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SERGIO DONADONI

O HOMEM

N. Cham.: 94(32) H765


Tiuilo: O homem egípcio .

294741 Ac. 470538

Ex. I PUC-Goiás BC
A presente colecção gira sobre um eixo fundamental: o Homem
no tempo e na História. Assim se pretende estudar e dar a conhe­
cer a um vasto público as diferentes actividades e comportamen­
tos que 0 Homem desenvolveu em todos os campos (laborai,
social, religioso, cultural), nas diversas épocas dos grandes perío­
dos da História Universal. Este é um trabalho fértil em descober­
tas e pleno de possibilidades de confronto com o Homem de hoje.
Uma colecção que conta com a colaboração de estudiosos das
diferentes perspectivas que cada época nos oferece, e com a
direcção de grandes especialistas de reputação internacional.

O camponês, o artesão, o escriba, o funcionário, o sacerdote, o escravo,


o estrangeiro, os mortos, o soldado, o faraó: as figuras mais significativas
do Antigo Egipto são aqui retratadas pelos estudiosos mais prestigiados
a nível mundial, coordenados por Sérgio Donadoni. São perspectivas
distintas que, na globalidade, dão ao leitor uma imagem compósita da
sociedade egípcia. Para além da ideia que nos habituámos a fazer do
Antigo Egipto, através dos restos materiais que deixou, o leitor tem agora
acesso a perspectivas convergentes que constituem uma interessante
aproximação daquilo que deverá ter sido a vida quotidiana no tempo dos
faraós, descrevendo simultaneamente mehtalidades e comportamentos.
Uma abordagem fascinante dentro das coordenadas metodológicas mais
inovadoras, que contribui de forma notável para um conhecimento mais
aprofundado da milenária civilização egípcia.

O HOMEM E A HISTORIA
1. o HOMEM MEDIEVAL, Direcção de Jacques le Goff
2. O HOMEM RENASCENTISTA, Direcção de Eugenio Garin
3. O HOMEM ROMANO, Direcção de Andrea Giardina
4. O HOMEM GREGO, Direcção de Jean-Pierre Vernant
5. O HOMEM EGÍPCIO, Direcção de Sérgio Donadoni
o. BERLEV, E. BRESCIANI, R. A. CAMINOS,
S. DONADONI, E. HORNUNG, ‘IBADA AL-NUBI,
A. LOPRIENO, S. PERNIGOTTI, A. ROCCATI, D. VALBELLE

O HOMEM e g íp c io
Direcção de Sergío Donadoní

Tradução de:
M a r ia Jorge V il a r d e F ig u e ir e d o

E D IT O R IA L S PRESENÇA
FICHA TÉCNICA

Tîtulo original; L ’Uomo Egiziano


Autores: O. Berlev, E. Bresciani, R. A. Caminos,
S. Donadoni, E. Hornung, ‘Ibada al-Nubi,
A. Loprieno, S. Pernigotti, A. Roccati, D. Valbelle
Direcção de: Sergio Donadoni
© 1990, Gius. Laterza & Figli Spa, Roma-Bari
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 1994
Tradução de: Maria Jorge Vilar de Figueiredo
Capa: Ramsès II — Relevo
Composição: Mirasete — Artes Gráficas, Lda.
Impressão e acabamento: Guide — Artes Gráficas, Lda.
1.® edição, Lisboa, 1994
Depósito legal n.° 73969/94

Reservados todos os direitos


para a língua portuguesa à
EDITORIAL PRESENÇA
Rua Augusto Gil, 35-A 1000 LISBOA
IN T R O D U Ç Ã O

Não é fácil remontar ilesos o fluir do tempo até universos que, sob aspectos por
vezes familiares e simples, ocultam diferenças tão profundas que — se não fossem
tidas em conta — tornariam difícil qualquer compreensão. Por isso, é essencial recor­
dar preliminarmente que, entre nós e o Egipto antigo, houve uma profunda fractura.
O desaparecimento da capacidade de leitura dos textos em que se exprimiu a
sua obstinada e indómita vontade de transmitir, de geração para geração, a
súmula das suas experiências e dos seus memoranda não deixa decerto de ter um
motivo: bastante antes do período em que os últimos hieróglifos foram esculpi­
dos, em finais da época imperial romana, o vigor da civilização egípcia já se
tinha tornado penosa sobrevivência, lenta marginalização das vias mestras da his­
tória em direcção a uma mítica e exangue idealização.
Por isso, para a nossa civilização, o Egipto constitui menos uma realidade do
que um lugar ideal que possa servir de base para fantasias elogiosas ou depreciati­
vas, portanto, para concepções que não nasceram no seu seio. Alternadamente sábio
ou cruel, opulento ou tirânico, ímpio, supersticioso e avisado, infantil, politicamente
exemplar, piedoso e cínico, o Egipto dos antigos (e até ao Iluminismo) é tema fre­
quente de reflexões várias, mas recusa-se fundamentalmente à compreensão.
A obra genial de decifração levada a cabo por Champollion, no início da
época romântica, alterou muito a situação; a possibilidade de estabelecer um con­
tacto directo com as fontes e os monumentos dava de novo ao mundo egípcio a
oportunidade de usufruir do interesse por mundos diferentes do mundo clássico,
interesse que é típico dessa época (e, a propósito, bastará recordar a longa carta
que Champollion escreveu a von Humboldt para lhe apresentar o seu sistema e os
primeiros resultados). Assim se facilitou a introdução da civilização do Nilo nos
quadros da historicidade: no seu primeiro encontro com os monumentos cuja voz
era o primeiro a ouvir, Champollion saboreava o desenrolar de uma cronologia,
o perfil de uma estrutura social, a organização de uma linguagem e de uma lín­
gua, e dava início a uma obra de recuperação que se encontra ainda — e espera-se
que continue — in fieri. A ruptura entre o mundo do Egipto antigo e a nossa pos­
sibilidade de conhecimento, a fractura de que falávamos atrás, parece assim ter
sido colmatada pela leitura desses textos antes fechados e que passavam a revelar
abertamente a sua mensagem.
Porém, se analisarmos as coisas um pouco mais de perto, a situação é dife­
rente. Outros universos historiográficos — como a história romana, grega ou
medieval — chegam até nós já enquadrados numa longa tradição que revelou,
repetida e incessantemente, a sua organicidade, interpretando factos e dados
voluntariamente seleccionados, por vezes em função de um determinado valor,
repensados, refutados, reinterpretados — e que constituem o depósito comum de
uma multívoca convivência de pontos de vista, um esquema de referência de base
(positiva ou negativamente) para a nova pesquisa específica ou para a narração.
Esse lastro tranquilizador (e estabilizador) falta a quem se debruce sobre a his­
tória egípcia e sobre todas as outras cujo acesso se afigure idêntico. Não existe
aqui um desenho orgânico que tenha ao mesmo tempo as suas raízes na contem-
poraneidade e que se tenha depois confrontado com uma tradição historiográ-
fica. Em vez do lento amadurecimento dos séculos, houve uma primeira tentativa
para incluir num quadro racional dados e informações que não provêm de uma
opção preliminar e voluntária, mas que, em certa medida, são fruto do acaso.
Aquilo que sabemos acerca do Egipto antigo é-nos fornecido — mesmo fisica­
mente — pelo próprio Egipto: pelo seu território tão fecundo sob o ponto de
vista arqueológico, que é capaz de conservar e de nos dar aquilo que, em outros
países, é impensável, incluindo os papéis escritos — os papiros —, ou seja, docu­
mentos específicos e autênticos a todos os níveis, desde as contas privadas até aos
textos reais e aos textos literários.
Não deixa de ser significativo o facto de, desde que começaram a efectuar-se
escavações no Egipto e se recuperaram papiros das épocas grega e romana, a his­
toriografia do mundo clássico ter enriquecido as suas temáticas e as suas técnicas
de pesquisa e ter mostrado aos historiadores do Egipto antigo o que esses mate­
riais documentais significam, aproveitando-se da sua experiência mais longa e
realçando-a e servindo-se da possibilidade de confrontar os resultados dessa autóp­
sia imediata com os dados da tradição (dados que, neste caso, vão desde as narra­
ções dos historiadores até aos textos literários e aos grandes compêndios jurídicos).
Todavia, essa confrontação com documentos e fontes que, no que se refere ao
Egipto antigo, são as inscrições, os papiros e as reproduções, é dificultada pelo
facto de esses documentos e essas fontes chegarem até nós como fruto do acaso,
único factor a que fica a dever-se a sua conservação e, posteriormente, a sua des­
coberta. Um papiro não se salva por ter estado guardado num arquivo, mas por
não ter sido colocado numa camada demasiado húmida, por ninguém se ter ser­
vido dele para acender o lume, por não ter passado por perto uma cabra que o
pudesse mordiscar ou por o responsável pelas escavações ter adoptado as técnicas
adequadas para o recuperar. Não existe qualquer desígnio oculto que tenha
levado a conservá-lo para o transmitir como documento específico. O mesmo se
passa com as inscrições, que nos fornecem uma infinidade de dados, referentes
aos reis e aos homens comuns. É evidente que as informações que elas nos forne­
cem deverão ser lidas tendo em conta a ideologia que lhes é inerente; porém, é
frequente faltar-nos o ponto de referência que nos permita detectar as diferenças.
Por isso, há demasiados relatos de feitos soberanos ou outros textos aparente­
mente narrativos que foram interpretados à letra por historiadores modernos,
quando um leitor egípcio teria instintivamente (ou melhor, baseando-se na sua

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cultura) sabido avaliar o seu valor mais autêntico de tipização e de símbolo, em
comparação com a relativa insignificância do facto específico, evocado como oca­
sião ou até como pretexto.
Apesar de toda a sua irreprimível necessidade de escrever, o Egipto antigo rara­
mente — muito raramente — se sentiu tentado a descrever-se, a teorizar as suas
estruturas, a reunir o seu património histórico e jurídico; deu testemunho de si atra­
vés de um fluxo contínuo de informações pontuais, personalizadas, num redemoi­
nho de dados desgarrados que nos compete a nós tentar reunir. Por isso, temos
com o mundo egípcio uma intimidade que não possuímos com outros mundos anti­
gos — intimidade essa que o liga a nós por pormenores vividos — e, ao mesmo
tempo, há em nós uma incerteza quanto ao ambiente geral, cujos contornos fuga­
zes são desenhados segundo convenções historiográficas posteriores e diversas.
Para serem coerentes, estas cautelas preliminares deveriam desencorajar qual­
quer tentativa de abordagem do mundo do Nilo e, quando muito, levar-nos a
aceitar, pelos inúmeros valores supratemporais que possui, a experiência artística
despojada do seu carácter histórico. Todavia, é demasiado pouco para quem
tenha um mínimo de experiência egiptológica.
Antes do mais, o próprio volume das ruínas dessa civilização é tão imponente
que acaba, só por si, por ter um significado. Durante pouco menos de trinta e
cinco séculos, acumularam-se resíduos e depósitos de factos ligados entre si por
um fio condutor bem identificável, por vezes muito evidente, outras vezes mais
ténue, mas que se pode sempre detectar. É seguindo esse fio — ou melhor, esses
fios porque há, naturalmente, mais do que um — que esse mundo fechado pode
ser ordenado e revela maneiras de ser, problemas de devir.
A avaliação de uma experiência tão fechada acabou por ser dúplice: por um
lado, há a necessidade de traduzir para a linguagem de uma problemática viva e
actual (a nossa) o que está expresso numa língua morta; por outro lado, realçou-
-se a íntima diferença de valor que é atribuída mesmo àquilo que se nos apresenta
como indiscutível e óbvio. Perante estas duas atitudes opostas o que importa não
é tanto escolher uma ou outra, mas testar constantemente os resultados dessas
abordagens e conferir assim a maleabilidade necessária àquilo que, de outra
forma, continua a ser mera documentação.
É certo que o mundo egípcio parece, em certos aspectos, singularmente mo­
derno: a estrutura da família (fundamentalmente, pais e filhos) tem pouco peso
em comparação com o peso de uma estrutura tribal que liga por laços de sangue
indivíduos afastados, obrigando-os a uma solidariedade automática; o sistema
hereditário divide os bens em partes substancialmente iguais, repartindo-os pelos
cônjuges sobrevivos e pelos filhos; no domínio do direito privado, uma vontade
livre e documentalmente expressa tem valor autónomo, e a mulher possui uma
personalidade jurídica que lhe permite fazer testamento ou servir de testemunha
sem necessitar de um tutor; não existe o conceito de satisfação pessoal através da
vingança (não existe sequer uma palavra que a designe) e mesmo na mitologia os
conflitos entre os deuses são resolvidos perante um tribunal. Por outro lado, e
passando a factos mais gerais, a estrutura do Estado com base territorial, a sua
natureza potencial de império universal, a meticulosidade de uma administração
ordenada numa escala hierárquica bem definida, o peso da vida civil colectiva
(incluindo os grevistas em defesa dos seus direitos) são factores que, nesta medida
e com esta clareza, nos dão uma imagem tão compreensível do Egipto que acaba­
mos por perder a noção da individualidade específica dessas características.
Um exemplo: a centralidade do Estado na sociedade egípcia é a justificação
para a potencial igualdade entre o homem e a mulher (e, mais em geral, entre os
cidadãos), para a ausência de uma mentalidade tribal, para a possibilidade de
execução de grandes obras colectivas, para a organização da actividade e produti­
vidade agrícolas à escala nacional, para a importância da lei como elemento de
resolução dos conflitos, para a unidade linguística e cultural, etc. Estes são alguns
dos dados que nos revelam um mundo que, aparentemente, pode ser transferido
para o nosso modo de pensar e não ter em conta esta realidade de facto seria não
só injusto mas também errado.
Todavia, como não recordar, ao mesmo tempo, que, no Egipto, o «Estado» é
concretamente o «Faraó», portanto um conceito que possui um valor mitológico
associado ao seu valor racional? A obrigação de ter em conta essas duas exigên­
cias, a genericamente racional e a caracteristicamente mítica, equivale àquilo que
acontece a quem traduz de uma língua estrangeira para a sua língua: tem de estar
atento e compreender (para depois o exprimir) o significado concreto do que está
expresso, mas, acima de tudo, tem de sentir o valor e a autonomia expressiva da
língua original. Assim, estamos perante duas experiências opostas, mas igual­
mente vivas, que exigem que nos apercebamos de uma única realidade, vista do
exterior naquilo que pode significar e, do interior, naquilo que é.
No entanto, sob (ou sobre, de acordo com a atitude que se adoptar) este pro­
blema de compreensão e de interpretação, mantém-se, firme e basilar, a docu­
mentação. Fragmentária, casual, privada de um quadro de referência, díspar: será
assim que a encontrará, e, repetimos, sem a ajuda de uma base tranquilizadora,
quem ler os ensaios incluídos neste volume. Aperceber-se-á da desigualdade da
sua espessura, mas também compreenderá com que objectivos e em que medida
se pode confiar nela.
É evidente que seria arbitrário (e dizemos mesmo que é arbitrário porque,
embora prevaricando, é algo que acontece com frequência) deduzir uma história
de acontecimentos da pontualidade dos factos seguramente identificáveis. As dores
de dentes de Amenófis III, confirmadas pelo exame necroscópico da sua múmia;
a alegria de Pepi II quando, em criança, lhe anunciaram a chegada iminente de
um anão bailarino oriundo da África central, confirmada pelo texto da carta escrita
por ele próprio; as muitas outras pequenas curiosidades ou as notáveis informações
que, pontualmente, chegam até nós não conseguem elaborar uma história coerente
de factos, de tão fragmentárias que são. E o mesmo se pode dizer dos relatos de
vitórias e de feitos incluídos nas autobiografias enaltecedoras que, porém, como refe­
rimos, superam o dado narrativo com uma intenção que não é documental.
Contudo, estas aparentes limitações não significam que não é possível traçar
e compreender outra história, a história das estruturas, muitas vezes orgânica, e
que cada vez mais se apresenta aos estudiosos como aquilo que é, ao mesmo tempo,
possível e racional.
Por isso, o mundo egípcio, feito de expressões e de testemunhos pessoais, é trans­
ferido para um conjunto tipicamente coral, para nossa segurança e para

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tranquilidade dos historiadores. É o preço a pagar por um anedotário divertido, e
por vezes apaixonante, mas que acaba por ser ineficaz se ultrapassar os seus limites.
Os títulos dos ensaios reunidos neste volume revelam, de facto, uma atitude
isoladamente tipificante; porém, se analisarmos mais de perto, veremos que o seu
conjunto serve para revelar várias facetas de uma mesma realidade, aquela que,
na civilização egípcia, tem de longe o maior peso: a estrutura do Estado. Acerca
de cada uma das personagens que dão o título aos vários capítulos não se per­
gunta «quem é?», mas «o que faz?». Funcionários, camponeses, escribas, solda­
dos, sacerdotes, escravos desempenham fundamentalmente uma actividade com­
plementar da actividade de outros, uma tarefa necessária para o funcionamento
da estrutura social em que estão inseridos.
Por conseguinte, o que temos diante de nós é, de facto, a descrição de uma
única realidade historiográfica, que exclui forçosamente muitas das mais profun­
das actividades egípcias: a arte, a especulação religiosa, a experiência moral só
aparecerão em esboço, privilegiando-se o fio condutor da identificação da racio­
nalidade e do laicismo (se é que tem algum sentido utilizar estas palavras, neste
contexto) que regem as relações entre os homens no antigo Vale do Nilo. Trata-se
de um empobrecimento em relação a um quadro que poderia ser mais complexo,
mas é fiel a uma univocidade que é proclamada no título e não conduz o leitor
para aventurosos devaneios.
Assim, a ambição desta obra é evidente: tornar o Egipto antigo o mais com­
preensível possível em relação ao mundo cultural em que vivemos, mantendo,
porém, evidentes as diferentes perspectivas que lhes permitem ser, simultanea­
mente, análogos e diferentes.
Devo, porém, acrescentar que propus a mim próprio, como organizador, uma
outra experiência didáctica muito subtil. Foram convidados a colaborar estudio­
sos de várias procedências e idades. As diferenças de formação cultural dos auto­
res dos ensaios, a maneira diferente como utilizam o mesmo material e até as suas
idiossincrasias talvez comprometam um quadro que se julga dever ser unitário.
Todavia, porquê ocultar que a nossa disciplina não reduz a pesquisa a uma única
perspectiva, que cada estudioso imprime nela concepções, motivos de investiga­
ção, paixões que inevitavelmente dão cor à sua obra e que isso é até um pouco
mais frequente do que noutros domínios, onde uma longa maturação da vulgata
encerra em perspectivas mais rígidas pelo menos certas características gerais?
No final desta série de ensaios, espera-se que o leitor fique com uma noção
mais precisa do que foi a sociedade egípcia na sua evolução como conjunto de
homens que têm por ideal agir em conjunto, e, ao mesmo tempo, a noção de que
se pode analisar essa remota realidade para nela procurar coisas diferentes e que,
se isso acontecer, será sobretudo uma demonstração da sua riqueza vital: contra­
dições e incertezas são mais fecundas e verdadeiras do que concordâncias perenes
e seguras. Com a condição de se querer superá-las: é o que confere um sentido à
nossa profissão.
Sérgio Donadoni

i Ricorsi, Setembro de 1990

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CAPITULO I

O CA M PO N ÊS

p o r R ic a rd o A . C a m in o s
«Peasants are all those who live
on the land by their own labour»
W alter A. R aleigh

Desde tempos imemoriais até aos nossos dias, o Egipto sempre foi, acima de
tudo, um país agrícola. A agricultura foi sempre a base da sua economia e, no
decorrer da sua longa história, o seu bem-estar e a sua prosperidade sempre
dependeram dos produtos da terra. Foi o cultivo da terra ou, em última análise,
o constante, perseverante, duro, obscuro e, muitas vezes, desprezado e sempre mal
remunerado trabalho do agricultor que tornou possíveis todas as obras que deram
ao Egipto uma posição de primeiro plano entre as nações da Antiguidade pré-
-clássica. As pirâmides de Gizé, as syringae tebanas, as estátuas colossais, os obe­
liscos e os templos imponentes que surpreenderam os visitantes gregos e romanos,
tal como surpreendem ainda hoje os turistas modernos, as jóias finamente traba­
lhadas, os linhos finíssimos, as alfaias e os utensílios de todo o género, hoje dis­
persos em colecções por todo o mundo, o conforto doméstico da camada supe­
rior da população, as conquistas militares, a expansão comercial, a influência e
o prestígio no exterior, em suma, toda a herança deixada pelo Egipto à humani­
dade tem na sua base o suor do rosto do camponês.
Durante os três milénios da história do Egipto, o camponês foi a espinha
dorsal da nação. Todavia, conhecemo-lo e conhecemos a sua classe social de
uma forma confusa, imperfeita e unilateral. Nada sabemos directamente, isto é,
através de documentos redigidos na primeira pessoa que tenham chegado até
nós. É um facto desagradável, mas que não surpreende; na realidade, sendo
maioritariamente analfabetos, os camponeses egípcios não nos deixaram teste­
munhos escritos da sua vida e das suas pessoas, das suas aspirações, das suas
esperanças e da sua opinião acerca da sua humilde condição e do seu infortu­
nado destino. O camponês situava-se no degrau inferior da escala social, era
uma molécula da enorme massa de gente vulgar, indistinta, que constituía a
maioria da população egípcia. Lutava durante toda a vida com a miséria, as pri­
vações e o cansaço físico e desaparecia sem deixar no mundo vestígios de si pró­
prio: o seu cadáver era abandonado no deserto ou, na melhor das hipóteses, era
lançado para uma estreita vala cavada na areia, sem qualquer pedra tumular
com o seu nome.

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o que sabemos sobre o camponês egípcio provém de fontes epigráficas, literá­
rias e não literárias, e de fontes arqueológicas.
A documentação epigráfica consiste em testemunhos iconográficos e escritos —
pinturas, relevos, textos — conservados, na sua grande maioria, nos túmulos dos pro­
prietários e dos ricos da época, desde a era das pirâmides até ao período greco-romano.
Excertos que falam das condições de vida do camponês encontram-se aqui e
ali em várias composições literárias, sobretudo do Médio e do Novo Império, e
também nos autores clássicos, sobretudo nos gregos — Heródoto, Diodoro Sículo
e Estrabão — que, nas suas obras, relataram vários pormenores das actividades
rurais que se desenrolavam ao longo do Nilo; embora reflictam a situação existente
na época tardia, quando a civilização faraónica, então com quase três mil anos,
era apenas uma pálida sombra do esplendor passado e se aproximava do seu fim,
revestem-se de um considerável interesse. Há ainda testemunhos não literários escri­
tos em papiro que também nos dizem muito acerca do modo de viver e da activi-
dade do camponês egípcio. Nesta categoria de materiais são de especial importância
os papiros demóticos e gregos, que chegaram até nós em grande quantidade;
referem-se, naturalmente, à situação no período ptolomaico, mas a vida nos cam­
pos por eles documentada pode ser projectada para o passado, mesmo remoto. De
grande valor é, também, a documentação arqueológica, que consiste em alfaias agrí­
colas, como cestas para sementes, sachos, enxadas, foices, crivos, todos os utensí­
lios que o colono egípcio usava no seu trabalho, e em instrumentos a eles associa­
dos, como cordas, cestas, peneiras, que chegaram até aos nossos dias em grande
variedade e de vários períodos, e ainda em miniaturas de madeira estucadas e pin­
tadas que reproduzem com um delicioso realismo diversos episódios da vida rural.
Tem de se reconhecer que as fontes de que dispomos estão distribuídas de um
modo bastante desigual, quanto à época e quanto aos locais; apesar disso, parece-
-nos possível traçar um quadro relativamente coerente dos vários aspectos da vida
agrícola que, como esperamos, não andará muito longe da realidade. O leitor
deve ter sempre presente que os Egípcios eram um povo bastante conservador e
que, em todas as sociedades, as actividades agrícolas e os camponeses são, e sem­
pre foram, os mais conservadores e os que mais lentamente se modificam.
Quanto à agricultura egípcia e à vida dos que a ela se dedicavam, o que é válido
para um determinado período é-o também, fundamentalmente, para os outros.
Os mais simples utensílios agrícolas, uma vez desenvolvidos, continuaram a ser
utilizados com alterações mínimas durante séculos: as actividades descritas no
túmulo de Petosíris, datado de 350 a. C., diferem muito pouco, ou mesmo nada,
das reproduções de trabalhos agrícolas nas mastabas do Antigo Império, edifica­
das vinte e três ou vinte e quatro séculos antes. A dureza da vida, os aconteci­
mentos, as preocupações e os problemas diários do camponês egípcio parecem
ter mudado muito pouco durante todo o período dinástico e mesmo depois, até
aos nossos dias, quando a introdução de novos métodos de irrigação, a electrifi-
cação e, sobretudo, a construção, em 1972, do Saad el-Ali (o Grande Dique) de
Assuão, começaram a modificar o sistema e o ritmo tradicional da actividade
agrícola do país. É devido a esse conservadorismo, quase diríamos a esse imobi­
lismo, do tipo de vida agrícola egípcia que os textos de historiadores árabes como
Mowaffaq-Eddin Abd el-Latif (11627-1231) e Tagi ed-Din el-Maqúzi (1364-1442),

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OS relatos de viajantes europeus no Egipto dos séculos xvii, xviii e xix e, por
último, mas não menos importantes, as obras sobre os usos e costumes dos
modernos egípcios escritas por observadores perspicazes como os eruditos que,
em 1798, acompanharam a expedição de Napoleão ao Egipto e, em anos recentes,
por antropólogos e etnólogos como Winifred Susan Blackman e Nessim Henry
Henein contribuem para melhorar consideravelmente os nossos conhecimentos e
a nossa compreensão da situação dos camponeses no período faraônico.
Desde o nascimento até à morte, o camponês estava irremediavelmente ligado
à terra que cultivava, fosse quem fosse o proprietário. O sistema ou o regime de
propriedade fundiária foi mudando ao longo das várias épocas, de acordo com
as vicissitudes políticas do país, mas é bastante duvidoso que essas mudanças
tenham alterado significativamente a qualidade de vida ou o tipo e os processos
do seu trabalho. Quer cultivasse as terras pertencentes à Coroa, os campos per­
tencentes ao templo, ou a herdade de um grande proprietário, a situação era
quase sempre a mesma; só os camponeses que trabalhavam para certos templos
é que podiam esperar ser isentos das corveias: falaremos deles mais adiante.
O que condicionava de uma forma vital o camponês e, afinal, toda a nação
era a cheia anual do Nilo, que irrigava e, ao mesmo tempo, fertilizava a terra.
A cheia surgia e cessava com indefectível regularidade durante os meses de Verão.
Fruto de copiosas chuvas na África subtropical e do degelo nas terras altas etío-
pes, a cheia ocorria, em Junho, em Assuão e, como não era detida por barragens
ou diques, precipitava-se para norte, atingindo Mênfis cerca de três semanas
depois. Antes disso, penetrava imperceptivelmente nas terras aráveis, mediante
um processo de infiltração que enchia depressões e pântanos e humedecia as
camadas inferiores do solo. Em meados de Julho, o nível das águas começava a
subir rapidamente e a água, transpondo as margens do rio, cobria a terra até uma
altura de dois metros ou mais. Desde meados de Agosto até meados de Setembro,
todo o vale se encontrava inundado e parecia um longo, estreito e sinuoso lago,
semeado de aldeias e cidades construídas nos terrenos mais elevados. Depois, a
cheia diminuía gradualmente e, em finais de Outubro, já o nível das águas voltara
ao seu nível normal, deixando o solo bem humedecido e, sobre ele, uma camada
de lama cheia de detritos orgânicos e de sais minerais, alimentos naturais da terra
que não eram decerto inferiores aos melhores fertilizantes modernos. Também
deixava atrás de si poças de água espalhadas pelos campos: as «bacias» ou
depressões, que eram complementadas por uma complexa rede de diques cons­
truídos pelo homem, lagos e canais, formando um sistema de irrigação denomi­
nado «irrigação por bacias», já confirmado no período pré-dinástico e utilizado
ininterruptamente no Egipto ao longo de toda a sua história: de facto, nos anos
60, ainda era utilizado no Alto Egipto.
Heródoto e Diodoro Sículo ficaram maravilhados com a cheia do Nilo e com
os seus efeitos benéficos para a agricultura do país. O «Pai da História» escreve
o seguinte:

«Em todo o mundo, ninguém obtém os frutos da terra com tão pouco trabalho.
Não se cansam a sulcar a terra com o arado ou a enxada, nem têm nenhum dos traba­
lhos que todos os outros homens têm para garantir as colheitas. O rio sobe, irriga os

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campos e, depois de os ter irrigado, torna a baixar. Então, cada um semeia o seu
campo e nele introduz os porcos para que as sementes penetrem na terra; depois, só
tem de aguardar o período da colheita. Os porcos também lhes servem para debulhar
o trigo, que é depois transportado para o celeiro.» (Heródoto, 2, 14.)

Diodoro, por seu lado, declara que o Nilo supera todos os rios do mundo pelos
benefícios que proporciona à humanidade, e acrescenta que as águas da cheia, que
sobem lentamente, arrastam consigo lama fresca e fértil e impregnam os campos,
tornando a tarefa do camponês ao mesmo tempo leve e proveitosa. Mal as águas
voltam ao seu nível normal, os camponeses começam a trabalhar o solo, que ficou
mole e húmido com a cheia; a sementeira e a colheita eram bastante fáceis:

«A maior parte deles lança apenas as sementes, leva os rebanhos para os campos
e eles enterram as sementes: quatro ou cinco meses depois, o camponês regressa e faz
a colheita. Alguns camponeses servem-se de arados leves, que removem apenas a
superfície do solo humedecido e depois colhem grandes quantidades de cereal sem
grande despesa ou esforço. De uma forma geral, entre os outros povos, todo o tipo de
trabalho agrícola comporta grandes despesas e canseiras; só entre os Egípcios é que a
colheita se faz com poucos meios e pouco trabalho.» (Diodoro Sículo, 1, 36.)

Embora errada, esta visão cor-de-rosa da situação agrícola no Vale do Nilo


tem uma explicação. Heródoto e Diodoro vinham de países onde era necessário
trabalhar muito para se conseguir uma magra colheita de um solo hostil e
rochoso. Portanto, ficaram impressionados com o que viram: uma terra fértil irri­
gada por um grande rio, bom clima, searas abundantes, diversidade de produtos
agrícolas. Para eles, o Egipto era um Eldorado campestre. Todavia, na realidade,
a situação era muito diferente e qualquer fellah antigo (e mesmo os modernos)
poderiam desenganá-los.
O fenômeno natural da subida e descida das águas do Nilo ocorria, com uma
regularidade previsível, todos os anos e sempre na mesma época. O que nem sem­
pre era idêntico era o volume da cheia, facto de uma importância fundamental
porque implicava prosperidade ou catástrofe. Tanto a escassez da água, o cha­
mado «baixo Nilo», como o seu excesso, o «alto Nilo», significavam anos difíceis
para todo o país. Quando as águas do rio não subiam o suficiente para irrigar a
terra de cultivo, lavrava-se uma superfície demasiado pequena para a colheita da
estação seguinte, o que provocava inevitavelmente carestias e dificuldades: era a
situação que os Egípcios designavam por «anos de fome». Pelo contrário, quando
a cheia era excessiva, acabava por ser ainda mais desastrosa, já que destruía a
rede de diques e canais de irrigação, causando frequentemente perdas de vidas
humanas, de searas e de gado; além disso, como observa Plínio o Velho (5, 10,
58), o excesso de água exigia um período mais longo para o seu nível voltar à nor­
malidade, deixando pouco tempo para a sementeira, a germinação e a colheita
antes da nova cheia. Os camponeses conheciam bem esta situação porque eram os
primeiros a sofrer com a irregularidade do Nilo. Mesmo quando o nível da cheia
era óptimo (o que se designava por «grande Nilo») e atingia a altura que, por
experiência, se sabia ser geradora de maior produtividade, o trabalho dos campos

18
não podia ser deixado ao acaso. Ápis, a divina encarnação da cheia, fora gene­
roso e trouxera prosperidade ao país e por isso se entoavam hinos em seu louvor,
agradecendo-lhe. Contudo, a sua generosidade e o seu favor não eram suficientes
para que as searas crescessem. O árduo trabalho do homem nos campos conti­
nuava a ser preciso. Dii facientes adiuvant. O camponês egípcio sabia-o melhor
do que qualquer sábio da sua terra, dado que, enquanto os outros davam ordens
e emanavam directivas, era ele quem executava materialmente o trabalho.
As semanas que se seguiam ao fim da cheia eram um período de grande traba­
lho. Canais, diques e regos obstruídos pela lama, destruídos ou arrastados pelas
águas tinham de ser reparados ou reconstruídos, porque eram essenciais para o bom
funcionamento do sistema de irrigação por bacias. Para pôr de novo a funcionar
esse sistema, o camponês tinha de trabalhar árdua e rapidamente; com efeito, a ope­
ração tinha de estar concluída o mais depressa possível, antes de a terra secar: a cava
e a lavra que, com a sementeira, constituíam a primeira parte do ciclo agrícola, eram
bastante mais fáceis quando a superfície do solo ainda estava enlameada, mole e
húmida, o que não se verificaria durante muito tempo sob o quente sol egípcio.
A típica enxada egípcia consistia num pedaço de madeira desbastada, que ser­
via de lâmina, introduzido transversalmente na extremidade de um cabo também
de madeira e atado com uma corda: era um utensílio grosseiro e simples em
forma de A, com uma perna mais curta do que a outra; havia também enxadas
feitas de uma só peça, construídas a partir de um ramo bifurcado. Derivado da
enxada, o arado era tão simples como a sua antecessora e é de supor que, origi­
nalmente, não seria mais do que uma enxada que era arrastada pelo solo, pri­
meiro por um homem, depois com a ajuda de uma corda e, finalmente, por bois.
O arado normal do camponês egípcio, que se manteve praticamente inalterável
durante todo o período dinástico, e mesmo depois, já era utilizado no Antigo
Império e era constituído por uma relha, de madeira por vezes revestida de metal,
que penetrava na terra e cuja extremidade inferior estava ligada a uma comprida
estaca de madeira, que tinha na outra extremidade um jugo igualmente de
madeira, em forma de barra transversal, que era atado com uma corda aos chifres
dos bois. Às vezes, porém, o pesado trabalho de arrastar o arado era feito por
homens e não por animais de tiro. Posteriormente, o arado passou a ter uma
rabiça ou, mais frequentemente, duas, fixadas à extremidade inferior da estaca.
Simples ou dupla, a rabiça parece ter sido utilizada mais para fazer com que o
arado penetrasse na terra do que para controlar a sua direcção.
Por vezes, o camponês lavrava sozinho, mas era quase sempre auxiliado por
um companheiro, que guiava os bois e os incitava com um bastão, ou um chicote,
e com gritos. Havia outros trabalhadores que preparavam a terra para a planta­
ção, desfazendo com as enxadas os pesados torrões de terra negra. Havia também
um semeador, que ia extraindo punhados de sementes de uma bolsa ou de uma
cesta que transportava aos ombros e as ia lançando no solo húmido. Se seguia à
frente do arado, os bois iam enterrando as sementes na terra e a relha enterrava-as
depois ainda mais profundamente. Quando seguia ao lado do arado, ou atrás
dele, a semente era enterrada por um rebanho de ovelhas que era conduzido atra­
vés dos campos recém-semeados e obrigado a movimentar-se por um camponês

19
que brandia um punhado de erva ou uma mancheia de cereal à frente do focinho
dos animais enquanto um outro instigava com um chicote a manada que balia.
Raramente se utilizavam bois ou burros para este fim; no Delta, Heródoto viu
porcos que pisavam as sementes.
As cenas reproduzidas nos túmulos e que com tanta vivacidade retratam os
trabalhos agrícolas, mostram também o proprietário do túmulo, que podia ser
um funcionário do faraó inspeccionando os trabalhos nas terras pertencentes à
Coroa, o intendente de uma propriedade pertencente a um templo ou um proprie­
tário privado. Fosse quem fosse, era sempre reproduzido em tamanho muito
maior do que os homens e os animais que trabalhavam sob o seu controlo. Ou se
mantinha direito, numa atitude de majestosa dignidade, ou estava sentado num
pavilhão, ao abrigo do sol, tendo a seu lado uma mesa bem fornecida e um servo
que lhe estendia alimentos e bebidas. As inscrições referem que ele chegou ao
local para inspeccionar e controlar ou apenas para ver como prosseguia o traba­
lho nos campos. É o grand seigneur. Podemos estar certos de que, em toda a sua
vida, nunca pegou num arado.
As cenas também incluem frequentemente breves textos que reproduzem, ou
fingem reproduzir, observações feitas a propósito do trabalho dos camponeses,
ordens e ditos trocados entre eles, comentários relativos às condições do terreno
e ao tempo, gritos e incitamentos dirigidos aos animais.
«Em frente, em frente!», grita aos bois jungidos o homem que os guia, e
«Para trás!», quando chegam ao extremo do campo; e, para o semeador:
«Enterra as sementes, enterra as sementes com as mãos!» Um camponês anima
o seu cansado companheiro, que trabalha a seu lado: «Acorda, chefe, para a
frente com os bois. Cuidado! O patrão está cá e está a ver-nos.» Quatro homens
arrastam um arado diante do patrão, que lhes recomendou, sem razão, para se
apressarem, e murmuram entre eles: «Olha para nós, estamos a trabalhar. Não te
preocupes com os campos, estão óptimos!» O jovem camponês que caminha
junto deles, lançando as sementes, completa o que eles dizem, afirmando:
«O ano é bom, não trará miséria, há todas as espécies de plantas em abundância
e os vitelos estão melhores do que tudo o resto.» Um velho camponês exprime a
sua aprovação: «O que dizes é bem verdade, meu filho.»
Há um camponês que se gaba, enquanto, curvado para o solo como os seus
descendentes modernos, vai cavando a terra: «Trabalharei ainda mais do que
aquilo que o patrão quer.» O seu vizinho não é tão zeloso e ele diz-lhe: «Amigo,
despacha-te com o trabalho para poderes ir cedo para casa.»
Tal como os modernos fellahin, também os antigos camponeses egípcios
cantavam durante o trabalho. Um grupo que anda a semear canta uma velha
canção:

«Trabalhamos para o patrão!


O dia está bonito e nós estamos à fresca,
os bois vão puxando, puxando,
o céu está como o desejamos,
trabalhamos para o patrão!»

20
o trabalho nos campos era ininterrupto e as várias operações iam-se suce­
dendo, com dificuldade e intensidade variáveis, sem paragens nem fim.
Depois da sementeira, começava o processo de maturação. Em primeiro lugar,
as terras mais afastadas do Nilo necessitavam de ser posteriormente irrigadas por­
que ficavam secas e para isso era utilizada a água recolhida nas bacias, naturais
ou cavadas à mão pelo homem, e encaminhada para os campos que dela necessi­
tavam através de pequenos canais que saíam dos canais maiores alimentados pela
água das bacias; o curso, a distância a percorrer e a corrente eram regulados por
barreiras e diques.
Este sistema exigia uma atenção constante e um trabalho árduo. Com efeito,
mesmo quando a água corria livremente pelos canais, não podia transpor as subi­
das, e a irrigação dos campos situados a um nível superior tinha de ser feita pelo
camponês por meio de pesados cântaros de barro transportados aos ombros. Foi
o que se fez durante séculos, já que só durante o Novo Império é que foi inven­
tado um engenho mecânico muito simples para tirar a água, o shaduf, atestado
pela primeira vez no século xv a. C. e desde então utilizado no Egipto.
O shaduf é constituído por dois pilares de cerca de dois metros, unidos em
cima por uma curta haste de madeira. Sobre esta existe uma vara fina que tem
numa das extremidades um recipiente para a água e, na outra, um pesado torrão
que serve de contrapeso. Um homem colocado na margem mergulha o recipiente
no rio ou no canal e depois, com a ajuda do contrapeso, iça-o até ao rego que
conduz aos campos o precioso líquido. O shaduf desempenhava bem a sua mis­
são, mas acabava por ser um engenho cansativo e malsão que tinha de ser des­
cido, içado e esvaziado constantemente, durante todo o dia, dia após dia,
enquanto o camponês encarregado de o manobrar estava imerso no lodo até aos
tornozelos e coberto de lama da cabeça aos pés.
A nora ou roda de água, saggiah em árabe, só aparece no Egipto durante o
período ptolomaico; chegou tarde, mas a sua vida seria longa. Gira lentamente,
rangendo, puxada por um boi ou uma vaca, por vezes um camelo, que é guiado
e obrigado a andar à volta por um homem ou uma criança: a saggiah ainda hoje
é um elemento característico da paisagem rural egípcia.
Quando as searas começavam a germinar, o camponês tinha outras preocupa­
ções. O livro bíblico do Êxodo fala de inesperadas tempestades que, no Egipto,
podiam destruir o cereal que estava a despontar, seguidas de vagas de gafanhotos
que «devoravam tudo o que o granizo tinha deixado» (cfr. Êxodo, 9, 22; 10,12).
Contra a fúria dos elementos e a voracidade dos insectos, o camponês era total­
mente impotente, embora, é certo, nunca fosse muito visitado por tais calamida­
des e nunca, pensamos nós, pelas devastadoras tempestades do gênero das que o
velho Jeová costumava desencadear sobre a terra dos faraós. Seja como for, uma
preocupação constante eram os pássaros que não cessavam de esvoaçar sobre os
campos e as hortas à cata de sementes, grãos e fruta, em suma, de qualquer vege­
tal que pudessem debicar e comer. É certo que os camponeses podiam desemba­
raçar-se deles de uma forma mais ou menos radical: homens e crianças colocados
nos campos e nas hortas podiam afugentar os pássaros com gritos, fisgas ou agi-
tanto paus e trapos e podiam capturá-los com armadilhas e redes quando eles

21
pousavam no solo, um a um ou aos bandos. Outra ameaça que pesava constante­
mente sobre os campos cultivados eram as incursões de rebanhos vindos dos pra­
dos vizinhos à procura de pasto. Quer entrassem num campo de trigo por sua
livre vontade ou para lá fossem levados por um qualquer pastor manhoso de uma
propriedade próxima, os animais destruíam as searas, pisando-as e comendo-as.
Para evitar essas incursões, o camponês defendia o seu campo, por vezes com o
auxílio de companheiros ou dos filhos. Em certas ocasiões, tais medidas
revelaram-se eficazes, mas nem sempre garantiam uma segurança total.
Quando as espigas começavam a adquirir um tom amarelo-dourado e se apro­
ximava a época da colheita, outro flagelo, e não decerto o menor para o campo­
nês, surgia no horizonte: a inevitável procissão dos inspectores de impostos, com
o seu séquito de vigilantes, escribas e servos, que vinham medir os campos e con­
trolar a quantidade de cereal, para fixarem o montante do imposto que o campo­
nês teria de pagar ao proprietário das terras por ele cultivadas, quer fossem da
Coroa, de uma instituição religiosa, quer de um particular.
Por fim, chegava a época da colheita, que era o período mais cansativo do ano
para o camponês. Os principais produtos da terra do Egipto eram o trigo, a espelta,
a cevada e o linho. As colheitas do trigo e dos outros cereais revestiam-se de uma
importância especial porque se tratava de produtos utilizados na confecção do pão
e da cerveja, elementos basilares da dieta egípcia e pilares da economia do país. Por
outro lado, o linho fornecia fibra têxtil e sementes que eram utilizadas para vários fins.
As espigas eram ceifadas com uma foice de cabo curto que, no início, era de
madeira e tinha uma lâmina curta formada por pequenos sílex colados uns aos
outros. No Novo Império, a lâmina era de bronze e, na época tardia, foi substi­
tuída por uma lâmina de ferro. Com uma das mãos, o ceifeiro, numa posição
quase erecta, agarrava as esteias e, com a outra mão, cortava-as sob as espigas;
depois, atirava ao chão as espigas cortadas e continuava o seu trabalho. A palha
era deixada no solo, provavelmente, para ser posteriormente colhida e usada
como forragem ou na confecção de tijolos ou de cestos, ou para ser utilizada
como combustível; dizemos «provavelmente» porque não possuímos nenhuma
informação directa sobre o destino que lhe era dado. Os ceifeiros eram seguidos
pelos respigadores (nas pinturas e nos relevos tumulares, os respigadores são
mulheres e crianças) que apanhavam as espigas do chão e as amontoavam numa
das extremidades do campo, metendo-as depois em bolsas, cestos ou largas redes,
que eram transportados para as eiras pelos camponeses ou por burros.
A eira, provavelmente situada perto da aldeia, era uma área circular mais ou
menos ampla, em terra batida, onde as espigas eram espalhadas e depois pisadas
por manadas de bois ou de burros ou batidas com manguais e chicotes que sepa­
ravam o grão da casca.
Era também na eira que se procedia à última operação: joeirar o cereal.
O grão pisado era metido em gamelas de madeira e atirado ao ar; a parte mais
pesada caía de novo no chão, enquanto a casca era levada pelo vento.
Nessa altura, chegava o inevitável escriba com a paleta e a tabuinha e tomava
notas para determinar a importância do imposto, o montante do produto dos
campos, que fora calculado na sua presença antes de o grão já limpo ser metido
em sacos para ser armazenado nos celeiros.

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A cultura do linho era a segunda mais importante, depois da cultura, funda­
mental, do trigo, da cevada e da espelta. O linho podia ser colhido em diferentes
períodos, conforme a utilização a dar-lhe. O que se destinava à confecção de teci­
dos finos era melhor quando colhido antes de estar totalmente crescido, com este­
ias verdes-escuras encimadas por flores vermelhas, porque, nessa fase, eram flexí­
veis e macias, ao passo que, quando a planta atingia o seu crescimento máximo
e adquirira um tom amarelo-acastanhado, as fibras eram mais grossas, próprias
para a confecção de tecidos resistentes e grosseiros, cestos, cordas e redes.
Ao colherem o linho, os camponeses não cortavam a planta, arrancavam-na
do solo. As raízes eram separadas e deixadas no local e as longas esteias eram ata­
das umas às outras e levadas para serem limpas e tratadas. Para separar as semen­
tes das esteias, utilizava-se um instrumento dentado em forma de pente que era
colocado em ângulo sobre o terreno. Uma parte das sementes era deixada para a
sementeira e a outra parte era utilizada em receitas médicas e, provavelmente,
também para delas se extrair o óleo: de facto, tinha de se lavar as esteias para
remover a parte lenhosa das fibras e depois bater, raspar e pentear de novo as
fibras, para as limpar e tornar flexíveis, prontas para serem fiadas.
E agora, antes de o deixarmos, escutemos a voz do camponês que colhe o
linho quando, na época da colheita, trabalha duramente:

«Belo é o dia que desponta sobre a terra,


uma brisa fresca sopra do Norte,
o céu está de acordo com os nossos desejos,
trabalhemos com vontade!»

Gritos de condutores de bois e de burros incitando os seus animais justifica-


damente ou apenas por hábito: «Em frente, o mais depressa que puderes!»,
«Depressa, em frente, não andes às voltas!», ressoam nos campos egípcios na
época das colheitas, mas pouco nos dizem acerca da condição do camponês: com
efeito, são gritos intemporais e podem ser ouvidos na boca dos condutores de ani­
mais de todo o mundo. Um camponês incita um burro que transporta uma
pesada carga com gritos e bastonadas constantes, e o seu companheiro, que o
segue conduzindo outros burros, parece contente com o que vê e exclama: «Muito
bem, meu jovem amigo; és grande, grande, companheiro!»
Um camponês idoso penteia o linho zelosamente e diz, gabando-se, ao jovem
que transporta outro feixe: «Traz-me 11 000 feixes, se quiseres, que eu penteio-os
a todos!» E o jovem responde: «Vá, não fales tanto, camponês velho e careca!»
Já ouvimos trabalhadores rurais queixarem-se da severidade do patrão. Eis
mais algumas dessas queixas murmuradas entredentes. Uns camponeses carregam
barcos com cevada e espelta que trazem dos celeiros em sacos transportados aos
ombros. O patrão, que os observa, incita-os a apressar-se. Eles lamentam-se:
«Vamos passar o dia todo a carregar cevada e espelta? Os celeiros já estão tão
cheios que os montes de cereal transbordam. Os barcos também já estão muito
carregados e regurgitam de cereal. E ainda nos ordenam que nos apressemos. Os
nossos corações serão de ferro?»

23
Regressamos à eira e ouvimos cantar um rapaz enquanto vai guiando os bois
que andam às voltas; o seu chicote, que cai ritmadamente no lombo dos animais,
marca o compasso do duro trabalho dos animais e da cantiga do jovem boieiro:

«Debulhai, que é para vosso bem,


debulhai, que é para vosso bem
bois,
debulhai, que é para vosso bem.
Comereis a palha,
que o grão é para o vosso dono.
Não vos mostreis cansados, está fresco,
bois, debulhai.»

