]. É exatamente esse o escopo do conatus. Spinoza trata
então do conatus da mente e do corpo em um modo finito como o esforço de “perseveração do ser”
[ou da essência] na existência finita, concluindo na EIIIPVI que “cada coisa [essencialmente] 66
esforça-se, tanto quanto está em si, por perseverar no seu ser [in suo esse perseverare conatur]”
(EIIIPVI.; SO2, p.146) ao longo da existência finita. Como se pode observar, este esforço de
perseveração ou conatus é uma noção intrínseca tanto à mente quanto ao corpo, os quais buscam
manter suas essências existindo potencialmente, ou seja, produzindo continua e ativamente ideias e
movimentos ao longo da existência finita. Assim, “a potência de uma coisa qualquer [...] age ou se
esforça para agir, isto é (pela prop. 6), a potência ou esforço [potentia sive conatus] pelo qual ela se
esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que sua essência dada ou atual” (EIIIPVIId.; SO2,
p. 146). Portanto, a noção de conatus é a própria potência de perseveração ou conservação do ser
essencial da mente e do ser do corpo, os quais buscam se manter produzindo respectivamente ideias
e movimentos na vida finita, evitando subsequentemente qualquer causa exterior a qual possa lhes
impedir de continuar agindo tal como agem naturalmente. É por isso que, por exemplo, “a mente,
quer enquanto tem ideias claras e distintas [pensando a si mesma / observando sua própria
atividade de produzir ideias]67, quer enquanto tem ideias confusas [por pensar o corpo –
representando-o inadequadamente - e não apenas por pensar a si mesma enquanto objeto
adequado]68, esforça-se por perseverar em seu ser [...] e está consciente de seu esforço” (EIIIPIX) 69.

66
Colchetes e observação nossos.
67
Colchetes, observação e grifo nossos.
68
Idem.
69
Em seu artigo O conatus de Spinoza: auto-conservação ou liberdade?, Rafael Rodrigues Pereira faz uma profunda
análise acerca do conatus spinoziano. Para ele, “a primeira vista o conatus parece ser descrito como o esforço de
perseveração de um determinado estado, o que acaba sendo entendido, em geral, como a tentativa de permanecer na
existência, ou seja, de não morrer [...] Trata-se de uma visão que se aproxima de outros autores, como Hobbes”. Em
outra esteira, o conatus spinozista é constantemente visto apenas como um princípio de expansão da vida de um
indivíduo, “o que se traduz por um esforço contínuo de aumento da própria potência do indivíduo”. Assim,
frequentemente “o conatus [...] parece remeter ora a um esforço de auto-conservação, ora de expansão e aprimoramento
pessoal. Alguns comentadores consideram difícil conciliar esses dois aspectos, enxergando neste ponto uma possível
incoerência de Spinoza (Alquié [...]). Outros falam da passagem de uma tendência à outra. A maioria tende a lidar com
esta questão afirmando que o conatus não é “apenas” um princípio de auto-conservação, mas “também de
aprimoramento”. A nosso ver, trata-se de uma má solução, pois, pressupõe que essas duas qualidade sejam compatíveis
(ou seja, que possam ser acrescentadas ou sobrepostas), o que não é necessariamente o caso". Uma boa forma de
resolver esse problema, também adotado por muitos autores, consiste em considerar que um aspecto está implicado no
outro: ou seja, o aumento da própria potência seria necessário para garantir justamente, a auto-preservação, já que
diminui a possibilidade de sermos destruídos por forças externas (Curley [...]). Esta é uma solução interessante, mas, a
nosso ver, insuficiente”. É apontando a insuficiência de algumas interpretações que insurgiram até o momento acerca da
noção de conatus que o comentador toma a conclusão de que a maioria delas é equivocada porque apontam o conatus
exclusivamente por meio da física mecanicista da época. Portanto e em outra esteira, PEREIRA [2008] toma a decisão
de encarar o conatus não apenas como princípio exposto a partir da física, devendo, por conseguinte, ser interpretado
principalmente como atividade que segue imediatamente da metafísica spinoziana: “É fundamental para essa discussão,
portanto, o fato de que o conatus não é constituído apenas de elementos físicos, remetendo, também, a um princípio
metafísico [...] Quando a substância única “causa” seus modos, ela está, de certa, forma, causando a si mesma. Esse
princípio decorre diretamente, assim, da auto-suficiência que, como vimos, costumava ser atribuída à noção de
substância pelos racionalistas modernos, e que Spinoza traduz afirmando que Deus é causa de si. Essa é, a nosso ver, a
melhor forma de compreender o que está dito na preposição I-34: Deus “produz a si mesmo”, e nesse sentido é que sua
potência é sua própria essência. A co-relação entre essência e potência afeta a maneira pela qual os modos finitos são
62
concebidos. Embora dependam ontologicamente da substância, estes modos possuiriam essências individuais contidas
nos atributos (Spinoza 13, EI, P25, p.49; Cf. EII, P8, p.89). Deste modo, embora o conatus spinozista ainda contenha
elementos físicos, ele os ultrapassa em direção a um princípio formal que é mais fundamental ontologicamente, não se
confundindo mais, como ocorria em Hobbes e Descartes, como a simples inércia [...] A partir do momento em que se
compreende, portanto, que a “perseverança no ser” se refere a esta dimensão formal, fica mais fácil perceber porque
este aspecto desemboca em um esforço contínuo de aumento da própria potência [...] O que deve ser mantido na
existência não é aquilo a que chamamos de indivíduo no senso comum (eu, você etc.), mas sim a individualidade que
corresponde à essência, e que é comprometida pela passividade e tristeza referentes às influências externas. Em última
instância, assim, o conatus deve ser entendido como um esforço para nos tornarmos causa adequada de nossas ações, ou
seja, sermos ativos, e, portanto, livres, pois Spinoza entende a liberdade a partir da auto-determinação [...] A auto-
conservação do indivíduo, assim, consiste em uma conservação de sua capacidade de ser ativo, ou seja, de sua
individualidade, e, portanto, faz sentido que esta auto-conservação implique um esforço de aumento da própria
potência, já que este esforço, quando bem-sucedido, nos leva a sermos cada vez mais ativos”. Deste modo, o indivíduo,
entendido no sentido spinozista, só pode se “auto-conservar” se conseguir perseverar sua individualidade, o que
depende, diretamente, do aumento de sua potência”. É de acordo com toda essa exposição que o comentador chega as
últimas consequências a respeito da noção de conatus: “Podemos dizer que o homem corajoso e racional que morreu
prematuramente preservou melhor sua individualidade (portanto o “indivíduo” entendido no sentido próprio), ao passo
que o covarde passional que chegou à velhice terá mantido apenas a “pessoa” do senso comum”. É então aqui que
parece se encontrar todo o projeto ético de Spinoza, aquele que aponta para a anunciação das potências individuais que
são empreendidas a partir do plano metafísico no qual estão inseridas, sem deixar de levar em consideração que tais
potências podem se afirmar de maneira excessivamente radical, chegando mesmo a desfalecerem de tanta vida, esta a
qual não pretendem deixar de exprimir. Portanto, certamente o conatus spinoziano não é a busca pela perseveração em
um estado ascético, transcendente, imutável ou sombriamente sem vida, já que a sua afirmação é a autoposição de si
enquanto vida afirmativa, provocando, portanto, profundas mudanças em um homem: “Em Spinoza essa tendência é
fruto de características intrínsecas da própria noção de essência, remetendo, assim, a princípios metafísicos, como a
impossibilidade de auto-destruição, e de que da natureza de uma coisa devem necessariamente se seguir determinados
efeitos (Spinoza 13, EII, P4, p. 173; EI, P36, p.63). O conatus spinozista, assim, não pode ser explicado somente a partir
das relações que caracterizam o mecanismo da ciência moderna” [PEREIRA, in Cadernos Espinosanos, nº19, Jul/Dez.
2008, p. 79-84]. O mesmo é frisado por Marcos Ferreira de Paula em O problema do desinteresse na filosofia de
Spinoza [2009]: “o conatus spinozano [...] não é, como poderíamos pensar, inercial [reativo empiricamente – grifo e
observação nossos] [...] ele não é o esforço pelo qual uma coisa persevera em seu estado atual. É, antes, perseveração
no ser, na existência [...] Isto significa que é quase impossível que nosso estado atual permaneça sempre o mesmo”
[PAULA, in Spinoza e Nietzsche: o mais potente dos afetos, 2009, p. 239]. D'abreu [2007] também trilha o mesmo
caminho: “queremos sempre aumentar nossa potência, mesmo quando buscamos nos aniquilar e nos humilhar: mesmo
quando queremos seguir a trilha dos “santos”, dos ascetas, dos místicos. Mesmo quando busco não mais me afirmar,
quando desejo lutar contra o meu ego, mesmo quando acredito, como Pascal, que meu maior inimigo sou eu mesmo,
ainda assim estou buscando aumentar a minha potência. E esta lei é tão inexorável que todo ser vivo, todo modo finito
da Natureza infinitamente infinita, a segue com a mesma necessidade e com o mesmo rigor. Tudo o que é, tende a
continuar sendo: até o próprio Deus, que é a verdadeira lei de expansão e potência” [D'ABREU, in Conatus, nº 2, v.1,
Dez., 2007, p. 239]. Mas por que utilizar aqui tantos comentadores como suporte da coerente exposição de PEREIRA
[2008]? Ora, para utilizá-los ao lado deste último como aliados contra Nietzsche, o qual aparentemente não compreende
o que seja o conatus em Spinoza, com intenções sub-reptícias. Em A Gaia ciência, esse filósofo diz o seguinte sobre a
noção spinoziana de conatus: “Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do
verdadeiro instinto fundamental da vida, que tende à expansão do poder e, assim querendo, muitas vezes questiona e
sacrifica a autoconservação. Veja-se como é sintomático que alguns filósofos – por exemplo, Spinoza, que era
tuberculoso – tinha de considerar decisivo justamente o chamado instinto de autoconservação: eles eram, precisamente,
homens em estados de indigência. O fato de nossas modernas ciências naturais terem de tal modo se enredado no
dogma spinozano (por último, e da forma mais grosseira, o darwinismo, como a doutrina incompreensivelmente
unilateral da “luta pela existência” -) deve-se, é provável, à procedência da maioria dos investigadores da natureza:
nesse aspecto eles são “do povo”, seus antepassados foram gente pobre e humilde, que conheceu muito de perto a
dificuldade de seguir adiante [...] A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição da vontade de
vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão, de poder, conforme
a vontade de poder, que é justamente vontade de vida” [NIETZSCHE, GC, livro V, §349; Ed. Companhia das lertas,
2001, p.243-244]. Primeiramente, aqui não se pode acreditar ou ir até o fim com Scarllet Marton [2009], a qual se
restringe a defender com excessivo simplismo o fato de que Nietzsche simplesmente não compreende a noção de
conatus: “confundindo a ideia spinozana de a existência realizar-se e visar a conservar-se na duração e o impulso de
autoconservação, Nietzsche interpreta-a de maneira equivocada. A partir daí, passa a acusar Spinoza de ingenuidade por
atribuir valor ao que permanece eternamente idêntico, a atacá-lo por desprezar tudo o que muda, a criticá-lo por temer a
impermanência. No fim das contas, ele [Spinoza] faria parte dos “homens em situação de penúria” [MARTON, in
Spinoza e Nietzsche: o mais potente dos afetos, 2009, p. 8-9]; de modo segundo, baseado no aforismo citado de A gaia
ciência e não concordando tanto assim com o comentário de Marton, deve-se realizar aqui a seguinte inferência:
63
Nesse itinerário, é também possível concluir que ao longo da vida de um modo finito há uma
contínua tensão relacional entre a sua essência [a priori modificação infinita de ideias e
modificação infinita de movimento a priori eternos] e a sua existência finita [consequência de
constrangimentos exteriores]. Tal tensão intrínseca aos modos finitos é exatamente aquilo que
demarca os seus conatus. Ou seja, quanto mais um modo finito vive a partir da essência [mental-
corporal] ontológica que lhe é intrínseca, mais essa essência persevera [esforça-se] frente à finitude
existencial desse modo70. Por conseguinte, a duração desse modo se torna mais elástica, mais
prolongada, ou, nas palavras do pensador, mais indeterminada71: “portanto, o esforço pelo qual uma
coisa [essencialmente]72 existe não envolve, de maneira alguma, um tempo definido, mas, pelo
contrário, ela continuará, em virtude da mesma potência [essencial] 73 pela qual ela existe agora, a
existir indefinidamente, desde que [...] não seja destruída por nenhuma causa exterior”
(EIIIPVIIId.). Neste caso, a natureza essencial do modo finito “luta” como que contra seu “curto
prazo de existência”, o que se dá por meio da própria potência de sua essência [força de afirmação
de ideias – mente – e força de afirmação de movimentos – corpo –]. E, quanto mais um modo finito
age dessa maneira, menos a finitude o constrange. Inversamente, quanto menos o modo finito vive
por meio da essência [mental-corporal] que lhe é intrínseca, menos sua essência persevera [esforça-
se] na finitude. Aqui, percebe-se então que a existência finita de um determinado modo finito passa

Nietzsche aparentemente não compreende o conatus spinoziano, já que em realidade, ao invés de não compreender esta
noção, esconde intenções outras na passagem de sua obra aqui utilizada. Ou seja, o que Nietzsche tenta ocultar em seu
aforismo citado é que tudo aquilo que ele afirma como vontade de vida ou como vontade de poder parece ser
basicamente uma homologia da noção spinoziana de conatus [vide acima termos em itálico], tais como expansão do
poder. Ou seja, a impressão que tal aforismo dá aos leitores conhecedores de Spinoza é que Nietzsche entra em
desacordo com a noção de conatus spinoziano para, sub-repticiamente, utilizá-la em seu favor sob o título de vontade de
vida ou mesmo de vontade de poder. Portanto, a vontade de vida ou a vontade de poder que Nietzsche tanto defende é
interpretada aqui como sendo o próprio conatus spinoziano, só que velado em outra roupagem morfológica a qual
estaria destinada a suprir as necessidades de um contexto histórico totalmente distinto [século XIX], em que com
frequência passa a ser utilizado em filosofia a temática vida [vide Kierkegaard, Shopenhauer, Feuerbach, Marx,
Nietzsche, Bergson, Whitehead etc.]. Acredita-se então que esse filósofo, em tal aforismo, destrata Spinoza não porque
não o compreende [MARTON, 2009], mas porque pretende camuflar a intenção de lhe furtar ou mesmo de se apropriar
à sua maneira de um conceito tão caro ao polidor de lentes setecentista.
70
Esta interpretação é extremamente cara a Deleuze [1969]. É em seu Spinoza et le problème de l'expression [capítulo
15: Les trois ordres e le probleme du mal] que está bastante pungente a observação a qual aponta que o conatus
spinoziano é dado por meio de uma espécie de relação de forças entre duas naturezas distintas: a essência e a existência
do modo finito: “Sans doute, une fois que nos existons, notre essence est-elle un conatus, un effort de persévérer dans
l'existence. Mais le conatus est seulement l'etat que l'essence est déterminée à prendre dans l'existence, en tant que cette
essence ne détermine pas l'existence elle-meme ni la durée de l'exitence. Donc, étant effort de perséverer dans
l'existence indéfiniment, le conatus n'enveloppe aucun temps défini: l'essence ne sera ni plus ni moins parfaite suivant
que le mode aura réussi à pérséverer plus ou moins de temps dans l'existence. Ne manquant de rien quand le mode
n'existe pas encore, l'essence n'est privée de rien quan il cesse d'exiter” / “Certamente, uma vez que existimos, nossa
essência é um conatus, um esforço para perseverar na existência. Mas o conatus é apenas o estado que a essência é
determinada a ter na existência. Sendo, portanto, esforço para perseverar na existência indefinidamente, o conatus não
envolve nenhum tempo definido: a essência não será nem mais nem menos perfeita, conforme o modo tenha conseguido
perseverar mais ou menos na existência. A essência não é privada de nada quando o modo deixa de existir, porque nada
lhe falta quando o modo ainda não existe” [DELEUZE, 1969, p. 228. Tradução para a versão brasileira - a qual se
encontra no prelo - de Luiz B.L.Orlandi].
71
Cf. EIIIPVIIId.
72
Colchetes e grifo nossos.
73
Colchetes e grifo nossos.
64
a ser ainda mais curta. Conclui-se: é isto que faz com que a essência eterna [força de afirmação de
ideias – mente – e força de afirmação de movimentos – corpo –], a qual “ocupa” o interior de um
determinado modo finito, persevere menos na existência finita. Com efeito, quanto menos o modo
finito vive por meio da essência a ele interna, menos a sua essência persevera “contra” a finitude
existencial [proporcionada pelos constrangimentos da exterioridade], o que pode levá-lo,
concomitantemente, à destruição.
Contudo, para Spinoza essa inquirição acerca do esforço de perseveração no ser ou conatus
da mente e do corpo ainda não está completa. O autor ainda sente que precisa enunciar um outro
termo análogo ao esforço perseverante ou conatus da mente e do corpo. Nesse sentido, o filósofo
volta-se inteiramente a este empreendimento no escólio da proposição IX da EIII, no qual se
anuncia que o conatus “à medida que está referido simultaneamente à mente e ao corpo chama-se
apetite74 [appetitus], o qual, portanto, nada mais é do que a própria essência do homem, de cuja
natureza necessariamente se seguem aquelas coisas que servem para a sua conservação, e as quais o
homem está, assim, determinado a realizar” (EIIIPIXs.; SO2, p.147). Portanto, o termo apetite é
aquilo que para Spinoza é homólogo ao conatus da mente e do corpo, os quais perseveram
afirmando-se porque têm como que um único e mesmo apetite sob registros distintos: o de ideias
mentais e de movimentos corporais. Ora, se é assim, conclui-se: a mente é apetite [conatus] de
produção de ideias e o corpo é apetite [conatus] de produção de movimento. Assim, não há
conservação de uma ideia imutável na mente e de um movimento imutável no corpo, mas há, ao
contrário, um apetite ou conatus que conserva a produtividade ou a vitalidade da mente e do corpo
no mundo.
No entanto, esse apetite ou conatus o qual é intrínseco à mente e ao corpo são para Spinoza
absolutamente “inconscientes”. É por isso que o autor tem uma necessidade outra: é preciso que o
apetite ou conatus da mente e do corpo tenha consciência de si mesmo, tendo em vista que para
conhecer o esforço de seu ser ou essência [apetite ou conatus mental-corporal] na existência finita o
homem deve, além de possuir conatus enquanto apetite, ter a consciência mental do que este apetite
ou conatus é. E o que é o apetite ou conatus de corpo e de mente sob o estatuto da consciência da
mente? O filósofo não faz rodeios: “o desejo [cupiditas] é o apetite juntamente com a consciência
que se tem dele” (Ibidem.). Portanto, o apetite ou conatus em corpo e mente no modo finito humano
deve também ser objeto de desejo consciente [desejo ou consciência mental do apetite da mente /
desejo ou consciência mental do apetite do corpo]: “[...] entre apetite e desejo não há nenhuma
diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão
conscientes de seu apetite” (Ibidem.). É dessa maneira que a mente do homem deseja ou toma

74
Grifo nosso.
65
consciência de que ela mesma se esforça para continuar a ser produção de idéias; da mesma
maneira, a mente humana deseja ou toma consciência de que o corpo se esforça para continuar a ser
produção de movimentos. Nesse itinerário, eticamente os homens passam a desejar conscientemente
que as sua constituições internas mentais-corporais perseverem existindo, afirmando-se a partir de
si às suas maneiras. Ou seja, aqui está apresentado o conatus ou apetite do homem enquanto
consciência mental, isto é, desejo de apetite/conatus mental-corporal o qual busca continuar a agir
internamente por si mesmo. Com efeito, o que Spinoza pretende então com esta “denúncia” é
demarcar que este desejo [apetite consciente de si] é aquele que “se gera em nós enquanto agimos, é
a própria essência ou natureza do homem, à medida que é concebida como determinada a fazer
aquilo que se concebe adequadamente, em virtude apenas da essência do homem [...]”
(EIVPLXId.)75.

75
Em realidade, na filosofia de Spinoza existem três tipos de desejo ou consciência, os quais estão posicionados em
certa escala de hierarquia. O primeiro deles é totalmente efetuado por meio da passividade da mente, a qual têm suas
atividades ou apetites internos submetidos à exterioridade. Desse modo, agindo passionalmente a mente dos homens
passa a desejar mais a exterioridade do que a si mesma, ou melhor, suas próprias atividades, situando-se continuamente
em estados de incompletude ou de falta. É por isso que, na explicação da primeira definição dos afetos na EIII, Spinoza
diz que “compreendo, aqui, portanto, pelo nome de desejo todos os esforços, todos os impulsos, apetites e volições do
homem, que variam de acordo com o seu variável estado e que, não raramente, são a tal ponto opostos entre si que o
homem é arrastado para todos os lados e não sabe para onde se dirigir”. Esse então é o primeiro tipo de desejo para
Spinoza. Já o segundo tipo é o que acabou de ser abordado logo acima no corpo principal do texto: é o desejo ou a
consciência da mente que sabe racionalmente que sua força ativa ou apetitiva deve, assim como a do seu corpo, ser ação
plena realizada internamente às suas maneiras, independente dos dados exteriores. Assim, por um lado, deve-se tomar a
consciência ou desejar mentalmente que o corpo continue internamente a agir a partir de si mesmo, ou seja, produzindo
por si mesmo movimento [independente das representações da mente] e, caso seja preciso corpos exteriores para tal,
que eles sejam utilizados como instrumentos para uma afirmação que já é de antemão interior ao próprio corpo; e, por
outro lado, a mente deve desejar ou tomar consciência que ela mesma é responsável por suas próprias atividades ou
apetites internos, ou seja, a produção contínua de ideias que lhe são próprias. Por fim, o terceiro tipo de desejo concerne
à consciência ou desejo mental que tem como objeto o plano ontológico que põe internamente as próprias forças
internas ou atividades corporais e mentais em um modo finito humano. Assim, passa-se a desejar não apenas as
atividades mentais-corporais em si mesmas, mas o próprio plano ontológico dos atributos divinos e dos modos infinitos
que destes atributos se seguem, isto é, aquilo que põe as atividades mentais-corporais dos modos finitos no mundo [este
terceiro tipo de desejo será melhor abordado no trato da EV, que estará sob o escopo do problema da intuição e da
liberdade - 3º capítulo -]. Domingues [1991] trata do desejo em Spinoza partindo de uma retomada da tradição
socrático-platônica. Segundo ele, Sócrates teria sido o primeiro a constituir uma solução para a problemática do desejo
enquanto outra coisa que não aquilo que se anuncia por meio da passionalidade da mente relativamente a objetos
contingentes da exterioridade. Tendo em vista que em sentido primeiro o desejo é estritamente aquilo que tem seu ponto
de partida no mundo das paixões, ou melhor, na passionalidade da mente perante as coisas exteriores, Sócrates constitui
a seguinte questão: “como poderíamos livrar-nos do império das paixões e da escravidão das coisas que nos conduzem,
num movimento sem fim, a desejar mais e mais e, ainda que visando ao melhor, a fazer o pior?” A solução socrática
envolve um empreendimento em defesa de um outro desejo que não o desejo passional proporcionado pela empiria da
matéria exterior. E qual desejo seria este? Ao invés do desejo por objetos da matéria da qual o homem espera preencher
seus vazios, é necessário ter desejo de razão. Ora, é isto que inaugura “o tema da “virtude-ciência” ou da “salvação
pelo conhecimento” [de si], tão caro à ética clássica, na qual encontramos por assim dizer o grande truque da filosofia
grega, que vai converter-se na moeda corrente de todos os moralistas de todos os tempos e lugares, a saber: se a razão
não tem o poder de eliminar o desejo, que é irredutível, ela pode pelo menos retificá-lo, transformando este desejo
ilimitado de todas as coisas, que é a paixão em “desejo de saber”, do “Bem” e do “melhor”, condição sine qua non da
moralidade e do agir virtuoso”. É na mesma esteira do mundo grego que insurge Spinoza “reafirmando a superioridade
do desejo nascido da razão, que nos conduz à Deus, à firmeza da alma e à posse estável do soberano bem”. Assim,
“também ele vai fazer desta prodigiosa invenção do gênio grego que foi converter o desejo num desejo de saber (Lima
Vaz) e da virtude emancipadora do conhecimento o apex conceitual da ciência do éthos”. Deste modo, tanto quanto
Sócrates, Spinoza celebra à sua maneira uma virtude-ciência do desejo de saber ou a consciência da própria
interioridade mental-corporal humana, a qual se expõe mais claramente na passagem da EIV [a servidão humana e a
66
****
No início deste capítulo foi trazida à tona a seguinte questão: por que, para Espinosa, tudo
que há em sua ontologia é a presença da substância, seus atributos e modos?. Tal questão tentou
ser respondida na sequência dos tópicos empreendidos nesta parte da dissertação [capítulo 1]. Mas,
como poderia haver aqui a síntese da resposta ao problema levantado? Acredita-se que isto pode ser
dado da seguinte maneira: as únicas instâncias que constituem a ontologia spinoziana são
substâncias, atributos e modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos] porque, como foi
demonstrado, tal ontologia atua em sua plenitude apenas por meio da articulação entre estes
conceitos. Também como já foi demonstrado anteriormente, a articulação entre substância,
atributos, e modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos] pode ser expressa da seguinte
forma: os modos [particularmente os humanos] são essencialmente atividades que perseveram
[conatus] criando ideias [mentes] e são atividade que perseveram [conatus] criando movimentos
[corpos] ao longo das existências finitas. Estas atividades perseverantes [mentais/corporais] são
“moduladas” ou constrangidas por causas exteriores que, por conseguinte, as tornam finitas. Mas a
priori a mente e o corpo de um modo humano finito estão “imersos” respectivamente em um duplo
processamento interno, a saber, entendimento [modo infinito imediato] em modificação infinita
[modo infinito mediato] e movimento em modificação infinita [modo infinito mediato], os quais são
eternos. Este duplo processamento interior às constituições modais finitas [mente/corpo] são
basicamente aquilo que surge do/no próprio ser dos atributos [pensamento/extensão: natureza
naturante] os quais são constituintes da Substância/Deus. Poder-se-ia então inferir que

força dos afetos - de servitute humana, seu de affectuum viribus] para a EV [a potência do intelecto ou a liberdade
humana - Potentiâ Intellectûs, seu de Libertate Humanâ]. Portanto, não há em Spinoza a defesa de uma mobilização do
desejo como falta ininterrupta de algum objeto exterior, o que [1.] hobbesianamente indica o empreendimento do
homem selvagem e passional como ser desejante de domínio de objetos ou prezas externas a si – homem como lobo do
homem –, e que [2.] conduz a empresa psicanalítica freudo-lacaniana [sem dúvida em esteira shopenhauriana] a
defensoria da incompletude do homem, este o qual nunca encontra um objeto pleno que possa preencher de vez o seu
angustiante vazio. Diametralmente em oposição a isto, Spinoza empreende a defensoria de um outro tipo de desejo, isto
é, desejo de mente e de corpo internos aos indivíduos que se querem a si enquanto forças produtoras de si mesmos,
escopo ético o qual busca manter os homens em estado de independência perante objetos exteriores. Aqui, a vida interna
de um indivíduo é desejada não como incompleta, ou melhor, como aquilo que continuamente sente falta de alguma
coisa que não ela para posicionar-se no mundo. De outro modo, há um desejo totalmente distinto, isto é, um desejo
como consciência de um indivíduo que quer continuar se produzindo mental-corporalmente a si mesmo, tendendo agora
em favor de suas próprias afirmações internas, as quais, em contrapartida, não sentem falta de qualquer coisa que seja
para preencher vazios ou sensações de incompletude: “[...] Ao invés, enfim, de inscrever a metafísica do conatus nos
quadros de uma analítica da finitude que define o homem como um ser de carência e desejo (falta) e um ser para a
morte é a afirmação da natureza humana sempiterna e do homem total que a Ética anuncia, ao mesmo tempo que a
morte nela é denunciada como um acontecimento mundano sem importância de que o sábio deve ter o cuidado de se
esquivar e de não lhe emprestar relevo algum (“a sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida”, diz
Espinosa). Por consequência, entre a natureza humana eterna reportada a Deus e as naturezas humanas singulares
abandonadas a si mesmas abre-se um abismo. Se uma metafísica do homem fica autorizada, não é com certeza a
metafísica da subjetividade de Descartes, que nos fala do eu cindido do mundo e separado de Deus, mas a metafísica do
homem total, reconciliado com Deus e com o mundo” [DOMINGUES, 1991, p. 116-124]. Esta percepção spinoziana de
desejo é adotada não sem adaptações por filósofos de grande envergadura, tais como Gilles Deleuze e Felix Guattari, os
quais utilizam o desejo spinoziano [desejo como produção ou fluxo inconsciente de vida] como instrumento de combate
ao capitalismo e à psicanálise francesa das décadas de 60 e 70 do século XX [Cf. O anti-édipo: capitalismo e
ezquizofrenia].
67
essencialmente o homem é uma espécie de misto de esforço de atividade paralela de mente e de
corpo ao longo da existência finita, ou mesmo uma insurgência que ressalta-se como uma
intersecção entre os conjuntos independentes de um entendimento sob modificação infinita e de um
movimento sob modificação infinita, conjuntos os quais se seguem respectivamente do pensamento
e da extensão de Deus. Este mecanismo ontológico spinoziano é a própria sustentação da filosofia
do autor.

****

68
Capítulo 2
---
Da força da Razão ou a superação da Servidão humana
---
Não se trata aqui de um doutor, um sábio experimentado pela vida,
um mártir fortalecido por suas doutrinas e que por elas aceita a morte.
É [...] uma criança que só possui a força do seu coração.

Jules Michelet, Joana D'arc.

E, numa idade em que poucas crianças se furtam ao controle da mãe e à orientação do pai,
foi-me permitido seguir livremente [...] e tornei-me, em tudo exceto no nome, o senhor de minhas próprias ações.

Edgar Allan Poe, William Wilson.

Este segundo capítulo visa responder fundamentalmente ao seguinte problema: o que pode a
razão humana contra a servidão em Spinoza? Para que esse problema seja solucionado é preciso a
anunciação do objetivo que ressoa como resposta a tal problema: demonstrar em filigrana que a
razão é o esforço [conatus] de produção ativa de ideias mentais em si e por si e que, por meio de
tal esforço, é possível a superação da servidão da própria mente. Ademais, isto proporciona
reflexivamente o alcance da liberdade do homem [mente-corpo] sob limites antropológicos76.
Além disso, para atingir o objetivo de responder ao problema dado é necessário precisar
duas outras inquirições secundárias, as quais são acompanhadas de duas soluções objetivas. A
primeira inquirição é: qual o pressuposto ou a condição da servidão humana em Spinoza? A
resposta a tal inquirição é dada pela via do seguinte objetivo: demonstrar que o pressuposto ou a
condição da servidão humana é a imaginação da mente, já que, neste caso, a própria mente pensa
[imaginariamente] que a condição de sua existência [produção de ideias] são as afecções ou
imagens formuladas por seu corpo a partir da exterioridade, tornando-se, portanto, passiva
relativamente à última; a segunda das inquirições secundárias é posta aqui da seguinte maneira: o
que é a servidão humana para Spinoza? Neste escopo, pretende-se, enquanto resposta a este
problema levantado, anunciar que a servidão humana para Spinoza é especificamente a
incapacidade da mente do homem em refrear ou regular sua produção de ideias ou afetos passivos
[primordialmente alegres ou tristes], dada por meio de afecções ou imagens [“boas” ou “ruins”]
do/no corpo o qual é constantemente dependente das contingências da exterioridade [objetos mais
ou menos “prejudiciais”] para agir. Em consequência, a própria exterioridade chega a comandar a
potência de produção de ideias ou afetos da mente, podendo fazer com que ela e o homem

76
Portanto, neste capítulo não se visa chegar à liberdade em seu nível absoluto, ou seja, divino, o que será abordado
apenas no último capítulo deste trabalho. Trata-se aqui então de uma liberdade concernente especificamente aos limites
homem, sendo, por conseguinte, relativa e não-plena.
69
[mente/corpo] que a comporta [a mente] se autodestruam. Acredita-se aqui que é apenas tratando
primeiramente dessas duas problemáticas levantadas neste segundo parágrafo [a. imaginação; b.
servidão] que é possível responder de forma veemente à questão fundamental da razão mental
humana e de sua força intrínseca [primeiro parágrafo], a qual tem a potência [esforço de perseverar
em seu ser – conatus -] de suplantar possíveis estados mentais de servidão nos quais pode se
encontrar.

2.1. Imaginação ou primeiro gênero de conhecimento na EII

A primeira proposição da EII que define a imaginação [imaginatio] em termos claros é a


PXVII, na esteira do escólio que dela se segue. Neste escólio o autor constitui a seguinte conclusão:

[…] chamaremos de imagens das coisas as afecções do corpo humano, cujas ideias
nos representam os corpos exteriores como estando presentes, embora elas não
restituam as figuras das coisas. E quando a mente considera os corpos dessa
maneira, diremos que ela os imagina [imaginari] (EIIPXVIIs.; SO2, p.105.)77.

77
Grifo nosso; Michael Della Rocca em Racionalismo em fúria: a representação e a realidade das emoções segundo
Espinoza [2010] conclui sobre a imaginação que “ideias [imaginárias] como essas representam coisas, elas são de coisas
[...] O que as ideias que constituem minha mente representam? Espinoza afirma que cada ideia ou modo de pensamento
representa o modo de extensão que é paralelo a ela. O modo de extensão paralelo à minha mente é apenas meu corpo. E
os modos de extensão paralelos a cada uma das ideias constituintes em minha mente são apenas os estados do meu
corpo. Portanto, tudo o que minha mente representa são meu corpo e seus estados”. Mas, prudentemente o comentador
diz que isto ainda não é suficiente. Para ele, a mente humana não só representa imaginariamente os estados corporais
internos, sendo também “capaz de representar coisas fora de meu corpo, mas que faço isso por meio da representação de
um estado do meu corpo que é causado por outros corpos externos [...] estarei [portanto] também representando alguns
corpos externos que casualmente interagem com meu corpo” [ROCCA, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos,
2010, p. 44-45]. Na mesma esteira, Don Garrett em A representação e a consciência na teoria naturalista de Espinoza
da imaginação [2010] diz - tratando do itinerário do escólio da proposição citada acima no corpo do texto - que “[...] a
imaginação envolve não apenas a percepção de um estado interno ou “afeição”, mas também uma representação de um
corpo externo”. No entanto, é por meio desta definição interpretativa acerca da imaginação que o comentador lança aos
seus leitores uma contrapartida problematizante: “como a percepção [imaginária] de cada indivíduo [...] pode também
servir para representar um ou mais corpos exteriores?” Para responder a esta questão Garrett utiliza em seu favor a
EIIPXVI, enfatizando primeiramente - antes de demonstrar as nuanças da imaginação mental – a temática da produção
de imagens ou afecções efetuadas pelo corpo de um modo humano finito com base na exterioridade. Neste contexto, o
comentador explicita que a produção de imagens efetuadas por certo corpo humano não pode ser dada apenas por meio
dele mesmo, mas sim a partir da relação ou contato deste corpo com as coisas materiais que lhe são exteriores.
Portanto, toda imagem efetuada por certo corpo com base nas coisas exteriores também envolve a própria natureza
dessas coisas exteriores. É isto que “parece indicar que uma percepção [imaginária] de qualquer estado corpóreo interno
que tenha sido ao menos parcialmente influenciada por um corpo externo irá se qualificar como uma representação
imaginativa desse corpo no relato de Espinoza [...] Sempre que Espinoza oferece uma demonstração de uma alegação
de que os seres humanos têm consciência [imaginária] de algo, o argumento sempre assume a forma de mostrar apenas
que uma ideia dessa coisa está na mente humana; e esse argumento, por sua vez, sempre acaba recorrendo
principalmente às características da mente que são, de acordo com 2p13s, “completamente gerais e não pertencem mais
ao homem do que a outros indivíduos”. Parece, então, que, se as mentes têm consciência, o mesmo deve valer para as
mente de todas as outras coisas individuais” [GARRETT, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p.16-20].
Para além das exposições dos dois comentadores citados ainda há uma interpretação mais profunda sobre a imaginação.
Trata-se aqui da interpretação de Charlie Huenemann [2010]. Este comentador sente a necessidade de, para demonstrar
o que é a imaginação da exterioridade, efetuar um surpreendente estudo fisiológico da estrutura corporal. Para ele, não
basta dizer que o corpo realiza de/em si imagens das coisas exteriores com as quais seus estados entram em contato.
Assim, é também preciso reiterar que as imagens realizadas corporalmente da exterioridade também demarcam
internamente variações da estrutura fisiológica do corpo que as efetua. Nas palavras do autor: “o ambiente faz com que
o corpo seja pressionado de diversas maneiras, tornando-o capaz de modelar o ambiente de modo fisiológico em
70
Em Spinoza, para que haja a atividade imaginária da mente de um modo humano finito é
preciso de antemão que haja no interior desse mesmo modo finito a presença de um outro objeto
que não a própria mente. Ademais, este objeto outro é aquele que produz em si mesmo imagens
análogas às coisas exteriores com as quais está em relação contínua ou permanente. E que objeto
construtor de imagens da exterioridade seria este? Ora, é o próprio corpo humano, enfatiza o
filósofo. Portanto, o corpo de um modo finito, devido ao fato de estar frequentemente em contato
com coisas exteriores [outros corpos] produz, relativamente a elas, imagens. Todavia, cabe aqui
reiterar que as imagens produzidas não são essencialmente os próprios objetos exteriores, mas são
construções internas de certo corpo, este o qual está em relação contínua com o efêmero mundo
passível de ser visualizado, ouvido, respirado etc. E o que a mente unida a este corpo em um modo
finito faz com as imagens produzidas de/em nele por meio da exterioridade? Ela pensa as imagens
de seu corpo sob forma de ideias. Com efeito, “a mente humana não percebe nenhum corpo exterior
como existente em ato senão por meio das ideias [mentais] 78 das afecções [imagens internas] 79 de
seu próprio corpo” (EIIPXXVI.). Em contrapartida, a mente humana de um modo finito pode não
tomar a devida consciência de que as imagens [afecções] produzidas acerca da exterioridade são
apenas impressões constituídas pelo corpo ao qual está unida. E qual seria então a consequência
disso? A mente pode chegar a valorar ou pensar sob forma de ideias [pejorativas ou não] que as
imagens [afecções] produzidas pela interioridade do seu particular corpo são as próprias essências
das coisas externas. Assim, diz Spinoza: “quando a mente [idealmente] 80 considera os corpos
[exteriores]81 dessa maneira [sob forma de imagens ou afecções internas ao seu corpo]82, diremos
que ela os imagina” (EIIPXVIIs), e, “à medida que [a mente] 83 imagina um corpo exterior [como
imagem ou afecção interna do seu corpo]84, a mente humana não tem dele um conhecimento

resposta a essas pressões. O corpo, então, passa a agir como um mapa vivo de sua experiência”. É a partir disto que o
comentador se arrisca a dizer que tal mapa vivo de experiências de/em um corpo são mapas de imagens relativas à
exterioridade, imagens as quais também tornam-se constituintes da estrutura fisiológica do corpo. Por conseguinte, é
estritamente isto que anuncia a condição da imaginação. Na medida em que a mente observa a disposição das imagens
internas à estrutura de seu corpo ela imagina: “Quando exaltamos o conteúdo informativo dessa estrutura fisiológica,
estamos considerando a mente que está associada a esse corpo humano. E é provavelmente isso o que Espinoza quer
dizer quando fala que a mente é ideia do corpo. Ora, esse mapa vivo é sutil e complexo, assim como nosso modelo do
mundo não apenas contém cada um dos grandes impactos que nossos corpos sofreram, mas também todos os impactos
menores gerados por boatos sussurrados e notas de rodapé rabiscadas nas obras dos eruditos. Além disso, não há como
não associarmos todas essas impressões umas às outras conforme aparecem de maneira repetida, fazendo generalizações
a partir de suas semelhanças e, assim, construindo nossas lembranças e nossos poderes imaginativos. Tudo isso junto
constitui nosso conhecimento comum do mundo, ou aquilo que Espinoza chama de conhecimento do primeiro tipo”
[HUENEMANN, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p.123].
78
Colchetes e observação nossos.
79
Idem.
80
Idem.
81
Idem.
82
Idem.
83
Idem.
84
Idem.
71
adequado” (EIIPXXVIc.). Conclui-se: sempre que a mente crer idealmente que as imagens ou
afecções produzidas pelo seu corpo são as próprias coisas exteriores, ela inconscientemente produz
ideias ou julgamentos imaginários [equivocados] a despeito da realidade exterior, a qual em verdade
está para além de si e de seu corpo. Assim, caso a mente não tome a devida consciência ideal de que
as imagens [afecções] do seu corpo são apenas produções internas específicas dele, ela pode julgar
como a realidade exterior deve se portar moralmente, “dobrando” o mundo de acordo consigo
mesma, ou seja, a partir de seus próprios valores. Isto acontece porque a mente humana acredita
possuir o pleno conhecimento da essência de tudo o que gira ao seu redor, já que erraticamente
pensa sob a forma de ideias que as imagens ou afecções particulares as quais seu corpo produz são o
próprio âmago do mundo exterior. Nesse sentido, Spinoza reitera: “a ideia [mental] de uma afecção
[imagem] qualquer do corpo humano não envolve o conhecimento adequado do corpo exterior
[adaequatam corporis externi cognitionem non involvit]” (EIIPXXV; SO2, p.111).
É exclusivamente nesse sentido que o filósofo enfatiza a sua concepção de memória: “Não é
[a memória]85, com efeito, senão uma concatenação de ideias, as quais envolvem a natureza das
coisas exteriores ao corpo humano, e que se faz na mente segundo a ordem e a concatenação das
afecções [imagens internas] 86 do corpo humano” (EIIPXVIIIs.). No entanto, “digo apenas que é
uma concatenação de ideias, as quais envolvem a natureza das coisas exteriores ao corpo humano,
e não que é uma concatenação de ideias, as quais explicam a natureza das coisas” exteriores
(Ibidem.). Neste caso, segundo o pensador, a mente de um modo finito não explica a essência da
realidade corporal exterior [não a elucida], apesar de a ela se remeter. Por quê? Porque aqui a mente
humana efetua ideias imaginárias as quais explicitam muito mais os estados ou as imagens
[afecções] fixadas em seu corpo do que a natureza das coisas exteriores. Em outras palavras, a
tentativa da explicação ideal-imaginativa da mente acerca das coisas exteriores condiz muito mais
com os sintomas imagéticos de seu corpo do que com o mundo propriamente exterior. É nesse
contexto que Spinoza utiliza o clássico exemplo do sol:

Assim, quando olhamos o sol, imaginamos que ele está a uma distância
aproximada de duzentos pés, erro que não consiste nessa imaginação enquanto tal,
mas em que, ao imaginá-lo ignoramos a verdadeira distância e a causa dessa
imaginação. Com efeito, ainda que, posteriormente, cheguemos ao conhecimento
de que ele está a uma distância de mais de seiscentas vezes o diâmetro da Terra,
continuaremos, entretanto, a imaginá-lo próximo de nós. Imaginamos o sol tão
próximo não por ignorarmos a verdadeira distância, mas porque a afecção de nosso
corpo envolve a essência do sol, enquanto o corpo é por ele afetado (EIIPXXXVs.).

