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FICHA DE TRABALHO

Ficha de Leitura
Crónica de um Piropo, de Miguel Esteves Cardoso
Português – Módulo 1: Poesia Trovadoresca, “Crónica de D. João I”
Curso Animador/a Sociocultural e Técnico/a Turismo – 2021/2024

Lê atentamente a crónica “Piropo”, de Miguel Esteves Cardoso:

Piropo

"A vida de qualquer rapaz deve ser ler, escrever e correr atrás das raparigas. Esta última parte é muito
importante. Hoje em dia, porém, os rapazes já não correm atrás das raparigas – andam com elas. A diferença entre
“correr atrás” e “andar com” é, sobretudo, uma diferença de energia. Correr é galopar, esforçar, persistir, e é alegria,
entusiasmo, vitalidade. Andar é arrastar, passo de caracol, pachorrice, sonolência. O amor não pode ser somente uma
partida de golfe, em que dois jarretas caminham devagar em torno de alguns buraquinhos. Tem de ser, pelo menos, os
400 metros barreiras.
Os dois sintomas mais preocupantes desta nova tendência para a letargia erótica são, por um lado, a
decadência acelerada do piropo, do galanteio, e por outro, o culto solene e obstinado da sinceridade. Ambos
contribuíram para facilitar a sedução, tornando a própria sedução numa coisa muito menos sedutora, já que não há
maior afrodisíaco que a dificuldade.
Os rapazes de hoje já não perguntam às raparigas se os anjos desceram à terra, ou que bem fizeram a Deus
para lhes dar uns olhos tão bonitos. Dizem laconicamente, com o ar indiferente que marca o “cool” da
contemporaneidade “Vamos aí?”. Ou simplesmente “bora aí?”. Nos últimos tempos, tanto em Lisboa como na linha de
Cascais, esta economia de expressão atingiu até o cúmulo de se cingir a um breve e local “Bute?”. “Bute” significa
qualquer coisa como “Acho-te muito bonita e desejável e adoraria poder levar-te imediatamente para um local distante e
deserto onde eu pudesse totalmente desfazer-te em sorvete de framboesas”. Mas, como os rapazes só dizem “Bute?”,
são as pobres raparigas que têm de fazer o esforço todo de interpretação e enriquecimento semântico. São assim
obrigadas a perguntar às amigas “Ó Teresinha, o que é que achas que ele queria dizer com aquele bute?”. E chegam à
desgraçada condição de analisar as intenções do rapaz mediante uma série de considerações pouco líricas – foi um
“Bute” terno ou ríspido, sincero ou mentiroso, terá sido apaixonado ou desapaixonado?
Isto não pode ser, até porque há uma tradição a manter. Imagina-se alguma rapariga a dizer “Ai, Lena…
Quando ele disse “Bute” subiu-me o coração à boca!”. A verdade é que o coração é um órgão bastante precioso e só se
dá ao trabalho de subir à boca quando se lhe dão excelentes motivos para isso. De uma maneira geral, todas as
palavras que não se imaginam num soneto de Camões são impróprias. O amor pode ser um fogo que arde sem se ver,
mas não basta tomar o facto por dado e dizer simplesmente “Bute” – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que
não arda, mesmo que se veja.
A própria palavra piropo (do latim “pyropo”) tem óbvias conotações incendiárias. Alguns alquimistas definiam
esta pedra como sendo uma mistura de “três partes de lata e uma de ouro, que fica da cor do fogo”. A lata é