É um canto melancólico, que alude à resignação do camponês para com o seu


triste destino: de facto, sabendo nós o que será feito do grão e da palha, o que
ficará para o jovem boieiro?
A grande maioria dos camponeses egípcios era utilizada no cultivo dos produ­
tos rendosos para o país: em primeiro lugar, os cereais, depois, o linho. Havia,
porém, outro tipo de cultura que era bastante praticado: muitos lotes de terreno,
grandes e pequenos, eram destinados à viticultura. A vinha era conhecida e culti­
vada no Egipto desde os tempos mais remotos. Os vinhedos principais ficavam no
Delta e nos oásis ocidentais de Kargha e Dakhla, mas também havia vinhas em
herdades e hortas. É frequente encontrar-se cenas de vindimas pintadas nas pare­
des dos túmulos, sobretudo durante o Novo Império: mostram o camponês
colhendo, pisando e espremendo os cachos, fazendo escorrer o sumo para vasi­
lhas de barro, onde ficava a fermentar, e depois transportando aos ombros para
a cave os pesados cântaros cheios de vinho.
Na época da vindima, em Agosto e Setembro, os cachos maduros eram colhi­
dos à mão e levados em cestos de vime para uma grande vasilha de madeira ou
de pedra, onde eram pisados por cinco ou seis homens. Através de furos feitos na
vasilha, o sumo escorre para um recipiente que o recolhe. Os restos viscosos das
cascas, sementes e cachos que ficam no fundo da vasilha são recolhidos e metidos
num grande saco, que é depois torcido para espremer o sumo remanescente.
Finalmente, o sumo fica a fermentar e a clarear naturalmente, em grandes vasi­
lhas de barro sem tampa. Depois de concluída esta fase, o sumo era vazado para
jarros altos, de bico, que eram selados e etiquetados com o local e o ano da vin­
dima e, no caso de o vinho não se destinar ao consumo imediato, guardados.
Nessa altura, mais uma vez, o odiado escriba, que já tinha contado os cestos de
uvas trazidos da vinha pelos vindimadores, podia ser visto de novo a anotar,
perante o mudo terror do camponês, o número dos jarros de vinho que iam para
o cobrador dos impostos.
Debrucemo-nos agora sobre outra ocupação característica do camponês na
sua luta pela vida.
Enquanto os privilegiados, entre os quais se incluía o faraó, iam para os terre­
nos húmidos e pantanosos para se dedicarem ao desporto da caça e da pesca, o
pobre camponês pescava e caçava pássaros nas maremas para sobreviver e para

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encher a dispensa dos seus superiores com os produtos do seu trabalho. Por vezes,
pescava com a lança e o harpão, mas considerava mais proveitoso utilizar uma
nassa ou uma armadilha de vime (uma armadilha entrançada, em forma de gar­
rafa, que enchia de pedras para a tornar mais pesada), ou servia-se de uma rede de
formato mais ou menos cônico ligada a um triângulo de madeira, que podia ser
manobrada com a mão. Para se conseguir resultados ainda melhores, podia usar-se
uma rede de arrasto, accionada por várias pessoas. Uma parte da pescaria era ime­
diatamente levada para o mercado mais próximo e a outra parte era oferecida ao
patrão; todavia, a maior porção era amanhada no próprio local: os peixes eram
abertos, esventrados, espalmados e pendurados em paus para secarem. Depois,
eram conservados e consumidos durante a época em que era proibido pescar.
Os ricos desdenhavam do grosseiro equipamento do pescador comum e utiliza­
vam apenas o harpão. Do mesmo modo, quando iam caçar, actividade que as clas­
ses mais abastadas também praticavam apenas por desporto, serviam-se de um bas­
tão de arremesso ou boomerang, que, a acreditar nas pinturas tumulares,
arremessavam contra a presa com uma habilidade sempre infalível, mantendo-se
em elegantes poses sobre os leves barcos de papiro. No entanto, também neste caso,
o caçador humilde, que tinha de procurar a caça para a mesa do patrão, capturava
as aves selvagens de uma forma menos elegante, mas mais eficaz. Por vezes, usava
armadilhas com laços, mas normalmente recorria a grandes redes de arranque ou
de esticão. Para se obter um bom resultado com a rede de arranque, que era esten­
dida no solo pantanoso onde se pensava que as aves iriam pousar, eram precisos
cinco ou seis homens, e por vezes mesmo dez ou doze, fortes e lestos. De uma só
vez, podiam ser capturadas de vinte a quarenta aves, sobretudo gansos. Em
seguida, eram tiradas, uma a uma, da rede: a maior parte era metida em gaiolas
quadradas e enviada para o mercado da aldeia ou para o galinheiro do patrão; a
outra parte era morta no local, depenada, amanhada e levada para a cozinha.
Nas húmidas faixas de terra que ladeavam os pântanos, a erva crescia, exube­
rante, e o gado pastava, guardado por pastores que, indubitavelmente, eram os tra­
balhadores que mais mal viviam. Tratava-se de pessoas semi-selvagens, rudes, de
aspecto desagradável; uns eram calvos, outros tinham cabeleiras e barbas hirsutas;
devido às deficiências alimentares, uns eram barrigudos, outros eram magros e
definhados e todos estavam constantemente sujeitos a um trabalho duro, a má
comida e à insalubridade do ar. O pastor vivia, com o gado, perto dos pântanos;
não tinha uma casa normal e, de noite, abrigava-se numa cabana feita de canas,
miserável e solitária, onde tinha todos os seus bens: uma esteira onde dormia, um
jarro de barro para a água e um cesto para a comida. Deslocava-se constantemente
para pastorear o gado e nunca o podia perder de vista porque, se ocorresse algum
acidente — o roubo de um boi, a doença de uma vaca ou a morte de um vitelo —
o culpado era sempre ele, e seria brutalmente espancado, se não lhe acontecesse
nada de pior.
Nas páginas anteriores, como referimos no início do capítulo, analisámos o
camponês egípcio quase exclusivamente à luz da documentação epigráfica e
arqueológica. Agora, trataremos da documentação literária, dos textos contempo­
râneos que chegaram até nós, e veremos o que nos dizem acerca do camponês

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e da sua vida: não muito, decerto. O leitor não deve esperar nada do gênero de
Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, ou dos tratados agrícolas de Catão, Varrão
e Columela. As fontes literárias referentes a este assunto são extremamente escas­
sas e, à excepção da história, de que falaremos a seguir, de um sacerdote despro-
movido que se converte em camponês, estão repletas de preconceitos que as adul­
teram, dado pertencerem ao gênero literário denominado «literatura tendenciosa»
ou «literatura motivada». São textos escritos com uma finalidade oculta, mas
bastante bem definida: exaltar o ofício de escriba e depreciar todos os outros,
para incitar o jovem estudante a ser trabalhador e a converter-se em escriba como
recompensa dos seus esforços.
É a esse gênero literário que pertence a Sátira dos Ofícios, que data do Médio
Império (2150-1750 a. C.) ou mesmo de épocas mais remotas. Um tal Dua, ou
Duaf-Khety (designado, neste livro, apenas por Khety), acompanha o filho à
capital, onde irá frequentar a escola governamental de escribas e, durante a via­
gem, descreve-lhe a vida desafortunada daqueles que desempenham outros car­
gos. Referindo-se ao sofrimento dos camponeses, afirma o seguinte:

«O camponês passa a vida a lamentar-se,


tem a voz rouca como a do corvo.
Tem feridas fétidas nos dedos e nos braços.
Está farto de estar na lama,
e veste-se de farrapos e de trapos. É como se vivesse entre os leões;
quando adoece, jaz no solo húmido.
Quando abandona o campo e regressa a casa, à tardinha,
fica exausto com o caminho.
[...]
O caçador sente-se mal quando espia os pássaros.
Quando os enxames voam perto dele,
começa a dizer “ Se tivesse uma rede!”
Mas Deus não lha dá,
e ele zanga-se consigo mesmo.
[...]
Deixa que te fale também do pescador,
que está numa situação ainda pior.
Trabalha na margem, rodeado de crocodilos e
lamenta-se constantemente.
E nem consegue dizer: “ Crocodilo!”
porque o medo cegou-o.
Ao sair da água, que corre veloz,
exclama: “ Esta é a vontade de Deus!” »

É certo que o quadro nos é descrito com cores demasiado sombrias, mas,
embora contenha uma boa dose de exagero retórico, existe nele uma parte de ver­
dade; em todo o caso, revela a antipatia de Duaf para com os camponeses c o seu
profundo desprezo por essa pobre gente, cujo trabalho incansável permitia que
ele e todo o povo egípcio vivessem na abundância. Há boas razões para crer que

26
estes sentimentos desfavoráveis fossem partilhados pelos pares de Duaf e por aque­
les que lhes eram superiores (Duaf era um representante típico da classe média), já
que a condição do camponês antigo era muito semelhante à do moderno fellah que,
até à abolição da monarquia, em 1952, era desprezado pelos patrões e pelos seus supe­
riores, que o colocavam ao mesmo nível do gado e o tratavam de um modo semelhante.
Do antigo Egipto chegaram até nós vários papiros com colectâneas de textos
didácticos utilizados, durante o Novo Império, na instrução dos escribas. Tratam de
assuntos diversos e insistem com frequência nas vantagens da carreira de escriba e
nas canseiras e dificuldades de todos os outros ofícios e profissões, mas a nós inte-
ressam-nos apenas os avisos que são feitos aos candidatos acerca das misérias da vida
de um camponês. O trabalho nos campos era extremamente duro; as doenças podiam
destruir as searas; os bois podiam morrer de cansaço ou enterrados na lama; os impos­
tos, porém, eram inexoravelmente cobrados. Ouçamos o que diz o pedagogo antigo:

«Sê escriba. Não terás canseiras e ficarás preservado de outros tipos de trabalho.
Não terás de transportar a enxada, a picareta e o cesto. Não terás de guiar o arado e
serás poupado a todos os tipos de canseira.
Deixa que te recorde o estado miserável do camponês quando chegam os funcioná­
rios para fixar a taxa da colheita e as serpentes levaram metade do cereal e o hipopó­
tamo comeu o resto. O pássaro voraz é uma calamidade para os camponeses. O trigo
que restava na eira desapareceu, os ladrões levaram-no. Não pode pagar o que deve
pelos bois que pediu emprestados: além disso, os bois morreram de tanto lavrarem e
debulharem. E já o escriba atraca à margem do rio para calcular o imposto sobre a
colheita, com um séquito de servos armados de bastões e de núbios com ramos de pal­
meira. Dizem: “ Mostra-nos o trigo!” Mas não há nenhum trigo e o camponês é espan­
cado sem dó nem piedade. É preso e lançado de cabeça para baixo num charco,
ficando ensopado em água. A mulher é presa na sua presença e os filhos são agrilhoa­
dos. Mas o escriba manda em todos. Quem trabalha escrevendo não paga impostos;
não é obrigado a pagar. Lembra-te bem disto.»

Outro mestre repisa monotonamente o mesmo assunto:

«Deixa também que te explique como vive o agricultor, outro duro ofício.
Durante as cheias, anda sempre encharcado, mas tem de continuar a trabalhar. Passa
o dia a fabricar e a reparar as alfaias e passa a noite entrançando cordas. Também passa
a hora da refeição do meio-dia a trabalhar no campo. Para ir para os campos, equipa-
-se como se fosse um guerreiro. A terra, já liberta da água, está à sua frente, e ele vai
buscar os bois. Depois de ter seguido o pastor durante dias e dias, regressa com eles
e arranja-lhes um espaço no campo. De madrugada, desce para ver os bois e já não os
encontra onde os deixou. Anda três dias à procura deles e encontra-os enterrados na
lama, mortos; e já nem sequer têm os arreios: os chacais também os comeram!
Passa muito tempo a cultivar o trigo, mas a serpente segue-o e come a semente, mal
ela cai na lama. E isso sucede-lhe com três sementeiras de trigo que pedira emprestado.»

Apesar da sua natureza nitidamente tendenciosa, estes textos não podem ser
considerados como meros exercícios de escribas, sem qualquer ligação com a rea­
lidade. Para o camponês, a vida era de facto uma canseira constante, era pobreza,

27
doença e extrema incerteza. Estava à mercê de forças que não podia controlar e
muito menos compreender: cheias excessivas ou demasiado escassas, invasões,
guerras intestinas, alterações políticas e, last but not the least, dependia inteira­
mente do patrão ou, pior ainda, dos agentes do patrão que, como muitos da sua
classe, nessa época como hoje, se comportavam tiranicamente com os seus subor­
dinados, como ilustra bem esta carta do Novo Império.
Um feitor escreve ao seu patrão, Amenemope, administrador de terrenos da
Coroa, e informa-o da situação nos campos, durante a época das colheitas.
Vale a pena reproduzir na íntegra a sua missiva, porque não só revela a forma
como um agente excepcionalmente zeloso e astuto se comportava com os
camponeses, mas também fornece um quadro vivo das tarefas que eram confia­
das aos trabalhadores rurais de uma grande propriedade e de como tudo se pas­
sava.
O escriba começa por manifestar a sua dedicação ao patrão e o seu zelo na
execução das tarefas que lhe competiam; depois, no mesmo tom, garante-lhe que
toda a propriedade, a casa, as terras, os empregados e os animais estão em ópti­
mas condições, dando implicitamente a entender que essa situação é devida à sua
boa administração:

«Estou a executar, com extremo zelo e uma dureza de ferro, todas as tarefas que o
meu senhor me confiou. Não deixarei que o meu senhor encontre em mim um erro.
A casa do meu senhor está bem, os seus servos estão bem, o gado nos campos está
bem e os bois nos estábulos estão bem; comem forragem todos os dias e os pastores
trazem erva para os alimentar. Os cavalos do meu senhor estão bem e eu velo para que
a ração de cereal lhes seja dada todos os dias, enquanto os moços da estrebaria lhes
dão a melhor erva dos pântanos. Dou-lhes erva todos os dias e, uma vez por mês, dou
aos moços unguento para os ungirem; e o encarregado da estrebaria manda-os esfregar
de dez em dez dias.»

Isto é apenas a introdução. O escriba prossegue, elogiando tacitamente os seus


talentos:

«A colheita da terra da Coroa que está sob a autoridade do meu senhor foi ceifada
com o maior zelo e o maior cuidado. Anoto todas as cargas de cereal que é ceifado
diariamente e darei instruções para que o transportem para a eira. A eira já está prepa­
rada e provindenciarei para que esteja pronta uma superfície para quarenta cargas de
cereal. Depois do meio-dia, quando o cereal está quente, mando todos os ceifeiros res­
pigar, à excepção dos escribas e dos tecelões, que levam a sua quota diária de cereal
respigado que se poupou dos dias anteriores.»

E conclui, de novo, com palavras de evidente auto-satisfação:

«Todos os dias dou pão aos homens que colhem a seara, e dou-lhes óleo para se
ungirem três vezes por mês, nenhum deles me pode denunciar ao meu senhor quanto
à comida e ao unguento. Esta carta é para informar o meu senhor.»

28
Será escusado dizer que, naqueles tempos, não havia «contratos bilaterais»
que fixassem os termos do emprego e as relações entre patrão e trabalhadores.
Por conseguinte, o camponês estava totalmente à mercê do patrão, e este podia,
ou não, sentir-se responsável pelos seus humildes servidores e ter um procedi­
mento humano para com eles.
Humano e responsável era Amenemhet, que, por volta de 1950 a. C., gover­
nou durante dez anos a província do Origes, no Médio Egipto, e foi uma verda­
deira bênção para todos os seus súbditos, conforme reza a mensagem que ele dei­
xou gravada para a posteridade nas paredes do seu túmulo em Beni Hasan, que
citamos parcialmente:

«Era gentil, benigno e sempre louvado, um senhor adorado pelos seus súbditos. Nunca
ofendi a filha de um homem do povo, nunca oprimi uma viúva, nunca repeli um cam­
ponês, nunca mandei embora nenhum pastor. Não havia pobres na minha comunidade,
no meu tempo ninguém era necessitado. Quando vieram anos de carestia, mandei lavrar
todos os campos da minha província até às fronteiras meridionais e setentrionais, e man­
tive vivas as pessoas, providas de alimentos, e ninguém tinha fome na minha província.
Dava tanto à viúva como à mulher casada e, no que dava, não fazia distinção entre grande
e pequeno. Depois vieram grandes Nilos, portadores de trigo e de espelta, cheios de todas
as coisas boas, mas não cobrei os impostos atrasados sobre a colheita.»

Vemos homens com posições de primeiro plano regozijarem-se por terem


dado «pão ao esfomeado, água ao sedento, roupas ao nu» e por terem sido
«irmão para a viúva, pai para o órfão, homem amado por todos os seus súbdi­
tos». Um dignitário declara: «Transportei no meu barco quem não tinha barco.»
Todavia, até que ponto se pode dar crédito a estas declarações de um compor­
tamento benévolo e caridoso? Não sabemos. Nunca o saberemos. Com efeito, as
boas intenções de um senhor consciencioso e benemérito podiam ser anuladas
pelos seus agentes e vigilantes, que adulavam os superiores e se vingavam nos
inferiores: o feitor de Amenemope era um deles.
O salário do camponês era pago em espécies porque a moeda metálica só pas­
sou a ser utilizada no Egipto com a chegada dos Gregos. Tratava-se uma autên­
tica esmola e mal chegava para sobreviver: um pouco de trigo, dado por mão par­
cimoniosa e, por vezes, uma medida de óleo; o camponês podia considerar-se
afortunado se, de vez em quando, lhe davam um jarro de cerveja nos dias de
festa. «Um pequeno feixe por dia é o que recebo do meu trabalho», diz um velho
camponês enquanto vai ceifando as longas esteias de trigo. Com um salário tão
reduzido, o camponês e a sua família mal podiam sobreviver, sempre oscilando
entre a triste pobreza e a mais negra miséria; é evidente que lhe era impossível
fazer poupanças que pudessem melhorar o seu miserável nível de vida. Além
disso, ainda tinha de pôr de parte uma quantidade do trigo tão duramente ganho,
para pagar os impostos. Portanto, não é de admirar que, frequentemente, não
fosse capaz de satisfazer as suas obrigações fiscais.
Os cobradores dos impostos castigavam duramente os camponeses que não
podiam pagar. Eram espancados, presos e atirados à água, o mesmo acontecendo
à sua família. Nas paredes dos túmulos há inúmeras reproduções dos castigos

29
infligidos a quem não pagava os impostos. Vê-se o pobre camponês, nu, estendido
no chão ou preso para ser chicoteado e, depois, espancado e deixado, literalmente,
mais morto do que vivo. Por vezes, para dar maior vivacidade à cena, reproduz-se
também a mulher do infortunado, que, de joelhos, implora misericórdia.
Os extremos de crueldade a que podem chegar os cobradores são assim descri­
tos por uma testemunha ocular, nos primeiros tempos da dominação romana:

«Há pouco tempo, nomearam um cobrador de impostos no nosso distrito. Quando


alguns devedores, que estavam atrasados nos pagamentos, naturalmente por serem pobres,
fugiram com medo das terríveis consequências de um castigo insuportável, ele apode­
rou-se à força das suas mulheres, dos filhos, dos pais e de outros parentes, e, para que
eles dissessem onde se tinham refugiado os seus parentes ou para que pagassem as suas
dívidas, espancou-os, pisou-os e fê-los passar por todo o género de ultrajes e tratou-os
de um modo ignominioso. Mas eles não podiam fazer o que ele queria porque não sabiam
onde eles estavam e porque eram tão pobres como os fugitivos. Por isso, o cobrador
continuou a castigá-los e a torturá-los e, por fim, matou-os, utilizando métodos de exe­
cução recentemente inventados. Encheu grandes cestos com areia e, depois de lhes ter
pendurado ao pescoço esses enormes pesos, mandou-os colocar no meio da praça do
mercado, ao ar livre, de modo que, enquanto eles caíam mortos sob o cruel tormento
de tantos castigos, ou seja, os pesos pendurados ao pescoço, o sol e a vergonha de serem
vistos por quem passava, todos os que observavam o castigo sofriam antecipadamente
as torturas que lhes estavam reservadas. Alguns deles, cujas mentes imaginavam os fac­
tos melhor do que os olhos, sentindo-se torturados nos corpos dos outros, apressavam-
-se a matar-se com a espada, ou com veneno, ou enforcavam-se, considerando que, na
sua trágica situação, era uma enorme sorte morrer sem sofrer. Os outros, que não tinham
decidido matar-se, foram colocados em fila, como se faz aquando da entrega de uma
herança, primeiro os que eram parentes em primeiro grau, depois os de segundo grau,
depois os de terceiro e assim por diante, e por essa ordem foram mortos. E quando não
havia parentes, o severo castigo estendia-se aos vizinhos e, por vezes, às aldeias e cida­
des, que logo se tornaram desoladas e vazias de habitantes, que abandonavam as suas
casas e iam para locais onde esperavam escapar à detenção.»

O autor deste excerto, o alexandrino Fílon {Das Leis Especiais, 3, 30, 159-62),
talvez tenha exagerado, mas o seu relato, embora seja excessivamente trágico, não
é uma invenção pura e simples. A impressionante crueldade de muitos cobradores
que se comportavam de uma forma brutal com os parentes, inocentes e indefesos
(muitas vezes, mulheres, crianças e velhos), dos devedores quando não podiam
apoderar-se dos responsáveis directos, está bem testemunhada numa série de
documentos da época greco-romana; aliás, já era conhecida durante o Novo
Império, como nos é dado concluir pelo texto citado na p. 27.
Todavia, os impostos não eram a carga mais pesada para o camponês: a par
deles, existia a corveia.
A corveia era um sistema de serviço prestado obrigatoriamente ao Estado, não
remunerado e exigido aos camponeses (e, por vezes, ainda que em menor medida,
a trabalhadores de outros sectores), que a qualquer momento podiam ser recruta­
dos para executar determinados trabalhos, como a construção e a manutenção de
estradas, canais de irrigação, diques e canais de escoamento, construção de grandes

30
edifícios, templos, pirâmides, ou para missões de carácter militar, trabalhos nas
pedreiras e nas minas, quando era necessária uma mão-de-obra supranumerária.
Nos trabalhos executados nos inícios da história do Egipto já era utilizada a cor­
veia, que foi imposta sempre com o mesmo rigor até ser abolida, pelo menos no
papel — e não decerto por razões humanitárias, mas apenas por oportunidade
política —, em 1889.
Os únicos camponeses, e também outros trabalhadores de todos os tipos, que
eram isentos da corveia (em teoria, sempre, mas nem sempre na prática) eram os
que prestavam serviço em certos templos que, por decreto real, gozavam de privi­
légios especiais e de imunidades: a isenção pessoal da corveia era um deles.
Decretos de imunidade deste tipo foram emanados pelos faraós do Antigo
Império (a começar por Sneferu, fundador da 4.^ dinastia, por volta de 2600
a. C.), do Primeiro Período Intermédio, do Novo Império e da época tardia.
Todavia, esses decretos reais permaneciam muitas vezes letra morta e as suas dis­
posições quanto à isenção do pessoal dos templos — em grande parte formado
por camponeses — referente a impostos e serviços de corveia também eram
amiúde violadas por funcionários e agentes da Coroa.
Um dos objectivos do decreto emanado pelo rei Horemheb (por volta de 1300
a. C.) era acabar com o comportamento arbitrário, ilegal e violento de agentes da
corte e de oficiais do exército que, em proveito próprio e em nome do faraó, exi­
giam ilegalmente impostos e requisitavam cidadãos livres para serviços de cor­
veia. Ignoramos se o decreto foi respeitado mas, tanto quanto sabemos, pode ter-
-se transformado em letra morta no preciso momento em que era assinado.
Quando o excesso das exigências fiscais, as constantes requisições para as cor-
veias, a crueldade dos senhores, os salários miseráveis e as terríveis condições de
vida se tornavam intoleráveis, o camponês, desesperado, abandonava as suas
alfaias, esquecia a família, a casa e os campos, e fugia. Anachòresis ou secessio,
a fuga dos campos e o abandono do trabalho agrícola, era o último refúgio do
infortunado agricultor egípcio. Podemos encontrar vestígios disso no início da
12.® dinastia (c. 2000 a. C.) e era algo a que se recorria muito durante o Novo
Império e a época tardia, com diferentes graus de intensidade e frequência, de
acordo com as circunstâncias; tornou-se muito frequente na época os Ptolomeus
e atingiu proporções alarmantes no Egipto romano, quando os habitantes de
algumas comunidades rurais ficaram reduzidos a um exíguo número de pessoas,
na sua maioria velhos, mulheres e crianças, que a custo substituíam os fugitivos
no cultivo da terra; havia também aldeias completamente abandonadas. A admi­
nistração, quer a nível local quer a nível nacional, recorreu repetidamente a nego­
ciações e a violências para combater a anachòresis, mas raramente conseguiu su­
primi-la. A preocupação do Governo era plenamente justificada. Tais fugas
constituíam um grande prejuízo para as forças trabalhadoras egípcias, e o aban­
dono dos campos significava que ficavam por cultivar áreas de terra fértil e pro­
dutiva, o que acarretava graves consequências para a economia do país. A ana­
chòresis tinha também repercussões sociais, já que alguns dos fugitivos
procuravam refúgio nos pântanos c no deserto, ou andavam de aldeia em aldeia,
formando bandos de salteadores que saqueavam as zonas isoladas e privadas de
protecção e roubavam os viajantes, sobretudo nas áreas menos povoadas do país.

31
Por fim, muitos fugitivos iam para as cidades, pequenas e grandes, esperando que
o seu rasto desaparecesse na enorme massa anónima de pobres e deserdados que
existia sempre nesses centros urbanos, onde depressa se convertiam em andrajo­
sos mendigos e nunca mais eram apanhados.
Chegados a este ponto, será oportuno ver como era o lugar e quem eram as
pessoas que o desgraçado camponês abandonava.
Podia ter vivido como pastor, sozinho, num casebre de canas nos confins do
deserto, junto da terra que cultivava. Todavia, é mais provável que vivesse, como
a maioria dos seus semelhantes, num casebre feito de lama ou de tijolos crus
secos ao sol, numa pequena e desolada aldeia situada, como era frequente, a uma
distância considerável dos campos.
Todas as aldeias de camponeses eram idênticas e deviam diferir muito pouco
das que existem no Egipto dos nossos dias. Eram um aglomerado de casebres cin­
zentos e desordenados, no meio de um emaranhado de estreitas, sinuosas e som­
brias vielas e de becos sem saída. Chamar «casas» às habitações é uma hipérbole,
já que, na realidade, não passavam de sórdidos tugúrios de um único piso, com
as portas partidas e sem janelas. Na sua maioria, constavam apenas de uma divi­
são e eram poucas as que tinham duas, contíguas. O telhado, feito de ramos e
folhas de palmeira, ou de canas e palha, era tão leve e tão baixo que, se um
homem de estatura média se levantasse de repente, podia abrir um buraco com a
cabeça. Não havia soalho, só a terra batida, muito raramente seca e permanente­
mente húmida, que empestava o ar com um cheiro insuportável, porque um
grande número de homens, mulheres, crianças e animais, todos juntos, se amon­
toavam durante a noite no pequeno e sujo tugúrio: Heródoto ficou surpreendido
com a promiscuidade entre homens e animais que existia no Egipto (cfr. 2, 36).
Nessas choupanas não havia mobiliário propriamente dito: não havia cadei­
ras, camas ou mesas, mas apenas uma ou duas velhas esteiras de palha, onde se
dormia, um jarro de barro para a água, vasilhas toscas e um cesto para manter
(nem sempre eficazmente) o pão e o grão afastados dos enxames de ratos e rata­
zanas que infestavam a casa e toda a aldeia. Era o suficiente para o camponês,
ou melhor, era tudo o que ele conseguia possuir, e tinha tão pouco valor que a
porta, quando existia, ficava aberta de dia e de noite, já que a extrema pobreza
dos seus bens terrenos bastava para afastar os ladrões.
Uma laje de pedra colocada no chão, no ângulo da parede posterior, era a
lareira, e o fumo saía por um orifício feito no tecto. O chão estava coberto de res­
tos sujos e de dejectos de animais, e também de fezes humanas, como é referido
por Heródoto, que afirmava que os egípcios faziam as suas necessidades dentro
de casa; toda essa malsã e fétida sujidade atraía enxames de moscas, que, aliás,
não importunavam mais os camponeses do que importunam ainda hoje os fella-
hin. Fosse como fosse, a atarefada dona de casa nem sempre podia interromper
a sua lida diária para varrer o lixo do chão e atirá-lo para o caminho; quando o
fazia, tinha de separar antes os excrementos, que eram utilizados como combustível.
Pelo mesmo motivo, embora os becos tortuosos e as tenebrosas vielas das
aldeias estivessem cheios de toda a espécie de restos, com poças de água lodosa
e pútrida aqui e ali e com montes de lixo e de sujidade, só raramente se viam

32
montes de estrume. Diariamente, os excrementos dos burros, bois, vacas e ovelhas
são recolhidos nos caminhos, ainda quentes, húmidos e fumegantes, pelas crianças
da aldeia. Podemos vê-las, todas empastadas de esterco, a andar de um lado para
o outro, apanhando, com grande diligência e decisão, os dejectos com as mãos e
metendo-os num cesto que levam à cabeça. Heródoto deve tê-los visto e talvez pen­
sasse nessa cena quando escreveu que os Egípcios «apanham o esterco com as mãos»
(2, 36): com efeito, os dejectos dos animais são apanhados à mão pelas crianças,
nos caminhos, cena que se repete ainda no Egipto de hoje. Os dejectos domésticos
e o esterco trazido pelas crianças eram depois misturados, batidos e transformados
numa pasta que era moldada à mão e convertida numa espécie de «tortas» que eram
postas a secar ao sol: essas «tortas» eram o combustível do camponês.
Todas as aldeias tinham um charco, o omnipresente birkah das regiões egíp­
cias modernas, lodoso espelho de água cinzento-esverdeada, malcheirosa, total­
mente insalubre, onde o gado bebia e de onde as mulheres tiravam a água para
uso doméstico; perto desse charco havia sempre uma lixeira e outros montões de
restos que eram revolvidos por falcões, abutres, cães e porcos, que brincavam e
vasculhavam em busca de um problemático alimento.
Nestas condições, e sem os mais elementares cuidados de higiene, as aldeias
eram repugnantes focos de infecções. As próprias doenças endémicas que atormen­
tavam as classes mais elevadas pesavam mais sobre os habitantes dos campos.
O camponês era presa fácil das doenças, porque todo o seu sistema imunitário
estava gravemente minado pela dureza do trabalho, pela má alimentação, pela
extrema pobreza, pelas preocupações constantes, pela dura luta pela sobrevivência,
pela insalubridade da habitação e pela sujidade da aldeia onde passava a sua vida.
A oftalmia, propagada pela areia finíssima e pelo pó que havia no ar, pela ter­
rível luz do Sol, pelos enxames de moscas, pela porcaria omnipresente e pela
ausência da mínima higiene pessoal, fazia estragos entre os camponeses. A aldeia
estava repleta de pessoas de olhos remelosos, zarolhas, cegas e por gente de todas
as idades com as pálpebras inflamadas e supuradas.
A bilharziose era endémica: trata-se de uma doença que os camponeses con­
traem ao andar na lama, nos charcos ou nas águas estagnadas dos canais, sempre
repletas de certas espécies de caracóis de água, portadores ou transmissores dos
germes da infecção. A doença provoca uma debilidade crónica, anemia e apre­
senta uma série de graves complicações. No ano de 1950 da nossa era, 95% dos
fellahin sofriam de bilharzioze, e essa percentagem não devia certamente ser
menor entre os camponeses da época faraónica, que ignoravam totalmente as
normas higiénicas e sanitárias.
A hepatite, ou inflamação do fígado, era também uma doença comum entre os
camponeses; privando-os dos elementos essenciais que os converteriam em homens
vigorosos, reduzia-os a um estado de prostração quase constante e tornava-os pre­
sas fáceis de toda a espécie de outras doenças, visto reduzir as suas defesas naturais.
Também era frequente a dracunculose, ou doença do verme-da-Guiné, que se
contraía bebendo água contaminada por pulgas-de-água e produzia vermes que
chegavam a atingir 80 cm, que se alojavam na pele, causando bolhas dolorosas e
uma série de infecções secundárias.

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o alimento principal, ou melhor, o alimento quase exclusivo dos camponeses
era o pão. A farinha com que era confeccionado era desigual, grosseira, e conti­
nha uma grande quantidade de pó de areia trazida pelo vento e de outras impure­
zas. O camponês não mastigava delicadamente o pão, triturava-o e retirava-o a
custo das maxilas, como o gado fazia com a forragem. As impurezas que se tor­
navam abrasivas estragavam os dentes mais fortes e havia velhos com a dentadura
roída até às gengivas, como os cavalos.
Outro flagelo era a disenteria amíbica que desde a Antiguidade continua
ainda a grassar entre a população urbana e rural do Egipto. Também se demons­
trou que entre os camponeses egípcios, que andavam quase sempre descalços,
havia uma grande quantidade de feridas e doenças dos pés e das pernas.
A falta de espaço impede-nos de esgotar o longo e triste rol das afecções que
podiam atingir o camponês e o trabalhador rural.
Sabemos que, por vezes, as equipas de trabalhadores das minas do Estado e
das pedreiras tinham um médico ou um «especialista» na cura das mordeduras de
escorpião. No entanto, não há a mínima prova de que alguma autoridade, desde
o faraó até ao chefe da aldeia, tenha alguma vez pensado em proporcionar aos
camponeses um mínimo de cuidados médicos; embora o argumentum ex silentio
seja notoriamente inverosímil e pouco consistente, ousaríamos sugerir que nunca
nada foi feito nesse sentido e que, quando o camponês adoecia ou tinha um aci­
dente, só podia recorrer a si mesmo. É muito provável que, na maioria dos casos,
deixasse a natureza seguir o seu curso normal ou então recorria a algum dos tra­
tamentos tradicionais de origem desconhecida que, tal como as superstições,
eram, nessa época como hoje, transmitidos oralmente de geração em geração. Ou
então, se tinha posto de parte o suficiente para pagar, podia consultar o curan­
deiro local ou um curandeiro itinerante. Depois de terem consultado o seu livro
de medicamentos, tanto um como o outro lhe recomendariam que untasse uma
úlcera purulenta com um unguento infalível feito à base de sementes de alcaravia
e excrementos de gato, ou que bebesse uma poção feita com a urina de um escriba
e a bílis de um boi, garantindo ao camponês ingênuo — que, como o moderno
fellah, gostava que lhe receitassem medicamentos — que a eficácia do remédio
fora já demonstrada milhares de vezes.
Os sofrimentos e as atribulações do camponês são sucintamente descritos
num relato redigido em forma de carta, elaborado em finais do Novo Império,
por volta de 1100 a. C. Aí são narradas as aventuras e as vicissitudes de um sacer­
dote de Heliópolis, chamado Wermai, que fora destituído do seu cargo e que é,
ao mesmo tempo, o autor declarado da carta e o herói da narração. Depois de ter
sido destituído e banido da cidade, Wermai vagueia pelo país e acaba por se fixar
numa comunidade rural isolada e pobre, no Grande Oásis, a ocidente do Nilo,
onde se ganha o pão cultivando um minúsculo campo, meio de areia e meio de
terra arável, que confina com o deserto. O local é dominado por um chefe sem
escrúpulos (o omdah ou chefe das aldeias egípcias modernas) e pelos seus cruéis
colaboradores. Os camponeses têm uma vida dura e miserável; muitos deles pas­
sam fome. O próprio autor do relato não viu sequer um pão de trigo durante um
mês inteiro. Quem se dirige ao chefe para fazer um pedido é imediatamente escor­
raçado; se alguém ousa protestar, os sequazes do chefe acalmam-no com falsa

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gentileza e adulação. O próprio chefe não hesita em fazer promessas vãs para pôr
fim às queixas. Ao povo são impostas restrições de todo o género; os pagamentos,
em espécies, são escassos; além disso, as autoridades exploram os habitantes,
dividindo em minúsculas partes as rações de trigo e pagando os salários aos cam­
poneses com medidas falseadas: Wermai fala de uma medida que tinha sido
«encurtada» e reduzida a um terço da grandeza declarada.
Os impostos são insuportáveis e quem não consegue pagá-los é preso. Wermai
também se vê em apuros por esse motivo: os impostos eram demasiado onerosos,
não conseguiu pagá-los a tempo. O pérfido chefe levou-o perante o tribunal local
e fê-lo condenar por não ter pago os impostos a tempo. A situação piora e os
camponeses, desesperados, descuram as colheitas e abandonam mesmo as melho­
res terras aráveis, fugindo. O chefe da aldeia vê reduzir-se o seu poder e não sabe
o que fazer para tentar deter os fugitivos e induzir os «grevistas» a voltarem a
pegar no arado.
Havia épocas de instabilidade social quando as classes trabalhadoras na penú­
ria, sempre oprimidas e desprezadas, já não podiam suportar os seus tormentos
e se entregavam a vagas de violência e de rapina, devastando a região e invertendo
as condições do pobre e do rico:

«O Nilo transborda, mas ninguém lavra,


todos dizem: “ Não sabemos o que sucedeu na região.”
Os corações são violentos, a pestilência dilacera a terra,
por todo o lado há sangue, a morte predomina.
O que não tinha propriedades é agora rico;
o que não tinha sandálias agora possui riquezas.
Os nobres lamentam-se, os pobres regozijam,
O que não tinha uma junta de bois agora tem a manada inteira.
Todas as cidades dizem: “ Vem, libertemo-nos dos poderosos!”
Já ninguém usa chapéu
e um homem de classe já não se pode distinguir do pobre.»

Se este quadro desolador não é mera ficção literária, como foi afirmado,
pode legitimamente pensar-se que os camponeses se tinham unido à sublevação
geral e tinham feito causa comum com os rebeldes. Seja como for, semelhantes
explosões, se alguma vez ocorreram, devem ter sido sempre tão inúteis como os
últimos e desesperados esforços de um homem que está prestes a afogar-se e que
tenta salvar-se. Não serviam para nada. Em devido tempo, o status quo ante pre­
valeceria quase o mesmo, e os camponeses continuariam a levar a mesma vida
miserável.
Trabalho árduo e incessante, salários miseráveis, necessidades, miséria, fome,
doenças crónicas, condições de vida sórdidas, patrões arrogantes, pesados
impostos: qualquer uma destas tristes circunstâncias, que afligiam o camponês
desde o berço até ao túmulo, era por si só bastante dura e difícil de suportar.
Todas juntas, prostravam-no, em corpo e em espírito, e tornavam-no equivalente
ao boi sob o seu jugo: submisso, paciente, humilde e néscio. Sabia que devia

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lutar e trabalhar duramente para viver, e sofrer muito. Era esse o seu destino. Não
conhecia nenhum melhor. Para lá do seu destino não tinha perspectivas, e não as
procurava. Se o tivesse feito, teria esbarrado contra um muro.
Recebendo uma miséria pelo seu trabalho, nunca possuía os meios, nem lhe
era dada a oportunidade, para melhorar a sua situação, para encontrar processos
melhores de ganhar o pão quotidiano e alterar a sua humilde posição. Viver sem
a menor esperança de dias mais propícios, inexoravelmente acorrentado ao
degrau mais baixo da escala social, agrilhoado durante toda a vida: assim decor­
ria a sua martirizada existência. Todavia, aperceber-se-ia ele desse facto? Tendo
nascido camponês, estava marcado, e marcado ficava até ao fim dos seus dias: era
camponês, humilde escravo meio morto de fome, sem vontade própria, sujeito às
ordens, empurrado de um lado para o outro, espancado. Desprezado por todos,
ninguém se compadecia dele.

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CAPÍTULO II

O A RTESÃ O

por Dominique Valbelle


In tro d u ç ã o

O nascimento de um artesão e, a fortiori, de uma arte, numa determinada cul­


tura, revela-se, em arqueologia, através de testemunhos materiais e, para o histo­
riador, através de manifestações de uma estrutura social adequada a essa situação
particular. Descobrem-se as obras antes de se começar a conhecer os homens que
as idealizaram e executaram. Essas obras, a que a nossa sensibilidade atribui um
valor artístico, depressa adquirem uma qualidade de execução que exige dos seus
autores uma especialização exclusiva. Todos os estudiosos da pré-história são unâ­
nimes em ver nessas realizações a prova de uma subdivisão já rigorosa das tarefas
no interior das sociedades respectivas, subdivisão essa que daria a esses homens
a possibilidade de disporem de um número considerável de horas livres indispen­
sáveis para exercerem o seu ofício, e isso bastante antes da criação do Estado egípcio.
Dessas épocas conservamos sobretudo a memória da actividade de oficinas
artesanais — fabrico de vasos de pedra, corte do sílex, modelagem da cerâmica,
etc. — que nos foi transmitida pelas instalações profissionais e, ao mesmo tempo,
pelos produtos acabados e pelas sepulturas dos artesãos, identificáveis pelos uten­
sílios que contêm. Desde as primeiras dinastias que aos testemunhos de formas
artesanais mais numerosos se juntam os vestígios dos grandes estaleiros urbanos
que então reuniram uma mão-de-obra forçosamente considerável em alguns cen­
tros espalhados por todo o país: a capital, Mênfis, as capitais de distrito dos anti­
gos reinos do Sul e do Norte, Hieracômpolis e Buto, Elefantina, Edfu, El Kab,
Abidos e muitas outras. Todavia, esses estaleiros de construção remontam aos
alvores da história, tal como a criação da rede de canais que se repercutiu inexo­
ravelmente na economia do país e, como tal, deixam apenas vestígios ténues ou
indirectos dos homens que aí trabalhavam.
São as casas dos descendentes desses homens que, sobretudo a partir da
14.^ dinastia, nos dão as primeiras indicações acerca da organização e do nível
de vida dos construtores das pirâmides. Depois, pouco a pouco, durante a 5.® e
a 6.® dinastias, as altas individualidades mandam reproduzir, nas paredes dos
seus túmulos, o trabalho dos seus súbditos, e há casos em que essas cenas são
acompanhadas por informações acerca do estatuto socioprofissional dos homens
evocados. Essas mesmas individualidades comprazem-se em mandar esculpir nas
paredes os relatos das missões que desempenharam com êxito em nome do
faraó; entre elas, incluem-se os relatos pormenorizados de empreendimentos

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arquitectónicos e de expedições a pedreiras longínquas. Aliás, essas expedições às
minas e às pedreiras do Egipto são também conhecidas pelos restos da laboração
do material deixados no local, das ruínas das casas onde viviam os operários e
dos grafitos encontrados no local.
À medida que se vai avançando no tempo, as fontes já citadas vão-se enrique­
cendo com novas espécies de documentos. Assim, no Médio Império, às ruínas de
monumentos, de casas e de lojas, às cenas de trabalho de artesãos reproduzidas
nos túmulos dos clientes e aos grafitos, vêm juntar-se os arquivos de certos esta­
leiros, em contextos diversos, que se referem a uma mão-de-obra livre ou escrava,
bem como as esteias funerárias, onde já não são só os clientes que se fazem retra­
tar juntamente com os seus empregados, mas também acontece o contrário. Ao
mesmo tempo, os relatos das expedições às minas e às pedreiras não se limitam
a evocar os responsáveis, mencionam também os operários especializados, a mão-
-de-obra e os encarregados da administração. O Novo Império multiplica e diver­
sifica ainda mais os mapas administrativos, as reproduções, as aldeias operárias
permanentes ou temporárias, os testemunhos etnológicos e as manifestações de
religiosidade popular.
Por vezes, a transformação e o aumento progressivo das nossas informações
ficam a dever-se ao modo casual como os documentos foram conservados, ou
resultam de uma evolução social, que se detecta no Egipto a partir de meados do
3.° milênio até aos inícios do l.° milênio a. C., quer através da produção literária
quer, por exemplo, no domínio dos ritos fúnebres. A inclusão nos textos, a partir
do Médio Império, de certas categorias de mão-de-obra e, mais ainda, a expres­
são da identidade desses indivíduos são provavelmente a manifestação mais evi­
dente desse facto. Nenhuma informação proveniente de um determinado período
histórico pode substituir uma lacuna documental relativa a outra época. Por isso,
o nosso estudo de cada um dos aspectos principais do tema — sociedade, traba­
lho, modo de vida, expressão artística — não pode deixar de respeitar os limites
de uma exposição cronológica. Todavia, o peso das permanências institucionais e
dos particularismos culturais inerentes à civilização egípcia é bastante mais forte
do que as diferenças, o que nos permite dar a prioridade a uma apresentação
temática. Esta tem, naturalmente, os seus limites, uns impostos pelo grau dos
nossos actuais conhecimentos, outros escolhidos deliberadamente. Há dois aspec­
tos da pesquisa egiptológica em curso que dizem sobretudo respeito ao tema que
nos interessa: as explorações arqueológicas das aldeias operárias e os estudos
referentes às estruturas administrativas da sociedade egípcia em geral. Cada cam­
panha de escavação arqueológica revela-nos novos elementos em diferentes con­
textos; quanto aos estudos citados, que são relativamente recentes, transformam,
ano após ano, a nossa visão ainda bastante incompleta, e por vezes decidida­
mente errônea, das instituições faraônicas.
Resta-nos definir os três termos mais usados nestas páginas: «operário»,
«artesão» e «artista». O primeiro designa a maioria das pessoas que nos interes­
sam, ou seja, os trabalhadores manuais em geral, seja qual for a sua qualificação.
O termo «artesão», mais do que designar o exercício de um trabalho manual
por conta própria, exprime a posse de uma técnica particular ou de uma arte,
acepção que se aplica a uma parte importante das situações analisadas, enquanto

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o trabalho «clandestino» de alguns dos funcionários de que falaremos se insere
mais na primeira acepção. Quanto à noção de «artista», sabemos que não existe
enquanto tal; para a mentalidade egípcia da época havia dois critérios que permi­
tiam uma aproximação a esse conceito: a habilidade técnica do executor de uma
obra e a consequente satisfação de quem a tinha encomendado. Aliás, só excep­
cionalmente é que a identidade do autor de uma obra de arte é conhecida, e são
raros aqueles que foram distinguidos pelo faraó, fazendo-os sair do anonimato.

Os homens e a sociedade

Os indivíduos cuja identidade e cujo ambiente pretendemos analisar deixa­


ram-nos há mais de três mil anos; portanto, pode parecer insensato querer exu­
mar uma memória precisa e individual de homens na sua maioria bastante
modestos, num país sujeito aos esquadrinhadores de tesouros desde a Antigui­
dade mais remota. No entanto, foi precisamente nesses «tesouros», elementos de
sepulturas, objectos preciosos aí depositados, que foram gravados os indícios
mais antigos e mais directos. No Egipto, é no túmulo que se concentram os ele­
mentos mais importantes da personalidade do homem. A preponderância reco­
nhecida do Além eterno sobre o presente provisório torna-o o instrumento privi­
legiado da memória. O rosto do defunto perpetua-se nas estátuas; o seu nome, as
suas funções, os seus títulos estão gravados nas portas, nas paredes e nos vários
ornamentos funerários. Por vezes, os testemunhos são indirectos: é uma terceira
pessoa, quem encomenda a obra ou um parente, que serve de intermediário entre
nós e o morto. Este converte-se em embaixador privilegiado da sua corporação:
na maior parte das vezes, evoca-se apenas o seu ofício, ou a sua condição socio-
profissional; outras vezes, porém, também nos é transmitido o seu nome. Quando
o testemunho é directo, ou seja, quando é o sujeito que fala na primeira pessoa
ou encarrega alguém de falar por si, a informação pode ser mais vasta: um relato
autobiográfico comenta as fases da sua carreira, especifica o género de responsa­
bilidades que lhe foram cometidas, coloca a personagem, que noutros locais é
reproduzida individualmente, no seu ambiente familiar.
A casa, menos carregada de mensagens escritas e de materiais do que o
túmulo, revela, porém, de forma eloquente a posição dos seus ocupantes na socie­
dade egípcia da época. Todavia, as casas que conservaram vestígios explícitos da
profissão ou da identidade dos que nelas viveram são bastante raras. Normal­
mente, dão-nos apenas indicações de carácter geral sobre os ambientes; têm, no
entanto, o mérito de ser a expressão intacta de uma realidade não deformada nem
pela selecção arbitrária de um cliente, nem pelo desejo de passar à posteridade
sob o aspecto mais lisonjeiro, descurando os factos autênticos que nós, moder­
nos, raramente temos a oportunidade de controlar através de outras fontes. Os
arquivos das instituições ou das fundações onde os artesãos trabalhavam também
nos dão garantias de autenticidade, mas propõem uma abordagem diferente e
complementar: de facto, referem-se, com uma precisão variável, à origem geográ­
fica e social dos operários, à sua identidade, às suas qualificações e aos seus car­
gos; enumeram as tarefas que eram confiadas a uns e a outros e especificam

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o montante dos salários de acordo com as funções, as vantagens e as recompen­
sas, e mencionam os castigos em vigor. É certo que ficaríamos totalmente a par
da situação se pudéssemos ter acesso mesmo a uma mínima parte dos inúmeros
registos que, mês após mês e ano após ano, se iam acumulando nos gabinetes dos
escribas de todo o país. Contudo, desde a mais remota Antiguidade, esses registos
não eram conservados por um período superior a um decênio. Passado esse
período, os papiros eram lavados para serem reutilizados ou eram usados para
acender o lume, como foi demonstrado pelos numerosos selos de argila encontra­
dos nas cinzas dos fornos. Foi por mero acaso que os que chegaram até nós esca­
param à destruição: rolos esquecidos nas ruínas pouco tempo depois de terem
sido escritos, ou depositados, por motivos que normalmente ignoramos, no
túmulo de um funcionário; cópias de documentos originais para uso privado ou
administrativo; fragmentos recolhidos nos armazéns das cidades ou dos templos.
Felizmente, parece que a actividade dos escribas foi incansável e omnipresente.
Não se contentando em registar minuciosamente as contas, a mão-de-obra e
o desenrolar do trabalho, alguns escribas dedicavam-se também a exercícios de
compilação com objectivos didácticos e enciclopédicos. Nessas obras, denomina­
das Onomástica, e em vários «textos escolhidos» que serviam para formar novas
gerações de escribas, os títulos e as funções são catalogados segundo uma ordem
que, embora não seja rigorosa, sugere a existência de grupos e de afinidades e
confirma a existência de classes sociais no antigo Egipto.

O Antigo Império

Quanto mais se retrocede no tempo, mais os indícios se tornam raros e discre­


tos. Antes de o sistema de escrita passar a ser de uso corrente, a partir da
1.® dinastia, os únicos indícios credíveis são os utensílios. Quando são suficiente­
mente específicos, revelam a profissão daquele que os utlizava. Os artesãos costu­
mavam mandar depositar nos seus túmulos os utensílios que os definiam social­
mente. Por isso, a partir da 1.“ dinastia, entre as sepulturas que se aglomeravam
junto da mastaba do soberano, podem identificar-se as dos artesãos que o ser­
viam e de que ele desejava rodear-se para a eternidade. Foi assim que ficámos a
conhecer o nome de Bekh, gravado em duas machadinhas, e o de Kahotep, imor­
talizado na lâmina de um machado: duas personagens que estavam ao serviço do
rei Djer mesmo depois de mortos! Esta prática é muito corrente nas necrópoles
reais de Abidos e de Sacará durante toda a época tinita.
Em Helwân, durante a 2.“ dinastia, e, em Sacará, a partir da 3.® dinastia, os
títulos que acompanham os nomes, presentes em diversas peças do mobiliário
fúnebre, substituem o utensílio revelador, ou especificam a função do artesão. Os
homens assim distinguidos são mestres escultores ou mestres da construção naval,
e os monumentos que os recordam são esteias, vasos de pedra ou estátuas. Na
época do faraó Djoser, os túmulos privados mais luxuosos são uma cópia das
mastabas dos reis tinitas: construídos em tijolo ou revestidos de tijolos crus, só
excepcionalmente é que têm superstruturas dotadas de poternas, de esteias, de
estátuas de pedra ou de painéis de madeira esculpida com o nome do defunto.

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A inscrição, no túmulo, de uma identidade cada vez mais precisa — nome, títu­
los, efígie, que são garantias de eternidade — parece ser um privilégio partilhado
não só pelos altos funcionários, mas também por alguns artesãos. Estes são, pro­
vavelmente, os mais apreciados do seu tempo, mas já não desejam ser sepultados
exclusivamente junto do túmulo real.
Durante a 4.“ dinastia, esta prática propaga-se sobretudo nas necrópoles de
Gizé e de Sacará. As corporações vão-se diversificando, mas os indivíduos ocu­
pam, com bastante frequência, cargos de responsabilidade: «escultor-chefe das
Duas Administrações», «director de todas as obras», «da Armaria», «da Manu­
factura têxtil», «dos Artesãos da oficina funerária», «dos Mineiros» ou «dos
Pedreiros». Também encontramos simples artesãos, mas os mais apreciados
foram imortalizados no seu trabalho, nas capelas funerárias dos clientes, como o
escultor Inkap, na capela da rainha Merseankh III e na de seu filho, o vizir Nebe-
makhet, ou os pintores Râhy e Smerka. Outros ofícios artesanais são evocados
anonimamente. Todavia, não são decerto homens que viviam nas grandes cidades
operárias construídas junto das pirâmides de Abussir e de Gizé, ou nas pequenas
casas de três divisões que ainda existem a sul da rampa ascendente de Miqueri-
nos. Desses, mão-de-obra das mais obscuras, não sabemos quase nada.
A 5.® e a 6.® dinastias confirmam a moda do tema iconográfico do artesão
entregue ao seu trabalho e estendem-na à província, onde os nomarcas, mais pode­
rosos e mais independemtes do que nos períodos anteriores, se compraziam em
expor pormenorizadamente as actividades exercidas nas suas oficinas e, por vezes,
a assinalar a presença, entre os operários, de mestres pertencentes às oficinas do
faraó. A partir da 5.® dinastia, os protagonistas, empregados e clientes dão provas
de iniciativas mais variadas, que ajudàm a situá-los um pouco melhor na sociedade
do seu tempo. Assim, o cortesão Upemnefret mandou reproduzir no seu túmulo,
em Gizé, a redacção de um testamento a favor do filho: a cena desenrola-se na pre­
sença de testemunhas, entre as quais se encontram dois médicos, um intendente,
um polícia, dois sacerdotes, vários artesãos e operários da obra. Se as informações
acerca da posição de cada um no contexto social evocado são escassas, os seus
direitos jurídicos são demonstrados de um modo que não deixa dúvidas. Os que aí
surgem reproduzidos são, na sua maioria, dependentes de Upemnefret, que, na
parte inferior da mesma parede, se vêem a executar as suas tarefas habituais. Toda­
via, nenhum dos dois quadros em que figuram mencionam os seus nomes.
Por conseguinte, se queremos travar conhecimento com alguns desses arte­
sãos, é sobre os seus monumentos privados, mais frequentes neste período, que
devemos debruçar-nos. Os mais modestos — pedreiros, carpinteiros, curtidores,
fundidores, operários metalúrgicos e .escultores — deixaram o seu nome em
tábuas votivas, vasos para libações e estatuetas. São provavelmente contemporâ­
neos dos que viveram nos casebres de pedra de uma ou duas divisões construídos
em frente das minas do Wadi Maghara, quando se dirigiam ao Sinai para aí
explorarem as jazidas de cobre e de turquesa. Os mineiros, porém, ainda não
figuram nas listas dos membros dessas expedições.
Em Gizé e Sacará, os capatazes e os vigilantes mandaram construir túmulos
um pouco mais amplos e mais abundantemente providos de painéis decorativos
esculpidos na pedra e de estátuas que conservam não só a identidade e as funções

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artesanais e religiosas dos defuntos, mas também as de seus pais e filhos. Quanto
aos mestres das obras e das oficinas artesanais, é frequente acumularem responsa­
bilidades técnicas e cargos de confiança de vários gêneros. Embora sejam repre­
sentados amiúde enquanto executam um trabalho manual em que talvez fossem
peritos, os seus antecedentes familiares e os seus méritos pessoais destinavam-nos
a altos cargos, que evocam com orgulho nas paredes dos seus túmulos. Pertencem
a uma elite reconhecida pela corte, vivem e querem ser sepultados perto da capi­
tal, Mênfis, mas podem sempre ser convocados para dirigir trabalhos e expedi­
ções nas províncias e mesmo no exterior.