Ademais, em Spinoza há um curioso fato acerca da mente humana que vive apenas por meio

85
Idem.
86
Idem.
72
da imaginação. Ao refletir sobre as imagens formuladas por seu corpo relativamente à exterioridade,
a mente humana que imagina não exerce factualmente um domínio sobre os objetos que lhe
aparecem de fora. O que isso quer dizer? Que ao pensar que exerce pleno domínio [juízos de valor
ou ideias imaginárias] sobre tudo aquilo que aparece externamente em seu corpo sob forma de
imagens, a mente humana não toma a consciência de que é a própria exterioridade que, em
contrapartida, tenta imputar nela as diretrizes de sua existência. E por quê? Porque, neste caso, ela
só está a “viver” passionalmente em função dos juízos de valor ideais que efetua - por meio das
imagens internas de seu corpo - a despeito dos objetos que lhe são externos. Ora, aqui, em vez de
realmente “tiranizar” o mundo que lhe circunda, a mente toma inadequadamente as próprias coisas
exteriores do mundo como ponto de partida para sua existência afirmativa [produção de ideias],
tornando-se delas dependente.
Nesse contexto, o valor de conhecimento inadequado ao qual Spinoza reserva à mente que
imagina não é uma adjetivação que diz apenas respeito à imaginação mental ou efetuação de ideias
equivocadas acerca da essência das singularidades exteriores. Por conseguinte, também enquanto a
mente estabelece – por meio das imagens internas a seu corpo - juízos de valor equivocados acerca
da exterioridade [sendo desta exterioridade contingencial dependente] ela também desconhece a
natureza de seu próprio corpo. Em tal itinerário Spinoza diz:

Afirmo expressamente que a mente não tem, de si própria, nem de seu corpo, nem
dos corpos exteriores, um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento
confuso e mutilado [sed confusam tantùm,<& mutilatam> cognitionem habeat],
sempre que percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza, isto é, sempre
que está exteriormente determinada, pelo encontro fortuito [fortuito occursu] com
as coisas, a considerar isto ou aquilo (EIIPXXIXs.; SO2, p.114).

É por isso que o filósofo em EIIPXXVII e EIIPXXVIII infere que a inadequação da


imaginação mental também diz respeito aos juízos ideais equivocados os quais a mente elabora
acerca do próprio corpo ao qual está unida: “a ideia [mental] 87 de uma afecção [imagem] 88 do corpo
humano não envolve o conhecimento adequado do próprio corpo humano” (EIIPXXVII). E Spinoza
conclui: “Logo, essas ideias [mentais] 89 das afecções [imagens corporais]90, à medida que estão
referidas exclusivamente à mente humana, são como consequências sem premissas, isto é, (o que é,
por si mesmo sabido), ideias confusas [ideae confusae]” acerca da natureza da própria mente, de
seu corpo e das coisas exteriores (EIIPXXVIIId.; SO2, p.113). Ademais, enfatiza-se aqui, todavia,
que a mente é incapaz de compreender adequadamente a si mesma, seu próprio corpo e as coisas

87
Colchetes e observação nossos.
88
Idem.
89
Idem.
90
Idem.
73
exteriores apenas enquanto age inconscientemente a partir dos ditames da exterioridade. Nesse caso,
a mente arma uma espécie de “cilada” para si mesma, pois, ao crer que julga impositivamente a
exterioridade, dela se torna dependente. Aqui, a mente não percebe de maneira clara e distinta qual
a real condição de sua existência - intelecto infinito de Deus do/no atributo pensamento -,
submetendo-se às coisas fortuitas da matéria exterior. Ora, é exatamente por não compreender o
ponto de partida ou a real condição de sua atividade natural que ela não tem como entender
claramente a sua natureza, a das coisas exteriores e a do próprio corpo ao qual está unida. Sendo
assim, de acordo com o filósofo, sempre que a mente de um modo finito se depuser a pensar outra
natureza que não a sua, ela imagina ou produz um conhecimento inadequado acerca desta outra
natureza. Este tipo de conhecimento é o conhecimento mental que pensa imaginariamente conhecer
a essência das coisas outras, seja a essência das coisas exteriores seja a essência de seu corpo ou de
si mesma. Nesse caso, sempre que uma afecção, movimento ou imagem corporal é pensada pela
mente como ideia de algo, há uma espécie de pronunciação errática acerca desse algo [corpos]. A
isto, o filósofo chama não só de imaginação, mas de primeiro gênero do conhecimento [cognitio
primi generis]. Segundo o pensador “o conhecimento de primeiro gênero é a única causa de
falsidade - falsitatis causa - [...]” (EIIPXLI; SO2, p.122.) e “[...] pertencem ao conhecimento de
primeiro gênero todas aquelas ideias que são inadequadas e confusas; e como consequência [...] é a
única causa de falsidade” (EIIPXLId.; SO2, p.122).

2.1.1. Imaginação na EIII ou a produção mental de afetos [affectus] passivos.

Cabe ainda ressaltar que a exposição sobre a imaginação ainda não está completada. Ainda é
preciso haver uma investigação acerca do que a imaginação mental produz. De antemão se pode
pensar que esta resposta já está dada, justamente porque anteriormente foi dito que a mente que
imagina produz ideias representativas inadequadas a respeito de si mesma, das coisas exteriores e
do corpo ao qual está unida. No entanto, em vez de utilizar a nomenclatura ideias inadequadas
como aquilo que é produção imaginária de uma mente que pensa equivocadamente a si mesma, o
seu corpo e as coisas exteriores - por meio de imagens ou afecções do/no corpo relativas à
exterioridade da qual é dependente -, o filósofo diz na EIII que quando a mente imagina ela produz
afetos passivos. Deste modo, há então uma homologia entre ideias inadequadas e afetos passivos, já
que ambos são produtos da mente que valora inadequadamente por meio das imagens, afecções ou
movimentos a si mesma, o seu próprio corpo e as coisas exteriores. Se é assim, é preciso a partir de
agora realizar uma inquirição sobre o que são os afetos passivos da mente, de modo a finalizar a
montagem do plano conjuntural spinoziano o qual discerne sobre a imaginação mental.
Para isso, antes é preciso fazer emergir um outro problema: o que são os afetos para
74
Spinoza? Primeiramente, pode-se encontrar a resposta desta questão na terceira definição da EIII.
Nela, Spinoza diz o seguinte: “Por afeto [affectum] compreendo as afecções [affectiones] do corpo,
pelas quais sua potência de agir pode ser aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao
mesmo tempo, as ideias [mentais] 91 dessas afecções [affectionum ideas]” (EIIIDef.III.; SO2, p.139).
O que se pode observar imediatamente nesse fragmento de texto é que o termo afetos é algo
intrínseco tanto à mente quanto ao corpo de um modo finito. Nesse caso e de acordo com a ordem
da definição dada, é então preciso analisar de antemão o termo afetos no sentido em que está
referido ao corpo de um modo finito. Assim, logo em seguida, há aqui a exposição sobre o termo
afetos no sentido em que está referido à mente do mesmo modo finito.
Em relação ao corpo, o conceito de afetos é dado como aquilo que é aparentemente idêntico
às afecções deste mesmo corpo. Diz-se aqui que esta identidade entre afecção e afeto é aparente por
causa de uma informação adicional que se segue na expressão inerente à EIIIDef.III: “por afeto
compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir pode ser aumentada ou
diminuída, estimulada ou refreada [...]”92. Antes de aprofundar isso, relembra-se aqui: o corpo
internamente é ser ou produção continua de afecções, movimentos ou imagens, e, basicamente, essa
é a sua função vital. Portanto e em geral, cada uma das afecções, movimentos ou imagens
produzidos pelo corpo são resultados da função demarcada. Todavia, o afeto produzido pelo corpo
não é apenas um simples resultado [afecção, movimento ou imagem] determinado. O afeto é bem
mais do que isto: o afeto não é qualquer afecção/imagem produzida, mas é uma afecção/imagem
que ao ser produzida corporalmente é também sentida pelo próprio corpo. Portanto, sempre que o
corpo produzir uma determinada imagem ou afecção ele pode retroativamente se autosensibilizar
com ela. Eis o que Spinoza intitula de afeto. Ademais, sempre que se afeta com determinada
afecção ou imagem que ele mesmo produz, o corpo aumenta ou diminui o seu esforço de existir
vitalmente, ou melhor, o corpo aumenta ou diminui a sua potência [conatus] interna de produção
de afecções ou imagens. Cabe aqui um exemplo para elucidar esta questão: existindo uma afecção
ou imagem produzida pelo corpo que o afete positivamente há, neste caso, um afeto positivo, o que
acarreta o aumento da potência de agir do próprio corpo [aumento de produção de afecções ou
imagens internas]; contrariamente, existindo uma afecção ou imagem produzida pelo corpo que o
afete negativamente há, neste caso, um afeto negativo, o que acarreta a diminuição da potência de
agir do próprio corpo [diminuição de produção de afecções ou imagens internas].
Com base nisso, surge uma questão a qual deve ser expressa aqui: por que os afetos levam
às vezes um corpo a viver mais e produzir, por conseguinte, mais afecções/imagens, e às vezes a
viver menos e produzir, subsequentemente, menos afecções/imagens? Para essa pergunta ser

91
Colchetes e observação nossos.
92
Grifo nosso.
75
respondida é preciso primeiramente dizer o seguinte: as afecções ou imagens produzidas por um
corpo nem sempre são produzidas com base em sua própria natureza interior. De outro modo,
existem afecções/imagens que são produzidas por certo corpo não tanto a partir de sua própria
natureza interior, mas a partir de objetos ou coisas singulares exteriores. Além disso, estes objetos
ou coisas singulares exteriores podem ser “prejudiciais” ou não à vida interna deste corpo. Assim,
no caso de um determinado corpo produzir internamente em si uma afecção/imagem tendo como
parâmetro um objeto exterior “saudável” aos “olhos” dele [corpo], insurge nele mesmo, uma “boa”
sensação. Esta “boa” sensação é intitulada aqui de afeto positivo. E qual a consequência deste afeto
positivo? Ora, a consequência do aumento da força interna de existir do próprio corpo, ou seja, do
aumento da sua produção interna de imagens ou afecções próprias. Todavia, em caso oposto, se um
determinado corpo produzir internamente em si uma afecção/imagem tendo como parâmetro um
objeto exterior “prejudicial” aos “olhos” dele [corpo], insurge nele mesmo uma sensação “ruim”.
Esta sensação “ruim” é intitulada aqui de afeto negativo. E qual a consequência do afeto negativo?
Ora, a consequência da diminuição da força interna de existir do próprio corpo, ou seja, da
diminuição da sua produção interna de imagens ou afecções próprias. Cabe ainda dizer que isto leva
o corpo a esforçar-se [conatus] cada vez menos para continuar a viver, podendo chegar a desfalecer.
Está respondida assim a questão feita acima no início do parágrafo.
No entanto, cabe observar que em nenhum dos dois casos citados acima o corpo é a única
causa da produção de suas afecções/imagens [efeitos], já que ele não age apenas a partir de si
mesmo, mas por uma relação com a exterioridade que “aos seus olhos” lhe é “prejudicial” ou não.
Portanto, sempre que o corpo produzir internamente imagens ou afecções respectivas a objetos
exteriores, o próprio corpo é causa inadequada [causam inadaequatam] das afecções [imagens]
que produz. Por quê? Porque essas imagens ou afecções não são geradas apenas a partir da própria
força interior de existência do corpo. Nas palavras de Spinoza: “chamo de causa inadequada
[corpo]93 ou parcial [...] aquela cujo efeito [afecção/imagem] 94 não pode ser compreendido por ela
[causa/corpo]95 só” (EIIIDef.I.; SO2, p. 139)96. Mas para quê enfatizar isto aqui? Isso significa que
[não sendo a única causa – adequada – para a produção de suas afecções ou imagens internas] o
próprio corpo também só se sensibiliza afetivamente [afeto] com as afecções ou imagens internas as
quais estão estritamente referenciadas às coisas singulares exteriores. O que se infere disso? [a.] que
o corpo perde domínio sobre si mesmo, não mais podendo se sensibilizar afetivamente [afeto] de

93
Colchetes e observação nossos.
94
Idem.
95
Idem.
96
Essa definição não se refere apenas ao corpo, mas também à mente de um modo finito, como se verá adiante. Desse
modo, pode-se utilizar também essa definição da seguinte maneira: “chamo de causa inadequada [mente] ou parcial [...]
aquela cujo efeito [ideia] não pode ser compreendido por ela [causa/mente] só”. Assim, não se utiliza aqui esta citação
em referência à mente de um modo humano finito porque o contexto por enquanto ainda não a exige.
76
afecções ou imagens constituídas apenas por meio de si mesmo, já que precisa da exterioridade para
tanto; [b.] consequentemente, isto o leva [o corpo] a se afetar de afecções ou imagens constituídas
por ele a partir da sua relação com coisas [singularidades] exteriores “saudáveis” ou “prejudiciais” a
sua própria vida; [c.] de acordo com o afeto sentido de uma afecção ou imagem formulada com base
em uma exterioridade “saudável”, o corpo provisoriamente passa a agir com maior potência
afirmativa de afecções ou imagens; [d.] de acordo com o afeto sentido de uma afecção ou imagem
formulada com base em uma exterioridade “prejudicial”, o corpo provisoriamente passa a agir com
menor potência afirmativa de afecções ou imagens; [e.] assim, o corpo se torna instável, ora agindo
a partir da exterioridade com maior potência afirmativa de afecções ou imagens, ora agindo com
menor potência afirmativa de afecções ou imagens, caindo, portanto, em uma “incerteza
existencial”.
Há uma contrapartida disto? Spinoza diz que sim. Quanto mais um corpo vive em acordo
consigo mesmo, isto é, menos dependente do exterior, mais vitalidade ou força intrínseca de existir
possui, já que se afeta exclusivamente por meio das afecções ou imagens produzidas com base em
sua própria natureza interior. No entanto, é evidente que não é porque o corpo pode viver mais de
acordo com sua própria potência natural que ele se isenta de se relacionar com a exterioridade.
Portanto, aqui, o corpo é também naturalmente aquilo que absorve o exterior dentro de si, só que o
utiliza como instrumento de sua própria ação interna de produção de imagens ou afecções. Assim,
nesse escopo, o corpo é causa adequada [causam adaequatam] de suas afecções [efeitos]. Por corpo
ou causa adequada o filósofo entende “aquela cujo efeito [afecções ou imagens] 97 pode ser
percebido [afetivamente]98 clara e distintamente por ela só [potest clarè, & distinctè per eandem
percipi]” (EIIIDef.I.; SO2, p. 139)99. É justamente isso que o leva [o corpo] a se afetar ativamente
consigo mesmo, o que acarreta um aumento mais pleno de potência ou esforço [conatus] interno de
produção de imagens ou afecções corporais. Portanto, aqui, o próprio corpo se esforça [conatur]
cada vez mais para continuar a viver, fortalecendo-se mais do que quando é apenas dependente de
“agradáveis” objetos contingentes da exterioridade para agir. É por isso que na explicação que se
segue da EIIIDef.II Spinoza exprime o seguinte:

Digo que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos causa
adequada, isto é, (pela def. prec.), quando de nossa natureza se segue, em nós ou
fora de nós, algo que pode ser compreendido clara e distintamente por ela só. Digo,
ao contrário, que padecemos quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa

97
Colchetes e observação nossos.
98
Idem.
99
Reitera-se mais uma vez que esta definição não se refere apenas ao corpo, mas também à mente de um modo finito,
como se verá adiante. Desse modo, pode-se utilizar também esta definição da seguinte maneira: “aquela cujo efeito
[ideias mentais] pode ser percebida [afetivamente] clara e distintamente por ela só”. Assim, não se utiliza aqui esta
citação em referência à mente de um modo humano finito porque o contexto por enquanto ainda não a exige.
77
natureza se segue algo de que não somos senão causa parcial (EIIIDef.II.).

Agora é possível tratar da questão dos afetos no sentido em que estão referidos à mente de
um modo finito. O que é um afeto produzido pela mente em Spinoza? De acordo com a EIIIDef.III,
o afeto produzido pela mente é uma ideia formulada por ela a partir das afecções, movimentos ou
imagens produzidas pelo corpo com o qual está unida. Ademais, conclui-se: a mente a qual Spinoza
se refere na definição em questão é uma mente que imagina, já que para agir produzindo afetos ou
ideias é necessário “observar” as afecções, movimentos ou imagens em produção pelo corpo
submetido à exterioridade, estando também, por conseguinte, também submetida à exterioridade.
Portanto, na EIII o pensador não visa tratar da mente ativa, isto é, internamente determinada no
intelecto infinito de Deus, o que a faria expressar a respeito de si mesma, de seu corpo e das coisas
exteriores ideias adequadas ou afetos ativos. De um modo contrário, essa parte da Ética enfatiza
aspectos os quais são concernentes à mente exteriormente determinada, e que, por isso, produz
imaginariamente ideias inadequadas ou afetos passivos. Deste modo, retoma-se aqui a questão
anunciada no início deste tópico, aquela a qual indagou sobre o que a imaginação mental produz.
Como também já foi dito, esta questão é dada no intuito de finalizar a montagem do plano
conjuntural spinoziano o qual discerne sobre a imaginação mental.
Como bem parece ter sido anunciado com base na EIIIDef.III, sempre que a mente pensa as
afecções, movimentos ou imagens de seu corpo [submetido à exterioridade] ela produz
imaginariamente ideias inadequadas ou afetos passivos 100. Todavia, esta enunciação acerca dos
afetos passivos da mente ainda não é suficiente. Acredita-se que ainda é preciso analisar os
fragmentos Definição geral dos afetos [affectuum generalis definitio] e Definições dos afetos
[affectuum definitiones], dispostos no final da própria EIII, assim como algumas proposições
fundamentais da mesma parte da obra Ética.
Em definição geral dos afetos Spinoza explicita o seguinte sobre os afetos passivos
produzidos pela mente que imagina as afecções ou imagens do corpo: “o afeto que se diz pathema
[paixão] do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir maior ou menor
do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é
determinada a pensar uma coisa em vez de outra” (EIIIDef. geral dos afetos). O que se pode extrair
dessa citação? [1.] Todo afeto passivo ou ideia inadequada é algo confuso que é produzido pela

100
É isso o que defende expressamente Michael Della Rocca [2010]: “a primeira coisa que devemos observar com
respeito aos afetos passivos é que eles são ideias confusas e inadequadas. [...] imaginemos uma ideia que é causada do
lado de fora da mente [...] Em particular, essa ideia, até onde ela me pertence, é do estado paralelo de meu corpo e
também da causa externa, que podemos chamar de c, desse estado de meu corpo. Para Espinoza, ao representar um
estado do corpo, nós também, por meio disso, representamos sua causa ou suas causas [...], mas, em virtude da
capacidade limitada de nossa mente, somos incapazes de ter ideia isoladas do estado corpóreo e de suas causas e,
portanto, ao representar essas duas coisas, começamos a confundi-las” [ROCCA, in Interpretando Espinoza: ensaios
críticos, 2010, p. 56-58].
78
mente com base na realidade atual de seu corpo submetido à exterioridade. Portanto, toda mente
que imaginariamente produz ideias inadequadas, confusas ou afetos passivos não produz esses
elementos por causa de si mesma e do plano ontológico que lhe é intrínseco - intelecto infinito de
Deus – [determinação interior]: “disso se segue que quanto mais ideias inadequadas a mente tem,
tanto maior é o número de paixões a que é submetida” (EIIIPIc.); [2.] a mente só age com maior ou
menor potência [conatus maior ou menor] afirmativa de ideias ou afetos a partir da maior ou menor
potência [conatus maior ou menor] em que o corpo se encontra: “[...] a ideia que constitui a forma
de um afeto deve indicar ou exprimir o estado do corpo ou de alguma de suas partes, estado que o
próprio corpo ou alguma de suas partes tem porque sua potência ou sua força para existir é
aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada” a partir das coisas exteriores (EIIIDef. geral dos
afetos. explic.).

E como a essência da mente consiste [...] em afirmar a existência atual de seu


corpo, e como por perfeição compreendemos a própria essência de uma coisa,
segue-se que a mente passa a uma maior ou menor perfeição quando lhe acontece
afirmar, de seu corpo ou de qualquer de suas partes, algo que envolve mais
realidade do que antes. Quando, pois, disse, anteriormente, que a potência de
pensar da mente era aumentada ou diminuída, não quis dizer senão que a mente
formava de seu corpo ou de alguma de suas partes, uma ideia que expressava mais
ou menos realidade do que a que antes afirmava a respeito do seu corpo. Pois a
superioridade das ideias e a potência atual de pensar avaliam-se pela superioridade
do objeto (Ibidem.).

Nesse escopo, a mente aqui parece sempre afirmar sua realidade vital maior ou menor [ser
produtor de ideias confusas, inadequadas ou afetos passivos] com base em certa “postura
voyeurista” perante as produções passionais específicas do corpo: as afecções, movimentos ou
imagens [objetos de desejo da mente]. Neste itinerário, caso o corpo produza passivamente, a partir
dos objetos exteriores saudáveis a si mesmo, afecções [movimentos ou imagens], a mente,
paralelamente, também se empreende na produção de ideias ou afetos baseados nas “boas”
condições de existência em que o corpo ao qual está unida se encontra. Nesse caso, pode-se dizer,
por conseguinte, que a mente aumenta a sua força de existir. De modo contrário, caso o corpo
esteja a produzir passivamente - a partir dos objetos exteriores prejudiciais a si mesmo - afecções
[movimentos ou imagens], a mente, paralelamente, empreende-se na produção de ideias ou afetos
baseados nas “más” condições de existência em que o corpo ao qual está unida se encontra. Nesse
caso, pode se dizer, por conseguinte, que a mente diminui a sua força de existir.
Com essas explicações pode-se dizer então que a mente chega a produzir contínua e
imaginariamente dois tipos de ideias inadequadas ou afetos passivos primordiais101. O primeiro

101
Diz-se aqui que a mente produz primordialmente ideias ou afetos de alegria e de tristeza [junto com o desejo]. No
79
destes afetos se chama afeto passivo de alegria [laetitiae], o qual anuncia que a mente está vive
mais intensamente102; já o segundo destes afetos se chama afeto passivo de tristeza [tristitiae], o
qual anuncia que a mente vive menos intensamente103. Assim, para Spinoza, quanto maior é a
potência de afirmação [esforço/conatus] do próprio corpo [ser ou produção de afecções,
movimentos ou imagens] mais a mente se fortalece e produz ideias inadequadas ou afetos passivos
alegres, vivendo, portanto, mais intensamente. De maneira oposta, quanto menor é a potência
[esforço/conatus] de afirmação do próprio corpo [ser ou produção de afecções, movimentos ou
imagens] menos a mente se fortalece, passando a produzir ideias inadequadas ou afetos passivos
tristes, vivendo, por conseguinte, menos intensamente. Desse modo, o parâmetro da atividade
[esforço de perseveração no ser – conatus -] maior ou menor da mente [ser ou produção de ideias ou
afetos] é sempre as ações [afecções/imagens] do corpo passional ao qual ela está unida. Nesse
sentido, pelo fato da mente estar sempre a agir de acordo com os parâmetros do corpo que age ou
padece, aquela passa a ser tão instável quanto esse, tornando-se às vezes mais potente [produzindo
ideias inadequadas ou afetos passivos alegres] e às vezes menos potente [produzindo ideias
inadequadas ou afetos passivos tristes]. Assim, Spinoza conclui:

Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando ora a uma
perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da
alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma

entanto, isso não quer que ela produz apenas esses dois tipos de ideias ou afetos passivos. Assim, dizer aqui que os
afetos de alegria e de tristeza são afetos primordiais produzidos pela mente, é também o mesmo que dizer que por meio
deles são produzidos uma série de outros afetos, tais como o amor e o ódio. É por isso que ao final da EIII [em
Definições dos afetos] Spinoza descreve e define uma série de outros afetos, os quais partem ou da ideia [afeto passivo]
de alegria ou da ideia [afeto passivo] de tristeza. Logo a seguir são citados alguns exemplos de ideias ou afetos passivos
produzidos pela mente: “O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior” [EIII Def.VI]; “o ódio é
uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior”[EIII Def.VII]; “a atração é uma alegria acompanhada da
ideia de uma coisa que, por acidente, é causa de alegria” [EIII Def.VIII]; “o escárnio é uma alegria que surge por
imaginarmos que há algo que desprezamos na coisa que odiamos” [EIII Def.XI] etc. Michael Della Rocca [2010], em
Racionalismo em Fúria: a representação da realidade das emoções segundo Espinoza, diz que “é nesse ponto que
surgem os afetos [...] Podemos logo entender por que Espinoza prefere o termo “afeto” no lugar do termo “emoção” [...]
Espinoza geralmente fala da alegria e da tristeza de acordo com termos especificamente mentais como a transição da
mente para um poder de ação maior ou menor (3p11s) e, portanto, ele normalmente se mostra disposto a encarar a
alegria como um fenômeno especificamente mental, apesar de haver um fenômeno paralelo estendido. [...] Sendo assim,
vista de forma mental, a alegria envolve uma transição de uma ideia em minha mente para outra ideia em minha mente,
de uma representação de um estado corpóreo para outro. Dessa maneira, a alegria é fundamentalmente representacional.
O mesmo acontece com a tristeza. A alegria e a tristeza são dois dos três principais afetos para Espinoza. O outro é o
desejo que, no nível mental, é simplesmente a tendência ou o empenho da mente de ir de uma ideia ou representação a
outra. Assim, o aspecto crucial do desejo também é representacional. Para Espinoza, o desejo, a alegria e a tristeza são
os afetos primordiais a partir dos quais todos os demais afetos – medo, esperança, luxúria, raiva, inveja, compaixão, etc.
- são constituídos. [...] No final, todos os afetos são representativos [...] Espinoza aqui oferece uma definição
generalizada dos afetos como estados passivos, como paixões ou desejos. Entretanto, essa não é, segundo Espinoza,
uma caracterização completamente geral dos afetos, pois, em outro momento ele admite – e até mesmo insiste – a
existência de afetos que não são paixões, mas sim ações [não-representacionais] da mente” [ROCCA, in Interpretando
Espinoza: ensaios críticos, 2010, P. 45-47].
102
EIII.Def. afetosII.; SO2, p. 191: “A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma perfeição
maior / Laetitia est hominis transitio à minore ad majorem perfectionem”.
103
EIII.Def. afetosIII.; SO2, p. 191: “A tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor /
Tristitia est hominis transitio à majore ad minorem perfectionem”.
80
paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior [ad majorem perfectionem
transit]. Por tristeza, em troca, compreenderei uma paixão pela qual a mente passa
a uma perfeição menor [ad minorem transit perfectionem] (EIIIPXIs.; SO2, p.148-
149).

Assim, estabelecem-se aqui algumas conclusões parciais relativas ao tópico corrente:


[a.] o corpo com o qual a mente está em relação nunca se afirma plenamente por si mesmo,
isto é, apenas por meio de sua própria força ativa de produção de afecções, movimentos ou
imagens. Isto se dá devido ao fato de continuamente o próprio corpo estar em relação com corpos
ou coisas singulares exteriores, o que o faz agir instavelmente. Por que instavelmente? Porque o
corpo de um modo finito nem sempre se afirma a partir de si mesmo [ativamente], produzindo
afecções, movimentos ou imagens. Ou seja, nem sempre o corpo age deste modo, já que também se
afirma passiva ou dependentemente dos corpos exteriores [“agradáveis” ou “prejudiciais” para ele].
Assim, caso um objeto exterior seja “agradável” a vida interior do corpo, há também [como no
primeiro caso] o aumento [só que parcial] da sua potência de existir [conatus] – produção de
afecções, movimentos ou imagens -. Contrariamente, caso um objeto exterior seja “prejudicial” a
vida interior do corpo, há a diminuição da sua potência interna de existir [conatus] – produção de
afecções, movimentos ou imagens.
[b.] quando o corpo de um modo finito age de maneira passiva [produzindo por outro –
objeto “saudável” exterior - afecções, movimentos, imagens] e, por conseguinte, aumenta a sua
força de existir, a mente também passa a agir imaginariamente com maior potência [conatus]
afirmativa. Isso a faz produzir, consequentemente, ideias inadequadas ou afetos passivos alegres.
De modo contrário, quando o corpo de um modo finito age produzindo afecções, movimentos ou
imagens de maneira passiva [dependentemente dos corpos exteriores “prejudiciais”] e, por
conseguinte, diminui a sua força de existir, a mente passa a agir imaginariamente com menor
potência [menor esforço de perseveração em seu ser – conatus -] afirmativa. Logo, ela produz,
subsequentemente, ideias inadequadas ou afetos passivos tristes. No entanto, não importando o
caso, a mente imagina, isto é, produz ideias inadequadas ou afetos passivos, sejam eles alegres
[afirmando-se mais] ou tristes [afirmando-se menos].
[c.] Como se sabe [em acordo com os itens a e b], nem sempre o corpo tem o domínio sobre
si mesmo, ou seja, nem sempre age ativamente produzindo afecções, movimentos ou imagens a
partir de si. Portanto, o corpo pode agir produzindo afecções, movimentos ou imagens por meio de
uma relação de dependência frente à exterioridade. Nesse caso, o corpo torna-se servo passivo da
própria exterioridade, podendo enfraquecer-se em termos de vida ativa. Por que o corpo pode
enfraquecer-se em termos de vida ativa quando age dependentemente da exterioridade? Porque nem
todos os objetos exteriores lhe são aliados, ou seja, auxiliares que o permitem afirmar e aumentar a

81
potência [conatus] de sua interioridade de produção de afecções, imagens ou movimentos. Ora,
levando em consideração estritamente o enunciado, infere-se o seguinte: sempre que a mente de um
modo finito agir imaginariamente com base em um corpo que age [produzindo afecções,
movimentos ou imagens] dependentemente das exigências da exterioridade, a própria mente
também se torna refém desta exterioridade. Ademais, estritamente neste escopo, a mente que
imagina não apenas produz ideias inadequadas ou afetos passivos com base nas afecções,
movimentos ou imagens de um corpo que age dependentemente da superfície exterior do mundo. E
o que ela é capaz de produzir além disso? A mente que imagina as afecções de seu corpo em tal
estado - de dependência de produção frente ao exterior - é também capaz de produzir para si mesma
a sua própria servidão104.
Ademais, na EIII realmente o autor ainda intui algo mais sobre a mente que se encontra em
tal situação. Como já se sabe, ela age de tal modo porque imagina ou age idealmente apenas a partir
das afecções [imagens] produzidas por um corpo que se posiciona no mundo dependentemente das
coisas exteriores. Então isso pode tornar a mente menos ativa, menos potente, isto é, o que a leva a
empreender menos esforço [conatus] para produzir ideias ou afetos. Mas, em que caso específico a
mente passa a agir menos? No caso estrito de seu corpo também estar potencialmente a agir menos
[enquanto esforço de produção de afecção ou imagens] em função de objetos exteriores que lhe
fazem “mal”.
Ademais, para o filósofo, a mente não apenas age com menos potência [conatus] de
afirmação de ideias ou afetos, mas age produzindo ideias que reagem a certas imagens ou afecções
internas ao corpo, estas as quais são produzidas por ele próprio, embasadamente em objetos
exteriores que são ou foram prejudiciais para ele [o corpo] em determinado momento. Portanto,
neste escopo, a mente age ideal e reativamente às “más” imagens ou certas afecções constituídas
pelo seu corpo com base em certo tipo de exterioridade [objetos “malevolentes”/ “destrutivos”].
Mas com que intuito ela persevera fazendo isso? Para tornar o seu próprio corpo menos dependente
das imagens ou afecções às quais fazem internamente mal a “saúde” interna dele [corpo]. Conclui-
se: há aqui um movimento produtivo de ideias/afetos ou a contrapartida que é empreendida
reativamente pela mente, visando “combater os inimigos” de seu corpo: as imagens ou afecções
“prejudiciais” que são formuladas internamente pelo seu próprio corpo com base em uma “má”
exterioridade.
Dito isso é preciso avançar mais um passo. Cabe aqui ainda dizer o seguinte: o que a própria
mente pretende é não só a liberação de seu corpo do estado de passividade no qual ele se encontra
relativamente às imagens ou afecções produzidas por ele mesmo, com base numa exterioridade que

104
Esse assunto será aprofundado no próximo tópico.
82
lhe é “prejudicial”. E o que ela pretende a mais então? Ora, a mente também pretende parar de agir
[produzindo ideias inadequadas ou afetos passivos tristes] por meio das imagens ou afecções
“ruins”, produzidas pelo seu corpo com base em objetos exteriores que lhe são “prejudiciais”.
Todavia, para Spinoza esta atitude ainda não libera a mente da sua ação passional. De acordo com o
pensador, toda mente reativa que busca viver apenas inercial ou impulsivamente contra certas
imagens ou afecções [“ruins”] de/em seu corpo passivo [relativamente à exterioridade] é também
uma mente que age passivamente. Por quê? Ora, porque mesmo procurando ganhar forças para
responder aos ditames das “más” imagens ou afecções do seu corpo passivo [relativamente à
exterioridade], ela [a mente] não deixa de ter as outras imagens ou afecções [“boas”] do próprio
corpo [também passivo relativamente à exterioridade] como parâmetro para a realização de suas
ações ideais reativas. Nesse sentido, aqui a mente ainda imagina, ou seja, é ainda serva de imagens
ou afecções [“boas”] produzidas pelo corpo a partir de objetos exteriores “saudáveis” a ele. Assim,
a mente continua a não agir por meio da própria força de seu pensamento e do plano ontológico que
a põe [intelecto infinito em modificação infinita, o qual se segue do/no pensamento de Deus].
Como se prova isso? Algumas proposições da EIII indicam claramente que é possível se
provar a interpretação acima. Observe-se, por exemplo, a EIIIPXIII, em que o autor diz: “quando a
mente imagina [a imagem ou afecção d']105aquelas coisas que diminuem ou refreiam a potência de
agir do corpo, ela se esforça, tanto quanto pode, por se recordar [das imagens ou afecções
corporais] 106 de coisas que excluam a existência das primeiras” (EIIIPXIII).

Durante todo o tempo em que a mente imaginar [as imagens ou afecções d] 107essas
coisas, a potência da mente e a do corpo serão diminuídas ou refreadas [...]. Mas
continuará a imaginá-las, até que imagine [as imagens ou afecções de] 108 outras
coisas que excluam a existência presente das primeiras [...], isto é [...], a potência
da mente e a do corpo serão diminuídas ou refreadas até que a mente imagine
outras [imagens ou afecções de]109 coisas que excluam a existência das primeiras. A
mente se esforçará, portanto [...], tanto quanto pode, por imaginar essas [imagens
ou afecções de]110 outras coisas ou delas se recordar (EIIIPXIIId.). Disso se segue
que a mente evita imaginar aquelas [as imagens ou afecções de] 111coisas que
diminuem ou refreiam a sua potência e a do corpo (EIIIPXIIIc.).

O que essa proposição, sua demonstração e seu corolário dizem aos leitores de Spinoza?
Primeiro - o corpo que Spinoza se refere aqui é o corpo passivo e dependente da exterioridade.
Portanto, o corpo em questão aqui é o corpo produtor de afecções ou imagens da exterioridade, ou

105
Colchetes e observação nossos.
106
Idem.
107
Idem.
108
Idem.
109
Idem.
110
Idem.
111
Idem.
83
seja, por causa da relação de dependência frente às coisas exteriores; segundo - as afecções ou
imagens produzidas por esse corpo constrangido pela exterioridade ficam marcadas ou impressas
nele próprio [em seu próprio interior], dominando-o por dentro, tornando-o, por conseguinte,
inteiramente dependente delas; terceiro: tornar-se dependente dessas afecções ou imagens é o
mesmo que depender da exterioridade, já que as afecções ou imagens são frequentemente
replicações desta exterioridade, apesar de serem produzidas pelo próprio corpo; quarto - tais
imagens produzidas podem ser negativas, fazendo o corpo diminuir ou refrear a sua potência
[conatus] de agir [produção de afecções, imagens ou movimentos]; quinto – no entanto, existem
imagens produzidas pelo corpo com base em coisas exteriores “agradáveis” à sua vida, estas as
quais podem, portanto, ser positivas para ele [corpo] e suas ações internas; sexto – é justamente
utilizando-se das imagens ou afecções positivas internas ao seu corpo que a mente gera, sob forma
de ideias ou afetos passivos [alegres], a sua contrapartida reativa frente às “más” afecções ou
imagens internas do/no seu corpo. Assim, a mente procura “expurgá-las” [as “más” imagens] do
interior de seu corpo. Ora, para que isso seja feito é necessária, como a proposição acima bem
aponta, a utilização mental [por recordação] de “boas” imagens ou afecções corporais internas, as
quais são produzidas com base em objetos externos “agradáveis” ao seu próprio corpo.
Subsequentemente, a mente também faz com que o seu corpo evite entrar em relação com coisas
exteriores “ruins”, que servem de base para a produção de afecções ou imagens prejudiciais ao
próprio corpo. Conclui-se: é exatamente por isso que a mente, apesar de ter força ideal para extirpar
as “más” imagens ou afecções internas ao seu corpo, ainda encontra-se em estado de atividade
passiva. Devido a quê? Devido ao fato da própria mente estar, nesse caso específico, simplesmente
a reagir ou “combater” as “más” imagens ou afecções internas do/no seu corpo por meio da
utilização passional de “boas” imagens ou afecções [também internas ao corpo] produzidas por ele
com base na exterioridade. Portanto, a mente continua a agir imaginariamente, ou seja, a partir das
imagens ou afecções formuladas por seu corpo relativamente à exterioridade. É nesse sentido que é
ainda possível dizer que ela se encontra em estado de ação passiva [não plenamente ativa por si]
perante as imagens internas formuladas por seu corpo acerca da exterioridade, já que ela [a mente]
não age apenas por meio de sua própria natureza ideal e do plano ontológico [intelecto infinito em
modificação infinita do/no atributo extensão] “responsável” por sua existência.
Além do mais, a mente em estado de atividade passional, ao agir imaginariamente sob o
escopo das afecções ou imagens internas formuladas por seu corpo, é também capaz de constituir
juízos de valor imaginários a despeito delas [afecções ou imagens], imputando-lhes adjetivações
“boas ou ruins”. Como ressonância disso, a mente passa [utilizando o critério da comparatividade
entre imagens ou afecções internas ao seu corpo] a ter predileção pelas “boas” imagens ou afecções,
procurando extirpar de seu corpo todas as imagens ou afecções que lhe são internamente
84
prejudiciais. Mas não é só isso. Além do informe, pode-se dizer que a mente permite-se inclusive
não só julgar como “boas” ou “más” as imagens ou afecções as quais são estritamente internas ao
seu corpo. Ou seja, a mente também se encarrega de assumir para si uma postura “crítica” acerca
das singularidades [objetos] exteriores, inferindo à sua maneira [mental] se elas são “boas” ou
“más” para seu corpo. Portanto, a mente se põe também a avaliar imaginária e inadequadamente sob
forma de ideias [afetos passivos alegres ou tristes] as singularidades ou objetos exteriores como
“bons” ou “maus”. No entanto e como já se sabe: “[...] as imaginações da mente são mais
indicadoras dos afetos de nosso corpo do que da natureza dos corpos exteriores” (EIIIPXIVd.).
Ora, é isso que garante fundamentalmente o conteúdo interno de várias proposições da EIII.
Estas proposições reiteram que a mente que imagina produz ideias [ou afetos passivos] não só
contra ou a favor de certas afecções ou imagens do/no seu corpo. E o que mais então? A mente é
também capaz de empreender uma produção de ideias [afetos passivos] imaginárias em
contraposição ou em favorecimento a qualquer tipo de objeto exterior, pois esse último pode
[segundo a própria mente que pensa imaginariamente] incutir “mal algor” ou “boas energias” à
vitalidade de seu corpo. Observe-se, como exemplo, a proposição XVI, em que Spinoza diz que:

simplesmente por imaginarmos que uma coisa [objeto exterior] 112 tem algo de
semelhante com um objeto que habitualmente afeta a mente de alegria ou de
tristeza, ainda que aquilo pelo qual a coisa [objeto exterior] 113 se assemelha ao
objeto não seja a causa eficiente desses afetos, amaremos, ainda assim, aquela coisa
ou a odiaremos (EIIIPXVI).

Vê-se que essa proposição e sua demonstração anunciam a ação passional da mente humana.
E por quê? Ora, porque a mente aqui é moralizadora do exterior. Portanto, a mente em maior
estado de ação passional é aquela que age imaginária e inadequadamente julgando a exterioridade a
partir das imagens ou afecções [“boas” ou “más”] do corpo com o qual ela [a mente] está unida em
um mesmo modo finito. É importante a partir de agora analisar com cuidado e precisão a
proposição acima.
Muitas das afecções ou imagens produzidas pelo corpo são constituídas com base em
experiências do próprio corpo com coisas, corpos ou singularidades exteriores. Essas singularidades
externas podem fazer muito “mal” ou “bem” à vitalidade [esforço, potência ou conatus de produção
interna de afecção, movimento ou imagem – sem referência à exterioridade] do corpo que as
experiencia. Assim, caso uma singularidade exterior faça mal ao corpo que a experiencia, ele
pruduzirá em si uma afecção ou imagem que corresponda à intensidade da “maudade” empreendida
pela singularidade exterior. Nesse sentido, internamente o corpo fica marcado por uma afecção ou

112
Colchetes e observação nossos.
113
Idem.
85
imagem análoga à “má” exterioridade. De modo contrário, caso uma singularidade exterior faça
“bem” ao corpo, ele produzirá em si uma afecção ou imagem que correspondente à intensidade da
“benevolência” empreendida pela própria singularidade exterior. Nesse sentido, internamente o
corpo fica marcado por uma afecção ou imagem que lhe traz bem-estar. Ora, são justamente estas
afecções ou imagens [“boas ou más”] do/no corpo que servem de critério para que a mente possa
julgar como “bons” ou “maus” os outros corpos ou objetos da exterioridade, com os quais o seu
corpo ainda entrará em relação [futuro relacional]. Exemplo 1: caso apareça atualmente ao corpo
um objeto exterior que seja, para ele, semelhante a uma “má” afecção ou imagem interna -
formulada pelo próprio corpo com base em um “mau” objeto [outro] experienciado por ele no
passado -, a sua mente imaginária e inadequadamente passa [entristecidamente – ideia ou afeto
passivo de tristeza -] a odiar este objeto exterior. Portanto, mesmo que o objeto atual exterior seja
realmente distinto de um objeto exterior experienciado no passado pelo corpo, a mente desse corpo
pode constituir juízos ideais equivocados [imaginários] acerca do objeto atual de relação com o qual
o seu corpo se encontra. A consequência disto é que a mente pode chegar a odiá-lo [o objeto
exterior atual] simplesmente porque ele faz remissão a uma “má” afecção ou imagem interna
impressa em seu corpo. Exemplo 2: caso apareça atualmente ao corpo um objeto exterior que seja,
para ele, semelhante a uma “boa” afecção ou imagem interna - formulada pelo próprio corpo com
base em um “bom” objeto [outro] experienciado por ele no passado -, a sua mente imaginária e
inadequadamente passa [alegremente – ideia ou afeto passivo de alegria -] a amar este objeto
exterior. Portanto, mesmo que o objeto atual exterior seja realmente distinto de um objeto exterior
experienciado no passado pelo corpo, a mente deste corpo pode constituir [do mesmo modo que no
exemplo anterior] juízos ideais equivocados [imaginários] acerca do objeto atual de relação com o
qual seu corpo se encontra. A consequência disto é que a mente pode chegar a amá-lo [objeto
exterior atual] simplesmente porque ele faz remissão a uma “boa” afecção ou imagem interna ao
seu corpo. É por isso que Spinoza reitera que “qualquer coisa [exterior] 114 pode ser, por acidente,
causa de alegria, de tristeza ou de desejo” (EIIIPXV).
Para o autor, este é o ponto de partida para se chegar à servidão humana [EIV]. Portanto, o
primeiro dos dois problemas secundários enunciados no início deste segundo capítulo está
respondido. Relembrando, foi-se problematizado no início do corrente capítulo o seguinte: qual é o
pressuposto para a condição da servidão humana em Spinoza? A resposta a tal inquirição é então
dada do seguinte modo: o pressuposto para a condição da servidão humana é a imaginação da
mente, a qual é acarretada por meio de uma mente que não se permite pensar a si por si mesma
[sua própria realidade ideal-racional em si], já que, neste caso [imaginação mental], a própria

114
Colchetes e observação nossos.
86
mente pensa [imaginariamente] que a condição de sua existência [produção de ideias] são as
afecções ou imagens formuladas por seu corpo a partir da exterioridade, tornando-se, portanto,
passiva relativamente à última.