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extremamente importante – sem ela não se pode construir um bom piropo. Não só basta a parte de ouro (o sentimento,
ou desejo) – faltam mesmo os demais 75 por cento. E o piropo faz falta, mesmo que seja só, nos preparos de amor, o
“pequeno grão de arroz” de que fala a cantiga…
Dentre todos os piropos, o mais lindo (e mais português) é o piropo que se dirige, de passagem, a uma
rapariga bonita. Não é o piropo que procura obter algo em troca – não é o piropo interesseiro do engate – é o piropo per
si, e desinteressado. Diz-se quando ela passa e deixa-se que ela passe sem responder. O piropo desinteressado é o
supra-sumo desta arte e deve entender-se como o pagamento poético de uma dívida.
Ela é bonita – você gostou de a ver. Em troca, inventa uma coisa bonita para lhe dizer, sem esperar outra
recompensa senão a enorme recompensa de saber que ela o ouviu. Qualquer rapariga gosta de (e merece) ouvir um
piropo destes. Em contrapartida, nenhuma rapariga tem paciência para as alternativas cada vez mais habituais; o
basbaque calado que fica a ver, o engatatão incómodo que marcha atrás da rapariga como um detective pouco
particular, o ordinário que se mete, até o banana tímido e ensimesmado que nem sequer se dá ao trabalho de olhar.
É preciso acabar com a escandinavização do erotismo português. Não é só o piropo que morre. São as cartas
de amor, as flores de um anónimo admirador, as boas frases de apresentação e toda a panóplia de doces artifícios que
deveriam estar sempre presentes na preocupação de um bom rapaz português. A escandinavização (exercício físico,
comidas saudáveis, windsurf e sexo sem culpa e sem graça) tem, como fator mais perigoso, o culto à sinceridade. É
triste, mas é verdade. Hoje em dia quase ninguém mente! Os rapazes dizem “não és muito bonita, mas até te gramo”, e
as raparigas respondem “preferia o Richard Gere, mas já que aqui estás…”.
Isto não pode ser. Para qualquer rapaz, a rapariga com quem está (ou quer estar) não pode ser senão a mais bonita do
mundo inteiro. A honestidade é a morte do encantamento. Bem utilizada, a mentira criativa chega ao ponto de
convencer o próprio mentidor. Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão (“era capaz de morrer por ti”, por
exemplo) é sempre uma contribuição espetacular a favor do “live aid” do coração. A verdade é nua e crua, e nisto
parece-se bastante com um bife de peru. As coisas nuas têm de ser misteriosa e lindamente vestidas, e as cruas têm
sempre de ser cozinhadas. Ninguém gosta de bife de peru, mas uma vez panadinho com pão ralado, e enfeitado com
agriões e rodelas de limão, e servido num prato branco e limpo com um sorriso impecável… Come-se já.
Há uma medida eficaz contra a banalização e simplificação das relações amorosas, mais portuguesa que
escandinava, e mais agradável que andar a butes. É namorar. Todas as mulheres – sejam raparigas ou mulheres,
esposas de há 20 anos, conhecidas ou desconhecidas, mais ou menos bonitas, não importa – todas elas têm de ser
convincentemente, absolutamente e permanentemente namoradas. Se não, não vale a pena – nem para elas nem para
eles.
Na rua ou em casa, no trabalho ou no liceu, não deixe que nenhuma rapariga bonita passe por si em vão. Com correção
e jeito, lance-lhe um piropo sentido e desinteressado, e verá como sabe bem. Pense que nunca mais irá vê-la outra vez
(o que é quase sempre verdade) e aproveite aquela única oportunidade. Ou, sendo esposa ou namorada, sua ou de
outra pessoa, também não fica mal. O amor, pode ter a certeza, tem de estar no ar tanto como no lar.
A propósito, você ficou ainda mais bonita depois de cortar o cabelo."

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1. Que críticas são tecidas ao longo do texto?

2. Explica o significado de cada uma das expressões:


2.1 “Uma mentirazinha que vá um nadinha contra a razão (“era capaz de morrer por ti”, por exemplo) é sempre
uma contribuição espetacular a favor do “live aid” do coração.”

2.2 “O amor pode ser um fogo que arde sem se ver, mas não basta tomar o facto por dado e dizer
simplesmente “Bute” – é preciso dizer que arde sem se ver. Mesmo que não arda, mesmo que se veja.”

3. Faz uma breve apreciação crítica do texto que acabaste de ler.

O/A Professor/a: Elizabeth Ferreira

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