O Médio Império

As profundas transformações sofridas pela sociedade egípcia durante os anos


conturbados do Primeiro Período Intermédio talvez não sejam alheias às modifi­
cações que se detectam na própria natureza das nossas fontes documentais. Para­
lelamente, essas fontes referem-se mais do que antes a categorias mais modestas
da população, ou seja, à anónima força de trabalho a que o Antigo Império não
fazia qualquer referência. É certo que só possuímos registos de estaleiros existen­
tes a partir da 12.® dinastia e também não existem inventários ou livros de paga­
mentos que mencionem operários que tenham vivido em épocas anteriores. En­
contramo-los, porém, no papiro Reisner, que, no estado em que chegou até nós,
é constituído por quatro documentos: três provêm dos registos de gestão de
vários estaleiros de obras públicas, sobretudo de um templo; o quarto refere-se à
oficina de reparação das ferramentas do estaleiro naval real de This, no Médio
Egipto. Os homens que trabalham na construção do templo são oriundos da
região de Coptos, a cerca de 150 km de distância. A sua identidade é expressa
pelo nome, por vezes antecedido do nome do pai e mesmo do avô; também são
anotados os laços de parentesco entre irmãos. Nos intervalos do trabalho entre
um estaleiro e outro, muitos trabalham como trabalhadores agrícolas e são desig­
nados pelo termo mnyw, que corresponde mais ou menos a «servente», ou pelo
substantivo hsbw, que realça a sua condição de «registados». Não podemos preci­
sar totalmente o montante dos seus salários, porque são pagos maioritariamente
em pães, cuja quantidade conhecemos mas cujo peso e cujas dimensões ignora­
mos: a ração média é de 8 pães trsst, mas essa ração pode variar sensivelmente
para o mesmo operário, de acordo com os períodos de trabalho.
Há vários documentos contemporâneos que propõem uma escala de salários
para determinados estaleiros: a unidade-pão mantém-se indeterminada, mas
ficamos a saber qual a remuneração relativa de cada operário. Assim, para a
construção de um túmulo privado, os 96 pães fq3 fornecidos diariamente são
repartidos da seguinte forma: 10 para cada responsável, 2 a 5, de acordo com a
categoria, para os chefes de equipa, 6 para o desenhador, 2 a 3, de acordo
com a categoria, para os escultores, 2 para os escavadores e provavelmente 1 para
os pedreiros. As diferenças são muito evidentes, mesmo para um pequeno número de
pessoas. Parecem muito mais impressionantes quando se trata de uma expedição de
18 741 homens encarregados de levar 60 esfinges e 150 estátuas desde as pedreiras do

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Wadi Hammammât até ao deserto oriental: o chefe da expedição, que é o dele­
gado da administração central, recebe 200 pães e 5 medidas de cerveja por dia, os
seus colaboradores directos recebem de 30 a 100 pães e de 1 a 3 medidas de cer­
veja, de acordo com a sua categoria, os escultores recebem 20 pães e >/2 medida
de cerveja, os auxiliares recebem 15 pães e V 3 -1- V 4 + Vs de medida de cerveja e
os 1700 «registados» que constituem o grosso da expedição recebem 10 pães e 1/3
de medida de cerveja cada um. Se considerarmos o salário como um critério
social, a lista é mais eloquente do que quaisquer palavras.
A análise das casas da cidade erigida ao lado da pirâmide de Sesóstris II e Ila-
hun, em Fayum, confirma a existência de uma profunda divisão entre os operários,
os artesãos e os seus chefes, por um lado, e os altos funcionários responsáveis pelos
grandes projectos de construção e de embelezamento, por outro. A cidade, cons­
truída para cuidar do complexo funerário do rei e para gerir e manter o culto fúne­
bre que aí se desenrolava, está dividida em duas partes desiguais, separadas por um
muro idêntico ao que rodeia todo o aglomerado urbano. A parte mais modesta
— que ocupa apenas 1/4 da superfície da outra — é constituída por casas de ope­
rários, de 5 ou 7 divisões, ao passo que, na parte mais ampla, existem elegantes
moradias de 70 divisões, separadas por ruas calcetadas, com esgoto central. Se, à
primeira vista, o contraste entre estas duas comunidades vizinhas e tão diferentes
não parece testemunhar um progresso social, só o facto de se dispor de elementos
comparativos que permitem esta reflexão constitui já uma abertura considerável
relativamente às condições existentes no Antigo Império.
Felizmente, há outros documentos que fornecem dados suplementares que
permitem precisar e definir este esboço um tanto caricatural da situação dos arte­
sãos dessa época. Se, em épocas anteriores, os documentos privados pertencentes
a estas categorias socioprofissionais eram raros e sóbrios e não saíam do contexto
tumular, a democratização das práticas funerárias autoriza as pessoas mais
modestas a dirigirem-se em peregrinação à cidade santa de Abidos, no Alto
Egipto. Durante essa peregrinação, no terraço do templo de Osíris, dedicam este­
ias ou pequenas capelas. Esses monumentos, e outros erigidos um pouco por
toda a parte nos santuários do país, reúnem os parentes, próximos e por afini­
dade, do consagrante. Seja qual for a especialidade, a estabilidade dos empregos,
durante várias gerações, no seio da mesma família é evidente, mesmo que nos
limitemos a uma análise superficial. Nota-se, porém, não só variações sensíveis
ao nível da responsabilidade confiada a cada indivíduo, mas também a existência
de elementos do grupo que exerciam técnicas e artes distintas, apesar de as con­
centrações profissionais sugerirem que existia a preocupação de manter uma tra­
dição familiar.
Cerca de trinta desses ofícios são citados no Onomasticon que o escriba Ame-
nemope compilou em finais do Novo Império, provavelmente, a partir de um
modelo mais antigo. O objectivo declarado dessa colectânea é constituir um
inventário educativo o mais possível completo. O capítulo que nos interessa enu­
mera situações e profissões, que são classificadas sumariamente, a começar pela
mais prestigiosa, a do rei, até à mais humilde, a do moço de quinta. Todavia, a
ordem seguida pelo escriba nem sempre é evidente para o leitor, e a obra acaba

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por ser bastante incompleta, embora se reconheça que contém um certo número
de agrupamentos que se afiguram coerentes. Em 162 rubricas, 31 referem-se a
artesãos e operários. A lista começa pela família real, a corte, as pessoas próxi­
mas do soberano; prossegue com a evocação das responsabilidades militares, das
funções religiosas, entre as quais se nota a presença do maior dos mestres de
obras d’Aquele-que-está-a-sul-do-seu-muro [o deus Ptah], posto-chave do artesa­
nato, de que Ptah é o patrono. Em seguida, a parte reservada às artes e às técni­
cas é precedida de um parágrafo sobre as profissões ligadas à alimentação, com
uma breve referência às da toilette. O ofício de polícia interrompe definitivamente
a lista e dá início à última parte, a mais ecléctica, que trata de vários assuntos:
administração, agricultura, comércio, etc. No excerto que nos interessa, as espe­
cialidades estão reunidas por afinidades: joalharia, trabalho do couro, armas,
bijutaria, arquitectura e cerâmica, associadas por uma certa semelhança de mate­
riais e de léxico. Nesta apresentação é difícil distinguir uma hierarquia deliberada.
Por outro lado, a estrutura geral da obra não é neutra e situa com bastante preci­
são as corporações que nos interessam na escala de valores da época.

O Novo Império

Durante a 18.® dinastia, a história das comunidades operárias é dominada


pelos grandes estaleiros da margem ocidental de Tebas, a que sucederão os de
Amarna e depois, na época dos Ramsés, a instituição do Túmulo Real. Estes três
conjuntos fornecem uma série de informações complementares acerca dos
homens que trabalhavam nos templos funerários e nos túmulos dos monarcas do
Novo Império.
Os óstracos encontrados junto dos dois túmulos do vizir de Hatshepsut,
Senenmut, ou diante dos templos da rainha e de Tutmés III, em Deir el-Bahari,
reproduzem mais os trabalhos em curso do que os operários. Todavia, várias alu­
sões referentes à sua origem informam-nos acerca do seu meio social: os contin­
gentes dos vários estaleiros são constituídos não só por empregados que estão,
respectivamente, ao serviço do soberano, do vizir e de vários notáveis, mas tam­
bém por homens oriundos de cidades situadas a sul de Tebas — Esna, El Kab, El
Matânah e Asfün — ou no Médio Egipto — Neferusi; também se nota a presença
de operários núbios e palestinianos. Não existem vestígios das suas casas, como
aliás das da primeira aldeia operária fundada umas dezenas de anos antes por
Tutmés I, em Deir el-Medina, mas os objectos descobertos nos túmulos do cemi­
tério vizinho constituem um dos mais antigos testemunhos directos do nível de
vida desta categoria de artesãos, cujas habilitações permanecem incertas, por
falta de textos: trata-se de cadeiras e escabelos empalhados, camas com «anga-
reb», isto é, com um estrado feito de cordas entrançadas ou de peles, mesas, estei­
ras e cerâmicas, e assemelha-se muito ao mobiliário das herdades pobres de
França em finais do século passado. A sul do templo funerário de Tutmés IV,
uma grande casa, cuja construção data da mesma época, deve ter albergado
durante alguns anos o capataz do estaleiro e a família: ocupa uma área de cerca

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de 200 m2 e é constituída por um núcleo central de sete salas e por um corredor
perimétrico. A presença de abundante vasilhame de boa qualidade confirma a
impressão de sóbria abastança provocada por todo o edifício. Estejam ou não
conservadas, a situação destas diferentes habitações é conhecida: no contexto
geral do aglomerado tebano, a única certeza que possuímos a esse respeito é que
foram construídas junto dos estaleiros respectivos.
Todavia, em Amarna, a posição dos artesãos e dos operários é totalmente dife­
rente. Na cidade propriamente dita, muitas das casas mais luxuosas foram identifi­
cadas como tendo pertencido aos mestres escultores e aos mestres-de-obras que
estavam ao serviço do rei e da corte: são tratados como artistas considerados os
melhores do seu tempo, dirigem oficinas importantes, como sabemos pelas nume­
rosas obras-primas que aí foram descobertas, e pelo menos um deles foi sepultado
entre as principais personalidades da capital. Outras casas mais modestas eram
habitadas por artesãos que trabalhavam provavelmente nas oficinas do Palácio.
Contudo, num local isolado, num vale deserto a meio do caminho entre a cidade
e a falésia do planalto arábico foi construída uma aldeia operária, com os seus
lugares de culto, o cemitério e os anexos. Como em Tebas, a ausência de inscrições
não nos permite ter uma ideia precisa acerca da qualificação dos homens e das
suas tarefas diárias, mas as semelhanças entre as diferentes comunidades e os inú­
meros vestígios de actividade artesanal encontrados nas casas não deixam subsistir
nenhuma dúvida acerca da sua função. A regularidade da planta da aldeia,
rodeada por um muro rectangular, e as dimensões das casas fazem lembrar o
bairro operário de Illahun, igualmente separado dos bairros «nobres» da cidade.
Aqui vislumbra-se uma hierarquia no interior do território, que um muro divide
em duas partes desiguais: na parte oriental, mais ampla — 48 casas contra 26, a
oeste — situam-se as casas maiores, entre as quqis as do chefe dos operários, e tal­
vez alguns edifícios de dois andares. No exterior da muralha, os vestígios de activi-
dades agrícolas subsidiárias — criação de rebanhos e cultivo de alguns pedaços de
terra — revelam a existência de um suplemento alimentar regular de carne e legu­
mes, que ia juntar-se às rações de cereais que cada família devia receber do Estado.
Mais longe ainda, junto das falésias, uma segunda aldeia operária, mais pequena
e construída em pedra, ainda não foi explorada. Quanto às vizinhas pedreiras de
alabastro, possuíam as suas cabanas de pedra, de uma ou duas divisões, semelhan­
tes às que existem em inúmeros locais do deserto habitados de uma forma sazonal
ou ocasional. Temos, portanto, concentrados numa zona de alguns quilômetros
quadrados, quatro aglomerados contemporâneos, que representam quase a totali­
dade dos ambientes artesanais, desde o mais simples ao mais requintado.
No entanto, só com a criação da instituição do Túmulo Real, devida a Horem-
heb e destinada a garantir aos soberanos uma equipa permanente de especialistas
encarregados da preparação das suas sepulturas no Vale dos Reis e de alguns
outros túmulos para os seus parentes mais próximos, no Vale das Rainhas, é que
chegam até nós informações sobre a origem precisa dos homens que aí trabalha­
vam e sobre as funções desempenhadas pelos membros das suas famílias que tra­
balhavam fora da instituição, sobre o seu nível de vida, as relações que manti­
nham com os habitantes da região, com os altos funcionários do reino e, por

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vezes, com o próprio soberano. Também é possível acompanhar de perto o evoluir
do seu destino, desde finais da 18.^ dinastia até inícios do Terceiro Período Inter­
médio. Se iniciarmos a nossa análise pelas habitações entregues aos artesãos no
momento em que eram contratados, no local da antiga fundação de Tutmés I,
encontraremos poucas diferenças em relação às comunidades operárias da 18.®
dinastia e mesmo do Médio Império: duas divisões principais e três ou quatro
secundárias, ocupando em média 72 m^ — entre 40 e 120 m2 — no interior de uma
aldeia murada de 68 casas de tijolo e pedra. Os salários em cereais e outras merca­
dorias, conhecidos através de vários registos, são bastante mais eloquentes, embora
infelizmente não possam ser comparados com os de outras instituições ou de
outros estaleiros: um operário recebe por mês 150 kg de trigo e 56 de cevada, ou
seja, 5 kg de trigo e 1,9 kg de cevada por dia, o que lhe permite alimentar larga­
mente a família de pão e cerveja; além disso, um grupo de auxiliares entrega-lhe
regularmente água, peixe, legumes, fruta, vasilhame e combustível para o forno;
por fim, os templos funerários da margem ocidental de Tebas ou o Tesouro forne­
cem-lhe ocasionalmente diversos produtos mais raros, como certos tipos de pão,
doces, carne, vinho, mel, óleos, etc. Não satisfeitos com estes suplementos, que
recebiam regularmente quando a economia do país era próspera, os operários
aumentam os seus recursos executando trabalhos artesanais para clientes privados.
O seu nível de vida depende, em parte, da maior ou menor prosperidade das
finanças estatais, que condiciona a regularidade do pagamento dos salários aos
funcionários. Quando foi criada a instituição do Túmulo Real, recrutaram-se
homens que trabalhavam anteriormente em diversas fundações tebanas — como
o templo de Ámon, em Karnak, e o templo funerário de Tutmés IV —, ou de
outras regiões — como Elefantina. Nas paredes dos seus túmulos ou em outros
monumentos privados, menciona-se com frequência não só as suas novas funções
como aquelas que desempenhavam antes, e os laços que mantêm com as suas
cidades de origem deduzem-se das suas crenças religiosas. É o período inicial da
19.® dinastia, o momento mais prestigioso da época dos Ramsés, e essa prosperi­
dade exprime-se, entre os operários de Deir el-Medina e os seus superiores, por
um certo número de sinais exteriores de riqueza, como a posse de servos, de casas
no exterior da aldeia, de campos e animais. Mais tarde, esses privilégios tor­
nam-se raros. Contudo, a instituição continua a ser considerada como uma sine-
cura de que se deseja fazer usufruir o maior número possível de filhos. Os que
não conseguiram fazer parte dela encontram trabalho noutras instituições, ou
alistam-se no exército. Por isso, os habitantes da aldeia têm membros da família
em toda a região e mantêm contacto com eles. Os pequenos trabalhos que execu­
tam por conta própria fazem-nos também conhecer toda a espécie de pessoas,
sobretudo altas individualidades, a quem prestam serviços de importância variá­
vel. Pela própria natureza do seu trabalho, os «homens do Túmulo» contactam
com as maiores personalidades do reino. O vizir, responsável pelo estaleiro da
sepultura do soberano reinante, é o seu interlocutor habitual. Quanto ao faraó,
têm por vezes oportunidade de o ver e de trocar mensagens dircctamente com ele.
Recebem recompensas materiais e honoríficas e, com ou sem razão, consideram
esses sinais de atenção como uma relação de familiaridade. O papel essencial que

48
os seus chefes desempenharam, em finais do Novo Império, na administração
central confirma a situação excepcional deste grupo de homens que, favorecidos
pelas circunstâncias, parecem ter vivido um destino superior ao que estava reser­
vado à generalidade dos seus semelhantes.

Os vários ofícios artesanais

Como esta rápida resenha das fontes mais significativas demonstra clara­
mente, em todas as épocas subsistem importantes disparidades entre a posição
social dos mais altos responsáveis por estaleiros, oficinas e expedições, a dos arte­
sãos especializados e a dos simples operários. Provenientes, respectivamente, de
três classes muito distantes umas das outras, todos fazem carreira e desempenham
o seu ofício no seu meio específico. Embora, de facto, não nos dê a imagem de
uma divisão em castas, a sociedade egípcia é, em todos os períodos da sua histó­
ria, uma sociedade muito hierarquizada. Todavia, durante o Novo Império, as
barreiras existentes entre as camadas mais baixas e as camadas médias tornam-se
menos rígidas: está confirmada, por exemplo, a inserção de ex-prisioneiros de
guerra estrangeiros em comunidades autóctones, enquanto a passagem de uma
camada inferior para uma superior, bem como o processo inverso, de acordo com
as necessidades do emprego, evidenciam uma ductilidade na gestão da mão-de-
-obra operária que provocará profundas alterações no dia-a-dia dos trabalhado­
res. Dir-se-ia que, na maior parte dos casos, uma administração omnipresente
registou, enquadrou e controlou os homens nas suas actividades, desde a camada
mais alta até à camada mais baixa da sociedade. O próprio vizir Rekhmira gaba-
-se de ter sido julgado, no reinado de Tutmés III, e os quadros dirigentes de todos
os sectores de actividade usam um título uniforme: 'imy-r, ’imy-r pr, «director»,
«director de departamento», que é utilizado em todos os registos e acompanhado
pela menção do departamento respectivo. Outras funções de nível inferior shd,
«inspector», hrp, «chefe», rwdw, «controlador» — encontram-se nos mais diver­
sos campos de actividade.
Durante o Antigo Império, o nível mais elevado no domínio de realizações
artísticas é apanágio do ’imy-r-k3t nsw, «director das obras reais», e do mdh qd
nsw, «mestre real dos pedreiros», funções que são, por vezes, exercidas pela
mesma pessoa. Segundo a tradição, teria sido esse o cargo do sábio Imhotep,
inventor da pirâmide em socalcos do rei Djoser, em Sacará, durante a 3.® dinas­
tia, mas o título de vizir ainda não aparece nessa época. Mais tarde, durante a 5.®
dinastia, os exemplos multiplicam-se. Assim, podemos acompanhar, nos reinados
de Isesis e de Unas, as etapas da carreira de um dos sucessores de Imhotep à testa
do Governo, Sennedjemib, pela biografia que ele mandou gravar nas paredes do
seu túmulo, em Gizé. O relato é documentado através da citação de documentos
de arquivo e de datas: Sennedjemib é acima apresentado sobretudo como «direc­
tor da Dupla Casa da Prata, director do Gabinete do Rei, do Arsenal, de todos
os Ofícios da Residência e das Propriedades Meridionais», responsabilidades
múltiplas, económicas e políticas que lhe permitem distinguir-se e lhe valem con­
decorações e a promoção a «vizir, director dos Escribas das Actas Reais e director

49
das Obras Reais»; nesta dignidade suprema, a mais elevada do Estado a seguir à
do Soberano, Sennedjemib celebriza-se sobretudo como arquitecto-chefe das
construções prestigiosas que lhe ordenam, posteriormente, os dois monarcas por
ele tão honrosamente servidos. Esses monumentos ocupam um lugar de relevo
nas crônicas reais da época gravadas na chamada «Pedra de Palermo», ao lado
das campanhas vitoriosas, das fundações religiosas e das expedições para fins
comerciais; esse lugar realça a importância que era atribuída aos grandes progra­
mas arquitectónicos como testemunhos duradouros do sucesso de um reinado.
Por isso, a sua execução era confiada aos mais altos funcionários.
Desde as épocas mais remotas que há outros cortesãos encarregados de alguns
desses trabalhos, ou das missões que tinham por objectivo obter os materiais pre­
ciosos indispensáveis. Se se consultarem mais tarde os relatórios pormenorizados
do Médio Império acerca das expedições às minas e às pedreiras, vê-se que se
efectuavam normalmente sob a autoridade de altos funcionários pertencentes,
quer à administração central, e em especial ao Tesouro, quando se tratava de tra­
balhos em minas, quer à administração provincial, e que, em finais do Novo
Império, os sumos sacerdotes de Ámon, na véspera do seu «golpe de Estado» em
todo o Sul do país, assumem pessoalmente a exploração das minas de ouro do
Wadi Hammamât.
Os grandes estaleiros de construção civil dos faraós do Médio Império são
conhecidos sobretudo por textos oficiais onde o rei se exprime na primeira pes­
soa, mas, desde o início da 18.® dinastia, os trabalhos nos templos e nos túmulos
reais são descritos pelos que estavam incumbidos da sua execução, em longos
relatos gravados nas capelas dos seus túmulos. A mais antiga é a de Inenis, direc-
tor dos celeiros de Ámon, que participou activamente nas obras de ampliação,
exigidas por Amenófis I e pelos seus sucessores, no templo de Karnak e na prepa­
ração do hipogeu de Tutmés I. Embora Inenis tenha continuado a ser muito con­
siderado no reinado de Hatshepsut e Tlitmés III, parece que outros favoritos dos
novos soberanos o terão então substituído: Senenmut e Amenhotep usavam o
título de «grande intendente da rainha» quando empreenderam por sua conta os
programas arquitectónicos de Karnak, Hermonthis, Deir el-Bahari e Luxor;
quando lhes foram confiados importantes cargos, Djehuty era «director da Dupla
Casa da Prata» e da «Dupla Casa do Ouro» e Puyemra era apenas «pai divino»;
Hapuseneb, porém, já desempenhava o cargo de vizir quando a soberana o encar­
regou dos trabalhos no seu túmulo, tarefa que, durante todo o Novo Império,
continuará a ser apanágio do primeiro-ministro. Nessa circunstância, foram atri­
buídos a Hapuseneb novos títulos — «Guia de todos os Artesãos [hrp hmwt nbt],
«Aquele que dá instrução aos Artesãos» [swb3-hr n hmww r*irt]», «Aquele
que revela os talentos» [wn-hrslè3m'irwt], «Chefe/Director dos trabalhos»
(hrp/Umy-rk3 wt], etc. —, e as suas tarefas vão desde o fornecimento das maté­
rias-primas necessárias — blocos monolíticos de pedra para a erecção dos obelis­
cos; ouro, prata, âmbar amarelo, para o seu revestimento ou para o revestimento
das portas monumentais; madeiras preciosas, etc. — até à condução efectiva dos
trabalhos (s^m) e à inspecção {m33) regular: são os mesmos cargos que o vizir de
Tutmés III, Rekhmire, assume à cabeça das oficinas das propriedades de Ámon.

50
Muitos dos mestres-de-obras — chefes de equipa, escribas — são simples ope­
rários oriundos do meio operário. Todavia, isso nem sempre se verifica, já que,
se esses homens são, em geral, descendentes de famílias operárias e se é certo que
subiram os degraus da hierarquia em vigor no grupo a que pertencem, também é
certo que dão lugar à formação de autênticas «dinastias» que se mantêm de um
reinado para outro. Assim, dos 28 chefes de equipa do Túmulo Real, pelo menos
12 eram filhos de chefes de equipa. Quando não se trata de estaleiros permanen­
tes, como são os das sepulturas reais do Novo Império, também se encontram ves­
tígios, se não de uma transmissão sistemática das responsabilidades artísticas no
seio de uma mesma família, pelo menos de recomendações para se favorecer a
contratação do irmão ou do filho de um operário já apreciado pelas suas quali­
dades, preferindo-o a um desconhecido.
São pouco frequentes os testemunhos relativos a homens apontados como
particularmente famosos no exercício da sua arte e, na maior parte dos casos,
ignoramos os seus antecedentes. Só aqueles que, nas suas autobiografias, nos
relatam a estima que por eles sente o seu soberano, aqueles a quem o cliente quis
homenagear numa parede do seu túmulo e aqueles que, mais ou menos indirecta-
mente, assinaram a sua obra ergueram o véu do anonimato. Trata-se sobretudo de
escultores, pintores, e, mais raramente, arquitectos. O favor de que gozavam
junto do cliente proporcionou-lhes vantagens materiais e alguns deles foram
mesmo presenteados com uma luxuosa sepultura onde se acumulam as ofertas
das altas personalidades que ficaram satisfeitas com o seu trabalho.
Assim, para além de objectos funerários abundantes, mas que, durante a 18.®
dinastia, talvez fossem normais para uma personalidade da sua classe social, o
escriba e director dos trabalhos Kha’ possuía alguns objectos preciosos: um
côvado chapeado a ouro, dois vasos de bronze e prata, uma tábua de escriba,
uma mesa de jogo e dois bastões gravados com o nome dos clientes. De facto, os
serviços dos artesãos podiam ser emprestados, tal como o dos operários. Às vezes
era o soberano que recompensava um colaborador enviando-lhe alguns dos seus
melhores empregados; outras vezes, príncipes ou altos funcionários enviavam
uma equipa privada para trabalhar num estaleiro real.
A par dos mestres reconhecidos, o Egipto regurgitava de artesãos de talento
que executaram, com grande discrição e arte, as maravilhas de que se orgulham
os museus de todo o mundo. Apercebemo-nos do apreço que por eles sentiam os
primeiros reis do Egipto, que, como acontece em Abidos, mandavam construir as
sepulturas dos seus artesãos ao lado do seu túmulo. Os mais apreciados eram os
cortadores de sílex fino, os que trabalhavam as pedras duras, os fabricantes de
vasos de alabastro e de brecha. Vêm depois os ourives, os joalheiros, os entalha-
dores, os fabricantes de maiólica. Por fim, todos os que esculpem, desenham,
pintam, sob a direcção de grandes especialistas.
Nos períodos em que as oficinas e os estaleiros reais funcionam em todo o
Egipto, artesãos e artistas de grande mérito abundam na corte e na província, e
tanto os mais obscuros como os mestres competem em talento. A partir da época
pré-dinástica, objectos de surpreendente requinte, que aliam a técnica à harmonia
das formas e das cores, garantem a antiguidade das tradições artesanais, que dão
o melhor de si sempre que o país beneficia de um governo estável e empreendedor.

51
Por outro lado, a imperícia que se constata nas obras executadas em períodos de
agitação e de ocupação estrangeira sugere a existência de uma relação estreita
entre o desabrochar das artes, muitas vezes custoso, e o poder dos governos.
A situação dos directores dos trabalhos, mestres-de-obras, artesãos e operá­
rios é idêntica à dos funcionários. Todavia, a mobilidade não deriva do indivíduo,
mas de quem o emprega. Desde o Antigo Império até ao Novo Império, o sobe­
rano, os grande proprietários, os templos e os dirigentes de todos os níveis dispu­
nham dos seus próprios empregados, de acordo com as necessidades. Os grandes
programas de obras públicas dos faraós, tal como os empreendimentos privados,
necessitam, por vezes, de trabalhos demorados e repetitivos, e, outras vezes, de
intervenções excepcionais e de matérias-primas especiais. Os talentos exercem-se
em contextos quer estáveis quer temporários.
Enquanto algumas comunidades artesanais se instalam numa segurança que
inclui não só um emprego permanente, mas também a certeza de um trabalho
regular nas proximidades da aldeia, há famílias que vivem já os inconvenientes
das deslocações profissionais mais ou menos cansativas e, por vezes, mesmo peri­
gosas. Estes problemas não se colocam apenas àqueles que, no Egipto, podiam
ser sujeitos a corveias, como os homens que, após a época das colheitas, têm de
ir construir um templo situado a 150 km da sua aldeia. Também os funcionários
responsáveis pelos projectos arquitectónicos e os seus melhores especialistas têm,
naturalmente, de se dirigir ao local das obras e mesmo ao local onde existem os
materiais necessários (Roccati, 1982, p. 196):

«Sua Majestade enviou-me a Ibhat para trazer o sarcófago dos vivos “ Senhor da
vida”, com a cobertura e o precioso e augusto p y r a m id io n destinado à pirâmide
“ Merenra-aparece-na-[sua]-perfeição”, minha soberana. Sua Majestade enviou-me a
Elefantina para trazer a poterna de granito com o seu umbral, as arquitraves e os fustes
de granito, para trazer as portas e as lajes de granito da câmara superior da sua pirâ­
mide “ Merenra-aparece-na-[sua]-perfeição”, minha soberana. Fi-las descer o Nilo até
à pirâmide “ Merenra-aparece-na-[sua]-perfeição” em seis barcaças, três barcas e três
bateis [...] numa única expedição [...]. Sua Majestade enviou-me a Hatnub para trazer
uma grande mesa de oferta em alabastro de Hatnub [...].»

Unis conta-nos que desempenhou sucessivamente várias funções no palácio


real e na província, e cargos jurídicos de confiança. Os lapicidas vão pessoalmente
às minas de turquesa do Sinai e trabalham no local, guiando os mineiros na pro­
cura dos melhores filões. Nas expedições às pedreiras do Egipto e da Núbia partici­
pam escultores que escolhem os blocos de pedra que terão de trabalhar, antes de
começarem a desbastá-las no local. Ourives e joalheiros acompanham ocasional­
mente os pesquisadores de ouro ao Wadi Hammamât e os inúmeros cadinhos
encontrados nas proximidades das jazidas, em Serabit el-Khadim, demonstram
que o cobre era aí transformado logo depois de se proceder à sua extracção.
Não temos possibilidades de comparar, em todos os períodos, as condições de
vida dos artesãos mais sedentários e daqueles que tinham de se deslocar de um
estaleiro para outro. Vimos que as ordens podiam abranger todas as categorias

52
de pessoas, desde o nível mais alto ao nível mais baixo da escala social. Aliás,
mesmo os trabalhadores de um estaleiro permanente como o do Túmulo Real
tinham por vezes de se deslocar, quer na zona quer para fora de Tebas, como con­
firma a esteia de Meremptah, no Gebel Es-Silsila.
Os restos de casebres de pedra e de instalações domésticas ou religiosas que
ainda hoje podem ver-se em numerosos locais onde havia pedreiras e minas,
desde Wadi Maghara a Hatnub, passando, por exemplo, pelo Gebel Zeit, parecem
rudimentares, mas concebidas segundo um esquema bem determinado. Nelas se
albergavam pequenos grupos ou, em certas ocasiões, centenas de pessoas; as dife­
renças entre as habitações, que poderiam reflectir a categoria de quem nelas habi­
tava, parecem ter sido pequenas. Quanto às descobertas de casas existentes junto
de um estaleiro de curta ou de média duração — de algumas semanas a alguns
anos — são demasiado esporádicas para permitirem comparações úteis acerca
das condições de vida dos seus ocupantes.
A distinção baseia-se sobretudo na possibilidade de os empregados viverem,
ou não, com a família. Enquanto os homens do Túmulo regressam a casa todas
as noites e só excepcionalmente se afastam da aldeia, os operários que partem
para as expedições, mesmo por um longo período, são separados das mulheres e
dos filhos, como aliás acontece com todos os que partem em missão. Os Egípcios
viajavam, quer no interior quer no exterior das suas fronteiras, muito mais do
que poderiam desejar: muitas cartas confirmam o incómodo que sentiam com
esse facto. Sempre que isso acontecia, viviam em grupos e dormiam em camara­
tas ou nas cabanas de que dispunham. Se se tratava de um trabalho de construção
para o qual estavam previstos dois ou três anos, como os grandes templos funerá­
rios tebanos, o arquitecto mandava, por vezes, construir uma casa nas proximida­
des: é provável que o encarregado do templo de Tutmés IV vivesse com a família
na casa que foi descoberta a sul da muralha.
As mulheres que se dedicam ao artesanato são bastante raras e o seu trabalho
tem uma relação ainda mais esporádica com o domínio das artes plásticas. Por
isso, muitas famílias, quer de mestres quer de subordinados, acabavam por se ver
divididas. Assim, os empregos mais estáveis e regulares, que se podiam exercer
perto de casa, eram muito desejados e, para os obter, recorria-se por vezes às mais
tenebrosas intrigas.

A expressão individual na vida quotidiana

Uma vez evocadas as obrigações que o trabalho fazia incidir sobre a vida dos
artesãos, resta-nos definir, no espaço livre onde decorria a sua vida privada, em
que é que esta consistia. Poderiamos, aliás, interrogar-nos acerca do sentido real
que esta expressão conserva em meios ao mesmo tempo tão bem organizados e
tão colectivos que a parte entregue à iniciativa individual parece bastante limi­
tada. Isso, porém, seria desconhecer a personalidade desses homens, cujos pensa­
mentos mais íntimos foram, pelo menos num caso, milagrosamente preservados.
De facto, se continuamos a ignorar grande parte da vida e das idéias daqueles que
executaram as obras que hoje tanto apreciamos, é ainda aos homens do Túmulo

53
Real que pediremos não para nos falarem de todos os outros, mas para nos reve­
larem uma realidade de mais de 3000 anos, embora tão fresca como se tivesse sido
vivida ontem.
De uma forma geral, os meios de subsistência eram-lhes fornecidos pelas
autoridades: casa, privilégios fúnebres, comida, roupas de trabalho, etc. Todavia,
adaptaram as suas necessidades, a começar pelo trabalho, a essas condições de
vida. Com efeito, se tinham de dar prioridade — e, em princípio, a exclusividade
— ao estaleiro que construía o túmulo do faraó vivo, todos — desenhadores, pin­
tores, escultores e simples escavadores —, de acordo com as suas capacidades,
exerciam os seus talentos a laíere, o que lhes permitia aumentar o rendimento no
final de cada mês: fabricavam cestos, móveis, estátuas, sarcófagos e outros objec-
tos, uns para os outros, mas também para clientes estranhos à aldeia. Essas acti-
vidades subsidiárias assumiam uma importância maior ou menor conforme a ati­
tude das autoridades, que eventualmente podiam considerá-las vantajosas.
Esses talentos, aplicados nas casas e nos túmulos dos operários, também con­
tribuíam para os distinguir uns dos outros. Por isso, a aldeia, inicialmente conce­
bida de acordo com uma planta bastante regular, foi assumindo, na altura da
reconstrução e da última ampliação, em inícios da 19.® dinastia, um aspecto bas­
tante mais fantasioso, de acordo com as transformações que os habitantes nela
iam fazendo: um juntava duas casas, outro acrescentava uma divisão, outro ainda
construía uma cozinha na rua, etc. Quanto ao cemitério, tornou-se de tal forma
superpovoado, passados dois séculos e meio, que, no período dos Ramsés, os
hipogeus acabaram por penetrar uns nos outros, como nos recorda o relato dos
litígios provocados por essa situação.
A variedade dos produtos alimentares citados nos textos ou encontrados no
local revela que, para além das rações habituais de cereais, peixe, fruta e legumes,
os habitantes da aldeia arranjavam maneira de conseguir outros, quando o dese­
javam, para melhorarem a sua dieta normal. O seu menu compunha-se essencial­
mente de pão, peixe, cerveja, água e alguma comida fresca, conforme as ocasiões.
Embora os nomes dos pães, dos doces e de outras comidas adocicadas sejam
abundantes, não chegou até nós nenhuma receita de cozinha, mesmo muito sim­
ples, nem de Deir el-Medina nem de outros sítios, ao contrário das medicinais,
que utilizavam quase os mesmo ingredientes.
Todavia, para os Egípcios, a refeição devia constituir um acto social impor­
tante, como nos revela o espaço concedido às reproduções dos banquetes fúne­
bres. No entanto, sobre este assunto, os nossos artesãos não são mais loquazes do
que os seus concidadãos. O convívio, se não o quotidiano pelo menos em todas
as grandes ocasiões, e sobretudo durante as festas da aldeia, é evocado através da
preparação das oferendas que serão apresentadas ou consumidas nessas alturas.
Pelos móveis, os instrumentos musicais e as roupas que conhecemos deduzimos
que existia uma tendência para a sociabilidade e um certo interesse pelas manifes­
tações colectivas, que são evocadas em certos textos.
Esse gosto pela ostentação manifesta-se também nos modestos haveres — imó­
veis, terrenos e pessoais — que os homens do Túmulo Real fazem o possível por
adquirir, se não os herdaram de pais muito mais abastados do que a média

54
dos operários do faraó. A par desta prosperidade relativa, de que alguns usu­
fruíam em vida, esforçavam-se ao máximo para garantir uma sepultura e orna­
mentos funerários dignos. É um desejo bastante vulgar, sob várias formas, entre
o povo egípcio, mas aí os homens dispõem de capacidades e de meios especiais.
De facto, têm acesso aos textos fúnebres e preocupam-se em reproduzi-los nas
paredes dos seus túmulos; sabem como devem fazer e, se não possuem o talento
necessário, recorrem aos colegas mais habilidosos, ou tentam resolver sozinhos o
assunto, com resultados os mais díspares possível.
Uma parte dos seus bens é dedicada aos objectos funerários, quer na compra
directa, quer na confecção de adornos específicos. O resto é dividido pelos her­
deiros, mesmo que não tenham cumprido os seus deveres para com o defunto.
A categoria social a que estes funcionários reais pertencem parece beneficiar de
direitos aplicáveis a todo o povo egípcio. Esses direitos manifestam-se não só no
momento da redacção de contratos, legados, divórcios, etc., mas também num
quadro judicial. Um tribunal local, constituído por homens e, excepcionalmente,
por mulheres do Túmulo Real, é competente para julgar os delitos menores e para
as dissensões internas; o oráculo da estátua local do rei divinizado Amenófis I
intervinha para julgar de forma decisiva os casos difíceis.
Nestes meios, as manifestações do culto tinham uma importância provavelmente
idêntica à que possuíam noutros locais, mas assumiam formas populares específi­
cas, derivadas do contexto regional e profissional e da origem das pessoas emprega­
das no estaleiro e nas oficinas. A variedade de cultos e de festas constitui um dos
seus aspectos mais notáveis. Para além das divindades que reinam na margem dos
mortos e no cume da montanha tebana, como Hátor e Meretsger, que protegem a
aldeia, como Amenófis I e sua mãe, Ahmés Nefertari, ou que protegem os artesãos,
como Ptah, a comunidade operária adoptara deuses de todas as províncias, e mesmo
estrangeiros: uns por razões particulares, outros porque a tendência para se venerar
divindades estrangeiras começava a difundir-se no país. A forma assumida por esses
cultos, a que se devem juntar também o dos mortos, o dos antepassados e o da fecun­
didade, é bastante imaginativa: recorre a suportes materiais como estátuas proces-
sionais, larários e animais sagrados e exprime-se, no dia-a-dia, dentro da própria casa.
Como no exercício da medicina, a magia desempenha um papel essencial, sobretudo
em matéria de penitência e de fecundidade. A vontade dos deuses é soberana.
As actas dos processos não são os únicos documentos que nos informam acerca
da deontologia em vigor nesta pequena comunidade. Toda a espécie de anotações,
subdivididas entre o Diário do Túmulo e outros relatos, a correspondência e as este­
ias dedicadas por cegos que suplicavam à deusa para lhes restituir a vista em troca
de um sincero acto de contrição, contribuem para traçar um quadro bastante verí­
dico dos comportamentos da época. Há quem se lamente do mau carácter, do egoísmo
e da avareza daquele a quem se dirige:

«Por que começaste a comportar-te como o fazes, e nenhuma palavra entra nos teus
ouvidos, senão a tua extrema vaidade? Não és um ser humano. Não tens filhos com a tua
mulher, como todos os teus semelhantes. Outra mensagem: és muito rico e não dás nada
a ninguém.» (Cerny, 1973, pp. 212-213.)

55
Outro denuncia os inúmeros abusos do capataz Paneb, que ocupou o posto
que ele ambicionava, referindo a corrupção do vizir, a profanação de santuários
e túmulos, a sedução de muitas mulheres da aldeia, as violências físicas sobre os
colegas, os furtos, as apropriações indevidas, os perjúrios e as ameaças de morte.
Por outro lado, revelam-se sentimentos muito diferentes do ódio e da ambi­
ção, como, por exemplo, a amizade:
«Como é possível? Que mal te fiz? Não sou o teu velho companheiro com quem
comeste o pão? [...] O que farei? Escreve-me por intermédio do polícia Bes a dizer o
mal que te fiz. Se não, escreve-me em todo o caso. Oh, tempos malvados! Não te pedi­
rei nada. É agradável [para] um homem estar com o seu velho companheiro de mesa.
É belo [ter] certas [coisas] novas, [mas] é belo [ter] um velho companheiro de mesa.
Quando receberes a minha carta, escreve-me a dizer como estás, por intermédio do
polícia Bes. Diz-me como te sentes hoje! Não permitas que me digam para não entrar
em tua casa e para não percorrer o [meu] caminho dentro das muralhas e para fugir
da cidade!» (Cerny e Posener, 1978, p. 16.)

Ou o amor pela mulher já morta, expresso pelo escriba Butehamon num


óstraco colocado provavelmente no seu túmulo, para que fosse o seu intérprete
junto dela:
«Ó verável féretro de Osíris, a cantadeira de Ámon Akhtay, que repousa em ti!
Escuta-me e transmite [esta] mensagem. Pergunta-lhe, já que estás junto dela: “ Como
estás? Onde estás?” Dir-lhe-ás: “ Que pena que Akhtay já não viva!” Assim se
exprime o teu irmão, o teu companheiro. Que dor, tu, tão bela, tu, incomparável.
Nenhuma fealdade se podia encontrar em ti.” Continuo a chamar-[te], responde
àquele que chama por ti.» (Valbelle, 1988, p. 96.)

A expressão artística

Se os artesãos de Deir el-Medina tinham consciência de que executavam algu­


mas obras-primas, quando, por exemplo, decoraram o túmulo de Sethi I, não o
mencionam, e os soberanos não se revelam mais explícitos quando se trata de
analisar a noção de arte. Atribuem a maior importância às ordens que dão. Por
vezes, encarregam-se pessoalmente da escolha dos materiais. Dirigem-se frequen­
temente aos estaleiros para acompanharem o prosseguimento dos trabalhos.
Recompensam artesãos e mestres-de-obras, mas descrevem os seus talentos em
termos de habilidade, ou atribuem-nos ao grande amor que os operários sentem
pelo seu rei. Aliás, a magnificência dos monumentos é apenas uma prova de pie­
dade para com os deuses.
No entanto, o faraó nunca se engana. Quando distingue um artesão, quando
o encarrega de uma tarefa que lhe interessa particularmente, quando o exalta, faz
dele um artista, embora esta palavra ainda não tenha sido criada. O anonimato
da maior parte das obras contribui para eliminar a noção de individualidade em
empreendimentos onde o resultado global conta mais do que o particular consi­
derado em si mesmo. Todavia, há casos em que os autores dos monumentos os
assinaram, directamente ou gabando-se da sua autoria, noutros locais. Todavia,

56
salvo raras excepções, o nome que, em toda a parte, figura em primeiro lugar é
o do cliente, não o do artista ou do artesão. Conhecendo a importância que os
Egípcios atribuíam ao nome, única garantia de sobrevivência, a anulação do
autor em proveito daquele que o utiliza é uma constante socialmente relevante.
A arte, porém, não é um privilégio exclusivo dos deuses nem um monopólio real.
Não só é praticada, desde os tempos mais remotos, em benefício de clientes priva­
dos, como está universalmente difundida entre o povo. Sob formas mais ou
menos modestas, cada um fabrica para si ou para os seus parentes um certo
objecto, um ramo de flores artificiais, um colar ou uma estatueta. Ninguém, do
mais humilde ao mais poderoso, está privado desse dom. Encontramo-nos, por
isso, perante este paradoxo: a arte é uma das expressões mais comuns do quoti­
diano egípcio, mas não tem nome, e os seus autores, embora reconhecidos como
tal pelos seus contemporâneos, não chegam a ser conhecidos pela posteridade a
não ser excepcionalmente.
Esta impressão talvez seja acentuada pelas lacunas existentes nos nossos
conhecimentos. De facto, há pelo menos um exemplo que nos mostra um artista
que vivia na corte de Amarna como um dos grandes funcionários do reino.
O escultor Djehutymes possuía uma grande casa, construída ao lado da sua ofi­
cina, no centro da cidade. Foi aí que foram recolhidos os extraordinários retratos
que contribuíram largamente para a fama desse surpreendente período. Como as
outras esculturas de todos os tempos, estas obras-primas não estavam assinadas,
mas é indubitável que a fama do mestre transpôs as fronteiras de Amarna. As
suas estátuas, mais do que quaisquer outras, exprimem, ao mesmo tempo, a per­
sonalidade do autor e a do modelo. Em vários momentos da sua história, a arte
egípcia tentou exprimir, com firmeza e intensidade, o carácter dos indivíduos e,
neste caso, o escultor pôde dar livre curso à sua sensibilidade. É evidente que
estas variantes humanistas da ideologia faraónica, que se revelam nas composi­
ções literárias contemporâneas, permitiram que o comportamento dos artistas se
identificasse mais com as nossas concepções modernas do que aquele que defen­
dia valores convencionais.

57
CAPITULO III

O ESCRIBA

p o r A le s s a n d r o R o c c a ti
«Haverá aqui [alguém] como Hardjedef, alguém como Imhotep? Não nasceu
mo meu tempo [ninguém]) como Neferti, ou Khety, o primeiro. Dar-te-ei a
conhecer o nome de Ptahemdjehuti, Khakheperraseneb. Haverá aiguém como
Ptahotep e Kaires?» (Papiro Chester Beatty IV, 3, 5.)
Assim se inicia o famoso excerto que contém uma lista de escritores. De escri­
tores clássicos, poderiamos dizer, porque todos viveram alguns séculos antes do
texto que os menciona (século Xlll a. C.?), e que se exprimiam na língua antiga,
um tanto diferente da que estava em vigor — o neo-egípcio. O desconhecido
autor da citação serve-se dela para reforçar o conceito de que a escrita é mais
duradoura do que a pedra com que foram construídas as pirâmides e que, por
isso, quem a sabe utilizar está mais seguro do que as múmias que foram encerra­
das em sumptuosos sepulcros.
Se esta era a opinião corrente no último quartel do 2° milênio a. C., quando
a requintada cultura dos palácios se encontrava no apogeu, há muitos indícios de
que as coisas nem sempre se passaram assim. Antes do mais, quem foram os ilus­
tres autores citados, à maior parte dos quais são atribuídas obras que chegaram
efectivamente até aos nossos dias? Hardjedef era um dos filhos de Quéops que
nunca chegou a reinar. Todavia, um ensinamento que lhe era atribuído era bas­
tante lido durante a época dos Ramsés e mesmo depois, de tal forma que dele fica­
ram fragmentos que nos permitem ter uma ideia do seu autor. Todavia, nenhuma
das obras de Imhotep — o vizir do faraó sepultado na (primeira) pirâmide de socal­
cos de Sacará, Netjerikhet — Djoser, da 3.® dinastia — foi conservada. A fama
de Imhotep como arquitecto, literato e médico (que o faz ser equiparado ao Escu-
lápio dos gregos) foi tão sólida até finais do período faraônico que a sua pessoa
foi venerada em todo o Egipto, quase como uma prefiguração de um santo cristão.
De resto, na profecia acerca da 12.® dinastia, atribuída a Neferti, um mago
vidente de tempos remotos refere-se ao próprio faraó Sneferu, pai de Quéops e chefe
da 4.® dinastia, mencionando a sua a anacrônica capacidade de escrever e de registar
as palavras de Neferti com as suas próprias mãos. A Khety, que viveu no início
da 12.® dinastia, é atribuída uma célebre lista dos ofícios (a chamada Sátira dos
Ofícios, que teremos ocasião de voltar a referir), que tem por objectivo principal
ridicularizar qualquer actividade comparando-a com a importante carreira de
escriba. No entanto, no Ensinamento de Ptahotep, talvez o mais famoso e o mais
extenso, que deve remontar à 5.® dinastia e que nos chegou integralmente, em diver­
sos manuscritos, a partir da 12.® dinastia, não há qualquer alusão a escribas.