2.2. A Servidão Humana na EIV

Este tópico visa responder ao segundo dos dois problemas secundários apresentados no
exórdio deste segundo capítulo. Afinal, o que é a servidão humana para Spinoza? Com base nesta
inquirição, cabe apontar logo de início que é necessária aqui a análise da EIV. E por quê? Porque
[como o próprio título desta parte da Ética exprime] é nela [EIV] que Spinoza pretende finalmente
apresentar aos seus leitores sua visão acerca do que seja A servidão humana ou a força dos afetos
[DE Servitute Humanâ, seu de Affectuum VIRIBUS].
Logo no prefácio da EIV Spinoza busca definir com clareza o que é a servidão humana para
ele:
chamo de servidão a impotência humana [humanam impotentiam] para regular e
refrear os afetos. Pois o homem submetido aos afetos não está sob o seu próprio
comando [sui juris non est], mas sob o do acaso [fortunae], a cujo poder está a tal
ponto sujeitado que é, muita vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para
si, a fazer, entretanto, o pior (EIVPref.; SO2, p. 205).

Como se pode observar, para Spinoza, a servidão humana é homóloga à impotência humana
para regular ou refrear os afetos. Enfatiza-se também que [apesar do filósofo não expressar às
claras] a impotência ou servidão humana está referida estritamente a uma parte do modo finito: a
sua mente. Portanto, aquilo que nessa citação apresenta-se como incapaz de, espiritualmente, ter
potência para controlar devidamente os afetos é a mente humana. Ademais, a mente humana,
segundo Spinoza, é algo incapaz de regular ou refrear não qualquer tipo de afeto, mas os afetos
passivos que ela mesma produz. E que afetos passivos são esses? Certa e primordialmente, são as
ideias ou afetos passivos de alegria e de tristeza115, os quais a mente produz respectiva e
imaginariamente com base nas “boas ou más” afecções ou imagens internas ao seu corpo, o qual
está relacionado constantemente com as coisas contingentes exteriores. Como já se sabe, essas

115
Relembrando: diz-se aqui que a mente produz primordialmente ideias ou afetos de alegria e de tristeza [junto com o
desejo]. No entanto, isso não quer que ela produz apenas esses dois tipos de ideias ou afetos passivos. Assim, dizer aqui
que os afetos de alegria e de tristeza são afetos primordiais produzidos pela mente, é também o mesmo que dizer que
por meio deles são produzidos uma série de outros afetos, tais como o amor e o ódio. É por isso que ao final da EIII [em
Definições dos afetos] Spinoza descreve e define uma série de outros afetos, os quais partem ou da ideia [afeto passivo]
de alegria ou da ideia [afeto passivo] de tristeza. Logo a seguir são citados alguns exemplos de ideias ou afetos passivos
produzidos pela mente: “O amor é uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior” [EIII Def.VI]; “o ódio é
uma tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior”[EIII Def.VII]; “a atração é uma alegria acompanhada da
ideia de uma coisa que, por acidente, é causa de alegria” [EIII Def.VIII]; “o escárnio é uma alegria que surge por
imaginarmos que há algo que desprezamos na coisa que odiamos” [EIII Def.XI] etc.
87
afecções ou imagens “boas” ou “más” são internamente efetuadas pelo corpo [ao qual a mente está
unida] a partir de objetos exteriores que são considerados por ele como “prejudiciais” ou não a si.
Tais objetos, nessa perspectiva, acabam sendo para o “bem” ou para o “mal” a condição da
existência do corpo que com eles entra em relação. Conclusão: a impotência ou servidão da mente
humana é a própria incapacidade dela de “interromper ou fazer estancar” o seu processo passivo
[relativo às afecções ou imagens do corpo passivo relativamente à exterioridade] de produção de
ideias ou afetos. Assim, sempre que a mente se põe a produzir “desenfreadamente” ideias ou afetos
a partir de um determinado parâmetro [afecções ou imagens do corpo dependente da exterioridade]
que não seja a consciência de sua própria força intrínseca e a do plano ontológico [intelecto infinito
do/no atributo pensamento] que a põe em existência, é possível dizer que ela se encontra em estado
de servidão. Nesse caso, a mente não busca compreender a si mesma, seu corpo, suas imagens
internas e as coisas exteriores por meio da potência intelectiva que lhe é própria, ou seja, da força
que lhe é inerente, já que, de modo oposto, inconsciente e inversamente tem as coisas exteriores e
suas respectivas imagens internalizadas em seu corpo como sendo a condição de sua existência.
Aqui, a mente se reduz a agir por meio das exigências da exterioridade, tornando-se dela refém. De
resto, a mente não chega a descobrir qual a real força intrínseca que ela contém em si e a partir de
si. Eis aqui a grande argumentação spinoziana acerca do estado de servidão humana na qual a mente
do modo finito geralmente se encontra116.
Uma curiosa questão surge aqui: mesmo proporcionando para si mesma uma ideia ou afeto
alegre embasado em uma “boa” afecção ou imagem interna ao seu corpo, a mente ainda se
encontra em estado de servidão? Sim. Para Spinoza, a produção dessa ideia ou afeto alegre é ainda
dada por meio de uma passividade mental frente a uma afecção ou imagem de um corpo instável
[por causa da exterioridade com o qual está em relação de dependência]. E qual a consequência
disso? Ora, a consequência da mente efetuar uma ideia ou afeto alegre passivo que, retroativamente,
lhe proporciona [à mente] não uma plena alegria de viver [produzindo ideias ou afetos a partir
dela mesma], mas, sim, que lhe traz uma alegria provisória de viver [produzindo ideias ou afetos a
partir de outra coisa - instável - que não ela mesma].
Neste caso, a mente produz uma ideia ou afeto de alegria a partir da “boa” imagem ou
afecção interna ao seu corpo: aquele que se apresenta em contínua instabilidade de afirmação vital

116
Logo adiante [último tópico deste capítulo], explicar-se-á como a mente do modo finito pode operar uma reviravolta
como contrapartida a esse estado atual em que se encontra. Isso se dá na medida em que a mente redescobre que é sua
potência intrínseca [junto com o intelecto infinito que a põe em existência] que a faz compreender a si mesma e as
outras coisas com as quais está em relação. Aqui, a mente não é uma síntese da exterioridade e de suas imagens, ou seja,
não se resume a uma representação da exterioridade como uma espécie de tábula rasa, continuamente defendida por
certo empirismo vulgar [tal como o lockiano]. É nesse sentido que Spinoza pretende demonstrar posteriormente o que o
intelecto da mente pode em si mesmo, não reduzindo-se a reproduzir passionalmente e sob forma de ideias os
movimentos corporais que lhe são exteriores. Em tal itinerário, é a mente que empreende com sua própria força uma
ideia sobre si mesma, sobre seu corpo e sobre a exterioridade, e não o inverso.
88
interna. Como justificar aqui essa instabilidade vital presente no corpo para, em seguida, provar que
a ideia ou afeto passivo alegre [produzido pela mente com base em uma “boa” afecção ou imagem
corporal da exterioridade] não proporciona a ela [mente] uma alegria plena [potência plena de
produção de ideias ou afetos]? Recorrendo primeiramente a dois exemplos: [a.] em certa ocasião o
corpo de um modo finito se encontra [occursus] com um objeto exterior que considera “agradável”
a sua vida interior. Na medida em que considera esse objeto exterior como agradável para si, o
próprio corpo constitui internamente em si mesmo uma afecção ou imagem “boa”, análoga ao
objeto “agradável” com o qual ele [o corpo] está em relação. É a partir dessa “boa” imagem
produzida em si que o corpo então se afeta e aumenta a sua potência de agir [conatus] interna,
passando a produzir com maior potência imagens ou afecções; [b.] já em outra ocasião, por
exemplo, o corpo de um modo finito se encontra [occursus] com um objeto exterior que considera
“prejudicial” a sua vida interior. Aqui, na medida em que considera esse objeto exterior como
prejudicial para si, o próprio corpo constitui internamente em si mesmo uma afecção ou imagem
“má”, análoga ao objeto “prejudicial” com o qual ele [o corpo] está em relação. É então a partir
dessa “má” imagem produzida por ele [corpo] que o próprio corpo se afeta e diminui a sua potência
de agir [conatus] interna, passando a produzir imagens ou afecções com menor potência ativa.
Conclusão 1ª: o corpo é internamente instável porque nunca se encontra plenamente no
primeiro dos dois exemplos citados. Ou seja, ele está sempre entre os dois exemplos. Assim, ele às
vezes produz em si uma “boa” imagem por meio de um objeto exterior que considera “agradável”
[passando, por conseguinte, a aumentar sua potência vital], e às vezes produz uma “má” imagem
por meio de um objeto exterior que considera “prejudicial” [passando, por conseguinte, a diminuir a
sua potência vital]. Desse modo, o corpo é continuamente refém das coisas fortuitas exteriores para
agir, estas as quais sempre apresentam ao próprio corpo objetos considerados por ele [corpo] como
“saudáveis ou prejudiciais” a sua vida interna. Isso o faz [o corpo] produzir às vezes mais e às vezes
menos imagens ou afecções internas, sendo, portanto, vitalmente instável.
Conclusão 2ª: sempre que a mente agir por meio de uma “boa” imagem ou afecção de seu
corpo o qual é constantemente refém da exterioridade, ela efetua uma ideia ou afeto passivo alegre.
Ademais, na medida em que a mente produz uma ideia ou afeto alegre passivo, também pode
tornar-se consciente de que está a produzir tal afeto. A isso Spinoza intitula de Bem [Boni]. Para ele,
Bem “nada mais é do que o afeto de alegria [produzido pela mente] 117 [...] à medida que dele
estamos conscientes” mentalmente (EIVPVIII.; SO2, p.215). Como consequência dessa consciência
ou conhecimento o qual a mente toma do afeto alegre passivo que ela produz, a própria mente
torna-se alegre e passa, por conseguinte, provisoriamente a viver com mais potência ou desejo

117
Colchetes e observação nossos.
89
[conatus] de produção de ideias ou afetos: “por isso, o desejo que surge da alegria [da mente] é
estimulado ou aumentado pelo próprio afeto de alegria [...]” (EIVPXVIIId.). Por que afinal a mente
em estado de alegria age apenas provisoriamente com maior potência ou desejo de perseverar
produzindo ideias ou afetos? Porque [1] nada garante que as afecções ou imagens que o seu corpo
efetua sejam sempre “boas” imagens produzidas com base em “agradáveis” objetos da
exterioridade. Assim, o corpo pode de uma hora para outra passar inversamente a produzir não boas
imagens ou afecções, mas “más” imagens, por meio de “prejudiciais” objetos da exterioridade; [2]
ora, é isso que faz com que a mente em estado de alegria, a qual age provisoriamente com mais
desejo ou potência de produção de ideias ou afetos alegres passivos [a partir das “boas” imagens ou
afecções que seu corpo produziu da exterioridade], passe contrariamente a produzir afetos tristes [a
partir das “más” imagens ou afecções atuais que seu corpo acaba de produzir]. Além disso, por
meio da consciência [Mal - Mali]118 ou conhecimento dos afetos tristes que passa a produzir, a
mente anteriormente alegre torna-se triste, diminuindo, por conseguinte, o seu desejo ou potência de
produção ideias ou afetos. Portanto, a ação mental de viver alegre e desejantemente produzindo
mais ideias ou afetos passivos alegres [a partir das “boas” afecções ou imagens de seu corpo] é
realmente provisória, não sendo, portanto, plena119.
Conclusão 3ª: está provado que neste caso a mente ainda se encontra em estado de servidão,
pois ela também não consegue refrear ou regular as ideias ou afetos alegres que efetua com base nas
“boas” afecções ou imagens de seu instável corpo frente à exterioridade.
É por isso que Spinoza conclui no prefácio da EIV o seguinte:

“[...] o homem submetido aos afetos [passivos – paixões]120 não está sob o seu
próprio comando, mas sob o do acaso, a cujo poder está a tal ponto sujeitado que é,
muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto,
o pior” (EIVPref. ).

O que o fragmento de texto basicamente diz aos leitores do filósofo é o seguinte: sempre que
a mente de um homem [modo finito] estiver a produzir ideias ou afetos passivos [alegres ou tristes]

118
Para Spinoza, Mal é o afeto “de tristeza, à medida que dele estamos conscientes mentalmente” [EIVPVIII].
119
Sobre a questão da plenitude da ação mental Michael Della Rocca [2010] pressupõe que sempre que a mente efetua
uma ideia ou afeto passional nem tais afetos ou ideias são plenos em existência e, por conseguinte, nem a mente torna-
se plena em existência. Nas palavras do comentador: “não apenas nossos afetos passivos não existem de maneira plena,
mas, na medida em que temos esses afetos [passionais], nós mesmos não existimos de maneira plena”. Ademais, as
ideias ou afetos passionais são aqueles que não podem ser completamente inteligidos: “na medida em que tenho afetos
que não são totalmente inteligíveis e não existem em sua plenitude, eu mesmo não sou totalmente inteligível e não
existo de modo pleno. [...] Na medida em que sou passivo e tenho afetos passivos, não faço parte de mim mesmo ou de
qualquer objeto finito [...]”. E isto que faz o autor concluir subsequentemente que a mente do homem em estado de
passionalidade pode colocar a vida do próprio homem em risco: “essa é a principal acusação de Espinoza contra os
afetos [passionais]. Ela nada mais é que um exemplo da percepção mais generalizada de que a passividade não é
totalmente real, de que a passividade faz com que as coisas percam sua existência até certo ponto” [ROCCA, in
Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p. 68-71].
120
Colchetes e observação nossos.
90
a partir de afecções ou imagens [“boas” ou “ruins”] de um corpo submetido às coisas fortuitas da
exterioridade, a própria mente torna-se refém dos acasos da exterioridade. E o que significa ser
refém das coisas fortuitas ou acasos da exterioridade? Significa, primeiramente, dizer que a mente
do homem não está sob o seu próprio comando, isto é, que não está produzindo à sua própria
maneira – ativa ou adequadamente – ideias ou afetos acerca de si mesma, de seu corpo e das coisas
exteriores; de modo segundo, significa consequentemente dizer [com base em uma mente que não
está sob o seu próprio comando] que o próprio homem em sua totalidade [mente/corpo] não está
sob o seu próprio comando, ou melhor, não está sob jurisdição de si próprio [sui juris]; de modo
terceiro, significa dizer que o homem [mente/corpo] passa [não agindo a partir de si mesmo com a
força interna de sua mente] a não ter controle sobre suas ações. Portanto, é assim que o homem é,
muitas vezes, forçado, ainda que perceba o que é melhor para si, a fazer, entretanto, o pior.
Conclui-se: quando a mente do homem perde o controle sobre si – o que a leva a produzir ideias
inadequadas ou afetos passivos [alegres ou tristes] por meio das imagens ou afecções [“boas” ou
“más”] do corpo submetido aos “despóticos” objetos da exterioridade – o próprio homem deixa de
estar sob sua própria jurisdição.

A essência de uma paixão [afeto passivo] 121 não pode ser explicada exclusivamente
por meio de nossa essência [interioridade] 122 [...] isto é [...] a potência de uma
paixão [afeto passivo] não pode ser definida pela potência com que nos esforçamos
por perseverar em nosso ser [conatus]123, mas [...] deve ser definida,
necessariamente, pela potência considerada em comparação com a nossa, da causa
[coisa, corpo ou objeto]124 exterior (EIVPVd.). [...] A força de uma paixão ou de
um afeto [passivo]125 pode superar as outras ações do homem, ou sua potência, de
tal maneira que este afeto [passivo] 126 permanece, obstinadamente nele fixado
(EIVPVI).

Qual a real implicação disso? [a.] Que as ações da mente [produção de ideias ou afetos] de
um homem são “controladas” por objetos exteriores a ela. Em outras palavras: tais objetos não
permitem a mente pensar ou agir adequada ou ativamente a partir de si mesma [produção de ideias
ou afetos ativos] e do intelecto infinito divino. Ora e consequentemente, não pensar por si mesma
pode levar a mente de um homem inclusive a prejudicar a sua natureza interior, deixando exaurir a
sua própria potência ou esforço interno [conatus] de produção de ideias ou afetos; [b.] além de
prejudicar a sua natureza interior, a mente pode também arrastar o homem em sua totalidade
[mente/corpo] nos rumos de sua autodestruição. Nesse sentido, Spinoza reitera: “diz-se que

121
Colchetes e observação nossos.
122
Idem.
123
Idem.
124
Idem.
125
Idem.
126
Idem.
91
padecemos quando algo surge em nós de que não somos senão causa parcial [...], isto é [...], algo
que não pode ser deduzido exclusivamente das leis de nossa natureza [legibus nostrae naturae]”
mental e corporal (EIVPIId; SO2,p.212.). Nesse caso, o próprio homem deixa exaurir não só a sua
potência ou esforço interno [conatus] de produção de ideias ou afetos [mente], pois também deixa
exaurir a sua potência ou esforço interno [conatus] de produção de afecções ou imagens [corpo]127.
É isso que justifica o conteúdo da EIVPIII: “a força pela qual o homem persevera no existir é
limitada e é superada, infinitamente, pela potência das causas [coisas, corpos ou objetos] 128
exteriores” (EIVPIII).

Com efeito, dado um homem, existe outra coisa, digamos, A, mais potente. E dado
A, existe ainda outra, digamos, B, mais potente que A, e assim até o infinito.
Portanto, a potência do homem é definida pela potência de uma outra coisa e é
superada, infinitamente pela potência das causas exteriores (EIVPIIId.).

Está respondido, portanto, o segundo dos dois problemas secundários apresentados neste
segundo capítulo. Afinal, o que é a servidão humana para Spinoza? Em síntese, pode se dizer que
ela é especificamente a incapacidade da mente do homem em refrear ou regular sua produção de
ideias ou afetos passivos [primordialmente alegres ou tristes], dada por meio de afecções ou
imagens [“boas” ou “ruins”] do corpo, o qual é constantemente dependente das coisas fortuitas da
exterioridade [objetos mais ou menos “prejudiciais”] para agir. Em consequência, a própria
exterioridade chega a comandar a potência de produção de ideias ou afetos da mente, podendo fazer
com que ela e o homem [mente/corpo] que a comporta [a mente] se autodestruam.

2.3. A Razão ou o segundo gênero de conhecimento na EII

Para o autor é preciso que haja uma contrapartida frente ao “mal algor” proporcionado pela
servidão humana. Por quê? Porque eticamente sua filosofia a exige. Assim, para Spinoza,

127
Essa percepção disposta em texto coaduna com a de Marilena Chauí em seu artigo Ser Parte e Ter Parte: Servidão e
Liberdade na Ética IV [1993]. Nesse escrito, a comentadora aponta que é aqui que a EIV expõe às claras o fato de uma
finitude humana “levada ao limite” por meio da servidão do homem relativamente à exterioridade. Para ela, esse
contexto comunica que “a finitude, agora, já não é a da parte finita da Natureza como efeito e consequência da atividade
dos atributos e modos infinitos de Deus, mas a parte separada do todo, isolada, indefesa, arrastada em direções
contrárias [...] Aqui, cada parte da Natureza encontrará sempre outras mais fortes e mais poderosas do que ela e a ela
contrárias, capazes de destruí-la”. A autora ainda diz mais, apontando que é aqui que está explicitada toda uma espécie
de topologia da servidão, concluindo, por conseguinte, que este escopo apresenta um homem “sem densidade
metafísica”, já que vive mais pelas causas contigenciais exteriores do que pelo plano ontológico o qual é capaz de lhe
dar forças realmente consistentes para existir. É isto que faz o homem perder o domínio sobre si mesmo, não estando,
portanto, sui juiris: “a servidão, tal como Espinosa a define, não enuncia, portanto, um juízo de valor sobre as paixões,
mas escreve, de facto e de jure, a situação de quem perdeu poder e controle sobre si e sobre o seu mundo. [...] Ora,
quem não está sui juiris é causa inadequada ou parcial do que se passa em seu interior e do que se realiza externamente
[...]” [CHAUÍ, in Discurso, Nº 22, 1993, p. 64-72].
128
Colchetes e observação nossos.
92
eticamente é necessário existir algo por meio do qual se possa superar a condição ou estado de
servidão humana, pois essa última é uma espécie de “atentado” à força interior [corpóreo-mental]
da vida de cada homem. A este algo o filósofo intitula de razão [ratio] humana. Portanto, na
filosofia do autor existe um elemento chamado razão humana, cuja força é capaz de superar a
servidão humana. Todavia, antes de se demonstrar pormenorizadamente o que pode a razão humana
contra a servidão, é preciso primeiramente problematizar o seguinte: o que é a razão para Spinoza?
A resposta a este problema só pode ser dada por meio da recorrência analítica às proposições da EII,
pois é lá que o pensador expõe a sua teoria do conhecimento [imaginação, razão e ciência
intuitiva].
Primeiramente, a ordem textual encontrada na EII oferece aos interpretes do autor certa
indicação sobre o problema da razão: para inferir corretamente o que seja a razão humana em
Spinoza é preciso antes inquirir sobre o que são as ideias adequadas?, diz o filósofo. Assim, para
tratar da questão da razão humana em Spinoza é antes necessária à investigação acerca do que ele
designa de ideias adequadas. Sobre isso, a proposição XL da EII anuncia aos leitores do autor o
seguinte: “todas as ideias que, na mente, se seguem de ideias que nela são adequadas, são
igualmente adequadas” (EIIPXL). O que se pode extrair dessa proposição? Primeiro: certamente há
uma espécie de fluxo interno de ideias que surgem sequencialmente uma após a outra; segundo:
essas ideias que aparecem em sequência são o próprio ser da mente humana, já que ela é ser finito
de produção de ideias, as quais surgem ininterruptamente em seu próprio interior; terceiro: toda
ideia que se segue da e na mente humana pode ser adequada, caso essa ideia se siga de uma ideia
anterior a qual também seja adequada. Conclui-se: neste fragmento de texto Spinoza trata de ideias
adequadas que se seguem uma após a outra da e na mente humana.
O que realmente sustenta a existência de uma ideia adequada da e na mente humana?
Ademais, o que garante a existência da sequência de ideias adequadas que se apresenta da e na
mente humana? Para responder a essas questões é preciso recorrer ao que se sucede na
demonstração da EIIPXL: “quando dizemos que uma ideia se segue, na mente humana, de ideias
que nela são adequadas não dizemos senão que […] existe, no próprio intelecto divino [Divino
intellectu], uma ideia da qual Deus é causa […] enquanto constitui unicamente a essência da mente
humana” (EIIPXLd. SO2, p.120). [A.] sobre a existência da ideia adequada - de acordo com a
demonstração da proposição XL, primeiramente o que gera uma ideia adequada não é propriamente
a mente humana, mas aquilo a que Spinoza intitula de intelecto divino. Por que então a mente
também faz seguir ideias adequadas em si? Ora, porque para Spinoza o intelecto divino é imanente
à mente de um modo finito. O que isso significa? [1.] que a mente só existe atualmente em vida
porque persevera [conatus] existindo em um intelecto divino; [2.] que a mente, portanto, não é uma
natureza particular substancializada [em si e por si], já que a garantia de sua existência é o intelecto
93
infinito divino [ser infinito de produção de ideias, este o qual se segue do/no atributo pensamento de
Deus]129; [3.] que a mente que faz seguir ideias adequadas de/em si só atua desta maneira por causa
do intelecto divino [produção infinita de ideias] que a sustenta enquanto ser finito de produção de
ideias. Além disso, para Spinoza, as coisas precisam ser complexificadas. Para o autor, a mente
humana é em realidade o próprio intelecto infinito, só que “comprimido” em um modo finito. Ora,
se a mente humana é uma espécie de intelecto divino infinito “comprimido” não se pode dizer que
as ideias adequadas que nela se seguem sejam simples produtos de sua particularidade. Portanto, as
ideias adequadas na mente humana são produzidas por ela estritamente porque ela mesma é algo
mais do que uma substância isolada em si mesma, já que é um intelecto divino infinito
“parcializado”; [b.] sobre a existência da sequência das ideias adequadas - portanto, neste
contexto, a mente é ser ou processo parcial de produção de ideias adequadas, as quais se seguem
umas das outras em certa sequência. Nesse contexto, a mente em si não é uma ideia adequada, mas
pura produção de ideias adequadas que se seguem umas das outras. Ademais, para que a mente seja
tal como é [produção de ideias adequadas em certa sequência lógica], cabe apontar que ela deve ter
a consciência de que só é tal como é porque é essencialmente uma parte do intelecto divino
[produção infinita de ideias adequadas] em atividade ontológica do/no atributo pensamento divino.
Com efeito, no escólio da EIIXL, Spinoza diz o seguinte como ressonância: “expliquei,
assim [...] os fundamentos de nossa capacidade de raciocínio” (EIIPXLsI.). O que Spinoza busca
nesse fragmento de texto é enfatizar então qual a causa do fato do homem raciocinar. Ora, e qual a
causa do fato do homem raciocinar, isto é, de ter, nos termos do autor, a capacidade de raciocínio?
Acredita-se que essa questão só pode ser respondida por meio da distribuição cronológica de certos
tópicos, baseados tanto no parágrafo anterior quanto neste: [a.] o intelecto divino é homólogo à
produção infinita de ideias adequadas em sequência lógica no interior do atributo pensamento de
Deus; [b.] para Spinoza, a produção infinita de ideias adequadas é homóloga a uma razão
ontológica; [c.] por conseguinte, o intelecto divino [produção infinita de ideias adequadas] é
homólogo à razão ontológica; [d.] este intelecto divino [razão ontológica ou produção infinita de
ideias adequadas] é o que define o ser da mente humana [produção de ideias adequadas]; [e.] disso
se extrai que, em realidade, o ser da mente humana [produção finita de ideias adequadas] é o
próprio intelecto infinito [razão ontológica ou produção infinita de ideias adequadas]
particularizado; [f.] conclui-se: se o intelecto infinito é uma razão em processo ontológico, em
ressonância, a mente humana é também razão ontológica em regime parcial. Assim, a causa do fato

129
Cf. Integralmente o tópico 1.3. Modos – imediatos/mediatos/finitos do primeiro capítulo deste trabalho. Nesse
tópico há a explicação de como se efetiva ontologicamente a atividade intelecto infinito enquanto aquilo que se dá por
meio da relação entre o modo infinito imediato [intelecto] e o modo infinito mediado [modificação infinita], os quais se
seguem do e no atributo pensamento de Deus. O processo explicativo enunciado nesse tópico acerca desse assunto é de
grande importância para a compreensão do funcionamento da essência da mente humana em um modo finito.
94
da mente raciocinar é realmente intelecto divino.
Com base nas inferências do parágrafo anterior também se pode aqui responder a um outro
problema levantado antes. Afinal, o que é razão para Spinoza? De acordo com o pensador, a
capacidade de raciocínio ou a razão humana é a própria mente enquanto aquilo que se esforça
[conatus] para continuar a produzir ideias adequadas em sequência lógica. Por quê? Ora, porque
para Spinoza ela [a mente] está em pleno acordo com o intelecto divino [razão ontológica ou
produção infinita de ideias adequadas] que lhe é imanente. Assim, é a imanência do intelecto divino
infinito na mente humana que a permite efetuar racionalmente ideias adequadas ou verdadeiras. É
isto que faz com que o homem não precise duvidar - tal como faz Descartes130 - da veracidade da
ideia a qual ele constitui adequadamente por meio de sua mente: “quem tem uma ideia verdadeira
sabe, ao mesmo tempo, que tem uma ideia verdadeira, e não pode duvidar da verdade da coisa”
(EIIPXLIII). Ou seja, de acordo com Spinoza, quando o homem tem a consciência de que produz
racionalmente pela sua mente uma ideia verdadeira ele não põe em dúvida a existência desta
ideia131.
Com efeito, o pensador ainda acresce que, nesse sentido, a razão mental [ser de produção de
ideias adequadas] produz “ideias adequadas das propriedades das coisas132” e “a este modo [de
conhecimento] me referirei como [...] conhecimento de segundo gênero [secundi generis
cognitionem]” (EIIPXLsII.; SO2, p. 122.). Para elucidar o último fragmento de texto é preciso
inicialmente questionar: o que são afinal as propriedades das coisas sobre as quais a mente produz
ideias adequadas a respeito? As propriedades das coisas são as próprias constituições internas das
coisas finitas. Portanto, tudo o que for interno à determinada coisa finita [objeto] é em realidade a

130
Cf. DESCARTES, R. Meditações I, II, em que Descartes demonstra as etapas da dúvida metódica, até a descoberta
do cogito, o que se dá tendo em vista a constituição das provas a posteriori da existência de Deus [Meditações III].
131
É justamente por meio desse apontamento que Spinoza estabelece uma distinção radical entre o seu modelo de
cogito e o de Descartes, como bem explicita Domingues em O grau zero do conhecimento: o problema da
fundamentação das ciência humanas [1991]: “na espontaneidade de suas operações, o pensamento [spinoziano] não se
define pela dúvida ou pela possibilidade do erro [cartesiano], mas pela certeza de si e pela posse da verdade (“o
pensamento em sua espontaneidade é a potência da verdade”, diria Espinosa)” [DOMINGUES, 1991, p.98]. Com efeito,
vale a pena acrescer ainda com o comentador, o qual tem como ponto de partida Gueroult [1968], que “é neste quadro
de inteligibilidade total que” insurgem teses as quais estão em “direta e frontal oposição a Descartes. Estas teses dizem
que: 1) pela ideia adequada, Deus e o homem conhecem a natureza das coisas tal como ela é em si: a substância; 2) os
atributos constituem o ser mesmo da substância, a qual não reside num mais além deles; 3) os modos são afecções da
substância e, a exemplo do atributo, são a ela inerentes e pertencem a ela; 4) o conhecimento verdadeiro, vale dizer
adequado, procede do todo às partes, e consiste em dispor no início da cadeia, graças ao jogo dos conceitos (ens a se,
causa sui etc.), e de princípios definidos in abstracto e a priori (subsistência, inerência etc.), e apenas deles, o ser não-
causado que se põe a si mesmo na incondicionalidade de sua autoposição (o ens a se causa-sui), cuja existência é auto-
implicada e dela se deduz, por derivação, a de todo o resto: Deus; 5) os órgãos do conhecimento verdadeiro são a
intuição e a dedução, e o elemento sobre o qual elas operam é a ideia; 6) a operação do conhecimento se passa toda ela
no interior do pensamento (ideia), e lida com definições essenciais, seja para as coisas seja para as ideias; 7) tendo por
elemento a ideia, lidando com definições essenciais e apoiando-se na intuição e na dedução, o método do conhecimento
verdadeiro é geométrico e, na espontaneidade de sua operação, é também metafísico; 8) o método geométrico funda
todo conhecimento verdadeiro e, em consequência, toda verdadeira metafísica; 9) por sua vez, o método metafísico
demonstra que o método geométrico funda todo conhecimento verdadeiro e a própria metafísica [DOMINGUES, op.
cit., p. 99-100].
132
Grifo nosso.
95
sua propriedade. Além disso, de acordo com o pensador, existem propriedades internas comuns a
uma quantidade precisa de coisas finitas. Para quê o filósofo tem necessidade de demarcar quais são
as propriedades ou constituições internas comuns às coisas? Para responder, não se pode deixar de
antever que Spinoza sempre procura investigar não o que é comumente interno [propriedade] a
qualquer tipo de coisa finita [objeto]. De outra maneira, o autor tem sempre necessidade de
identificar em sua obra quais são as propriedades [constituições internas] as quais são comuns aos
modos finitos humanos. Ou seja, ao estudar as propriedades ou constituições internas comuns a um
determinado número de coisas, o filósofo basicamente está se referindo ao estudo da interioridade
comum aos modos finitos humanos. Ora, para o pensador não há necessidade de explicar o porquê
de empreender esse estudo, já que o simples fato de buscar “observacionalmente visualizar” o que é
internamente [propriedade] comum aos homens [modos finitos] se justifica por si mesmo.
Se é assim, quais são então as propriedades [constituições] comuns intrínsecas aos modos
finitos humanos? Para responder a questão é preciso que Spinoza utilize um “instrumento especial”
de investigação: a razão [ratio] ontológica intrínseca ao homem. Portanto, a razão humana é a
condição da conclusão spinoziana acerca de quais são as propriedades ou constituições internas
comuns aos modos finitos humanos. É por isso que o pensador diz acima que a razão mental
[segundo gênero de conhecimento] é aquilo que constitui ideias adequadas acerca das
propriedades [constituições internas] das coisas [modos finitos humanos]. Portanto, a razão ou ser
de produção de ideias adequadas é utilizado como instrumento de investigação a respeito do que é
interior a espécie humana. Esse é o sentido fundamental incutido no trecho extraído da EIIPXLsII.
E quais são afinal as constituições internas ou propriedades comuns a estes modos? Pelo uso
da própria razão mental Spinoza, pode concluir sob forma de ideias adequadas noções comuns
[notiones communes] a respeito do que constitui internamente o homem, ou seja, suas propriedades
fundamentais: a mente e o corpo. Portanto, todo homem, para o filósofo, é dotado internamente de
duas atividades vitais: a sua mente e o seu corpo.
No entanto, é sempre preciso reiterar que a mente e sua razão spinoziana só tem como
estabelecer noções comuns ou ideias adequadas a respeito das constituições internas [propriedades]
comuns aos homens [modos finitos] porque ela mesma [a mente] é o próprio intelecto divino
[infinito/razão ontológica] de produção de ideias adequadas, só que sob a perspectiva da finitude.
Ou seja, é apenas por isso que ela é capaz de produzir ideias adequadas [noções comuns] sobre o
que é interior ao homem [seu corpo/sua mente]. Ademais, a partir disso se pode também concluir
que a razão mental a qual produz noções comuns [ideias adequadas] acerca da interioridade do
homem não apenas constata que todos os homens têm internamente em si mente [ser ou potência de
produção de ideias]. Isto é, a razão mental não só percebe que o que é comum a todos os homens é
a própria mente. Portanto, a razão mental também constata por meio de noções comuns [ideias
96
adequadas] que todos os homens tem internamente em si corpo [ser ou potência de produção de
afecções, imagens ou movimentos]133. Ou seja, a mente é também capaz de produzir ideias
adequadas as quais concernem à constatação da existência de seu próprio corpo, o qual é comum a
todos os homens. Assim, Spinoza acredita comprovar racionalmente que todo homem tem em si
mente [ser ou potência de produção de ideias] e corpo [ser ou potência de produção de afecções,
imagens ou movimentos].
Afinal, para quê tanto reiterar aqui sobre a comprovação racional-mental de que o corpo é
também comum a todos os homens, quando isto já fora enfatizado no final do primeiro capítulo
deste trabalho? Ora, porque em partes dos dois tópicos anteriores deste segundo capítulo foi
claramente enunciado que a mente não pode jamais pensar adequadamente [sob forma de ideias ou
afetos] nem a si mesma, nem as afecções ou imagens produzidas internamente por seu corpo [ser de
produção de afecções, imagens ou movimentos], nem seu próprio corpo e nem as coisas exteriores.
Em outras palavras, o que se dissera nos dois tópicos anteriores é que a mente sempre produz ideias
inadequadas ou afetos passivos [alegres ou tristes] acerca de si mesma, das afecções/imagens de
seu corpo, de seu próprio corpo e das coisas exteriores das quais muitas vezes o último depende.
Assim, o que os tópicos anteriores podem levar a concluir é que a mente não pode pensar, por
conseguinte, adequadamente a natureza do corpo ao qual está unida. Em contrapartida, é
justamente o contrário o que é dito nos parágrafos apresentados neste tópico. Aqui, é possível dizer
que o filósofo realmente efetiva um estudo adequado sobre a natureza da mente, do seu corpo e das

133
Charlie Huenemann, em A autonomia epistemológica em Espinoza [2010], já dizia coerentemente que as noções
comuns são ideias mentais constituídas a partir da constatação mental acerca do que se passa estritamente no contexto
da interioridade dos modos finitos. Portanto, as noções comuns estão implicadas em um conhecimento “de dentro”, diz
o intérprete. Desse modo, Spinoza se sente no “direito de afirmar que as noções comuns [também] são ideias das
características centrais correspondentes aos corpos – aquelas características que pertencem às coisas estendidas na
qualidade de coisas entendidas [mentalmente]. Assim, a mente, como algo pensante, não é uma lista em branco, mas
possui características estruturais por sua própria natureza, a partir da qual [...] todas as ideias adequadas podem ser
construídas. [...] Essas ideias são todas adequadas”. E o comentador ainda diz mais: “as noções comuns não são obtidas
por meio da percepção dos sentidos. Elas são inatas à mente em virtude de serem uma mente e, assim, não são
representações confusas de estados corpóreos e de corpos externos; e é por essa razão que são adequadas[...]”
[HUENEMANN, 2010, p.124-125]. Cabe ainda reiterar que a teoria das noções comuns não é algo que perpassa toda a
obra de Spinoza, já que vem à tona apenas a partir da Ética. Isto é defendido por pensadores tais como Gilles Deleuze.
Em Espinosa: Filosofia Prática [glossário dos principais conceitos da “Ética”] [2002], o filósofo constitui uma
exposição histórica sobre o aparecimento das noções comuns na obra de Spinoza. Neste sentido o pensador conclui que
a “teoria [das noções comuns] não aparece antes da Ética; ela transforma toda a concepção espinosista da Razão e fixa o
estatuto do segundo gênero de conhecimento”. Ademais, “[...] ela acarreta o mais profundo remanejamento do
espinosimo”. E por que, segundo Deleuze, o espinosismo é remanejado por meio da concepção das noções comuns?
Porque “enquanto o Tratado da correção só se eleva ao adequado [o que é internamente comum aos modos finitos] a
partir de ideias geométricas impregnadas ainda de ficção, as noções comuns [na Ética] formam uma matemática do real
ou do concreto [dos modos finitos] graças à qual o método geométrico é liberto das ficções e abstrações que limitavam
seu exercício”. Para Deleuze, tal matemática do real ou do concreto a qual é implementada pelas noções comuns prova
cabalmente a existência do que é internamente comum ao interior dos modos finitos. Devido a quê? Devido ao fato de
que as noções comuns e aquilo que delas decorre [uma matemática do concreto ou do real] terem como ponto de partida
não as abstrações matemáticas ainda eminentemente presentes no Tratado da correção do intelecto, mas toda uma
biologia intrínseca à Ética: “é nesse sentido que as noções comuns são mais biológicas que matemáticas e formam uma
geometria natural que nos faz compreender a unidade de composição [interior] da Natureza inteira e os modos de
variação dessa unidade” [DELEUZE, 2002, p.100-101].
97
coisas que lhe são exteriores, o que é dado por meio de inferências racionais [ideias
adequadas/noções comuns] internas à mente. Ou seja, a partir de certa comparatividade entre os
distintos tópicos deste capítulo se pode inferir que Spinoza está em evidentíssima contradição.
Todavia e prudentemente, cabe-se adiantar que isso não é verdade. Por causa de quê? Por causa de
um importante fato: o fato da mente pensar sob forma de ideias inadequadas a si mesma, seu
próprio corpo e as coisas exteriores se dá porque, nesse caso, ela é refém da exterioridade, sendo,
portanto, inconsciente da verdadeira razão ontológica que a põe em existência interna em um modo
finito. Essa temática é um dos principais objetos dos dois tópicos anteriores. Em contrapartida, aqui
[tópico atual], ao interpretar adequadamente a si mesma, seu corpo e as coisas exteriores, a mente
busca compreender esses três eixos não enquanto é refém dos objetos fortuitos da exterioridade,
mas enquanto tem a consciência da real condição de sua existência, a saber, a razão ontológica ou
intelecto divino intrínseco ao atributo pensamento de Deus. Ademais, para Spinoza, é então possível
dizer que não é propriamente a mente finita que compreende adequadamente a si mesma, seu corpo
e as coisas exteriores, mas, de outra maneira, é o próprio intelecto divino do/no atributo pensamento
que, pelo fato de ser imanente à mente de um modo finito, efetua adequadamente ideias a respeito
da própria mente finita, do seu corpo e das coisas exteriores. A partir disso, o intelecto infinito
intrínseco à mente racionalmente [não-imaginariamente] constitui ideias adequadas a respeito da
mente e, por conseguinte, do corpo ao observar a natureza especifica do mesmo, a qual é ser de
produção de afecções ou imagens [o que se segue de uma modificação infinita de movimento do/no
atributo extensão]. Em ressonância, o intelecto infinito ou a causa da mente tem como comprovar
adequadamente que ser naturalmente produção de afecções ou imagens é a própria constituição
internamente [propriedade] comum a todos os corpos dos modos finitos humanos: “com efeito [...]
todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos, os quais [...] devem ser
percebidos por todos adequadamente” (EIIPXXXVIIIc.); “segue-se disso que a mente é tanto mais
capaz de perceber mais coisas [corporais] 134 adequadamente quanto mais propriedades em comum
com outros corpos tem o seu corpo” (EIIPXXXIXc.). É, portanto, apenas nesse caso estrito que a
mente não erra ou estabelece juízos de valor equivocados acerca do corpo, já que pensa
conscientemente por meio de sua real causa [ontológica]. Ademais, aqui ela não está
imaginariamente a impor valores morais sobre seu corpo e os corpos exteriores, pois apenas
constata um processo natural o qual é absolutamente imanente aos corpos dos modos finitos
humanos. Nesse caso, a mente não procura julgá-los [os corpos humanos], mas empreende
“eticamente o respeito” ao processo natural que é intrínseco a eles. Conclui-se: não há contradição
em Spinoza135. Como se fica provado, partes dos dois tópicos anteriores a esse tratam

134
Colchetes e observação nossos.
135
Em Autonomia Epistemológica em Spinoza [2010], Charlie Huenemann defende expressamente essa ideia. Segundo
98
spinozianamente da mente que interpreta inadequadamente a si mesma, a natureza de seu corpo e
dos corpos exteriores porque é refém da exterioridade, sendo, por conseguinte, inconsciente da real
condição ontológica de sua existência; já o final deste tópico trata spinozianamente da mente a qual
interpreta ideal e adequadamente a si mesma e a própria natureza ativa comum aos corpos [seres de
produção de afecções ou imagens do/no atributo extensão] dos modos finitos humanos porque, de
modo contrário ao caso anterior, os pensa a partir do intelecto infinito intrínseco ao pensamento de
Deus, o qual é imanente a própria mente humana.
Aqui surge uma questão: por que o intelecto infinito – do/no atributo pensamento de Deus –
o qual é intrínseco a mente de um modo finito faz com que ela constitua ideias racionalmente
adequadas acerca de si mesma, de seu corpo e das coisas exteriores que lhe aparecem? O problema
sugerido só pode ser respondido se houver inicialmente a compreensão do sentido da concepção de
intelecto infinito divino. Para Spinoza, o intelecto infinito [natureza naturada / modo infinito
imediato em modificação infinita de ideias] que se segue no interior do atributo pensamento
[natureza naturante] da substância não é simplesmente uma produção infinita etérea de ideias que
intelige estritamente a si mesma. Este intelecto é também o “instrumento” pelo qual Deus
[substância] compreende, primeiramente, toda a sua constituição interna. O que significa dizer que

ele, é possível que a mente conheça adequadamente a natureza intrínseca do corpo ao qual está unida. Mas, para isso, é
também necessário que ela perceba a autonomia processual a qual é exclusiva da natureza desse corpo: “vimos que o
conhecimento adequado, em Espinoza, está fundamentado no autonomia mental e física: quando a mente é
autodeterminada e (em paralelo) o corpo é autodeterminado, as ideias que a mente forma serão adequadas”. Assim, “se
Espinoza leva essa autonomia a sério, então ele precisa esculpir espaços livres tanto para a mente como para o corpo”. A
consequência dessa enunciação mergulha na conclusão de que não se pode “deixar que a autonomia da mente
sobrecarregue a do corpo [...] Portanto, precisamos focar na forma como o intelecto pensa de maneira autônoma, ou na
forma como o intelecto, segundo sua própria condição, passa de um estado para outro, o que deve acontecer em paralelo
com a passagem autônoma do corpo de um estado para outro”. Todavia, é aqui que Huenemann tem a necessidade de se
posicionar criticamente a despeito de Spinoza. Para ele, a conclusão spinoziana de que a mente deve respeitar a
autonomia própria da natureza do corpo desemboca na consequência de que a realidade natural da mente deve de algum
modo agir como que isolada ou independentemente do próprio corpo: “[...] em diversos momentos de Ética, Espinoza
não considera a razão [mente] como separável do corpo. Em muitas partes do livro, sim – mas não em todas. Em outros
momentos de Ética (em especial na parte 5), Espinoza prende-se a uma ideia descendente de sua visão anterior de que a
mente pode se isolar do corpo [...] é provável que Espinoza acreditasse na possibilidade de algo parecido com esse
desapego para nós, principalmente com base em muitas de suas afirmações por toda a segunda metade de Ética”. E
assim conclui: “nós nos tornamos um “autômato espiritual”, que segue todas as leis da lógica que regem o intelecto
(Tratado, seção 85). Essas leis lógicas determinam nossos pensamentos, mas de uma maneira distinta da determinação
causal que pertence as ideias das afecções do corpo. As ideias do intelecto são a respeito das reais possibilidades e não
a respeito do estado peculiar de nosso próprio corpo. Isso parece indicar que, quando nosso pensamento é determinado
pelas leis do intelecto, de acordo com a ideia do distanciamento, estamos tendo uma experiência fora do corpo [...]”
[HUENEMANN, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p. 130-137]. É a isto que Lívio Teixeira [2001]
chama de a verdadeira “duração da alma sem relação com a existência do corpo” [TEIXEIRA, 2001, p.191]. Parece
que daqui emerge um consistente problema, o qual o spinozismo deve a todo custo enfrentar, caso queira fazer perdurar
o seu racionalismo intrínseco. Coadunando-se com Huenemann e Lívio Teixeira, torna-se inevitável a feitura de uma
questão de difícil resposta: e se, ao contrário do que diz Spinoza, as ideias da mente forem apenas uma “residualidade”
corporal, isto é, produtos de, por exemplo, neurônios-cerebrais em relação eletroquímica, tal como a neurociência [vide,
por exemplo, Benjamin Libet, 1983] em sua generalidade defende no contexto atual? Acredita-se aqui que não existem
instrumentos spinozianos realmente capazes de responder a esse problema, mesmo havendo a retrucação dele por meio
de Chantal Jaquet [2011, p.12-17 e 188-190], comentadora a qual diz, contra Damásio [2004], que nele – em problemas
como o que acabara de ser constituído – coexiste a tendência de um excessivo reducionismo dos estados mentais às
simples matérias neuronais do cérebro.
99
Deus compreende inicialmente toda a sua constituição interna por meio do intelecto infinito
[natureza naturada] que se segue no atributo pensamento? Ora, que Deus ou a substância é capaz de
perceber intelectivamente a conjuntura total de sua “estrutura” interior, a saber, seus infinitos
atributos. É essa a razão de ser, por exemplo, de definições tais como a EIDef.IV, em que Spinoza
diz: “por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo
sua essência” (EIDef.IV). Nesse sentido, a substância não é inconscientemente constituída pela
totalidade dos atributos, já que ela, de modo contrário, sabe consciente ou intelectivamente que é
constituída pelos seus atributos. Assim, o intelecto infinito que se segue no atributo pensamento da
substância faz com que ela tenha uma potência de conhecimento não apenas da existência do
atributo pensamento, mas do atributo extensão e de todos os outros que a constituem [algo que
supera, e muito, a percepção humana: a qual tem apenas a consciência dos atributos
pensamento/extensão]. É por isso que a substância, por meio de seu intelecto do/no atributo
pensamento, constitui ideias adequadas racionais acerca, por exemplo, do atributo extensão,
compreendendo-o perfeitamente. Com efeito, a substância não é livre apenas porque não depende
de nada que lhe seja exterior [pois se basta a si mesma], mas é livre porque também possui uma
potência intelectiva de compreensão infinita acerca de si mesma, compreensão esta que é gerada
apenas por si, a partir da natureza naturada intelectiva que se segue no atributo pensamento. Mas,
para Spinoza, isto não basta. Para ele, se o intelecto de Deus é aquilo que o faz compreender em si
mesmo toda a sua essência constituinte, do mesmo modo, tal intelecto também faz Deus inteligir
aquilo que ele mesmo produz por meio de seus atributos: todos os modos [infinitos e finitos] que se
seguem nos atributos de Deus.

Segue-se disso que a potência de pensar de Deus [Dei cogitandi potentia] é igual à
sua potência atual de agir [actuali agendi potentiae]. Isto é, tudo o que se segue,
formalmente, da natureza infinita de Deus segue-se, objetivamente [compreensão
intelectual]136 em Deus, na mesma ordem e segundo a conexão, da ideia de Deus
(EIIPVIIc.; SO2, p.89).

Portanto, sempre que os atributos de Deus potencialmente agem produzindo modos


[infinitos e finitos] há, paralelamente, uma potência intelectiva [objetiva] que compreende esses
modos em desenvolvimento. É neste escopo que Deus ou a substância tem um entendimento total
acerca de si mesmo, tanto no que se refere à Natureza naturante [atributos] quanto no que se refere
àquilo que se segue desta Natureza naturante: a natureza naturada [modos infinitos imediatos,
mediatos e finitos].
Ora, em vários momentos deste trabalho enfatizou-se que a mente de um modo finito

136
Colchetes e grifo nossos.
100
humano é a própria atividade do intelecto de Deus – natureza naturada a qual se segue no atributo
pensamento –, só que sob a perspectiva da finitude:

[...] quando dizemos que uma ideia se segue, na mente humana, de ideias que nela
são adequadas não dizemos senão que [...] existe no próprio intelecto divino, uma
ideia da qual Deus é causa, não enquanto é infinito, nem enquanto é afetado de
ideias de muitas coisas singulares, mas enquanto constitui unicamente a essência da
mente humana (EIIPXLd.).

Ou seja, a mente humana é força de produção de ideias adequadas a qual persevera


produzindo tais ideias porque é inerente ao intelecto infinito de Deus – produção ou modificação
infinita de ideias que se segue no atributo pensamento de Deus –. Ora, se a mente de um modo
finito é produção de ideias, tal qual o plano racional ontológico que a põe em existência, ela não é
simplesmente um autômato espiritual expressivo, mas é também potência de compreensão adequada
do modo finito que a contém. É então por isso que racionalmente a mente de um modo finito tem
como compreender adequadamente não apenas a si mesma, mas potencialmente tem também como
inteligir adequadamente os processos constituintes do corpo com o qual está unida em um mesmo
modo finito. Ademais, compreendendo adequadamente o seu corpo e seu processo intrínseco
[potência de afirmação de afecções, ou imagens] ela também passa a compreender coerentemente a
essência dos corpos que lhe são exteriores, os quais fazem parte da essência dos outros modos
finitos humanos. E disso, Spinoza conclui:

Seja A algo que é comum a todos os corpos e que existe igualmente na parte e no
todo de cada corpo. Afirmo que A não pode ser concebido senão adequadamente. A
ideia de A, como efeito [...], será, em Deus, necessariamente adequada, quer
enquanto ele tem a ideia do corpo humano, quer enquanto tem as ideias das
afecções do corpo humano, as quais [...] envolvem, parcialmente, a natureza tanto
do corpo humano quanto das coisas exteriores; isto é [...] essa ideia será, em Deus,
necessariamente adequada, enquanto ele constitui a mente humana, ou seja,
enquanto tem as ideias que existem na mente humana. A mente, portanto [...],
necessariamente percebe A de maneira adequada, quer enquanto percebe a si
própria, quer enquanto percebe seu próprio corpo ou qualquer corpo exterior; e A
não pode ser concebido de outra maneira (EIIPXXXVIIId.).

2.4. Da força da Razão ou a superação da Servidão humana na EIV e EV

Agora que a questão da razão está respondida, é possível responder ao problema


fundamental deste capítulo: o que pode a razão humana contra a servidão em Spinoza? O exórdio
que aponta para a resposta do problema levantado se encontra especificamente no escólio da
proposição XVIII da EIV.

101
Expliquei, nessas poucas proposições [anteriores] 137, as causas da impotência e da
inconstância humanas [servidão] 138, e por que os homens não observam os
preceitos da razão. Falta agora mostrar o que a razão nos prescreve, e quais afetos
estão de acordo com as regras da razão humana, e quais, em troca, lhe são
contrários139. Mas antes de começar a fazer essas demonstrações segundo nossa
meticulosa ordem geométrica, convém apresentar, aqui, brevemente, os próprios
ditames da razão, para que as coisas que penso sejam mais facilmente percebidas
por todos140. Como a razão não exige nada que seja contra a natureza [do modo
humano finito]141, ela exige que cada qual ame a si próprio; que busque o que lhe
seja útil, mas efetivamente útil; que deseje tudo aquilo que, efetivamente, conduza
o homem a uma maior perfeição; e, mais geralmente, que cada qual se esforce por
conservar, tanto quanto está em si, o seu ser (EIVPXVIIIs.).

Como se pode observar, após atingir [com a demonstração da proposição XVIII] o primeiro
objetivo fundamental da EIV – responder ao problema da servidão humana –, Spinoza ainda traça
na mesma parte da obra dois outros grandes objetivos. São eles: [a.] mostrar o que a razão
prescreve contra a servidão e quais afetos estão de acordo com as regras da razão; [b.] apresentar
os próprios ditames da razão. Ademais, o filósofo também sente a clara necessidade de focar-se de
antemão em seu segundo objetivo [b.], pois é por meio dele que acredita conseguir transpor-se para
o primeiro objetivo [a.]. Aqui, seguir-se-á a ordem escolhida pelo autor [tratar primeiramente do
objetivo b. para, em seguida, tratar do objetivo a.], já que ela servirá de auxílio para a resposta
subsequente ao problema o qual é intrínseco a este tópico [o que pode a razão humana contra a
servidão em Spinoza?].

2.4.1. Objetivo b. ou apresentar os ditames da razão e suas ressonâncias

Os ditames da razão em Spinoza estão demonstrados logo de antemão na citação acima. Ao


todo, eles são quatro. O primeiro deles diz que a razão da mente [ser de produção de ideias
adequadas] exige que cada qual ame a si próprio; o segundo deles exige que o homem busque o
que lhe seja útil, mas efetivamente útil; já o terceiro deles exige que o homem deseje tudo aquilo
que, efetivamente, o conduza a uma maior perfeição; por último, o quarto dos ditames da razão diz
que o homem deve se esforçar por conservar, tanto quanto está em si, o seu ser. Quais fatos podem
ser constatados pela interrelação entre os ditames racionais incutidos na interioridade natural de um
modo finito humano? Antes de falar destes fatos, cabe relembrar: todo modo finito humano tem
como que inconscientemente a necessidade natural de perseverar [conatus] produzindo em si e por
si ideias [inadequadas ou não] por meio de sua mente. Ademais, para Spinoza, o ato da mente do

137
Colchetes e observação nossos.
138
Idem.
139
Grifo nosso.
140
Idem.
141
Colchetes e observação nossos.
102
homem de perseverar produzindo ideias de/em si é a própria conservação do ser da mente. Em
outras palavras, sempre que a mente de um modo finito se esforça para continuar a produzir ideias,
ela está se esforçando para conservar a atividade interna de seu próprio ser [ser de afirmação de
ideias]. Agora, com base nos ditames da razão dispostos no início do parágrafo se conclui aqui os
seguintes fatos: [1.] a mente do homem pode tomar consciência racional de que sempre está a
buscar conservar a sua força de afirmação [ser de produção de ideias]:

[...] tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós nos esforçamos, não é senão
compreender. Por outro lado, como esse esforço pelo qual a mente, à medida que
raciocina, esforça-se por conservar o seu ser, não é senão compreender [...] E não é
por causa de algum fim [...] que nos esforçaremos por compreender as coisas, mas,
pelo contrário, a mente, à medida que raciocina, não poderá considerar como sendo
bom para si senão como aquilo que a conduz a compreender [...]; (EIVPXXVId.)

[2.] do mesmo modo, ela [a mente] também pode tomar a consciência racional da conservação da
força interna de afirmação do corpo [ser de produção de imagens ou afecções] ao qual está unida.
Por quê? Porque o modo finito humano, para Spinoza, é constituído de duas conjunturas [mente e
corpo] as quais perseveram ou se conservam existindo simultaneamente. Ou seja, caso a mente de
um modo finito tome consciência racional de que está a conservar sua natureza interior [ser de
afirmação de ideias adequadas], ela, concomitantemente, também toma a consciência racional de
que o seu corpo não deixa também de se conservar ativa e interiormente produzindo afecções ou
imagens internas [concernentes a si próprio]. E o que isto anuncia no final das contas?; [3.] a
exigência racional de que o homem [corpóreo-mentalmente] deve passar a amar a si próprio, isto é,
amar a autoconservação do seu ser interior; [4.] com efeito, é nesse sentido que a mente que
racionalmente sabe que se conserva ou persevera em seu ser [ser de afirmação de ideias adequadas]
exigentemente deseja a si mesma enquanto ser de produção de ideias adequadas, o que a conduz [a
mente] a uma maior perfeição; [5.] mas não é só isso: do mesmo modo em que deseja a si mesma
enquanto ser de produção de ideias adequadas, a mente também exigentemente deseja,
concomitantemente, que o corpo ao qual está unida se conserve afirmando afecções ou imagens
concernentes a sua própria natureza, o que a conduz [a natureza corporal interior] a uma maior
perfeição. Portanto, são esses fatos intrínsecos aos modos finitos humanos que acredita-se aqui
poderem ser inferidos como resultados dos quatro ditames da razão enunciados acima.
Esses fatos conduzem como ressonância a algo ainda mais imprescindível para Spinoza, a
saber, a virtude humana: a “[...] virtude [...] não consiste senão em [o homem] 142 agir pelas leis da
[sua]143 própria natureza, e que ninguém se esforça por conservar o seu ser […] senão pelas leis de

142
Colchetes e observação nossos.
143
Idem.
103
sua natureza” (EIVPXVIIIs.). Portanto, os fatos acima constatados com base em certos ditames da
razão têm como sua ressonância primordial a virtude do homem. De acordo com o que o pensador
anuncia nesse último fragmento de texto citado, a virtude é homóloga ao próprio ser humano,
aquele que busca conscientemente agir internamente a partir de si mesmo, ou melhor, a partir das
leis intrínsecas de sua natureza. Nas palavras de Spinoza: “ninguém se esforça [conatus] por
conservar o seu ser por causa de uma outra coisa” (EIVPXXV). O que isso significa? Que o homem
virtuoso é aquele que racionalmente sabe que persevera ou se conserva [conatus] agindo a partir
das expressões que lhe são intrínsecas: seu corpo [ser de produção de afecções ou imagens] e sua
mente [ser de produção de ideias]. Deste modo, o homem virtuoso [por meio da própria força
racional de sua mente] sabe racional e conscientemente que sua mente persevera ou conserva-se
agindo em si e por si mesma [ser de produção de ideias adequadas], na mesma medida em que
também é aquele que [por meio da própria força racional de sua mente] sabe racional e
conscientemente que seu corpo persevera agindo em si e por si mesmo [ser de produção de afecções
ou imagens concernentes a si mesmo]:

A virtude é a própria potência humana, que é definida exclusivamente pela


essência do homem (pela def.8), isto é [...], que é definida exclusivamente pelo
esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em seu ser. Logo, quanto
mais cada um se esforça por conservar o seu ser, e é capaz disso, tanto mais é
dotado de virtude e, consequentemente (EIVPXXd.) [...] não se pode conceber
nenhuma virtude que seja primeira relativamente a esta (quer dizer, ao esforço por
se conservar [corpóreo-mentalmente]144) (EIVPXXII).

Ademais, o homem racional-virtuoso que sabe que persevera internamente agindo desta
dupla maneira [corpóreo-mentalmente] é também aquele que deseja/apetece racionalmente que sua
dupla interioridade [corpóreo-mental] continue a agir com vitalidade, ou, como diria Spinoza, com
continua perfeição145. É isto que é capaz de tornar, para Spinoza, o homem verdadeiramente feliz.

144
Colchetes e observação nossos.
145
José Ezcurdia, em seu artigo Imanência e amor na filosofia de Espinosa [2008], aponta em excelente interpretação
que a noção de virtude é o próprio “incremento do conatus do sujeito, graças à afirmação de seu princípio vital e à posse
de tudo aquilo que é útil para promover sua permanência no seu ser [...] a virtude consiste na afirmação da essência do
sujeito, que torna atual sua natureza como conatus que consta de alma e corpo. A virtude é a realização da essência do
sujeito, enquanto poder de agir e existir, que se afirma na produção de múltiplas afecções alegres e ideias adequadas e
na posse de tudo aquilo que é útil para promover sua própria forma”. Tendo assim demarcado o que é a noção de virtude
em Spinoza, o comentador passa despeitosamente a dizer o que ela não é. Para ele, o que é realmente coerente de um
ponto de vista spinozista, a virtude não é “sujeição do corpo e da conduta do sujeito a uma lei ou valor imposto a partir
de sua exterioridade e que se articulasse sob a forma de um Deus transcendente”; não é “o cumprimento de um
imperativo categórico [kantiano] ao qual a variabilidade sensível se tenha que dobrar vendo-se negada, nem o resultado
de uma ética que tenha como centro o cumprimento do dever pelo dever”. Ao operar o esforço de dizer spinozianamente
o que a virtude não é, Ezcurdia visa defender inversamente que a busca de Spinoza em fundamentar a virtude de outro
modo é dado no intento do filósofo em fundamentar mais verdadeiramente a possibilidade de um indivíduo superior: “é
precisamente na construção do indivíduo superior [...] que o sujeito, toda vez que tem que encontrar o objeto adequado
pelo qual verá precisamente afirmada sua essência – o próprio homem -, vincular-se-á a seu princípio imanente e
realizará a forma mesma de Deus na ordem do humano, conseguindo ele próprio sua própria divinização [EZCURDIA,
104
Quando o homem virtuoso deseja racionalmente que o ser do seu corpo [produção de afecções ou
imagens] e o ser da sua mente [produção de ideias] perseverem internamente existindo, ele também
deseja ser feliz: “ninguém pode desejar ser feliz, agir e viver bem sem, ao mesmo tempo, desejar
ser, agir e viver, existir [corpóreo-mentalmente]146 em ato” (EIVPXXI). E, na medida em que isso
ocorre o homem que já é racionalmente virtuoso torna-se ainda mais virtuoso, pois sua mente e seu
corpo passam a perseverar [conatus] ainda com maior intensidade de produção de ideias adequadas
[mente] e de produção de afecções ou imagens [corpo]147.
De resto, Spinoza ainda permite inferir, a partir dos ditames da razão enunciados acima, que
a interioridade de um modo finito humano racional não pode deixar de se relacionar com outras
coisas, as quais devem ser de grande utilidade [não-prejudiciais] à sua natureza interior: “existem,
pois, muitas coisas, fora de nós, que nos são úteis e que, por isso, devem ser apetecidas”
(EIVPXVIIIs.). E quais as coisas que fora de um modo finito humano devem ser apetecidas
racionalmente por ele? De acordo com o autor, outros modos finitos humanos, isto é, “aquelas
[coisas]148 que estão inteiramente de acordo com a nossa natureza149” interna [mental-corporal]
(EIVPXVIIIs.). Portanto, as coisas que estão fora de um modo finito humano e que também devem
ser apetecidas racionalmente por ele como úteis a sua vida interior [corpóreo-mental] são outros
modos finitos humanos, ou seja, aqueles que possuem uma natureza interior [corpóreo-mental]
homóloga a do primeiro.
De acordo com isso, é importante enfatizar de antemão que o que acaba de ser dito aqui tem
um significado muito mais profundo do que aparenta ter aos olhos acostumados à pressa. Para
Spinoza, dizer que um modo finito humano deve apetecer racionalmente a outras coisas [modos
humanos finitos] as quais são exteriores a ele não é o mesmo que inferir que o modo finito humano
deve apetecer às superfícies das coisas [outros modos finitos humanos] que lhe são exteriores. Ou
seja, o modo finito humano racional não é aquilo que deve apetecer empiricamente à textura, os
gestos, os cabelos, a pele ou mesmo o sorriso de outros modos finitos humanos com os quais está

in Cadernos Espinosanos, nº. XIX, Jul-Dez, 2008, p.31-32]. Marilena Chauí em Desejo, Paixão e Ação na Ética de
Espinosa [2011] enfatiza de modo similar a Ezcurdia que: “a chave da ética espinosana encontra-se nessa proposição do
conatus como fundamento primeiro e único da virtude, palavra empregada por Espinosa não no sentido moral de valor e
modelo a ser seguido, mas em seu sentido etimológico de força interna (em latim, virtus pertence à família de vis,
força). [...] Isso significa que a possibilidade da ética encontra-se, portanto, na possibilidade de fortalecer o conatus para
que se torne causa adequada dos apetites e imagens do corpo e dos desejos e ideias da mente” [CHAUÍ, 2011, p. 96-97].
146
Colchetes e observação nossos.
147
Já em Ser Parte e Ter Parte: Servidão e Liberdade na Ética IV [1993] Marilena Chauí infere que o desejo o qual
Spinoza se refere aqui é um desejo superior, não sendo, portanto, um desejo originado por meio de uma relação de
dependência de um modo finito perante coisas exteriores contingenciais: “o desejo também é a própria essência do
homem quando determinado a agir por uma afecção que nele se encontra. Passivo e servo, se a afecção que o determina
é causada pela força de uma potência externa o desejo pode tornar-se ativo se a afecção lhe for interna. Essa
interioridade lhe é dada quando a razão lhe oferece o que desejar. [...] Para retirar o desejo da passividade e servidão em
que se encontra originariamente, a razão lhe oferece o exemplar naturae humanae, determinando-o internamente”
[CHAUÍ, in Discurso, Nº 22, 1993, p. 108-109].
148
Colchetes e observação nossos.
149
Grifo nosso.
105
em relação. Por quê? Porque os outros modos finitos humanos não podem, pela razão, ser desejados
interesseiramente – na perspectiva de certo modo finito humano racional – como espécies de
objetos visíveis para consumo próprio. Mas, se não se trata aqui de apetecer racionalmente o que se
visualiza superficialmente de outros modos finitos humanos, o que certo modo finito humano
racionalmente deseja de outros modos finitos humanos? O ser ou a natureza interior dos modos,
responde Spinoza150. Portanto, o que um modo finito humano apetece racional e exteriormente –
com o objetivo de internamente perseverar produzindo ideias [mente] e afecções ou imagens
[corpo] – são as interioridades mentais-corporais dos outros modos finitos humanos. O que isso
quer dizer? Que um modo finito humano, o qual é esforço interno de produção de suas próprias
ideias [mente] e esforço interno de produção de suas próprias afecções ou imagens [corpo],
racionalmente apetece àquilo que é comum ou consonante com a sua própria natureza ativa
[corpóreo-mental] interior: os esforços internos de produção de ideias [mentes] e os esforços
internos de produção de afecções ou imagens [corpos] dos outros modos humanos finitos. É por
isso que “à medida que uma coisa [modo humano finito] 151 concorda [interiormente]152 com a nossa
natureza [modo humano finito]153, ela é necessariamente boa” (EIVPXXXI).

À medida que uma coisa [modo humano finito] 154 concorda com a nossa natureza
[modo humano finito]155 ela não pode [...] ser má. Necessariamente será, então, ou
boa ou indiferente. Se considerarmos esta última hipótese, isto é, que ela não é boa
nem má, então [...], nada se seguirá de sua natureza que sirva para a conservação da
nossa, isto é (por hipótese), que sirva para conservação da natureza própria da
coisa. Mas isso é absurdo (pela prop. 6 da P.3). Logo, será, à medida que concorda
com a nossa natureza, necessariamente boa (EIVPXXXId.).

Portanto, o que um modo finito humano deseja racional e para além de si não são as
“camadas” externas dos objetos contigenciais que lhe aparecem, sejam eles modos finitos humanos
ou não. Devido a quê? Devido ao fato do modo humano finito poder irracionalmente tornar-se
servo ou “parasita” das exigências das contingenciais superfícies dos objetos exteriores. De outra
maneira, o modo humano finito racionalmente apetece o ser interno [ação corpóreo-mental] e
necessário [não-contingencial] dos outros modos finitos humanos: esforços internos comuns de
produção de ideias [mente] e esforços internos comuns de produção de afecções ou imagens

150
Essa interpretação acompanha bem de perto aquilo que Chantal Jacquet aponta em Do eu ao si: a refundação da
interioridade em Spinoza [2011]: “A exterioridade [nesse caso] não é sinônimo de alienação ou inadequação. A
exterioridade com a qual compomos é interioridade. [...] Os outros não são exteriores se há conveniência com eles. [...]
Não há de fato exterioridade [nesse caso], mas concurso e união a ponto de poder formar um só e mesmo corpo. [...] A
interioridade é inclusiva e não exclusiva” [JACQUET, in As ilusões do eu: Spinoza e Nietzsche, 2011, p. 363].
151
Colchetes e observação nossos.
152
Idem.
153
Idem.
154
Idem.
155
Idem.
106
[corpo]. É então com isso que o modo finito humano deve estar em comunidade ou em
concordância para se fortalecer, perseverando produzindo ideias adequadas [mente] e afecções ou
imagens [corpo].
Ademais, “disso se segue que quanto mais uma coisa [internamente] 156 – modo finito
humano –157 concorda com a nossa, tanto mais útil ou melhor é para nós” (EIVPXXXIc.). É isto
que faz com que a noção do que é útil [um dos ditames da razão] em Spinoza seja totalmente
distinta de um sentido vulgar de utilidade, o qual geralmente anuncia que tudo o que é útil para um
determinado homem são estritamente objetos exteriores [pessoas ou não] os quais devem servir a
ele como instrumentos de manipulação ou de usurpação “parasitária”. De modo contrário, a noção
de útil em Spinoza nada tem haver com ambiciosos jogos de interesse entre cidadãos coabitantes de
determinado território geográfico. O que se pode apontar contra isso é: [1.] há internamente nos
modos finitos humanos uma dupla essência natural comum [atividade corpóreo-mental]. Portanto,
as essências [corpóreo-mental] dos homens não podem estar em conflito ou em contradição, já que
possuem essências comuns às quais a priori e necessariamente devem estar em concórdia; [2.]
ademais, quando determinado homem racional e mentalmente procura, para além de sua natureza
interior [corpo-mente], aquilo que lhe é útil, ele não está a explorar a essência de um outro homem,
mas, em via oposta, está a ela [a essência de um outro homem] se unindo, “acoplando-se”
[corpóreo-mentalmente] a ela por meio de uma postura racional 158: “apenas à medida que vivem sob

156
Observação nossa.
157
Idem.
158
Essa interpretação acerca da noção de útil é uma ressonância das percepções próprias de José Ezcurdia. Em seu
artigo Imanência e amor na filosofia de Espinosa [2008], o comentador já dizia que “o objeto mais útil ao homem é,
segundo Espinosa, o próprio homem, pois, ao concordar em natureza, permite-lhe construir um indivíduo superior na
qual verá promovida e acrescida a afirmação de seu conatus. O indivíduo superior é o objeto que mais convém ao
homem, pois nele verá potencializada e afirmada sua natureza, superando a própria limitação característica de sua
essência individual. É no amoroso reconhecimento ao homem que o próprio homem gozará do objeto que melhor
afirma sua natureza, na medida em que este se identifica plenamente com ela, permitindo-lhe formar um indivíduo
superior, que nutrirá e afirmará seu próprio conatus [...] Aqui cabe assinalar que a relação imediata entre os sujeitos, que
é justamente princípio do indivíduo superior, torna-se possível enquanto aprofundam o que é comum a eles, isto é, sua
própria essência. Assim, na medida em que o sujeito afirma sua própria essência como vida e poder de existir, traz à
tona aquilo que permite sua correspondência ou comunhão com outros homens”. Como consequência, essa comunhão
permite a fundação de uma radical comunicação intersubjetiva entre os modos finitos humanos [EZCURDIA, in
Cadernos Espinosanos, nº. XIX, Jul-Dez, 2008, p.33-34]. E as consequências não param por aqui. Marilena Chauí, em
Desejo, Paixão e Ação na Ética de Espinosa [2011], aponta que a doutrina da utilidade em Spinoza é fundamental para
a instauração de uma moral em sociedade, por meio da qual se ensina a “não odiar, não desprezar ninguém, não
ridicularizar ninguém, não se encolerizar nem invejar ninguém [...] a doutrina é útil para a vida política ou a sociedade
comum, ensinando como governar e dirigir os cidadãos não para que sirvam, mas para que ajam livremente naquilo que
é o melhor.” [CHAUÍ, 2011, p.305]. Tal doutrina moral spinoziana permite, por conseguinte, a demarcação das
distinções entre os projetos políticos do próprio Spinoza e de Hobbes, por exemplo. Quem elucida detalhadamente essas
distinções é Pablo Azevedo em seu artigo A multidão contra o povo: Spinoza e o exórdio de uma democracia por vir
[2011]. Nesse artigo, o comentador anuncia que os projetos políticos morais de Hobbes e de Spinoza estão pautados em
dois liames completamente distintos, a saber, respectivamente as noções de povo e de multidão: “é no interior deste
antagonismo entre os conceitos de povo e multidão que as filosofias de Hobbes e de Spinoza se inscrevem [...] Hobbes
como um partidário do povo e inimigo da multidão, e Spinoza como um filósofo da multidão em detrimento do povo.
Suas distintas perspectivas [...] levam a conclusões diametralmente opostas sobre o regime político mais eficaz para a
efetivação da paz social: em Hobbes, a monarquia, em Spinoza, a democracia”. Assim, de acordo com o comentador, é
buscando implantar um projeto político monárquico que Hobbes põe-se na defensoria da concepção de povo, a qual tem
107
como característica principal o fato de obedecer a uma vontade soberana, “doando” ao monarca toda a sua potência
natural [espiritual e corporal]. Neste caso, cada um dos indivíduos pertencente ao povo que constitui o corpo geográfico
do promontório social deve dobrar a sua natureza às exigências exteriores do monarca instituído. É aqui, diz Azevedo,
que Hobbes desvaloriza completamente a noção de multidão e dos homens que a constituem. E por que ele desvaloriza
a multidão e seu corpo político? Porque há um princípio interno à multidão o qual não permite a Hobbes concretizar seu
projeto político, a saber, o princípio de uma insubmissão radical a qualquer vontade exterior – seja ela a do monarca
ou não -. Portanto, “a multidão surge como um empecilho ao seu projeto de unidade estatal, pois esta se opõe a
obediência, é incapaz de estabelecer pactos duradouros, estando, assim, impossibilitada de adquirir o status de sujeito
político – pois é impossível que transfira seus direitos naturais ao soberano. Tal impossibilidade advém do fato de a
multidão não compor naturalmente uma unidade, sendo antes constituída de uma multiplicidade de homens com
opiniões e vontades diversas [...] A negação da dimensão coletiva da vida social, intrínseca à concepção hobbesiana de
multidão, incorre, metodologicamente, em tomar a multidão de maneira atomística por reduzí-la apenas às suas partes –
o que estrutura, paradoxalmente, uma perspectiva individualista desse conceito. [...] O caráter puramente negativo
atribuído à multidão na obra de Hobbes exprime a perspectiva radicalmente antidemocrática do constructo teórico do
filósofo”. Assim, Hobbes pressupõe que há uma espécie de maledicência interna à noção de multidão, já que ela é
constituída, segundo o comentador, por um corpo de indivíduos os quais não conseguem naturalmente entrar em
concordância, pois – para Hobbes – eles são como que espécies de átomos distintos uns dos outros, tendo, portanto,
“medidas” internas completamente diferentes. É por isso que, segundo Hobbes, o homem é lobo do homem. Ademais, é
isto que faz com que este pensador tenha predileção pelo conceito de povo, diz Azevedo, tendo em vista que o povo é
aquele que possui suas diretrizes comportamentais suprimidas ou controladas externamente pelo monarca, o que dá
margem, por conseguinte, à “real” possibilidade de unificação social. Em contrapartida, é justamente contra este projeto
político hobbesiano que Spinoza insurge. Para tanto, este filósofo sente a necessidade de defender um projeto político
que parte não de um soberano o qual neutraliza as potências internas naturais de seu povo. E de onde parte então o
projeto político de Spinoza? Ora, da crença na força intrínseca viva da multidão e não do soberano monarca. Tal
multidão, em contrapartida, é modelada por um sentido completamente diferente do de Hobbes. Para Spinoza, “é com
um significado completamente distinto daqueles que o precederam que a multidão é concebida na escrita do Tratado
Político. [...] Dessa forma, é a partir da potência da multidão que Spinoza irá traçar, com a precisão de um geômetra, o
espaço do campo político – recusando, portanto, a concepção de povo [hobbesiana] hegemônica em sua época”. E como
ele realiza isto? De acordo com Azevedo: “importando da Ética a sua concepção da natureza humana [comum],
fundamentada no par conceitual conatus-cupiditas, o filósofo instrumentaliza-a numa refinada antropologia política
sobre a qual irá alicerçar o projeto do Tratado político”. Portanto, Spinoza defende a ideia de que é possível uma
sociedade da multidão e não do povo. Por quê? Porque o autor compreende de modo distinto de Hobbes que multidão é
expressamente aquilo que é constituído por homens os quais são idênticos em natureza [mental-corporal] interior.
Devido a quê? Devido ao fato de que, para Spinoza, existem preceitos ontológicos [atributos pensamento e extensão]
que põem as naturezas internas [mente-corpo] dos homens como idênticas em vida. Desse modo, spinoziana e
naturalmente os homens não são internamente distintos uns dos outros, tais como átomos incomunicáveis que se
embatem entre si na sociedade. O que se apresenta então aqui é a real possibilidade dos homens poderem unir por si
mesmos as suas naturezas interiores a partir das razões naturais que lhes são intrínsecas, e não por meio de uma
constrangedora entidade exterior aos próprios homens, a saber, o Leviatã hobbesiano: “[...] A lógica de alianças,
instituinte da multidão, supera a assertiva hobbesiana que afirma a incapacidade da multidão de se autoorganizar, sendo
possível entender, desta forma, o abandono de qualquer concepção contratualista no Tratado político. [...] É a partir dos
princípios da aliança entre os homens que Spinoza concebe a gênese da multidão e do direito comum como expressão
da união das potências individuais, ou seja, da potentia multitudinis (potência da multidão) [...] Assim, a multitudo surge
no Tratado político não apenas como fonte do direito comum, mas também como fundamento da soberania e potência
coletiva sobre a qual a vida política é alicercada”. E conclui: “a democracia spinozista é um elogio à vida dos homens
em detrimento da servidão política” [AZEVEDO, in Spinoza & Nietzsche: filósofos contra a tradição, 2011, p. 163-
179]. Em O método racionalista histórico em Spinoza [1976], Alcântara Nogueira reitera o mesmo que Azevedo [2011]:
“por isso, inversamente a Hobbes, o filósofo holandês estende à sociedade o estado de natureza, como se dissesse que
no estado social o homem conserva certa parte do estado de natureza [...] o pensador da Ética foi o primeiro, antes de
Marx, a sentir que, na posse dos meios de produção, residia o elemento básico para o homem realizar-se, segundo sua
natureza social” [NOGUEIRA, 1977, p.183-185]. E o comentador ainda diz mais: “Spinoza, assim, não colocou em
oposição o estado de natureza e o estado civil. Considerou que o primeiro se prolongava no segundo, realizando-se em
concomitância com o segundo [...] Porque, o que de fato existiu no estado de natureza foi a associação dos homens,
visando o auxílio mútuo para habitarem as terras, fazer o seu cultivo, repelindo as agressões vindas do exterior, enfim,
realizando todas as suas ações consoante a determinação de todos em conjunto. Chegando, a seguir, à sociabilidade e
organizando-se em Estado, o homem passou a realizar novos e comuns objetivos, fundamentados estes de acordo com
seus interesses, embora submetido ao poder supremo daquele e continuando a ter no seu semelhante o elemento
primacial para progredir ou afirmar-se” [Ibidem., p.193]. Aqui, no entanto, é preciso indagar - sem qualquer tipo de
partidarismo spinozista - o seguinte: será mesmo que os projetos políticos de Hobbes e de Spinoza são tão radicalmente
distintos assim? Relativamente à Hobbes, François Chatelêt, em Uma história da Razão [1994], efetua reservas no que
concerne às interpretações as quais dizem que o filósofo é defensor de um certo absolutismo estatal expresso por apenas
108
a condução da razão os homens concordam, sempre e necessariamente, em natureza”
(EIVPXXXV). É isso que justifica o seguinte enunciado de Spinoza: “assim, procedi para, se for
possível, ganhar a atenção dos que julgam que este princípio, a saber, o de que cada qual tem de
buscar o que lhe é útil, é o fundamento da impiedade e não da virtude e da piedade” (EIVPXVIIIs.).
E conclui:

[...] nada é mais útil ao homem do que o próprio homem. Quero com isso dizer que
os homens não podem aspirar nada que seja mais vantajoso para conservarem o seu
ser do que estarem, todos em concordância [interna] 159 com tudo, de maneira que as
mentes e os corpos de todos componham como que uma só mente e um só corpo, e
que todos, em conjunto, se esforcem, tanto quanto possam, por conservar o seu ser,
e que busquem, juntos, o que é de utilidade comum para todos. Disso se segue que
os homens que se regem pela razão, isto é, os homens que buscam, sob a condução
da razão, o que lhes é útil, nada apetecem para si que não desejem também para os
outros e são, por isso, justos, confiáveis e leais (EIVPXVIIIs.)160 [...] O que
acabamos de mostrar é confirmado, cotidianamente, pela própria experiência, com
tantas e tão claras demonstrações, que está na boca de quase todo mundo o dito de
que o homem é um Deus para o homem (EIVPXXXVs.).

Como se pode observar, o homem racional é aquele que em sociedade procura com a força

por um homem soberano. “Muitas vezes Hobbes foi acusado de ser um teórico do absolutismo estatal. Não deixa de ser
verdade, mas convém fazer duas reservas. Primeiro, Hobbes é evasivo quanto à natureza do soberano”. Ou seja, “o
soberano não precisa ser um homem de carne e osso, mas pode ser uma instituição ou um conjunto de cidadãos. Em O
Contrato social, Rousseau declarará que todos os homens se despojam de sua liberdade, mas confiam essa liberdade a
si mesmos, pois se constituem como corpo social [grifo nossos]. Pode se supor que Hobbes concebia as coisas assim”;
segundo, “o soberano não pode exigir dos seus administrados, uma espécie de direito natural que subsiste, mesmo para
Hobbes. Ele nos indica que o soberano não pode exigir do cidadão que este queira mal a si mesmo. É uma coisa que
Hobbes nunca teria admitido, pois isso vai contra o desejo, contra a ordem natural” [CHATELÊT, 1994, p.78-80].
Hobbes também é defendido por Susan James em A democracia e a boa vida na filosofia de Espinoza [2010], aonde a
comentadora diz recorrendo a Matheron [Individu et Communauté chez Spinoza – 1969 -] e a Tuck [Hobbes and
democracy – 2006 -] que, ao lado de Spinoza, ele – Hobbes - é “um profundo e sofisticado teorista da democracia” e
não da tirania [JAMES, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p.162]. O comentário de Susan James [2010]
e as duas reservas postas por François Chatelêt [1994] em favor da filosofia política hobbesiana realmente permite a
efetuação de problemas que não podem ser respondidos neste trabalho – tendo em vista as questões outras que ele
impõe sobre si mesmo –, mas que, todavia, perduram aqui disponíveis para futuras pesquisas: [a.] será que, apesar dos
pontos de partida serem bastante distintos, a noção de soberano [transcendente] hobbesiana é tão diferente assim da
concepção de soberano [imanente] spinoziana?; [b.] Povo [noção hobbesiana regida pelo contratualismo] e multidão
[noção spinoziana “incontratualizável”] não são concepções opostas que, todavia, tendem a ser arrastadas por um
mesmo objetivo político moral?; [c.] E, por fim, a democracia spinoziana – ditada enquanto ressonância do
republicanismo proposto por Maquiavel – não é de algum modo homóloga à monarquia hobbesiana?
159
Colchetes e observação nossos.
160
Esse escopo é claramente o pressuposto fundamental para a constituição do projeto político democrático de Spinoza.
Nele, os homens devem se esforçar [conatus] – mesmo que sob pena de coações exteriores aos homens passionais,
coações [binômio medo/esperança] as quais permitam a efetuação de um real estado racional – para afirmar
conjuntamente suas potências mentais-corporais internas, o que demarca o topos preciso do conceito de multitudo ou
multidão em um estado democrático: “Este direito que se define pela potência da multidão costuma chamar-se estado. E
detém-se absolutamente quem, por consenso comum, tem a incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e
abolir direitos, fortificar urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc. E se esta incumbência pertencer a um conselho que é
composto pela multidão comum, então o estado chama-se democracia” [TP, cap. II, XVII, p.20] / “Hoc jus, quod
multitudinis potentiâ definitur, Imperium appellari solet. Atque hoc is absolutè tenet, qui curam Reipublicae ex
communi consensu habet, nempe jura statuendi, interpretandi, & abolendi, urbes muniendi, de bello, & pace
decernendi, &c. Quòd si haec cura ad Concilium pertineat, quod ex communi multitudine componitur, tum Imperium
Democratia appellatur [...]” [TP, caput. SO3, XVII, p.282]. Cf. também Tractatus Politicus, SO3, Caput XI, 358-360.
109
de sua mente unir-se mental e corporalmente às atividades internas das mentes e dos corpos dos
outros homens. Ademais, ele procura tal união porque ela é realmente útil à conservação do seu ser
[mental-corporal]. Todavia, é claro que Spinoza não deixa de levar em consideração a dificuldade
de apresentar essa teoria como uma factualidade indubitável em meio à própria sociedade. Mesmo
havendo a convicção de que ela é um fato, o autor deixa muito evidente aos seus leitores que os
próprios modos finitos humanos em contexto social estão com frequência em dissenso, não se
posicionando, portanto, de maneira racional. Aqui, de modo contrário, os homens não coadunam
com o preceito spinoziano racional da união das suas essências internas [mentais-corporais], e sim
da disjunção e embate entre elas. Spinoza argumenta que isso ocorre porque em sociedade os
homens “são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos”, pois é raro que eles “vivam sob a
condução da razão” (EIVPXXXVs.). O que se tem aqui é um conflito entre essências [mentais-
corporais] as quais não conseguem se perceber racionalmente como idênticas, e que, por isso,
entram em conflito, podendo até mesmo “discrepar em natureza” interna (EIVPXXXIII).
E por que no contexto social os modos humanos finitos não têm, muitas vezes, a capacidade
de perceber racionalmente que suas essências são homólogas, chegando até mesmo a discrepar em
natureza? Por causa dos afetos ou ideias passivas inadequadas formuladas pelas mentes humanas:
ideias ou afetos dados mentalmente por meio das afecções dos seus corpos, enquanto eles são reféns
das superfícies das coisas exteriores. Nesse caso as mentes não agem racionalmente, isto é, não
produzem ideias adequadas a partir de si, ou seja, por meio de suas próprias forças interiores e do
plano ontológico responsável por suas existências comuns. Consequentemente, as mentes também
não conseguem pensar coerentemente o que é próprio de suas expressões naturais comuns: forças de
produção racional de ideias adequadas. Do mesmo modo, elas perdem a capacidade de pensar
adequadamente a natureza comum ou ser intrínseco dos corpos aos quais estão unidas nos modos
humanos finitos: forças internas de produção de afecções ou imagens. Ora, se é assim, os modos
humanos finitos passam – irracionalmente em sociedade – a tentar desvincular-se uns dos outros, já
que imaginariamente pensam que suas naturezas intrínsecas [corpóreo-mentais] são absolutamente
distintas.