61
Este facto não tem nada de paradoxal se se tiver em conta que, no Egipto do
3 ° milênio a. C., o do Estado teocrático conhecido como monarquia menfita ou
época das pirâmides, havia maior necessidade de ler do que de escrever. Por
outras palavras, existiam vários níveis de escrita, entre os quais o do «escritor» ou
compositor surge como secundário, se é que existia. O que se manteve como pri­
mordial durante todo o 3.° milênio foi a actividade de escriba como criador,
inventor, aperfeiçoador da escrita. Abstraindo da sua utilização como contabilista
administrativo, o que não requeria grande perícia, a competência do escriba
baseava-se na sua capacidade de criar não só o texto da composição, mas também
o equipamento gráfico destinado a traduzi-lo. Nos Textos das Pirâmides diz-se
que o faraó «é escriba do rolo divino: diz o que é [lei] e transforma em lei o que
não está [escrito] (1146 c). A manipulação da escrita, sobretudo num texto reli­
gioso — e são esses os principais textos que, no 3.° milênio, são objecto de
escrita, não incluindo nessa designação os registos administrativos, as cartas ou
os decretos —, não só exigia uma competência linguística mas também o conheci­
mento do universo de signos e de símbolos que se podia descobrir no texto.
Sob um ponto de vista linguístico, o escriba era acima de tudo aquele que
sabia exprimir numa escrita única a «confusão» linguística. No 3.° milênio a. C.,
a escrita constituiu um espelho fiel da realidade, não só nos símbolos gráficos
(hieróglifos) mas também nas palavras que se escrevia. Tudo o que era escrito cor­
respondia necessariamente a algo de real; em caso contrário, bastava a sua formu­
lação para constituir uma acto criativo. Neste aspecto, a escrita coincidia com a
língua oficial do Estado (ou melhor, do templo, de que essa língua derivava), a
única «verdadeira» por definição, em relação à qual todas as que eram faladas no
interior do território, embora vasto e decerto não muito homogêneo, irrigado
pelo Nilo, eram «obscuras» e não equiparáveis, tal como as línguas de outras civi­
lizações, que eram deliberadamente ignoradas. No Egipto, não se fez sentir a
necessidade, como aconteceu na Mesopotâmia, de substituir a língua primitiva
por uma língua diferente de cultura escrita, com a consequente necessidade de
identificação dos dois idiomas. Por isso, pode considerar-se que, no Egipto, a par
das modificações no espaço, também as modificações no tempo foram recusadas
por «não verdadeiras». Possuir a escrita significava, portanto, possuir a única lín­
gua que, com a escrita, formava uma união indissolúvel.
Língua e escrita, assim associadas, estavam sujeitas às exigências rituais pro­
vocadas tanto pela sua utilização religiosa como pelos tabus ligados aos valores
e às funções das entidades convertidas em símbolos gráficos. Sob este ponto de
vista, o desconhecido autor dos Textos das Pirâmides, que apresentam uma siste-
matização diferente de conjunto para conjunto, revela-se um autêntico cientista
que, movido pela necessidade de encontrar soluções para os problemas rituais e
linguísticos, fez progredir bastante a consciência da escrita como expressão dos
conteúdos fonéticos e semânticos da língua que nela se projectava. Por exemplo,
na pirâmide de Tetis, optou-se por retirar dos símbolos gráficos todos os signos
ligados a seres animados, transformando a escrita das palavras de modo a que
continuassem a ser suficientemente inteligíveis. Por outro lado, tratava-se de espe­
cificar da forma mais precisa o conteúdo fonético dos signos complexos, que

62
constituíam um vocábulo, e, nesse caso, costumava-se acrescentar todos os possí­
veis «complementos fonéticos» para eliminar qualquer dúvida. Foi através de
experiências deste gênero que, no milênio seguinte, se desenvolveu um instru­
mento gráfico capaz de se converter verdadeiramente em «mensagem», ou seja,
em meio aperfeiçoado de comunicação.
No 3.° milênio, o cuidado que se detecta na escrita dos textos continha impli­
citamente uma preocupação igual com a leitura. Essa leitura, que não tinha pro­
priamente em vista ouvintes ou destinatários, assumia essencialmente um valor
ritual, e havia uma designação apropriada para o que dela se encarregava, desig­
nação que, literalmente, se traduz por «portador do [livro] ritual ou, mais corren­
temente, ritualista ou sacerdote leitor (hri-hh). É uma figura essencial nas oca­
siões que comportavam a recitação de textos sagrados (como, de resto, os pró­
prios Textos das Pirâmides) e é o único titular dessa função, que, aliás, lhe é con­
ferida pela forma como se esquiva aos perigos e aos efeitos nocivos inerentes,
quer ao nível gráfico, quer ao nível linguístico do texto escrito.
A designação de «sacerdote leitor» pressupõe a competência de «escriba»,
mas é-lhe superior pela sua função ritual. Na biografia de Ptahuash (5.® dinastia,
cerca de 2400 a. C.), menciona-se o «decano dos médicos» que é, porém, «sacer­
dote leitor». Ao «decano dos médicos» Niankhsekhmet, famoso por uma edícula
funerária, que lhe foi doada pelo faraó Sahura e onde se transcreve a decisão
dessa doação, não é aplicado o título de «escriba», embora, declaradamente, ele
fosse versado na escrita; e o mesmo se pode dizer de Unis, também «sacerdote lei­
tor», que ascendeu ao comando supremo e foi chamado a redigir a acta de um
processo respeitante ao harém do faraó: também ele não ostenta, em lugar
nenhum, a qualificação de «escriba». Somos levados a crer que, só por si, esse
título administrativo não significava que se pertencia a uma classe social elevada,
nem se aplicava a todos aqueles que conheciam ou se dedicavam à escrita, como
se observa ainda nos «apelos» fúnebres até à época romana: «todos os sacerdotes
puros, todos os escribas, todos os eruditos, [...], todos os peritos em hieróglifos».
Contudo, no túmulo de Bías, perto da pirâmide de Unas, faz-se distinção
entre o escriba que ler a inscrição e a sua qualificação de sacerdote leitor, que lhe
permitirá exprimir o seu reconhecimento: «defenderei no tribunal do grande deus
qualquer escriba que passe perto deste meu túmulo e leia esta inscrição [na arqui-
trave da entrada], porque sou um sacerdote ]eitor capaz e verdadeiro.» Aliás, a
expressão «sacerdote leitor capaz» {hri-hb iqr) parece poder ser substituída pela
expressão «escriba capaz» (e que conhece os rituais) (túmulo de ísis em Sacará,
ao lado do anterior) de tal forma que, após a morte, quem ostenta esse título
pode autodenominar-se como «espírito capaz», diferente dos mortos comuns,
assim como o escriba, em vida, era diferente das pessoas vulgares. É de notar
ainda que todos os chefes de expedição sepultados na necrópole da Qubbet el-
-Hawa, em Aswân, usam o título de «sacerdote leitor», ao passo que o de
«escriba» não aparece nas suas inscrições. Todavia, os grafitos oficiais que,
durante a 4.^ dinastia, se foram propagando cada vez mais nas zonas mineiras,
especificam que na composição das equipas existiam sempre escribas, que estavam
com certeza encarregados da administração. Por conseguinte, pode afirmar-se

63
que as missões levadas a cabo pelos viajantes de Elefantina (Aswân) a terras mais
longínquas, ou as funções de outros chefes de expedição, exigiriam um conheci­
mento ritual especial (e mágico?), que se distinguia de uma mera incumbência
administrativa (Roccatti, 1982, passim).
Acerca do «sacerdote leitor», a tradição conservará sobretudo o seu carácter
de mago e é por este termo que, em finais do 2 ° milénio a. C., durante o período
dos Ramsés, a expressão será traduzida na língua babilónica {asipu. cfr. Edel:
1976). Ficou célebre a figura do mago Djedi, que era, como tudo parece indicar,
um «sacerdote leitor» e que anima uma das saborosas novelas do papiro Westcar.
Nessa novela, Djedi é definido como «pequeno» (jids), qualificação de ordem
económico-social que especifica a modesta condição de uma pessoa não dotada
de meios autónomos de subsistência. Contudo, Djedi goza de uma robustez
excepcional e, aos 112 anos, ainda come 50 pães e uma coxa de boi e bebe cem
canecas de cerveja por dia, e vive isolado numa aldeia, antes de ser chamado à
corte pelo próprio príncipe Hardjedef, para divertir com os seus prodígios o des­
pótico Quéops, famigerado construtor da grande pirâmide. Quando está prestes
a embarcar para se dirigir ao palácio, Djedi exige também uma embarcação para
os filhos e um transporte para os seus livros. Fora do ambiente de exagero que
envolve o mago Djedi da fábula, como aliás o supracitado Neferti, chegou-nos
efectivamente o instrumentário de um dos seus colegas, quase contemporâneo da
novela, conservado num cofre encontrado numa sepultura do século xvii a. C.,
no lugar onde mais tarde seria erigido o grandioso Ramesseum. O cofre continha
uma série de volumes que iriam tornar-se famosos sob a designação de «papiros
do Ramesseum»: entre eles, estava o rolo com a história de Sinuhe, num lado, e
a do Oasiano Eloquente^ no outro, bem como rituais, hinos e mais de uma dúzia
de colectâneas de fórmulas mágicas parcialmente conhecidas através de outras
fontes. Para além dos textos, havia objectos, como quatro varinhas mágicas, um
amuleto de Osíris, uma estatueta de macaco e uma mulher mascarada empu­
nhando duas serpentes, e que era, provavelmente, utilizada durante os serviços
públicos (Gardiner, 1955).
Ao título de «sacerdote leitor» foi também associado um outro, que da
acepção original de «chefe» (hri-tp) passou de tal forma para a de «mago» que
é com esse sentido que surge na Bíblia (os hartummim do Antigo Testamento:
cfr. Gardiner, 1938). O túmulo de Djau, em Abidos (finais da 4.® dinastia, cerca
de 2200 a. C.) ajuda-nos a distinguir vários níveis de conhecimento, e de utili­
zação, da escrita. Djau foi escriba dos rolos divinos, chefe dos escribas das
actas régias, sacerdote leitor e «chefe» {hri-tp). É provável que o primeiro e o
segundo títulos se referissem respectivamente à capacidade de utilizar a escrita
hieroglífica (icónica, sagrada) e hierática (não icónica, utilitária), enquanto os
atributos de «sacerdote leitor» e «chefe» derivariam do facto de Djau ostentar
o primeiro título, o que o habilitaria a utilizar ritualmente os textos hieroglífi­
cos. No túmulo menfita contemporâneo de Khentika recorda-se expressamente
«este texto secreto [ou seja, «reservado»] dos hieróglifos [próprio] da arte do
sacerdote leitor», «sendo instruído em todos os textos da casa dos textos divi­
nos [biblioteca de textos hieroglíficos]».

64
É evidente que, quando um funcionário como Kaaper, que viveu na 5.® dinas­
tia (cerca de 2400 a. C.), ostenta vários títulos referentes à sua posição de escriba
(«escriba da administração, escriba do pasto das vacas mosqueadas, escriba da
secção dos documentos [arquivo?], inspector dos escribas do Estado, escriba das
actas do Estado, escriba das expedições régias [a vários países]»), revela apenas
a sua capacidade para se servir da escrita hierática, única forma de escrita que,
durante a época menfita, era adoptada na contabilidade, como é demonstrado,
por exemplo, pelo importante arquivo de Abussir, que remonta ao tempo do faraó
Isésis, da 5.® dinastia. Esse arquivo confirma a existência de numerosos escribas,
ordenados hierarquicamente segundo o modelo dos outros serviços, mesmo os de
pouca importância, e segundo princípios de elevada especialização: a par da
capacidade de escrever, também importa muito a de contar. Não devemos esque­
cer que alguns desses escribas eram provavelmente aqueles que tinham na mão as
rédeas da economia, os encarregados de registar os rendimentos, de repartir os
produtos e de cuidar da redistribuição dos recursos. Porém, entre eles também
havia os que, nessa época, parecem ter estado ao serviço de funcionários e de
sacerdotes, e a quem não era eventualmente exigida a prática da escrita, como
recorda um excerto dos Textos dos Sarcófagos (I 14 b-c): «erguem-se por tua
causa os seus funcionários [magistrados] e tremem por tua causa os seus escribas,
que estão sobre as suas esteiras, diante de ti». Nos Textos das Pirâmides (490-491)
é ainda descrita a actividade do escriba subordinado: «abre as suas [da adminis­
tração] caixas de papiros, quebra os selos dos seus decretos, sela os rolos de
papiro, envia as suas constantes mensagens», que é reproduzida igualmente nos
Textos dos Sarcófagos na fórmula (992) para «se tornar arquivista de Thot e abrir
o seu cofre das actas: Abro o que está sob a sua [jurisdição], quebro o selo de
argila dos seus escritos, abro o cofre das actas do deus, entrego-lhe os rolos de
papiro» (Schott, 1954).
Os títulos mencionados nos papiros de Abussir parecem referir-se exclusiva­
mente às necessidades documentais e ao uso da escrita hierática administrativa,
o que prova a difusão que a escrita já possuía na gestão da administração,
segundo uma tradição que pode remontar à fundação do Estado faraónico
(Posener-Kriéger, 1976). A mesma variabilidade de funções no seio da adminis­
tração é revelada pelas inscrições nos túmulos da vasta necrópole de Mênfis, onde
residiam os encarregados da contabilidade do Estado centralizado (Junker, Gizé).
Existe contudo uma distinção entre um «escriba do arquivo» de um «escriba
do arquivo dos rolos divinos», escritos provavelmente em hieróglifos e, portanto,
com um conteúdo diferente. A própria deusa Seshat era responsável pelo
«arquivo dos rolos divinos». Uma cena reproduzida no templo de Sethi I, em
Abidos, evoca a ligação que existe entre essa deusa, que se vê a «escrever o des­
tino» do faraó, e os antigos valores dos hieróglifos, ao atribuir-lhe as seguintes
palavras: «a minha mão escreve a sua longa existência, como o que sai da boca
de Rá [assim se identificam a escrita e as palavras]; os pincéis são a eternidade,
a tinta é o tempo, o tinteiro são os inúmeros jubileus».
Os que exerciam estas funções, como Djati, «responsável pelos segredos [da
escrita secreta do arquivo] das palavras divinas [os hieróglifos]», ou Ti, «respon­
sável pelos segredos das palavras divinas [os hieróg[ifos]» ou Neter, Ptahuash,

65
Kaenra e Ptahotep, «escribas do rolo divino», também eram «sacerdotes leitores»
e viveram durante a 5.® dinastia (cerca de 2400-2300 a. C.), sendo precursores dos
sacerdotes leitores acima mencionados.
A polivalência da instituição de escriba projecta-se, como é natural, nas prer­
rogativas do nümen patrono, que, inevitavelmente, assume um carácter social
indispensável junto do mundo divino. O deus lunar Thot reúne em si tudo o que
se refere à esfera intelectual: criador das línguas e da escrita, sobretudo na sua
variedade hieroglífica («palavras de deus», mdw-ntr), mas também hierática
{md't «[escrita do] papiro») e de tudo o que na língua e na escrita se reflecte,
como a ciência e a magia, ou ainda dos cargos a que o saber dá acesso. Na época
tardia, a figura do babuíno, animal consagrado a Thot, simboliza a palavra
«escriba». Thot é escriba dos deuses e «sacerdote leitor», autor de livros (sobre­
tudo mágicos), mas também possui a dignidade de vizir divino, e estas suas fun­
ções são destacadas de uma forma característica num importante relato do
período dos Ramsés que narra episódios do mito de «Hórus e Seth» e na sua
inclusão na cena da pesagem do coração no Livro dos Mortos. Como tipo social,
Thot é contraposto ao deus Ptah, antigo patrono dos artesãos e das artes; na
organização estatal, constituíam ambos uma força necessária e distinguiam-se,
igualmente, da massa da população produtora. De Thot pode derivar a função de
patrono da escrita, atribuída também ao deus tebano Khonsu, que é, como ele,
um deus lunar.
A importância do escriba durante a época menfita levou à criação de uma ico­
nografia apropriada, no relevo e na estatuária (o escriba sentado), única reprodu­
ção nobre de um ofício que se regista no 3.° milênio. O escriba está sentado no
chão, de joelhos cruzados, tronco direito, com um papiro desenrolado no solo e,
eventualmente, com o pincel na mão direita. Tudo isso, a par de uma ligeira obesi­
dade, alude à importância da função e define como escriba todo aquele que
escreve com tinta sobre os papiros, portanto, não o teórico da escrita, em quem
talvez se devesse ver mais um «sacerdote leitor» nem o executor de (cuidadas) gra­
vações epigráficas. Todavia, há confirmações de escribas que deixaram inscrições
no túmulo para «o pai e a sua mulher dilecta» e há mesmo um caso de inscrições
que foram «executadas por seu marido, o escriba das actas régias», que avaliava,
portanto, a competência na escrita hierática e hieroglífica.
Uma das funções do escriba era, naturalmente, servir de intérprete das
palavras esculpidas junto da maioria daqueles que não sabiam ler (nem escrever).
À entrada de alguns túmulos, em finais do Antigo Império, pode ler-se o
seguinte: «É um amado do rei [e] de Osíris Primeiro entre os Ocidentais e Osíris
senhor de Busíris: todo o escriba que ler [em voz alta], todo o homem que ouvir,
todo o sacerdote puro que observar [isto é, ler mentalmente], enquanto diz
“ louvo Osíris e glorifico Anúbis que está no seu monte, senhor da terra sagrada,
Senetites, justificada” .» (Cairo CG 20017.)
Isso significa que a escrita já não era um fim em si mesma ou estava estrita­
mente ligada à vontade do cliente, mas que se ia convertendo em algo que se diri­
gia a destinatários. Todavia, em finais do 3.° milênio e depois, sobretudo durante
o 2.°, já começava a haver indícios das drásticas alterações provocadas pelo

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Médio Império. Com a ampliação da camada culta e suficientemente abastada
para possuir instrução, o uso da escrita e dos livros e a importância dos escribas
foram bastante favorecidos. A partir dessa época, as altas individualidades costu­
mavam levar para o além-túmulo, como um viático, sarcófagos completamente
cobertos de textos cuja leitura ou recitação poderia ter agradado ao defunto, que
assim ficava encerrado num autêntico escrínio mágico.
Mas nem só os textos sagrados eram cuidadosamente redigidos e guardados.
Uma literatura de «passatempo», mas também de subtil edificação era promovida
pelo Palácio, levando à redacção escrita de obras gnómicas e narrativas dotadas
de notáveis ambições estilísticas. Por conseguinte, o escriba passava de «inventor
da escrita» para «inventor de textos». Por sua vez, a escrita dos textos cra rigida­
mente codificada. O papiro Prisse, que contém o texto integral do Ensinamento
de Ptahotep, ou o papiro do Ermitage com a História do Náufrago, talvez o manus­
crito mais antigo que chegou até nós, contém no fim a anotação de que foram
copiados de acordo com o que foi «encontrado na escrita», ou seja, noutro papiro,
e não foram transcritos apenas de memória, como se deve ter feito até então.
Agora, os textos multiplicavam-se tanto em quantidade como em variedade.
Surgiam manuais científicos (médicos, geométricos, astronómicos, teológicos,
etc.) e rolos com figuras (mapas topográficos, jogos, ilustrações religiosas, satíri­
cas, humorísticas). Não há dúvida de que, pelo menos a partir do 2° milénio
a. C., o uso da escrita se tornou essencial para o aprofundamento científico, quer
no domínio da teologia quer no domínio das chamadas «ciências exactas». Tal
facto ia completando de uma forma crescente a aprendizagem oral, e permitia
métodos de investigação e recolha de elementos que, de outra forma, não seriam
possíveis (Derchain, 1988). No cofre proveniente da área do Ramesseum, para
além dos outros documentos já citados, também foi descoberto um papiro, pre­
cursor de um género muito conspícuo e bem representado desde o Novo Império
até à época tardia, intitulado precisamente Onomasticon do Ramesseum. Trata-se
de um vocabulário primitivo, cujo critério de enumeração se baseia não nas pala­
vras, mas nas coisas, isto é, em referentes a que as palavras correspondem, agru­
pados segundo diferentes critérios associativos. A intenção enciclopédica exprime
bem a ideia de condensar a posse da realidade através da formulação linguística
subjacente.
A profissão de escriba torna-se também uma profissão ambicionada, requerida
pela administração, e por isso especializa-se numa série de actividades sectoriais
que equiparam o escriba ao funcionário. Se, na época menfita, as ordens do Palá­
cio eram, de facto, transmitidas oralmente, através de encarregados de negócios
(«os mensageiros») dotados de poderes de decisão, a coordenação dos interesses
passa a estar cada vez mais entregue às mensagens escritas — quanto mais não seja
para garantir a credibilidade das comunicações transmitidas verbalmente —, e pro­
paga-se o costume da comunicação escrita interpessoal. Os doutores do pincel
estão cada vez mais repartidos por uma escala de graus hierárquicos, e a compe­
tência de escriba passa a estar associada a actividades que, em alguns casos, se
revestem de um prestígio especial. Os cargos de funcionário e de sacerdote exi­
giam o conhecimento da escrita, como recorda um bloco em forma de sarcófago

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(actualmente em Avignon), onde está gravada uma definição de escriba que se opõe
à que nos é dada no excerto citado dos Textos das Pirâmides: «ó vivos na terra!
todo o escriba, todo o magistrado, todo o sacerdote, todo o erudito que sabe empu­
nhar o pincel [para escrever], todo o erudito que sabe ler». O ofício de escriba não
é condição suficiente para se pertencer à classe social mais elevada; todavia, não
se situa ao nível de um artesão. Embora não seja dotado de meios autônomos de
subsistência e a sua situação seja a de um assalariado da administração, a retórica
contemporânea diz que, ao contrário de todas as outras ocupações equivalentes,
não está subordinado a ninguém. Pelo menos é essa a tese de uma obra de propa­
ganda, o Ensinamento de Khety, que foi designada por Sátira dos Ofícios. Para
que o filho, que ia iniciar os seus estudos, apreciasse mais a profissão de escriba
do que qualquer outra, o pai Khety descreve-lhe, enumerando-os, os aspectos peno­
sos e ridículos de vinte outras actividades. Trata-se dos ofícios mais humildes da
sociedade e, por isso, implicitamente, refere-se também aos níveis mais modestos
da situação de escriba. Seja como for, a formação de escriba é um preliminar para
as carreiras mais elevadas. Aliás, a única que era conferida por uma instrução pro­
priamente escolar («escriba capaz, hábil de mãos, de dedos limpos») e que, ini­
cialmente, era proporcionada apenas na capital. Na Sátira dos Ofícios, Khety acom­
panha o filho de Siles até Mênfis. De resto, o tirocínio do escriba implicava uma
certa maturidade; a dificuldade do sistema de escrita torna pouco provável que a
sua aprendizagem pudesse ter início numa idade precoce (talvez por volta dos 10
anos). Além disso, era necessário que as famílias, para lá de se interessarem pela
cultura, também tivessem meios de subsistência adequados: estas exigências, alia­
das aos privilégios que a formação de escriba proporcionava, tendiam a manter
a instrução no interior do mesmo círculo profissional.
Para lá do escriba como profissão, interessa-nos agora examinar também os
aspectos de carácter pessoal e intelectual da figura do escriba. Já vimos que houve
alguns que deixaram um nome famoso como autores de livros. Não possuímos pro­
vas históricas reais da existência desses presumíveis escritores nem sabemos se foram
realmente os autores das obras que lhes são atribuídas. As referências a figuras his­
tóricas, ou melhor, de prestígio, tinham por objectivo tornar mais realista, e, por­
tanto, credível, a narração, ou mais eficaz o exemplo, sobretudo quando se tratava
de máximas morais. É de notar, porém, que esses autores ainda não são qualifi­
cados como escribas e o que lhes confere prestígio é o grau de nobreza ou a impor­
tância do cargo que chegaram a desempenhar. Só a partir do Novo Império é que
se conhecem compositores de obras que exerceram habitualmente a profissão de
escribas (Ani, Amenemope, titulares das máximas epónimas, ou ainda Amennakht,
de cujo ensinamento só se conhece, até agora, o exórdio). Contudo, no seio de uma
colectividade largamente anônima como era a egípcia do 3.° e 2.° milênios a. C.,
sobressai a especificação de personalidades precisas ligadas, primeiro, à composi­
ção de obras e, só numa segunda fase (durante a época dos Ramsés), também à
sua compilação e transmissão.
Havia decerto colectâneas de livros elaboradas por particulares, e, como acon­
teceu até à nossa Idade Média, as bibliotecas, de templo ou de palácio — como
aquela a que já se fez referência —, tinham por função conservar o saber e não
difundi-lo. Todavia, a partir do 2.° milênio a. C., surge a figura do erudito

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apaixonado coleccionador de obras preciosas, de que há inúmeros testemunhos
nas inscrições privadas, descobertas nas necrópoles, muitas das quais contêm não
só alardes estilísticos, mas também referências deliberadas às obras mais famosas.
Na esteia (Cairo CG 20538) dedicada em Abidos por Sehtepibra, que morreu na
época do faraó Amenemá III (cerca de 1800 a. C.), está gravado um resumo de
vários temas. Embora não seja de grandes dimensões, essa esteia tem a forma de
um marco e está totalmente coberta de inscrições. O perfil biográfico-moral é
imitado substancialmente do monumento do vizir Mentuhotep (Cairo CG 20539),
construído, porém, em Abidos durante o reinado de Sesóstris I (cerca de 1900
a. C.). Ao lado vê-se um texto que descreve as festas de Osíris, comum a outras
lápides existentes no local. Mas o documento mais revelador é uma composição
literária copiada na face oposta, que foi identificada, após a reconstituição, efec-
tuada por Posener há poucos anos, do Panegírico Real (Posener, 1976). A esteia
de Sehtepibra dá-nos uma versão abreviada, mas que é certamente a mais antiga
das cópias que chegaram até nós, desse singular tratado político da 12.^ dinastia,
que na época dos Ramsés se tornaria um clássico para os candidatos a escribas.
A originalidade do monumento funerário de Sehtepibra deriva da reunião de
várias obras, entre quantas é possível hoje reconhecer, de que ele possuía eviden­
temente cópias pessoais, embora provavelmente se tenha limitado a citar, como
outros seus contemporâneos, os livros de conteúdo moral e religioso, considera­
dos os mais adequados para um ambiente sepulcral. Entre os seus vários títulos
honoríficos e profissionais, Sehtepirba não usava nem o de escriba nem o de
sacerdote leitor; era um funcionário, intendente e tesoureiro, e por isso devia estar
familiarizado com a escrita. Assim, pode perfeitamente protagonizar a figura do
«leitor» e amante de livros.
A selecção das obras utilizadas para decorar o marco de Sehtepibra sobressai
pelo seu carácter insólito; todavia, o seu contexto não se pode diferenciar do de
numerosas outras colectâneas que os ricos, durante o Médio Império, costuma­
vam levar consigo para o túmulo. Trata-se dos Textos dos Sarcófagos, assim cha­
mados por que se destinavam a decorar o interior da urna onde era colocada a
múmia. Imitam os antigos textos religiosos que, a partir de finais da 5.® dinastia,
cobriam as paredes das salas das pirâmides reais menfitas. Contudo, enquanto os
Textos das Pirâmides possuem ainda um acentuado carácter epigráfico, nos Tex­
tos dos Sarcófagos nota-se a influência do papiro original de que foram decerto
extraídos. Funcionam, portanto, como livros de orações — precursores dos
Livros dos Mortos — que o defunto gostaria de ter lido como auxílio contra os
perigos do Além. Para lá deste fim utilitário, é indubitável a pertinência destes
textos para uma camada versada nas letras, e cujos membros podiam escolher
pessoalmente as fórmulas, de acordo com os manuscritos existentes nas bibliote­
cas dos templos locais ou importados. De facto, não se podem contar as fórmulas
citadas em sarcófagos situados em necrópoles por vezes a grande distância umas
das outras ou pertencentes a séculos muito diferentes, o que demonstra um
atento cuidado na conservação do material religioso-literário precioso. Também
não falta quem, como o tebano Buau, que viveu em meados da 12.® dinastia,
inclua no repertório do seu sarcófago (T 9C) um extracto de uma narração,

69
o Pastor Que Viu Uma Deusa, que, num papiro contemporâneo, está associado
a obras propriamente literárias. Este sarcófago foi encontrado num túmulo da
zona de Deir el-Bahari, em Tebas, usurpado por um desconhecido chamado Men-
tuhotep, que tinha aposto o seu nome exclusivamente na decoração exterior. Ao
mesmo gosto erudito deverá atribuir-se, a partir do Novo Império, a vasta escolha
de hinos, sobretudo ao Sol, incluídos na decoração das capelas funerárias dos
particulares e que completam amplamente o nosso conhecimento dos papiros.
Em finais do século iv a. C., um sacerdote e escriba tebano chamado Nes-
min, que desempenhou inúmeros cargos sem nunca atingir as altas hierarquias,
levou efectivamente para o túmulo, à guisa ou em vez do Livro dos Mortos,
alguns dos volumes que possuía, eomo se vê pelo epitáfio. Esses volumes reflec-
tem ainda um objectivo religioso-fúnebre, mas são especiais pela sua raridade.
O mais extenso, designado por «Livro secreto do Tesouro, que ninguém viu», é
conhecido como papiro Bremner Rhind (conservado em Londres, no British
Museum), e inclui obras distintas, como os Cantos de ísis e Néfti, o Ritual para
transportar Sokar e o Livro para Derrubar Apópis, tudo cópias de textos que
remontam pelo menos ao Novo Império. Outros dois papiros, ambos palimpses-
tos recuperados de documentos administrativos demóticos, transcrevem rituais
relativos à «Festa do Vale» e à «Glorificação de Osíris», também confirmados
por outros documentos (Heykal, 1970). Nesmin era, provavelmente, o pai de
outro escriba de Ámon, Shepmin, cuja tampa do majestoso sarcófago se pode ver
no Museu Egípcio de Turim, e a sua condição está bem descrita no elogio fúnebre
feito por um dos seus colegas: «encarregado dos segredos das palavras do deus
[hieróglifos], perito em todos os cofres [de papirosl da Casa da Vida [...], profes­
sor insigne dos filhos dos sacerdotes [...] escriba dos livros sagrados» (Habachi,
1971, 70.)
Embora excepcionalmente, havia eruditos que, após a morte, desejavam con­
servar junto de si obras que não possuíam qualquer carácter funerário, e que por
vezes não tinham sequer qualquer valor intrínseco. No túmulo intacto do artesão
de Deir el-Medina, Sennedjem (século xiil a. C.), e de sua família, foi encon­
trado um gigantesco óstraco, actualmente no Museu do Cairo, onde estava trans­
crita parte da História de Sinuhe. Nada se sabe acerca do achado da maior parte
dos manuscritos literários, mas é provável que tenham sido salvos por terem sido
depositados no túmulo, como fez o anônimo proprietário do cofre acima citado,
proveniente da zona do Ramesseum. Na época saítica, o papiro Vandrier narra as
desventuras do mago Merira, e, no verso do texto literário foi escrito à mão o
Livro dos Mortos, o que permitiu a sua conservação. Em finais do Médio Impé­
rio, o escriba do grande harém, Neferhotep, levou para o seu túmulo em Dra Abu
n-Naga, bairro da antiga Tebas, um rolo de contabilidade, que foi descoberto em
1860 (papiro Bulaq 18), e pensa-se que o papiro Prisse, um dos documentos lite­
rários mais cuidados e em melhores condições, que relata os ensinamentos de
Kagemmi e de Ptahotep, deve provir da mesma zona.
O que é certo é que as necrópoles do antigo Egipto, com os seus túmulos
repletos de inscrições, se transformaram no arquivo público de consulta mais ime­
diata. Assim nasce a figura do «descobridor de textos [preciosos]».

70
«princípio da colectânea da cura das doenças, encontrada em textos antigos num
escrínio aos pés de Anúbis em Letópolis, nos tempos da majestade do rei Heseptis (da
1.® dinastia) justificado [...]. Então este rolo foi retirado e selado pelo escriba das
palavras do deus [hieróglifos] e decano dos médicos capazes que satisfazem o deus:
quando o rolo foi feito, um servo de Áten fez uma oferenda de pão, cerveja e quei­
mou incenso, em nome da grande ísis, de Harkhentekhtai, Khonsu, Thot e dos deu­
ses que estão nos membros». (Luft, 1973).

A lenda transmitiu os feitos de um erudito explorador destes tesouros literá­


rios, o príncipe Khamuaset, quarto filho de Ramsés II e sumo sacerdote de Ptah
em Mênfis (século xiii a. C.). Foi ele quem se ocupou do restauro das pirâmides,
da reconstrução do templo de Ptah e, provavelmente, do inventário das bibliote­
cas. A ele se atribuía a descoberta do capítulo 167 do Livro dos Mortos, e a sua
fama de «mago» passou à posteridade, a par do lendário Djedi do papiro West-
car, mas com conotações que antecipam o carácter de um Fausto (Pieper, 1931).
O facto de ocupar um elevado cargo na hierarquia do templo abria certamente
a Khamuaset, e a outros como ele, as portas de arquivos onde se conservavam
livros muito antigos, cuja compreensão exigia uma preparação especial. O fruto
das suas pesquisas sobressai, por vezes, na decoração que escolheram para os seus
túmulos, como acontece, por exemplo, com o do segundo profeta de Ámon,
Puiemra (reinado de Tutmés III, século xv a. C.), «encarregado dos segredos das
palavras divinas [hieróglifos] no templo de Ámon [em] Karnak», que está cheio
de citações eruditas de textos e de reproduções do Médio Império. São, de facto,
personagens deste gênero que representam a cultura do mundo faraônico e contri­
buem, talvez mais do que qualquer outra categoria, para desenhar a sua imagem.
Por vezes, a «Casa da Vida», ou seja, a parte dos templos onde se leccionava
e se conservava e copiava os manuscritos, situada perto da «Casa dos Livros»,
registava a descoberta de raridades antigas, verificava o estado de conservação (e
nos casos em que o original estava arruinado escrevia-se «encontrado estragado»)
e procedia eventualmente à confecção de falsificações sacerdotais ou à adequação
de textos antigos às novas exigências, como se fazia na restauração de edifícios.
De certa forma, esboçavam-se os preâmbulos de uma actividade filológica. Na
época dos Ramsés, Ramessenakht, «chefe dos trabalhos» (arquitecto do rei), era
também «escriba dos textos divinos que estão na “ Casa da Vida’^>. Isso significa
que os arquitectos tinham acesso aos arquivos dos templos, e que era de acordo
com os preceitos aí encontrados que deviam construir. Neste sentido, a «Casa da
Vida» de Heliópolis parece ter sido considerada por muito tempo como modelo
de escola de Arquitectura (Gasse, 1981), enquanto, na época tardia, Bubaste, Abi-
dos e Saís eram consideradas como os melhores centros para a aprendizagem da
medicina (Habachi, 1971).
Por conseguinte, os escribas consagrados por terem sido nomeados para uma
instituição de tão grande prestígio como era a «Casa da Vida» estavam também
encarregados de pesquisas delicadas e, pelo menos na época dos Ramsés, eram
chamados a avaliar a pertinência ritual dos materiais trazidos das expedições,
incumbência que os «sacerdotes leitores» já possuíam.

71
«Sua Majestade ordenou ao escriba da Casa da Vida Ramesseashab, ao escriba do
faraó, Hóris, ao sacerdote do templo de Har-Min e sis em Coptos, Usermaranakht,
para investigarem os trabalhos da Sede da Verdade [a necrópole tebana] perto do local
da p e d ra -b e k h e n , depois do que se considerou que estavam bem feitos e que os monu­
mentos eram grandes e maravilhosos.» (Gardiner, 1938.)

Os eruditos famosos não eram apenas de alta linhagem e não pertenciam ape­
nas à classe social mais elevada. Veja-se, por exemplo, a carreira de Amenhotep,
filho de Hapu, que deixou um esboço da sua vida que nos permite distinguir as
etapas da formação de um «dirigente». Nascido em Atríbis, provavelmente ainda
durante o reinado de Tutmés III (que morreu por volta de 1450 a. C.), foi inicial­
mente promovido a «escriba régio» de baixo nível, foi instruído no livro divino,
viu o poder de Thot e compreendeu os seus segredos, de forma que podia resolver
qualquer dificuldade e dar conselhos em todas as circunstâncias. Aos 50 anos, na
época de Amenófis III, foi promovido a «escriba régio de alto nível» enquanto
«escriba régio [com funções de] escriba militar». Essa elevada posição permi­
tiu-lhe actuar como «chefe de todos os trabalhos [grande arquitecto] do rei»,
ocupando-se da extracção dos materiais no Gebel Ahmar, perto de Heliópolis, da
construção do templo fúnebre do faraó, de vários edifícios na zona sagrada de
Karnak, da erecção de estátuas do rei, e, por fim, da construção de um lugar de
culto a si próprio. O seu prestígio aumentou tanto que, na época dos Romanos,
ainda era venerado como um santo, e atribuía-se-lhe a descoberta do Livro dos
Segredos das Formas, que está provavelmente incluído no Livro dos Mortos, Lou-
vre 3248 (Erman, 1877).
Portanto, a preparação de um escriba permitia um conhecimento profundo e
dava acesso aos cargos mais importantes. Aproximamo-nos da concepção
segundo a qual o «saber escrever» aponta para um grau de instrução e não para
uma determinada situação profissional ou social (como acontecia com o termo
«doutor», que pode também tornar-se um equivalente de escriba). Durante o 2.°
milénio, a manipulação da escrita pode ser apanágio de todas as categorias que
se situam acima da massa da população directamente produtiva. Na História do
Oasiano Eloquente, o protagonista é dotado de uma linguagem surpreendente,
mas é completamente incapaz de se servir de «papel e pena».
É certo que, a partir do Antigo Império, se exigia o conhecimento da escrita
a quem quisesse ascender aos cargos mais elevados, mas esse conhecimento não
se identificava necessariamente com o ofício de escriba, tal como o sábio
(«aquele que conhece as coisas») não podia ser originariamente um literato.
Todavia, com o tempo, foi-se consolidando a consciência de casta de quem per­
tencia ao consórcio dos escribas e mais ainda se descendia de uma família de cul­
tores das belas-letras. O privilégio das classes mais altas tendia a ser mantido nos
mesmos círculos, e muito mais se estava associado à transmissão de conhecimen­
tos específicos. Há, portanto, várias gerações de famílias de escribas, ou verifi­
ca-se uma alternância hereditária entre a função de escriba e as de sacerdote e
funcionário. Em muitos casos, os cargos acumulam-se, e é normal que um sacer­
dote seja também escriba das oferendas divinas no templo.

72
■t!
No Novo Império, a presença do escriba na sociedade não depende apenas de
necessidades da administração, como acontecia no Médio Império; os escribas
constituem uma autêntica casta intelectual, que produz cultura já não necessaria­
mente por conta do Palácio, mas para a sua própria «casta» de privilegiados.
Então, «ser escriba» adquiriu uma conotação social muito precisa, e, como se
viu, os autores de máximas desta época (Anis, Amennakhte, Amenemope) desig­
nam-se justamente por «escribas». Aliás, no prólogo da sua obra, Amenemope
confirma que as suas funções eram de escriba da administração, tal como Enne-
nes e Pentuere, calígrafos de importantes textos literários, eram escribas do
Tesouro, e Qenherkhopshef, copista e coleccionador de manuscritos, era escriba
da comunidade artesã de Deir el-Medina. O escriba podia ter junto de si uma
estatueta do númen patrono Thot e dedicar-lhe uma devoção especial. Como sin­
toma de bem-estar, as composições escolares censuravam o comportamento
«goliárdico» assumido por alguns jovens que descuravam a escola, e não deixam
de realçar a comodidade da vida de gabinete em comparação com a dureza da
carreira militar, que, sob outros aspectos, era também aliciante. Não é possível
estabelecer uma relação estatística entre o número de pessoas que sabiam escrever
e a massa da população analfabeta, porque a maior parte dos escribas se concen­
trava nos palácios ou nos centros administrativos ligados às residências reais, ou
então nos templos, onde o número das pessoas que sabiam escrever era provavel­
mente elevado. Todavia, na grande extensão do território, a maioria da população
era totalmente analfabeta. Mantinha-se válido um dito dos Textos dos Sarcófa-
gos, escrito meio milênio antes: «fui escriba para a multidão» (II 176 0-
O escriba já não era apenas o leitor das inscrições tumulares; agora, era ele quem
redigia e lia a correspondência epistolar, que substituira as mensagens orais, pre­
parava relatórios e lavrava documentos legais.
No entanto, a primazia conquistada pela classe dos escribas não se manteve
indiscutível. A partir de meados da 18.® dinastia (c. séculos xiv-xili a. C.), os
encarregados da administração militar começaram a prevalecer sobre os escribas
civis, até então dominantes. A competência de escriba, que tinha permitido atin­
gir o supremo cargo de vizir, viu então os seus representantes nos cargos mais
altos do exército. Generais como Tjanenis, que redigiu os diários de guerra dos
feitos de Tutmés III, Thot, Maia, Amenhotep, Paatenemhat, Nakht, tinham sido
inicialmente escribas militares (Helck, 1954). O escriba da necrópole, Buteha-
mon, conhecido por numerosos textos em finais da 20.® dinastia (c. de 1100
a. C.), e último descendente de uma família de sete gerações de escribas, provinha
da administração militar. No texto literário conhecido por A Carta Satírica,
enviada, por Horis a um tal Amenemope, este é classificado como escriba militar,
ao passo que Horis, no variegado florilégio que descreve o seu talento, se limita
a transpor expressões militares para o pacífico campo das letras: «artesão nas
palavras do deus [hieróglifos], sem ignorância, valente na arte de Seshat, servidor
do Senhor de Hermópolis [Thot] na sua sala dos livros, mestre dos subordinados
na repartição dos livros [...] lesto a copiar os manuscritos», o que faz pensar que
existiría uma rivalidade entre escribas afectos a diversas administrações, e mais
precisamente entre a antiga classe proveniente da carreira civil e a nova, que devia
a sua sorte à carreira militar.

73
Aliás, foi na época dos Ramsés que se tomou plena consciência de uma reno­
vação radical da civilização. No campo linguístico, a língua falada contemporâ­
nea passou a contrapor-se à antiga língua codificada, primeiro do Templo e
depois do Palácio, e a escrita, que anotava as suas variedades e registos com uma
amplitude invulgar em função de um público bastante mais extenso e diferen­
ciado, tendia para formas de anotação predominantemente fonéticas. Numa
sociedade em profunda renovação, reforçava-se o culto dos livros antigos, que
eram guardados, lidos e copiados mesmo sem serem verdadeiramente compreen­
didos. Entre a comunidade de Deir el-Medina, onde viviam os artesãos encarre­
gados da construção dos túmulos reais, conservaram-se inúmeros vestígios da
colectânea de textos antigos que eram copiados em papiro, em fragmentos de
vasos ou em estilhaços de calcário, os chamados óstracos. Existem certos escri-
bas, como Qenherkhopshet, cujo estilo se conhece bem, o que nos permite reco­
nhecer os seus documentos autógrafos. Qenherkhopshet viveu durante o reinado
de Ramsés IX (séculos Xiil-Xll a. C.) e morreu no reinado de Siptah; pertencia a
uma família cujos membros exerceram a actividade de escriba até à época de
Ramsés IX (séculos xill-xii a. C.). Todavia, o que mais os caracteriza é o facto
de terem procedido a uma recolha sistemática de manuscritos para uso privado,
constituindo uma biblioteca, de que fazem parte os papiros da colecção Chester
Beatty, que se pode avaliar, na sua maior extensão, pelo menos em 40 volumes,
alguns de um extraordinário interesse, como a narrativa de Hórus e Seth, ou o
livro dos sonhos (Pestman, 1982). Chegou até aos nossos dias uma carta em que
se recomenda que, após um aguaceiro, se deve estender alguns desses papiros ao
sol, para secarem (Koenig, 1981).
Também houve quem tivesse levado para o túmulo a cópia de uma obra
antiga, como o já referido Sennedjem, um artesão que não possuía um Livro dos
Mortos, mas que quis junto de si a História de Sinuhe, copiada num óstraco
gigantesco. No microcosmos de Deir el-Medina, como aliás em todo o país,
começam a esboçar-se as diferenças entre escribas literários, especializados na
escrita de livros, e artesãos do pincel encarregados dos registos administrativos,
escritos de uma forma pouco requintada mas cada vez mais rápida e cursiva. Esta
realidade parece evidente justamente pela divergência cada vez mais acentuada
dos traçados: a escrita administrativa assume um ritmo especial muito rápido e
simplificado, cheio de abreviaturas e convenções, de tal forma que só pode ser
decifrada por pessoas experientes; pelo contrário, a escrita livresca, que não é
" figurada (hierático), é bastante regular e facilmente legível.
\ De qualquer modo, as cópias dos textos literários passam a ser assinadas
pelos seus autores, que assim confirmam algo mais do que a execução de um tra­
balho, cuja qualidade é garantida pelo seu prestígio de eruditos. Dois escribas
que trabalhavam em Mênfis entre os séculos Xlil e Xll a. C., Ennenes e Pentuere,
deixaram os seus nomes ligados a magníficos manuscritos. O primeiro, escriba do
Tesouro e subordinado do escriba do Tesouro Kageb, foi o autor de cinco rolos de
miscelâneas escolares que foram conservadas e do único manuscrito, o papiro
D’Orbiney, que contém a História dos Dois Irmãos. Ao segundo ficou a dever-se
uma cópia manuscrita do Poema de Qadesh, em honra de Ramsés II, difundido
sobretudo nas versões epigráficas. A situação de escriba do Tesouro podia ser

74
bastante abastada. Minnakht, escriba do duplo Tesouro na época de Tutmés III,
foi uma personalidade tão importante que dedicou várias estátuas em vários san­
tuários e possuiu um túmulo em Tebas e um cenotáfio, em Silsila.
Nos templos, havia também oficinas de livros («Casa da Vida») onde se
podiam confeccionar obras-primas de manuscritos: os Livros dos Mortos, desti­
nados às sepulturas sumptuosas, e que pressupunham um conhecimento ade­
quado da escrita hieroglífica, pelo menos até finais do Novo Império. Posterior­
mente, os textos sagrados passaram também a ser escritos em hierático, grafia
que, por ser mais rápida, fora a escolhida para uma escrita de comunicação, inde­
pendentemente do carácter dos textos, e de facto os Livros dos Mortos do Ter­
ceiro Período Intermédio que foram ainda escritos em hieróglifos, revelam uma
mão bastante desajeitada. A partir do Novo Império, a posição de escriba permi­
tia adquirir com maior facilidade manuscritos para uso funerário. Com efeito, os
Livros dos Mortos pertencentes a escribas e que chegaram até nós são mais de
cinquenta e distribuem-se pelos vários níveis hierárquicos, desde o do já mencio­
nado general Nakht até aos dos mais modestos contabilistas.
O vocábulo que designa a obra do escriba é um descritivo que se associa
ao valor primitivo de «pintar» (5^). Em russo, pisaf, «escrever», também está
ligado etimologicamente a «pintar». Com esse termo designa-se a actividade
manual, primeiro, provavelmente aquela que necessitava de materiais leves, e
depois, por extensão, também a epigrafia monumental, embora esta seja desig­
nada mais propriamente por «gravação com escrita». Portanto, o escriba pode
identificar-se com qualquer artesão do pincel, pintor ou desenhador. No Médio
Império, o mesmo termo, no feminino, pode designar uma ama que maquilha
a patroa (Posener, 1969). Aliás, o carácter figurativo da escrita egípcia, pelo
menos na sua componente monumental, exigia, para além da competência na
arte da escrita, experiência de desenho, associada eventualmente à da pintura.
Sob este aspecto, a posição social do escriba é essencialmente idêntica à dos
artesãos assalariados.
Todavia, no Novo Império, é provável que o escriba desempenhasse funções
de mediador e intérprete. O Egipto dessa época revela uma certa abertura para a
civilização síria e palestiniana que tinha gravitado para a área mesopotâmica. Em
Tell el Amarna, na época de Amenófis III e IV (século xiv a. C.), existiam não
só pessoas versadas no conhecimento das línguas importantes, a babilónica, a
hitita, a kurrita, mas também escribas capazes de 1er a escrita cunéiforme e com­
preender mais ou menos bem o fraseado diplomático que nela estava contido.
Entre eles, estão os chamados «escribas de letras» (5Í t, em cunéiforme shakh-
shikhá). Em Tell el Amarna, a capital de Amenófis IV, existia, a meio caminho
entre o Templo Grande e o Templo Pequeno, um edifício onde essa correspondên­
cia era arquivada; a descoberta de um fragmento da epopeia de Gilgamesh con­
firma que a aprendizagem era feita através da leitura de obras literárias de notável
qualidade, certamente sob a direcção de mestres estrangeiros, o que leva a que
este tente escrever em escrita egípcia excertos escritos noutras línguas. Todavia,
seria anacrónico situar nesta época, como ainda eni parte do l.° milénio a. C.,
uma actividade de escriba como «tradutor». Havia decerto interesse e curiosidade

75
pelas outras literaturas, mas os seus* conteúdos eram, quando muito, transferidos
para a literatura egípcia mediante adaptações livres e reelaborações adaptadas ao
novo ambiente, sendo transmitidos apenas oralmente, tal como acontecia nos
outros países. Só no meio jurídico internacional, ou seja, na redacção de tratados
como o que foi firmado por Ramsés II com o rei hitita Muvatali, é que existe uma
incumbência mais precisa de tradução fiel ou literal. De qualquer modo, é prová­
vel que houvesse escribas egípcios que fossem também peritos em escrita cunei-
forme e capazes de estabelecer comparações com a sua própria escrita e extrair
sugestões desses estudos comparados. Aliás, o conhecimento profundo do patri­
mónio gráfico e lexical egípcio exigia já um grande esforço de erudição. É sinto­
mático que os escribas de valor atribuíssem a si próprios epítetos que apontavam
para os seus talentos: «inteligente quando penetra nas coisas [ou «nos textos», ou
«no saber»], ou «perito naquilo que não se sabe», com um nítido apreço pelo
carácter misterioso ou oculto das letras egípcias. Na época tardia, o antigo título
de «encarregado dos segredos» passa a designar o iniciado, que conhece os mitos
e os rituais. Do mesmo modo, o título de «escriba da casa da vida», bem como
o título antigo de «sacerdote leitor», passam a designar o mago (em copta,
sphransch). Por sua vez, o «sacerdote leitor» especializa-se como embalsamador,
deixando de ter sentido a sua função primitiva de «mago da escrita».
A recuperação, ou pseudo-recuperação, do passado atingiu o auge quando os
Núbios conquistaram o Egipto, em meados do século viii a. C., e aí fundaram a
25.® dinastia. Esse reinado de um povo seguramente muito diferente e que falava
outra língua fez adoptar uma escrita em que havia elementos da língua egípcia e
da tradição literária egípcia. Um dos maiores reis núbios, Taharqa, que tentava
restabelecer a grandeza de outrora, mandou copiar numa laje de basanite o que
restava de um antigo papiro roído pelos vermes, dada a importância que lhe pare­
cia revestir: trata-se do texto conhecido como Teologia Menfita.
Na época saítica, volta a impor-se a pesquisa erudita, interessada em aprofun­
dar o passado remoto do Egipto, em extrair citações de monumentos antigos, em
coleccionar obras raras, em retomar e reproduzir os modelos longínquos, o que
exigia não só o conhecimento da língua antiga e da sua escrita, mas também o da
língua contemporânea e das suas várias escritas, embora não necessariamente de
todas. A escrita demótica, difundida em todo o país durante a 26.® dinastia (sécu­
los vii-vi a. C.) permaneceu até à época ptolomaica como uma escrita essencial­
mente notarial, enquanto a hierática (uncial) continuava a ser utilizada em textos
religiosos e literários como escrita livresca (desde a época dos Ramsés). A escrita
hieroglífica, cada vez mais obsoleta, era cultivada sobretudo no círculo sacerdo­
tal, que estudava as suas propriedades simbólicas: «Ó sacerdotes puros que pene­
trais nas palavras divinas [hieróglifos] e sois peritos na escrita, inteligentes na
Casa da Vida, e encontrastes os modos dos deuses, que penetrastes nos arquivos
da Casa do Livros e sabeis interpretar as dificuldades dos ‘Ba de Ra’ [os livros
sagrados], que sois peritos no trabalho dos antepassados e compreendeis o que
está nas paredes, que gravais os túmulos e interpretais as dificuldades [...]», é o
apelo de Peteharpocrate, gravado numa esteia actualmente no Louvre (C 232, cfr.
Gardiner, 1938).

76
É provável que tenha sido neste período que nasceu o mito dos antigos
sábios, como Imhotep e o príncipe Khamuase, já mencionados, um deles trans­
formado em objecto de culto e o outro em herói de várias narrativas. Pelo
repertório de textos utilizados na decoração dos sepulcros, é possível detectar a
profundidade de conhecimentos e de documentação que alguns dignitários pos­
suíam. O conhecimento retrospectivo dos eruditos de outrora é favorecido pela
conservação da tradição hieroglífica. Esta escrita estava, porém, a cair em
desuso, e a procura de textos antigos, o estudo da língua dos primórdios deram-
-Ihe um renovado vigor.
A competência em várias escritas, que era explicitamente exigida aos sacerdo­
tes, está documentada no que respeita aos hieróglifos e às grafias hierática e
demótica, entre as quais perdurou durante muito tempo uma diferença textual.
Embora em Tebas se adoptasse, até à 25.® dinastia (c. 600 a. C.), o hierático anor­
mal que, depois, com a influência da dinastia saítica, seria substituído pelo
demótico, não se confirma que houvesse qualquer escriba que fosse capaz de
escrever em hierático anormal e, simultaneamente, em demótico.
Com a ocupação macedónia implantou-se, porém, no Egipto, a cultura grega,
e a partir de então a sua osmose com a tradição indígena é um facto constante
que é protagonizado pelos hierogrammatèis, como então se designavam os escri­
bas dos documentos egípcios. A importância adquirida pela documentação egíp­
cia na Grécia, após o século v a. C., também se fazia sentir no Egipto e levou à
difusão da escrita demótica em todas as utilizações da língua indígena. Trata­
va-se, porém, não só de redigir actas e obras nas duas escritas principais, a demó­
tica e a grega, mas também de transmitir o património literário entre dois grupos
linguísticos, e depois, e não menos importante, estudar formas mais modernas de
redacção para a língua indígena, que fossem buscar o modelo ao alfabeto grego,
o que irá desembocar no copta. Assim permaneciam vitais as funções a que o ofí­
cio de escriba dera corpo desde a sua remota origem. A Biblioteca e o Museu de
Alexandria também podem ser considerados como um engrandecimento das anti­
gas «casas da vida».
Na meridional Pathyris, um tal Diógenes recebia 2 kite e meio para traduzir
um documento do grego para o demótico (Kaplony-Heckel, 1974, p. 239), e havia
gregos, como Hermapião, que, nos seus tempos livres, se dedicavam ao estudo da
escrita indígena. Ainda na época do imperador Adriano, Ashaikhet, um egípcio,
tinha acumulado papiros hieroglíficos, hieráticos e demóticos numa casa de
Tanis, no Delta (Griffith, 1889), e há também o caso de um monge copta de Deir
el-Medina que levou consigo para o túmulo um papiro hierático com as Máximas
de Ani, outro com orações para a meia-noite, um terceiro, demótico, com a Nar­
ração de Sethne Khamuase, todos num cofre de madeira, juntamente com textos
coptas do convento próximo, dotando-se assim, para a eternidade, de todos os
testemunhos secretos da sua terra, embora provavelmente os não compreendesse.
Numa estátua do museu de Alexandria do Egipto, Hor descreve-se como
«homem de confiança nos conselhos do deus, que preenche o que foi encontrado
destruído [das inscrições] nos templos, que mumifica os seus Ba divinos [as ins­
crições sagradas]». Os tempos já estavam maduros para a redacção dos tratados

77
sobre os hieróglifos, como aquele, escrito em grego, que chegou até nós sob o sig­
nificativo nome do seu autor: Horapolo. O conhecimento das escritas faraônicas
deixava de ser um instrumento do Estado para se tornar objecto de estudo pes­
soal e fruto de pesquisas. Num mundo uniformizado pela cultura helenística e
aberto a várias perspectivas, os vestígios escritos dos antigos egípcios ofereciam
agora o atractivo do exótico e do oculto, sob os quais estaria escondido um saber
perdido. Assim se cumpria a maldição invocada contra o escriba e os seus instru­
mentos por um texto das pirâmides (476): «Escriba!, escriba!, destrói a tua
paleta, parte os teus pincéis, rasga os teus papiros!»

*
78
CAPITULO IV

O FU N C IO N Á R IO

p o r O leg B e rle v
07- DONADONI, Sergio (org.). O Homem Egípcio. Lisboa,
Editorial Presença, 1994. p.81-3

A história de José

O mundo teve conhecimento do funcionário egípcio e dos administradores


estatais da época dos faraós bastante tempo antes de um francês genial ter deci­
frado os hieróglifos; o mérito vai para os últimos capítulos do livro do Gênesis,
que contêm um admirável romance da época da 19.^ dinastia, cujo protagonista
é um forasteiro hebreu, filho de um desses pastores de ovelhas que eram particu­
larmente mal vistos pelos egípcios (um tabu religioso, uma «abominação»), que
se tornou, devido a extraordinárias circunstâncias e a extraordinárias capacida­
des, uma espécie de chefe da administração egípcia, de «número dois» do Estado.
Essa carreira é tão prodigiosa que merece plenamente a honra de concluir o livro
das Escrituras dedicado aos grandes acontecimentos (a criação do mundo, a cria­
ção do homem, o dilúvio, a formação dos povos e dos reinos, o pacto com Deus,
etc.), já que o Egipto desse tempo não é apenas um dos Estados do Médio
Oriente, mas um Estado supremo quanto a poder, riqueza e dimensões. Todavia,
nesta obra, essa carreira interessa-nos apenas para o estudo do funcionário egíp­
cio, a quem se atribui um vigor excepcional, capaz de se opor às implacáveis for­
ças da natureza e de transformar radicalmente o regime de vida social e econô­
mico de um povo de muitos milhões de pessoas. Naturalmente, o autor do
romance apresenta tudo isso como resultante de uma personalidade extraordiná­
ria (aliás, não é por acaso que se trata de um romance), mas qualquer leitor não
prevenido vê claramente que quem age não é só uma pessoa, mas também a sua
posição, o cargo que ocupa, os seus laços, os contactos, ou seja, que o funcioná­
rio tem atrás de si toda uma hierarquia de funcionários, de modo que todos os
seus actos são totalmente realizáveis.
O funcionário detentor de tal poder salva o país de uma carestia septenal,
catastrófica. Na realidade, porém, para a administração egípcia e para os seus
funcionários, isso era normal, Quem não conhece a famosa opinião de Estrabão
acerca da eficiência da administração egípcia? Depois de ter revelado a dependên­
cia que existia entre as dimensões da cheia do Nilo, propositadamente medidas
todos os anos, e a colheita — abundância, com o Nilo alto, e escassez, com o
Nilo baixo —, afirma (17, 1, 3) que, com uma boa administração (que, na narra­
ção de Estrabão, é personificada pelo governador romano do Egipto, Petrónio),
não existe carestia, nem quando a cheia do Nilo não atinge o nível necessário.
Quanto ao papel activo desempenhado pelos funcionários, o sistema que os

81
escritores antigos conheciam era considerado pelos próprios egípcios não como
fruto de um processo histórico natural mas como resultado de uma intervenção
superior, um produto de reformas. Contudo, inseriam essas reformas numa época
muito anterior à 19.® dinastia, e pela sua ideologia, atribuíam-nas não a um fun­
cionário, por mais elevado que fosse o seu cargo, mas exclusivamente ao rei e, no
caso vertente, a Sesóstris, ou seja, ao primeiro rei com esse nome do início da 12.®
dinastia.
Uma boa administração! Haverá outra hierarquia de funcionários do mundo
antigo, e não só, que tenha merecido este apelativo? Tanto quanto parece, não. Só
no Egipto é que os funcionários salvavam realmente o povo da carestia e funcio­
navam rcalmcntc como força produtiva. Um simples compêndio de notícias sobre
os anos de carestia (o mais completo é o de Vandier, 1936) demonstra que não os
houve nos chamados períodos felizes da história egípcia, quando o poder central
era absoluto (boa administração). Quem escreve conseguiu, de facto, identificar
a célebre carestia do ano 25 (o nome do rei não é mencionado) com a escassez do
Nilo do reinado de Sesóstris («Bibliotheca Orientalis», 38, pp. 318-319), mas
trata-se apenas da excepção que confirma a regra.
Nos períodos de má administração (poder central débil), eram os administra­
dores que tinham o encargo de se opor às forças da natureza; as suas inscrições
(uma espécie de «autobiografia») são preciosas na medida em que nos fornecem
informações acerca do arsenal de meios que uma boa administração devia utili­
zar. O método das provisões, escolhido por José, é apenas um deles.
Em geral, é interessante observar como a beneficência privada dos indivíduos
— que substituía, por assim dizer, a do Estado e que era evocada nas autobiogra­
fias inscritas nos túmulos dos funcionários — era um indício de um período his­
tórico «desfavorável», um testemunho da ineficácia de uma determinada admi­
nistração. Trata-se de algo que pode comparar-se às reportagens da frente de
batalha que são dedicadas ao heroísmo sobre-humano dos soldados quando já
não se pode elogiar sucessos militares.
Não há dúvida de que a Bíblia reflecte com exactidão a dialéctica do fenó­
meno da «boa administração». Por mais benéfica que ela fosse, o povo supor­
tava-lhe a custo o peso. Esta é uma das razões que levavam a que uma boa
administração fosse seguida por uma má e pelo enfraquecimento do poder
central.
De facto, a boa administração personificada por José é portadora de uma
grande desventura para os Egípcios: ao salvá-los de morrer à fome, acaba por
subjugá-los e por criar um regime de servidão, transformando o povo em
escravo do faraó. Com o seu aguçado sentido da realidade, o autor dos últimos
capítulos do Génesis utilizou a história de José para explicar o regime egípcio,
tão diferente daquele que os Hebreus tinham instaurado na sua terra ou obser­
vado nos países vizinhos, demonstrando que ele surgira em circunstâncias catas­
tróficas e que a administração tinha explorado uma calamidade natural em pro­
veito do faraó. Por outro lado, é sabido que esse regime fora criado pelos
próprios Egípcios e nem sequer após uma catástrofe natural. Em suma, o autor
acabou por subestimar gravemente a administração egípcia.

82
Esse regime caracteriza-se por:
— Ausência de metais que circulem como dinheiro (todos os preços, mesmo
os mais elevados, são expressos em prata, mas têm um equivalente em
objectos — na Bíblia, isso explica-se pelo facto de toda a prata ter sido
entregue ao erário);
— Ausência de gado ou terras pertencentes ao povo (dados ao erário nos anos
de carestia);
— Igualdade generalizada que se baseia na escravidão generalizada em rela­
ção ao faraó (uma espécie de venda de si mesmo durante a carestia — na
história de José, só a posição dos sacerdotes é que é descrita à parte).

A par da versão antigo-hebraica (bíblica) da história dos sete anos de carestia,


existia também um relato egípcio, que remonta aos tempos dos Ptolomeus, em
forma de deliberação, referente à entrega de 12 milhas egípcias a Khnum, deus
das fontes da planície do Nilo, que o rei Djoser, da 3.® dinastia, envia ao nomarca
de Elefantina. O texto, porém, não tem qualquer interesse para a história dos
funcionários egípcios, já que a carestia septenal não só não é esconjurada, como
já foi superada: servia apenas para que o faraó se manifestasse interessado em
saber qual era o deus que superintendia na planície. O José egípcio, Imhotep,
surge aqui não como funcionário — embora o fosse seguramente e dirigisse, por
isso, a construção da famosa pirâmide e do conjunto dos edifícios do faraó a ela
referentes — mas como sacerdote-ritualista, tal como permaneceu na memória do
povo. Por outro lado, neste caso, a relação entre o título e os actos é extrema­
mente directa, na medida em que o ritualista tem acesso aos livros sagrados e os
conhece. É neles que descobre a resposta à pergunta de quem seria o deus da pla­
nície. O sonho do faraó intervém para confirmar plenamente: o deus aparece-lhe
e garante-lhe benevolência.
Não valeria sequer a pena determo-nos nesta história se o destinatário da deli­
beração não fosse um nomarca. De facto, é na época de Djoser que encontramos
pela primeira vez, de uma forma credível, a subdivisão administrativa do país, os
chamados nomoi; os nomarcas — que na época de José eram provavelmente os
chefes de cidades ou de importantes aldeias (cfr. o Onomasticon de Amenemope,
n.° 101; sobre este documento, vide mais adiante) — assumiram a tarefa de tratar
das provisões durante os sete anos de abundância, visto que, segundo a Bíblia,
foram recolhidas nas cidades. Trata-se da alusão mais antiga à administração
local (ano 19 de Djoser), ainda que post factum. Os títulos dos chefes dos nomoi
surgem, aliás, gravados em vasos do complexo das pirâmides daquele rei, embora
sem data e sem o nome do soberano.

O manual da hierarquia

Como estava, então, organizada essa omnipresente administração? Para res­


ponder à pergunta, daremos uma vista de olhos pelo «manual» respectivo. É este
o nome dado por Maspero à obra que publicou, há cem anos, a partir da única

83
versão do papiro Hood. Pouco depois dessa edição foi descoberta outra versão
bastante mais completa, que é também a mais pormenorizada de todas as que
conhecemos: o papiro Golenisev I I I M a i s de meio século depois, o texto da
obra foi editado por Gardiner a partir de oito versões (não pôde contar com a
nona, conservada no British Museum) e com uma dedicatória a Golenisev, que
lhe tinha concedido para publicação o papiro que descobrira. A obra em questão
é uma enciclopédia egípcia, ou melhor, segundo os nossos critérios, um dicio­
nário, um Onomasticon. Embora não se trate da enciclopédia mais antiga (são
conhecidos excertos de uma enciclopédia de finais da 12.®-13.® dinastias), é sem
dúvida a mais completa, embora não tenha chegado integralmente até aos nos­
sos dias.
A enciclopédia — caso raro no Egipto — tem um autor. Trata-se de um
escriba de livros sagrados chamado Amenope. Nenhuma das versões remonta a
um período anterior ao início da 21.^ dinastia, enquanto a época de compilação
remonta ao final da 20.^ Aquilo que Maspero definiu como um «manual da hie­
rarquia» foi conservado integralmente nos papiros Hood e Glonisev e, parcial­
mente, noutros exemplares; o seu valor excepcional deriva do facto de ser o único
documento do género, do tempo dos faraós, que chegou até aos nossos dias.
A parte inicial (hierarquia superior) é quase uma cópia da lista dos funcionários
que prestam homenagem a Ramsés II no ano 3 (templo de Luxor, parede sul do
pátio anterior); essa lista é tão idêntica que pode ser considerada como protótipo
da parte correspondente do manual.
A semelhança é tão grande que permite corrigir um erro enorme de interpreta­
ção das primeiras edições do manual: contrariamente ao critério geral de uma
enciclopédia (um termo — um artigo), o título de «herdeiro do trono» abrange
cinco artigos (n.o^ 72-76), que devem ser considerados como partes do mesmo
título. Isso absolve o compilador da enciclopédia da acusação de ter repetido
alguns títulos e de ter inserido alguns obsoletos (uns e outros estão, de facto,
incluídos no conjunto de títulos do herdeiro) e de não ter disposto os títulos
segundo uma ordem de categoria rigorosa, pelo que os cargos de funcionário aca­
bavam por ser «mais elevados» do que a dignidade de herdeiro do trono (na reali­
dade, esses cargos figuravam no início da lista do seus títulos).
No manual, que abrange os artigos n.os 72-229, de acordo com a numeração
de Gardiner, é apresentado um prontuário completo de títulos, graus, denomina­
ções de profissões, etc., que vai desde o herdeiro do trono (antes do qual vêm os
membros da família real, sem qualquer laço com a administração) até aos traba­
lhadores agrícolas, ao jardineiro, ao cultivador, ao hortelão e ao guarda do está­
bulo. Os graus que se referem aos funcionários encontram-se apenas no início do
manual, seguidos pelos dos sacerdotes, dos artesãos, dos militares e dos agricul­
tores.

’ De acordo com o costume dos egiptólogos, sugeriria que se distinguisse a série dos papiros de
Golenisev a partir do nome do seu descobridor e primeiro proprietário e pela ordem da sua descoberta
ou publicação: I — Papiro Matemático, adquirido em 1888; II — Unamon; IV — Epístola Literária,
adquiridos juntamente com o III, em 1891; V — Hino aos Diademas.

84
É impossível não se chegar à conclusão de que essa grande secção de títulos,
graus e profissões forma um conjunto, de que os funcionários constituem apenas
uma parte. De facto, ao «manual da hierarquia» segue-se uma secção totalmente
nova, «A gente» e depois uma outra, «O homem». Na secção intitulada «A gente»
figuram quer o substantivo colectivo correspondente (n.° 230), quer as designa­
ções tradicionais do povo egípcio e as denominações dos povos e dos países vizi­
nhos (n.os 231-294). Na última secção (n.os 295-311), porém, surgem as designa­
ções do homem, de acordo com o sexo e a idade, e, a concluir, os conceitos de
«escravo» e «escrava», último grau do gênero humano, non plus ultra em absoluto.
Todavia, se as secções dedicadas à «Gente» e ao «Homem» se inserem com
tanta naturalidade no âmbito da enciclopédia, o que dizer daquele que Maspero
definiu como manual da hierarquia? Do que se trata? A resposta só pode ser
uma — é a «casa do rei», essa misteriosa instituição que é evocada com muita
frequência mas sempre em contextos tão repetitivos e, em geral, tão impenetráveis
que é difícil imaginá-la, já que essa expressão designa, quer o Palácio do rei, quer
a economia real (mais no sentido de produtos acabados, de receitas) e, por vezes
mesmo, o Estado.
E eis-nos chegados ao que nos interessa: toda essa secção da «Casa do rei»
se contrapõe às da «Gente» e do «Homem», de onde se deduz que não é consti­
tuída por homens. Todavia, é assim que deve ser, porque o rei não é um
homem, mas um deus; portanto, é natural que se imagine os contingentes da
«Casa do rei», que representam a expressão natural da sua força divina, como
uma única coisa, como o corpo do rei-deus, tal como os Egípcios podiam consi­
derar todo o seu panthéon como uma única entidade, como o corpo de um
único deus, o Sol.
A hierarquia também é interessante: os empregados da «Casa do rei» são algo
mais do que a gente, ou seja, do que aqueles que não fazem parte dessa «Casa».
Aliás, cada componente da «Casa do rei» (cada artigo, poderiamos dizer) pode
também ser vista fora do contexto. Nesse caso, é descrita através de categorias
extraídas da secção «O homem» e privadas de uma referência directa à «Casa do
rei». Neste sentido, é interessante, e mesmo importante, concluir que os conceitos
de «escravo» e «escrava» não têm qualquer relação com a secção da «Casa do
rei», que na «Casa do rei» não existem nem podem existir escravos e que os
empregados da «Casa do rei» são todos iguais no plano social, enquanto não
escravos. Os conceitos de «escravo» e «escrava» surgem na secção «O homem»
porque se incluem nas categorias que caracterizam o conceito de homem. Con­
tudo, a esse respeito, a enciclopédia não opõe o conceito de «escravo» a qualquer
conceito de «livre», seja como for que este se materialize, antes o opõe ao con­
ceito de «homem» (quer essa categoria figure ou não na «Casa do rei»), já que
o escravo é um «não-homem», categoria de facto negativa.
O «escravo» e a «escrava» figuram na secção dedicada ao «Homem» também
na qualidade de elementos da actividade econômica por ele exercida (aqui, no
sentido de economia privada). É interessante que nessa secção tenham sido tam­
bém incluídas profissões ligadas ao fabrico de embarcações, a produção mais
típica da economia privada; compreende-se que assim seja num país onde o rio

85
e os canais constituíam ou a principal via de comunicação, se o homem dispunha
pelo menos de um barco de papiro, ou o principal e, de facto, intransponível obs­
táculo (devido, sobretudo, aos animais ferozes e perigosos que viviam no rio), se
nem desse barco dispunha.
Mas tratar-se-ia, na realidade, da «Casa do rei»? Amenope não dá um nome
às várias secções e o leitor vê-se obrigado a orientar-se sozinho, servindo-se dos
conhecimentos que possui acerca da vida e do contexto egípcios. No entanto, de
que poderia tratar-se senão da «Casa do rei», a única instituição que se opõe a
todas as outras casas ou economias privadas? Na «Casa do rei» incluem-se fun­
cionários, soldados, sacerdotes, artesãos e trabalhadores agrícolas. A presença dos
sacerdotes pode surpreender sc sc pensar que o rei proibia, frequentemente, os
ministros da sua Casa de se intrometerem nos assuntos religiosos. Fosse como fosse,
os templos faziam decerto parte da «Casa do rei», como confirma uma esteia do
primeiro período da 12.® dinastia conservada em Turim (n.° 1612 do catálogo geral).
Temos assim diante de nós uma espécie de quadro do pessoal da «Casa do
rei», constituído por um terço do grupo dos funcionários. O seu peso não é natu­
ralmente comparável com o das outras quatro classes que compõem a «Casa do
rei»: soldados, sacerdotes, artesãos e «escravos do rei» que trabalham na agricul­
tura (e que não se confundem com os que são apenas «escravos» e de quem se
falou anteriormente; as quatro categorias figuram nos registos do túmulo do
escriba militar Tjaneni, da época de Tutmés IV, que também é reproduzido no
túmulo). Mas a enciclopédia não tem por objectivo reflectir a importância rela­
tiva dessas categorias. A sua função é fornecer uma terminologia, comunicar as
denominações dos cargos. Não tem, certamente, a possibilidade de as apresentar
a todas, mas deve abarcar as fundamentais. Para além disso, é importante notar
que as supremas dignidades sacerdotais das três principais divindades do país
(Ámon, Rá e Ptah) são mencionadas entre os cargos dos funcionários, o que sig­
nifica que eram certamente considerados como tal.

o principio de Hecateu

Se só as pessoas que prestam serviço na «Casa do rei» é que se podem consi­


derar funcionários e se essas pessoas, juntamente com as que ocupavam outros
cargos da Casa, constituíam, por assim dizer, as forças do rei (desse segundo deus
mais importante no universo, um «deus belo», ou seja, jovem, um deus menor,
filho do Sol, só inferior ao pai criador do mundo) e, como tal, eram, no seu con­
junto, forças divinas, não podemos deixar de pensar no princípio de Hecateu,
formulado por Heródoto (2, 143).
Hecateu de Mileto, um dos primeiros viajantes a descrever o Egipto, enalteceu
a antiguidade e a nobreza da sua estirpe, que remontava, através de um número
limitado de gerações, à divindade; então, os sacerdotes mostraram-lhe as imagens
de mais de trezentas gerações de sumos sacerdotes de Ptah, o que — a uma média
de quatro gerações por século — tornava incrivelmente antiga a sua ascendência;
além do mais, cada um deles era denominado filho do anterior e a estirpe não
remontava seguramente a nenhum deus (nesta exposição, omitiram-se naturalmente

86
os pormenores desprovidos de relevância para nós). Desse modo, demonstraram
a Hecateu que nenhuma estirpe humana podia remontar directamente a um deus,
muito menos a dos Gregos, que não primavam por uma antiguidade especial.
Nada disto contradiz o princípio de Amenope, ou seja, o princípio da divin­
dade da «Casa do rei» in corpore, porque cada rubrica do seu organograma era
constituída por homens, que, na ideologia egípcia, se contrapunham nitidamente
ao deus-rei, na qualidade de súbditos privados de qualquer possibilidade de se
aproximarem dele. Assim, os dois princípios não se opunham entre si. Só parece
estranho que os sacerdotes, ao expor a Hecateu a teoria que decerto vigorava
entre os Egípcios — a teoria da distinção nítida que existe entre o que é próprio
do deus/rei e o que é próprio do homem-súbdito, tenham recorrido a um argu­
mento não totalmente correcto: a estirpe dos sumos sacerdotes de Ptah remontava
de facto à divindade, a Ptah, como se deduz do facto de a genealogia desses
sacerdotes — que se conservou num fragmento da capela actualmente no Museu
de Berlim e que, como pareceu claro, não incluía apenas sacerdotes mas também
vizires e outros altos dignitários — incluir mesmo o vizir Ptahotep, que tinha
desempenhado o cargo no reinado de Ramsés II. Segundo o testemunho de um
dos seus sucessores que viveu durante a 27.® dinastia, este vizir garantia («decla­
rava», literalmente «dava voz», algo de semelhante ao afffidavit da linguagem
jurídica) que descendia de Imhotep, contemporâneo do rei Djoser. Na época das
viagens de Hecateu e Heródoto ao Egipto, Imhotep era considerado filho de
Ptah. É certo, porém, que a tradição apontava também os nomes dos seus pais
terrenos: a mãe, Kherduankhu (omitamos as variantes) e o pai, Neferkhnemu,
que eram mencionados no monumento mostrado a ambos os viajantes gregos.
Apesar disso, os sacerdotes não podiam ignorar que Imhotep era considerado
filho de Ptah, embora tivessem provado que o consideram como um homem,
visto que não fizeram qualquer alusão à sua origem divina.

Os funcionários-deuses

Em sentido restrito, os sacerdotes tinham razão, embora fosse difícil explicá-lo


aos estrangeiros. Imhotep era um deus de tipo especial, um daqueles deuses em
que os funcionários egípcios de alto nível se transformavam, depois de mortos.
No antigo Egipto, sobretudo durante as primeiras dinastias, os proprietários dos
túmulos são predominantemente funcionários. Por outro lado, só quem possui
um túmulo é que pode converter-se em taumaturgo, porque para isso são necessá­
rias imagens do defunto, listas pormenorizadas dos seus títulos e até dados bio­
gráficos. Segundo as crenças dos Egípcios, graças às imagens (dotadas de olhos,
naturalmente) o defunto era capaz de ver — e ver, antes do mais, o seu próprio
túmulo (que era precisamente o local do culto, em cujas paredes existiam imagens
e textos), de ler os textos das paredes e de recordar assim quem tinha sido e de
que cargo fora investido. O proprietário de um desses túmulos torna-se um
«luminoso» {ikh, em egípcio), ou seja, um vidente, um sábio, um ser capaz de
entrar em contacto com os homens (normalmente, por escrito, a forma habitual
para um funcionário). Devido à importante posição que ocupara em vida e que

87
conservava no outro mundo, o funcionário pode ajudar os homens. Entre esses
seres «luminosos» houve alguns particularmente activos, verdadeiros taumatur­
gos rodeados de uma autêntica veneração. Os Egípcios definiam-nos como deu­
ses, embora de um tipo especial. Com efeito, os próprios deuses estavam dividi­
dos em classes. Da multidão divina emergiam um «deus maior» (literalmente,
«grande»), o criador do mundo/Egipto, o Sol, o pai, e um «deus belo», jovem,
menor, o filho, o rei do Egipto/mundo.
Os taumaturgos dos túmulos eram indivíduos incluídos pelos Egípcios na classe
dos «deuses vivos», isto é, activos, eficientes. É claro que os adoradores de um tau­
maturgo podiam mesmo omitir o epíteto de «vivo», sem lhe causarem a mínima
ofensa; foi o que fizeram, por exemplo, os habitantes de Edfu, que veneravam o
nomarca da sua região (o nomos do Alto Egipto), Izis, que viveu durante a 5.® e
6.® dinastias. «Deus Izis» ou «Izis deus» são os dizeres que encontramos nas ins­
crições que deixaram. Todavia, em tal contexto, o título de funcionário que o tau­
maturgo possuía assumia, mais ou menos, o significado de «deus». Assim, o
taumaturgo Hekayeb — que viveu na segunda metade da 6.® dinastia — era deno­
minado apenas orpais (a transcrição grega do título), ou seja, nomarca: o mesmo
que «deus». Como todos os taumaturgos, sem excepção, tinham sido em vida fun­
cionários (o que não os impedira de ocupar também cargos religiosos), será de per­
guntar se por acaso o estatuto de taumaturgo não estaria ligado ao conceito de
divindade da «Casa do rei», de que, depois de mortos, passavam a fazer parte para
toda a eternidade, ou melhor, enquanto o seu túmulo permanecesse de pé. Mas
isso faz nascer uma outra pergunta: o desejo de perpetuar os seus cargos (e, como
é evidente, sobretudo o de funcionário) na «Casa do rei» e nos túmulos (ou seja,
o culto do túmulo na sua substância) não seria provocado pelo mesmo motivo?
Os taumaturgos que gozavam de uma popularidade particular, como Imhotep,
cuja glória perdurou durante séculos, também podiam ser proclamados filhos das
divindades dos seus ministérios. Foi assim que alguns funcionários se definiram,
pelo menos quando não foram proibidos de o fazer. Por exemplo, o nomarca do
XV nomos do Alto Egipto, Nehri, que viveu durante a 10.® dinastia, e cada um dos
seus filhos, proclamaram-se não só filhos do deus local Thot, mas também do seu
equivalente feminino, as «Nove Deusas», elegendo até duas delas. Apesar disso,
cada um deles mencionava logo a seguir os nomes do seu verdadeiro pai e da sua
verdadeira mãe, o evidenciava o carácter divino do cargo que desempenhavam.
É claro que expressões deste género podiam tornar-se tradicionais. Assim, o
nomarca do viii nomos do Alto Egipto, Khui, que viveu no início da 6.® dinastia,
quando a sua filha se tornou rainha-regente, no tempo do rei menino Pépi II, foi
glorificado associando aos seus títulos — de simples funcionário que chegou a
ocupar o cargo de vizir — o termo de parentesco que era necessário para referir os
laços matrimoniais que existiam entre a sua mulher e o Sol, já que o Sol se unia
a ela personificando-se no seu consorte. No nascimento do deus-rei, da rainha rei­
nante (Onomasticon de Amenope, n.° 68) e da rainha-regente — uma vez que essas
funções se tinham tornado evidentes — passou também a ser evidente a sacralidade
do matrimónio de que eles nasceram, como uma espécie de ménage à trois. Surge
o termo «pai do deus» para designar o homem que não é de facto o pai do deus
mas cujo corpo foi utilizado pelo Sol para conceber o rei do Egipto no ventre da

88
'
sua mulher. Todavia, no caso de Khui, que é realmente invulgar já que se tratou
do primeiro caso em que se utilizou um termo de parentesco específico, isso não
pareceu ser suficiente. Também se considerou necessário atribuir um título divino
à mãe da regente, Nebet. Como fazer? Por vários motivos, não se recorreu ao epí­
teto correspondente de mãe do deus. Só durante as 21.®-23.® dinastias é que esse
termo foi utilizado por duas vezes (esteias de Harpson) como título das progeni­
toras da 22.® dinastia. Durante a 6.® dinastia, procedeu-se de modo diferente: a
partir dos títulos do marido — orpais (título do governador do país, vizir, no
caso específico, ou da região, nomarca), topaiis (que, durante a 6.® dinastia, era
por norma o título do chefe da região ou da cidade; aliás, ambos os títulos
podem iniciar a lista de títulos de um alto funcionário ou, por exemplo, do pró­
prio vizir) e vizir — formaram-se os termos femininos correspondentes, do tipo
de «generala», «ministra», etc. e associaram-se a representações extraídas do
mundo dos deuses. Foram criados os títulos seguintes: xmiVaQx-orpais, filha de
Geb (porque Geb era o orpais do mundo dos deuses), «mulher-ro/?í7//5, filha de
Merhu» (porque este deus do gado do mundo extraterreno era comparado a um
nomarca que vigiava os rebanhos do nomos) e «mulher-vizir, filha de Thot» (por­
que, no mundo dos deuses, Thot era um vizir).
Nos séculos seguintes, todavia, quando se criou definitivamente a ideia da
mulher de Ámon a quem o marido-deus entrega, como dote, o Alto Egipto, os
títulos de Nebet tornaram-se os títulos standard da esposa do deus (é o caso da
estátua de Ankhnesneferibra, mulher de Ámon, 26.® dinastia. Também aqui os
títulos de funcionário são facilmente associados aos deuses e interpretados no
quadro de uma relação filial com eles.
A propósito do status do deus vivo, ou seja, do funcionário que, depois da
morte, se converteu em santo taumaturgo, note-se que o eventual suicídio não
influía nessa função. Assim, segundo Máneton, após a tomada do Poder por
parte dos estropiados/leprosos {lelobemènoi, Máneton, fr. 54), em finais da 18.®
dinastia — trata-se certamente de Akhenáten e dos seus sequazes, reproduzidos
pela nova arte amarniana como se fossem todos afectados por graves deficiências
físicas — suicida-se o conselheiro do último rei do período feliz, Amenófis (III,
sem dúvida), que tem o mesmo nome. Trata-se seguramente do célebre Amenófis
Paapi (isto é, filho de Hapu), cujo culto se prolongou até à época greco-romana.
Como já acontecera com Imhotep, esse culto transpôs os limites da devoção ao
túmulo e propagou-se por todo o Egipto. Em Tebas foi-lhe erigido um templo, cuja
manutenção é assegurada por um decreto particular emanado por Amenófis III,
mas que talvez tenha sido sancionado muito mais tarde. A data do decreto (ano
31) demonstra que o rei, por um acto de especial favor, lhe erigira o templo
enquanto Amenófis ainda era vivo, dado que a sua morte data do ano 34.

A instrução

A única falha grave cometida pelo autor do romance histórico dos últimos
capítulos do Gênesis refere-se à instrução de José, ou mais exactamente, à sua
ausência. O facto de se ser perito na interpretação dos sonhos não poderia tê-la
substituído. O funcionário tinha de ler e escrever correctamente, saber fazer

89
i

s contas, conhecer as operações matemáticas, calcular áreas e volumes e possui


determinadas noções de engenharia. Devia desempenhar cargos praticamente d
todos os géneros, e na perfeição; caso contrário, as consequências podiam se
graves (e por vezes, mesmo muito graves).
O carácter especial da didáctica, que prestigiava a carreira do funcionário
que se consolidou sobretudo durante a 19.^ dinastia, estabeleceu de facto uma
«I relação directa entre a instrução e a classe dos funcinários. Se um indivíduo é ins
truído, tem assegurada a carreira de funcionário. Mas, na realidade, a instrução
também era necessária noutros domínios. Basta pensar nos escribas-artesãos (que
reproduziam na pedra os contornos das inscrições para os escultores e os dese
nhadores dos hieróglifos) e nos sacerdotes, sobretudo ritualistas, cuja profissão
estava também ligada ao ofício de copista de livros sagrados.
No meio dos funcionários, a criança (do sexo masculino ou feminino?) também
podia receber em casa os primeiros rudimentos de instrução, embora não existam
praticamente notícias a esse respeito. Posso apenas referir uma esteia da 12.^ dinas
tia, que se encontra em Viena (n.° 71), onde, a par da família do funcionário,
evocado um «servidor da casa, mestre de escrita». Claro que, no caso de famílias
de dignitários, não se pode excluir a hipótese de uma ajuda por parte dos pais. No
entanto, também não possuímos informações suficientemente seguras acerca disso
Pelo menos a partir da 4.^ dinastia, parece que teria existido a possibilidade
de se ser educado na «Casa dos filhos reais», na corte. Tratava-se, evidentemente
de uma escola de Palácio (só para rapazes, bem entendido), onde os filhos dos
altos funcionários podiam formar-se e estudar na compamhia dos filhos do rei
Na escola do Palácio, de que se tem notícia até à 10.® dinastia, inclusive, os alu
s nos aprendiam a escrever, «cantavam» em coro textos sagrados, e, além disso
tl
aprendiam a nadar, o que era bastante importante num país fluvial e, ainda por
cima, sulcado por uma rede de canais.
É claro que o estudo na escola do Palácio não garantia apenas um determinado
U>
, nível de instrução e um início mais brilhante da carreira dos indivíduos: podia tam
k
bém decidir um destino ou influir favoravelmente, de uma maneira ou de outra
nesse destino. É sabido que essa Casa era frequentada pelos reis e que eles podiam
prestar atenção a quem nela estudava. Num caso, levou ao casamento com a filha
do rei (4.® dinastia), o que alterou a vida do afortunado, que veio a ser um dos
sumos sacerdotes de Ptah, deus dos ofícios e principal deus da capital.
O estudo em comum com o filho do soberano, que um dia seria rei, podia dar
possibilidades incríveis aos seus companheiros de classe e, mesmo, salvar-lhes a
vida. O rei Akhti aconselha o filho a não matar aqueles com quem «cantara as escri
turas». Na escola nascia, evidentemente, uma fraternidade que durava toda a vida.
E era assim que, na escola do Palácio, estudavam os futuros reis do Egipto;
nessa escola não se ensinava apenas a escrever, a fazer contas e a nadar, também
se promovia o amor pela literatura, a eloquência e o rico, brilhante e figurado
estilo literário, como demonstra a história do Oasiano Eloquente, que o autor
situa na 9.® dinastia. O rei Akhtoi Nubkara compartilha a paixão pelo estilo lite
rário de tipo conceituoso com o seu, digamos assim, ministro Rensi, a quem

cabe o mérito da descoberta do insólito talento literário do Oasiano. Adiando

90
de propósito a solução do caso desse homem prodigioso, o ministro indu-lo a
pronunciar sempre novas súplicas, até atingir o número de 9. Nessa altura, nasce
uma obra literária acabada, um ciclo.
Ao falar da escola da corte, não podemos deixar de encarar a questão da ins­
trução do rei menino, como, por exemplo, Pepi II, que teve de subir ao trono ape­
nas com seis anos. Dois ou três anos depois (o sistema de datação em vigor
durante a 4.® e 3.® dinastias caracteriza-se pela ambiguidade; para obviar a isso,
era necessário um manual de cronologia dos períodos de reinado, como os anais,
do tipo da Pedra de Palermo), com oito ou nove anos já sabia escrever ou, pelo
menos, ditar uma carta excepcional para o nomarca do i nomos, Khupher (Herk-
huO- Aliás, parece difícil de acreditar que o texto da carta do rei tenha sido redi­
gido ou reescrito por outra pessoa, embora ele não passasse de um rapazinho.
É fácil de perceber que a escola do Palácio não podia satisfazer as necessida­
des do país em matéria de pessoas instruídas. Tinham de ser dadas oportunidades
também às províncias. Todavia, se é provável que existissem escolas de província,
a situação era a seguinte: de uma forma ou de outra, no país vigorava uma escrita
cursiva standard, mais ou menos única em todo o Egipto, Assim aconteceu
durante milênios, até à revolução do ano 19 de Ramsés XI, quando se iniciou o
desenvolvimento diferenciado do Baixo e do Alto Egipto, que durou cerca de
meio milênio. No final desse período, o Alto Egipto era seguramente considerado
como dote da consorte de Ámon, «adoradora do deus» em Tebas — um título
sacerdotal que, nessa época, era conferido às filhas dos reis líbios, etíopes e saí-
tas. A conquista persa, que pôs fim à instituição do «dote de Ámon», unificou
novamente o país e a escrita. A única forma de escrita passa a ser a chamada
«demótica», variante de origem setentrional da escrita comercial, que se impôs à
grafia meridional, designada por «hierática anômala».
Em finais da 8.® dinastia, segundo o cômputo de Máneton, a revolução pôs
termo à velha monarquia, de origem neolítica, que tivera o seu início na «criação
do mundo». De facto, tratara-se de uma única megadinastia, embora Máneton
conte oito dinastias a partir de Menes. Todavia, as passagens de uma dinastia
para outra foram tão indolores que quase se chega à conclusão de que o poder
terá estado nas mãos de uma mesma estirpe de reis. Não temos argumentos para
afirmar que Menes teria sido o progenitor da linha real; é possível que as sua raí­
zes remontem às primeiras fases do eneolítico ou até do neolítico.
Essa revolução, se não liquidou a velha classe dos funcionários, desferiu-lhe
um profundo golpe. Os que lhe sobreviveram consideraram-se a si próprios como
uma espécie de elite, para a qual os novos funcionários não passavam de «urina».
Esta comparação é de extrema importância no plano histórico, dado demons­
trar que a revolução que derrubou a 8.® dinastia foi a primeira da história do
Egipto (a primeira pós-neolítica, diremos nós, enquanto, para os Egípcios, foi a
primeira depois de o Sol ter criado o mundo) a minar a fé na perfeição do criado
e na própria omnipotência do Sol. A urina de que falam os funcionários da 9.®
e 10.® dinastias provém naturalmente do Sol, já que todos os seres racionais do
mundo são o produto de eflúvios líquidos proveniemtes do corpo do deus Sol:
do esperma nascem os deuses (para além do céu e da terra), das lágrimas nascem

91
OS homens e de duas gotas que escorrem de uma ferida nascem o Gosto e a
Percepção. Da urina tinham, naturalmente, nascido os homens de segunda cate­
goria — mas seriam homens? Não passavam de canalha!
Superando uma crise que se arrastara durante séculos, os primeiros soberanos da
12.^ dinastia — restauradores do velho regime — foram obrigados a tomar iniciati­
vas destinadas a reconstituir a classe dos funcionários de outrora. É precisamente
nesse período que ouvimos falar, pela primeira vez, de uma escola própria para fun­
cionários (que, de facto, não se assemelhava em nada a uma escola elementar).
Já não é a escola do Palácio, onde estudam sobretudo os príncipes, mas uma
escola para filhos de funcionários. Os alunos não são crianças que começam do
nada, mas adolescentes já capazes de julgar as coisas, razão pela qual é possível
proporcionar-lhes uma instrução de grande fôlego (embora sempre dentro dos
limites da capacidade de compreensão de um jovem). Essa escola situa-se na capi­
tal, que, na época, era certamente Icet, abreviatura de Icet-Tany, «Unir as Duas
Terras» (ou seja, o Egipto), por sua vez abreviatura de «Amenemhat-Icet-Tany,
Amenemhat Que Une as Duas Terras». Trata-se de uma casa fortificada nas pro­
ximidades da actual Lisht, nome que os Egípcios davam a Roma durante o impé­
rio romano.
É significativo que, a partir desta época, não se ouça mais falar das escolas do
Palácio. Todavia, se os títulos de «educador do rei» e de «aluno do rei» são para
ser interpretados à letra, é porque a escola do Palácio devia existir a par de uma
escola exterior a ele, situada na capital.
Seja como for, no início da 12.® dinastia fez-se sentir uma necessidade que a
monarquia neolítica (ou a primeira da fundação do mundo — pode chamar-se-
-Ihe como se quiser) não sentira: fazer frente a uma carência de funcionários.
Como, sem instrução, não há funcionários, o publicismo desse período trata das
vantagens da instrução, dos seus aspectos aliciantes e da carreira que ela abre
aos jovens.
Algo se tentara já fazer nesse sentido durante a 9.® e 10.° dinastias (o livro da
Kemyt) mas só um tal Khety conseguiu dar-lhe a forma definida de uma doutrina
circunstanciada, de uma ideologia. Se se trata do mesmo Khety que é recordado
no célebre excerto literário do papiro Chester Beatty, IV, autor de uma outra grande
obra didáctica da época, a Instrução do rei Amenemhat /, escrita — como se deduz
do papiro Chester Beatty — no tempo de seu filho, Sesóstris, é legítimo supor-se
que a tarefa de redigir a Instrução tenha sido confiada a esse Khety devido aos
êxitos literários de que podia gabar-se. Nesse caso, a obra didáctica que faz o elo­
gio do funcionário e da instrução deve ter sido escrita ainda na época de Ame-
hemhat I. A própria inclusão do nome de Khety no excerto literário do papiro
Chester Beatty e no não menos prestigioso monumento dos escritores e dos poe­
tas do Egipto (19.® dinastia), o chamado «monumento de Daressy», do nome do
seu descobridor, dá a entender que na bagagem do autor havia algo mais signifi­
cativo do que a obscura participação na elaboração da Instrução real (tal como
refere, em linhas gerais, Posener).
No seu Ensinamento, Khety realça o facto de a escola da capital estar tam­
bém aberta aos forasteiros e às crianças de camadas sociais diferentes da dos

92
funcionários. O seu título, citado no Ensinamento, tem por objectivo realçar esse
aspecto. Infelizmente, o Ensinamento só chegou até nós graças a versões que
remontam à 19.® e 20.® dinastias, quando já se tornara difícil compreender esse
título. Na sua origem deve ter estado um título militar (tão apropriado a um
escritor, segundo a célebre afirmação de Don Chisciotte, para quem um lanceiro
nunca quebrou o bico a uma pena) que, durante as 19.® e 20.® dinastias, podia
também ser interpretado como um meio de revelar que o autor era oriundo da
parte mais oriental do Egipto.
É evidente que não temos em vista, nem desejamos, voltar a percorrer as eta­
pas do complexo sistema de instrução que vigorava no antigo Egipto e que
decerto se alterou profundamente com o passar dos milénios (deste aspecto trata
prolixamente Brunner, na sua obra de 1953). Notaremos, porém, que com a 20.®
dinastia se regista um novo interesse pela didáctica profissional, destinada aos
funcionários. Não só o antigo Ensinamento de Khety é recebido e reescrito, como
também são compostas obras originais, que vão inserir-se no panorama incrivel­
mente variegado que é típico da 19.® e 20.® dinastias. A razão desse novo interesse
é evidente: o contraste que surge mais frequentemente neste sistema de contrastes
para fins didácticos é o que existe entre a carreira de funcionário e a carreira mili­
tar, tão compreensivelmente aliciante nas épocas das constantes expedições vito­
riosas, que, embora perigosas e difíceis, podiam proporcionar grandes lucros.
De qualquer modo, a revolução do ano 19 de Ramsés XI põe termo à tendência
profissional na didáctica. Põs termo a muitas outras coisas, mas disso teremos de
falar à parte, já que, até então, a revolução não tinha sido reconhecida como tal.
Durante a 19.® e 20.® dinastias existiam ainda as escolas dos templos (por
exemplo, a do templo da Senhora do Céu, em Karnak) e o instituto dos escribas-
-artesãos que pintavam os túmulos dos reis (os trabalhos dos seus alunos chega­
ram até nós em grande número).

A crise da classe dos funcionários

Neste pequeno ensaio não podemos sequer tentar esboçar uma história dos
funcionários, dado que ultrapassaríamos muito os limites que impusemos a nós
próprios. Todavia, é evidente que devemos analisar o período de crise que eles
registaram. Não falaremos, porém, da primeira revolução egípcia, que ocorreu
durante a 8.® dinastia, nem do período de dominação estrangeira, desde a 15.® até
à 27.® dinastia, nem, por fim, da época da única revolução vinda das altas esferas
que o Egipto conheceu (Perepelkin chama-lhe «golpe de Estado»), no reinado de
Akhenáten, que subverteu todos os aspectos da vida egípcia.
Fosse qual fosse o prejuízo que essas perturbações causavam aos funcionários,
estes foram capazes de restaurar as suas forças com relativa rapidez. Em todo o
caso, durante esses períodos nunca se falou de uma alternativa à classe dos fun­
cionários. Tudo foi diferente com a revolução do ano 19 de Ramsés XI, que con­
duziu à formação de um Estado de tipo novo que o antigo Egipto nunca conhe­
cera até então. É o Estado de um deus, Ámon no caso específico, perfeitamente

93
V

comparável à teocracia fundada pelos antigos Hebreus. Ramsés XI não foi derru
bado e, até à sua morte, foi recordado nas datas do Alto Egipto, que já há algum
tempo se subtraíra ao seu controlo (não conhecemos datas do Baixo Egipto refe
rentes a este período). Além disso, era tão respeitado que, passado um século, as
pessoas ainda se gabavam do seu parentesco com ele.
Política e ideologicamente, porém, a monarquia caiu no ano 19, quando o
novo regime se tornou uma realidade tão evidente que foi forçoso romper com
essa monarquia e proclamar uma nova. Isso foi feito mediante a adopção de um
‘ sistema cronológico diferente, ou seja, de uma era que tinha início no ano da
revolução e que foi designada por «renascimento», numa alusão ao renascer do
reinado primordial de Ámon, criado no início do mundo. No Alto Egipto, esse
sistema existiu a par da datação segundo os anos de Ramsés XI, mas também fo
usado independentemente dessa datação. De qualquer modo, por volta do ano 5
dessa nova era, o regime já se tinha consolidado: o país estava dividido em duas
partes e Ámon fora proclamado rei em cada uma delas, embora em medidas dife
rentes. De facto, o soberano que governava o Alto Egipto considerava-se apenas
sumo sacerdote do deus-rei e mesmo quem estava decidido a usurpar o título de
rei escrevia na sua carteia esse título sacerdotal.
'I Não sabemos como se comportou nesse período, isto é, antes da morte de Ram
sés XI, o soberano do Baixo Egipto, Smendes. É digno de nota que, pelo menos
no ano 5, já residisse em Tanis e que os Hebreus associassem Tanis e a sua fundação
— como capital, evidentemente — à fundação de Hebron {Números, 13, 22). Outro
Estado teocrático. A era do «renascimento» vem a coincidir com a era de Tanis. Nesse
sentido, Hebron terá sido fundada no ano 12 de Ramsés XI. Além disso, quer Smendes
quer a sua consorte, Taamon, eram «denominados os fundadores da terra [isto é
% do mundo] dada por Ámon ao Norte da sua terra [isto é, do Egipto]» (papiro de Golenisev
II, 2, 35). Embora não haja meios de o apurar, considera-se que Smendes terá assu
mido os seus títulos reais só após a morte de Ramsés XI. Todavia, no seu título de
r,, rei, não incluiu a dignidade de sacerdote, que devia possuir antes de assumir o cargo
de rei. Entre os seus sucessores só Psusennes I o fez, ainda que ocasionalmente.
Também no Sul houve quem revelasse pretensões ao título de rei. Assim acon
teceu com Herihor e, posteriormente, com Pinedjem I, que acabou por assumir
directamente o título. Os seus sucessores não lhe seguiram o exemplo, e só o filho
Menkheperra, se atreveu a usar de vez em quando as carteias reais, mas sem os
respectivos títulos.
Como todos os herdeiros de Smendes ostentaram o título de rei e os herdeiros
de Herihor só puderam ostentar o de sacerdote, pareceria poder concluir-se que
o reino meridional reconheceu a autoridade dos reis do Norte, tanto mais que
— também coincidindo, evidentemente, com a morte de Ramsés XI — a era do
«renascimento» foi esquecida e todo o Egipto começou de novo a medir o passar
dos anos em função dos reinados dos soberanos, que já eram os de Tanis, da 21.®
dinastia. Todavia, esse facto pode também ser interpretado de modo diferente e
levar-nos a concluir que a ideia do Estado teocrático se terá concretizado com
menos coerência no Sul do que no Norte; aqui, o princípio do pontificado não
permaneceu em vigor e voltou-se à forma tradicional da monarquia egípcia, com
a datação baseada nos anos de reinado. No Sul, que tinha em Tebas o centro

94
milenar do culto de Ámon, a ideia de um Estado de Ámon acabou por ser mais
forte. A datação efectuada a partir dos anos de reinado dos soberanos do Norte
pode ser uma mera eponímia.
Seja como for, a revolução do ano 19 fez com que o rei — ainda que formal­
mente não destronado e ainda na plena posse dos seus títulos divinos e reais —
fosse oficialmente declarado não deus, mas apenas homem, embora conservando
a suprema dignidade estatal.
Tudo isto é dito claramente no famoso Relatório de Unamon sobre a Viagem
a Biblos (papiro Golnisev II, 2, 53). Esse Relatório, fossem quais fossem os objec-
tivos da sua compilação, surge indubitavelmente como o manifesto da nova ideo­
logia. Aí se sublinha que Unamon serve um deus e não um homem, que o rei de
Biblos, Tjeker-baal, é obrigado a fazer tudo o que for exigido por Unamon; de
facto, este não é o enviado de um homem mas de um deus, o enviado de Ámon
ou, mais exactamente, o enviado humano de Ámon, que acompanha o verdadeiro
embaixador, o deus, e a estatueta de Ámon personificado como «Ámon em via­
gem». Por outro lado, o enviado não é, como era lícito esperar, um funcionário
(nesse caso, seria um representante do débil rei-homem); ostenta, isso sim, o
título de servidor do templo, algo de semelhante ao guarda do templo de Karnak,
cargo que, por si só, revela que o Egipto vivera uma revolução e que o país de
ontem e o de hoje eram duas realidades absolutamente incompatíveis. Verifica-se
um facto inaudito. O guarda de um templo desempenha um cargo diplomático.
Antes da revolução do ano 19, um facto deste gênero seria simplesmente inpensá-
vel. Nada de semelhante aparece nos textos egípcios.
Tjeker-baal afirma que os anteriores reis do Egipto tinham revelado aos que
o antecederam no trono de Biblos as suas carências de madeira; a madeira tinha-
-Ihes sido enviada em troca de muito dinheiro. Não há qualquer duvidai de que os
embaixadores dos reis do Egipto terão sido funcionários, chefes militares ou ser­
vidores do palácio, mas nunca guardas de templos.
Logo a seguir à viagem de Unamon, a situação no Egipto estabilizou-se de
novo e a monarquia consolidou-se formalmente (pelo menos no Norte do país);
portanto, é per feitamente possível que já durante a 21.® dinastia, quer dizer, após
a morte de Ramsés, um facto deste gênero fosse de novo inconcebível. Aliás, no
Relatório de Unamon, a ideia de um Estado teocrático é desenvolvida de uma
forma bastante coerente; se, num Estado humano, não divino, como era antiga­
mente o Egipto, o rei agia por intermédio dos seus servidores, os funcionários,
num Estado divino, o seu lugar devia ser ocupado pelos servidores do deus. Una­
mon é um deles. Cumpre a sua missão baseado num decreto pessoal de Ámon
(emanado, claro está, por intermédio de um oráculo) e de uma carta do sumo
sacerdote desse deus, que confirmava o decreto.
A situação descrita no Relatório é ainda mais interessante: a embaixada de
Unamon, ou seja, a embaixada do deus, tinha lugar apenas porque a anterior
— que fora enviada com o mesmo objectivo (arranjar madeira para a barca de
Ámon), mas pelo rei, numa época em que a monarquia ainda existia — não tivera
êxito. A razão, como era perfeitamente claro para Unamon, residia no facto de se
ter tratado de uma embaixada humana, enviada por um rei-homem que ninguém
era obrigado a ter em conta, sobretudo se o soberano não era capaz de pagar

95
I

o que era pedido. Unamon cita o rei apenas pelo nome e, ainda por cima, n
forma abreviada, Khamois; além disso, no Relatório, o seu nome aparece sem
carteia real. Isso não revela, porém, falta de respeito para com o rei. Desde o
tempos de Akhenáten (e talvez mesmo antes) que os reis eram frequentement
nomeados recorrendo a diminutivos que, normalmente, não figuravam na carteia
Uaenra (Akhenáten), Mehi (Haremhab), Sesu (Ramsés II), Mesu (Amenmes
Sesu e Heqayunu (Ramsés III), Heqamat (Ramsés IV) e Khamois (Ramsés XI
Em suma, o facto de, no Relatório, os senhores dos Estados do Norte e do Su
— Smendes e Herihor — serem mencionados pelo nome (sem carteias) indica qu
a sua posição era de reis soberanos. Com efeito, em todo o país só uma pesso
possuía um nome tal que não necessitava de mais especificações, tais como título
patronímico e lugar de origem/residência.
Os embaixadores que Khamois enviara a Biblos tinham sido feitos prisioneiro
por Tjeker-baal e passaram dezassete anos no cárcere. Aí tinham morrido e Una
mon viu os seus túmulos. O confronto entre os embaixadores de Khamois e
embaixador do deus demonstra que o objectivo da missão era o mesmo (aind
que o fim daqueles fosse propositadamente omitido). A tarefa de arranja
madeira, e sobretudo madeira para a barca sagrada de Ámon, não competia
H uma pessoa qualquer, mas ao rei. Pense-se, por exemplo, na reprodução existent
no papiro de Brooklyn n.°® 47, 218, 3, do ano 14 de Psamético I: na barca vê-s
uma inscrição com os nomes de um antecessor de Psamético, o faraó etíop
Taharqa.
A situação era esta: enquanto estivessem vivos os enviados da primeira emba
xada, não seria possível enviar outra. Por isso, a segunda foi organizada mal che
,
gou a notícia da morte desses homens. Assim, o período de dezassete anos em
que definharam no cárcere permite-nos calcular a data da sua embaixada: o an
‘1. 7 ou 6 de Ramsés XI. Portanto, esse episódio deve ser incluído entre os acontec
mentos que precederam a introdução da era do «renascimento» no Egipto:
k supressão do sumo sacerdote de Ámon, Amenhotep, a invasão do vice-rei d
Kush, Panehsi, e a proclamação da era do «renascimento», no ano 19. A norte
e também no ano 19, surgem Smendes e a sua capital, Tanis, que são menciona
í dos pela primeira vez no ano 14. Por outro lado, as insolências cometidas po
Tjeker-baal contra embaixadores do rei não demonstram apenas a debilidade d
Egipto; demonstram sobretudo que o soberano não podia dispor de madeira par
a barca de Ámon; por conseguinte, era evidente — e sublinho «evidente» — qu
o soberano não era bem visto por Ámon, que, por intermédio dos oráculos
podia cuidar da vida e dos bens de cada um, incluindo dos homens de condiçã
mais humilde, resolvendo todos os seus problemas, mesmo o mais pequeno.
O rei não tinha tido êxito, ao contrário de Unamon, o enviado de Ámon
Claro que tinha pago a madeira; contudo, só a tinha comprado depois de te
recordado constantemente ao rei de Biblos que ele era um embaixador do deus
que, se o expulsasse, ofenderia esse deus (Tjeker-baal só pudera castigar sumaria
mente os primeiros embaixadores porque tinham sido enviados pelo rei, que nã
passa de um homem): uma declaração única em toda a literatura e em todos o
monumentos escritos do antigo Egipto, e que só foi possível após uma revolução

96
C,'/
r No seu gênero, a embaixada de Unamon é provavelmente ímpar, na medida
em que, por morte de Ramsés XI, a monarquia foi restaurada (pelo menos, a
norte) englobando, bem ou mal, o reino de Ámon, que era independente e que,
por vezes, gozara de uma notável autonomia. No entanto, o Estado teocrático
tinha infligido um duro golpe no prestígio dos funcionários, ao fazer ascender o
clero, a indiscutível aristocracia das últimas dez dinastias egípcias, ao primeiro
plano. Os sacerdotes realçam de todas as formas possíveis a antiguidade das
linhas de parentesco individuais, através das quais a dignidade sacerdotal se
transmite de geração em geração. O fascínio que os funcionários de todas as épo­
cas sentiam pelos proveitosos cargos religiosos assume agora um novo aspecto: os
funcionários hereditários consideram-se, acima de tudo, sacerdotes hereditários.
Por exemplo, na já citada genealogia dos sumos sacerdotes de Ptah, em cuja
estirpe se contavam também altos funcionários, o representante de cada geração
inicia a lista dos seus títulos com o apelativo sacerdotal de «pai do deus». Qual­
quer um deles podia ser denominado «pai do deus tal», mesmo que fosse apenas,
por exemplo, vizir, chefe da administração egípcia, nomarca de Mênfis ou qual­
quer outro importante funcionário. Do mesmo modo, nada indica que o «pai do
deus Ankhsheshonq», autor do célebre Ensinamento — que, de acordo com o
preâmbulo às suas máximas, estava implicado numa conjura contra o faraó —
fosse apenas um sacerdote e é mesmo mais provável que fosse um funcionário a
participar numa conjura contra o rei.