A natureza ou essência dos afetos [ideias passionais]161 não pode ser explicada
exclusivamente por meio de nossa essência ou natureza [mental] 162 [...] Ela deve
ser definida, em vez disso, pela potência, isto é [...], pela natureza das causas
exteriores, consideradas em comparação com a nossa. Disso resulta que há tantas
espécies de afetos [passivos produzidos pela mente] 163 quantas são as espécies de
objetos [exteriores]164 pelos quais somos [nossos corpos] 165 afetados (veja-se a

161
Observação e colchetes nossos.
162
Idem.
163
Idem.
164
Idem.
110
prop. 56 da P.3); e que os [corpos dos] 166 homens são afetados de diferentes
maneiras por um único e mesmo objeto (veja-se pela prop. 51 da P.3), e sob estas
condições discrepam em natureza (EIVPXXXIIId.)167.

Reiterando, quando a mente de um modo humano finito não age racionalmente, ela também
não age constituindo ideias ou afetos apenas a partir de sua força interior, mas por meio das
afecções ou imagens de seu corpo submetido às exigências da superfície da exterioridade. Por
conseguinte, isto a leva [a mente] a não conseguir perceber a sua real natureza interna [ser de
produção de ideias adequadas intrínsecas], assim como passa a não ter a consciência da adequada
essência interna do corpo [produção de afecções ou imagens intrínsecas a ele] com o qual está
unida. Assim, a mente de um modo finito humano não possui a percepção racional do que é próprio
às atividades específicas da interioridade modal [mente-corpo] da qual faz parte, do mesmo modo
em que deixa de ter a percepção evidente de que sua interioridade mental-corporal é idêntica a dos
outros modos humanos finitos. É estritamente isso que faz um modo humano finito entrar, por
exemplo, em conflito com outro modo humano finito, já que não consegue racionalmente intuir que
sua essência ativa mental-corporal é necessariamente idêntica a do outro modo humano finito. Com
efeito, isto faz com que a sociedade seja constituída em sua maior parte por homens que não estão
sob a condução da razão, o que permitiria a união das essências corpóreo-mentais interiores de cada
um dos modos finitos humanos168.

2.4.2. Objetivo a. ou mostrar o que a razão prescreve contra a servidão, e quais afetos estão
de acordo com as regras [ditames] da razão.

165
Idem.
166
Idem.
167
Grifo nosso;
168
No entanto, Spinoza crê que realmente, em contrapartida, a humanidade deve a qualquer custo acreditar que é
possível uma solução para isto, mesmo que ela não seja simplesmente implementada em virtude da razão mental de
cada homem, já que esta razão muitas vezes nada pode contra os afetos passivos ou ideias inadequadas produzidos pela
mente dos homens. É por isso que o autor conclui sobre o assunto que: “Se os homens vivessem sob a condução da
razão, cada um [...] desfrutaria desse direito sem qualquer prejuízo para os outros. Como, entretanto, estão submetidos a
afetos [passivos] [...], os quais superam, em muito, a potência ou a virtude humana [racional] [...], eles são, muitas
vezes, arrastados para diferentes direções [...] e são reciprocamente contrários [...], quando o que precisam é de ajuda
mútua [...]. Para que os homens, portanto, vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é preciso que façam
concessões relativamente ao seu direito natural [essencialmente interior] e dêem-se garantias recíprocas de que nada
farão que possa redundar em prejuízo alheio [...]. E que ela [a sociedade] tenha, portanto, o poder de prescrever uma
norma de vida comum e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos [...], mas por
ameaças. Uma tal sociedade, baseada nas leis e no poder de se conservar, chama-se sociedade civil e aqueles que são
protegidos pelos direitos dessa sociedade chamam-se cidadãos” [EIVPXXXVIIsII]. Em A doutrina dos modos de
percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa [2001] Lívio Teixeira estabelece a seguinte conclusão
acerca desta conclusão de Spinoza: “no que respeita à vida em sociedade, Espinosa a considera como o mais alto feito
da razão, isto é, aquilo que de melhor o homem pode construir quando busca o seu próprio interesse e utilidade e,
portanto, aquilo que mais que tudo contribui para a virtude. Contudo, há uma fraqueza inerente à sociedade da qual ela
não se pode libertar e que constitui a razão do caráter de servidão que impera nas relações sociais. [...] Conclui-se, pois,
que apesar de sua origem racional, a sociedade não pode subsistir somente pelos imperativos da razão, visto que ela tem
de servir-se da coerção, do medo, das sanções para os que se desviam das normas impostas” [TEIXEIRA, 2001, p.186].
Cf. Tractatus Politicus, SO3, Caput VI, 297-307.
111
Com base na anunciação do parágrafo anterior, Spinoza sente a necessidade de investigar
quais os afetos ou ideias que estão de fato em acordo com as regras ou ditames da razão, ou seja,
quais afetos ou ideias são produzidos adequadamente pela razão mental. E o que isso significa?
Significa dizer que a investigação, a qual o filósofo empreende acerca dos afetos ou ideias
adequadas da mente racional, indica também como a mente de um modo humano finito humano
deve corretamente agir. Ou seja, tal investigação elucida que quando a mente produz ideias ou
afetos adequados ela também age corretamente. Os resultados disso podem ser distribuídos em três
eixos: [1.] a mente de um homem passa a viver fortalecidamente produzindo afetos ou ideias apenas
por meio da força intrínseca de sua essência mental [produção de ideias adequadas ou afetos ativos],
o que faz com que, por conseguinte, a própria força intrínseca de seu corpo [produção de afecções
ou imagens] também se fortaleça; [2.] é permitido a um determinado homem vencer a servidão em
que geralmente se encontra – uma incapacidade da sua mente em refrear ou regular sua produção
de ideias ou afetos passivos, que é dada por meio de afecções ou imagens do seu corpo, o qual é
constantemente dependente das superfícies das coisas fortuitas da exterioridade [objetos mais ou
menos “prejudiciais” a ele] para agir–; [3.] com isso, pode haver a garantia do fato do homem
mentalmente racional poder conviver melhor em sociedade, já que se une [corpóreo-mentalmente]
ao interior [corpóreo-mental] dos outros homens por meio da sua razão, não entrando, portanto, em
conflito com os últimos. Assim, para reiterar cada um dos três eixos-resultados enunciados aqui é
preciso investigar quais os afetos que devem ser adequadamente produzidos pela mente racional.
Para tanto, será efetuado aqui o estudo de algumas proposições da EIV, especificamente a partir da
EIVPLIX.
A proposição LIX da EIV diz o seguinte aos leitores de Spinoza: “A todas as ações às quais
somos determinados, em virtude de um afeto que é uma paixão169, podemos ser determinados, sem
esse afeto, pela razão” (EIVPLIX). O que está em jogo aqui afinal? Há aqui o empreendimento da
razão mental de um modo humano finito, a qual tem a força para expurgar de dentro da própria
mente afetos passivos que ela mesma produz imaginariamente nos acasos da vida.

Relembrando: cada afeto passivo é uma ideia que insurge por meio da mente do
homem enquanto ela pensa imaginariamente uma determinada afecção ou imagem
do seu corpo, constantemente submetido às exigências da exterioridade. E qual a
consequência para a mente do próprio homem? Ora, na medida em que a mente
deste homem produz certa ideia ou afeto passivo ela mesma se afeta dessa ideia ou
afeto, o que a faz aumentar ou diminuir sua força natural de existência: produção
maior ou menor de ideias. Caso ela efetue uma ideia ou afeto passivo – com base
em uma “boa” afecção ou imagem de seu corpo submetido a um “saudável”
objeto exterior – ela se afeta de alegria e aumenta a sua força natural de

169
Grifo nosso.
112
existência [produção de ideias]; caso contrário, se ela estiver a efetuar uma ideia
ou afeto passivo – com base em uma “má” afecção ou imagem de seu corpo
submetido a um “prejudicial” objeto exterior – ela se afeta de tristeza e diminui a
sua força natural de existência [produção de ideias]. É isso que anuncia que a
mente está em um contínuo quadro de instabilidade, ora aumentando a sua
potência [conatus] de existir [porque se afeta de uma ideia ou afeto alegre que
produz de uma “boa” afecção do corpo relacionado a certa exterioridade] ora
diminuindo a sua potência [conatus] de existir [porque se afeta de uma ideia ou
afeto alegre que produz de uma “má” afecção do corpo relacionado a certa
exterioridade]. Isso também anuncia que a mente não está especificamente a agir
por meio de sua própria natureza interior, já que também, da mesma maneira que
seu corpo, é refém da exterioridade, o que a leva a não ter plena potência de
afirmação de ideias.

É tendo todo este pressuposto conceptual que Spinoza constitui a proposição citada há
pouco: EIVPLIX. Nela, a prescrição do filósofo é estritamente a de que a mente [por meio de sua
razão] deve evitar efetuar ideias ou afetos passivos a partir das afecções ou imagens [“boas” ou
“más”] de seu corpo submetido aos objetos contingentes [“saudáveis” ou “prejudiciais”] da
exterioridade. Em outras palavras, há todo um esforço do pensador em reiterar que a mente deve
evitar – por meio da sua força racional – produzir afetos passivos ou ideias inadequadas, os quais,
por conseguinte, a afetam e a fazem agir ora com maior vitalidade de afirmação de ideias e ora com
menor vitalidade de afirmação de ideias. Neste caso, o pensador vislumbra um empreendimento
ético que discerne que a mente do homem deve exigir para si mesma a retomada da sua estrita força
interior de seu pensamento, o que a torna plenamente ativa e não instável ou passionalmente ativa:
“agir segundo a razão não é senão [...] fazer aquilo que se segue da necessidade de nossa natureza
[mental/corporal] 170, considerada em si só” (EIVPLIXd.). A ressonância disso é a seguinte: o corpo
do homem também recobra a sua força interior de afirmação de afecções ou imagens, força a qual
concerne apenas a ele mesmo, e não simplesmente à exterioridade. Tal é a grande
“intencionalidade” de Spinoza com a proposição acima: “é, pois, evidente que, se os homens
pudessem ser conduzidos pela razão, todo desejo que surge de um afeto que é uma paixão seria
ineficaz” (EIVPLIXs.).
No entanto, é de primordial importância apontar aqui que não é porque a razão mental põe
em xeque determinados afetos ou ideias passionais – os quais a própria mente produz
imaginariamente e que podem alterar a sua força de ação vital para mais ou para menos – que ela
deixa de produzir afetos ou ideias. Todavia, cabe aqui anunciar: tais afetos ou ideias outras
efetuadas pela mente têm uma outra natureza, não sendo, portanto, passionais, mas ativos. O que
isso significa? Que os afetos ou ideias os quais Spinoza se refere aqui são afetos ou ideias
produzidos unicamente pela força intrínseca da razão mental de um modo humano finito. Nesse
caso, para produzir esses afetos ou ideias a mente racional não faz remissão às afecções ou imagens
170
Colchetes e observação nossos.
113
do corpo refém das coisas fortuitas exteriores. Isto implica dizer primeiramente que a mente age
não-passionalmente, mas ativamente a partir de sua própria força interior. Por conseguinte, os afetos
ou ideias que ela mesma produz são ações [resultados] da mente ativa por si mesma. E o que se
conclui? Que esses afetos ou ações produzidos pela mente racional fazem também com que a
própria mente racional se afete, levando-a a tornar-se ainda mais ativa, aumentando plenamente sua
potência [conatus] interior de produção de ideias. São esses então os afetos que devem ser
adequadamente produzidos pela mente racional, os quais, por conseguinte, aumentam plenamente a
própria força de existir [produzindo ideias] da mente em vida.
É nesse escopo que Spinoza tem a necessidade de investigar no final da EIV quais os tipos
principais de afetos ou ideias que são ações da mente racional – ativa por sua própria natureza
intrínseca –?. São eles: o desejo e alegria: “todos os afetos que estão referidos à mente, à medida
que ela age [ativa e não-passionalmente]171, isto é [...], que estão referidos a razão [da mente]172, só
podem ser os afetos de desejo e de alegria” (EIVPLXIIId.). Aqui é preciso tratar antes do afeto de
alegria que é ação de uma mente racionalmente ativa. E por quê? Porque, para Spinoza, o afeto de
alegria insurgido da mente racional é a condição da existência do afeto de desejo: “o desejo que
surge da razão [mental] 173 só pode surgir [...] de um afeto de alegria [...]” (EIVPLXIIIdII.).
Na demonstração da EIVPLIX o pensador diz o seguinte sobre o afeto ou ideia de alegria
que se segue da mente que raciocina: “[...] à medida que a alegria é boa, ela concorda com a razão
[mental]174 (pois a alegria consiste em que a potência do homem é aumentada ou estimulada) [...]”
(EIVPLIXd.). Aqui, o afeto ou ideia de alegria é certamente uma ação da mente racional, aquela que
age apenas a partir de sua potência intrínseca de produção de ideias. E o que este afeto de alegria
tem a proporcionar à mente racional? O seguinte: este afeto ou ideia de alegria, à medida que é
produzido pela mente racional, também a afeta, tornando-a, por conseguinte, alegre. Ademais, a
partir do ponto em que é afetada de alegria por um de seus afetos ou ideias intrínsecas, a mente
passa a agir alegremente com vitalidade estável, ou melhor, com potência plena de produção de
ideias. Paralelamente, a potência interna de produção de afecções ou imagens do corpo é também
aumentada em plenitude, já que na medida em que a mente age com tal virtuosidade o corpo a
acompanha, só que executando os seus próprios empreendimentos [produção de afecções ou
imagens interiores] – à sua maneira –.
É nesse sentido que se pode agora tratar do afeto de desejo enquanto aquilo que insurge de
uma mente racional que age com “alegria de viver”, produzindo plenamente ideias intrínsecas a si.
Ao passo que a mente vive assim [alegremente], pode-se também dizer que ela passa afetivamente a

171
Colchetes e observação nossos.
172
Idem.
173
Idem.
174
Idem.
114
desejar para si mesma que continue a viver deste modo. Com efeito, a mente deseja
conscientemente a si mesma enquanto ser alegre capaz de produzir racional e continuamente ideias
adequadas ou afetos ativos a partir de si mesma. Como ressonância, a mente que deseja a si mesma
desta maneira também passa a desejar que a natureza ou potência interna de seu corpo continue a
afirmar-se produzindo plenamente afecções ou imagens intrínsecas a ele mesmo:

“[...] o desejo que surge da razão [da mente alegre] 175, isto é [...], o desejo [da
mente alegre]176 que se gera em nós enquanto agimos [racionalmente] 177, é a
própria essência ou natureza do homem, à medida que é concebida como
determinada a fazer aquilo que se concebe adequadamente, em virtude apenas da
essência [mental/corporal]178 do homem [...]” (EIVPLXId.).

Desse modo, surge um duplo desejo intrínseco ao homem: um desejo da mente alegre por
continuar a perseverar racionalmente produzindo suas ideias ou afetos; um desejo da mente alegre
por pretender deixar seu corpo continuar a perseverar produzindo suas afecções ou imagens
intrínsecas. Este arcabouço teórico é reiterado no capítulo II do Apêndice da EIV: “os desejos que
se seguem de nossa natureza [mental-corporal] 179, de maneira tal que podem ser compreendidos
exclusivamente por meio dela, são os que estão relacionados à mente, à medida que esta é
concebida como consistindo de ideias adequadas [racionais] 180” (EIVAp.Cap.II.). Assim, é o duplo
afeto de desejo de uma mente alegre, a qual raciocina que permite ao homem mental-corporalmente
passar a uma perfeição interna ainda maior.
Assim, chega-se à reiteração do primeiro dos três resultados [eixos] enunciados no primeiro
parágrafo deste tópico: avaliando quais os tipos de ideias ou afetos [alegria/desejo] que são
produzidos adequadamente pela mente racional, Spinoza se põe a prescrever que, a partir desses
afetos, a mente de um homem passa a viver fortalecidamente produzindo outros afetos ou ideias, o
que se dá apenas por meio da força intrínseca da essência mental [produção de ideias adequadas
ou afetos ativos]; o que também faz com que, por conseguinte, a força intrínseca de seu corpo
[produção de afecções ou imagens] também se fortaleça.
E o segundo resultado? Certamente é aquele que diz o seguinte: avaliando quais os tipos de
ideias ou afetos [alegria/desejo] que são produzidos adequadamente pela mente racional, Spinoza
se põe a prescrever que, a partir destes afetos, é permitido a um determinado homem vencer a
servidão em que geralmente se encontra – uma incapacidade da mente em refrear ou regular sua
produção passional de ideias ou afetos, dada por meio de afecções ou imagens do seu corpo, o qual

175
Colchetes e observação nossos.
176
Idem.
177
Idem.
178
Idem.
179
Idem.
180
Idem.
115
é constantemente dependente das superfícies das coisas fortuitas da exterioridade [objetos mais ou
menos “prejudiciais” a ele] para agir –. Deve-se detalhar o que é dito aqui.
Como já se foi enfatizado, para Spinoza é bastante evidente que a mente racional produz
adequadamente – a partir de si mesma – ideias ou afetos alegres ativos. Ademais, quando a mente
racionalmente produz ideias ou afetos alegres ativos, ela própria se afeta com tais ideias ou afetos e
aumenta sua potência de existir [produção de ideias ou afetos], além de continuar desejando que
continue a existir tal como está existindo. Nesse sentido, a mente realmente não está em estado de
servidão, pois: [a.] não produz instavelmente – a partir de outra coisa que não ela mesma – ideias ou
afetos passivos, efetuados pela mente a partir de afecções ou imagens [“boas” ou “más”] de/em um
corpo que é refém das coisas fortuitas exteriores [“saudáveis” ou “prejudiciais” a um determinado
modo finito]; [b.] com efeito, a mente não precisa – tal como a mente em estado de servidão –
refrear a sua produção de ideias inadequadas ou afetos passivos, já que nesse momento ela não os
produz. Portanto, se pode dizer aqui que a mente supera a servidão humana.
Para Spinoza isso ainda não é tudo. Segundo o autor, a superação da servidão pela mente
racional só pode advir em sua plenitude na medida exata em que a própria mente também
“aprende” – por meio de si mesma – a avaliar e refrear os afetos passionais que são produzidos
por ela, os quais são dados a partir das afecções ou imagens de seu corpo submetido às exigências
da exterioridade: “aqui tratarei, portanto, como disse, apenas da potência da mente ou da razão, e
mostrarei, sobretudo, qual é o grau e a espécie de domínio que ela tem para refrear e regular os
afetos” ou ideias passionais (EVPref.)181. Para tanto, o filósofo adentra o escopo de algumas das
primeiras proposições da EV, já que, em acordo com o autor, esta é a condição da máxima
superação da razão mental sobre a servidão da mente humana, mente a qual passa a ser literalmente
“senhora de si mesma”182.
Cabe agora, no que concerne a esse assunto, observar primeiramente a terceira proposição

181
Este não é o único objetivo fundamental da EV, já que esta parte da obra tem também o intuito ainda mais
fundamental de dizer “o que é a liberdade ou a beatitude da mente”, o que será trabalhado no terceiro capítulo desta
dissertação.
182
Lívio Teixeira, em A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa [2001],
coerentemente elucida que uma importante consequência pode ser extraída do fato do conhecimento ou domínio
racional sobre os afetos passionais: “A verdade é esta: que se procurarmos conhecer os afetos [...] em sua essência, daí”
decorrerá que “as ideias da razão, em vez de nos amarrarem na servitude, nos darão forças para dominar os afetos, as
paixões”, o que faz com que o homem ultrapasse, por conseguinte, o próprio estado de servidão. Todavia, isto ainda não
é suficiente aos olhos do comentador. Para ele, este conhecimento dos afetos por meio da razão é um empreendimento
spinoziano o qual terá como ressonância algo distinto do simples domínio [ou conhecimento] racional sobre os afetos,
assim como da própria superação da servidão. Assim, “as ideias da razão, [também] nos conduzirão ao terceiro gênero
de conhecimento, à visão total das coisas a partir do conhecimento do Ser Perfeito”. Como já foi dito, esse
conhecimento de terceiro gênero, pelo qual Spinoza indica que é também possível que o homem, por conseguinte,
“aprofunde” um sentimento de liberdade superior [divina], será trabalhado no próximo capítulo deste trabalho. Portanto,
“aquele, pois, que trabalha por governar seus afetos e apetites só pelo amor da liberdade esforçar-se-á, tanto quanto
puder, para conhecer as virtudes e suas causas e adquirir a plenitude de gozo que nasce do conhecimento verdadeiro
[terceiro gênero do conhecimento / intuição]” [TEIXEIRA, 2001, p.188-191].
116
da EV: “Um afeto [da/na mente]183 que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos
[racionalmente]184 dele uma ideia clara e distinta” (EVPIII). O que se analisar daqui? Que a mente
que está a produzir passionalmente [“servilmente”] afetos [paixões] ou ideias irrefletidamente –
com base nas afecções ou imagens do corpo submetido à exterioridade –, pode, em contrapartida,
avaliar esses afetos, conhecê-los “friamente” por meio da razão. Diz Spinoza: “[...] não há nenhum
afeto [da mente passional] 185 do qual não possamos formar [pela razão mental] 186 um conceito claro
e distinto” (EVPIVc.). Ademais, ao passo em que está racionalmente a avaliar ou conhecer os afetos
ou ideias que produz “apaixonadamente” [imaginariamente], a mente é também capaz de não se
afetar com as ideias ou afetos.
E por que a mente é aqui capaz de não se afetar com certas ideias ou afetos – os quais
produz imaginariamente a partir das afecções ou imagens do seu corpo submetido aos “bons” ou
“maus” objetos da exterioridade –? Porque à medida que ela busca avaliar ou conhecer as ideias ou
afetos passionais imaginários também acaba por “domá-los”, refreá-los racionalmente. Assim, ao
passo em que conhece ou avalia as ideias ou afetos passionais que ela mesma produz
imaginariamente, a mente, por conseguinte, os refreia racionalmente. E o que é refrear
racionalmente um afeto ou ideia passional da/na mente? De acordo com Spinoza, é refrear
racionalmente a força dos afetos passionais – os quais a mente tende a produzir imaginariamente
em diversas ocasiões – sobre a própria mente. Portanto, a mente racional é capaz não só de
conhecer, mas de “neutralizar” a ação dos afetos ou ideias passionais – os quais ela produz
imaginariamente – sobre ela mesma. Na medida em que isso ocorre, esses afetos não mais são
paixões as quais podem “atordoar” a mente, já que aqui eles transmutam-se [por meio da mente que
raciocina] em afetos ou paixões “acalmadas”, ou, nas palavras de Spinoza, em ideias claras e
distintas187.

183
Colchetes e observação nossos.
184
Idem.
185
Idem.
186
Idem.
187
Michael A. Rosenthal, em Espinoza e a filosofia da história [2010], aprofunda o domínio da razão mental sobre os
afetos passivos [paixões] por meio da recorrência à imaginação como auxiliadora da razão mental neste processo. Para
ele, “a razão não pode simplesmente conquistar as paixões [ideias ou afetos passionais] de modo automático apenas por
intermédio da compreensão; ela precisa contar com a ajuda [...] dos mecanismos imaginativos que lhe dão suporte”. E
quais os mecanismos imaginativos auxiliares da razão, os quais são levados em consideração pelo comentador? Ele
aponta: a memória. E por que a memória? Porque a memória é o próprio “órgão” que produz imagens da exterioridade,
iniciando, consequentemente, toda uma atividade imaginária em um modo finito. Como já foi elucidado, tais imagens
produzidas pela memória tornam o corpo do homem passivo [apaixonado] relativamente às imagens da exterioridade,
assim como à própria exterioridade. Consequentemente, caso a mente chegue a pensar apenas por meio dessas imagens
produzidas pela memória do/no corpo, ela mesma passa a produzir afetos passivos ou ideias inadequadas. Todavia, é
possível inverter este processo, fazendo com que a mente chegue conduzir a memória, isto é, o “órgão” da imaginação,
não sendo mais dela refém. Nesse caso, a mente do homem não é passional relativamente às imagens da memória, não
sendo também passional relativamente à exterioridade. Portanto, é pondo a seu serviço as produções imaginárias da
memória que a razão mental tem como controlar suas própria paixões ou afetos passionais relativos às imagens do/no
corpo, não mais delas “dependendo” para existir. Aqui, a mente não é mais ideia das afecções [imagens] corporais, já
que redescobre um modo de controlar essas imagens a partir do processo racional que lhe é intrínseco. Por conseguinte,
117
O resultado disso é que a mente racional também acaba por não entrar em um quadro de
instabilidade ou servidão vital – contínuo aumento e diminuição de potência interna –. Devido a
quê? Devido ao fato da mente racional do homem ter a força para não se afetar dos afetos ou ideias
passivas, os quais a própria mente imaginariamente poderia produzir por meio das afecções ou
imagens corporais advindas da exterioridade contingencial, a qual é “saudável” ou “prejudicial” a
vitalidade interna da própria mente.

[...] cada um tem o poder [racional] 188, se não absoluto, ao menos parcial, de
compreender a si mesmo, e de compreender seus afetos, clara e distintamente e,
consequentemente, de fazer com que padeça menos por sua causa. Devemos, pois,
nos dedicar, sobretudo, à tarefa de conhecer, tanto quanto possível, clara e
distintamente, cada afeto, [...] não se pode imaginar nenhum outro remédio que
dependa de nosso poder que seja melhor para os afetos do que aquele que consiste
no verdadeiro conhecimento deles, pois não existe nenhuma outra potência da
mente [racional]189 que não seja a de pensar e de formar ideias adequadas [...]
(EIVPIVs.).

Ademais, à medida que a mente racional conhece e “doma ou refreia” ideias ou afetos
passionais – transformando-os em ideias claras e distintas – algo a mais ocorre. Para Spinoza,
quando a mente transmuta as ideias ou afetos passionais que produz imaginariamente em ideias
claras e distintas [afetos “acalmados” pelo conhecimento racional dos mesmos], ela também acaba
por desvinculá-los daquilo de que faziam remissão: as afecções ou imagens do/no corpo,
formuladas por ele a partir de determinados objetos exteriores. Por conseguinte, a mente também
“desrelaciona” as ideias ou afetos – os quais eram paixões – às próprias coisas exteriores. Portanto,

de maneira racional a mente controla os afetos passionais ou ideias inadequadas que ela mesma poderia chegar a
produzir: “precisamos enviar para a memória algumas dessas máximas racionais e aplicá-las “de maneira constante aos
casos específicos encontrados com frequência na vida” (E5p10s [...]). [...] Por exemplo, embora eu ainda não tenha sido
publicamente insultado durante a leitura de um artigo, devo tentar imaginar o ato horrendo de maneira antecipada e
relacioná-la à minha imagem da devida máxima racional, para que, se e quando o insulto ocorrer, eu consiga superar de
maneira imediata o impulso de agir de forma odiosa e, em vez disso, reagir de modo compreensivo e compassivo.
Portanto, a capacidade de superar os afetos em geral depende do grau a que já me dediquei no intuito de me preparar
antecipadamente para superar qualquer afeto específico […] Esse processo associativo suplementar é possível em
virtude de três poderes fundamentais. Em primeiro lugar, como Matheron indica, a Razão (com “R” maiúsculo)
direciona o processo associativo. Isso faz sentido porque, em primeiro lugar, a maior premissa em qualquer um dos
exemplos de uma dedução é aquela explicitamente derivada da razão e, em segundo, o objetivo da técnica é permitir
que a razão aumente seu poder sobre os afetos. Em outras palavras, a razão é fundamental para o processo maior por
meio do qual o esforço de compreender pode tentar romper os processos associativos irrefletidos da imaginação e
reordená-los em favor do indivíduo. Em segundo lugar, embora a razão direcione o processo, o mecanismo associativo
em si é produzido pela imaginação [...] Assim, a razão e a imaginação formam um complexo que Pierre Macherey, em
seu comentário, chama de “ars imaginandi”, por meio do qual a mente, aos poucos, tenta se curar das aflições afetivas
(Macherey, 1994: 78). Contudo, conforme indicado por Macherey, existe um terceiro fator envolvido, o corpo em si,
que se esforça para se racionalizar ao mesmo tempo em que a mente por força do desenvolvimento de hábitos que
permitem que ele preveja e compense as ações esperadas dos corpos externos que age sobre ele (Macherey, 1994: 79).
Assim, diferentemente dos cartesianos e dos estoicos, Espinoza não afirma que somente a razão é capaz de superar as
paixões. A razão é sem dúvida importante, mas ela não pode alcançar seus objetivos sem os mecanismos associativos da
imaginação e do corpo” [ROSENTHAL, in Interpretando Espinoza: ensaios críticos, 2010, p. 151 – 155].
188
Colchetes e observação nossos.
189
Idem.
118
a mente pode racionalmente fazer com que os afetos ou ideias produzidos deixem de ter qualquer
tipo de vínculo com os “âmbitos” os quais serviram de referência para suas constituições. E que
âmbitos eram estes? As afecções ou imagens – formuladas pelo corpo por meio de determinados
objetos exteriores –; os próprios objetos exteriores – os quais servem de referência para a efetuação
de afecções ou imagens pelo corpo –.
E para quê a mente separa as ideias ou afetos produzidos daquilo de que eles fazem remissão
– as coisas exteriores e as afecções corporais internas destas coisas exteriores–? Spinoza responde:
“[...] para que, enfim, o próprio afeto ou [ideia passional] 190 [...] se vincule” não às coisas exteriores
e suas respectivas afecções ou imagens internas ao corpo, mas se relacione “a pensamentos
verdadeiros” (EVPIVs.)191. E o que se acarreta disto? A mente racional, parando de vincular as
ideias ou afetos passionais às coisas exteriores, não constitui afetados julgamentos de valor a
despeito das próprias coisas exteriores. Nesse itinerário, Spinoza conclui:

se separarmos [mental e racionalmente] 192 uma emoção do ânimo, ou seja, um afeto


[passional da mente]193, do pensamento [racional]194 de uma causa [coisa]195
exterior, e a ligamos a outros pensamentos [racionais] 196, então o amor ou o ódio
para com a causa [coisa exterior]197, bem como as flutuações de ânimo, que provêm
desses afetos, serão destruídos” (EVPII).

Por meio disso, cabe acrescer que a mente passa racionalmente a ter potência [conatus]
maior de produção necessária de ideias, não se submetendo, por conseguinte, às ideias inadequadas
ou afetos passionais que produz imaginariamente em determinadas situações, o que se dá por meio
190
Colchetes e observação nossos.
191
É o que reitera Adriana Belmonte Moreira em Potência da razão e liberdade humana: uma análise do prefácio,
axiomas e das quatro primeiras proposições da parte V da Ética [2010]. Neste artigo a comentadora aponta que
“somente uma mente internamente disposta é capaz de separar um afeto de sua causa externa e ligá-lo a outros
pensamentos, fazendo assim com que a causa externa desapareça e com ela a flutuação do ânimo, que se origina desses
afetos. Ao desfazer a ligação do afeto com a causa externa, conectando-o a outros pensamento, a mente passará a formar
dele uma ideia clara e distinta, fazendo com que deixe de ser uma ideia confusa, um afeto passivo, tornando um afeto
ativo. [...] Disso se segue que um afeto está tanto mais em nosso poder e a mente sofre menos por conta dele quanto
melhor o conhecemos. [...] Sendo assim, portanto, entendemos porque, para ele, a potência não é a de uma vontade
livre, mas se identifica à potência da razão ou intelecto em realizar um império, que não é absoluto, mas que se efetiva
como moderatio, isto é, como poder (postestas) para moderar e arbitrar o conflito entre os afetos, através da fortaleza de
ânimo para refreá-los. E, com isso, compreendemos o sentido da sinonímia entre potência da razão e liberdade humana,
apresentada no título da Parte V” [MOREIRA, in Cadernos espinosanos, Nº XXII, Jan./Jun., 2010, p.151-154]. Esta
ideia também é claramente defendida por Marilena Chauí em seu ensaio Liberdade: nosso poder sobre os afetos,
alocado em seu recente livro Desejo, paixão e Ação na Ética de Espinosa [2011]: “em sua abertura, o De Libertate,
portanto, nos ensina que a mente internamente disposta separa um afeto de sua causa externa e o liga a outros
pensamento, encadeando-o segundo sua lógica e potência pensante; que ela forma de todos os afetos um conceito claro
e distinto […] Por seu turno [...] afirma que o efeito que segue da potência de pensar da mente é o poder [potestate] de
entender clara e distintamente os afetos, se não absolutamente, pelo menos em parte, e com isso padecer menos sob
eles” [CHAUÍ, 2011, p. 301-302].
192
Colchetes e observação nossos.
193
Idem.
194
Idem.
195
Idem.
196
Idem.
197
Idem.
119
das afecções ou imagens do seu corpo submetido à exterioridade. Não estando mais aqui em estado
de servidão, a mente, racionalmente ativa a partir de sua própria potência intrínseca de produção de
ideias, também permite ao corpo agir com maior potência necessária de produção de afecções ou
imagens intrínsecas. Nesse sentido e por meio da razão da mente, mental e corporalmente, o modo
humano finito passa a viver com maior intensidade a sua natureza interior necessária. Em
ressonância, há aqui a posse do homem racional sobre a sua própria constituição [mente/corpo].
Ademais, esta posse condiz analogamente a uma conquista humana, a saber, a conquista racional
de sua própria liberdade: “[...] é livre quem se conduz exclusivamente pela razão”
(EIVPLXVIIId.). O homem livre, por conseguinte, é então aquele que racionalmente deseja
continuar a compreender a si mesmo e a “agir, viver, conservar seu ser” interior [mental-corporal]
(EIVPLXVIId.). Para Spinoza, esse é o “retrato” do verdadeiro sábio, aquele cuja “sabedoria
consiste [...] na meditação” e manutenção do ser da “vida” interior (EIVPLXVIId.).
Ora, em uma sociedade, quando um homem encontra-se em tal estado [de sabedoria e
liberdade interior], ele não deixa de desejar aos outros homens que também sejam livres. Assim, ele
aspira que os outros homens racionalmente reconquistem para si as suas próprias vidas
[mentais/corporais] interiores. Spinoza trata desta maneira da constituição de uma associação dos
homens racionais, os quais devem estar apossados – na medida do possível – de suas necessárias
expressões [mentais-corporais] interiores. Portanto, a sociedade de que o filósofo trata aqui é a
sociedade dos homens que têm racionalmente o controle sobre suas próprias vidas, não estando, por
conseguinte, agrilhoados a qualquer tipo de objeto exterior, sejam supercícies institucionais [por
exemplo] ou não. Tem-se então aqui uma espécie de projeto político revolucionário: o de uma
sociedade dos homens racionalmente livres, em que “os homens livres são muito gratos uns para
com os outros” (EIVPLXXI).

Só os homens livres são muito úteis uns para com os outros e se unem entre si pelo
mais estreito laço de amizade [...], e se esforçam com a mesma intensidade de amor
por fazerem bem uns aos outros [...]. Por isso [...], só os homens livres são muito
gratos uns para com os outros (EIVPLXXId.).

Uma questão: o que é reiterado definitivamente aqui? O terceiro dos resultados citados no
início desse tópico. Este diz o seguinte: avaliando quais os tipos de ideias ou afetos
[alegria/desejo] que são produzidos adequadamente pela mente racional, Spinoza se põe a
prescrever que é possível à garantia dos homens poderem conviver melhor em sociedade, o que se
dá na medida em que se deixam estar livres para afirmarem suas naturezas intrínsecas [mentais-
corporais] comuns198.

198
É nesse escopo do homem livre sob certos limites sociais que Farias Brito [1957] admite: “a liberdade foi negada na
120
****

Após ter-se aqui realizado uma investigação acerca da imaginação humana e daquilo que
dela decorre – a servidão –, consegue-se apontar finalmente para a conclusão do problema
fundamental deste capítulo segundo. Afinal, o que pode a razão humana contra a servidão em
Spinoza? A resposta a este problema é dada ao longo da conjuntura do tópico final – Da força da
Razão ou a superação da Servidão humana na EIV e EV – deste capítulo, tópico o qual permite
aqui a realização da seguinte inferência sintética: a razão é o esforço [conatus] de produção ativa
de ideias mentais em si e por si e que, por meio de tal esforço, é possível a superação da servidão
da própria mente, servidão que é dada por causa dos afetos ou ideias passivas que a mente
imaginariamente produz a partir das imagens ou afecções corporais das coisas exteriores. Com
efeito, isso proporciona reflexivamente o alcance da liberdade do homem [mente-corpo] sob certos
limites. Ademais, cabe apontar que esta liberdade aqui definida ainda não é a verdadeira liberdade,
ou seja, não é uma liberdade suprema [Beatitude]. Por quê? Porque as laudas deste capítulo ainda
tratam de uma liberdade sob certos limites, os quais apontam para um modelo de homem livre que
ainda se foca estritamente na luta contra as paixões ou afetos passivos que fazem parte do contexto
social. Assim, é preciso investigar no capítulo que se segue o que é a liberdade spinoziana superior
ou a Beatitude?, isto é, aquela que está para além do próprio homem em sociedade, mas que, em
contrapartida, também pode ser conquistada por ele. Esse estudo será discorrido no próximo
capítulo.
****

metafísica, mas nos é imposta na filosofia moral como o primeiro dos deveres”. Ou seja, por mais que Spinoza esteja a
tratar da liberdade do homem nos perímetros da sociedade, ainda é preciso acreditar que tal liberdade é estrita de um
contexto social, sendo, desse modo, relativa e não-absoluta. Portanto, é realmente possível dizer que essa ainda não é “a
verdadeira liberdade e a única possível” [BRITO, 1957, p.237-238]. No mesmo itinerário, Lívio Teixeira [2010] – A
doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa – estranha o fato de ao fim da EIV
Spinoza constituir proposições acerca da liberdade do homem: “É estranho que um livro cujo título é “Da servidão
humana” termine por várias proposições cujo assunto é a liberdade, tanto mais que o livro seguinte trata exatamente da
“liberdade do homem” [...]. Parece claro que [...] Espinosa está definindo o homem livre somente em relação ao homem
que vive exclusivamente no plano do sensível e inteiramente dominado pelas paixões” em sociedade. Partindo desse
enunciado, o comentador radicaliza o fato de que a liberdade a qual está aqui em jogo não é a verdadeira liberdade,
sendo um equívoco se concluir com Spinoza que no contexto social o homem chega realmente à liberdade: “não existe
homem livre [em sociedade], a não ser exatamente no sentido de conhecer [...] as limitações de seu próprio ser dentro
da natureza. Parece, pois, certo que nestas últimas proposições da parte IV Espinosa fala só de uma liberdade relativa
[…], pois [...] o homem [...] no conhecimento não ultrapassou o plano da visão de seus próprios interesses” interiores a
cidade. É por isso que “o propósito de Espinosa” ao anunciar “as mais altas provas da liberdade [na EIV], a saber, a
moral, a virtude, a vida política e social e a religião [...] é o de mostrar como se pode ultrapassar esse plano para
alcançar a verdadeira liberdade [ontológica]. É esse o assunto da Parte V” [TEIXEIRA, 2001, p. 185-188]. Portanto, é
preciso ainda dizer com estes dois comentadores que até o fim da estrutura da EIV o empreendimento da verdadeira
liberdade – objetivo maior de Spinoza com a Ética – ainda não atinge o seu ponto culminante. Será preciso esperar pela
EV se se quiser compreender o que é a liberdade superior para Spinoza. Esse é um dos dois problemas fundamentais
inerentes ao capítulo final [3º] deste trabalho.
121
Capítulo 3
---
Ciência Intuitiva e Suprema Liberdade em Spinoza
---

O jovem afirmou que a geometria do cenário que avistara tinha algo de anormal,
de não euclidiano, que sugeria esferas e dimensões abjetas muito além das que conhecemos.
No diário, um marujo semianalfabeto registrara a mesma impressão ao contemplar a terrível realidade.

H.P. Lovecraft, O chamado de Cthulhu.

[...] o pensamento dito “liberdade” é livre como ato do pensamento.


É livre a tal ponto que ao próprio pensador esse pensamento parece sem autor.

Clarice Lispector, Água viva.

Este terceiro capítulo visa responder fundamentalmente a seguinte questão: o que é a


liberdade suprema para Spinoza? Contudo, a resolução desse problema não pode ser dada
subitamente, já que ela passa pela mediação de uma segunda questão e dos desdobramentos que se
seguem de sua resposta. Portanto, uma questão complementar é apresentada aqui: o que é a ciência
intuitiva para Spinoza?199 Sem mais tardar, o primeiro objetivo fundamental deste capítulo é
apresentado: anunciar a ciência intuitiva em Spinoza, demonstrando que ela é a adequada
compreensão humana de uma determinada ordem ontológica, a qual parte da essência da
substância e seus atributos pensamento e extensão para a essência dos modos [infinitos e finitos]
ou efeitos. Esta compreensão é a condição epistemológica para se chegar a um outro objetivo ainda
mais fundamental, elucidar uma liberdade suprema – ou ontológica - a qual pode ser conquistada
pelo homem a partir da ciência intuitiva spinoziana. Em tal itinerário, a exposição deste capítulo é
dada em certa sequência de resoluções de problemas complementares – [a.] ciência intuitiva; [b.]
liberdade – os quais visam apresentar progressivamente à liberdade suprema em Spinoza.
Para tanto, é necessária a interpretação metodológica ou a análise da estrutura das últimas
proposições – XXI a XLII – da EV200, já que é especificamente ao final dessa parte da obra que
Spinoza cumpre o seu programa mais fundamental, a saber, o programa “do caminho que conduz à
liberdade [...viâ, quae ad Libertatem ducit]” superior (EVPref.; SO2, p. 277).