A categoria dos funcionários

O autor da história de José realça intencionalmente as origens humildes do


seu herói, para que o leitor — ao ver as metas que ele veio a atingir — pudesse
considerar toda a parábola da sua existência como algo de absolutamente
extraordinário. No entanto, do ponto de vista egípcio, o caso nada tinha de excep­
cional. Os Egípcios gostavam de descobrir um talento (e é assim que José é repre­
sentado) nos locais mais impensáveis. Ptahotep, vizir da segunda metade da 5.®
dinastia e autor de uma conhecida obra didáctica, afirma que a linguagem mor­
daz é mais preciosa do que uma esmeralda, mas que se pode encontrar numa
escrava que mói o trigo. Idêntico é o sentido dos Discursos de um Oasiano Elo­
quente, texto a que já aludimos: um homem sem instrução, habituado a passar
quase todos os seus dias no deserto, longe das pessoas, oriundo, além do mais,
de uma região cujos habitantes, segundo Heródoto, recorriam ao oráculo para
saber se deviam considerar-se egípcios, é dotado de tal eloquência que pessoas de
grande cultura — tal como o rei do Egipto (até à revolução do ano 19 de Ramsés
XI, o rei do Egipto era considerado não um homem mas um deus) e um dos seus
ministros — sentiam um enorme prazer com os seus discursos, mostrando-se dis­
postos a anotá-los e conservá-los para a posteridade. A mesma atitude dos Egíp­
cios em relação ao talento encontra-se também nas lendas relativas ao faraó Amá-
sis. As suas excepcionais qualidades de soberano destacam-se ainda mais pelas
suas origens humildes, pela sua propensão para a embriaguês e, até, pela falta de
respeito pela propriedade alheia.

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Portanto, pelo menos em teoria, a origem não era um obstáculo para a car­
reira de um funcionário. Por outro lado, na prática, vemos que os não funcioná­
rios também podiam inscrever os seus filhos na escola onde estudavam os filhos
dos funcionários e que isso não era considerado nada de invulgar.
O rei do Egipto era senhor da sua casa e, por isso, podia despedir a seu bel-
-prazer qualquer membro da «Casa do rei», desde o herdeiro do trono até ao
guarda dos estábulos (n.°® 72-76 e 229 do Onomasticon de Amenope). Apesar
disso, em todas as épocas da história egípcia — exceptuando apenas as mais anti­
gas — o augúrio mais corrente foi este: «Oxalá possais deixar os vossos cargos
aos vossos filhos», com todas as variantes possíveis. Não devemos considerar este
facto como uma contradição. A prática normal é a hereditariedade, mas não são
de excluir derrogações, já que um dignitário pode morrer sem deixar herdeiros,
cometer um crime, desagradar a alguém, cair em desgraça junto do rei, etc.
As pessoas tentavam de todos os modos não infringir a prática corrente. Con­
tudo, provavelmente a partir da 12.® dinastia (e talvez mesmo a partir de uma
época ainda anterior) e até à 20.®, permaneceu em vigor, no Egipto, o sistema dos
«censos» ou da «determinação das vagas» que permitiam, por um lado, avaliar
as carências e as insuficiências de quadros a todos os níveis e em todos os cargos
dessa instituição única que é a «Casa do rei» egípcia e, por outro lado, integrar
na vida activa a jovem geração masculina, de acordo com determinadas classes
etárias enumeradas na secção «O homem» do Onomasticon de Amenope.
A secção «O homem» está associada à secção denominada «A Casa do rei»
precisamente na medida em que, quer as classes etárias, quer as categorias que se
reflectem negativamente na capacidade de trabalho do homem (cego, surdo
— ausentes no Onomasticon) são citadas nas resenhas a par das categorias socio-
profissionais, que são cinco: os soldados, os sacerdotes, os artesãos, os escravos
do rei (estas quatro categorias são evocadas por Tjaneni, um escriba do exército
da 18.® dinastia) e os funcionários. Esses recenseamentos podiam ter um carácter
local ou abranger todo o Egipto; podiam ter por único objectivo favorecer uma
renovação dos quadros (ou seja, desempenhar uma função de revisão) ou estar
associados à mobilização de contingentes de militares ou trabalhadores destina­
dos aos chamados «trabalhos reais» (e desempenhar, nesse caso, uma função de
mobilização).
Os funcionários inseriam-se neste sistema de uma forma menos «imediata»
do que os escravos do rei (a maioria da população do antido Egipto) ou os milita­
res (entre os quais se incluía toda a juventude capaz de combater, que podia ser
agrupada sem enfraquecer as outras quatro categorias). Por isso, não é por acaso
que o escriba Tjaneni — que descreve um recenseamento levado a efeito em todo
o território egípcio — recorda e nomeia apenas quatro categorias, ignorando
completamente a quinta, os funcionários. Do mesmo modo, não é por acaso que
quase todas as notícias — mais ou menos pormenorizadas — sobre os recensea­
mentos remontam à belicosa época da 18.® e 19.® dinastias e se referem a alistamen­
tos no exército. Nas informações que chegaram até nós acerca dos recenseamentos
de revisão, os funcionários só são mencionados uma vez (num modelo de carta,
que os alunos deverão copiar e que está contido no papiro Anastasi IV, 4, 8-9)

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r e, ainda por cima, numa revisão meramente local. Pelo contrário, os recensea­
mentos de mobilização, que podem envolver ou não os funcionários, têm a ver
com situações de tipo diferente e de duração limitada e não nos interessam aqui.
Portanto, o funcionário escapa, de facto, ao sistema dos recenseamentos.
Outra demonstração desse facto é-nos fornecida pela própria substância da
didáctica profissional: para Khety e para os seus epígonos da 19.® dinastia, os
estudos equivalem à isenção total do serviço militar e à inserção na actividade de
artesão ou trabalhador agrícola (por outras palavras, de escravo do rei). A ques­
tão coloca-se em termos extremamente precisos: ou se pertence à quinta categoria
ou a uma das outras quatro. É interessante que a didáctica inclua o sacerdócio
entre as quatro profissões menos ambicionadas, baseando-se sobretudo no facto
de o clero estar estreitamente ligado à produção de trigo.
A originalidade da posição ocupada pelos funcionários no sistema dos recen­
seamentos justificava-se decerto pela sua preparação profissional — que, em certa
medida, partilhavam com os sacerdotes e com os artesãos especializados na escul­
tura das inscrições — e pelo carácter elitista dos seus cargos, que eram em
número reduzido em comparação com as outras categorias.
Como sabemos, o recenseamento de revisão servia apenas para garantir a ocu­
pação dos vários cargos. Durante um recenseamento podiam ocorrer eventuais
nomeações ou transferências, mas, no que se refere aos funcionários, as fontes
nunca relacionam as nomeações com os recenseamentos. A própria nomeação
dos jovens para cargos de funcionários, tal como é descrita no Ensinamento de
Khety, nada tem a ver com os recenseamentos, que também não são referidos nas
exemplificações dos cargos. E a própria transmissão hereditária situa-se de facto
à margem deste sistema, ainda que, em princípio, não se lhe oponha e possa inte-
grar-se nele.
Durante milénios, a transmissão dos cargos de funcionário de pais para filhos,
e até entre parentes, foi uma prática bastante estável, dado que era um meio de
garantir a velhice do funcionário. No direito egípcio, essa instituição era mesmo
dominada «bengala da velhice». No entanto, o princípio da sucessão tem uma
expressão maior ou menor, conforme as épocas, o que se explica pela especificidade
desta ou daquela época e pelo número de fontes de que dispomos a esse respeito.
Um caso clássico de transmissão dos cargos de pais para filhos é o da estirpe
dos Sumos Sacerdotes de Ptah, que tanto impressionou Hecateu de Mileto e
Heródoto. Essa estirpe provinha directamente de Imhotep, contemporâneo de
Djoser, e chegou até Psenptah, que morreu (foi morto?) no dia da entrada das
tropas de Augusto em Alexandria; posteriormente, desenvolve-se um ramo colate­
ral, que, segundo parece, teve curta duração.
Portanto, a estirpe de que falamos acompanhou toda a monarquia dos faraós
e terminou com ela, já que os Ptolomeus, a que não sobreviveu, foram faraós
bem mais legítimos do que os imperadores romanos. Segundo Hecateu e Heró­
doto, tratou-se de uma descendência directa de pai para filho que se manteve
durante mais de trezentas gerações, todas de sumos saeerdotes de Ptah. Daí resul­
tava um interessante contraste: os faraós não eram capazes de se gabar de uma
continuidade tão regular e estável. Também eles contavam mais de trezentas

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gerações, mas pertencentes a estirpes diferentes que, em certos casos individuais,
poderiam estar ligadas por laços de parentesco. Aliás, algumas estirpes governa­
ram ao mesmo tempo, e mesmo no seio de uma mesma estirpe ou dinastia, não
se pode falar de uma linha de descendência rigorosamente directa. Por isso, a
genealogia dos sacerdotes de Ptah acaba por ser mais credível do que a cronolo­
gia dos faraós. Todavia, o que é certo é que os sacerdotes de Ptah são, justamente,
sacerdotes e o assunto do nosso trabalho deve ser a classe dos funcionários. Por
outro lado, não nos esqueçamos de que, segundo o manual da hierarquia, os
sumos sacerdotes das supremas divindades do Egipto figuram, no organograma
da «Casa do rei», entre os funcionários.
A descoberta e a publicação, levadas a cabo por Borchardt, da famosa genea­
logia de Berlim confirmaram a exactidão da descrição de Hecateu e Heródoto.
Essa genealogia abrange de facto os representantes da estirpe dos sumos sacerdo­
tes de Ptah, cargo que é transmitido de pais para filhos. A lista dos seus títulos
começava sempre pela designação sacerdotal de «pai do deus» que — como já
vimos — era também um termo de parentesco referente ao domínio do matrimó­
nio sagrado, através do qual o Sol gerava os faraós. Como já se disse, no matri­
mónio sagrado, esse termo designava o consorte da mãe do futuro rei; esta era
fecundada pelo Sol, que, para esse efeito, se servia do corpo do seu consorte. Se
este era rei e pai do rei que lhe iria suceder, era designado apenas por «rei tal» e
não era necessário utilizar o termo «pai do deus».
Todavia, para o pai de um rei que não tivesse sido também rei, esse termo de
parentesco representava o nível mais elevado a que um homem, ou seja, um súb­
dito do soberano, podia aspirar. Por isso, o termo «pai do deus» converteu-se no
título específico do progenitor de uma dinastia real e progenitor de deuses, e indi­
cava claramente que o pai do deus, ou seja, do rei, não era um rei, mas um homem.
Foi assim, ou seja, como «homem, filho de homem», que os Egípcios explica­
ram a Hecateu as didascálias das imagens — que coincidem com as didascálias
gravadas nas paredes da capela — que dizem o seguinte: «pai do deus [-1- o nome
do cargo] tal, filho do pai do deus [-t-o nome do cargo] tal, filho», e assim por
diante, dezenas de vezes. Sabemo-lo por Heródoto, que refere também o termo
que, em egípcio, significa «homem», piromi (transcrevendo-o na forma heleni­
zada, piromis).
São muitos os nomes citados no monilmento de Berlim, mas não reproduzem
toda a estirpe, já que não só não se chega até à entrada das tropas de Augusto
em Alexandria, mas também não se refere a época das viagens ao Egipto de
Hecateu e Heródoto (27.^ dinastia). A genealogia vai apenas até à 22.® dinastia.
Para além disso, figura numa única parede da capela, onde, em várias listas, são
evocados os membros da estirpe que se gaba de ser tão antiga. As gerações estão
ordenadas de cima para baixo e da direita para a esquerda; o primeiro a ser evo­
cado é aquele que edificou o monumento, depois a descendência percorre os
séculos, razão pela qual as listas passavam, pelo menos, para uma outra parede,
de que não há vestígios. Por conseguinte, determinar o número das gerações a
partir deste momento é impossível. No entanto, é evidente que o seu número é niti­
damente inferior ao que figura no monumento descrito por Hecateu e Heródoto.

100
Há uma outra discordância em relação aos dados fornecidos pelos escritores
gregos, dado que nem todos os membros dessa estirpe foram sumos sacerdotes de
Ptah, De facto, também houve vizires, administradores de Mênfis, outros impor­
tantes funcionários, sacerdotes. Todavia, os cargos que mais caracterizaram essa
estirpe foram os de Sumo Sacerdote de Ptah e o de vizir. Esses cargos (sobretudo,
o primeiro) foram por vezes cedidos a outra estirpe e depois recuperados, como se
os descendentes tivessem tentado reapoderar-se deles na primeira oportunidade.
E certo que não se pode excluir a hipótese de que a pureza ou a continuidade
da descendência tenham sido, em alguns casos, forçadas. Nem tudo coincide com
as genealogias paralelas desta estirpe e com os dados dos monumentos. No entanto,
a existência de uma dinastia de funcionários que, durante um período de três milê­
nios, ocupou os supremos cargos do país não pode deixar de impressionar.
Não sabemos até que geração chegou o homem que erigiu essa capela; no
entanto, o vizir Rahotep, que aí é recordado e que viveu no reinado de Ramsés I,
fazia remontar a estirpe a Imhotep (3.® dinastia). Em tempos posteriores, Imhotep
era já incontestavelmente considerado filho de Ptah e esse facto determinava o iní­
cio da genealogia. Mas a genealogia reproduzida na capela teria sido assim estru­
turada, numa época tão remota em relação ao período dos Ptolomeus e dos Roma­
nos como é a 22.® dinastia? Essa estirpe não iria mais além, até dinastias anteriores?
A estirpe em questão representa naturalmente algo de muito especial; todavia,
temos conhecimento de outras gerações de funcionários, sobretudo sacerdotes
(pertencentes, regra geral, às últimas dez dinastias). De facto, uma dezena, ou
mais, de gerações não é uma raridade, Nos tempos antigos, porém, as genealogias
escasseiam, embora os monumentos e os documentos dessas épocas permitam
reconstituir muitas coisas. Neste breve ensaio não tem, provavelmente, sentido de-
termo-nos em todas elas, mas não se pode deixar de recordar a extraordinária his­
tória de uma família de nomarcas do xvi nomos do Alto Egipto, redigida em
nome do nomarca Khnumhotep (meados da 12.® dinastia).
A história não é longa, abarca pouco mais de um século, mas está contada de
uma forma excepcional. Trata-se da única história do antigo Egipto que chegou
até nós (a história de uma família de funcionários e sacerdotes de Teudjor, da 26.®
e 27.® dinastias, só parcialmente é que pode ser confrontada com ela): nesta
estirpe, o cargo de nomarca é transmitido não só através da descendência mascu­
lina, mas também feminina.
Não se pode deixar de recordar a galeria dos antepassados no túmulo de
Uhhotep, nomarca do xvi nomos do Alto Egipto, que viveu na época de Ame-
nemhat II: cerca de sessenta retratos de homens que desempenharam o cargo de
topaiis (o título do nomarca ou do chefe da cidade, nessa época) e das suas
mulheres, sem indicação do parentesco que existia entre eles nem entre eles e o
proprietário do túmulo. Dado que, na época, não era costume reproduzir nos
túmulos todos os parentes, mesmo afastados, devia tratar-se dos antepassados
(e não necessariamente em linha directa).
Durante a 13.® e 14.® dinastias, apesar da complexidade de um período que viu rei­
nar um número de soberanos pouco inferior ao de todas as outras dinastias juntas,
os monumentos permitem reconstituir a genealogia de uma família de funcionários

101
de que provieram duas rainhas, alguns vizires e o ramo dos nomarcas de El-Kab
(III nomos do Alto Egipto), O cargo de nomarca é a tal ponto atributo hereditá­
rio desta família que é considerado sua propriedade pessoal e é vendido por 60
deben de ouro (pagos, evidentemente, em objectos) a outro membro da mesma
estirpe.
Para falar verdade, em toda a história dos faraós, este é o único caso conhe­
cido de um cargo não sacerdotal; todavia, nas biografias escritas por ordem dos
funcionários, há inúmeras referências ao facto de estes terem iniciado a sua car­
reira em tenra idade — quando tinham dois dedos de altura ou ainda mamavam
o leite materno —, referências essas que são suficientemente significativas e que
só podem ser explicadas pela hereditariedade do cargo. A esse respeito, é impor­
tante realçar que o novo funcionário nem sequer tinha de esperar que o cargo
ficasse livre, já que podia ser nomeado na qualidade de assistente do pai ou de
outro parente que desempenhasse o cargo.
Por exemplo, na época de Psamético I, Peteses — que ocupava o cargo, que
fora desempenhado por José, de funcionário responsável pelas colheitas do país,
ou «chefe dos transportes navais» — pede ao faraó para nomear como seu assis­
tente, mas com as mesmas funções, um seu parente e homônimo, que seria o ver­
dadeiro detentor do cargo e lhe apresentaria os relatórios a ele, seu chefe.
O grande número de situações deste gênero — duas ou mais pessoas a ocupar o
mesmo cargo — levava a distinguir entre quem figurava apenas como detentor de
um cargo e quem exercia efectivamente as funções; com esse objectivo, em certas
épocas (6.® e 8.® dinastias), acrescentava-se o termo «autêntico» à denominação
do cargo ou indicava-se que o verdadeiro executor agia apenas como adjunto.
No entanto, o exemplo máximo desta ideia do cargo como algo de pessoal é o
conceito de «cargo pessoal», que é mencionado apenas uma vez (esteia do British
Museum n.° 101), mas num contexto que revela, claramente, que se está a falar de
um fenômeno corrente, em todo o país. No Apelo aos Vivos para que augurem
sorte ao proprietário do túmulo (expressão muito utilizada nas inscrições dos
túmulos, nos rochedos do deserto e, mais tarde, nas estátuas) são enumeradas as
recompensas que aguardam o homem que pronuncie esse augúrio e, entre elas,
figura também a possibilidade de transmitir aos filhos o cargo que ocupa. O Apelo
dirige-se, em primeiro lugar, aos sacerdotes e aos funcionários. Assim foi sempre,
a partir da 5.“ dinastia. A variante da referência ao «cargo pessoal transmissível
aos filhos» reproduzida na esteia citada é, obviamente, um caso geral.
Na verdade, um estudo do termo «propriedade» (Perepelkin) revela que os
Egípcios interpretavam esse conceito de uma forma mais indeterminada do que
nós, incluindo nele também aquilo que, à primeira vista, não poderia ser incluído;
por exemplo, os funcionários da classe baixa que estavam ao serviço de pessoas
bem colocadas ou de favoritos do rei eram considerados «pessoas da propriedade»
do seu patrão.
É claro que todos estes «direitos» referentes a um cargo deixavam imediata­
mente de existir se ao governo se impunham soluções de outro gênero. Assim, a
estirpe dos sumos sacerdotes de Ptah teve, naturalmente, de se afastar quando
Amenófis III necessitou do seu cargo hereditário para o príncipe Tutmés, e os reis

102
Ramsés II e III exigiram-no para os seus filhos, que se chamavam ambos Khae-
muaset. Da mesma forma, quando o rei estava descontente com um funcionário
e o destituía, dificilmente nomeava um dos seus filhos para o mesmo cargo; Ame-
nemhat III, depois de ter substituído o vizir Akhtoe, que caíra em desgraça,
achou necessário instruir minuciosamente o novo encarregado acerca do modo
como se devia comportar nas suas novas funções, o que teria sido impossível se
se tratasse de um filho ou de um parente de Akhtoe. A reprovação do faraó,
mesmo expressa sob a forma de simples censura, era terrível para o súbdito, tanto
mais que os reis costumavam distribuir favores. Aliás, é significativo que aquela
directiva do faraó fosse a primeira do gênero alguma vez emanada ao longo de
dezoito dinastias; se assim não fosse, seria difícil compreender por que razão os
vizires da 18.® dinastia a reproduziam nos seus túmulos como um documento
extremamente autorizado que deviam ter em conta no exercício das suas funções.
Todavia, mesmo antes de Akhtoe, conhecem-se casos de vizires que caíram em
desgraça.
Note-se que, durante a 3.® e 4.® dinastias — quando existiam ainda os «pri­
meiros vasos», ou seja, os descendentes directos dos primeiros homens criados
por Khnum, deus das forças criativas (ainda não se falava de «urina» do deus-
-Sol, que, conforme o que foi dito anteriormente, sucedeu aos «vasos», durante
a 9.® e 10.® dinastias), uma autêntica aristocracia onde se incluíam certamente os
funcionários que ocupavam os altos cargos na capital e nos nomoi — todos os
selos oficiais eram anônimos. Nas épocas seguintes, os selos com a indicação do
cargo desaparecem por completo (à parte certas excepções individuais de substi­
tuição de selos por um determinado enfeite ou pelos nomes do faraó reinante),
ou, como aconteceu em finais da 12.® dinastia e sobretudo durante a 18.®, são
substituídos por selos pessoais (que tinham então a forma de um escaravelho)
onde figura não só o cargo mas também o nome de quem o ocupa, como se a
relação com as funções desempenhadas tivesse adquirido maior importância. Os
selos pessoais surgem novamente durante a 25.® e 26.® dinastias, numa espécie de
regresso à prática em vigor nesses tempos remotos.
Nos decretos reais e nas inscrições dos próprios funcionários ouvimos falar
constantemente de transferências e de punições de funcionários, cujo perigo exis­
tira desde sempre, sob a forma de processos, bastonadas, mutilações e execuções
capitais. Também se encontra com frequência a ameaça de um retrocesso da posi­
ção social dos funcionários punidos, com a sua transferência para a classe dos
agricultores. Todavia, só no célebre papiro Golenisev IV, a chamada Epístola
Literária, publicada, pela primeira vez, por Korostovcev e depois — de uma
forma exemplar — por Caminos, é que encontramos uma verdadeira imposição
da pena (e não a um funcionário, mas a um sacerdote). Os factos referidos no
papiro remontam à 20.® dinastia (Fecht, 1962).
Desse episódio resulta o aparecimento de algo semelhante ao gentleman-
-farmer da Inglaterra do século passado: um homem de vasta cultura que se
dedica aos trabalhos agrícolas, apascenta o rebanho, semeia e colhe as searas. Na
Inglaterra, porém, sobre a cabeça de um gentleman-farmer não pesava a ameaça
de castigos físicos na altura de mostrar as suas contas.
A m a n u te n ç ã o d o s fu n c io n á rio s

Não existem dúvidas de que um funcionário que prestava serviço na «Casa


do rei» devia ser mantido a expensas dessa «Casa»; aliás, não nos chegou uma
documentação explícita a esse respeito. Nos textos da 5.® e 6.“ dinastias e de
outras épocas alude-se a benesses distribuídas mais ou menos regular e directa-
mente pelo palácio, sob a forma de trigo, roupas e vasilhame do tesouro. No
Ensinamento de Khety (12.^ dinastia) afirma-se que qualquer funcionário é man­
tido em qualquer «lugar» (querendo, com este termo, exprimir algo semelhante
ao nosso «organismo» ou «ministério») que depende da capital — aqui no sen­
tido de «Casa do rei» e não de «espaço da capital». A entrega directa de alimen­
tos em casa de um funcionário que vivia na capital só ocorria no caso de ele
gozar de um favor especial; seja como for, devia beneficiar funcionários de idade
avançada (como Sinuhe, o protagonista do célebre romance da 12.® dinastia, ou
Inenis, um nomarca e arquitecto da 18.® dinastia). Akhenáten afirma explicita­
mente que distribuía comida aos funcionários, mas não explica como o fazia.
Para lá das provisões permanentes, que por agora é difícil definir de uma forma
precisa, existia o costume de efectuar distribuições una tantum, ainda que de pouca
monta, que se iam buscar aos shenu reais (locais onde eram preparados e guarda­
dos os alimentos; o significado foi confirmado por Perepelkin) nas capitais ou por
ocasião de viagens da corte pelo país. A recepção de uma certa quantidade de pães
e de um jarro de cerveja (a relação habitual era de 10 para 1) era uma grande honra,
mesmo para um vizir. Estas distribuições ocasionais que provinham directamente
do Palácio real estão bem documentadas, pelo menos graças a um texto tão cir­
cunstanciado como o papiro Bulaq 18 (primeiro período da 13.® dinastia).
No entanto, em geral, o rei concedia aos funcionários algo mais do que as dis­
tribuições ocasionais de rações alimentares ou de um apanágio. Entre a 4.® e a 8.®
dinastias, nos túmulos dos altos funcionários e das pessoas que gozavam dos favores
do rei existem reproduções de abundantes «propriedades pessoais», constituídas
por inúmeras aldeias, escravos, e milhares de cabeças de gado.
É provável que essas grandes propriedades tenham desaparecido após a revo­
lução da 8.® dinastia, mas voltam a surgir com a 11.® e sobretudo com a 12.® dinas­
tia, embora já não com as dimensões de outrora. A diferença é nítida: deixam de
existir aldeias pertencentes a particulares. Em compensação, afirma-se explicita­
mente que é o soberano quem atribui ao funcionário uma propriedade privada;
deve tratar-se, evidentemente, de uma forma de retribuição pelo trabalho dos fun­
cionários. No Ensinamento Lealista (primeira fase da 12.® dinastia) diz-se que a
fidelidade e o serviço prestado com zelo a favor do rei são recompensados em
homens, «escravos [do rei]», ao passo que a falta de benevolência do soberano priva
uma pessoa — e, acima de tudo, um funcionário — dos homens que garantem a
sua manutenção.
Na economia privada, os irmãos do patrão desempenham um papel que não tem
nada de secundário. Isso é devido, provavelmente, ao significado não unívoco do
termo «irmão», que deve interpretar-se como designando a generalidade dos parentes
masculinos do patrão. Esses «irmãos» podem mesmo gerir os negócios do seu
parente, tratar-lhe da contabilidade e controlar um ou outro sector. Existe também

104
a designação de «irmão pessoal» ou de «irmãopess», na forma contraída (Pere­
pelkin). É importante notar que este termo já é conhecido graças às esteias de
Helwân, que remontam à 2.® dinastia. Portanto, é bastante provável que uma eco­
nomia privada de grandes dimensões tenha surgido muito antes da 4.® dinastia.
Durante a 12.® dinastia, o «património pessoal» de um importante funcioná­
rio divide-se seguramente em duas partes: os bens inerentes ao cargo e os bens
hereditários. É claro que, quando os Egípcios afirmam que os bens pessoais são
concedidos pelo rei, referem-se aos bens inerentes ao cargo. Essa repartição tam­
bém já se fazia muito antes da 12.® dinastia, mais precisamente na 5.®; todavia,
talvez remonte mesmo ao nascimento da instituição do «património pessoal»,
que não pode de forma alguma ser posterior à 2.® dinastia. Só os bens hereditá­
rios é que se aproximavam um pouco do nosso conceito de propriedade «pri­
vada» ou «pessoal», embora os Egípcios também incluíssem os bens próprios do
cargo na noção de «casa/património pessoal».
A inclusão dos cargos sacerdotais entre os bens hereditários é digna de nota;
os direitos dos que ocupavam esses cargos eram maiores do que aqueles de que os
funcionários podiam gabar-se, embora esses cargos fossem considerados proprie­
dade de alguém. Os reis dispunham de uma determinada reserva de cargos sacer­
dotais, com os quais podiam recompensar os funcionários pelos serviços presta­
dos. O número dos cargos sacerdotais — bem como, durante a 4.® e 5.® dinastias,
dos cargos previstos no organograma das pirâmides — atribuídos a uma mesma
pessoa podia ser muito elevado; além do mais, como é demonstrado pelos papiros
de Abussir, que remontam à 5.® e 6.® dinastias (soberbamente editados por de
Cenival e Posener-Kriéger e estudados por esta, cfr. Posener-Kriéger, 1976), todos
os cargos deviam ser efectivamente desempenhados por alguém. Mesmo conside­
rando que as funções de um sacerdote não o ocupavam mais do que três meses
por ano, é difícil perceber como faziam as pessoas que desempenhavam uma série
desses cargos (a não ser que se pressuponha, por exemplo, a instituição de «vigá­
rios», que os ajudavam).

Os funcionários e a cultura do Egipto


O contributo material dado à cultura egípcia por esta camada social talvez
tenha a sua expressão mais evidente nos conjuntos monumentais do antigo
Egipto que conhecemos e a cuja edificação presidiram. Dificilmente se pode atri­
buir aos funcionários o aspecto artístico de um monumento, embora alguns afir­
mem que executaram pessoalmente uma ou outra obra. É o caso, por exemplo, do
templo de Khemtamenti (Osíris) em Abidos, na época da primeira edificação, no
reinado de Sesóstris. Os trabalhos foram certamente dirigidos por Mentuhotep,
vizir e chefe do Tesouro (nessa época, era esta a designação do comandante do
Palácio real ou, mesmo, do ministro da corte do rei). Todavia, um tal Meru, que
— a julgar pelo título que ostenta — devia ser um especialista em construções,
reivindica igualmente a «paternidade» dessa obra. É claro que a parte arquitectó-
nica lhe competia, mas também é evidente que o aspecto organizativo (os
homens, os utensílios, o aprovisionamento, os transportes e, por fim, a faculdade
de tomar decisões definitivas) era gerido pelo chefe do Tesouro.

105
Do mesmo modo, nos locais de extracção de alabastro e xisto, também n
eram os funcionários que esculpiam os obeliscos ou as estátuas dos soberanos
dos altos funcionários; contudo, a manutenção dos operários e o transporte d
monumentos eram da sua competência.
Na literatura, fica a dever-se aos funcionários a afirmação de autênticos gên
ros, tais como a autobiografia e a didáctica. O primeiro nasceu do costume
mencionar os inúmeros títulos que os dignitários ostentavam: assim queriam d
a conhecer, no outro mundo, a sua nobre linhagem e pretendiam apresentar-
aos visitantes dos túmulos como personalidades eminentes e modelos a imita
O segundo gênero, pelo contrário, assumiu a forma de conselhos dados
jovem geração a partir da experiência pessoal e teve por objectivo proclamar
mesmos princípios descritos nas autobiografias.
Por vezes, é difícil dizer com qual dos dois gêneros deparamos; todavia, as com
posições de carácter didáctico, particularmente apreciadas pelos Egípcios, fora
escritas, durante quase um milênio, apenas pelos vizires, como, por exemplo, Imh
tep (o iniciador, segundo parece, do gênero), o pai do vizir Kagemni (finais da 3
dinastia), o famoso Ptahotep (5.® dinastia) e Mentuhotep (início da 12.® dinastia
Na fileira dos vizires está incluído também o notável príncipe Djedfhor (o Tham
this de Máneton; a identificação provém irrefutavelmente da comparação entre
enumeração dos reis da 4.® dinastia descoberta no Wadi-Hammammât e a de Mán
ton — é evidente que o príncipe figura, por engano, entre os nomes dos reis)
Na realidade, no monumento edificado na sua época (será mais apropriado fal
de monumentos se, à inscrição gravada na estátua do rei Djoser acrescentarm
o grafito do conjunto de pirâmides de Tosortasis), Imhotep não é delcarado viz
mas a tradição apresenta-o como tal. Os vasos da pirâmide de Djoser demonstr
ram que nessa época o título não existia, embora um tal Menka, que deve ser u
dos predecessores de Imhotep, fosse designado por vizir.
Quanto a Mentuhotep, o último vizir que foi autor de obras didácticas, te
de se lhe atribuir a paternidade da Instrução Lealisía, embora o seu nome não
tenha conservado nas versões da obra que conhecemos. Chegaram-nos apenas fra
mentos da lista dos seus títulos, mas ele é o único vizir da 12.® dinastia que osten
títulos que lhe correspondem perfeitamente.
A didáctica posterior possui um tom mais modesto: entre os seus autores não
contam nem vizires nem príncipes. Todavia, quer Any quer Amenemope (o seu En
namento evoca de perto os Provérbios de Salomão) são funcionários de primeiro plan
Devemos naturalmente aos funcionários o texto científico (matemática) mais antig
do mundo, contido no papiro Golenisev; o papiro Rhind (15.® dinastia) contém a cóp
de um outro livro de matemática igualmente antigo. O nome do copista do papiro Rhin
o escriba Ahmes, é o primeiro em absoluto da história da matemática. No seu temp
viveu também o inventor da clepsidra, que conseguiu resolver o problema de fazer br
tar, a um ritmo regular, uma coluna de água de um recipiente; Amenemhat — é es
o seu nome, que permaneceu na história da Física — também era um funcionári
É claro que é impossível enumerar todos os empreendimentos dos administr
dores egípcios, mas há um que deve ser recordado: a medida do comprimento d
Egipto de norte a sul, equivalente a 106 das chamadas milhas fluviais. Esse núme
já era conhecido por Sesóstris no século XX a. C. Aliás, Eratóstenes serviu-
desse valor para efectuar o primeiro cálculo das dimensões do globo terrestr

106
CAPITULO V
O SACERDOTE

por Sergio Pernigotti


Por volta de 450 a. C., quando Heródoto se dirigiu ao Egipto para recolher o
material documental que utilizaria depois na compilação do il e de parte do ili livro
das suas Histórias, o país encontrava-se novamente, após o longo e glorioso parên­
teses da 26.® dinastia, sob o jugo de uma dominação estrangeira: há tempos — quase
um mês — que fazia parte, como satrapia, da imensa estrutura estatal que era o
Império Persa, Por isso, encontrara-se e encontrava-se ainda envolvido no gigan­
tesco conflito que opunha o Grande Rei ao mundo helénico e, pela primeira vez na
sua história, as relações com o Mediterrâneo oriental, grego e não grego, prevale­
ciam sobre as relações tradicionais com a área africana e do Próximo Oriente.
Porém, apesar da presença estrangeira e da ampliação dos horizontes políticos
e culturais, as estruturas essenciais do Estado, reconstruídas e solidamente implan­
tadas durante a dinastia saítica, tinham permanecido substancialmente intactas,
como intactas tinham permanecido as linhas ao longo das quais se desenrolava a
vida econômica e social, testadas por uma vivência histórica duas vezes milená-
ria. O governo do país estava confiado a um sátrapa, enquanto as decisões mais
importantes eram tomadas longe do Vale do Nilo, na corte do Grande Rei; toda­
via, quanto ao resto, após o parênteses tempestuoso da conquista e do breve rei­
nado de Cambises, nada parecia ter mudado na vida, no Egipto. Os templos esta­
vam abertos, o culto dos deuses não sofrerá qualquer perturbação, e a vida
intelectual prosseguia segundo os seus ritmos tradicionais, como muitos indícios
permitem supor, apesar da ausência de documentos explícitos; aliás, uma bela série
de esculturas demonstra que a actividade dos artistas egípcios quase não fora atin­
gida, e só em aspectos marginais, pela presença dos estrangeiros,
É por isso que o testemunho de Heródoto, pelo menos quando se refere a fac­
tos que foram objecto do seu conhecimento pessoal do país, é para nós precioso:
o olhar de um visitante estrangeiro aberto e culto, como era o historiador de Hali-
carnasso, permite-nos ver (e por vezes julgar) factos e situações que em muita da
documentação egípcia anterior estão apenas implícitos, porque eram tão óbvios
que parecia inútil falar deles com interlocutores que tinham todas as possibilida­
des de os conhecer.
Nas páginas que o historiador grego dedica ao Egipto, a religião e o sacerdó­
cio assumem uma importância notável; isso deriva certamente dos interesses do
narrador, mas também, e sobretudo, do peso específico que ambos tinham tido
na história do país e que o visitante estrangeiro soube detectar com muita acui­
dade. As observações e opiniões de Heródoto juntam-se às notícias contidas nas

109
páginas que, acerca dos mesmos assuntos, outros historiadores gregos dedicaram
em seguida ao Egipto, até se traçar um quadro, em certos aspectos excessivo e
unilateral, da devoção religiosa dos Egípcios e do seu clero.
Por outro lado, as notícias dos escritores clássicos adquirem para nós um
valor tanto maior quanto mais reticentes são as fontes egípcias: e o carácter forte­
mente conservador da sociedade egípcia torna provável que situações e comporta­
mentos que são testemunhados durante a época tardia até à época ptolomaica e
romana sejam de qualquer forma significativos de situações e comportamentos
de épocas muito mais remotas.
«[Os Egípcios] são extraordinariamente devotos, mais do que todos os
[outros] homens», afirma Hcródoto (2, 37), que, retomando mais adiante o
mesmo assunto, acrescenta que «respeitam de uma forma extraordinária os pre­
ceitos religiosos» (2, 65): e as outras fontes clássicas concordam totalmente com
a opinião do historiador grego. Aliás, mesmo hoje, quem visite o Vale do Nilo
não pode deixar de ficar surpreendido com o número e as dimensões dos edifícios
de culto que chegaram até aos nossos dias e que parecem testemunhar uma civili­
zação profundamente impregnada de valores religiosos. E, se é verdade que, em
relação à arquitectura civil, em tijolos crus, a arquitectura religiosa, em pedra, se
salvou graças à muito maior consistência do material de construção, também é
verdade que o que se conservou é apenas uma fracção — bastante pequena — da
enorme quantidade de edifícios religiosos que foram construídos no antigo
Egipto e que Heródoto pôde admirar durante a sua visita, quando os templos das
épocas ptolomaica e romana, os maiores e os melhor conservados de todos os que
hoje existem, ainda não tinham sido construídos.
Um país tão rico em edifícios religiosos — não havia divindade no imenso
pantheon egípcio que não tivesse o seu templo ou a sua capela no interior do tem­
plo dedicado a outras divindades — devia possuir um número de encarregados do
culto proporcional ao número e à importância desses edifícios; e é fácil pensar
que um clero numeroso e que se estendia de uma forma capilar por todo o país
deve ter desempenhado um papel importante na sociedade egípcia, embora a
escassez de documentos explícitos sugira uma certa cautela a esse respeito, espe­
cialmente no que se refere aos períodos mais antigos.
O facto de os templos constituírem também um ponto de referência impor­
tante no aspecto económico e cultural fez com que o sacerdócio tenha acabado
também por desempenhar um papel importante na vida política e moral do país.
A profunda consideração de que gozavam os sacerdotes egípcios junto dos escri­
tores clássicos, certamente exagerada quanto aos méritos que lhes eram atribuí­
dos, era porém uma consequência e um reflexo remoto de factos históricos e de
um prestígio que tinham amadurecido com o passar dos séculos e que tinham as
suas raízes num passado mais remoto.
Quando fala do sacerdote egípcio, Heródoto realça essencialmente hábitos:

«Os sacerdotes rapam o corpo todo de três em três dias, para que nenhum piolho
ou outra impureza exista neles enquanto servem os deuses. Os sacerdotes usam apenas
uma veste de linho e sandálias de papiro: não lhes é permitido usar roupas ou calçado

110
de outro material. Lavam-se duas vezes por dia e duas vezes por noite com água fria,
executam milhares de ritos religiosos, pode dizer-se, mas também gozam de grandes pri­
vilégios: não consomem nem gastam nenhum dos seus bens, mas ficam saciados com
os alimentos sagrados e todos os dias lhes cabe uma grande quantidade de carne de boi
e de ganso e também recebem vinho de uva, mas não podem comer peixe [...]. Não supor­
tam ver favas, porque as consideram um legume impuro. Não há um só sacerdote para
cada divindade, mas muitos, e um deles desempenha as funções de sumo sacerdote: e
quando um morre, o filho ocupa o seu lugar.» (Heródoto, 2, 37, 2-5.)

Atento exclusivamente aos valores espirituais do sacerdote egípcio está,


porém, Porfírio, que, muitos séculos depois de Heródoto, traça um retrato que se
caracteriza pela mais elevada espiritualidade:

«Com a contemplação, eles [os sacerdotes] conquistam o respeito, a segurança de


ânimo e a piedade; com a reflexão conquistam a ciência e com ambas chegam à prática
de costumes esotéricos e dignos do tempo passado. Porque o facto de estarem sempre
em contacto com a ciência e a inspiração divina exclui a avareza, reprime as paixões
e estimula a vitalidade da inteligência. São simples no viver e no vestir, praticam a tem­
perança, a austeridade, a justiça e o desinteresse. O seu passo é medido, o seu olhar
modesto e fixo e não se volta para todos os lados; o riso é raro e não passa de um sor­
riso, as suas mãos estão sempre ocultas sob as vestes [...]. Quanto ao vinho, alguns não
o bebem, outros bebem muito pouco, porque, segundo dizem, o vinho prejudica as
veias e, perturbando a cabeça, desvia-a da especulação.» (Porfírio, D e A b s t., 4, 6-8.)

Por conseguinte, uma figura de sacerdote que é a imagem de um admirável


equilíbrio entre a paz interior, fruto do contacto constante com o mundo divino
e da especulação sobre a ciência, e o decoro exterior que se concretiza na modera­
ção dos gestos, na simplicidade da vida, na honestidade e na discreção para com
os outros homens.
Não há motivos para se duvidar de que este quadro não correspondia, e talvez
mesmo em larga medida, à realidade, pelo menos na época em que foi traçado.
As fontes que possuímos confirmam que, mesmo em períodos mais antigos,
havia no Egipto sacerdotes cujo prestígio moral reproduzia de muito perto o
retrato ideal traçado por Porfírio: mas também há documentos que testemunham
que, muitas vezes, o tipo de vida do sacerdote egípcio estava muito longe desse
equilibrado controlo das paixões e desse constante contacto com o divino que
acima se delineou.
Na realidade, a figura do sacerdote egípcio parece tão solidamente enraizada
na realidade política e social do país que reflecte fielmente os seus vícios e as suas
virtudes, de tal forma que muitas vezes é difícil atribuir uns e outras ao facto de
serem praticados por um sacerdote ou à honestidade pessoal de quem estava,
porém, investido de um cargo sacerdotal. As expressões de elevada admiração
para com o sacerdócio egípcio que encontramos nas fontes clássicas reflectem, na
realidade, o estado mais tardio de uma tradição que se fora tornando cada vez
mais normativa e que, sob o formalismo do ritual, ocultava um progressivo dis­
tanciamento das razões mais profundas da vida religiosa, obstinando-se numa

111
série de comportamentos exteriores que, através do mistério em que se envolviam,
eram apenas o sintoma do esgotamento de uma experiência de muitos milênios e
agora pressionado pela urgência de novas exigências e de um novo pensamento
religioso mais rico e vital.
No coro dos louvores e dos tons de admiração, não faltaram as vozes discor­
dantes: bastará citar o tom depreciativo com que Juvenal, na Sátira 15, fala dos
cultos egípcios e dos seus adeptos:

«Todos, Volúsio de Bitínia, sabem que os cultos do Egipto são de loucos


adoradores de monstros.
Prostram-se diante de um crocodilo,
uma íbis repleta de serpentes
suscita-lhes temores sagrados.
Lá onde as mágicas harpas estremecem
por entre as fendas de Mémnon,
lá onde a antiga Tebas jaz
destruída, a estátua de ouro
de um macaco sagrado resplandece.
Uma cidade inteira venera os gatos,
outras, um peixe do Nilo ou um cão,
Diana não tem ninguém.
Cuidado se estragas um alho-porro,
ou metes uma cebola na boca.
Ó vós que nas vossas hortas
regais os deuses Celestes,
que santo povo sois!»

Há aqui uma inversão total do tom de respeitosa admiração que se detecta nas
páginas de Heródoto: não há dúvida de que isso é devido em grande parte à subs­
tancial incompreensão do mundo romano em relação à civilização egípcia.
Quando se analisa as fontes egípcias da época faraônica, surpreende o pouco
espaço dedicado à figura do sacerdote. Não é que faltem os documentos: pode até
dizer-se que são, sob um determinado ponto de vista, especialmente abundantes.
Há milhares e milhares de inscrições, gravadas em estátuas e esteias, pintadas ou
gravadas nas paredes dos túmulos e dos sarcófagos, conservadas em documentos
de todo o gênero, que contêm, entre os títulos dos seus proprietários, a menção
de cargos sacerdotais. Em alguns casos, trata-se de um único título que testemu­
nha que o seu titular era sacerdote de um só deus, mas deparamos muitas vezes
com longas sequências onde é possível distinguir as fases sucessivas de um cursus
honorum de carácter religioso e ao serviço de uma única divindade, ou ao serviço
de várias divindades adoradas no mesmo local, quando não no mesmo templo;
outras vezes, a personagem possuía uma rica série de títulos que se referiam ao
culto de várias divindades adoradas em diferentes locais, por vezes ligadas por uma
teia de relações de carácter religioso, algumas das quais de origem muito antiga.
Por fim, os cargos religiosos podiam estar associados a outros de carácter civil
ou mesmo militar e dispostos numa única sequência, de tal forma que não é pos-

112
sível avaliar as relações que existem entre uns e outros, se se dispunham numa
sequência cronológica, num crescendo de importância de acordo com um cursus
em que os cargos religiosos e os cargos civis se sucediam segundo uma ordem pre­
cisa, ou se alternavam sem qualquer ordem especial.
A análise de algumas dessas sequências, colhidas em períodos diferentes da
história egípcia, pode servir para esclarecer os termos do problema. Uma impor­
tante personagem chamada Hapuseneb, que viveu no tempo da rainha Hatshep-
sut (1479-1458 a. C.), usava os títulos de «nobre, príncipe, chanceler do rei do
Baixo Egipto, primeiro profeta de Ámon», a que se acrescentava, numa estátua
actualmente no Louvre, o cargo de «vizir»: a associação entre um alto cargo reli­
gioso («primeiro profeta de Ámon») e o mais importante dos cargos civis
(«vizir») faria pensar numa acumulação de poderes civis e religiosos nas mãos de
uma mesma pessoa, cujo peso na vida egípcia teria sido por isso bastante rele­
vante, e na existência de uma política destinada a impor uma espécie de controlo
directo sobre o poderoso sacerdócio de Ámon ou, pelo contrário, numa ingerên­
cia «clerical» na vida civil. No entanto, a nossa ignorância acerca da relação exis­
tente entre os dois cargos na carreira de Hapuseneb impede-nos de chegar a uma
conclusão muito precisa.
Várias centenas de anos depois, na época de transição entre a 25.^ e a 26.^ dinas­
tia, uma personagem chamada Montuemhat exercia em Tebas poderes quase reais;
ostenta uma série de títulos que já eram usados por Hapuseneb e que têm escasso
interesse histórico, como os de «nobre, príncipe, chanceler do rei do Baixo Egipto,
amigo único amado»: a estes juntam-se constantemente outros dois, «quarto pro­
feta de Ámon e príncipe da Cidade», um religioso e outro de carácter civil. O que
surpreende nesta série de títulos é que uma personagem da classe de Montuemhat
desempenhasse um cargo religioso tão modesto como o de «quarto profeta de
Ámon»: pode pensar-se que os cargos religiosos estavam, nessa época, tão desva­
lorizados que o «príncipe da Cidade» não tinha nenhum interesse em ornar-se com
um alto cargo religioso, mas também pode dar-se o caso de que tenha sido, pri­
meiro, «quarto profeta de Ámon» e que depois se tenha tornado «príncipe da
Cidade». Nesse caso, o primeiro título seria apenas a recordação da fase inicial
da sua carreira eclesiástica, a partir da qual se teria desenvolvido a carreira civil
mas que nunca teria sido totalmente abandonada, talvez por motivos de oportu­
nidade política e, aliás, o próprio Montuemhat tinha também o cargo de «supe­
rintendente dos profetas de todos os deuses do Alto Egipto», que lhe conferia o
poder de controlar todos os sacerdotes do Egipto meridional.
O grau de complexidade e também de pomposidade que podia atingir uma
carreira sacerdotal associada inextricavelmente a cargos civis e a fragmentos de
autobiografia ideal, é demonstrado pelos títulos de uma personagem egípcia cha­
mada Padineit, que viveu durante a 30.^ dinastia (380-342 a. C.) e cujo túmulo
foi descoberto em Sacará. Nas inscrições do seu sarcófago define-se assim:

«O devoto junto de Ptah-Sokari-Osíris, deus grande que reside em Shetat [e junto]


de Osíris que preside ao Ocidente, deus grande senhor de Rosetau, o nobre, o príncipe,
o amigo único, o amado, o sábio, aquele que oculta o seu pensamento, isento de

113
leviandade, aquele que executa os pedidos dos que fazem pedidos, aquele que é mais
prudente nas palavras do que todos os seus semelhantes, aquele que não revela indul­
gência para com o seus nobres e para com os seus grandes, aquele que é louvado pelos
deuses, aquele que goza de boa fama nos templos, aquele que faz o que é útil para
qualquer um, aquele que guia com os seus elogios quem obedece, o encarregado dos
domínios, o maior dos cinco, o encarregado da pacificação da terra inteira, aquele que
considera os países estrangeiros como o Egipto, os olhos do rei do Alto Egipto, os
ouvidos do rei do Baixo Egipto, confidente de Hórus no seu palácio, pai divino e
amado do deus, sacerdote-5ew, profeta de Ptah e servidor de Hórus u r-u a g e ty , sacer-
d o te -n a b dos deuses [...], profeta de Hórus m e n e k h -ib , profeta de Basket senhora de
Anekh-taui de Hutka-Ptah, profeta de [...] que preside a Scen-su, profeta de [Osíris]
m e r - ite f no templo de Háthor senhora de Mefekat, profeta de Osíris re s-u d ja e de Se-
shat, a grande que preside à capela de Pe e de Dep, profeta das estátuas do filho de
Rá, Amásis, de Pep e Dep, grande do mês das primeira e terceira fileiras de Pe e de
Dep, profeta de Atum que preside a Mer, profeta de Hórus de Pe e Dep, de Uadjet e
dos deuses de Pe e de Dep, grande governador de Neteret e profeta de Hórus de Pe,
governador das cidades, juiz da porta e vizir Padineit [...].»

Sequências desta amplitude não são de facto raras na época tardia e demons­
tram que certas carreiras políticas (como a de Padineit, que chegou a ser vizir)
estão solidamente implantadas em carreiras eclesiásticas anteriores, das quais
parecem brotar, embora as relações entre umas e outras fiquem por esclarecer.

Como se viu, os títulos dos sacerdotes e dos funcionários que também desem­
penharam cargos sacerdotais são fontes preciosas para a reconstituição do quadro
das estruturas hierárquicas dos sacerdotes e da administração civil, e para traçar
as linhas da topografia religiosa de certas regiões do antigo Egipto. Trata-se, po­
rém, de fontes que, sob outros aspectos, são insuficientes e enganadoras, dado
que reconstituem o esqueleto de uma estrutura privada de referências biográficas
que nos permitiriam reconstituir o status do sacerdote na sociedade egípcia e veri­
ficar, consequentemente, quanto da visão conservada pelos escritores clássicos
corresponde à realidade histórica das épocas anteriores.
Não é que faltem as autobiografias: com efeito, sabe-se bem que, em todas as
épocas da história egípcia, a autobiografia constituiu um gênero literário larga­
mente praticado. Como todos os gêneros literários tinha as suas regras e as suas
convenções, e exprimia-se através de uma linguagem repleta de fórmulas, que
reflectia mais as concepções morais e a visão do mundo da época histórica em
que se situava do que a biografia e o percurso espiritual da pessoa que narrava a
sua própria vida. Na melhor das hipóteses, o que chegou até nós é um retrato
muito idealizado, traçado com o recurso a topos comuns a milhares de outros
seus contemporâneos: na pior, trata-se de inutilidades formulares que servem,
quando muito, para revelar uma tendência espiritual para uma hierarquia de valo­
res geralmente aceite.
A relação estreita que existe entre cargos religiosos e cargos civis não nos per­
mite decidir o que, nessas páginas auto-elogiativas, se refere a uns ou a outros: é
muito provável que, na maioria dos casos, esse facto fosse irrelevante para os

114
Egípcios e que uma distinção entre os dois domínios, para nós bastante óbvia,
não fosse tão óbvia para eles, pelo menos no sentido em que uma separação entre
vida religiosa e estado laico não era sentida nos mesmos termos em que nós a
detectamos, antes da fase final da civilização egípcia.
Nesta situação, a figura do sacerdote só pode assumir conotações históricas
precisas pela descrição das funções que exercia no âmbito das estruturas religiosas
e graças aos poucos documentos literários e não literários que nos mostram figu­
ras de membros do clero que influem concretamente na história do seu tempo.
Diga-se também que a natureza particular das fontes de que dispomos torna difí­
cil traçar as linhas de uma evolução histórica do sacerdócio egípcio, de modo que,
na maioria dos casos, se fala dele como de uma realidade constantemente igual
a si mesma e que ao longo do tempo foi sofrendo apenas algumas ligeiras mudan­
ças, quase desprovidas de conotações cronológicas. Mesmo admitindo que,
devido ao conservadorismo da sociedade egípcia — que, interpretemo-la como a
interpretemos, é um dado certo da sua história — pouco tenha mudado ao longo
dos milênios, não há dúvida que uma boa parte desta visão das coisas fica a de­
ver-se ao carácter extremamente reticente da documentação de que dispomos.
Podemos encontrar um exemplo do que afirmámos no excerto de Heródoto
acima citado, onde se afirma claramente o carácter hereditário dos cargos sacer­
dotais no antigo Egipto: «quando um [sacerdote] morre “afirma o historiador
grego” o filho ocupa o seu cargo». A informação, nos termos em que foi trans­
mitida, é provavelmente verídica para a época em que Heródoto visitou o país;
além disso, a hereditariedade dos cargos religiosos é um facto incontestável na
época greco-romana em geral, de modo a justificar até certo ponto a imagem,
sob alguns aspectos seguramente falsa, de um Egipto dividido em classes estan­
ques. O problema é saber qual era a situação nas épocas anteriores e quando se
verificou essa esclerose progressiva das estruturas sociais que conduziu à heredita­
riedade.
Sabemos que, em teoria, o ingresso no mundo do sacerdócio só podia verifi­
car-se por nomeação do soberano (ou de um seu delegado) e que, aliás, na socie­
dade egípcia, houve sempre a tendência para tornar os cargos, religiosos ou não
religiosos, hereditários. Nas autobiografias de sacerdotes e de funcionários surge
amiúde o desejo de que o filho possa ocupar o cargo que fora do pai, quando este
deixar o ofício: não há dúvida de que esta tendência para tornar os cargos efecti-
vamente hereditários, mantendo-os no seio de um mesmo âmbito familiar, podia
ser anulada pela intervenção pessoal do soberano, que em certos casos nomeava
pessoalmente o sacerdote (em geral, de uma classe mais elevada) por razões de
oportunidade política, por exemplo, para recompensar com uma rica prebenda
um funcionário devotado, ou por razões de política geral, como a necessidade de
controlar o clero de um templo particularmente importante.
No entanto, este quadro, formalmente impecável, complica-se pela circunstân­
cia, igualmente provada, de os herdeiros poderem reivindicar — e reivindicarem
de facto — cargos sacerdotais desempenhados pelo pai ou por outros antepassa­
dos e que ilegitimamente lhes tinham sido subtraídos por pessoas estranhas à
sucessão hereditária: tudo isso serviria para demonstrar que, num dado momento

115
histórico, a situação de facto, que permitia a hereditariedade dos cargos e que
tinha por único limite a intervenção correctora do soberano, se transformou
numa situação de direito em que o faraó talvez não pudesse fazer mais do que
intervir como juiz para restabelecer em última instância os direitos violados dos
herdeiros legítimos. O estado das fontes não nos permite porém considerar como
certa esta nossa reconstituição, nem nos permite formular uma cronologia plausí­
vel, porque se baseia em provas indirectas e praticamente fora de um quadro cro­
nológico credível, pelo menos no que respeita à época anterior à era greco-ro-
mana.

Para se compreender o papel e as funções que o sacerdote exercia dentro da


sociedade de que fazia parte, é necessário ter em conta algumas das característi­
cas gerais da religião egípcia e da posição que o soberano ocupava no seio dessa
sociedade e da estrutura constitucional do país.
A observação de Heródoto, segundo o qual, no Egipto, não havia um único
sacerdote para cada deus, mas que, pelo contrário, havia muitos e um único chefe
de todos eles, detecta com muita precisão uma das características essenciais da
organização do sacerdócio no antigo Egipto, precisamente na medida em que ela
contrastava de uma forma evidente com o que se passava no mundo helénico.
O sacerdote egípcio, no preciso momento em que entrava ao serviço de uma
divindade, tornava-se parte de uma estrutura organizada segundo uma hierarquia
rígida em cujo vértice estava um «sumo sacerdote», cujo cargo podia assumir
nomes diferentes de acordo com os lugares e as divindades mas que, em todo o
caso, constituía o ponto de chegada dessa hierarquia. A carreira sacerdotal podia
começar num ponto qualquer da estrutura hierárquica; a partir do grau inferior,
por exemplo, e passando depois, gradualmente, para os graus intermédios até
atingir o vértice, ou a partir de qualquer um dos graus intermédios ou mesmo do
grau mais elevado.
Fosse qual fosse, na realidade, o destino do sacerdote que passasse a fazer
parte dessa estrutura — quer percorresse todos os graus até ao vértice ou perma­
necesse durante toda a vida no grau mais baixo da hierarquia ou num dos graus
intermédios — o facto é que o sacerdócio, visto do exterior, se apresentava como
uma estrutura complexa e totalmente autónoma em relação a todas as outras.
Assim, sob o ponto de vista organizativo, cada templo, grande ou pequeno, era
uma espécie de igreja autocéfala, hierarquicamente independente de outros secto­
res do clero, a não ser que isso estivesse expressamente previsto e, por assim dizer,
codificado.
A consequência de tudo isto é que não se pode falar de modo algum de um
sacerdócio no antigo Egipto, mas de sacerdotes, cada um dos quais era total­
mente independente de todos os outros; portanto, não tem qualquer sentido, nem
no plano histórico-religioso nem no plano das relações políticas, apresentar o
clero egípcio como uma realidade distinta e contraposta ao poder civil: quando
muito, há casos individuais em que um determinado sector do clero se opôs ao
poder civil — ou esteve de acordo com ele. Por outras palavras, no antigo Egipto,
nunca houve nada de semelhante àquilo que pode ser uma igreja no sentido

116
moderno do termo e, consequentemente, nada de semelhante aos conflitos entre
Igreja e Estados nacionais de que a história do mundo ocidental foi, por várias
vezes, testemunha, nem nada de semelhante a um Estado teocrático em que uma
doutrina religiosa se tenha convertido em prática religiosa e de governo, através
das estruturas estatais.
No Egipto, era-se sacerdote de um deus que se tornara objecto de um culto
num determinado templo situado numa determinada localidade: isso explica por
que motivo, nas fontes egípcias, os títulos sacerdotais eram sempre acompanha­
dos pela indicação do deus a que se referiam e as indicações genéricas do tipo
«sacerdote», sem qualquer outra especificação, eram bastante raras. É certo que
se podia ser sacerdote de várias divindades — adoradas também em diferentes
localidades — mas isso apenas revelava que se pertencia simultaneamente a orga­
nizações sacerdotais paralelas, o que é confirmado pelo facto de o grau hierár­
quico atingido poder ser diferente em relação às várias divindades, mesmo que
fossem objecto de culto no interior de um mesmo templo.
Esta situação reflecte de perto as características originais da religião egípcia e
as modalidades da sua evolução histórica. No antigo Egipto, as divindades não
estavam organizadas segundo um sistema hierárquico coerente: cada centro com
uma certa importância tinha as suas divindades, que não estavam ligadas às
divindades dos centros vizinhos a não ser por relações tardias de sincretismo ou
de subordinação teológica, que muitas vezes reflectem apenas situações de carác-
ter político. As divindades do antigo Egipto foram, durante toda a longa história
do país, divindades locais, no sentido em que cada local — cidade ou aldeia —
tinha as suas, cujo culto remontava em muitos casos a tempos muito remotos da
pré-história ou da proto-história e tivera uma evolução paralela à das divindades
dos centros vizinhos.
Nas várias fases da agregação territorial que, através dos séculos, foi condu­
zindo a formas cada vez mais complexas de organização estatal até à unificação
do país no início da época histórica, por volta de 3000 a. C., os deuses que eram
objecto de culto em cada um dos centros populacionais não se ordenaram hierar­
quicamente numa relação de subordinação com os dos centros que iam consti­
tuindo os pontos de referência no processo de concretização da unidade nacional;
pelo contrário, mantiveram a sua independência. Assim nasceu um sistema poli-
cêntrico que explica bastante bem o exacerbado politeísmo da religião egípcia,
que, em última análise, surge não como uma coerente explicação do universo em
nome de um único princípio criador mas como a soma de um número extraordi­
nariamente grande de religiões paralelas, só atenuado pela união das divindades
em famílias — tríades constituídas por pai, mãe e filho/a do casal divino —,
pelas especulações sincretistas de grandes centros de cultura religiosa e pela pre­
dominância de facto das divindades dinásticas em todo o território do país.
A pluralidade dos centros religiosos traduziu-se na pluralidade óbvia dos
sacerdotes: a existência de divindades «imperiais», aquelas que em momentos his­
tóricos determinados se tornaram divindades pan-egípcias devido também a uma
modesta correcção do sistema em termos sincréticos — a este respeito, o caso de
Ámon-Rá, a partir da 18.® dinastia, é emblemático —, não modificou substan-

117
cialmente a situação acima delineada, porque não deu lugar a sacerdócios
«nacionais», mas apenas a um aumento, muitas vezes enorme, da importância de
um clero local — no caso acima citado, o tebano — talvez acompanhado pela
difusão do culto dessa divindade noutros centros, com a criação de outros cultos
específicos locais, com outros sacerdotes certamente autónomos e paralelos em
relação ao culto originário.

Esta situação de extrema fragmentação reflecte o que se passa com a própria


pessoa do soberano. Desde a época mais remota da história egípcia, o faraó
ostentava a dupla designação de rei do Alto e do Baixo Egipto; no dealbar do ter­
ceiro milênio a. C., o processo de unificação entre o Norte e o Sul do Egipto
tinha chegado a uma espécie de união pessoal entre os dois Estados em que o país
estava dividido no período pré-dinástico. Embora a unificação se tenha concreti­
zado graças a uma vitória do Sul sobre o Norte, o primeiro soberano da época
dinástica — o Ménes da tradição clássica e também das fontes egípcias — não
englobara o Norte no reino do Sul, juntara as duas coroas, apresentando-se como
aquele que era designado, cumulativamente, por rei do Norte e rei do Sul.
A garantia da indissolubilidade do vínculo existente entre os dois reinos foi
reforçada com a transferência da pessoa do soberano deste mundo para o mundo
dos deuses. Por mais que se tenha autorizadamente duvidado do carácter divino
da realeza faraônica, não parece haver dúvidas de que, pelo menos, no plano do
dogma, o soberano era considerado como uma divindade investida pro tempore
da tarefa de governar o Egipto e destinada, após a sua morte, a regressar ao céu,
donde descera, e a reunir-se aos seus irmãos, convertendo-se numa das estrelas
imorredouras e seguindo assim o seu destino de divindade astral.
Enquanto participante da natureza dos deuses, ele próprio deus, o soberano
tinha uma relação privilegiada, se não exclusiva, com os deuses: competia-lhe
garantir a consonância entre a ordem que regia a vida do universo e a parte do
criado, o Egipto, cujo governo lhe fora confiado, que os Egípcios definiam pelo
termo de maat, palavra de muitos significados que, nesta acepção, exprimia pre­
cisamente o equilíbrio entre o mundo visível e o supermundo onde reinam os
deuses.
O elemento central desse acordo era a benevolência da enorme comunidade
das divindades para com o Egipto: era tarefa do soberano garanti-la ao país que
governava, através dos actos de culto e da apresentação das oferendas nos tem­
plos. Como pertencia simultaneamente ao mundo dos homens e ao mundo dos
deuses, o soberano era o único sacerdote de que o país dispunha, o único verda­
deiro titular da função sacerdotal; pela sua natureza era o supremo sacerdote de
todas as divindades e, tal como na sua pessoa se fundiam a realeza do Sul e do
Norte, também nele se unificava a enorme variedade dos cultos. Cada sacerdócio
culminava na pessoa do faraó: de facto, o soberano delegava a sua função no
sumo sacerdote de cada organização templar, que, na realidade, não passava, por­
tanto, de um mero substituto do rei. Isso explica o facto de o soberano ser o único
que podia não só nomear mas também destituir as pessoas por ele designadas
para o cargo, pondo inclusivamente fim à sucessão de pais para filhos.

118
Que o culto era uma prerrogativa do soberano é aliás testemunhado pelas
reproduções gravadas ou esculpidas nas paredes dos templos. Nessas reproduções,
a relação entre o mundo dos deuses e o dos homens é atribuída quase exclusiva­
mente ao faraó e, dentro de limites bastante mais modestos, a outros membros da
família real e, em primeiro lugar, à rainha; em cenas que se repetem com poucas
variantes nas várias localidades e nos vários templos, é o rei quem executa os
actos de culto aos deuses, quem lhes estende as oferendas mais variadas e que, em
troca, recebe deles a protecção e a benevolência que se irão reflectir em todo o
Egipto.
Na época de Amarna (1353-1336 a. C.), essa relação exclusiva entre o mundo
divino e o humano de que o faraó se tornava intérprete acentua-se ainda mais
pela eliminação nos monumentos privados, tais como as esteias e as cenas repro­
duzidas nos túmulos, de qualquer acto de culto que não tivesse como protago­
nista o soberano e os outros membros da sua família, com uma reafirmação
muito nítida, mesmo no plano figurativo, do princípio de que a função sacerdotal
era uma prerrogativa real.
As reproduções do templo de Abu Simbel, que representavam Ramsés II
(1279-1213 a. C.) fazendo oferendas a si próprio como deus, sentado como quarto
elemento na companhia da tríade a quem o edifício fora dedicado, são uma espé­
cie de sublimação do intercâmbio e da constante interferência entre o mundo dos
homens e o dos deuses, que o faraó protagonizava.
Portanto, e resumindo, o conjunto dos dados de que dispomos demonstra que
0 sacerdócio era um privilégio do soberano e constituía um dos aspectos concre­
tos da função do rei, a par do governo do Egipto, ambos tão estreitamente liga­
dos que podemos considerá-los apenas como faces da mesma medalha. O facto
de o soberano delegar nos sacerdotes as suas funções cultuais fazia com que os
membros do clero não se distinguissem muito dos funcionários do Estado, a não
ser no domínio específico das funções que exerciam: sob certos aspectos, o seu
serviço também parecia um serviço civil, na medida em que era exercido para o
Estado e pelo Estado, em cuja estrutura os sacerdotes participavam, em última
análise, como especialistas. Isso também explica o motivo por que, em dados
momentos históricos, o soberano confiou ao templo importantes funções econó­
micas. Nesses casos, não se tratava de transferência de poderes do Estado para
uma estrutura que era autónoma e se lhe contrapunha, mas de um simples facto
organizativo dentro das estruturas estatais.
Só quando o sacerdócio (ou melhor, um sacerdócio) teve tendência para se
sobrepor ao poder real e para lhe subtrair parte das suas prerrogativas é que o sis­
tema entrou em crise e deu lugar, durante o reinado de Amenófis IV/Akhenáten
(1353-1336 a.C.), a um conflito aberto e declarado entre a monarquia e o clero do
templo de Ámon-Rá em Tebas, conflito que culminará, em finais da 20.® dinastia
(1188-1069 a. C.), com a subida ao trono de Herihor, primeiro profeta de Ámon.
No entanto, embora importante, este conflito não passou de um episódio
numa história de vários milénios, em que a função do soberano como única auto­
ridade legítima para manter as relações com o mundo dos deuses nunca fora
seriamente posta em causa.

119
o templo era o lugar privilegiado onde se exercia a função sacerdotal. Na sua
qualidade de delegado do soberano, de técnico especialista nas relações com o
divino, o sacerdote só se qualificava como tal no interior do templo: não parece
que, fora dele, se lhe exigisse uma conduta especial de vida, nem que fosse sujeito
a obrigações de qualquer género respeitantes, por exemplo, à sua casa ou às suas
roupas; por outro lado, o facto de pertencer a uma organização sacerdotal não
implicava necessariamente uma preparação específica de carácter teológico ou
um noviciado feito no sentido de um progressivo aperfeiçoamento moral.
O carácter de serviço de que o sacerdócio egípcio se revestia excluía os seus
membros das actividades não estreitamente ligadas ao culto: a fama de que pos
suíam uma ciência requintada c, em certos aspeetos, misteriosa e de que tinham
conseguido um domínio total das paixões, que se traduzia no decoro do seu com
portamento, que é descrito, com termos de grande admiração, nos textos dos
escritores clássicos, é fruto de situações da época tardia, amadurecidas durante os
últimos tempos do Egipto faraónico ou na época ptolomaica e romana, mas que
não reflectem, pelo menos tanto quanto se pode deduzir da documentação que
possuímos, a situação nos períodos anteriores, quando o sacerdote podia ser uma
pessoa de elevado prestígio moral e capaz de elevadas especulações de ordem teo
lógica, sem que isso coincidisse, necessariamente, com o facto de estar ao serviço
de uma divindade.
O carácter provisório de uma parte, pelo menos, dos cargos sacerdotais e a
ausência de exclusividade — no sentido em que numa mesma pessoa se podiam
acumular cargos sacerdotais e cargos administrativos civis — faziam com que o
sacerdote não tivesse à sua frente uma vida diferente da vida normal de todos os
outros egípcios, e como o Estado religioso e Estado laico, para nos exprimirmos
em termos modernos, constituíam situações abertas e perfeitamente intermutá-
veis, era possível passar, sem qualquer dificuldade, da vida sacerdotal para a vida
civil. Quando deixava o cargo e o serviço e voltava a inserir-se no dia-a-dia da
vida civil, o sacerdote egípcio não devia possuir nenhuma característica que per
mitisse distingui-lo da variegada multidão dos funcionários de grau mais elevado
ou de maior ou menor autoridade.
Por conseguinte, só a actividade desenvolvida no interior do templo é que
caracterizava o sacerdote como tal e era a própria estrutura dos edifícios de culto
que, de certa forma, condicionava a natureza dos actos que eram executados no
seu interior.
O templo egípcio, tal como o conhecemos a partir do II milénio até à época
ptolomaica e romana, é um edifício com uma uma estrutura standard que não
tem muito em conta as suas dimensões: seja grande (por vezes, enorme) ou
pequeno, possuiu sempre os mesmos elementos, que se sucedem segundo um
esquema que comporta muito poucas possibilidades de variações. O templo si
tua-se no interior de uma ampla zona delimitada por uma muralha de tijolos
crus, de dimensões por vezes imponentes, que podia rodear também outros edifí
cios de culto de menor importância e uma série de outras construções, também
em tijolos crus, que albergavam os «serviços», lojas e casas para os sacerdotes e
os outros encarregados do culto, guardas e pessoal administrativo.

120
o templo propriamente dito estendia-se sobretudo em comprimento, com
uma estrutura em «óculo»; passando de uma para outra das secções que consti­
tuíam essa estrutura, o tecto ia baixando progressivamente e ia-se notando uma
ligeira elevação do pavimento, até se chegar à capela onde estava guardado o
tabernáculo que albergava a imagem da divindade a quem o templo era dedicado.
A consequência mais relevante desta estrutura era o facto de que, à medida que
se ia penetrando no templo, depois de se ter entrado pela porta monumental, pas-
sava-se da plena luz do Sol do pátio ao ar livre para a penumbra da sala hipóstila
e para a escuridão cada vez mais densa que envolvia o sancta sanctorum e as salas
que, eventualmente, o rodeavam.
Pela sua própria natureza, uma estrutura deste gênero destina-se a um culto
reservado exclusivamente aos sacerdotes, com a exclusão quase total dos fiéis.
O templo era a casa onde se conservava uma imagem que era uma manifestação
do deus e não se destinava a acolher mais ninguém senão aqueles que estavam
encarregados do culto. Visto do exterior, rodeado por um poderoso muro e mar­
cado pelas grandes muralhas de pedra que são as pilastras, o templo egípcio asse-
melha-se muito a uma fortificação; no seu interior residia a divindade a que era
dedicado, que aí habitava com a sua família e que assim era protegida tanto das
forças hostis que eventualmente a quisessem agredir como dos olhares indiscretos
daqueles que não estavam ao seu serviço. O templo era a casa do deus, não dos
que, por via de regra, estavam excluídos da visão da estátua divina. Era o deus
quem, em determinadas ocasiões, tais como as festas ou as procissões periódicas,
abandonava provisoriamente a sua morada e se mostrava aos fiéis.
Nestas condições, é evidente que o acesso ao templo estava reservado apenas
ao pessoal especializado, os sacerdotes e os encarregados dos serviços auxiliares:
todos os outros estavam rigorosamente excluídos do recinto sagrado, onde só
podiam entrar em certas circunstâncias. O próprio sacerdote não podia proceder
ao serviço divino a não ser em determinadas condições: só podia ter acesso ao
sancta sanctorum depois de ter cumprido algumas prescrições rituais, a primeira
das quais era a purificação da sua pessoa.
Uma excepção ao quadro acima descrito, em que o templo é descrito como
morada da divindade e como lugar onde da luz plena do Sol se penetra na escuri­
dão que anuncia a presença do deus, eram os templos solares, ou seja, os templos
onde se adorava o Sol, considerado no seu carácter físico de astro que brilha nas
alturas. É evidente que não teria qualquer sentido adorar o Sol num templo de tipo
tradicional como o acima descrito, onde a escuridão era a via que tornava possível
0 encontro entre os oficiantes e o seu deus: o deus-Sol atravessa o céu todos os dias,
e todos os homens, e não só os sacerdotes encarregados do seu culto, o podem ver.
Revela-se aos homens — e fá-lo diariamente — na plenitude da luz diurna:

«Ergues-te belo no horizonte do céu


Áten vivo que deste início à vida:
e quando surges do horizonte oriental,
enches a terra com a tua beleza;
és belo, grande, resplandecente, e pairas sobre todas as terras»,

121
cantava o faraó Amenófis IV/Akhenáten dirigindo-se ao seu deus, Áten, que não
era mais do que uma das formas que, para os Egípcios, o Sol podia assumir, o
disco solar considerado na sua fisicidade de astro resplandecente no céu, no cume
do seu percurso celeste. Por tudo isto, o templo solar adoptou uma estrutura
totalmente diferente da dos templos destinados ao culto das outras divindades:
um amplo pátio a céu aberto, em cujo centro se encontrava um altar sobre o qual
eram depositadas as oferendas destinadas à divindade e que, eventualmente, tam­
bém podia albergar um símbolo solar como o obelisco.
É em Akhet-Aten, a capital de Akhenáten, que existia no local da actual Tell
el-Amarna, que encontramos um exemplo muito belo de uma estrutura deste tipo.
A planta do templo de Áten é tão simples como a que acabamos de descrvever,
sem o obelisco que existia nos templos solares da 5.® dinastia em Abu Ghurab,
perto de Sacará. Há reproduções que nos mostram o soberano oficiando pessoal­
mente as cerimónias do culto divino, reafirmando assim solenemente que o sacer­
dócio é, acima de tudo, uma função reservada ao faraó. Mas também neste caso
teremos de admitir que, quando se tratava de templos construídos fora da capital,
Amenófis IV/Akhenáten delegava as suas funções em sacerdotes, que eram res­
ponsáveis por cada um deles.
Como se viu acima, ser-se sacerdote de uma determinada divindade significa
ingressar numa hierarquia, cuja estrutura conhecemos bem, pelo menos no que se
refere aos templos mais importantes. Quanto aos outros, de dimensões mais
modestas, há vários indícios — por exemplo, sequências de títulos de personali­
dades que desempenharam cargos sacerdotais — que demonstram que a sua orga­
nização era idêntica à dos templos maiores, dos quais se distinguiam não por
uma estrutura diferente mas pelo número das pessoas que a constituíam.
Entre o numeroso pessoal que prestava serviço num templo, terá de se
começar por fazer uma distinção entre aqueles que faziam parte da hierarquia
sacerdotal propriamente dita, os «sacerdotes», e aqueles que constituíam o pes­
soal administrativo e técnico do templo, que, por sua vez, estavam organizados
numa estrutura paralela à anterior: tanto quanto é possível julgar a partir da
documentação de que dispomos, tratava-se de duas estruturas abertas, já que o
facto de se pertencer a uma não impedia que se pertencesse à outra. Por outras
palavras, numa mesma pessoa podiam acumular-se as duas qualidades de sacer­
dote e de funcionário administrativo: em todo o caso, a passagem de uma das
carreiras para a outra parece ser normal, até porque a distinção que fazemos
entre elas talvez seja, em certa medida, artificial, visto tratar-se de serviços
prestados à divindade, um no âmbito do ritual religioso, o outro na administra­
ção dos bens que pertenciam ao deus e que permitiam o funcionamento do
templo.
Na hierarquia sacerdotal propriamente dita existe uma distinção muito nítida
entre o alto clero, que era responsável pelo culto e ao qual eram atribuídàs fun­
ções directivas e disciplinares, e o baixo clero, a quem competiam apenas funções
auxiliares: o que havia em comum entre eles era a necessidade da purificação
ritual, a designação de uab(w'b), «puro», que era a conotação mais autêntica, o
verdadeiro denominador comum que existia entre os vários cargos sacerdotais:

122
não é por acaso que, em copta, a palavra oueb, que deriva da mesma raiz,
designa o «padre» cristão.
No vértice da estrutura sacerdotal do templo havia o «primeiro profeta», cuja
importância era directamente proporcional à do seu deus: o primeiro profeta de
divindades como Ámon, Ptah ou Rá, era uma personagem de alto nível, que,
pelo menos em certos períodos históricos, aliava ao prestígio religioso do seu
cargo um peso político de primeira ordem, ao ponto de, como se viu no caso do
sumo sacerdote de Ámon-Rá, em Tebas, constituir uma espécie de oposição ao
poder político personificado no soberano. Segundo a terminologia imprópria das
fontes gregas, a designação de «primeiro profeta» é a tradução da expressão egíp­
cia hm-ntr tpy, «primeiro servidor do deus», que traduz muito melhor a caracte­
rística de serviço que se destacou por várias vezes como típica do sacerdócio egíp­
cio: o nosso «sumo sacerdote», embora não reflicta exactamente a expressão egíp­
cia, aproxima-se mais da realidade dos factos.
Havia expressões especiais para designar o primeiro profeta de certas divin­
dades, expressões essas que traduziam mais a função que ele tinha exercido,
muitas vezes numa antiguidade remota, no culto do deus, do que a sua posição
hierárquica. Se o poderosíssimo chefe do sacerdócio de Ámon em Tebas osten­
tava o título simples de «primeiro profeta de Ámon», o sumo sacerdote de
Heliópolis era denominado «o grande das visões de Rá», que aludia ao seu pri­
vilégio de ver directamente o deus, ao passo que o de Ptah, em Mênfis, seu
igual em categoria e importância histórico-religiosa, assumia o curioso título de
«grande dos artesãos», porque as artes estavam sob a protecção do deus-
-demiurgo Ptah e o seu templo era considerado como uma espécie de oficina
onde os sacerdotes eram os «artesãos» e o sumo sacerdote era, consequente­
mente, o chefe dos artesãos. Noutros casos ainda, o sumo sacerdote era desig­
nado por um dos epítetos da divindade de que era servidor, que assim passava
do deus para o seu sacerdote específico: por exemplo, o célebre Potasimto de
Pharbaithos, um importante general que combateu durante o reinado de Psamé-
tico II (595-589 a. C.), usava o título sacerdotal de «grande combatente, senhor
do triunfo», que começou por ser apenas um epíteto do deus Hormerti, divin­
dade específica da sua cidade de origem.
De acordo com a hierarquia, por ordem descendente, a seguir ao primeiro
havia o segundo, o terceiro e o quarto profeta: não sabemos exactamente em que
é que as suas funções se diferenciavam das do sumo sacerdote, embora pareça
muito provável que o segundo profeta tivesse funções de vigário do primeiro.
O que é certo é que cada um desses cargos era confiado a um único titular: por
outras palavras, tratava-se de sacerdócios individuais, não de organismos cole­
giais. O segundo, o terceiro e o quarto profetas deviam exercer funções directivas
complementares das do sumo sacerdote: mesmo o grau mais baixo, o de «quarto
profeta», tinha uma certa importância, já que o célebre Montuemhat que, como
se viu, exerceu funções muito idênticas às do rei no nomos tebano, entre a 25.® e
a 26.® dinastias, ostentava os títulos de «quarto profeta de Ámon e príncipe da
cidade [=Tebas]». Se esta estranha associação entre um título sacerdotal que se
situa apenas no quarto lugar da hierarquia sacerdotal e um cargo civil tão impor-

123
tante indica, por um lado, como acima se disse, que o sacerdócio de Ámon per­
dera muita da sua influência sobre o poder político, por outro lado, confirma que
mesmo o quarto profeta devia continuar a ter um certo prestígio, porque não é
provável que uma personalidade da categoria de Montuemhat se contentasse com
um cargo religioso excessivamente modesto.
Abaixo destes, havia a categoria dos sacerdotes vulgares, em egípcio hmw-nír,
os «servidores do deus», cujo número podia ser relativamente elevado e variava
decerto em função das dimensões e da importância do templo. Estavam organiza­
dos em grupos que, utilizando a palavra grega, designam por phylài, em número
de quatro até à época ptolomaica, altura em foi criado mais um. Ao contrário
dos graus mais elevados da hierarquia, tratava-se de sacerdotes temporários que
prestavam o seu serviço por turnos mensais, o que, tendo em conta que havia
quatro phylài, significava que cada um deles só estava empenhado no serviço
divino durante três meses por ano. É provável que, quando as phylài passaram a
ser cinco, tenha havido uma reorganização geral dos turnos de serviço, que muito
possivelmente foram reduzidos.
À cabeça desta categoria de sacerdotes estava um «superintendente dos profe­
tas» que tinha, evidentemente, funções directivas, embora não saibamos quais
seriam as suas relações com o primeiro profeta; em todo o caso, era auxiliado por
um «inspector dos profetas», cujas funções nos são reveladas pelo próprio título,
e por um «profeta suplente», um «adjunto» que entrava ao serviço em caso de
impedimento do titular. Cada uma das phylài tinha também um chefe, um
«grande da phylè», ou, como diziam os gregos, um «filarca».
Logo a seguir aos profetas, havia um grupo de sacerdotes que adoptavam o
nome de «pais do deus» e cujas funções são difíceis de definir: o único dado
seguro é que esta categoria também pertencia à camada mais alta do clero egíp­
cio, como demonstram inúmeras sequências de cargos religiosos, em que os «pais
do deus» são constantemente mencionados a seguir aos profetas. O título de
«encarregado dos mistérios» também designa um sacerdote de elevada categoria,
mas, como no caso anterior, não sabemos dizer qual era o papel que desempe­
nhava na hierarquia sacerdotal: entre as hipóteses formuladas, há a que refere que
ele estaria encarregado de oficiar as cerimónias que eram celebradas perante gru­
pos restritos de sacerdotes ou mesmo na presença do soberano, quando este visi­
tava um templo e participava nos ritos que aí eram celebrados.
Havia depois a vasta camada dos sacerdotes de baixa categoria. Entre eles, o
grupo mais vasto era constituído pelos «sacerdotes-wa^», isto é, pelos «sacerdo­
tes-puros», que se caracterizavam apenas pelo facto de terem procedido à purifi­
cação ritual, e que, como os profetas, também se podiam organizar em quatro
phylài, quando o seu número era suficientemente grande para o justificar. Entre
eles também havia, claro está, uma hierarquia e tinham a seu cargo uma longa
série de tarefas não propriamente cultuais, que podiam abranger as actividades
mais diversas, e algumas mesmo de carácter material, como transportar a barca
divina durante as procissões, mas que exigiam um mínimo de conhecimentos rituais.
Neste sector da hierarquia havia depois os «sacerdotes leitores», a quem era
confiada a leitura dos textos sagrados durante as cerimónias religiosas, e que por

124
vezes associavam o título de «leitor» ao de «mago» {hry-tp, em egípcio), o que
demonstra a estreita relação que existia entre as duas funções. O «leitor e mago»
tinha um papel que, em certas circunstâncias, podia ser relevante. Para se com­
preender a importância que um «sacerdote leitor e mago» podia assumir na
sociedade egípcia antiga bastará pensar que o túmulo mais amplo de toda a
necrópole tebana foi construído por um tal Petamenófis que, no início da 26.®
dinastia (664-525 a. C.), desempenhou esse cargo junto da corte.
A série dos cargos inferiores podia depois compreender sacerdotes com fun­
ções nem sempre definíveis, como aqueles que, em grego, se designam por pasto-
phòroi, a quem cabia transportar os objectos necessários ao culto, ou aqueles a
quem competia seleccionar os animais destinados ao sacrifício e abatê-los e, por
fim, os onirocritai, cuja função era interpretar os sonhos.
Esta multidão tão variada completava-se com os chamados sacerdotes-horá­
rios, a quem competia, provavelmente, observar os astros e determinar o
momento preciso em que deviam ter início os actos do culto, e os horoskòpoi,
cuja tarefa específica era assinalar no calendário os dias fastos e os dias nefastos.
O clero de que se falou até agora é um clero exclusivamente masculino; toda­
via, sabe-se que, no antigo Egipto e desde as épocas mais remotas da sua história,
também houve um clero feminino, que não teve, porém, para além de algumas
excepções esporádicas, uma importância comparável à do masculino e acerca do
qual estamos bastante menos informados. Utilizando uma expressão largamente
abrangente, poderemos dizer que, nos templos egípcios, as mulheres tinham uma
função que grosso modo se podia comparar à do pessoal especializado, quer por
lhes estarem destinados papéis tipicamente femininos, quer por executarem tare­
fas que exigiam uma especialização.
Sob o primeiro ponto de vista, o sacerdócio feminino típico era aquele que
adoptava o nome de «esposa do deus», que designava uma sacerdotisa destinada
a unir-se com a divindade, obviamente masculina, que habitava o templo. Em
Tebas, na época tardia, a «esposa do deus» teve uma importância igual e, em cer­
tos momentos, mesmo superior à do «primeiro profeta de Ámon», de tal forma
que esse cargo foi reservado apenas a filhas de soberanos: a chegada a Tebas, em
656 a. C., da filha de Psamético I, Nitócris, que levava no seu séquito um rico
cortejo de funcionários saítas e estava prestes a suceder à sacerdotisa da época,
Shepenupet II, constituiu um dos acontecimentos mais memoráveis da história
egípcia durante a 26.® dinastia. Por conseguinte, a missão da «esposa» não se
limitava à união mística com o seu deus, envolvendo interesses políticos e econó­
micos muito mais concretos, como demonstra a multidão de funcionários que
estavam ao serviço dessas princesas.
Para além da «esposa», o templo também podia ter um harém constituído
pelas «concubinas» do deus, o que revela um paralelismo evidente entre as estru­
turas do templo e as do palácio real: o faraó também possuía uma esposa e um
harém. Note-se, porém, que no antigo Egipto não há nada que se assemelhe à
prostituição sagrada: a relação entre a esposa e as concubinas, por um lado, e o
deus, por outro, verificava-se num plano meramente espiritual, porque a proibi­
ção de praticar actos sexuais nos templos era absoluta e não admitia derrogações

125
nenhumas, como é aliás realçado pelo testemunho de Heródoto, que afirma
«também aí [= em Tebas] uma mulher [ = a esposa do deus] dorme no templo d
Zeus tebano [= Ámon]: [...] diz-se que não tem relações com nenhum homem» (
182).
Funções especializadas, que parecem em grande parte reservadas a um pessoa
feminino, eram as que estavam ligadas à música, que ocupava um papel de relev
nas cerimónias religiosas: a existência de bailarinas, cantoras e músicas está con
firmada em todas as épocas da história egípcia, e entre elas havia muitas dama
da alta sociedade, esposas de sacerdotes importantes ou de altos funcionários
Se os sacerdócios dos vários templos constituíam entidades fechadas, inde
pendentes umas das outras, há porém indícios que demonstram certas formas d
colaboração entre diferentes sectores do clero e que devia existir uma estrutur
«nacional» mínima que coordenava as suas actividades. De facto, sabemos que
em determinadas circunstâncias, os sacerdotes de um templo se reuniam em
sínodo, e estão igualmente confirmados sínodos de mais vastas dimensões, com
preendendo mais sacerdotes, se não mesmo todos os sacerdotes egípcios.
Para além disso, o facto de existir um cargo de «superintendente dos profeta
de todos os deuses do Sul» e outro de «superintendente dos profetas do Norte
do Sul» leva-nos a pensar que existiria no Egipto algo de semelhante a um mini
tério dos assuntos do culto, embora ignoremos qual seria o seu âmbito real.
O templo egípcio era também o ponto de referência de importantes activida
des económicas. Pelo menos, precisava de ser fornecido dos meios necessário
para o seu funcionamento: para isso, tinha uma espécie de dotação constituíd
por vastas propriedades fundiárias, com os rendimentos das quais fazia frente
em primeiro lugar, às despesas com o pessoal. De facto, é de ter em conta que
serviço sacerdotal não era prestado gratuitamente, mas comportava prebenda
que deviam torná-lo bastante aliciante, já que se tentou torná-las hereditárias e s
desencadearam intermináveis processos judiciais pela sua posse.
A essas despesas vinham somar-se as despesas exigidas pelas cerimónias rel
giosas — como as despesas com as oferendas (vegetais e animais) que eram feita
às divindades — e pela manutenção do templo: limpeza e restauro das constru
ções no interior do recinto sagrado ou aquisição e substituição das alfaias e do
objectos necessários ao culto.
Todas estas actividades, e acima de tudo a administração dos bens pertencen
tes ao templo, exigiam uma multidão de funcionários, ordenados segundo rígida
estruturas hierárquicas, que deviam produzir uma mole imensa de documento
administrativos e contabilísticos: esses funcionários constituíam o pessoal civil d
templo que, embora excluído em princípio das funções sacerdotais, podia desem
penhar um papel de grande importância no seu interior, graças à delicadeza da
funções de que estava investido, especialmente nos templos que geriam grande
riquezas.

A função fundamental do sacerdote egípcio era, portanto, o ofício divino


Para desempenharem essa função tinham, porém, de satisfazer certas condiçõe
de pureza ritual respeitantes à sua própria pessoa e que se concretizavam na

126
abluções que eram efectuadas no lago sagrado e na depilação total do corpo.
Além disso, era necessário que o sacerdote envergasse vestes de linho (a lã era
absolutamente proibida), protegesse os pés com sandálias e respeitasse determina­
dos tabus sexuais e alimentares. A este respeito, deve observar-se que é bastante
improvável que houvesse tabus generalizados por todo o Egipto. Os sacerdotes
deviam certamente abster-se de comer a carne de certos animais e determinados
vegetais. Recordem-se as palavras depreciativas com que Juvenal os censurava
não só por adorarem os animais, mas também por se absterem, por motivos reli­
giosos, de comer um alho-porro ou uma cebola. Na realidade, havia tabus ali­
mentares, mas limitavam-se aos animais e às plantas em que se manifestava uma
determinada divindade e, por conseguinte, estavam circunscritos aos fiéis e aos
sacerdotes dessa divindade: por esse motivo, tinham um carácter eminentemente
local e não eram válidos fora da cidade ou do nomos onde o deus era adorado.
Só na pessoa do soberano, sacerdote supremo em quem todos os sacerdotes aca­
bavam por confluir, é provável que se acumulassem todos os tabus e todas as
proibições alimentares, dado que a sua pureza devia ser total e extensiva a todos
os cultos do país.
O templo era a casa do deus, cuja presença era sentida como um facto real
que se manifestava através da estátua que se encontrava no sancta sanctorum:
consequentemente, o culto era constituído por uma série de actos que consistiam
essencialmente nos cuidados físicos que eram prestados à estátua.
As fases por que passava o ritual do culto divino diário eram as mesmas em
todos os templos egípcios: as diferenças podiam residir apenas na riqueza das ofe­
rendas que eram feitas à divindade, no número dos oficiantes, em suma, no
maior ou menor fausto que rodeava toda a cerimónia. A fase inicial do culto
matutino previa a preparação das oferendas animais e vegetais que deviam ser
levadas perante o deus e a constituição de uma espécie de procissão que as trans­
portava para o interior do templo e que era formada pelos sacerdotes de serviço
nesse dia, que já tinham feito as abluções necessárias para garantirem a sua
pureza, indispensável à execução da cerimónia.
Depois de as oferendas terem sido colocadas sobre os altares e devidamente
purificadas, o sacerdote de grau mais elevado, no preciso instante em que o Sol
surgia no horizonte, abria as portas do santuário, acompanhado pelos cânticos
destinados a propiciar o despertar da divindade que habitava no interior do tem­
plo. Começava nessa altura a fase mais importante e mais solene: o sacerdote
penetrava na escuridão do sancta sanctorum só iluminada pela luz das tochas e
abria a porta do tabernáculo, no interior do qual se encontrava a estátua da
divindade que assim se revelava aos olhos do oficiante, que usufruía do privilégio
de poder contemplar o ídolo em que o deus decidira revelar-se.
A imposição das mãos sobre a estatueta e a recitação de algumas preces prece­
diam a refeição divina, preparada com as oferendas que tinham sido antes coloca­
das nos altares, e cujo usufruto efectivo era depois entregue aos sacerdotes e ao outro
pessoal do templo, que as utilizavam nas suas refeições diárias. A divindade tirava
apenas uma parte que escapava à percepção dos sentidos: o que restava, e que era
feito de uma realidade mais consistente, destinava-se aos seres humanos.

127
A fase seguinte dizia respeito aos cuidados com a pessoa da divindade, ou
seja, com a sua estátua, que era tratada como se fosse um ser vivo. Era lavada,
maquilhada e vestida com roupas novas que substituíam as que envergara no dia
anterior. Quase não vale a pena referir que cada um destes momentos era mar­
cado por normas rituais muito precisas, como a que previa a oferenda de quatro
faixas de linho da melhor qualidade e de quatro cores diferentes: branco, azul,
verde e vermelho. Em determinadas circunstâncias, o deus era adornado com
jóias e outros objectos simbólicos. Por fim, o sacerdote que abrira o naòs ungia
a estatueta com óleo e oferecia-lhe grãos de sal e resina. Nesta altura, a cerimónia
estava terminada e só restava fechar novamente as portas do tabernáculo e selá-
-las, para serem reabertas na manhã seguinte. Ao mesmo tempo que eram execu­
tados certos actos que assinalavam o fim da cerimónia, como libações com água
e fumigações de incenso, a escuridão voltava a envolver o tabernáculo onde a
estatueta do deus estava guardada.
Era esta indubitavelmente a parte mais importante do ritual diário, mas os
sacerdotes continuavam ocupados durante todo o dia. Uma primeira vez, ao
meio-dia: tratava-se, porém, de um rito muito mais simples do que o matutino e
que se limitava a libações e oferendas de incenso. O mesmo procedimento,
embora mais complexo, era repetido à tardinha, mas o tabernáculo não era rea­
berto até ao dia seguinte. Ao cair da noite, o templo era fechado e permanecia
deserto: só os astrónomos e os encarregados de calcular o tempo podiam estar a
trabalhar no telhado do templo.
O «trabalho» dos sacerdotes egípcios não se reduzia às cerimónias do culto
diário. Havia ainda as saídas periódicas do deus: a sua estatueta era colocada
num pequeno simulacro da barca sagrada e levada aos ombros pelos oficiantes
através das ruas das aldeias. Muito mais raramente, por ocasiões de grandes festas
religiosas, a imagem do deus era levada em procissão numa barca autêntica que
navegava no Nilo, percorrendo um itinerário que, por vezes, podia ser muito
longo e que era rigidamente definido pelo ritual.
À parte os aspectos «festivos» da saída do deus de sua casa, a procissão era
uma ocasião importante de encontro entre a divindade e os seus fiéis, o momento
em que a relação sacerdote-deus se alargava por instantes até abranger quem nor­
malmente era excluído do recinto sagrado onde a divindade erigira a sua morada.
Alargada, mas não interrompida: durante a procissão, os fiéis tinham não só a
oportunidade de ver o seu deus, mas também de o interrogar sobre problemas,
grandes e pequenos, da sua vida diária. Nesta função oracular, os sacerdotes
desempenhavam um papel inevitável de intermediários que os tornava medianei­
ros insubstituíveis entre a multidão dos fiéis e o deus de que eram os únicos servi­
dores, detentores de uma relação privilegiada, se não exlusiva, com ele.
No entanto, as tarefas do sacerdote abrangiam ainda outros domínios, cujos
limites é por vezes difícil determinar com exactidão. É certo, por exemplo, que era
a eles que competia aquilo que se define por justiça «às portas do templo»: fun­
ção judiciária, não há dúvida, mas cujo alcance exacto ignoramos. Os litigantes,
provavelmente por motivos de pouca importância dirigiam-se à porta do templo:
aí, um ou mais sacerdotes resolviam rapidamente o litígio, evitando que fosse

128
levado perante os tribunais ordinários. É provável que este aspecto da actividade
sacerdotal estivesse, em certa medida, ligado ao aspecto oracular e ao que se refe­
ria à interpretação dos sonhos que, em última análise, implicavam uma relação
directa com a divindade.
O sacerdote egípcio podia, porém, chegar a desempenhar funções ainda mais
elevadas do que as que foram descritas até agora. A fama de avisados e de sábios
de que gozavam entre os povos estrangeiros, pontualmente referida pelas fontes
clássicas, derivava do facto de pertencerem à instituição cultural, educativa e reli­
giosa a que os Egípcios chamavam «Casa da Vida», que estava ligada aos tem­
plos e que funcionava simultaneamente como scriptorium e como instituto de ins­
trução superior, muito semelhante, quanto a importância e conteúdos, às nossas
universidades. Os sacerdotes que faziam parte das «casas da vida» usavam o
título de «escriba do livro divino» e a sua missão era conservar e transmitir o
património cultural que lhes fora confiado e estava guardado nas bibliotecas dos
templos, copiando livros de conteúdo religioso, mas também obras de carácter
científico, como textos astronómicos, matemáticos, médicos e mágicos. A conse­
quência natural dessa actividade de «cópia» de textos antigos, que era executada
na escola e para a escola, era que o templo e as «casas da vida» se convertiam em
cenáculos de cultura, frequentados por sacerdotes-intelectuais que também com­
punham obras originais e, ao mesmo tempo, eram mestres que, através do ensino,
transmitiam aos seus alunos a cultura herdada do passado e, com ela, inevitavel­
mente, a ideologia da classe dirigente; cultura «laica», também, porque nas esco­
las liam-se não só obras religiosas mas também textos profanos, os «clássicos» da
tradição literária egípcia, em que a formação cultural dos jovens se baseava.
Havia, por fim, uma última categoria de sacerdotes, cujas funções diferiam
notavelmente das que até agora foram descritas: eram os encarregados das ceri­
mónias fúnebres. Para se compreender a sua importância, deverá ter-se em mente
que, no antigo Egipto, os ritos fúnebres comportavam um notável investimento de
riqueza e, por isso, constituíam uma fonte de rendimento considerável para os
sacerdotes e, mais ou menos directamente, também para os templos.
Quem se encarregava dos funerais não eram os sacerdotes ordinários, os «ser­
vidores do deus», mas sacerdotes especializados, os «servidores do Ka», ou seja,
grosso modo, os «servidores da alma» do defunto. Eram eles que tratavam do
funeral propriamente dito, do rito da sepultura, e do culto funerário que se podia
concretizar na instituição de uma pequena fundação em favor de um sacerdote
que tinha a tarefa de garantir ao defunto as oferendas fúnebres e as outras ceri­
mónias necessárias à sua sobrevivência no Além. Em torno da construção dos
túmulos, da preparação dos adornos funerários, da mumificação e do funeral
havia uma importante rede de negócios, e é compreensível que os sacerdotes não
perdessem a oportunidade de se apoderarem de uma parte considerável.
Se é relativamente fácil enumerar as tarefas dos sacerdotes egípcios, mencio­
nar os seus títulos e reconstituir as suas genealogias, é muito difícil encher esse
magro esqueleto com histórias de vida vivida que dêem uma dimensão humana à
função considerada abstractamente (ou burocraticamente). A documentação de que
dispomos, que não é abundante nem está bem distribuída no tempo, apresenta-nos

129
casos extremos: sacerdotes de vida extremamente reprovável e sacerdotes de vida
tão exemplar que se assemelham muito às biografias de santos da tradição cristã,
O que gostaríamos de conhecer, mas que nos escapa totalmente, é o sacerdote
imerso na rotina da vida diária, nas suas relações com o templo, com os fiéis e
com os habitantes da sua aldeia ou da sua cidade.
A missão do sacerdote egípcio não era difundir uma fé religiosa nem pregar
a conformidade com uma lei moral, de que seria a primeira testemunha com um
comportamento irrepreensível e que servisse de modelo aos fiéis da divindade em
cujo templo ele prestava serviço. Profundamente imerso na vida do seu tempo, o
sacerdote egípcio podia ser um modelo de vida moral ou, pelo contrário, um
exemplo a evitar, do mesmo modo que, nos outros sectores da vida do Estado,
havia funcionários com uma vida exemplar e funcionários desonestos.
Assim, quando os testemunhos de que dispomos se tornam um pouco mais
explícitos e vemos sacerdotes envolvidos em escândalos de todo o gênero, não
parece detectar-se nas palavras de quem narra esses factos uma reprovação espe­
cial pelo facto de certas acções pouco honestas terem sido praticadas por mem­
bros do clero. Se o sacerdote não é um modelo de vida moral, é certo, porém, que
nos últimos tempos da história egípcia e depois, na época ptolomaica e romana,
foi assumindo cada vez mais essa conotação, devido talvez a uma acentuação dos
valores éticos entre os membros do clero e ao alargamento do conceito de
«pureza», que deixa de se limitar ao âmbito cultuai e passa a abranger também
os comportamentos da vida diária.
Todavia, mesmo na época tardia, as coisas nem sempre se passavam assim,
como é amplamente testemunhado no impressionante documento que é conhe­
cido pelos estudiosos sob o nome de «petição de Petesi», que figura no papiro
Rylands IX conservado em Manchester, Nesse importante texto, escrito em
demótico e que data do início do primeiro domínio persa (27.® dinastia: 525-
-404 a. C.), um tal Petesi, que pertencia a uma família de sacerdotes de origem
tebana que se transferira para Teudjoi, a actual El-Hibe, no Médio Egipto, no
tempo do rei Psamético I (664-610 a. C.), conta, num relatório oficial dirigido
às autoridades do seu nomos, a história de uma longa polêmica que desde há
um século opunha a sua família aos sacerdotes de um templo local dedicado ao
culto de Ámon, polêmica essa referente a uma prebenda que os seus antepassa­
dos tinham recebido em usufruto. É impossível seguir-se essa polêmica na
extraordinária riqueza de subtilezas jurídicas que faz com que a narração se
assemelhe a um romance de aventuras. Bastará recordar que, na interminável
disputa que opõe a família de Petesi aos sacerdotes do templo de Ámon, estes
servem-se de todos os meios, lícitos e ilícitos, para impor as suas pretensões,
desde o homicídio até à agressão à mão armada e ao incêndio doloso, passando
pela tentativa de ganhar para a sua causa importantes personalidades do
governo local e até do nacional. Não nos esqueçamos, porém, de que possuí­
mos a versão dos factos contada por Petesi, último descendente dessa família
que conhecemos, e que ignoramos a versão dos sacerdotes de Ámon: é provável
que estes também tivessem uma série de acusações contra Petesi e os seus ante­
passados.