199
Nos prefácio de A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa Lívio
Teixeira já diria que o problema do terceiro gênero do conhecimento [ou da intuição] é justamente aquele que precisa
ser solucionado para, por conseguinte, assegurar-se a liberdade superior [beatitude] do homem: do terceiro gênero de
conhecimento se segue o “elemento de libertação” [TEIXEIRA, 2001, p.13].
200
Para essa análise, sem dúvida, é também necessário o apoio de proposições de outras partes da Ética, tais como as
proposições da EII.
122
3.1. A ciência intuitiva spinoziana

O problema da ciência intuitiva [ou terceiro gênero de conhecimento modal] em Spinoza é


envolvido primeiramente por algo que se antecipa a ela. Este algo que se antecipa à ciência intuitiva
é aquilo que torna possível a sua efetuação – da ciência intuitiva – enquanto forma de
conhecimento. Afinal, o que é isto que se antecipa à ciência intuitiva e que simultaneamente se
torna o objeto ou a condição de sua efetuação? É explícito que para haver a ciência intuitiva é
necessária a existência anterior de uma ordem determinada, a qual anuncia de certa maneira como
os conceitos de substância, atributos e modos se encadeiam causal e logicamente. Conclui-se: a
ordem referida é uma ordem que, quando intuída adequadamente, apresenta às consciências
humanas a maneira pela qual o universo [modos ou efeitos] é constituído a partir de sua causa
eficiente [substância e seus atributos]. Se é assim, tem-se então uma ordem a qual é demarcada num
ponto de partida – a causa eficiente ou a substância e seus atributos [natureza naturante] – e naquilo
que se segue no interior deste ponto de partida – os modos infinitos imediatos, mediatos e os modos
finitos [natureza naturada] –. Então, aqui está o real objeto de intuição humana.
Contudo, há a pressa em dizer: não é apenas esta a condição da intuição! A intuição
spinoziana não pressupõe apenas uma ordem de encadeamento causal entre os conceitos de
substância, atributos e modos, mas pressupõe o intelecto infinito de Deus. Por quê? Porque,
segundo Spinoza, ao mesmo tempo é também necessária a presença existencial de um intelecto –
divino – o qual seja inerente a ordem em questão. Sem esse intelecto não é possível a ciência
intuitiva. Portanto, a ciência intuitiva spinoziana pressupõe uma dupla presença: [1.] a de uma
ordem sistêmica – da causa eficiente ou da essência da substância e seus atributos para a essência
daquilo que neles se segue [seus modos]201; [2]. a de um intelecto que é imanente a esta ordem, e

201
Esse apontamento coaduna com o que Delbos [2002] diz acerca do assunto. Para ele, o problema da intuição deve
pressupor o próprio sistema de Spinoza. É por isso que para tratar da intuição spinoziana “nunca se deve perder de vista
que esse pensamento se propôs antes de tudo a existir como sistema e que existiu como tal [...] É assim que ele
[Spinoza] racionalizará a intuição que está na origem de seu sistema, mas que como tal só teria o valor de uma
aspiração sentimental ou de uma lembrança mais ou menos fiel” ao sistema do autor [DELBOS, 2002, p.23 e 32].
Ademais, essa observação demarca o fim do todo do percurso dedutivo do pensamento de Spinoza, o qual tem seu
exórdio no Breve Tratado e o seu desfecho na Ética: “o Breve Tratado, elevando a intuição muito acima do raciocínio,
que é inadequado, assinalava-lhe Deus como objeto principal; o Tratado da emenda do intelecto faz da dedução um
procedimento ao mesmo tempo certo e adequado, e parece colocar sob o seu império todo o conhecimento dos seres
criados, tanto que a Ética introduzirá nitidamente a idéia de uma intuição imediata em Deus das essências eternas dos
seres particulares. Espinosa aqui se atém sobretudo em explicar como o verdadeiro conhecimento, indo da causa ao
efeito ou do princípio à consequência, deve sempre partir da existência de um Ser que seja causa e princípio de tudo, de
forma que da ideia deste ser derive com certeza todas as ideias que representam a ordem e o encadeamento da natureza
[...]” [DELBOS, 2002, p.106]. Vale ressaltar também o que Alcântara Nogueira em seu O método racionalista histórico
em Spinoza [1976] aponta acerca do assunto, a partir da afirmação de que a intuição spinoziana pressupõe um duplo
fundamento: “primeiro, o sentido naturalista, incompatível com toda e qualquer ideia de sobrenaturalidade, visando a
conceber o Universo como realidade identificada com Deus e dele inseparável, o que permite afirmar ser o panteísmo
spinoziano dotado de uma estrutura, cujos termos essenciais se explicam numa mesma equipolência; e segundo, a
compreensão dessa unidade ou o que dela decorre, através da valorização do entendimento, oferecendo à razão não
apenas a condição de elemento imprescindível, mas, igualmente, instrumento que permite considerar o intelecto como
123
que a compreende antecipadamente em um nível ontológico. Esses dois enunciados são justamente
a razão de ser da demonstração da EVPXXV, na qual Spinoza diz aos seus leitores o seguinte: “o
terceiro gênero de conhecimento [ciência intuitiva modal] procede da ideia adequada de certos
atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência da coisas” [modos], “[...] E quanto
mais compreendemos as coisas desta maneira, tanto mais [...] compreendemos a Deus”
(EVPXXVd.). Ou seja, há aqui uma ordem dada dos atributos da substância para os modos que
neles se seguem. E há também um intelecto ontológico que propicia a ciência intuitiva dessa ordem.
É então a partir da existência desses dois planos – a ordem em questão e o intelecto ontológico que
lhe é inerente – que é, com efeito, possível a ciência intuitiva modal. Assim, Spinoza conclui na
citação acima que a ciência intuitiva modal é aquilo que procede de um intelecto que compreende
adequadamente a ordem que parte da essência dos atributos da substância para a essência dos
modos que neles se seguem. Nesse sentido, antes mesmo de haver a resolução do que seja a ciência
intuitiva spinoziana é necessária uma dupla exposição, dada sob [a.] o itinerário da explicação da
ordem apresentada – da substância e seus atributos àquilo [modos] que neles se segue – e sob [b.] o
escopo do intelecto divino que intelige ontológica e adequadamente essa ordem.

3.1.1. a ordem de constituição do universo ou da substância e seus atributos aos seus modos
intrínsecos

Demarcar uma determinada ordem de encadeamento causal a partir dos conceitos de


substância, atributos e modos é o mesmo que explicitar como a máquina ontológico-sistemática de
Spinoza opera como substrato eficiente da vida que nele se segue. Ora, não se pode deixar de
apontar que fora exatamente esse o objeto principal do primeiro capítulo deste trabalho 202. Assim,
atualizar de maneira breve o objeto principal do primeiro capítulo ou o modus operandi do sistema
de Spinoza se faz aqui necessário, já que ele é o real ponto de partida para a investigação do
problema da ciência intuitiva [terceiro gênero de conhecimento].
O que significa elucidar primeiramente que a ordem causal de operação do sistema de
Spinoza é a ordem a qual parte da causa eficiente [a essência da substância com seus atributos
constituintes] para a essência dos seus modos? Significa apresentar aos leitores como da ação
eficiente que ocorre do e no interior do substrato do universo [a substância e seus atributos] o
próprio universo [modal] se segue essencial e existencialmente. É de se antever então que a ordem
em questão só pode ser anunciada às claras quando houver a correta compreensão da causa eficiente

expressão dinâmica [...]” [NOGUEIRA, 1976, p.47].


202
Cf. Cap. 1º deste presente trabalho - O problema dos eixos substância, atributos e modos ou da consistência da
ontologia de Spinoza -.
124
[a substância e seus atributos] do universo e dos efeitos [modos, universo ou natureza naturada]
que se seguem necessariamente nesta causa: “de uma causa dada e determinada segue-se
necessariamente um efeito” (EIAx.III).
a. A causa eficiente do universo – em acordo com o capítulo primeiro, a causa eficiente do
universo é a própria substância ou Deus. Para Spinoza, esta causa é a substância divina a qual é
constituída por infinitos atributos, ou, nas palavras do pensador, é a “substância que consiste de
infinitos atributos” (EIdef.VI). E qual o sentido de se dizer que esta causa consiste ou é constituída
de infinitos atributos? Que internamente a realidade desta causa eficiente é totalmente preenchida
pelos atributos: qualidades ou essências formais. Ora, dizer que a causa eficiente ou a substância
divina é constituída internamente por infinitas essências formais [atributos] é o mesmo que apontar
para o fato de que o conjunto dessas essências é a própria essência da substância. Deus ou a
substância é então a unidade essencial que é constituída pelas múltiplas essências atributivas as
quais lhe são intrínsecas. Nesse sentido, o Uno – Deus – e o Múltiplo – atributos – na ontologia
spinoziana são duas “facetas” homólogas que concernem à estrutura primeira de uma mesma
realidade ou da causa primeira de todas as coisas: “como consequência, nada é igualmente mais
claro do que o fato de que o ente absolutamente infinito [Deus] 203 deve ser definido (como na
definição 6) como o ente que consta de infinitos atributos [...]” (EIPXs.). Ademais, esses atributos
são essências formais as quais não só constituem a estrutura interna de Deus, pois também a
exprimem. Certamente os atributos exprimem Deus ou a substância da qual são constituintes, o que
se dá por meio de suas próprias essências formais em atividade. Por conseguinte, é também possível
inferir que na medida em que os atributos de Deus o exprimem às suas maneiras, o próprio Deus se
exprime por meio deles, estando, neste sentido, diretamente implicado neles. Portanto, Deus se
exprime por meio dos atributos que lhe são internos, já que os próprios atributos o exprimem de/em
suas infinitas formas essenciais. Mas não é só isso. À medida que os atributos exprimem o Deus que
neles se exprime, a própria essência de Deus é, concomitantemente, exprimida204 em sua totalidade:

203
Colchetes e observação nossos.
204
É a isto que Deleuze intitula em seu primeiro capítulo [Distintion numerique et distintion reele] de Spinoza et le
problem de l'expression [1969] de a “tríade ontológica da expressão”: “L'expression se présente comme une triade.
Nous devons distinguer la substance, les attributs, l'essence. La substance s'exprime, les attributs sont expressions,
l'essence est exprimée. [...] L'originalité du concept d'expression se manifeste ici: l'essence, en tant qu'elle existe,
n'existe pas hor de l'attribut qui l'exprime; mais, em tant qu'elle est essence, elle ne se rapporte qu'à la substance. Une
essence est exprimée par chaque attribut mais comme essence de la substance alle-mêmme. Les essences infinies se
distinguent dans les attributs où elles, existent, mais s'identifient dans la substance à laquelle elles se rapportent. Nous
retrouverons toujours la nécessité de distinguier trois termes: la substance que s'exprime, l'attribut que l'exprime,
l'essence que est exprimée” / “A expressão se apresenta como uma tríade. Devemos distinguir a substância, os atributos,
a essência. A substância se exprime, os atributos são expressões, a essência é exprimida [...] A originalidade do conceito
de expressão se manifesta assim: a essência, enquanto ela existe, não existe fora do atributo que a exprime: mas,
enquanto é essência, só está ligada à substância. Uma essência é exprimida através de cada atributo, porém, como
essência da própria substância. As essências infinitas se distinguem nos atributos nos quais elas existem, mas se
identificam na substância à qual estão ligadas. Encontraremos sempre a necessidade de distinguir três termos: a
substância que se exprime, o atributo que a exprime, a essência que é exprimida” [DELEUZE, 1969, p.21. Tradução
125
a essência divina é exprimida em sua totalidade, ou seja, é o “somatório” das múltiplas expressões
dos atributos internos a Deus [aquele que nos atributos se exprime e que, por isso, neles está
envolvido]. É então por isso que, em Spinoza, O Uno ou a essência de Deus é constituída como um
conjunto de múltiplas essências formais [atributos] expressivas. Conclui-se: na medida em que
existem múltiplas expressões atributivas as quais são internas a Deus há, consequentemente, a
expressão da unidade ou da totalidade essencial do próprio Deus. É precisamente nesse sentido que
Deus é causa de si mesmo, já que sua ação expressiva parte apenas de sua múltipla estrutura interna,
e não de elementos exteriores os quais poderiam constrangê-lo: “Deus age exclusivamente pelas leis
de sua natureza e sem ser coagido por ninguém” (EIPXVII), sendo, portanto, “causa livre”
(EIPXVIIcII).
b. Modos infinitos e finitos ou os efeitos da causa eficiente divina – O que advém dessa
lógica da expressão em Spinoza, o que dela e nela se segue? Para responder a isto é necessário
apontar primeiramente que a lógica expressiva da causa eficiente [Deus] não está apenas implicada
nela mesma ou em seus atributos. Com Spinoza, é também preciso demarcar algo que deriva dessa
lógica, ou, nas palavras do filósofo, algo que se segue dessa e nessa lógica “expressiva”. Nesse
sentido, ao mesmo tempo em que há no spinozismo uma lógica expressiva em si e por si – estrita da
causa eficiente e de seus atributos internos –, há também uma derivação necessária, ou melhor, uma
produção de efeitos dessa lógica expressiva: “de uma causa determinada segue-se necessariamente
um efeito; e, inversamente, se não existe nenhuma causa determinada, é impossível que se siga um
efeito” (EIAx.III). É a esses efeitos que o pensador intitula de modos infinitos e finitos, “aquilo que
existe em outra coisa [substância e seus atributos]205, por meio da qual também é concebido”
(EIDef.V.).
Sem demora, surge aqui a importante questão: como os modos surgem enquanto efeitos da
expressão da causa eficiente? Pode se responder da seguinte forma: os modos se seguem enquanto
efeitos necessários da causa eficiente à medida que a unidade essencial desta causa eficiente
[substância ou Deus] é exprimida pela multiplicidade dos seus atributos. Portanto, ao ter a sua
essência exprimida por meio de seus atributos intrínsecos, a causa eficiente faz seguir efeitos, isto é,
modos infinitos e finitos. Ademais, dos efeitos ou modos em questão nem todos se seguem da
mesma maneira da e na causa eficiente que é a eles imanente: alguns deles se seguem
imediatamente [modos infinitos imediatos] (EIPXXI); alguns se seguem mediatamente [modos
infinitos mediatos] (EIPXXII); e outros se seguem de maneira determinada [modos finitos]
(EIPXXVIIId.). Assim, é necessário fazer aqui a distinção entre esses três tipos de efeitos ou
modos, já que cada um deles se segue distintamente da causa eficiente.

para a versão brasileira - a qual se encontra no prelo - de Luiz B.L.Orlandi].


205
Observação e grifo nossos.
126
b.1. Modos infinitos imediatos – Conforme foi dito no primeiro capítulo deste trabalho 206, os
modos infinitos imediatos são efeitos ou leis que se seguem imediatamente dos e nos atributos de
Deus ou da causa eficiente. E qual a importância da terminologia infinito imediato na demarcação
das propriedades de um dos modos que se segue da expressão dos atributos da causa eficiente ou
Deus? Para Spinoza, dizer que alguns dos modos citados são infinitos imediatos é o mesmo que
adjetivar esses modos como aquilo que se segue “o mais rapidamente possível” dos e nos atributos
de Deus. Ora, apontar que os modos infinitos imediatos são aquilo que se segue o mais rápida ou
imediatamente possível dos/nos atributos de Deus é o mesmo que reservar a eles propriedades
equivalentes a dos atributos, tais como eternidade e infinitude. Portanto, tanto quanto os atributos
divinos dos quais seguem, os modos infinitos imediatos são eternos e infinitos, já que “tudo o que
se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus deve ter sempre existido e ser infinito, ou
seja, é, por via deste atributo, eterno e infinito” (EIPXXI). Nesse sentido, todos os modos infinitos
imediatos são aquilo que se segue imediatamente da expressão dos atributos de Deus, sendo, por
conseguinte e tanto quanto eles, eternos e infinitos. E desses modos infinitos imediatos, quais deles
se seguem das/nas especificidades dos atributos extensão e pensamento? Respectivamente, a lei do
movimento e a lei do entendimento ou da ideia. Assim, a extensão atributiva de Deus é de antemão
absolutamente eterna e infinita, exprimindo posterior e imediatamente em si uma lei de movimento
infinito, lei que também é eterna e infinita; o pensamento, que também é eterno e infinito, faz
insurgir em si por meio de sua expressão divina a lei da ideia ou do entendimento infinito, a qual
também possui infinitude e eternidade. Portanto, os modos infinitos imediatos referenciados
[movimento e entendimento] não são propriamente os atributos pensamento e extensão da
substância, mas são leis expressivas internas aos atributos e que deles se seguem. Ademais, essas
leis expressivas dos e nos atributos são as próprias leis do universo [natureza naturada], sendo,
também e por conseguinte, aquilo por meio de que os atributos constituem imediatamente o
universo que neles se encontra.
b.2. Modos infinitos mediatos – Mas o universo para Spinoza não pode subsistir no interior
dos atributos pensamento e extensão apenas sob forma de leis estáticas ou modos infinitos
imediatos do entendimento e do movimento. E por quê? Porque caso o universo seja apenas
constituído por leis estáticas de entendimento e de movimento ele não terá vida, ou melhor,
mudança. Portanto, ao demarcar leis estáticas ou modos infinitos imediatos de um universo
expresso pelos atributos, Spinoza não deixa de vislumbrar em paralelo a necessidade da presença de
uma modificação infinita dessas leis. Esta modificação infinita é intitulada pelo autor de modo
infinito mediato: “Tudo o que se segue de algum atributo de Deus, enquanto este atributo é

206
Tópico 1.3.1. Modos infinitos imediatos ou a estaticidade do universo
127
modificado por uma modificação tal que, por meio desse atributo, existe necessariamente e é
infinita, deve também existir necessariamente e ser infinito” (EIPXXII). Portanto, além das leis
necessárias do universo que se seguem imediata e absolutamente dos/nos atributos de Deus,
insurge, também dos/nos atributos de Deus, uma única e mesma modificação infinita – modos
infinitos mediatos – em todos os modos infinitos imediatos. Nesse sentido, as leis universais de
entendimento [do/no atributo pensamento de Deus] e de movimento [do/no atributo extensão de
Deus], tanto quanto todos os outros modos infinitos imediatos ou leis dos/nos atributos
desconhecidos pela percepção humana, “sofrem” de uma modificação infinita, de um “fluxo vivo
eterno”. Aqui, tem-se então a real paisagem spinoziana do universo eterno (EIPXXIXs.), o qual se
segue como efeito dos/nos atributos expressivos da causa eficiente [Deus/substância]. Ademais, tal
paisagem só pode ser percebida pelo homem por meio dos atributos pensamento e extensão, os
quais “imprimem” em si mesmos uma modificação infinita da lei do entendimento, ideia, ou
intelecto [no pensamento] e uma modificação infinita de movimento [na extensão].
b.3. Modos finitos – Tendo em vista tal paisagem, cabe indagar: e os modos finitos, como
eles se seguem dos/nos atributos da causa eficiente? Para responder a isso é preciso anunciar sem
titubear que os modos finitos em Spinoza devem ser entendidos sob dois pontos de vista: [1.] o da
essência que lhes é interior e a priori eterna; [2.] o da existência finita a qual advém da
exterioridade. No que se refere ao item 1. ou da essência dos modos finitos se deve dizer o
seguinte: essencial ou interiormente os modos finitos são semelhantes à paisagem do universo a
qual está demarcada no parágrafo anterior. O que isto significa? Que interna ou essencialmente os
modos finitos são força de modificação de ideias ou entendimento [mente] e força de modificação
de movimentos [corpo], ambos intrínsecos aos atributos pensamento e extensão da substância. Ser
modificação de ideias é algo homólogo à lei do intelecto infinito em modificação infinita, algo que
é eterno e que se segue internamente ao atributo pensamento da causa eficiente ou Deus; ser
modificação de movimento é algo homólogo à lei do movimento em modificação infinita, algo que
é eterno e que se segue internamente ao atributo extensão da causa eficiente ou Deus. Assim, é
possível afirmar aqui que a essência dos modos finitos está dada a priori, antes mesmo de eles
passarem à existência finita. E por quê? Porque a essência dos modos finitos é, antes mesmo de
suas existências finitas, intrínseca ao nível ontológico eterno e infinito dos modos infinitos
imediatos e mediatos os quais se seguem dos/nos atributos pensamento e extensão de Deus.
Ademais, com Spinoza deve-se também inferir que a essência dos modos finitos não pertence a
priori a eles de direito, já que ela está para além da existência finita a qual é típica desses modos,
sendo, portanto e ao contrário deles, eterna207. Portanto, tratar da essência ou da interioridade

207
É mesmo como Deleuze [1969] diz: “Mais 1'essence en elle-même a une réalité ou une existence éternelle; elle n'a
pas de durée, ni de temps qui marque l'achèvement de cette durée (aucune essence ne peut en détruire une autre).
128
estrutural dos modos finitos é percebê-la não como aquilo que lhes pertence primeiramente, mas
como aquilo que é imanente a um plano ontológico anterior [modificação infinita de entendimento
do/no atributo pensamento; modificação infinita de movimento do/no atributo extensão], o qual
contém em si os próprios modos finitos. Por conseguinte, cabe ainda apontar que quando a essência
eterna em questão se segue na existência determinada de um modo finito ela não perdura para
sempre neste modo. Conclui-se: o modo finito nunca pode viver para sempre a eternidade da
essência que lhe é intrínseca [modificação ou produção de ideias - mente -/ modificação ou
produção de movimentos – corpo –], pois sua existência é finita.
E o que afinal faz com um modo ter a sua existência determinada pela finitude? A resposta
pode ser dada com o auxílio do item 2. [da existência finita a qual advém da exterioridade] acima
anunciado. Para Spinoza, são justamente outros modos finitos que dão existência finita a um
determinado modo. É isto o que é enfatizado na EIPXXVIII.

Nenhuma coisa singular, ou seja, nenhuma coisa que é finita e tem uma existência
determinada208, pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja
determinada a existir e a operar por outra causa que também é finita e tem uma
existência determinada; por sua vez, essa última causa tampouco pode existir nem
ser determinada a operar a não ser por outra, a qual também é finita e tem uma
existência determinada, e assim por diante, até o infinito (EIPXXVIII).

Assim, a essência do modo finito é a priori produção ou modificação de ideias [mente] e


produção ou modificação de movimentos [corpo], anteriormente imanente as leis de um plano
ontológico – dos/nos atributos pensamento/extensão. Todavia e ao contrário da essência, a finita
existência do homem não é determinada nem pela causa eficiente [substância e seus atributos], nem
pela essência dos modos infinitos [imediatos e mediatos] e nem pela essência dos próprios homens,
já que todos esses elementos ontológicos são infinitos e eternos. E por que a existência finita do
homem não pode ser determinada por meio desses elementos? Ora, porque nada que se siga desses
elementos pode ser finito, pois é impossível que da infinitude e da eternidade deles insurja algo
finito. Com efeito, “[...] a duração [finita da existência de determinado homem] 209 não pode ser
determinada pela própria natureza [da essência]210 da coisa existente [homem] 211, nem tampouco

Spinoza dit exactement que l'essence est conçue <<avec une certaine nécessité éternelle>>” / “A essência nela mesma,
porém, tem uma realidade ou uma existência eterna; ela não tem duração, nem tempo que marque o término dessa
duração (nenhuma essência pode destruir uma outra). Espinosa diz exatamente que a essência é concebida << com uma
certa necessidade eterna>>.” [DELEUZE, 1969, p.291. Tradução para a versão brasileira - a qual se encontra no prelo -
de Luiz B.L.Orlandi].
208
Grifo nosso.
209
Colchetes e observação nossos.
210
Idem.
211
Idem.
129
pela causa eficiente [substância e atributos]212, a qual [...] necessariamente põe” a essência “da coisa
[homem] 213, mas não a retira” (EIIDef.V.explic.). Portanto, deve-se dizer de uma forma diferente
que a finitude da existência do homem é uma espécie de “tangente a qual é traçada de fora nas
bordas” da ontologia spinoziana. Conclui-se: a causa da finitude da existência de um homem são
as existências finitas [e não as essências] de outros homens. É assim que aqui é possível apontar
para o fato de que os modos finitos nunca experimentam eternamente a sua essência intrínseca
eterna, já que têm existência – determinada por causas exteriores finitas – relativamente curta.
A distinção entre a essência e a existência dos modos finitos está muito bem demarcada no
Tratado da reforma da inteligência, aonde Spinoza diz que:

“[...] as essências das coisas singulares mutáveis não são dedutíveis da série
destas, ou seja da sua ordem de existência; visto que esta [ordem de existência]214
nada nos oferece além de denominações extrínsecas, relações, ou no máximo
circunstâncias, e tudo isto está bem longe da essência íntima das coisas. Esta [a
essência]215, em verdade, deve ser procurada somente nas coisas fixas e eternas e
também nas leis inscritas nessas coisas, como em seus verdadeiros códigos, leis
segundos as quais todas as coisas singulares se fazem e se ordenam; [...] Pelo que
estas coisas fixas e eternas, ainda que sejam singulares, entretanto em vista de sua
presença em toda parte e de sua larguíssima potência serão para nós como que
universais, isto é, como que gêneros das definições das coisas singulares mutáveis
e causas próximas de todas as coisas” (TIE, §101)216.

Nesse itinerário, é também possível concluir que ao longo da vida de um modo finito há uma
contínua tensão relacional entre a sua essência interior [modificação infinita de ideias e modificação
infinita de movimento a priori eternas] e a sua existência finita. Tal tensão intrínseca aos modos
finitos é exatamente aquilo que demarca os seus conatus. Para Spinoza, quanto mais um modo
finito vive a partir da essência [mental-corporal] ontológica que lhe é intrínseca, mais esta essência
persevera [esforça-se] na existência finita deste modo. Por conseguinte, a existência finita deste
modo torna-se mais elástica, mais prolongada, ou, nas palavras do pensador, mais indeterminada217:
“portanto, o esforço pelo qual uma coisa [essencialmente] 218 existe não envolve, de maneira
alguma, um tempo definido, mas, pelo contrário, ela continuará, em virtude da mesma potência

212
Idem.
213
Idem.
214
Idem.
215
Idem.
216
No original: “siquidem rerum singularium mutabilium essentiae non sunt depromendae ab earum serie, sive ordine
existendi; cùm hic nihil aliud nobis praebeat praeter denominationes extrinsecas, relationes, aut ad summum
circumstantias; quae omnia longè absunt ab intimâ essentiâ rerum. Haec verò tantùm est petenda à fixis, atque aeternis
rebus, II, 037 & simul à legibus in iis rebus, tanquam in suis veris codicibus, inscriptis, secundùm quas omnia
singularia, & fiunt, & ordinantur; [...] Unde haec fixa, & aeterna, quamvis sint singularia, tamen ob eorum ubique
praesentiam, ac latissimam potentiam erunt nobis, tanquam universalia, sive genera definitionum rerum singularium
mutabilium, & causae proximae omnium rerum” [Tractatus intellectus emendatione, SO2, p. 36-37].
217
Cf. EIIIPVIIId.
218
Colchetes e grifo nossos.
130
[essencial] 219 pela qual ela existe agora, a existir indefinidamente, desde que [...] não seja destruída
por nenhuma causa exterior” (EIIIPVIIId.). Neste caso, o modo finito “luta” como que contra seu
“curto prazo de existência”, o que se dá por meio da potência de sua essência [força de afirmação
de ideias – mente – e força de afirmação de movimentos – corpo –] interior. E, quanto mais um
modo finito age desta maneira, mais sua existência finita se prolonga e menos ele é constrangido
por causas exteriores, as quais poderiam levá-lo a se exaurir ou perder por definitivo a posse formal
de sua essência. Inversamente, quanto menos o modo finito vive por meio da essência [mental-
corporal] que lhe é intrínseca, menos esta essência persevera na existência [conatus] deste modo
finito. Aqui, percebe-se então que a existência finita de um determinado modo finito passa a ser
ainda mais curta, já que aqui ele é dependente das causas exteriores. Conclui-se: é isso que faz com
que a essência eterna [força de afirmação de ideias – mente – e força de afirmação de movimentos –
corpo –] no interior deste modo finito persevere menos na existência finita [conatus] dele. Assim,
quanto menos o modo finito vive por meio da essência a ele interna, menos esta essência persevera
na existência finita deste modo, o que o leva, concomitantemente, a sua destruição.
Toda essa breve exposição acerca da essência da causa eficiente [substância e atributos] e
daquilo que nela se segue [modos infinitos e finitos] essencialmente anuncia algo de relevante
importância para este tópico: a ordem de operação ou de constituição do universo. Esta ordem é
justamente aquela por meio da qual se anuncia o sistema spinoziano em funcionamento. Tal ordem
tem o seu ponto de partida na essência da substância e nos atributos que a exprimem num plano
ontológico primeiro [natureza naturante]; Deste e neste ponto de partida expressivo se seguem
necessariamente a essência de três modos, qualificados como infinitos imediatos, mediatos e finitos
[natureza naturada]. Em exemplo, cita-se aqui o caso dos atributos pensamento e extensão da
substância: ao exprimirem a essência substância, os atributos pensamento e extensão fazem também
seguir imediatamente deles e neles leis do entendimento e leis de movimento, ambas estáticas
[modos infinitos imediatos]. Essas leis são modificadas por uma única e mesma modificação
infinita [modos infinitos mediatos], a qual também se segue dos/nos atributos pensamento e
extensão da substância. O resultado disso é a presença de uma modificação intelectiva infinita que
se segue no interior do atributo pensamento e de uma modificação infinita de movimento que se
segue no interior do atributo extensão. Ademais, essas modificações infinitas de intelecto e de
movimento são explicitamente a própria essência ou a interioridade dos modos finitos
[mente/corpo], essência a qual, todavia, não pertence a priori a esses modos de direito. Por
conseguinte, essa essência que é interna aos modos em questão não pode neles perdurar para
sempre, tendo em vista que suas existências são finitas – determinadas pela finitude existencial de

219
Idem.
131
outros modos finitos –. Então, formula-se aqui o primeiro pressuposto basilar [a verdadeira ordem
de constituição do universo] da solução do problema da ciência intuitiva ou do terceiro gênero do
conhecimento em Spinoza. Resta agora abordar sob o mesmo escopo e da maneira mais clara
possível o segundo dos pressupostos para a resolução do problema da ciência intuitiva spinoziana, a
saber, o intelecto divino ou a compreensão ontológica da verdadeira ordem de constituição do
universo.

3.1.2. o intelecto divino ou a percepção ontológica da verdadeira ordem de constituição do


universo

Vislumbrando a questão da ciência intuitiva e de sua solução subsequente, Spinoza observa


de antemão que é necessária não só a presença da ordem sistêmica a qual parte da essência da
substância e seus atributos para a essência dos modos. Segundo o pensador, antes de se solucionar
o problema da ciência intuitiva, é também imprescindível a existência antecipada de uma intelecção
que seja capaz de compreender adequadamente a ordem acima discriminada. Todavia, é preciso se
antever neste exórdio o seguinte: tal intelecção não é uma intelecção humana, mas uma intelecção
ontológica denominada por Spinoza de intelecto divino ou a ideia de Deus. Portanto, é no presente
tópico que se realiza a investigação acerca desse intelecto divino, o qual é imanente à ordem que
parte da essência da causa [substância/atributos] para a essência dos seus efeitos intrínsecos [modos
infinitos e finitos].
Certamente, o intelecto divino ou a ideia de Deus aqui referenciada é o intelecto ou a ideia
divina em regime de modificação infinita. O que isto significa? Que este intelecto divino é uma lei
de entendimento [modo infinito imediato] em devir infinito [modo infinito mediato]. Discriminar
esse processo de modificação infinita de um determinado intelecto não é anunciar algo que ocorre
no nada. De outra forma, o processo aqui em jogo é a modificação infinita de um intelecto o qual se
segue do e no interior do atributo pensamento de Deus. Ora, é justamente nesse sentido que
Spinoza se autoriza a dizer que o intelecto posto em questão é o próprio intelecto divino, já que ele
ontologicamente atua processual ou expressivamente no pensamento de Deus220.
Contudo, como já se pode antever, tal intelecto - o qual é interior ao atributo pensamento de
Deus - não é aquilo que simplesmente existe simplesmente de forma inativa ou sem força
expressiva no “esconderijo” de sua imaterialidade espiritual. De outro modo, demarcar um intelecto
divino em modificação infinita no pensamento de Deus é anunciar a sua potência invisível, dada no

220
Delbos em O espinosismo diz que a noção de intelecto divino em Spinoza advém de um certo aristotelismo:
“segundo Aristóteles, com efeito, é o intelecto puro, separado dos sentidos e de toda matéria, essencialmente em ato que
é eterno [...]” [DELBOS, 2002, p. 163].
132
próprio âmbito da imaterialidade a qual lhe é própria. Afinal, do que é então capaz esse intelecto
divino? [A]: ele é capaz de produzir infinitamente ideias. O intelecto divino é potência infinita de
modificação de ideias, ou melhor, é potência infinita de produção de ideias. Há aqui então a
homologia entre modificação de ideias e produção infinita de ideias, as quais anunciam de maneira
equivalente a potência intrínseca do intelecto divino; [B]: o intelecto infinito é capaz de, refletindo
suas ideias sobre si mesmo, compreender a sua própria natureza intrínseca, que é ser produção ou
expressão infinita de ideias. Ademais, o intelecto divino é capaz não só de compreender a si mesmo,
pois também tem a potência para conscientemente perceber a natureza do atributo no qual está
contido. Assim, o intelecto divino é produção de ideias as quais permitem ao próprio intelecto
divino inteligir a si mesmo e a causa imanente que lhe dá sustentação: o atributo pensamento. Em
outras palavras, não há como deixar de se observar que o intelecto divino [natureza naturada] é
capaz [por meio de um movimento reflexivo sobre si mesmo] não só de compreender a sua essência
– um efeito que se segue no atributo pensamento –, mas também é capaz de ter a consciência da
causa genética de sua essência, a saber, a natureza do atributo pensamento. Ora, aqui parece haver
um movimento de retorno ou de regressão, no qual o próprio intelecto divino não pode inteligir
inteiramente a si mesmo sem a percepção consequente de sua causa imanente. É nesse sentido que
Spinoza anuncia que:

o ser formal das ideias [o intelecto divino] 221 é um modo de pensar [...], isto é [...],
um modo que exprime de uma maneira definida a natureza de Deus enquanto
[Deus é]222 coisa pensante. Não envolve, portanto [...], o conceito de nenhum outro
atributo de Deus, e, consequentemente [...], não é efeito223 de nenhum outro
atributo que não o do pensamento. Portanto, o ser formal das ideias reconhece Deus
como a sua causa, enquanto [Deus é] 224 considerado exclusivamente como coisa
pensante [res cogitans] (EIIPVd.; SO2, p. 88).

Este enunciado spinoziano é de grande profundidade, já que aqui não se trata de qualquer
intelecto. De outro modo, trata-se aqui do intelecto de Deus ou da substância, ou seja, do intelecto
que compreende ontologicamente sua própria essência e aquilo que a põe em existência; [C] tendo
em vista que o intelecto divino tem a potência para autocompreender a sua essência e a existência
do atributo que o põe em existência, deve-se concluir sem mais tardar que o próprio intelecto divino
tem a potência de compreender, no mínimo, uma das essências de Deus mesmo: o próprio atributo
pensamento. De outro modo, deve-se corretamente inferir que é justamente por meio do seu próprio
intelecto [efeito do/no atributo pensamento] que Deus tem como inteligir uma das suas essências
constituintes: o pensamento. Ora, segundo Spinoza, se Deus é capaz de inteligir por meio de seu
221
Colchetes e observação nossos.
222
Idem.
223
Grifo nosso.
224
Colchetes e observação nossos.
133
intelecto uma de suas essências atributivas – o pensamento -, Ele, logicamente, também é capaz de
inteligir todos os outros atributos que lhe são internos, isto é, que constituem a sua essência
primeira [natureza naturante]. Portanto, o intelecto de Deus é capaz de inteligir a totalidade da
essência de Deus mesmo, a saber, todos os seus atributos. Nesse sentido, o intelecto de Deus não só
compreende o pensamento, mas também a extensão e quaisquer outros atributos que estejam para
além da compreensão dos homens. É por isso que “por atributo compreendo aquilo que, de uma
substância, o intelecto [da substância ou Deus]225 percebe como constituindo sua essência” 226. Em
tal itinerário, ao ter a natureza dos outros atributos como seus objetos de compreensão, o intelecto
divino passa a representá-los sob forma de ideias, seja a extensão ou qualquer outro atributo; [D]
ademais, se o intelecto divino tem toda essa potência de compreensão, isto quer dizer que ele
também tem a capacidade de inteligir sob forma de ideias não só a si mesmo, o atributo pensamento
[no qual está contido] e os outros atributos. Ou seja, ele é também capaz de inteligir aquilo que se
segue dos/nos atributos, a saber, todos os modos [infinitos imediatos, mediatos e finitos]. Como foi
dito conclusivamente no final do penúltimo tópico227 do segundo capítulo: Deus ou a substância
tem um entendimento total acerca de si mesmo, tanto no que se refere a sua Natureza naturante
[atributos] quanto no que se refere àquilo que se segue desta Natureza naturante: a sua natureza
naturada [modos infinitos imediatos, mediatos e finitos]. Conclusão: “Deus, com efeito [...], pode
pensar infinitas coisas, de infinitas maneiras [infinitis modis cogitare], ou, o que é o mesmo [...], ele
pode formar uma ideia de sua essência e de tudo o que necessariamente dela se segue” (EIIPIIId.;
SO2, p.87). Aqui, é mais do que explícito que no spinozismo há realmente uma intelecção divina a
qual é imanente aos seus principais elementos ontológicos constituintes. Mas isto ainda não é
suficiente; [E]. o intelecto de Deus, em realidade, não é apenas aquilo que o faz [Deus] perceber
isoladamente sua essência [natureza naturante] e os seus efeitos [natureza naturada]. Esse intelecto
é também aquilo que torna o próprio Deus capaz de entender a adequada ordem de operação na
qual Ele mesmo atua. Disso se extrai uma tripla conclusão: [1.] Deus age operacionalmente como
causa eficiente de si mesmo [autoprodução de si, no escopo primeiro dos atributos que lhe são
internos] e, em seguida, como causa eficiente da essência de seus efeitos [modos os quais se
seguem dos/nos atributos]; [2.] paralela e simultaneamente, Deus compreende [por meio de sua
intelecção] a própria ordem de ação operacional que lhe é interna, o que se dá ao perceber
conscientemente que age primeira e eficientemente produzindo a si mesmo [Deus e atributos] e, em
seguida, produzindo os efeitos [modos] que nele estão contidos; [3.] ademais, esta compreensão
divina é homóloga à percepção ontológica de como Deus constitui o universo em determinada

225
Colchetes, observação e grifo nossos.
226
EIDef.IV.
227
Cf. Tópico 2.4. ou A Razão ou o segundo gênero de conhecimento na EII.
134
ordem, a qual parte de Deus mesmo [ou da causa eficiente] para o próprio universo [efeito modal]
que nele persevera.

[...] A natureza divina tem, absolutamente, infinitos atributos (pela def.6), cada um
dos quais também exprime uma essência infinita em seu gênero, de sua necessidade
devem se seguir necessariamente, portanto, infinitas coisas, de infinitas maneiras
(isto é, tudo o que pode ser abrangido sob um intelecto infinito)228 (EIPXVId.).
[...] Segue-se disso que a potência de pensar de Deus [Dei cogitandi potentia] é
igual [ipsius] à sua potência atual de agir [actuali agendi potentiae]. Isto é, tudo o
que se segue, formalmente, da natureza infinita de Deus segue-se, objetivamente
[no nível do intelecto divino]229 em Deus, na mesma ordem e segundo a conexão,
da ideia de Deus (EIIPVIIc.; SO2, p. 89)230.

Aqui, está montada, portanto, a totalidade do pressuposto basilar para a solução do problema
da ciência intuitiva.

3.1.3. o retorno ao problema da ciência intuitiva.

Precisamente, o problema da ciência intuitiva ou do terceiro gênero de conhecimento em


Spinoza é totalmente dependente de uma das três últimas conclusões anunciadas no final do tópico
anterior. Portanto, a ciência intuitiva é dependente da presença antecipada de um Deus que
compreenda [por meio de sua intelecção] a própria ordem de ação operacional que lhe é interna, o
que se dá ao perceber conscientemente que age primeira e eficientemente produzindo a si mesmo
[Deus e atributos] e, em seguida, produzindo os efeitos [modos] que nele estão contidos. Afinal,
como definir a ciência intuitiva spinoziana a partir desta pressuposição? É justamente essa
investigação que será empreendida adiante.
Logo de início, deve-se acreditar com Spinoza que a ciência intuitiva é a consciência
humana [ou do modo finito] acerca da inteligibilidade divina acima discriminada. A ciência
intuitiva é então a consciência humana de que a intelecção divina é capaz de compreender
adequadamente a ordem das operações internas de Deus mesmo: ordem a qual parte da própria
essência de Deus e seus atributos para aquilo que deles e neles segue [os modos infinitos e finitos].
Em outras palavras, a ciência intuitiva ocorre à medida que o homem tem a percepção de que Deus
compreende a sua própria ordem de ação eficiente - ordem a qual parte da essência de Deus mesmo

228
Grifo nosso.
229
Colchetes e observação nossos.
230
Em Imanência e amor na filosofia de Espinosa [2008] José Ezcurdia faz uma excelente exposição acerca do intelecto
infinito de Deus. Segundo o comentador, vale a pena ressaltar que “Deus se determinada como absoluto poder de
pensar, na medida em que seu intelecto infinito condensa a forma de infinitos atributos que manifestam sua essência
dinâmica”. Com efeito, “Espinosa, além de conceber Deus como força absoluta de existir, vê também nele uma potência
absoluta de pensar [...] Existência e pensamento são como momentos de um Deus que é causa de si [...]” [EZCURDIA,
in cadernos espinosanos, 2008, p.21-22].
135
para essência dos modos produzidos por ele -.
Ademais, deve-se imediatamente enfatizar que ao longo do processo de intuição o homem
não é um espectador passivo do intelecto do Deus - o qual capta conscientemente de si a sua
adequada forma de agir -. De outro modo, o homem é capaz de intuição porque a sua mente é
essencialmente parte da intelecção divina: modo infinito imediato do entendimento em modificação
infinita - modo infinito mediato -, o que se segue no atributo pensamento de Deus. Mais
precisamente: a mente de um modo finito humano é a própria intelecção divina em atividade
[potência de produção ou modificação de ideias], só que apenas enquanto essa intelecção é
explicada por meio da mente, ou seja, por meio dos limites perceptivos da última. Isso é claramente
reiterado no corolário da EIIPXI:

[...] a mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus. E, assim, quando
dizemos que a mente humana percebe [percipere] isto ou aquilo não dizemos senão
que Deus, não enquanto é infinito, mas enquanto é explicado [explicatur] por meio
da natureza da mente humana, ou seja, enquanto constitui a essência da mente
humana, tem esta ou aquela ideia (EIIPXIc.; SO2, p.94).

Portanto, de acordo com Spinoza, a mente humana tem em si [lógico que sob certa restrições
perceptivas] a capacidade de empreender algo muito especial. E o que é isso afinal que a mente
humana é capaz de empreender de modo tão especial? Sem mais tardar, é preciso se anunciar que a
mente é capaz de pensar do ponto de vista daquilo que nela essencialmente jaz: o intelecto de Deus
que se segue no atributo pensamento. Em outras palavras, a mente de um modo finito humano tem
a potência para pensar sob a perspectiva do intelecto de Deus, já que é essencialmente um singular
“habitante” desse intelecto [que se segue como efeito no interior do atributo pensamento]. É
justamente nesse sentido estrito que Spinoza conclui então que a mente é capaz de sentir-se tão
eterna quanto o intelecto de Deus, e “à medida que é eterna, a mente tem o conhecimento de Deus,
o qual é, com certeza, necessariamente adequado [...]” (EVPXXXId.). Ademais, pensar do ponto de
vista do intelecto divino é pensar, como Deus, a ordem por meio da qual se dá as ações eficientes
internas [da essência da causa divina e seus atributos para a essência dos efeitos modais] do próprio
Deus. Em outras palavras: proceder mentalmente do ponto de vista da intelecção de Deus é o
mesmo que perceber o que a inteligência ou a mente de Deus percebe: a ordem na qual se seguem
os atos internos a Deus, o qual age primeira e eficientemente produzindo a si mesmo – Deus e
atributos – e, em seguida, produzindo os efeitos – modos – que nele estão contidos. Ora, é
estritamente quando isso ocorre que a mente de um modo finito humano “mergulha” em um estado
o qual Spinoza denomina de intuitivo ou do terceiro gênero de conhecimento: “o terceiro gênero de
conhecimento [ciência intuitiva modal] procede da ideia adequada de certos atributos de Deus para
o conhecimento adequado da essência das coisas” [modos] que dos/nos atributos se seguem
136
(EVPXXVd.)231. Neste itinerário, “[...] quanto mais compreendemos as coisas desta maneira, tanto
mais [...] compreendemos a Deus [Deum intelligimus]” (Ibidem.; SO2, p.296). E é justamente nisto
que consiste a virtude suprema da mente: “a virtude suprema da mente consiste em conhecer
[intuitivamente]232 a Deus [...]” (EVPXXVIId.).
Mas o problema da ciência intuitiva não termina por aqui. Como já se sabe, os atributos
pensamento e extensão são os únicos elementos ontológicos envolvidos no processo ativo de
constituição da essência [mente/corpo] do próprio homem. Portanto, a essência do homem se segue
estritamente dos/nos atributos divinos pensamento e extensão. Com efeito, é notável que haja uma
espécie de ordem de constituição da essência humana, a qual tem o seu “ponto de partida” nos
atributos imanentes [pensamento e extensão] e o seu “ponto de chegada” na própria essência dos
modos humanos. Ademais, essa ordem – dos atributos pensamento e extensão para a essência dos
homens – pode ser adequadamente percebida pela mente humana. E o que isso tem a ver com a
intuição mental da totalidade da ordem [de todos dos atributos para todos os modos] na qual
operam as ações eficientes de Deus? Ora, tem a ver com o seguinte fato: a mente humana intuitiva
compreende [tal qual Deus] a totalidade da ordem das ações eficientes de Deus [da totalidade dos
atributos para a totalidade dos efeitos modais] pela estrita mediação perceptiva da ordem a qual se
segue dos atributos pensamento e extensão divinos para aquilo que neles se segue [a própria
essência do homem]. E como isso ocorre? A partir da seguinte dedução mental-intuitiva: se a
essência [mente/corpo] dos modos humanos é aquilo que se segue dos atributos pensamento e
extensão de Deus, deve haver outras essências modais [tais como os homens] as quais se sigam de
outros atributos divinos [que não o pensamento e a extensão]. Assim, apesar de não conhecer [tal
como Deus] a essência de todos os outros atributos de Deus e nem a essência de todos os modos

231
Aqui, encontra-se o mote fundamental para distinguir a intuição em Descartes e em Spinoza. Segundo Ivan
Domingues em O grau zero do conhecimento – o problema da fundamentação das ciências humanas [1991] “[...] lá
onde a intuição em Descartes quer-se ontológica, ela é intuição dos elementos (naturae simplices)”. O que existe em
Descartes são, em realidade, intuições distintas de elementos isolados uns dos outros [substância pensante, a substância
extensa, a substância infinita e o próprio homem – mente e corpo]. E por quê? Porque, para Descartes, não existe uma
unidade ou uma ordem de articulação imediata entre os elementos em jogo, já que eles são substâncias distintas,
apartadas umas das outras. Ora, não havendo a unidade entres esses elementos [instâncias ontológicas distintas], não é
possível, com efeito, a intuição da unidade entre esses elementos, mas intuições distintas [fragmentadas] acerca deles.
De outra maneira, em Spinoza, a intuição é a “ intuição do todo, e desde logo integrada organicamente na ascensão
dialética que nos leva ao todo” [DOMINGUES, op. cit., p.102 -103]. E por quê? Porque no sistema de Spinoza admite-
se, ao contrário do de Descartes, a univocidade ou a integração plena das instâncias ontológicas as quais dele fazem
parte. Isto se dá por meio da subversão conceitual que aponta para o fato de que só há uma substância [Deus], a qual
consta de infinitos atributos e que, ademais, contém imanentemente em si os modos [infinitos e finitos] que dela e nela
se seguem essencialmente. É de fato como está demonstrado no corpo do texto: a intuição do todo [não-fragmentada]
em Spinoza é possível tendo em vista que [diferentemente de Descartes] há a unidade ou uma ordem de articulação [da
substância e seus atributos aos modos que lhes são imanentes] por meio da qual estão unidas imediatamente as
instâncias ontológicas do próprio sistema spinoziano. Portanto, “Espinosa funda o conhecimento em Deus, desprende o
éthos da ordem do espaço e do tempo, e nos inscreve por inteiro na via que nos leva ao absoluto e ao sempiterno, que é
a via destas “filosofias da eternidade” que, desde Platão, se constituíram como uma das matrizes do pensamento ético
no Ocidente” [Idem., p.105].
232
Colchetes e observação nossos.
137
que se sequem da totalidade dos atributos divinos, a mente do homem tem, em contrapartida, como
intuir [por meio de certa dedução] a ordem adequada e total na qual se operam as ações de Deus [de
todos os atributos para todos os modos]. Uma dupla conclusão se extrai disso: [a.] apesar de não ter
o conhecimento de todos os atributos de Deus, o homem intuitivo sabe que a ordem das ações
eficientes de Deus tem como “ponto de partida” não só o pensamento e a extensão, mas todos os
atributos divinos; [b.] por conseguinte, a mente humana também compreende - por meio da
intelecção dos efeitos modais [a essência do próprio homem] os quais se seguem estritamente
dos/nos atributos pensamento e extensão de Deus - o seguinte: “o ponto de chegada” da ordem das
ações eficientes de Deus são todos os modos que se seguem dos atributos em sua totalidade.
Contudo, é realmente como foi dito: o fato da mente do homem [supremamente virtuoso]
compreender intuitivamente a ordem total das ações eficientes de Deus [da totalidade dos atributos
para a totalidade dos modos], não significa dizer que a mente humana esteja autorizada a conhecer
[tal como o intelecto de Deus] todas as instâncias [atributos/modos] as quais estão envolvidas na
totalidade da ordem das ações de Deus [sejam os atributos ou os modos]. Com efeito, a mente
humana intuitiva só intelige uma parte dos elementos que o intelecto de Deus percebe. E quais
elementos a mente humana está “autorizada” a conhecer essencialmente na perspectiva do intelecto
divino? A mente e o corpo do próprio homem e os atributos que nos primeiros estão envolvidos: o
pensamento e a extensão. É como ressonância disso que o homem intuitivo está restrito a constituir
ideias adequadas acerca de três instâncias bastante precisas: [a.] acerca da essência de Deus
enquanto ela é explicada estritamente pelos atributos pensamento e extensão; [b.] acerca de si
mesmo enquanto efeito ou essência mental-corporal intrínseca aos atributos pensamento e
extensão; [c.] acerca dos outros modos finitos humanos enquanto efeitos ou essências mentais-
corporais intrínsecas aos atributos pensamento e extensão. Por conseguinte, para Spinoza, é
basicamente esse o exercício do homem sábio: constituir ideias adequadas por meio da ciência
intuitiva, o que o leva a viver “consciente de si mesmo, de Deus e das coisas [...]” (EVPXLIIs.).
Conclui-se: o homem virtuoso ou sábio conhece os atributos pensamento e extensão de Deus, a si
mesmo e a essência dos outros homens. Investigar-se-á a partir de agora esse triplo conhecimento, o
qual é efetuado pelo homem sábio.
[a.] sobre a constituição da ideia da essência de Deus enquanto esta essência é explicada
pelos atributos pensamento e extensão – Neste caso, o que está explicitamente em jogo é o seguinte
fato: percebendo-se intuitivamente na perspectiva do intelecto divino, a mente de um modo finito
humano tem potência para constituir ideias adequadas acerca dos atributos pensamento e extensão
de Deus. Afinal, por que a mente humana, pensando na perspectiva do intelecto de Deus, é capaz de
constituir ideias adequadas apenas acerca dos atributos pensamento e extensão, e não de todos os
outros atributos os quais constituem a essência de Deus? Reitera-se: os homens só inteligem as
138
essências dos atributos de Deus os quais estão estritamente envolvidos no processo de suas
constituições. Nesse sentido, os homens só inteligem aqueles atributos os quais, sob a
especificidade dos seus registros, fazem seguir de determinada maneira [e não de maneira absoluta]
as essências dos próprios homens, isto é, seus corpos e mentes. Portanto, não se deve aqui apontar
que os homens [modos finitos humanos: mentes/corpos] são capazes de conhecer tanto quanto Deus
a totalidade dos atributos de Deus. De fato, os homens só podem conhecer intuitivamente as
essências dos atributos que constituem suas mentes e corpos de determinada maneira, a saber, o
pensamento e a extensão de Deus233. Assim, tomando a consciência dos atributos divinos os quais
são a causa imanente de suas essências [seus corpos e suas mentes], os homens têm como constituir
ideias adequadas dos atributos pensamento e extensão de Deus. Ademais, se as coisas se dão assim
no problema spinoziano da ciência intuitiva, cabe-se ainda apontar o seguinte: constituir
humanamente ideias adequadas dos atributos pensamento e extensão de Deus não é talhar ideias
desses atributos enquanto eles são elementos distantes [transcendentes] dos próprios homens. De
outro modo, constituir intuitivamente ideias adequadas dos atributos pensamento e extensão de
Deus é o mesmo que percebê-los [tal qual o intelecto de Deus] como as únicas expressões divinas
que fazem seguir em si - e sob determinada ordem - as mentes e os corpos dos modos finitos
humanos.
[b.] sobre a constituição da ideia de si mesmo enquanto efeito ou essência mental-corporal
intrínseca aos atributos pensamento e extensão - Ao pensar intuitivamente ou sob a perspectiva do
intelecto de Deus, o homem não apenas toma a consciência das essências dos atributos pensamento
e extensão de Deus. A ciência intuitiva ou o terceiro gênero de conhecimento é também aquilo que
possibilita a determinado homem – modo finito humano – um maior entendimento acerca de si
mesmo enquanto aquilo que se segue dos/nos atributos pensamento e extensão de Deus. Assim, ao
agir intuitivamente, o homem é capaz de perceber-se essencialmente como efeito determinado das
operações eficientes de sua causa genética: Deus, ou melhor, os atributos extensão e pensamento de
Deus. Portanto, o homem passa a compreender-se adequadamente ao tomar a consciência de que é
essencialmente [corpóreo-mentalmente] efeito intrínseco e ativo de/em uma causa eficiente
[atributos pensamento e extensão de Deus].
Uma pequena e necessária digressão: como foi atentado no primeiro tópico desse capítulo,
ao contrário da sua essência eterna [a priori produção ou modificação de ideias – mente – e

233
O que está em jogo aqui é também e certamente a necessidade de Spinoza em atentar para os limites do
conhecimento humano, limites os quais apontam para o fato de que os homens não podem, consequentemente, conhecer
a totalidade da essência divina. E qual o sentido disso? Ora, o sentido de uma argumentação que desvalida a afirmação
corriqueira de determinados homens de religião. E de que afirmação se trata afinal? A afirmação religiosa que aponta
quase em uníssono que os homens são como que espelhos fiéis da própria essência de Deus. Portanto, é exatamente essa
afirmação que Spinoza visa enfaticamente negar com os argumentos internos ao corpo do texto acima. Cf. também o
prefácio da primeira parte da Ética, em que o pensador realiza o mesmo empreendimento.
139
produção ou modificação de movimentos – corpo –], a existência do homem é finita, ou seja, é
submetida a certo limite de duração. Ademais, a finita existência do homem não é determinada nem
pela causa eficiente [substância e seus atributos], nem pela essência dos modos infinitos [imediatos
e mediatos] e nem pela essência dos homens, já que todos esses elementos ontológicos são infinitos
e eternos. E por que a existência finita do homem não pode ser determinada por meio desses
elementos? Porque nada que se segue desses elementos pode ser finito, pois é impossível que da
infinitude e da eternidade deles insurja algo finito. Com efeito, “[...] a duração [finita da existência
de determinado homem]234 não pode ser determinada pela própria natureza [da essência] 235 da
coisa existente [homem]236, nem tampouco pela causa eficiente [substância e atributos]237, a qual
[...] necessariamente põe” a essência “da coisa [homem] 238, mas não a retira” (EIIDef.V.explic.).
Portanto, deve-se dizer de uma forma diferente que a finitude da existência do homem é uma
espécie de “tangente a qual é traçada de fora nas bordas” da ontologia spinoziana a partir da
duração. Conclui-se: a causa da finitude da existência de um homem são as existências finitas [e
não as essências ou conatus] de outros homens.

Nenhuma coisa singular, ou seja, nenhuma coisa que é finita e tem uma existência
determinada239, pode existir nem ser determinada a operar, a não ser que seja
determinada a existir e a operar por outra causa que também é finita e tem uma
existência determinada; por sua vez, essa última causa tampouco pode existir nem
ser determinada a operar a não ser por outra, a qual também é finita e tem uma
existência determinada, e assim por diante, até o infinito (EIPXXVIII).

Contudo, isso não quer dizer que a essência de um modo finito humano [corpo/mente] não
seja intrínseca a Deus mesmo, ou melhor, aos seus atributos pensamento e extensão, sendo,
portanto, como que eterna: “[...] tudo o que [essencialmente]240 existe, existe em Deus e dele
depende, de maneira tal que sem ele não pode existir [essencialmente] 241 nem ser concebido”
(EIPXXVIIIs.), e “fica assim evidente que a nossa mente, à medida que compreende, é um modo
eterno do pensar [aeternus cogitandi modus]” (EVPXLs.; SO2,p.306), tanto quanto o corpo é um
modo eterno de produção de movimentos. Ora, é justamente na perspectiva de sua essência que o
modo finito humano deve se compreender intuitivamente, e não sob o ponto de vista de sua finitude
existencial. E o que se decorre dessa compreensão humana? Que o modo finito humano passa a
perceber-se enquanto aquilo que tem uma essência mental-corporal eterna, a qual independe da sua

234
Colchetes e observação nossos.
235
Idem.
236
Idem.
237
Idem.
238
Idem.
239
Grifo nosso.
240
Colchetes e observação nossos.
241
Idem.
140
existência finita no tempo 242. Ademais, ao compreender que a sua essência é eterna, o modo finito
humano intui por meio de sua mente que é em realidade o seguinte: [1.] efeito ou grau intensivo
[mente] interno a potência eterna de produção de ideias [lei do intelecto divino em produção infinita
de ideias], a qual se segue do/no atributo pensamento de Deus: “[...] a parte eterna da mente [pars
Mentis aeterna / ...] é o intelecto, por meio do qual, exclusivamente, dizemos que agimos”
(EVPXLc.; SO2, p.306); [2.] efeito ou grau intensivo [corpo] da potência eterna de produção de
movimentos [lei de movimento em modificação infinita], a qual se segue do/no atributo extensão de
Deus. É exatamente isso o que é argumentado – só que sob o critério racional das noções comuns [o
qual parte da essência interna comum aos modos para a sua causa] – na EVPXXXd: “conceber,
portanto, as coisas [ou a essência comum aos modo finitos humanos] sob a perspectiva da
eternidade é concebê-las à medida que são concebidas, por meio da essência [ou dos atributos
pensamento e extensão]243 de Deus, como entes reais [entia realia / ...]” (EVPXXXd.; SO2, p.299).
[c.] sobre a constituição da ideia dos outros modos finitos humanos enquanto efeitos ou
essências mentais-corporais intrínsecas aos atributos pensamento e extensão – E o que ocorre
quando um modo finito humano compreende intuitivamente a si mesmo, ou sua própria essência
enquanto efeito eterno intrínseco aos atributos pensamento e extensão de Deus? De acordo com
Spinoza, também se decorre o reconhecimento – por parte do modo finito humano que compreende
intuitivamente a sua essência – de que as essências [mentais/corporais] dos outros modos finitos
humanos são homólogas as dele.
Aqui estão, portanto, as três ideias constituídas no homem a partir da ciência intuitiva ou do
terceiro gênero de conhecimento: ideia ou compreensão adequada da essência dos atributos
pensamento e extensão de Deus; ideia ou compreensão adequada de si mesmo [homem] enquanto

242
Segundo Deleuze, no último capítulo [Beatitude] de seu Spinoza et le problem de l'expression, o enunciado acima é
o objeto da mais severa crítica de Leibniz à Spinoza. Como essa crítica atua? É em Lettre au Landgrand [de 14 de
agosto de 1683] que Leibniz anuncia que Spinoza desvaloriza totalmente a existência finita ou temporal em detrimento
da essência eterna do homem. Nesse sentido, a crítica de Leibniz é apresentada por Deleuze na forma de um problema:
“de quoi nous sert l'existence si, de toutes manières, nous rejoignons notre essence après la mort, dans de telles
conditions que nous éprouvons intensément toutes les affections actives qui lui correspondent? / de que nos serve a
existência [finita] se, de qualquer maneira, nos reuniremos à nossa essência depois da morte, em condições tais que
experimentamos intensamente todas as afecções ativas que correspondem a ela?” [Cf. DELEUZE, 1969, 295-296]. Tal
problema leibniziano parece ter a sua razão de ser. É por isso que, por meio desse “problema” de Leibniz, algumas
questões – ainda a serem enfrentadas pelo spinozismo – podem ser apresentadas: afinal, qual o valor positivo de
realidade que está contido na existência finita spinoziana, já que é estritamente a essência eterna do homem que merece
ser compreendida e, com efeito, efetivamente vivida? Por conseguinte, valeria a pena se esforçar para existir na finitude
existencial, perseverar [conatus] em algo tão “abjeto”, já que a vida eterna da essência humana independeria disso? Por
que não morrer definitivamente para a finitude? Acredita-se que esses problemas têm realmente a sua pertinência no
contexto do corpo principal do texto, pois eles se posicionam critica e relativamente àquilo que está estritamente em
jogo no spinozismo: a excessiva valorização da vida eterna a qual é, de longe, superior a vida finita e a duração [ambos
isentos de qualquer positividade]. Com efeito, segue-se uma terceira questão: qual dessas duas vidas - a vida imutável
da essência eterna do homem / a vida humana intrínseca à efêmera finitude - tem de fato realidade concreta, ou melhor,
pode ser efetivamente experienciada intuitivamente? São esses problemas que aqui são levantados numa perspectiva
leibniziana. Afinal, e por conseguinte, como solucioná-los agora do ponto de vista do spinozismo?
243
Colchetes e observação nossos.
141
essência ou efeito [mente/corpo] intrínseco aos atributos pensamento de extensão de Deus; ideia ou
compreensão adequada de outros homens enquanto essências ou efeitos [mentes/corpos] intrínsecos
aos atributos pensamento e extensão de Deus. Com efeito, o problema da ciência intuitiva está então
resolvido: ela é a adequada compreensão humana de uma determinada ordem ontológica, a qual
parte da essência da substância e seus atributos para a essência dos modos. Além do mais, a
ciência intuitiva também permite o conhecimento adequado da essência ativa dos atributos
pensamento e extensão de Deus e da essência ativa dos modos finitos humanos.
Resta agora investigar o que se decorre em um homem que experimenta a ciência intuitiva,
pois é isso que leva à resolução da problemática da liberdade suprema ou daquilo que com
frequência é intitulado por Spinoza de beatitude.

3.2. A suprema liberdade ou a beatitude

Como foi dito há pouco, a ciência intuitiva ou o terceiro gênero de conhecimento é a


compreensão humana da ordem ontológica a qual parte da essência da substância e seus atributos
para a essência dos modos finitos humanos ou efeitos. Ademais, a inteligibilidade de tal ordem
permite ao homem o conhecimento adequado da essência dos atributos pensamento e extensão de
Deus, da essência de si mesmo [mente/corpo] e, por conseguinte, da essência dos outros modos
finitos humanos [mentes/corpos]. É justamente a partir desses últimos dados que Spinoza se
pergunta: afinal, o que se decorre em um homem que passa a conhecer intuitivamente – na ordem
das essências que parte da causa para os efeitos – a Deus, a si mesmo e todos outros homens? Como
se verá, a resposta a essa questão é justamente o que dá pleno suporte à solução da questão da
liberdade suprema ou da beatitude em Spinoza.
Tal questão pode começar a ser solucionada por meio da demonstração da proposição
XXVII da EV. Nela, Spinoza anuncia que decorrem, em um homem que age intuitivamente, dois
fatos bastante precisos: 1. a “suprema perfeição humana”; 2. uma “suprema alegria da mente”
humana” (EVPXXVIId.). Ademais, esses dois fatos citados têm como que uma ordem progressiva
de “aparecimento” no homem, o que está evidenciado no momento final da própria EVPXXVIId.

[...] quem conhece as coisas [modos finitos humanos e Deus] 244 por meio desse
gênero de conhecimento [ciência intuitiva]245 passa à suprema perfeição humana
[summam humanam perfectionem] e, consequentemente [...], é afetado da suprema
alegria [summâ Laetitiâ], a qual [...] vem acompanhada da ideia de si mesmo e de
sua própria virtude [virtutis] (EVPXXVIId.; SO2, p.297).

244
Colchetes e observação nossos.
245
Idem.
142
Estudar-se-á então, a partir de agora, cada um dos dois fatos apontados na ordem
progressiva em que eles aparecem no fragmento de texto citado.
1. A suprema perfeição humana: como se pode observar, o homem que opera de forma
intuitiva – conhecendo a Deus, a si mesmo e aos outros – é aquele que passa primeiramente àquilo
que Spinoza intitula de suprema perfeição. Com efeito, segundo o autor, isso se dá precisamente em
um homem por meio da constatação intuitiva do seguinte fato: determinado homem – tanto quanto
os outros – é efeito ativo [mente e corpo] intrínseco de/em uma causa eterna [pensamento e
extensão de Deus], sendo, por conseguinte, essencialmente eterno [o que independe da existência
finita na duração]. Por conseguinte, tomando o conhecimento [mental-intuitivo] de que é – tanto
quanto os outros homens – uma essência eterna ou efeito de/em Deus, não há como não sentir-se
supremamente perfeito. Assim, é dessa forma que determinado homem passa à suprema perfeição,
ao observar intuitivamente [ou pela mente] que é – como os outros homens – essencialmente efeito
ativo eterno [produção ou modificação infinita de ideias: mente; produção ou modificação infinita
de movimentos: corpo] dos/nos atributos pensamento e extensão de Deus.
2. A suprema alegria da mente humana: e ao passar à suprema perfeição por meio da ciência
intuitiva, o que mais se decorre no homem? Ora, como está demonstrado ao final da EVPXXVIId, é
do fato do homem se perceber enquanto supremamente perfeito – consciência mental-intuitiva da
sua essência [mente/corpo] eterna que se segue dos/nos atributos pensamento/extensão de Deus –
que a sua mente se torna supremamente alegre. Ademais, ao se afetar de uma alegria suprema, a
essência da mente também passa a existir com máxima satisfação de ânimo, o que é o mesmo que
passar a atuar com máxima potência de produção de ideias. Portanto, situando-se em um estado de
inexorável alegria, a mente usufrui de uma verdadeira satisfação de ânimo, a “maior satisfação da
mente que pode existir [...]” (EVPXXXIId.), passando “para uma perfeição maior [majorem
perfectionem]” (EVPXXXIIIs.; SO2, p. 301).
Mas isso é pouco para Spinoza. A causa da suprema alegria da mente não está, pelo menos
até aqui, demarcada em sua totalidade. Para o pensador, não basta simplesmente anunciar - como
acima está expresso -: o afeto da suprema alegria se decorre quando a mente humana tem a
percepção de que a natureza eterna e suprema [mente/corpo] do homem se segue da/na essência dos
atributos [pensamento e extensão de Deus]. Em realidade, a suprema alegria da mente não insurge
simplesmente por meio dessa percepção anunciada. É por isso que, de acordo com Spinoza, a
suprema alegria da mente necessita de uma causa mais profunda, a saber: de um afeto anterior
tanto à suprema alegria na mente quanto ao ponto de partida dessa suprema alegria [a percepção
mental acerca da essência humana suprema- mente e corpo - que se segue dos/nos atributos
pensamento e extensão] -. Ademais, para identificar tal afeto, antecipadamente é necessária a
investigação acerca de um intelecto ontológico [anterior à mente humana] o qual constitua em
143
determinada ordem afetos determinados para com dois planos bastante precisos: primeiramente,
para com a atividade essencial da conjuntura dos atributos de Deus e, por conseguinte, para com
aquilo que segue desses atributos: a natureza suprema de todos os modos. Portanto, é em torno da
ordem de constituição de determinados “afetos” - a qual é efetuada por esse intelecto ontológico a
partir dos atributos e dos modos - que se deve perseverar agora, pois é ela que permitirá a
identificação do afeto o qual é a causa primordial da suprema alegria da mente humana.
Antes de qualquer coisa, é preciso anunciar que a constituição ordenada de afetos [1.para
com os atributos; 2. para com os modos] é um fato o qual está vinculado, como os leitores devem
presumir, ao intelecto de Deus. Portanto, o intelecto de Deus é justamente o elemento spinoziano o
qual, ao passo em que intelige certos “objetos” [atributos/modos], também constitui em
determinada ordem afetos para com esses objetos. Como se dá esse processo? Relembre-se
primeiramente o que já fora demonstrado anteriormente246: o intelecto divino [natureza naturada
que se segue do/no atributo pensamento de Deus] é naturalmente capaz de inteligir sob forma de
ideias duas instâncias fundamentais: [a.] os atributos ou a própria essência de Deus; [b.] a essência
de todos os modos, ou seja, aquilo que se segue dos/nos todos os atributos de Deus. Por meio disso,
acresce-se agora o seguinte: ao passo em que primeiramente intelige a conjuntura dos atributos e,
por conseguinte, a essência dos modos, o intelecto de Deus também “se afeta” com eles. Todavia,
não é porque o intelecto de Deus se afeta tanto com os atributos quanto com os modos que se deve
pensar que ele se afeta da mesma maneira com essas instâncias. Nesse sentido, precisa-se duas
perguntas: de quê o intelecto de Deus se afeta ao inteligir primeiramente a natureza ativa dos seus
atributos?; de quê o intelecto de Deus se afeta ao inteligir, por conseguinte, a natureza ativa dos
modos? Responder-se-á inicialmente a primeira pergunta.
Afinal, de quê o intelecto de Deus se afeta ao inteligir primeiramente a natureza ativa dos
atributos pensamento e extensão? Diz Spinoza: Deus se afeta de amor [amore] para com eles
(EVPXXXVd.; SO2, p.302.). Portanto, à medida que Deus percebe intelectivamente [modificação
infinita de ideias a qual se segue no atributo pensamento] que é perfeita e essencialmente
constituído pelos seus atributos expressivos, o seu próprio intelecto, com efeito, afeta-se de amor
para com eles247. Não há, para Spinoza, como Deus “observar” intelectivamente a sua própria
essência [atributos] e não amá-la. Assim, o pensador completa: “Deus ama a si mesmo com um

246
Vide, por exemplo, o tópico 3.1.3. deste presente capítulo.
247
Ezcurdia [2008] aponta na mesma direção: “O conhecimento que Deus tem de si [dos seus atributos], a ideia em que
se realiza, traduz-se também no amor infinito que tem de si mesmo, na medida em que se conhece justamente como sua
própria causa. Segundo Espinosa, Deus, ao conhecer-se, conhece-se como causa de si, e esse conhecimento traduz-se
numa apropriação e numa plenitude que atualiza um amor que aparece como sua forma” [EZCURDIA, in cadernos
espinosanos, 2008, p.21-22]. Sobre isso, Delbos [2002] também reitera algo parecido, por meio da explicitação de que
“na medida em que o amor supõe conhecimento, pode haver em Deus um amor de Deus por si mesmo, pois a perfeição
infinita de que Deus goza é acompanhada da ideia de si mesmo como causa de si e dessa perfeição” [DELBOS, op. cit.,
p. 167].
144
amor intelectual infinito [amore intellectuali infinito]” (EVPXXXV.; SO2, p.302). Realmente, o
amor intelectual de Deus para com seus atributos é homólogo ao amor intelectual de Deus para
consigo mesmo, já que os atributos são em sua conjuntura expressiva a própria essência de Deus.
Agora, de quê, por conseguinte, o intelecto de Deus se afeta ao perceber a natureza ativa dos
modos? Segundo Spinoza, à medida que Deus percebe idealmente que da essência dos atributos os
quais ama se seguem as atividades essenciais dos modos [infinitos e finitos], o seu intelecto se afeta
de uma suprema alegria (EVPXXXIIc.). Portanto, ao perceber que dos e nos atributos os quais ama
se seguem essencialmente efeitos determinados [as essências dos modos], o intelecto de Deus se
alegra com esses efeitos em um nível o qual é discriminado pelo autor como supremo. Com efeito, é
o próprio intelecto de Deus [anteriormente à mente humana] que se afeta de suprema alegria quando
as essências modais se seguem dos/nos atributos [“amados”] de Deus mesmo.
Como se pode observar, dependendo do “objeto” [atributos/modos] para o qual se direciona,
o intelecto de Deus se afeta de maneiras distintas. Ao inteligir sua constituição interna ou a
atividade expressiva da conjuntura dos seus atributos, Deus se afeta de amor; ao inteligir a
conjuntura dos efeitos [modos] que se seguem da/na sua constituição interna [ou da/na atividade
expressiva dos seus atributos], Deus se afeta de alegria. Mas isso não é tudo. Para Spinoza, os
afetos de amor [para com os atributos] e de alegria [para com os modos] do/no intelecto de Deus
não se seguem [ou mesmo são produzidos] separadamente [ora o amor ora a alegria]. E por quê?
Por um importante motivo: os atributos de Deus e os modos não são elementos isolados um do
outro. Como já se sabe, os modos são efeitos intrínsecos dos/nos atributos. Ambos estão, portanto,
estreitamente “conectados”. Ora, se os atributos divinos e os modos estão interligados por meio de
uma relação de dependência dos modos para com os atributos divinos imanentes, não é possível,
por conseguinte, que nem os atributos e nem os modos sejam objetos isolados [sem conexão] dos
afetos do intelecto de Deus.
Porém, isso não quer dizer que o intelecto divino se afete simultaneamente com esses dois
“objetos inseparáveis” [atributos/modos] os quais compreende. Há, no spinozismo, uma ordem pela
qual os afetos de amor [pelos atributos] e de alegria [pelos modos] são constituídos no intelecto de
Deus. E, afinal, qual a ordem de insurgência desses afetos no intelecto divino? Seguindo a lógica de
que os atributos divinos são a priori os elementos ontológicos do sistema e os modos são efeitos os
quais se seguem nesses elementos [atributos], o intelecto de Deus deve perceber e se afetar
primeiramente de amor para com os atributos e, em seguida, de alegria para com os modos os quais
dos atributos se seguem. Portanto, a ordem pela qual esses afetos no intelecto de Deus é análoga à
ordem de operação do sistema de Spinoza, a qual atua da essência dos atributos de Deus para a
essência dos modos. Com efeito, o amor intelectual pela sua própria essência [atributos] é o afeto
que se decorre inicialmente no intelecto de Deus; desse afeto de amor intelectual, por conseguinte,
145
segue-se a suprema alegria no intelecto de Deus para com os efeitos modais que se seguem de sua
essência [atributos]. Dessa maneira, é do fato do intelecto de Deus amar a própria essência de Deus
[atributos] que se segue o fato do intelecto de Deus se alegrar com os efeitos [modos] os quais se
seguem da sua essência [atributos]. Realmente, os afetos de amor pelos atributos e de alegria para
com os modos são experimentados no intelecto de Deus como se um seguisse do outro. É por isso
que no corolário da EVPXXXII, Spinoza chega mesmo a dizer que a alegria suprema de Deus pelos
modos é aquela que vem acompanhada do “amor de Deus” [pelos atributos] “como sua causa [...]”
(EVPXXXIIc.). Se é assim, uma conclusão é aqui inevitável: a causa da suprema alegria do
intelecto de Deus para com seus efeitos percebidos [modos dos atributos] é o amor intelectual de
Deus para com sua essência [atributos] inteligida. Em suma, sem o amor de Deus para consigo
[atributos] não é possível, por conseguinte, a alegria de Deus para com seus efeitos [modos dos/nos
atributos]. Pode-se até mesmo anunciar: tal como a lógica de que da essência da causa [Deus ou
atributos] se decorrem efeitos [modos], do afeto de amor intelectivo de Deus pela sua essência
[atributos pensamento/extensão] se decorre o afeto da suprema alegria intelectiva de Deus pelos
seus efeitos [essência dos modos].
Agora que está explicitado que o afeto da suprema alegria intelectual de Deus [para com os
modos] tem como sua causa o afeto de amor intelectual de Deus [pelos atributos], deve-se
responder à questão pendente acerca da causa da suprema alegria experimentada pela mente
humana. Como isso pode ser feito? Primeiramente, por meio da comparação metodológica entre os
afetos de suprema alegria da mente humana e de suprema alegria do intelecto de Deus.
A suprema alegria na mente humana é estritamente o seguinte: um afeto que insurge na
mente humana quando ela percebe que o homem é efeito que se segue dos/nos atributos pensamento
e extensão de Deus; já a suprema alegria no intelecto de Deus é em especificidade o seguinte: é um
afeto que insurge no intelecto de Deus quando ele tem a percepção de que a totalidade dos modos é
efeito de todos os atributos divinos, anteriormente percebidos e amados. Portanto, alegria intelectual
de Deus para com os modos percebidos deve vir acompanhada do amor intelectual de Deus [pelos
atributos percebidos] como se fosse a sua causa. Como se percebe, há algo de semelhante entre a
suprema alegria na mente – que se dá pela percepção intelectual da essência dos modos humanos os
quais se seguem estritamente dos/nos atributos pensamento e extensão de Deus – e a suprema
alegria no intelecto divino – que se dá pela percepção intelectual da totalidade da essência dos
modos os quais se seguem de todos os atributos de Deus [anteriormente percebidos e amados]–.
Deve-se então a partir de agora – tendo em vista à resolução do problema pendente –
potencializar mais uma importante semelhança do que as diferenças entre esses “dois tipos” de
alegria [a da mente e a do intelecto divino]. E como se dá essa potencialização? Por meio da
seguinte anunciação: a suprema alegria da mente do homem para com a essência [mente/corpo] dos
146
modos humanos não é, certamente, a alegria do intelecto de Deus para com a essência de todos os
modos de/em todos os atributos [anteriormente percebidos e “amados”]. Mas, em contrapartida, a
suprema alegria da mente do homem é como que homóloga à alegria do intelecto de Deus pela
essência estrita dos modos humanos [dos/nos atributos pensamento/extensão – antes percebidos
por Deus e, da mesma maneira, também amados por ele]. Conclui-se: quando a mente humana se
alegra ao perceber intelectivamente a essência estrita do homem [mente / corpo], é como se o
próprio intelecto de Deus se alegrasse com a essência estrita [mente/corpo] do homem - a qual se
segue como efeito dos atributos pensamento e extensão, os quais devem ser anteriormente amados
por Deus -. Portanto, quando a mente humana se alegra de suprema alegria pela essência do homem
é o próprio intelecto de Deus que se afeta dessa suprema alegria. Qual a prova disso? Ela pode ser
dada a partir do embasamento no corolário da EIIPXI, antes já utilizado:

[...] a mente humana é uma parte do intelecto infinito de Deus. E, assim, quando
dizemos que a mente humana percebe isto ou aquilo não dizemos senão que Deus,
não enquanto é infinito, mas enquanto é explicado por meio da natureza da mente
humana, ou seja, enquanto constitui a essência da mente humana, tem esta ou
aquela ideia (EIIPXIc.).

Como se observa, a mente humana intuitiva é como que idêntica ao intelecto de Deus.
Ademais, ela percebe determinadas coisas da mesma forma que o próprio intelecto de Deus as
percebe. Porém, neste caso, o que a mente humana intelige não são todas as coisas as quais o
intelecto de Deus tem a potência para inteligir. A mente intelige apenas aquilo que o intelecto divino
percebe em nível estrito. Ora, se é assim, não existem dois tipos de natureza intelectiva: a da mente
humana e a de Deus. E se existem diferenças entre essas instâncias, elas são apenas de grau de
potência perceptiva, já que [como está demonstrado] o intelecto de Deus tudo pode perceber
[atributos/modos] e a mente humana nem tudo pode perceber [apenas pensamento, extensão e seus
modos]. É por isso que Spinoza, logo no início da citação aponta: a mente humana é uma parte do
intelecto infinito de Deus, pois ele a constitui. Conclui-se: mesmo com determinadas restrições, a
mente do homem realmente percebe certas coisas tal como o intelecto de Deus as percebe. Como
ressonância, tudo o que a mente do homem “sente” afetivamente acerca das coisas as quais ela pode
perceber, é o mesmo que o intelecto de Deus “sente” afetivamente acerca dessas coisas. Se é assim,
o fato da mente humana se afetar de uma alegria estrita [contudo, suprema] para com a essência
[mente/corpo] dos modos humanos é, em realidade, homólogo ao fato do intelecto de Deus mesmo
se afetar de alegria com a essência dos modos humanos [dos/nos atributos pensamento/extensão –
antes percebidos por Deus e, da mesma maneira, também amados por ele]. É óbvio que, neste caso,
ao ser [sob determinadas diretrizes] como que “homólogo” à mente do homem, o intelecto de Deus
certamente não se alegra com a totalidade da essência modal que se segue de/em todos os atributos
147
os quais ama, mas apenas se alegra [como se torna evidente] com a essência estrita dos modos
humanos – os quais se seguem estritamente dos atributos pensamento e da extensão: tanto quanto os
outros, amados por Deus –. Com efeito, conclui-se: a suprema alegria da mente do homem [ou a
suprema alegria do intelecto de Deus] para com a essência estrita [mente/corpo] dos modos
humanos é uma parte da suprema alegria do intelecto de Deus para com todos os outros modos.
Ora, é por meio desse contexto – extraído da comparatividade metodológica entre a suprema
alegria da mente do homem e a suprema alegria do intelecto de Deus – que se torna evidente a
solução do problema da causa da suprema alegria da mente humana. Para tanto, é necessária uma
argumentação lógica que seja dividida em determinados momentos: [a.] a suprema alegria no
intelecto de Deus se dá por meio da percepção divina da essência de todos os modos os quais se
seguem de todos os atributos de Deus; [b.] ademais, para que essa suprema alegria ocorra por meio
da percepção da totalidade dos modos, todos os atributos devem ser, de antemão, objetos do amor
intelectual de Deus. Portanto, a condição da suprema alegria do intelecto de Deus [para com todos
os modos percebidos] é [antes mesmo da percepção dos modos] o amor intelectual que o próprio
Deus sente pela totalidade da sua essência [seus atributos percebidos]. Com efeito, o intelecto de
Deus deve primeiramente inteligir e amar os seus atributos para, por conseguinte, poder inteligir e
supremamente se alegrar com tudo aquilo que deles e neles se segue: todos os modos dos/nos todos
os atributos; [c.] e qual é a causa da alegria suprema que Deus sente, por exemplo, para com a
essência estrita dos modos humanos? Ora, a causa dessa suprema alegria não é certamente o amor
intelectual de Deus por todos os atributos, mas deve ser, em nível estrito, o amor intelectual que
Deus sente por alguns desses atributos. Assim, diz Spinoza: “esse amor [por alguns de seus
atributos]248 [...] é uma parte [pars] do amor infinito com que Deus ama a si mesmo [Deus seipsum
amat]” [com que ama a todos os seus atributos] (EVPXXXVId.; SO2, p.302.). Com efeito, a causa
da suprema alegria de Deus para com os homens é o amor intelectual que o próprio Deus sente por
aquilo que produz não a todos os modos [todos os atributos], mas por aquilo que produz a natureza
estrita [mente/corpo] dos modos humanos: os atributos pensamento e extensão divinos; [d.] ora, não
se deve deixar de atentar para uma importante homologia já discriminada: a suprema alegria do
intelecto de Deus para com os homens – a qual, como agora se sabe, tem como causa o amor
intelectual de Deus pelos atributos pensamento e extensão – é a própria alegria da mente do homem
para com a natureza dos homens. Se é assim, conclui-se que a causa real da suprema alegria da
mente do homem para com a natureza humana é o seguinte afeto: o amor intelectual de Deus para
com os atributos pensamento e extensão. Ademais, o intelecto de Deus deve primeiramente
inteligir e amar os atributos pensamento e extensão, para, por conseguinte, a mente humana poder

248
Colchetes e observação nossos.
148
inteligir e supremamente se alegrar com aquilo que deles e neles se segue: os modos humanos os
quais se seguem dos/nos atributos pensamento e extensão.
Ora, qual a consequência disso? Isto é, o que acontece à mente do homem quando ela toma a
consciência de que a suprema alegria - a qual sente acerca da essência do homem - é causada pelo
amor intelectual de Deus pelos atributos pensamento e extensão? Diz Spinoza: a mente passa
também, por conseguinte, a viver intensamente do afeto o qual atua como sendo a causa de sua
suprema alegria pela essência humana: o amor intelectual de Deus para com os atributos
pensamento e extensão. Com efeito, a mente supremamente alegre passa a viver do mesmo afeto o
qual é experienciado por Deus, isto é, de um amor intelectual pelos atributos pensamento e
extensão: “o amor intelectual [do homem] 249 para com [os atributos pensamento e extensão de]250
Deus é o próprio amor de Deus, com o qual ele ama a si mesmo” (EVPXXXVI), isto é, com o qual
ele ama os atributos pensamento e extensão. Assim, a mente do homem passa também a amar
aquilo que o próprio Deus ama em especificidade, a saber, o próprio Deus sob o registro dos
atributos pensamento e extensão: “isto é, o amor intelectual da mente para com Deus é uma parte do
amor infinito com que Deus ama a si mesmo” (Ibidem.).
E, afinal, o que significa viver “amorosamente” para com parte da essência de Deus, ou seja,
viver amando “parte” daquilo [pensamento e extensão] que o próprio Deus ama intelectivamente?
Significa apontar para a solução do problema fundamental deste trabalho: o da liberdade suprema
ou da beatitude. Com efeito, a mente do homem tem a capacidade de conquistar a liberdade
discriminada por Spinoza como superior [beatitude], o que se dá quando ela passa a viver, tal qual o
intelecto divino, de um amor inexorável pelos atributos pensamento e extensão de Deus. Assim,
“compreendemos claramente em que consiste nossa salvação, beatitude ou liberdade [salus, seu
beatitudo, seu libertas]” (EVPXXXVIs.; SO2, p.303), já que ela se dá precisamente “no amor
constante e eterno” da mente intuitiva “para com Deus” (EVPXXXVIs.), ou melhor, no amor eterno
da mente humana para com os atributos pensamento e extensão de Deus251.

249
Idem.
250
Idem.
251
Ao fim da sua tese de doutorado Alegria e felicidade: a experiência do processo liberador em Espinosa [2009],
Marcos Ferreira de Paula anuncia de forma bastante precisa o percurso do desenvolvimento da noção de liberdade na
filosofia de Spinoza. Segundo ele, “no contexto do Breve Tratado, Espinosa definia a liberdade humana como uma
existência estável que obtém nosso entendimento por sua união imediata com Deus para produzir em si mesmo as
ideias e tirar de si mesmo os efeitos que concordam com sua natureza [KV II, 26, §9]. Já aí, nós vemos, Espinosa
encerrava a liberdade humana no campo do entendimento, ou seja, do conhecimento intelectual, pelo que, apenas,
alcançamos uma existência estável, pois só ele pode produzir em si mesmo os afetos ativos, isto é, os efeitos que
nascem necessariamente de suas próprias ideias”. Por conseguinte, “[...] o projeto do TIE [..] era, justamente a partir da
emenda do intelecto, permitir-nos adquirir uma natureza humana “superior” ou “muito mais firme””, o que faz o
homem alcançar, com efeito [através do verdadeiro bem e do sumo bem], “o gozo de tal natureza, que neste contexto,
trata-se da Felicidade”. Por fim, com “a ontologia do necessário oferecida na Parte I da Ética, entramos na ordem da
eternidade [...] a entrada na ontologia do necessário” na Ética é, ademais, “a aquisição e experiência de um amor
intelectual eterno” ou de uma liberdade, “isto é, que não pode perecer como os amores passivos, porque deriva do
conhecimento adequado de uma coisa eterna na qual nós e ele, o amor, estamos compreendidos eternamente, in
149
A beatitude [beatitudo] consiste no amor para com Deus (pela prop. 36, juntamente
com seu esc.), o qual provém, certamente, do terceiro gênero de conhecimento [...]
Por isso, esse amor [...] deve estar referido à mente, à medida que esta age, e
portanto, [...] ele é a própria virtude (EVPXLIId.; SO2, p.307).

Ademais, é por meio dessa liberdade que a mente humana se torna como que “dotada da
própria perfeição” (EVPXXXIIIs). E, por conseguinte, “quanto mais uma coisa é perfeita, tanto
mais realidade ela tem [...] e, consequentemente, [...] tanto mais age e menos padece” dos maus
afetos passionais (EVXLd.). É, portanto, nesse escopo que Spinoza dá por concluída a investigação
acerca da beatitude ou da liberdade da mente.

aeternum” [PAULA, 2009, p.192-197]. Ainda acerca da Ética, Rochelle Cysne Frota, em seu artigo Amor intelectual a
Deus em Espinosa [2007], parece bem complementar o que acaba de ser dito: “Este estágio de felicidade e beatitude é
dito AMOR INTELECTUAL A DEUS, e é a consequência natural do desenvolvimento da intuição [...] Este
conhecimento de Deus deixa no corpo as suas marcas, e faz o corpo sentir um amor que já não é uma paixão e sim ação
[...] Ou seja, este amor intelectual não é uma paixão, pois conduz a um aumento de perfeição. Ademais, é um amor que
conduz à verdadeira concepção do homem e de suas ações, tornando-o mais apto para a ação e convertendo todas as
afecções de alegria e desejo na mais intensiva expressão do conatus” [FROTA, in conatus, 2007, p. 71-74]. Agora,
numa postura sincrética, apresenta-se adiante as interpretações de outros comentadores de Spinoza acerca da beatitude
ou da liberdade superior na Ética. Mas, antes disso, cabe observar que não há a negação de nenhuma dessas
interpretações, tendo em vista que elas se acrescem [ou pelo menos não negam] ao que está concluído no corpo
principal do texto. Então, aqui vão elas: Lívio Teixeira [2001] expõe que “nossa liberdade e nossa salvação e nossa
perfeição hão de vir quando, ultrapassando as visões parciais e inadequadas do universo, nos unirmos pela inteligência e
pelo amor ao próprio Todo - que é Deus” [TEIXEIRA, 2001, p.37-38]; Ezcurdia [2008] também diz algo parecido: “[...]
a imanência e a autonomia humana encontram sua expressão mais elevada no amor a Deus, e o amor a Deus só se
afirma a partir de uma imanência e uma autonomia que se traduzem na própria afirmação – epistemológica, ética e
política – do homem” [EZCURDIA, in cadernos espinosanos, 2008, p. 39-40]. Delbos [2002] diz aos seus leitores que
a liberdade superior spinoziana condiz com “a potência de agir, elevada ao máximo, isto é, produzida ou regulada pela
razão, é o que constitui a liberdade. Espinosa esboça então [...] uma espécie de retrato do homem livre, em que se
mostra a “natureza humana superior” que deve servir de modelo” [DELBOS, 2002, p. 148]; Ivan Domingues [1991],
fazendo remissão a Lima Vaz [1988], conclui também consistentemente que “antes de mais nada, quem aceita as
exigências da razão e quer oferecer-nos, não uma moral, mas uma ética, deve reconduzir a diversidade dos éthe
empíricos à unidade substancial de uma arché e dobrar o espetáculo das ações singulares à afirmação deste ser
fundamental – a substância causa sui – na atualidade do agir – o conatus” [DOMINGUES, 1991, p.119, 121]; no
mesmo sentido, Alcântara Nogueira explicita que “Spinoza construiu sua ideologia sem perder de vista, um só instante,
a sua adaptação à natureza humana, elegendo, ao mesmo tempo, um tipo de valor que tinha a capacidade de ofertar ao
homem um estado de segurança mental e psíquica, em face das outras ações que só proporcionariam prazeres
passageiros, para seguir-se toda a sorte de angústias e incertezas, terminando, constantemente, com a própria morte de
quem os obtivesse [...] essa atitude, com efeito, traduzida como forma de pensar a vida, resume-se em liberdade interior
e conhecimento [...] Essa compreensão de Spinoza está no mais íntimo de sua auto-reflexão e, numa única vez, de
maneira decidida e profunda, ele a revelou, quando discutiu o tema, diretamente, em relação à sua própria vida”.
Ademais, “Spinoza entendeu que a felicidade ou a infelicidade do homem, dependia de uma única coisa – da qualidade
do objeto ao qual nós aderimos por amor (inqualitate objecti, cui adhaeremus amore)” [NOGUEIRA, 1976, p.56; 51-
52]; Fragoso [2004] salienta “que os homens só poderão ser livres, no sentido spinozista do termo, à medida que eles se
identifiquem com o infinito, seja conhecendo através da razão o que é em si a necessidade das coisas, e ajam conforme
à lei universal da natureza infinita, seja pela ideia intuitiva da sua essência singular, eles vivam interiormente o ato
incondicionado pelo qual Deus os introduz absolutamente na eternidade” [FRAGOSO, in Kalagatos, 2004, p.127];
Chauí, sobre a questão diz que “a liberdade não é livre arbítrio da vontade – seja esta divina ou humana –, mas a ação
que segue necessariamente das leis da essência do agente, ou, em outras palavras, a liberdade não é escolha entre
alternativas externas possíveis, mas a autodeterminação do agente em conformidade com sua essência [CHAUÍ, 2011,
p. 69]; Farias Brito [1957] aponta coadunando São Paulo à Spinoza que “Deus é a luz. Quer dizer: dentro da luz nos
movemos, agimos e estamos, - para empregar a expressão vigorosa e fecunda de São Paulo. É dentro da luz que tudo se
passa; é pela luz que tudo se explica. [...] Os homens e quaisquer outros seres de natureza espiritual são apenas centros
de percepção luminosa. O sol, a lua, as estrelas, todos os corpos luminosos do espaço infinito, são apenas objetivações
ou mais precisamente, momentos da luz” eternamente livre [BRITO, 1957, p. 239].
150
Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio [sapiens] e o quanto ele é
superior ao ignorante [ignaro], que se deixa levar apenas pelos apetite lúbrico. [...]
o sábio, enquanto considerado como tal, dificilmente tem o ânimo perturbado
[animo movetur]. Em vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em
virtude de uma certa necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre,
da verdadeira satisfação de ânimo [verâ animi acquiescentiâ] (EVPXLIIs.; SO2,
p.308).

****
Aqui está então a completude do itinerário spinoziano pelo qual se conduz o homem à
beatitude ou a liberdade suprema. A partir de uma ordem de inquirições que se dá por meio dos
pressupostos da ciência intuitiva humana [a relembrança do sistema spinoziano e do intelecto de
Deus], da própria ciência intuitiva humana e, por conseguinte, daquilo que dela se decorre [a
suprema perfeição; a suprema alegria; o amor intelectual a Deus], consegue-se, por conseguinte,
anunciar a solução do problema fundamental deste trabalho: o da liberdade suprema ou da beatitude
do homem. E o que é a beatitude ou a liberdade suprema para Spinoza? Em suma, pode se dizer
que, para Spinoza, a beatitude ou a liberdade suprema é o amor intelectual que a mente intuitiva
sente, tal qual o intelecto divino, pela essência formal daquilo que constitui a essência ativa do
homem: os atributos pensamento e extensão de Deus. Ademais, esse afeto do amor intelectual da
mente para com os atributos pensamento e extensão [pelo qual o homem conquista uma liberdade
suprema] é a causa real do afeto de suprema alegria da mente para com a essência [mente/corpo]
do homem. Com efeito, essa prescrição spinoziana, a qual conduz à adequada maneira de viver
[estado de beatitude ou de liberdade suprema], proporciona uma verdadeira satisfação à mente do
homem sábio ou virtuoso, o que o leva: [a.] a agir com potência eterna de produção de ideias; [b.] a
não padecer de afetos passionais lúbricos252.
De forma inigualável e mesmo sem se referir explicitamente à Spinoza, Charles Baudelaire
já parecia compreender nos oitocentos – muito antes do ano de feitura desta dissertação – o real
sentido da beatitude spinoziana. Se é assim como parece, por que não findar este trabalho com a
apreciação vindoura de uma das citações do poeta e ensaísta francês?

Eu viajava. A paisagem na qual eu me encontrava era de uma grandeza e uma


nobreza irresistíveis. Algo delas decerto passou naquele momento para minha alma.
Meus pensamentos esvoaçavam com uma leveza igual à da atmosfera; as paixões
vulgares, como o ódio e o amor profano, me pareciam agora tão distantes como as

252
É mesmo como expõe Maria Luísa Ribeiro Ferreira em seu artigo Espinosa e a relação Todo/Partes: “O sábio é
necessariamente virtuoso pois o conhecimento impele-o à prática da virtude, trazendo-lhe felicidade. Há um cruzamento
da racionalidade, da utilidade própria e do valor ético. O homem como ser desejante é dinâmico. Levado a agir para
conservar o ser próprio, vai paulatinamente compreendendo que aquilo que lhe é útil contribui para a sua realização e,
como tal, é bom. Ora o que mais convém ao homem, pelo poder que lhe confere, é o conhecimento. Ao conhecer-se o
homem vai também conhecendo o Todo no qual está inserido” [FERREIRA, in conatus, 2010, p.88].
151
névoas que resvalam no fundo do abismo aos meus pés; minha alma me parecia tão
vasta e tão pura como a cúpula do céu que me envolvia; e a lembrança das coisas
terrestres só me chegava ao coração enfraquecido e diminuído, como o som da
sineta dos gados imperceptíveis que passavam longe, bem longe, na vertente de
outra montanha (BAUDELAIRE, 2010, p. 85)253.

****

253
[1865]. No original: “Je voyageais. Le paysage au milieu duquel j'étais placé était d'une grandeur et d'une noblesse
irrésistibles. Il en passa sans doute em ce moment quelque chose dans mon âme. Mes pensées voltigeaient avec une
légèreté égale à celle de l'atmosphère; les passions vulgaires, telles que la haine et l'amour profane, m'apparaissaient
maintenant aussi éloignées que les nuées qui dévalaient au fond de abîmes sous mês pieds; mon âme me semblait aussi
vaste et aussi pure que la coupole du ciel dont j'etais envelloppé; le souvenir de choses terrestres n'arrivait à mon coeur
qu'affaibli et diminué, comme le son de la clochette des bestiaux imperceptibles que paissaient loin, bien loin, sur le
versant d'une autre montagne”.
152
Conclusão

Esta dissertação se propôs a tratar fundamentalmente do problema da liberdade suprema ou


da beatitude em Spinoza, problema o qual, como acima se demonstrou, tem a sua solução
explicitada no terceiro capítulo. Como se pôde perceber, tal solução foi dada pela mediação do
terceiro gênero de conhecimento ou da ciência intuitiva e, principalmente, daquilo que dela se segue
como o maior dos afetos ativos: o amor intelectual da mente intuitiva para com os atributos
pensamento e extensão de Deus, amor homólogo ao próprio sentimento de liberdade suprema ou
beatitude. Antes disso, a solução da questão da liberdade suprema ou da beatitude [estrita ao
terceiro capítulo] exigiu exposições antecipadas sobre: [a.] a consistência da ontologia spinoziana a
partir da articulação dos conceitos de substância, atributos e modos [infinitos imediatos, infinitos
mediatos e finitos] – capítulo 1 –; [b.] a força da razão contra a servidão – capítulo 2 –. E por quê?
Por dois importantes motivos:
[a.] Não seria possível elucidar o problema da beatitude ou da liberdade suprema em
Spinoza sem a pressuposição dos elementos conceituais [substância, atributos, modos] que estão
envolvidos na ordem das operações internas à ontologia spinoziana. De fato, como é bastante
comum nas correntes metafísicas da tradição filosófica, não é cabível [o que vale também para
Spinoza] a anunciação de uma ética da liberdade suprema sem a explicitação antecipada daquilo
que ela implica como um a priori: a ordem de atuação de um determinado sistema ontológico, a
qual é mediada pela articulação entre substância, atributos e modos. Esse fora justamente o objeto
principal do primeiro capítulo da dissertação: Substância, atributos e modos ou da consistência da
ontologia de Spinoza. Com efeito, as conclusões principais desse capítulo foram as seguintes: [a.1.]
acerca de Deus, Substância ou Causa de si, demonstrou-se a ideia de que ele é essencialmente uma
existência infinita, livre e eterna. Ou seja, ficou explicitado que Deus é um conceito infinito o qual
essencialmente permanece como uma existência viva por toda a eternidade, o que garante a ele a
própria liberdade de si para consigo; [a.1.2.] sobre os atributos de Deus, acatou-se a ideia de que
eles são expressões infinitas em seus gêneros, as quais, em sua totalidade, demarcam a própria
essência da substância ou de Deus. Mostrou-se também que esses atributos são essências
expressivas das quais, na medida em que exprimem a totalidade da essência de Deus, se seguem,
como efeitos, três tipos de modos imanentes; [a.1.3.] por conseguinte, anunciou-se que são três os
tipos de modos que se seguem dos atributos expressivos de Deus: infinitos imediatos, infinitos
mediatos e finitos; [a.1.4.] os modos infinitos imediatos se caracterizam por se seguir
imediatamente da expressão dos atributos de Deus, sendo, por conseguinte e tanto quanto atributos,
eternos e infinitos. Contudo, os modos infinitos imediatos referenciados não são propriamente os

153
atributos pensamento e extensão da substância, mas são leis internas aos atributos. Ou seja, esses
modos infinitos imediatos são modos pelos quais, por exemplo, os atributos pensamento e extensão
[natureza naturante] “inscrevem leis” eternas, estáticas e imutáveis no universo [natureza
naturada]. Com efeito, demarcou-se que os modos infinitos imediatos do pensamento e da extensão
são respectivamente a lei estática do entendimento e a lei estática do movimento; [a.1.5.] sobre os
modos infinitos mediatos, explicou-se que eles são estritamente modificações que decorrem da
mesma maneira para todos os modos infinitos imediatos. Nesse sentido, as leis universais de
entendimento [modo infinito imediato do/no atributo pensamento de Deus] e de movimento [modo
infinito imediato do/no atributo extensão de Deus], tanto quanto todos os outros modos infinitos
imediatos ou leis dos/nos atributos desconhecidos pela percepção humana, “sofrem” como que de
uma mesma modificação infinita [modo infinito mediato], de um só “fluxo vivo eterno”; [a.1.6.]
sobre os modos finitos humanos, apresentou-se a ideia de que são uma espécie de misto de
atividade paralela de mente e de corpo. Ademais, essas atividades [mentais/corporais] são instâncias
eternas [dos atributos pensamento e extensão] as quais, em contrapartida, são “moduladas” ou
constrangidas por causas exteriores, o que, por conseguinte, tornam-as existencialmente finitas. É
nesse sentido que se pôde, com efeito, apontar para a tensão entre a essência eterna [mente/corpo] e
a existência finita dos modos humanos, e, desta tensão, inferiu-se a concepção de conatus. Portanto,
os modos finitos humanos são atividade mental eterna que persevera na existência finita criando
ideias e são atividade corporal eterna que persevera na existência finita criando movimentos;
[a.1.7.] nesse itinerário, ficou provado que as únicas instâncias que constituem a ontologia
spinoziana são substância, atributos e modos [infinitos imediatos, infinitos mediatos e finitos], já
que tal ontologia atua em sua ordem plena [da substância e seus atributos para os modos] por meio
da articulação estrita desses conceitos. Esse foi, portanto, o primeiro passo para a solução do
problema da liberdade suprema ou da beatitude em Spinoza.
[b.] Para elucidar a liberdade suprema na Ética de Spinoza foi também preciso anunciar o
que a força da razão humana podia contra a servidão. E por quê? De modo primeiro, porque em
Spinoza não seria permitida [como o próprio itinerário da EIII à EV anuncia] à passagem definitiva
à liberdade suprema ou à beatitude sem a mediação de um método racional que prescrevesse o
seguinte ao homem: o combate frontal à imaginação humana e à servidão que dela se explicita.
Com efeito, a conquista da liberdade suprema [3º capítulo] só pôde ser exposta a posteriori a partir
de uma via indireta [capítulo 2ª], a qual demonstrou como o homem deveria lutar racionalmente
contra a imaginação e a servidão em que geralmente se encontra mediante a exterioridade. Essa via
demonstrada, obviamente, só serve de prescrição ao homem que pretende: redescobrir a força
afirmativa da sua essência [imanente aos atributos pensamento e extensão divinos] e, por
conseguinte, conquistar um primeiro nível de liberdade, determinada em uma escala antropológica.
154
Ademais, ao fim do segundo capítulo se anunciou também que a questão da liberdade suprema
spinoziana não estava resolvida, já que ele discriminou estritamente uma liberdade sob certos
limites antropológicos, liberdade a qual anunciou um modelo de homem livre [racional] que se
pautaria apenas na luta contra a servidão das paixões em sociedade, e não no amor incondicional
pelos atributos pensamento e extensão de Deus [objeto incondicional da liberdade suprema]. Nesse
itinerário, os principais resultados obtidos no segundo capítulo foram: [b.1] a servidão humana é
especificamente a incapacidade da mente do homem em refrear ou regular sua produção de ideias
ou afetos passivos [primordialmente alegres ou tristes], dada por meio de afecções ou imagens
[“boas” ou “ruins”] do corpo, o qual é constantemente dependente das coisas fortuitas da
exterioridade [objetos mais ou menos “prejudiciais”] para agir; [b.2.] a razão é o esforço [conatus]
de produção ativa de ideias mentais em si e por si e que, por meio de tal esforço, é possível a
superação da servidão da própria mente; [b.3.] por conseguinte, isso pode proporcionar
reflexivamente o alcance da liberdade do homem [mente-corpo] sob certos limites [sócio-
antropológicos]. Portanto, as exposições a respeito da ontologia spinoziana e de suas operações
[capítulo 1] e da força da razão sobre os afetos passionais [capítulo 2] foram realmente
imprescindíveis para a subsequente e definitiva resposta ao problema da liberdade suprema ou da
beatitude.
Com esse “prelúdio” [capítulos 1 e 2], pôde-se então responder com consistência ao
problema da liberdade suprema ou da beatitude no terceiro capítulo [Ciência Intuitiva e Suprema
Liberdade Spinoza]. Para solucionar esse problema foi preciso discorrer de antemão sobre a ciência
intuitiva spinoziana [primeira seção], a qual exigiu: [1.] a retomada da ordem do mecanismo da
ontologia spinoziana, a partir dos elementos fundamentais que a envolvem [substância, atributos,
modos infinitos e finitos]; [2.] a exposição acerca do intelecto divino, o qual tem o entendimento a
priori da verdadeira ordem em que atua o mecanismo da ontologia spinoziana [da substância para
os modos]. Disso, extraiu-se a conclusão de que a ciência intuitiva é a adequada compreensão
humana [na mesma perspectiva do intelecto divino] de uma determinada ordem ontológica, a qual
parte da essência da substância e seus atributos pensamento e extensão para a essência dos modos
humanos. Além disso, concluiu-se, ainda na primeira seção, que a ciência intuitiva também permite
o conhecimento adequado da essência ativa dos atributos pensamento e extensão de Deus e da
essência ativa dos modos humanos que dos primeiros se seguem. Por fim, a segunda seção [A
liberdade suprema ou a beatitude] do terceiro capítulo buscou solucionar o problema específico da
liberdade suprema ou da beatitude por meio de três consequências da ciência intuitiva spinoziana: a
suprema perfeição da essência [mente/corpo] humana que se segue dos atributos pensamento e
extensão; o afeto de suprema alegria da mente para com a essência suprema do homem
[mente/corpo]; o amor intelectual da mente intuitiva para com os atributos pensamento e extensão
155
de Deus, elementos os quais, como foi dito, constituem de determinada maneira a essência do
próprio homem. Com efeito, a partir dessa terceira consequência se pôde dizer ao fim e ao cabo que,
para Spinoza, a beatitude ou a liberdade suprema seria o amor intelectual que a mente intuitiva
sente, tal qual o intelecto divino, pela essência formal daquilo que produz a essência ativa
[mente/corpo] do homem: os atributos pensamento e extensão de Deus. Com efeito, dessa
prescrição spinoziana a qual conduz à adequada maneira de viver [estado de beatitude ou de
liberdade suprema], inferiu-se que insurge no homem uma verdadeira satisfação mental, aquilo que
o conduz à suprema alegria, felicidade, sapiência e virtuosidade.
Contudo, mantêm-se ainda a pendência para com um problema que é, pelo menos ao que
parece, incontornável: será que essa liberdade suprema ou a beatitude spinoziana pode ser
efetivamente experimentada pelo homem de intuição? Ou seja, é realmente possível, como está
anunciado expressamente ao final da Ética, amar mentalmente [tal qual o intelecto de Deus] as
instâncias ontológicas pensamento e extensão divinos? Para que a liberdade suprema ou para que o
amor intelectual aos atributos pensamento e extensão divinos fosse realmente possível, o
spinozismo certamente deveria: [a.] provar que a natureza opera a priori por meio da ordem lógica
a qual Spinoza diz que ela contém em si [da essência da natureza naturante – atributos pensamento
e extensão de Deus – para a essência da natureza naturada – modos infinitos e finitos –]254; [b.]

254
A petição dessa prova se apóia, sem dúvida, nas severas [apesar de coerentes e não idiossincráticas] críticas de
alguns filósofos posteriores a Spinoza, tais como Arthur Shopenhaeur [1788-1860] e François Chatelêt [1925-1985].
Apesar de possuírem concepções distintas de filosofia, pautadas em princípios morais-filosóficos realmente
discrepantes em natureza, esses dois autores parecem se posicionar contra à ontologia de Spinoza em uníssono: [i.] nos
oitocentos, Shopenhauer, em seu livro primeiro [Do mundo como representação] de Mundo como vontade e como
representação [1818/1819], diz que a ontologia de Spinoza é constituída, em sua ordem sistêmica predeterminada, por
conceitos [substância, atributos etc.] totalmente arbitrários, ou seja, “subjetivos”. Ademais, referindo-se estritamente à
intuição spinoziana [a qual, como foi demonstrado, é aquilo que, para Spinoza, conduz o homem à beatitude] ainda
acresce: “[...] aquilo que lhe era [à Spinoza] de maneira certa e posto a partir de uma concepção imediata, intuitiva da
essência do mundo, ele o procurava demonstrar logicamente, independente daquele conhecimento. O resultado
intencionado e de antemão já conhecido, ele alcançava apenas tomando como ponto de partida conceitos estabelecidos
arbitrariamente (substantia, causa sui etc.), permitindo-se no curso da demonstração todas as arbitrariedades
oportunamente ensejadas pela natureza das amplas esferas conceituais” [SHOPENHAUER, 1818, livro I, § 15, p. I91;
Ed. UNESP, 2005, livro I, § 15, p. 130]. Por conseguinte, o filósofo, de forma radical, diz mais: “não é possível uma
filosofia, como Spinoza ansiava, dedutível // demonstrativamente ex firmis principiis [a partir de princípios fixos]”
ordenados logicamente [Idem., p. I98; Idem., p. 136]. É obvio que Shopenhauer não acredita na ontologia [ou na ordem
lógica do sistema] de Spinoza e na concretude de sua intuição mental porque tem como pressuposto a percepção
kantiana [vide, por exemplo, o prefácio da primeira edição da Crítica da Razão Pura - 1781] de que a filosofia deve ser
impedida, sob qualquer hipótese, da possibilidade de se empreender na constituição dos pressupostos formais “de uma
causa efficiens ou de uma causa finalis do mundo inteiro” [Ibidem.; Idem., p. 137]. Todavia, restaria inquirir se
Shopenhauer não teria caído nos mesmos erros dos pensadores metafísicos que lhe são anteriores [tais como Spinoza]
ao concluir que a natureza do mundo é constituída intrinsecamente por um princípio [Uno] universal e eterno intitulado
de Vontade, o qual, apesar de não ter uma lógica matemática predeterminada, também [à maneira de Shopenhauer] é
passível de representações ou intuições singulares. [Cf., por exemplo, SHOPENHAUER, 1818, livro II, § 23, p. I134;
Ed. UNESP, 2005, livro II, § 23, p.171]; [ii.] nos novecentos, François Chatelêt, segundo capítulo [O exercício da
Filosofia e o projeto do Enunciado Integralmente Legitimado] de sua obra Logos e Praxis [Logos et Praxis, 1962],
exige do spinozismo determinadas provas acerca da existência do sistema ontológico de Spinoza. Segundo ele, “resta,
no entanto, uma dificuldade dirimente: mesmo que aceitássemos em sua totalidade o spinozismo, mesmo que
encontrássemos em cada momento do desenvolvimento uma razão para concordar, subsistiria uma questão que o
sistema não permite resolver universalmente. Esta questão pode ser assim formulada: por que Spinoza é o homem que
156
provar que as instâncias ontológicas pensamento e extensão de Deus são conceitos expressivos
eternos e que, com efeito, a eternidade dos atributos é imanente à essência [mente/corpo] do
homem; [c.] provar a existência a priori de um intelecto divino o qual possa, antes da mente
humana, inteligir e amar todos os atributos, assim como, em nível estrito, inteligir e amar os
atributos pensamento e extensão; [d.] provar que a essência da mente humana é parte eterna do
intelecto divino, o que, segundo Spinoza, a levaria a intuir e amar [beatitude ou liberdade suprema],
tanto quanto ele [o intelecto divino], a natureza estrita dos atributos pensamento e extensão.
Portanto, enquanto a filosofia spinoziana não passar pelo crivo desse sistema de provas, não
se pode defender, ao lado do próprio Spinoza e de seus discípulos, que o seu maior objetivo seja
realmente alcançável: fazer o homem conquistar eticamente um amor intelectual a Deus, uma
liberdade suprema, uma beatitude, uma salvação ou uma felicidade. Reitera-se por fim: é de fato
possível se pensar a experiência ética de uma liberdade ontológica spinoziana? Se essa experiência
é questionável, como realmente obter, por conseguinte, uma verdadeira satisfação de ânimo, uma
concreta afirmatividade interior [aumento pleno de conatus] em meio aos frêmitos imperceptíveis
que a própria vida imputa constantemente no espírito dos homens? 255

soube entrar em contato imediato com o Ser? Assim, o mais admirável produto da vontade metafísica, revela o limite
último do esforço de legitimação, tal como é concebido pelo metafísico: mesmo que nos colocássemos originariamente
no Absoluto e recolhêssemos o assentimento universal seria ainda necessário mostrar por que o Absoluto se dá dessa
maneira [...] Revela-se, pois, a metafísica, como uma doxa de tipo especial que tão pouco é capaz de provar a
autenticidade da “Substância” quanto a opinião é capaz de provar o valor da aparência [...] O fracasso da metafísica leva
a pensar que não existe saber Absoluto” [CHATELÊT, 1972, P.118-9]. De resto, cabe problematizar algo parecido com
o que [nos quinhentos] Montaigne anunciara em Apologia de Raymond Sebond [Ed. Martins Fontes, 2006], e que [nos
setecentos] Hume reiterara já em Tratado da Natureza humana [Ed. Calouste Gulbenkian, 2001. Cf. Seções IV e V da
Parte IV da obra]: sabendo que a imaginação é uma espécie de princípio permanente e universal intrínseco aos homens,
como não defender a ideia de que as ontologias [spinozista ou não, em conflito ao longo da história da filosofia] sejam
opiniões abstratas [“doxologias”, à maneira de Chatelêt] lógico-relativistas?
255
Sem dúvida, estas duas últimas perguntas são elaboradas a partir de um impulso relativamente nietzschiano, ou, mais
precisamente, a partir daquilo que está imerso no §372 [Por que não somos idealistas] do livro V de A gaia ciência. No
aforismo em questão, Nietzsche diz aos seus leitores o seguinte: “Houve um tempo em que [...] um verdadeiro filósofo
não escutava mais a vida, na medida em que esta é música, ele negava a música da vida [...] Esses velhos filósofos não
tinham coração: filosofar sempre foi uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, mesmo em Spinoza, não sentem
vocês algo de profundamente inquietante e enigmático? [...] quero dizer, fórmulas, palavras, (pois, perdoem-me, aquilo
que restou de Spinoza, o amor intellectualis Dei [amor intelectual a Deus], é um ruído, nada mais! O que é amor, o que
é deus, se lhes falta qualquer gota de sangue?...)” [NIETZSCHE, A gaia ciência, livro V, §372; Ed. Companhia das
letras, 2001, p. 275-276].
157
Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Pablo. “A multidão contra o povo: Spinoza e o exórdio de uma democracia por vir” in:
Spinoza & Nietzsche: filósofos contra a tradição. Rio de Janeiro: Mauad, 2011, p.163-180.

BAUDELAIRE, Charles. Pequenos poemas em prosa. Tradução de Dorothée de Bruchard. 2ªed.


São Paulo: Hedra, 2010.

BRITO, Farias. A finalidade do Mundo: estudos de filosofia e teologia naturalista [vol. 2º]. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.

BRUNSCHVICG, Leon. Spinoza et ses Contemporains. 5ªed. Paris: Presses Universitaires de


France, 1971. (Bibliothéque de Philosophie Contemporaine).

CHANTAL, Jaquet. “Do eu ao si: a refundação da interioridade em Spinoza” in: As ilusões do eu:
Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011, p.349-366.

_________________. A unidade do corpo e da mente: Afetos, ações e paixões em Espinosa.


Tradução de Marcos Ferreira de Paula e de Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica,
2011.

CHÂTELET, François. Um História da Razão: Entrevistas com Émile Noel. Tradução de Lucy
Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

_________________. Logos e Praxis. Tradução de Roland Corbisier. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1972.

CHAUÍ, Marilena. A nervura do real: liberdade e imanência em Espinosa. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.

_________________. “A posição do agente da liberdade na Ética V” in: Cadernos espinosanos,


estudos sobre o século XVII. São Paulo, n.XXII, jun. 2010, p.11-25.

_________________. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.

_________________. Espinosa: uma filosofia da liberdade. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2005.

_________________. “Ser Parte e Ter parte: Servidão e Liberdade na Ética IV (prefácio, definições
e axiomas)” in: Discurso. São Paulo, n.22, 1993, p.63-122.

D'ABREU, Rochele Cysne Frota. “Amor intelectual a Deus em Espinosa” in: Conatus – filosofia de
Spinoza. Fortaleza, v.1, n.2., dez. 2007, p.69-81.

DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

158
DELBOS, Victor. O espinosismo: curso proferido na Sorbonne em 1912-1913. Tradução de
Homero Silveira Santiago. São Paulo: Discurso Editorial, 2002.

DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Tradução de Emanuel Ângelo da
Rocha Fragoso, Francisca Evilene Barbosa de Castro, Hélio Rebello Cardoso Junior e Jeferson
Alves de Aquino. Fortaleza: EdUECE, 2009.

_________________. Espinosa: filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.
São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34,
2010.

DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Minuit, 1969.

_________________. Spinoza: Philosophie Pratique. Paris: Minuit, 1981.

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundação das ciências


humanas. São Paulo: Loyola, 1991.

DESCARTES. Meditações. Introdução de Gilles-Gaston Granger. Tradução de J. Guinsburg e de


Bento Prado Junior. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)

EZCURDIA, José. “Imanência e amor na filosofia de Espinosa” in: Cadernos espinosanos, estudos
sobre o século XVII. Tradução de Homero Santiago. São Paulo, n.XIX, jul-dez. 2008, p. 11-46.

FERREIRA, Maria Luísa Ferreira. “Espinosa e a relação todo Todo/Partes” in: Conatus – filosofia
de Spinoza. Fortaleza, v.4, n.8., dez. 2010, p.83-98.

FRAGOSO, Emanuel Ângelo da Rocha. “Considerações sobre a definição VII da parte I da Ética
de Benedictus de Spinoza” in: Kalagatos, revista de filosofia do mestrado acadêmico em filosofia
da UECE. Fortaleza, v.1, n.1, 2004, p.107-128.

_________________. “As definições de causa sui, substância e atributo na Ética de Benedictus de


Spinoza” in: UNOPAR Cient., Ciênc.Hum. Educ. Londrina, v.2, n.1, jun. 2001, p.83-90.

_________________. “Considerações acerca da teoria dos modos na Ética de Spinoza” in: Semina:
Ci. Soc. Hum. Londrina, v.22, set. 2001, p.35-38.

_________________. “A concepção da natureza humana em Benedictus de Spinoza” in: Cadernos


espinosanos, estudos sobre o século XVII. São Paulo, n.XIX, jul-dez. 2009, p. 83-95.

GARRET, Don. “A representação e a consciência na teoria materialista de Spinoza” in:


Interpretando Espinoza: ensaios críticos. Tradução de Getúlio Schanoski Jr. São Paulo: Madras,
2010, p.15-40.

GUEROULT, Martial. Spinoza. Paris: Aubier-Montaigne, 1997. 2 v.

_________________. Spinoza. Paris: Aubier-Montaigne, 1968. 2 v.

HOBBES, Thomas de Malmesbury. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e


civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3ª Ed. São Paulo: Abril
159
cultural, 1983. (Coleção Os Pensadores)

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Serafim da Silva Fontes. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

HUENEMANN, Charlie. “A autonomia epistemológica em Espinoza” in: Interpretando Espinoza:


ensaios críticos. Tradução de Getúlio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2010, p. 121-140.

JAMES, Susan. “A democracia e a boa vida na filosofia de Espinoza” in: Interpretando Espinoza:
ensaios críticos. Tradução de Getúlio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2010, p. 161-182.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre
Fradique Morujão. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LIBET, Benjamin. “Time of conscious intention to act in relation to onset of cerebral activity
(readiness potential) the unconscious initiation of a freely voluntary act” in: Brain. Oxford: Oxford
University Presses, 1983, 106, p.623-642.

MACHEREY, Pierre. Introduction à l'Ethique de Spinza: La cinquième partie, les voies de la


libération. Paris: Presses universitaires de France, 1994.

MAIMÔNIDES, Moses. Shemona Perakim - Oito capítulos: introdução a ética dos pais. Tradução
de Alice Frank. São Paulo: Maayanot, 1992.

MARTON, Scarlett Marton. “Nietzsche e Spinoza: “os dois irmãos-inimigos da filosofia moderna”
” in: O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.1-16.

MATHERON, Alexandre. Individu et Comunauté chez Spinoza. Paris: Minuit, 1969.

MIQUEU, Christophe. “A aposta do spinozismo ou o fim do finalismo” in: O mais potente dos
afetos: Spinoza e Nietzsche. Tradução de Fernando Dias Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 2009,
p. 113-145.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios II: Apologia de Raymond Sebond. Tradução de Rosemary
Costhek Abílio. 2ªed. SãoPaulo: Martins Fontes, 2006.

MOREIRA, Adriana Belmonte. “Potência da razão e liberdade humana: uma análise do prefácio,
axiomas e das quatro primeira proposições da parte V da Ética” in: Cadernos espinosanos, estudos
sobre o século XVII. São Paulo, n.XXII, jan-jul. 2010, p. 141-160.

NOGUEIRA, Alcântara. O método racionalista-histórico em Spinoza. São Paulo: Mestre jou, 1976.

NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas –
e como ela pode mudar as nossas vidas. São Paulo: Companhia das letras, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

PAULA, Marcos Ferreira de. Alegria e Felicidade: a experiência do processo liberador em


Espinosa. Orientadora: Marilena Chauí; USP, 2011. Tese.

160
_________________. “O problema do desinteresse na filosofia de Spinoza” in: O mais potente dos
afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p.233-245.

PEREIRA, Rafael Rodrigues. “O conatus de Spinoza: auto-conservação ou liberdade” in: Cadernos


espinosanos, estudos sobre o século XVII. São Paulo, n.XIX, jul-dez. 2008, p. 73-90.

PERSCH, Sérgio Luís. “A presença do método nas definições iniciais da parte II da Ética de
Espinosa” in: Cadernos espinosanos, estudos sobre o século XVII. São Paulo, n.XIX, jul-dez 2009,
p. 96-117.

PONCZEK, Roberto Leon. “Uma definição geométrica e uma interpretação física para os atributos
de Spinoza” in: Conatus – filosofia de Spinoza. Fortaleza, v.1, n.1., jul. 2007, p.81-86.

ROCCA, Michael Della. “Racionalismo em fúria: a representação e a realidade das emoções


segundo Espinoza” in: Interpretando Espinoza: ensaios críticos. Tradução de Getúlio Schanoski Jr.
São Paulo: Madras, 2010, p. 41-72.

ROCHA, Maurício. “Spinoza e o Infinito – a posição do problema” in: Conatus – filosofia de


Spinoza. Fortaleza, v.3, n.5., jul. 2010, p.71-79.

ROSENTHAL, Michael. “Espinoza e a filosofia da história” in: Interpretando Espinoza: ensaios


críticos. Tradução de Getúlio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2010, p.141-160.

SANTOYO, Victor-Manuel Pineda. “Hermenêutica e pluralismo subjetivo: o fundamento da


liberdade no pensamento de Espinosa” in: Cadernos espinosanos, estudos sobre o século XVII. São
Paulo, n.XXI, jul-dez. 2009, p. 41-82.

SHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair


Barboza. São Paulo: UNESP, 2005.

SPINOZA, B. Epistolae. Tradução de Atilano Dominguez. Madrid: Alianza Editorial, 1988.

_________________. Ethica-Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Ed. bilíngüe latim-português. Belo


Horizonte: Autêntica, 2007.

_________________. Ética. Tradução e notas da Parte I de Joaquim de Carvalho, tradução das


Partes II e III de Joaquim Ferreira Gomes, tradução das Partes IV e V de Antônio Simões. São
Paulo: Abril Cultural, 1ªed., 1972, 2ªed., 1979, 3ªed. 1983. (Coleção Os Pensadores)

_________________. Spinoza Opera. Im Auftrag der Heidelberg Akademie der Wissenschaften


herausgegeben von Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winter, 1925; 2.Auflage 1972, 4v [SO1, SO2,
SO3 e SO4].

_________________. Tratado Breve. Tradução, prólogo e notas de Atilano Dominguez. Madrid:


Alianza Editorial, 1990.

_________________. Tratado Político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São
Paulo: Martins Fontes, 2009.

_________________. Tratado da Reforma da Inteligência. Tradução, introdução e notas de Lívio


Teixeira. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

161
_________________. Tratado teológico-político. Tradução, introd. e notas de Diogo Pires Aurélio.
3ª ed. Lisboa: Imprensa nacional-casa da moeda, 2004.

TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de


Espinosa. São Paulo: Edunesp, 2004. [1670]

TUCK, Richard. “Hobbes and democracy” in: Rethinking the foundations of modern political
thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.

VAZ, H. C. Lima. Escrito de filosofia II – Ética e cultura. São Paulo: Loyola, 1988.

162
POR UMA ANTI-SODOMIA FILOSÓFICA

Ok, a memória de você me corrói. Arrasta-me por um impulso degenerador, instanciado abaixo
desta frágil pele. E então? Deixo as tuas imagens me degenararem, galgarem cada uma das minhas
artérias e expremê-las até o sangue jorrar, vazar pela narina como secreção? Isso tudo é muito
soturno. Como me comover com sua essência natural se ela reflete-se em mim claustrofobicamente
por meio de imagens memoráveis, acontecimentos imperativos, absolutos. Que diabos de negrume
luminoso tu pregaste aqui dentro? Por acaso pensa que não reagirei a tua imagem em minha cruz
vertebrosa? Evito até os ícones de Jesus de se pendurarem em mim, imagine você e suas imagens
filosóficas. O interior do meu corpo não é árvore seca com galhos para macaquear. Não respeitas a
privacidade de meu corpo púdico? Invade-o assim? Não posso te processar por invasão domiciliar,
tendo em vista a trágica comédia da miscelânea de emissões as quais você deixou em mim e que
não param para serem capturadas às claras. Nenhum dia a polícia te pega, as entidades federais,
digamos assim, os médicos, acabaram de me investigar por dentro, com raios-x e ressonâncias
magnéticas. Não te encontraram, só eu te vejo, só eu enlouqueço por me tornar homólogo a você
dentro da minha própria terra. Com efeito, minha esquizofrenia, ocasionada por você em mim, é
inuniversalizável e, por conseguinte, relativa. Te sinto à minha maneira, para melhor ou para pior.
Ao fim e ao cabo, sem querer te sigo dia e noite para entender os teus próximos passos ao longo dos
meus músculos fragilizados, magoados por tuas altivas e andarilhas expressões em mim: DEIXA-
ME MORALIZADOR DE ARAQUE. Não sou nietzschiano, mas paciência. Aceito um pouco de ti,
sem dúvida, mas Todo o teu ser?! Por que não me pedira antes com calma, primeiramente com aulas
de mímica e, em seguida, com o velho KY [ou com cuspe mesmo], penetrando-me num quarto
luminoso. Mas não, em temáticas acerca da invasividade em torno das sombras você é especialista.
Está sempre por trás, nas sombras, e é imperceptível. Seu porra! Algemou-me por inteiro com os
teus princípios. Meu corpo tornou-se cadeia após o teu estupro. Não resta mais nem chorar, pois
nem a mim mesmo eu irei recuperar. Hora de partir sem mais tardar, por meio de um
empreendimento ético que fará, por definitivo, as tuas sábias imagens serem destronadas pelos
vermes malditos assentados sob a terra mesclada às águas barrentas dos cemitérios envolventes do
mar.

163

Você também pode gostar