130
Que estes métodos violentos e ilegais não eram uma novidade da época saí-
tico-persa mas que, pelo contrário, tinham atrás de si uma longa tradição prova-o
o escândalo que ocorreu em Elefantina, nos reinados de Ramsés IV e Ramsés V
(1156-1145 a. C.), durante a 20.® dinastia, quando uma parte dos sacerdotes do
deus local, Khnum, constituiu uma autêntica associação de malfeitores sob o
comando de um tal Penanuqet: furto dos bens pertencentes ao templo, lesões pes­
soais, corrupção de funcionários do Estado são apenas alguns dos inúmeros deli­
tos de que esse bando de criminosos se tornou culpado.
É difícil dizer se casos como este ocorriam com frequência: provavelmente
não, e é um motivo de conforto pensar que Penanuqet e o seu bando acabaram
por ser desmascarados e processados e que Petesi pôde escrever a petição em que
pedia justiça, embora não se tenha a certeza de que a obteve. Uma prova, talvez,
de que a sociedade egípcia, e no caso específico, os sacerdotes, era sã, já que
podia e sabia reagir a estas situações de criminalidade tanto mais graves quanto
provinham de homens que estavam encarregados do serviço divino.
No pólo oposto está Petosíris, sumo sacerdote do deus Thot em Hermópolis,
que deixou a sua autobiografia gravada nas paredes do seu túmulo na necrópole
de Tuna el-Gebel, construído em forma de pequeno templo nos primeiros tempos
do domínio grego no Egipto, durante o reinado de Filipe Arrideu (323-316 a. C.).
A imagem que Petosíris quis deixar de si próprio é a de um santo que decidiu
passar toda a sua vida na submissão à vontade do deus e na observância da lei
moral: a morte é aceite com resignação mas na firme convicção de que deus pre­
miará aquele que soube viver em conformidade com os seus mandamentos,
fazendo o bem e evitando o mal. A morte é um mal inevitável, mas o justo sabe
que, no Além, há um prémio que tornará mais leve o afastamento da vida.
Esta forma de conceber a vida e o destino que aguarda os homens após a
morte dita a Petosíris páginas de grande elevação moral, justamente célebres pela
viva imagem que conservam desse período crepuscular da civilização egípcia em
que os destinos individuais se misturam muitas vezes de uma forma inextricável
com os do país que caíra de novo sob o jugo de uma dominação estrangeira:

«Ó vós [que estais aindal vivos [na terra — diz Petosíris — e que vindes a esta
necrópole e vedes] este túmulo, vinde [que] eu vos instruirei acerca da vontade de deus.
Guiar-vos-ei no caminho da vida, o caminho bom que é seguir a deus. Feliz é aquele
que tem um coração que o conduz a este caminho! Sólida é a vida sobre a terra de
quem tem um coração que está firme no caminho de deus e grande é a felicidade
[nesta] terra de quem tem no coração uma grande temor a deus!»

Este tema é retomado e desenvolvido mais pormenorizadamente na grande


inscrição autobiográfica que se transcreve e que convirá ler:

«Ó vós, profetas, ó vós, sacerdotes-Mró, ó vós, sábios que entrais nesta necrópole
e vedes este túmulo, orai a deus pelo seu proprietário [porque] sou beneficiado por seu
pai, louvado por sua mãe, amado pelos seus irmãos [...]. O Ocidente [=o reino dos
mortos] é o país daquele que não tem pecados: louva-se deus por um homem que

131
tenha ido ao seu encontro e ninguém lá chega se o coração não é sincero ao prati­
car a justiça. Lá não se faz [nenhuma] distinção entre quem é pobre e quem é rico
[...]. Eu fui fiel ao senhor de Hermópolis [=Thot] desde que nasci: todos os seus
conselhos estavam no meu coração: [por isso] me escolheram para administrador
do meu templo, porque sabiam que o temor ao deus estava no meu coração.»

O que caracteriza as palavras de Petosíris é o tom firme de uma opção moral


irreversível: as tarefas de um sacerdote não se reduzem ao pontual cumprimento
do serviço divino ou à correcta administração das propriedades do templo; torna-
-se um modelo de vida, em que os outros, os que são excluídos da vida do templo
e do contacto diário com a divindade, podem e devem inspirar-se com vista a
uma vida futura em que ricos e pobres encontrem igualmente a recompensa para
uma vida sem pecado: em última análise, a morte é o local onde a lei de deus,
infalivelmente justa, se concretiza, e não é por acaso que o túmulo de Petosíris
tem a forma de um templo.
É com esta imagem de uma elevada moralidade, expressa em termos que evo­
cam uma pregação, que o Egipto se apresenta aos seus novos senhores, os Gregos
que chegaram ao Vale do Nilo após a conquista de Alexandre: e as características
do clero egípcio, nos séculos seguintes e até ao final do paganismo, coincidem
estranhamente com o retrato do sacerdote egípcio que é possível reconstituir atra­
vés da autobiografia de Petosíris.

132
CAPITULO VI
O SOLDADO

por Sheihk ‘Ibada al-Nubi


Os mais antigos monumentos figurados egípcios — isto é, as paletas protodi-
násticas — reproduzem ou aludem a uma actividade guerreira. O faraó vitorioso
aparece na fachada de todos os templos egípcios, e as cenas de batalha são o tema
dos grandes relevos históricos no Novo Império. Mas a essa exibição de belicosi-
dade não corresponde, na realidade, nem uma atitude psicológica geral nem uma
menos que excepcional experiência militar nas inúmeras autobiografias egípcias.
Neste mesmo volume, a estrutura militar é tratada por várias vezes, mas de uma
forma atenuada, quando se analisaram as figuras do camponês, do escriba, do
funcionário, do estrangeiro, do escravo ou do soberano. O militar como tal, as
virtudes militares propriamente ditas, não fazem parte da visão oficial que o
mundo egípcio transmite de si próprio. O facto de, na língua egípcia, haver inú­
meras maneiras de definir o «inimigo» e mesmo a batalha e a refrega, e não haver
um termo preciso e específico para definir a situação jurídica, política, social e
econômica que é a «guerra» enquanto tal, pode ser significativo.
O que pode haver de contraditório no que acabámos de dizer deriva de factos
e concepções perfeitamente identificáveis. A «insularidade» do Egipto torna-o
um país cujas fronteiras são bem definidas por desertos e por mares — o que as
torna das mais seguras que se pode imaginar — e, ao mesmo tempo, conduzem
à definição de um universo orgânico e potencialmente auto-suficiente; a necessi­
dade de se confrontarem com «outros» não é imposta pela situação a não ser em
momentos especiais, ligados a um pulsar mais amplo da sociedade (e por isso da
história) do Próximo Oriente, quando o valor absoluto desse «universo» estiver
comprometido. Em geral, os «outros» são sobretudo as franjas que se situam em
redor do cosmos egípcio, os nômadas, os habitantes das regiões limítrofes que
fornecem ao Egipto produtos mineiros ou de outro tipo, não organismos estatais
mas grupos étnicos que, a par da normal permuta pacífica de bens, podem ape­
nas ser objecto e sujeito de pilhagens. Trata-se de elementos de perturbação para
o sereno desenrolar da realidade egípcia, que o representante e a personificação
oficial da realidade egípcia, o soberano, tem a obrigação de refrear. Por isso, as
acções de força contra eles são sempre interpretadas como intervenções contra
«rebeldes» ou forças desorganizadas que comprometem a ordem — que é, con­
cretamente, a ordem egípcia. O soberano, que assegura o culto divino, libertando
dessa responsabilidade os indivíduos, também tem a missão de proteger o Egipto;
tal como delega as suas funções rituais num sacerdócio, também delega as suas
funções militares: todavia, continua a ser o único titular, quer do culto, quer das

135
acções guerreiras. Por esse motivo, é raro que o culto e a guerra sejam temas
capazes de figurar a não ser numa documentação ritualmente e aulicamente con­
vencional.
Este posicionamento genericamente abstracto obedece de várias maneiras às
exigências da sociedade egípcia nos vários momentos da sua evolução, e é possível
não só acompanhar as suas diferentes formas, mas avaliar o peso sempre cres­
cente da realidade militar na história egípcia, e traçar assim uma imagem da
importância real que terá tido essa personagem tão raramente exibida pela socie­
dade egípcia: o soldado.
À parte as alusões às vitórias, extraídas de grafitos que (sobretudo no Sinai)
evocam a chegada dc expedições egípeias em busea de minerais preeiosos eomo a
turquesa e a malaquite, há alguns dados que nos esclarecem acerca das activida-
des militares da época das pirâmides. Não se pode deixar de pensar que, nessa
época, os problemas organizativos provocados pelo emprego de massas de mão-
-de-obra tão numerosas e cujas actividades tinham de ser coordenadas devem ter
proporcionado aos Egípcios a capacidade de constituir conjuntos disciplinados,
de organizar a sua sobrevivência, de especificar as suas funções. Por outras pala­
vras, de criar as premissas para aquela que será a característica dos excércitos
egípcios, isto é, o cuidado minucioso com os aspectos logísticos. Este aspecto
«civil» está, aliás, ligado à implantação e à função do exército durante esse
período: o serviço militar é uma das muitas corveias a que o Egípcio está sujeito
e não pressupõe uma profissionalização específica; os soldados, em geral, são uti­
lizados em missões, fora (ou nas margens) do território egípcio, que têm por
objectivo a aquisição de produtos preciosos. As tropas devem proteger os operá­
rios dos ataques dos nômadas e, eventualmente, colaborar em operações técnicas:
não têm as típicas funções agressivas, mas um fim intimidatório.
Todavia, há documentos, figurados e escritos, que provam que esta não era a
única possibilidade de utilização dos soldados. Uma reprodução do túmulo de
um tal Kaemhesit, em Sacará, datado da 5.^ dinastia, e outra da mesma época,
em Deshasha, na província, no túmulo de um tal Inti dão-nos as duas primeiras
ilustrações de uma acção militar in fieri. Em ambos os casos, trata-se de cercos
a fortalezas que estão prestes a cair nas mãos dos Egípcios. Em Sacará está repro­
duzido um acampamento fortificado onde se vêem homens, mulheres, crianças e
gado, e cujos muros são atacados por sabotadores que escavam os alicerces com
uma enxada e, bastante mais vigorosamente, por um grupo de soldados armados
apenas de machados que sobem por uma escada apoiada à muralha, fazendo-a
avançar sobre rodas (as rodas não são normalmente utilizadas no Egipto antes do
Novo Império, e, por esse motivo, assumem aqui uma forte conotação de
máquina de guerra). Bastante mais vivo e conclusivo é o relevo de Deshasha,
onde se repete o motivo da escada (aqui, sem rodas) e dos sabotadores, mas onde
se retrata com grande vivacidade o que se passa no interior da fortaleza: há quem
esteja atento ao rumor sinistro daqueles que, lá fora, derrubam o muro, há um
corropio de mulheres em redor dos feridos, o chefe que se desespera. Para lá dos
muros, são representadas as fases da batalha e o corpo-a-corpo entre os Egípcios
armados com machados e os seus inimigos, já trespassados pelas setas no pri­

136
meiro recontro à distância e que, pelo trajo, mostram claramente que se trata de
asiáticos. O quadro termina com a fila dos prisioneiros atados com cordas,
seguidos por um soldado egípcio ainda armado, que leva uma menina aos
ombros (um tema que será retomado com verve humorística em épocas bastante
mais tardias). É impossível que reproduções tão excepcionais não evoquem
casos específicos, mas, para além disso, são testemunho de uma actividade mili­
tar fora das fronteiras egípcias, e de técnicas de cerco elementares, mas canoni­
zadas.
O documento mais explícito e mais significativo é, porém, um texto auto­
biográfico de grande amplidão, que narra como os talentos múltiplos de um fun­
cionário chamado Uni o levaram a percorrer todos os degraus de uma carreira
extremamente diferenciada, quanto a funções e atribuições, de administrador,
funcionário, cortesão, armador e técnico de transportes, juiz em processos delica­
díssimos e também general:

«Sua Majestade atacou os Asiáticos que vivem na areia. Sua Majestade formou
um exército de muitas dezenas de milhares, provenientes de todo o Alto Egipto, de Ele-
fantina a sul, até Afroditópolis a norte, provenientes do Delta, provenientes das duas
Metades do Domínio, provenientes das fortalezas, do interior das fortalezas, prove­
nientes de Ircet dos Núbios, de Medjai dos Núbios, de Iam dos Núbios, de Uauat dos
Núbios, de Kaau dos Núbios, provenientes do país dos Líbios.
Sua Majestade enviou-me à testa desse exército, enquanto governadores, porta-
-selos do rei do Baixo Egipto, amigos únicos do grande castelo, superintendentes dos
intérpretes, superintendentes dos sacerdotes do Vale e do Delta, superintendentes da
Parte do Domínio, estavam à testa de um regimento do Vale e do Delta, dos castelos
de que eram príncipes ou dos Núbios dessas terras estrangeiras.
Eu, porém, era aquele que lhes fazia os planos, enquanto desempenhava o cargo
de superintendente em Khentiu-she, para corrigir a situação, para que um deles não
fosse colocado no lugar do companheiro, para que nenhum deles roubasse o pão ou
as sandálias ao viandante, para que nenhum deles roubasse roupas em nenhuma
cidade, para que nenhum deles roubasse nenhuma cabra.
Guiei-os pela Ilha do Norte, a Porta de Imhotep, o estreito de Horo Nebmaat
[=Sneferu], quando ocupava o cargo de [...]. Passei em revista todos estes regimentos,
quando nenhum servidor os tinha antes passado em revista.
Regressou este exército em paz, depois de ter destruído a terra d’Aqueles-que-
-vivem-na-areia.
Regressou este exército em paz, depois de ter saqueado a terra d’Aqueles-que-
-vivem-na-areia.
Regressou este exército em paz, depois de ter destruído as suas fortificações.
Regressou este exército em paz, depois de ter cortado as suas figueiras e as suas
videiras.
Regressou este exército em paz, depois de ter pegado fogo às casas de todas as suas
gentes.
Regressou este exército em paz, depois de ter despedaçado muitas dezenas de
milhares de soldados.
Regressou este exército em paz, depois de ter aprisionado muitos dos seus solda­
dos.

137
Elogiou-me Sua Majestade mais por isto do que por outra coisa. Sua Majestade
mandou-me chefiar por cinco vezes este exército, para percorrer a terra d’Aqueles-que-
-vivem-na-areia, a conter todas as suas revoltas, com estes regimentos.
Agi de tal forma que Sua Majestade me elogiou mais por isso do que por todas as
coisas. Disse-se que havia rebeldes entre esses estrangeiros [que habitam] no “ Nariz da
Gazela”. Depois de ter atravessado etn barcos de transporte, juntamente com estas tro­
pas, desembarquei atrás das montanhas, a norte d’Aqueles-que-vivem-na-areia,
enquanto metade do exército seguia por terra.
Regressei depois de os ter aprisionado a todos, depois do que foi despedaçado cada
rebelde que havia entre eles.»

Este relato de actividades guerreiras basta para fornecer os elementos essen­


ciais do soldado do Antigo Império. Antes do mais, é de notar um facto que será
sempre característico do exército egípcio: a presença de egípcios e de estrangeiros.
Há núbios identificados com a indicação expressa do seu local de origem, o que
prova as contínuas e boas relações que o Egipto mantém com o mundo da Núbia,
naquela época; mas há também líbios. São os povos que fornecem tradicional­
mente mercenários, e que aqui surgem chefiados pelos «superintendentes dos
intérpretes» — os funcionários egípcios encarregados das relações com os estran­
geiros. Mas os Egípcios também são chefiados por pessoal da administração civil
e templar: todas as autoridades que devem obedecer a essa liturgia militar assu­
mem o seu comando, dando assim a impressão de que o que fundamentalmente
conta neste exército tão variado é a capacidade de organização. Uni, que assume
o comando geral, narra os seus méritos civis de moderador da soldadesca (que,
apesar de tudo, deve ter roubado algumas roupas e algumas cabras), mas o relato
da guerra propriamente dita é confiado a um hino marcadamente literário, que,
em termos estruturais, talvez constitua o auge da narração, mas que não possui
a mordacidade do relato específico.
A descrição posterior do plano para vencer os habitantes do «Nariz da
Gazela» revela que Uni era algo mais do que um diletante de coisas militares. Pri­
meira notícia, mesmo vaga, de perigo («havia rebeldes»), esses habitantes são ata­
cados de acordo com um plano bastante complexo que comporta um movimento
de tenaz executado por tropas que avançam por terra e tropas de desembarque.
Também aqui se prefiguram experiências militares que serão postas totalmente
em prática no Novo Império e que revelam a criação de uma tradição de «arte
militar».
A existência de fortalezas egípcias em território estrangeiro é testemunhada
desde a época mais remota: em Elefantina, a ilha fronteira à Primeira Catarata e
que já se situa (e ainda mais se situava, nos tempos antigos) em território núbio,
existe uma fortaleza que confirma a presença egípcia e tem o nome de Huny, um
rei da 3.® dinastia; na Núbia, existem fortalezas do Antigo Império ocultas sob
outras de época mais tardia (é o caso de Brehen, na Segunda Catarata). Estes
dados não devem ser interpretados univocamente, dado que podem referir-se ape­
nas a bases fixas e convencionadas para as inúmeras trocas e missões comerciais
na região; porém, são esses contactos e essas presenças que geram o costume

138
egípcio de contratar, nesses países, soldados que assentavam praça no Egipto. En­
contrámo-los no compósito exército de Uni, mas também são evocados noutros
locais como «núbios pacificados» (ou seja, submetidos) ou com o nome étnico de
Medjaw (que corresponde ao actual Bedja).
Trata-se de tropas estacionadas, no Egipto, que têm por missão manter a
ordem pública em geral, e por isso muitas vezes apenas com funções de polícia.
Todavia, alguns desses núbios acabam por fazer parte integrante do panorama
sociológico egípcio, e é esse facto que torna significativo o verso que se refere a
eles inserto no «Lamento de Ipu-wer» sobre a queda da monarquia menfita. Face
à subversão geral dos valores, que é o tema da denúncia do autor, poder-se-á per­
guntar: «Como pode um homem matar o próprio irmão? As tropas que recrutá­
mos transformaram-se num povo do Arco [designação convencional dos inimi­
gos, os «Nove Arcos»] e vieram para destruir.»
O facto de essas tropas, que pouco antes tinham sido evocadas como Medjaw
e Núbios, terem passado a «destruir» é algo que pode comparar-se a um fratricí­
dio e prova a subversão universal.
Essa subversão de valores em finais da época menfita — que caracteriza toda
a evolução posterior da civilização egípcia — tem também um valor militar espe­
cial. Com a queda de uma autoridade central e a constituição de vários centros
de poder autónomos, com a desordem económica, explode uma violência ime­
diata e pessoal («vai-se arar com o escudo», «o forte rouba os bens ao fraco», «se
três homens vão pela mesma estrada, acabam por se encontrar só dois: a maioria
mata a minoria») ou, mais áulica nas suas expressões, uma violência a nível esta­
tal. O rei tem de enfrentar os príncipes rebeldes, que, por sua vez, combatem
entre si. Nasce neste período um formulário de exaltação da atrocidade que é pró­
pria de príncipes guerreiros, e que passará depois — e limitar-se-á, então, estrita­
mente a eles — para os soberanos das épocas posteriores.
«Era um valente com o arco, de braço poderoso, muito temido pelos seus vizi­
nhos», diz Khety, um príncipe de Asyút. «Sou um valente, que não tem igual»,
repete, como um refrão, o monarca de Hefat, em cada um dos textos que ilustram
o seu túmulo na Mo’alla Ankhtyfy. E esses príncipes narram e reproduzem os
seus feitos em textos e quadros bastante coloridos:

«O chefe do exército de Armant veio dizer: “ Ó valoroso, desce a corrente até à for­
taleza [de Armant.]” Assim fui, descendo a corrente, até à região situada a Ocidente
de Armant, e vi que Tebas e Coptos, [tinham assaltado] todas as fortalezas de Armant
na “ Colina de Semekhesen”. Era por isso que tinham vindo procurar-me [?] Então [os
meus braços] foram fortes, ali [contra eles] como um arpão no focinho de um hipopó­
tamo em fuga. Depois, voltei a subir a corrente para destruir as suas fortalezas com a
valorosa milícia de Hefat. Porque eu sou um valente que não tem igual.»

Esta narração dos acontecimentos feita na primeira pessoa retrata um condot-


tiero rápido e enérgico, bem ao gosto dos autobiógrafos da época, que se compra­
zem em realçar uma capacidade pessoal. No entanto, com mais objectividade, ou,
pelo menos, com uma mais clara definição da operação no seu complicado desen-

139
volvimento e no empenho pessoal dos combatentes, outra inscrição do mesmo
túmulo narra o mesmo feito de armas:

«Tendo descido a corrente com os meus valorosos e fiéis soldados, desembarquei


na margem ocidental do n o m o s tebano, enquanto a cabeça do exército estava [por altu­
ras] da “ Colina de Semekhesen” e a cauda do exército estava [por alturas] da “ Pro­
priedade de Tjemy”. Os meus fiéis soldados procuraram a luta na região situada a Oci­
dente do n o m o s tebano, mas ninguém ousava sair, com medo deles.
Então, tendo descido a corrente, desembarquei na margem ocidental do n o m o s
tebano, enquanto a cabeça do exército estava por alturas do túmulo de Inhy e a cauda
estava [por alturas] do Prado de Sega. Cercaram-se as muralhas, depois de as suas por­
tas se terem fechado com medo. Então, estes valorosos e fiéis soldados transforma-
ram-se em exploradores do ocidente e do oriente do n o m o s tebano, no desejo de procu­
rarem a luta, mas ninguém ousava sair, com medo deles. Porque eu sou um valente que
não tem igual.»

Todavia, para além destas aventuras fora da provínvia, as milícias locais


tinham uma função local diária e pacífica. «Quando caía a noite, todos os que
andavam na rua me agradeciam, porque o terror dos meus soldados os protegia
como àqueles que estavam em casa», diz um príncipe de Asyüt (Griffiths, Siut,
III 1.10).
É do túmulo de um nomarca de Asyüt que provêm dois impressionantes gru­
pos de figurinhas fixadas em bases de madeira que representam regimentos de
soldados em marcha. Estão dispostos ordenadamente em quatro filas de dez
homens cada, e constituem provavelmente uma unidade táctica. Um grupo é
constituído por egípcios, vestidos com uma simples faixa e armados de lança com
a lâmina em forma de folha de louro, na mão direita e, na esquerda, um escudo
em forma de ogiva, de madeira revestida a pele. O segundo grupo é constituído
por soldados empunhando arcos e caracterizados como núbios. Era com este
género de tropas que se travavam guerras civis que tornam popular a profissão e
a actividade do soldado. Nos túmulos dos príncipes há reproduções de exercícios
de ginástica, danças guerreiras, assaltos a fortalezas em que atacantes e defenso­
res aparecem, ao mesmo tempo, como egípcios e núbios. As fortalezas estão
munidas de ameias e de bastiões escarpados e, por outro lado, inventaram-se sis­
temas de ataque às muralhas mais complexos do que os antigos, ou seja, abrigos
móveis sob os quais os soldados se aproximavam para golpear os muros com
pesadas traves. Se é certo que podemos continuar a pensar numa corveia militar,
também já existe — seguramente — um profissionalismo específico, que se identi­
fica, sobretudo, entre as forças núbias: para lá da sua esporádica presença em
todo o Egipto, em Gebelein, um pouco a sul de Tebas, há uma vasta série de este­
ias funerárias que recorda a sua presença como um grupo organizado. Num estilo
rústico fazem-se representar com os arcos na mão, com as suas setas, muitas vezes
acompanhados pelos seus cães, numa tipologia bastante diferente da egípcia. São
um autêntico núcleo étnico inserido no contexto egípcio, que age dentro desse
contexto e para ele, mas que conserva a sua fisionomia própria. É um precedente
que significará muito na história egípcia posterior.

140
Tendo por pano de fundo este inquieto mundo feudal, vislumbram-se os sobe­
ranos. Limitados na sua actividade, mas ainda essenciais: entre os príncipes, há
ainda quem os reconheça como superiores e coloque as suas armas ao seu serviço
(«Tinha um belo exército [...] o predilecto do rei quando vinha para Sul» — diz
um príncipe de Asyüt); todavia, também há quem lhes faça frente («Salvei a
minha cidade no dia do saque, frente ao terror da casa real», diz com insolente
fanfarronice um prínicpe de Hermópolis) (Haynub 23-24).
Para os soberanos da época, a necessidade de se confrontarem constantemente
com homens armados, quer fiéis quer rebeldes, mas armados, foi determinante
para a actividade política e para o papel que, nesse contexto, a monarquia teve de
assumir.
A autoridade do soberano parece ter permanecido particularmente activa na
parte setentrional do país, entre Mênfis e Heracleópolis, e no Delta; um texto real
da época, as Instruções para Merikara^ atribuído ao pai deste, descreve bem a
importância das forças armadas na perspectiva da monarquia: «Enriquece os teus
funcionários e cuida dos teus guerreiros [‘h3yw]. Dá em abundância aos soldados
{d3mw\ do teu séquito» (Merikara XXII). E pouco antes tinha afirmado: «Con­
trata soldados [d3mw] para seres amado pela corte [,..]. Durante vinte anos, os
que estão ao serviço obedecem facilmente ao seu coração e depois os dispensados
passam à reserva. Os recrutas [í ' qyw] entram ao serviço em seu lugar, chamados
à instrução.»
O texto descreve claramente a formação de uma classe de militares a tempo
inteiro e especificamente formados no âmbito da cidade egípcia.
A par das lutas que, de tempos a tempos, ensanguentam o Egipto para afirmar
a supremacia do rei sobre os seus príncipes — quer sejam formalmente seus apoian­
tes, quer sejam seus adversários — um problema que permanece em aberto é o da
protecção das terras férteis, dos pastos, das águas egípcias, frente à invasão dos
nômadas que vivem nas suas fronteiras. A monarquia assume o encargo de barrar
o caminho a esses estrangeiros, e as próprias Instruções para Merikara falam de uma
fixação, em fortalezas do Baixo Egipto, de colonos egípcios, que são simultanea­
mente «cidadãos» e soldados «que sabem pegar em armas». A chamada «Via de
Hórus» (e Hórus é o deus que o rei personifica) é constituída por uma série de for­
tes que, a partir do istmo de Suez, controlam as vias de água do deserto até ao Médio
Egipto, a Mínia. É difícil atravessar essa fronteira vigiada, como demonstra a His­
tória de Sinuhe, situada numa época não muito posterior àquela de que falamos,
que fala dessa passagem perigosa, sob o olhar das escoltas que, do alto das fortifi­
cações, vigiam todos os movimentos. Um texto pseudoprofético de exaltação do fun­
dador da 12.^ dinastia, Amenemhat I, que encerra com a sua obra este período feu­
dal, descreve assim a situação a que ele põe termo:

«Os Asiáticos cairão com o terror que ele inspira, os Líbios cairão perante a sua
chama, os nobres afastar-se-ão da sua cólera e os inimigos do seu poder [...].
Construir-se-ão os muros do Principe [muros = fortalezas] para não deixarem que os
Asiáticos desçam até ao Egipto. Terão de pedir água como um favor, para dessedenta-
rem os rebanhos.»

141
o período feudal termina com esta visão de uma ordem que se faz valer
ameaçadoramente. Para a história da mentalidade e da tradição militar do Egipto
(como, em geral, para outros aspectos dessa civilização), esta época foi um rico
cadinho de experiências. O valor, a coragem no campo de batalha tornam-se ele­
mentos positivos de avaliação de uma personalidade, a situação militar tem a ver
com grupos específicos, como os colonos armados do Delta ou as tropas dos
príncipes. Polariza-se claramente a atitude para com os não egípcios: por um
lado, são incorporados (mas não assimilados!) como contingentes militares com
sedes territoriais específicas (os núbios de Gebelein); por outro, são identificados
com os bárbaros (as Instruções para Merikara fornecem um esplêndido quadro
das razões e dos modos que tornam diferentes os Asiáticos e os Egípcios) que
devem ser mantidos longe por meio de estruturas estatais de controlo. O soldado
converte-se numa personagem cujas qualidades se podem exaltar, cuja função se
torna essencial para que, como diz a Profecia para Amenemhat I, «a ordem justa
seja reposta, a desordem iníqua seja repelida».
A reunificação do Egipto durante a 11.® dinasrtia e, mais ainda, durante 12.®,
decorrente de uma guerra em que existem alguns egípcios entre os inimigos a ven­
cer, adoptou como óbvios os modos militares do século anterior. Extraída da lin­
guagem da época feudal, que descrevera a bravura dos príncipes, e as capacidades
de êxito dos seus soldados, entra na linguagem oficial uma série de estereótipos
que dão à figura do rei uma conotação de herói invencível. No início da 12.®
dinastia, Sinuhe exalta o seu soberano nestes termos:

«É um deus verdadeiro, que não tem igual [...]


É um bravo que age com o seu braço
Um homem de acção que não tem igual
Quando o vemos lançar-se contra os bárbaros
Ou quando inicia o combate.
É alguém que submete, que paralisa as mãos
Para que os inimigos não possam dispor-se a lutar
É alguém que doma e derriba as frontes
Não se pode estar de pé junto dele
É alguém que tem o passo longo quando extermina o fugitivo
Não há refúgio para quem lhe volta as costas
O seu coração está firme no momento do ataque
É alguém que faz frente e não volta as costas
Valente quando vê a multidão
Não deixa que o desânimo lhe prenda o coração
É um audaz quando enfrenta os Orientais:
A sua alegria é aprisionar os bárbaros
Agarra no escudo e pisa [o inimigol
Não repete o golpe, porque mata
Não há ninguém que possa afastar a sua seta
Ninguém que possa dobrar o seu arco
Os bárbaros fogem à sua frente
Como [perantel o poder da grande deusa
Não se cansa de combater, nada poupa, nada permanece.»

142
E, facto importante, acrescenta ainda: «Mas é [também] um senhor de amor/
/De grande doçura, que conquista com o amor.»
Do mesmo modo, na plenitude da glória militar da época, no tempo de Sesós-
tris III, um hino em sua honra afirma hiperbolicamente «que massacra os Nove
Arcos sem golpear com a maçã/Que arremessa a seta sem esticar a corda [do
arco]», e um pouco mais adiante, «É a língua de Sua Majestade que enclausura
a Núbia/São as suas palavras que fazem fugir os Asiáticos.»
A monarquia que se segue à época feudal teve de ser suficientemente poderosa
e autónoma para enfrentar os príncipes locais. Um alargamento metódico das
fronteiras em direcção ao país produtor de bens preciosos que confina com o seu
território, a sul, é uma característica dessa época. E é também nessa época que a
missão real de protecção do país contra os «bárbaros» — que já fora confiada a
Uni, e de que depois se vangloriara o pai de Merikara — se torna racional, com
a atribuição de funções específicas, como as de «superintendente dos Desertos
Orientais» ou de «superintendente do Deserto Ocidental». Um destes funcioná­
rios descreve assim a sua actividade profissional: «Cheguei ao Oásis ocidental,
explorei todos os seus caminhos e de lá trouxe os fugitivos que aí se encontravam.
O exército esteve bem e não teve de sofrer perdas.» (Anthes, ZÃS.65.108.)
Um «superintendente dos Desertos Orientais» manda reproduzir no seu
túmulo a chegada e o controlo de «trinta e sete Beduínos Asiáticos» que apare­
cem para oferecer presentes e são introduzidos no Egipto. A mesma função de
protecção têm também os «Superintendentes dos Caçadores» (em geral, pessoas
que vivem no deserto, membros de tribos nômadas ao serviço do Egipto), que
acompanham as caravanas e as protegem. Essas funções de polícia e de vigilância
passam a ser também as do «Muro do Príncipe», na fronteira do istmo.
Todavia, a atitude para com a Núbia é muito diferente. Neste caso, não se
trata apenas de vigilância; pensa-se igualmente num «alargamento das frontei­
ras». Durante séculos, o Egipto fora-se estendendo para Sul e incorporando
sucessivamente as localidades das fronteiras meridionais, até estabelecer a sua
fronteira natural na Primeira Catarata. Este lento e pacífico processo de assimila­
ção converte-se agora num desejo bastante diferente de ampliação territorial.
A partir de Amenemhat I, guerreia-se na Núbia, e assim se chega à Segunda
Catarata, a de Wadi Haifa, na época de Sesóstris III.
«Fiz a minha fronteira a sul da de meu pai e aumentei aquilo que ele me dei­
xou em herança. Sou um rei que diz e faz.» Esta linguagem de uma célebre esteia
de fronteira, em Semna, retoma, com toda a sua altivez, as expressões com que
personagens mais modestas da época feudal tinham narrado os seus êxitos econó­
micos, o aumento dos rebanhos que tinham herdado, o facto de terem agido com
o braço e com a mente. Todavia, involuntariamente, esta analogia, já remota no
tempo, revela o carácter económico desse alargamento de fronteiras: a posse autó­
noma da província núbia — e, mais tarde, das terras bonificadas de Fayum — dá
à casa reinante uma crescente liberdade de acção em relação à nobreza local;
porém, se virmos bem, isso baseia-se sobretudo no facto de se dispor inicialmente
de uma força militar, que pode ser identificada claramente nos textos: «Como se
alegram os recrutas {d3mw\ do teu exército! Fizeste-los prosperar. Como se alegram

143
os teus veteranos! Fizeste-los rejuvenescer», diz o hino a Sesóstris III já citado.
Alguns desses militares cumprem o seu serviço nas cidades; outros estão nos
aquartelamentos próximos do Palácio.
Um nomarca do xvi nomos diz ter participado na expedição à Núbia levada
a cabo por Amenemhat I, no início da dinastia, como refere uma inscrição gra­
vada no seu túmulo em Beni Hasan: o sistema continua a ser o dos contingentes
comandados pelos indivíduos responsáveis pelas corveias, que vimos em acção,
na época menfita, na inscrição de Uni. Em seguida, um «primeiro filho do rei»
na sua qualidade de «escriba do exército» procede a uma operação de recrutamento
em Tinis, à razão de 1 para 100 (ZÀS — 38.42), e nas inscrições passa a incluir-se
com frequência um título de significado aparentemente vago, «cidadão» {‘nh n
niwt), que, segundo Berlev, equivaleria ao soldado profissional. Além disso, na ter­
minologia técnica, existem «guerreiros» {‘h,wty) e «companheiros» (!smsw) —
que são os membros das forças que estão à disposição imediata do soberano. São
militares escolhidos e a tempo inteiro, que sabem ainda falar da sua actividade guer­
reira e que dela extraem os seus meios de subsistência.
Um desses «companheiros» descreve assim os seus êxitos:

«Sua Majestade mandou que eu cumprisse o meu serviço militar juntamente com
6 homens do Palácio. Depois, Sua Majestade nomeou-me “ Companheiro do Príncipe”
e deu-me 60 cabeças [...]. Depois, derrotei o Núbio [...] junto da minha cidade [...]. Então,
nomeou-me “ Inspector dos Companheiros” e presenteou-me com 100 cabeças.» (Lesest.
83.)

Nem todos os oficiais de carreira terão tido a esplêndida carreira deste Khuso-
bek. Contudo, havia lugar para muitos, nas guarnições egípcias, nos postos fron­
teiriços, nas inúmeras fortalezas construídas nas passagens-chave ao longo do Nilo,
na Núbia. Alguns dos despachos enviados para a corte pelo comandante de uma
dessas fortalezas — a de Semna, na fronteira meridional — foram conservados,
e dão-nos um esboço do dia-a-dia monótono da vida de guarnição, limitada ao
controlo das passagens através da fronteira, tal como nos é revelado por uma ins­
crição que também chegou até aos nossos dias.
O espírito militar egípcio também se manifesta na literatura, quando Sinuhe,
que fugiu para a Síria, descreve a sua carreira afortunada, depois de ter caído nas
graças do príncipe local, junto de quem se refugiou:

«Quando os Beduínos decidiram opor-se aos Chefes dos Países estrangeiros, acon­
selhei os seus [ou seja, desses Chefes] movimentos, pelo que este príncipe de Retenu [parte
da Síria] me fez passar muitos anos como comandante do seu exército. Quando ataquei
todos os países estrangeiros contra os quais marchei, todos eles foram afastados dos seus
pastos, dos seus poços, capturei o seu gado, expulsei os seus habitantes, apoderei-me
das suas provisões, matei as pessoas que lá se encontravam com o meu braço, com o
meu arco, com os meus movimentos, com a excelência dos meus planos. Ele estimava-me,
amava-me porque reconhecera que eu era corajoso. Preferiu-me aos seus filhos, porque
vira que o meu braço era forte.»

144
A linguagem é a mesma das autobiografias privadas da época feudal e des­
creve as alegrias de um sucesso empregando expressões que, no Egipto, já só são
utilizadas para narrar os feitos do soberano. No entanto, trata-se de factos ocorri­
dos fora do Vale do Nilo, e o egípcio, como representando da sua civilização,
insiste nos seus dotes militares. O mesmo se passa no episódio romanesco do
duelo que se segue ao bárbaro desafio de um «valentão» local, que o egípcio
vence com amarga serenidade.

«Veio um valentão de Retenu e desafiou-me na minha tenda. Era um bravo sem


igual e tinha vencido todo [o país de Retenu], dizia que lutaria comigo, tencionava
roubar-me e propunha-se levar-me o meu gado, a conselho da sua tribo.
Aquele príncipe discutiu comigo e eu disse-lhe: “ Eu não o conheço, não sou
nenhum dos seus parentes, para que possa ter acesso ao meu acampamento. Alguma
vez abri a sua porta ou derrubei os seus muros? Tem inveja, porque me vê obedecer às
tuas ordens. De facto, sou como um touro de um rebanho errante no meio de outro
rebanho [...].”
Passei a noite a dobrar o meu arco, a arremessar as setas, a desembainhar a minha
espada, a polir as minhas armas [...]. Ele veio ao meu encontro; eu estava parado e
colocara-me junto dele. Todos os corações palpitavam por mim: as mulheres e os
homens suspiravam, todos os corações sofriam por minha causa [...]. Ele [ergueu] o
escudo, o machado e o braçado de dardos. Mas eu esquivei-me às suas armas, fiz com
que as suas setas passassem perto de mim, até à última, uma após outra. Então, ele ati­
rou-se a mim, mas eu trespassei-o e a minha seta cravou-se-lhe no pescoço. Gritou e
caiu de bruços. Matei-o com o seu próprio machado e soltei o meu grito de vitória
enquanto todos os Asiáticos aclamavam. Dei graças a Montu [o deus da guerra].
Peguei nas suas coisas, apoderei-me do seu gado e o que ele pensava fazer-me fi-lo eu
a ele.»

Todavia, se, no início do Médio Império, Sinuhe podia executar os seus feitos
guerreiros na Síria, dando conselhos aos «Príncipes dos Países estrangeiros»
{hq3w h3swt), nas paredes de um túmulo de Beni Hasanum já encontrámos a efí­
gie de um desses príncipes, que importava para o Egipto, devidamente registados,
o seu gado e os produtos do seu país. É um exemplo único de um afluxo mais
vasto de asiáticos que se estabelece no país como grupo orgânico que nós bem
conhecemos da literatura e agora da arqueologia: trata-se dos Hicsos — o termo
grego que traduz a expressão egípcia hg3w h3swt.
As escavações efectuadas nos últimos anos, na sua sede no Delta, por parte da
missão austríaca de Bietak, revelaram a presença de um núcleo bem qualificado
que, da Síria, leva para o Egipto materiais e estruturas típicas do Bronze Médio.
Se nos lembrarmos da forma como os Núbios, em Gebelein, destacaram as suas
características, percebe-se bem o paralelismo que justifica essas singularidades na
homogeneidade egípcia normal: trata-se de soldados estrangeiros que, de acordo
com uma tradição imemorial, são chamados a exercer o ofício das armas numa
sociedade que tem como personagem típica o camponês, só excepcionalmente e
provisoriamente guerreiro.

145
Quando o poder central revelou sintomas de fraqueza estrutural, em finais do
Médio Império, é que esses soldados organizados, dotados de uma cultura pró­
pria, puderam apresentar-se e impor-se como guias do país. Entre eles há até
quem tenha assumido como nome rçal o de «General» (jnr-nih"), o que é bastante
eloquente. Tanto quanto nos é possível julgar, este governo de soldados que
se tornam soberanos evoluiu de facto para uma via egipcizante, embora a pro­
paganda posterior tenha pintado com cores muito sombrias a sua bárbara
impiedade. Não nos interessa aqui seguir o seu percurso; recorda-se apenas
que 0 seu poder é limitado pela presença de uma família principesca meridio­
nal, fixada em Tebas e dona de uma grande parte do Alto Egipto. Também ela
tem os seus soldados e os seus mercenários núbios, que deixaram em vários
pontos do Alto Egipto as suas sepulturas características, os chamados «Pan
graves», que também existem na Núbia propriamente dita.
Durante um certo período, os dois potentados conviveram entre si, com pro­
váveis uniões matrimoniais entre as famílias principescas e reconhecimentos de
interesses económicos e de direitos de propriedade fora das zonas de estrita
soberania. Todavia, quando o equilíbrio se rompe e os príncipes de Tebas deci­
dem reconstruir mais uma vez a unidade egípcia a partir da sua região, a his­
tória militar do Egipto assume uma importância e uma caracterização total­
mente novas.
A guerra de libertação depressa se converteu em guerra de conquista, ou pelo
menos de submissão, em perseguição dos Hicsos fora das fronteiras egípcias, até
à Palestina. Constitui-se um império que, na época do seu pleno fulgor, vai desde
o Eufrates até à quarta catarata do Nilo, em pleno Sudão actual. O controlo de
um território tão vasto é naturalmente confiado às armas, e assim os militares
tornam-se os artífices e os garantes de novas exigências sociais, associadas ao
afluxo de tributos e de mão-de-obra escrava ao Vale do Nilo, que alteram profun­
damente a economia do país e a própria estrutura da sociedade.
Vistosamente simbólico é o novo modo de representar o rei, que na época
menfita surgia apenas como um sacrificador ritual de estrangeiros e que, no
Médio Império, é exaltado na sua temível invencibilidade, aliando às suas caracte­
rísticas tradicionais — que se limitavam aos títulos elogiosos — as características
concretas de uma actividade no campo de batalha: de rei vitorioso transforma-se
em rei soldado. Como tal, descreve os momentos da sua formação; eis como
Amenófis II recorda, numa esteia, os treinos com os cavalos durante a sua juven­
tude:

«Quando era ainda um jovem, amava os seus cavalos e regozijava-se com eles: o
seu coração ficava feliz por poder tratá-los, porque era alguém que conhecia a sua
natureza e hábil no seu adestramento.
O pai soube, na casa real, [...] adoçou-se o coração de Sua Majestade ao ouvir isto
e alegrou-se com o que se dizia do seu filho mais velho. [...] Disse Sua Majestade a
quem estava a seu lado: “ Que lhe sejam dados os cavalos da estrebaria de Sua Majes­
tade, situada em Mênfis” e lhe seja dito “ Trata deles, doma-os, ensina-os, cuida deles
se estiverem doentes.”

146
Ora, depois destas coisas o filho do rei ocupou-se dos cavalos da estrebaria real — e
Reshef e Astarte [duas divindades guerreiras semitas] rejubilavam com isso —, fazendo
tudo o que o seu coração amava: ensinou cavalos sem igual, eram incansáveis quando
os montava e não suavam durante um longo galope. Adestrava-os admiravelmente em
Mênfis e detinha-se no santuário de Harakhte.»

No túmulo de um alto funcionário da época, o futuro rei é representado a


aprender a servir-se do arco com o proprietário do túmulo. Se a ideia de ensinar
um rei é contrária à tradição egípcia, porque o rei é assim «desde que nasceu»,
neste caso o discípulo gabou-se posteriormente da habilidade que então adquirira:

«Ele dobrou 3000 arcos rijos, para comparar o trabalho de quem os construiu,
para distinguir um perito de um operário ignorante. Fez o que vos digo: entrou no seu
pavilhão setentrional e viu que tinham colocado para ele quatro alvos de cobre asiá­
tico, de um palmo de espessura, e vinte côvados [pouco mais de 10 metros] separavam
um poste do poste seguinte. Sua Majestade apareceu sobre o seu cavalo como Montu
[o deus da guerra] em todo o seu poder, pegou no arco e empunhou quatro setas ao
mesmo tempo; depois avançou, arremessando-as, com o aparato de Montu. As suas
setas passaram para o outro lado; então, dirigiu-se a outro poste.
Conseguir que uma seta atravesse um alvo de cobre e caia no chão é algo que
nunca se ouviu contar, que ninguém conseguiu, excepto o rei forte e poderoso, que
Ámon fez vitorisoso, o rei do Vale e do Delta, tão valente como Montu!»

Nesta época, na sua qualidade de príncipe herdeiro, o futuro soberano é o


comandante das tropas, preparando-se assim para as suas funções futuras.
No acampamento, é o rei quem convoca o conselho de guerra e discute com
os seus generais (e, segundo uma norma recorrente, propõe soluções ousadas que
contrastam com as soluções prudentes daqueles). Assim, Camose, no início da
guerra de libertação contra os Hicsos, discute com os seus nobres:

«Os nobres deste conselho disseram: “ Os Asiáticos [avançaram] até Cusa [...]. Mas
nós estamos tranquilos com a nossa [parte do] Egipto. [...] Cultiva-se para nós o
melhor dos seus campos [...] envia-se a espelta para os nossos porcos e o nosso gado
não é roubado [...]. Ele tem a terra dos Asiáticos, nós temos o Egipto [...].” Mas desa­
gradaram ao coração de Sua Majestade. “ Quanto ao vosso conselho [...] [é um conse­
lho vil. Combaterei] contra os Asiáticos. Vencerei. Quando [os tiver vencido], a terra
inteira [aclamar-me-á como rei poderoso] em Tebas. Camose, o protector do Egipto.” »

É esta a premissa óbvia para a entusiástica celebração dos feitos posteriores,


que conduzem à vitória.
Com muito mais serenidade, e com um sentido preciso de uma situação bem
definida, Tutmés III refere os antecedentes da batalha de Megido:

«Ano 23, primeiro mês da terceira estação, dia 16, na cidade de Ihem. Sua Majes­
tade convocou um conselho com o seu exército vitorioso, dizendo: “ O vil inimigo de
Qadesh entrou em Megido. Encontra-se lá neste momento; reuniu lá os grandes de
todos os países que estavam submetidos ao Egipto [...] e os seus cavalos, os seus solda­
dos, as suas gentes. Ele disse, assim se disse; ‘Esperarei para combater, aqui em
Megido, contra Sua Majestade.’ Dizei o que vos vai no coração.”
E eles disseram, dirigindo-se a Sua Majestade: “ Como se pode ir por esta via que
é tão estreita? Os inimigos esperam à saída, em força. Não deverá ir cavalo atrás de
cavalo, e os homens também? Não estará a nossa vanguarda já a combater, enquanto
a retaguarda estará ainda em Aruna, sem poder combater? Aqui há duas estradas:
uma é mais fácil para o nosso senhor, e ele sairá em Tanaka; a outra é a estrada a norte
de Gefty, e sairemos na cidade de Megido. Que o nosso senhor vitorioso escolha a sua
bel-prazer entre as duas. Mas não nos faça seguir por esta estrada tão difícil.”
Depois foram trazidas mensagens relativas ao inimigo e repetiu-se o conselho
acerca do plano de que se falara antes.
E assim foi dito na Majestade da tenda: “ Tao certo como eu estar vivo, tão certo
como o amor de Rá por mim e tão certo como o meu pai, Ámon, me favorecer, como
nas minhas narinas respiram de vida e de longevidade, seguirei por esta estrada de
Amuna. Quem quiser, que vá por aquelas duas vias de que me falastes; e quem o dese­
jar, que venha no meu séquito. Porque esses inimigos, objecto do desprezo de Rá,
diriam: ‘Sua Majestade foi por outra estrada porque tinha medo de nós.’”
E eles responderam a Sua Majestade: “ Possa o teu pai Ámon, senhor dos Tronos
das Duas Terras, que reside em Karnak, satisfazer o teu desejo. Nós vamos contigo a
todos os sítios onde queiras ir, porque um escravo segue sempre o seu senhor.’

E, por fim, este rei-soldado faz questão em tornar público que esteve no
campo de batalha, depois de ter planeado a acção.
Logo após o conselho de guerra de Megido, Tutmés III assume pessoalmente
o comando das suas tropas pela perigosa estrada (que efectivamente o conduziu
à vitória); seu filho, Amenófis II descreve como, armado apenas com o seu
machado, montou guarda durante toda a noite a um acampamento de prisionei­
ros no fim de um dia de batalha.
O topos do soberano combatente mantém-se na dinastia seguinte.
É certo que o discurso de Ramsés II depois de, em Qadesh, se ter visto incau-
tamente perante o exército hitita enquanto o grosso das suas tropas estava longe,
peca por uma evidente ausência de objectividade. Todavia, embora pouco credível
na letra, o texto é muito claro e autêntico na ideia que pretende oferecer daquilo
que se espera de um rei em combate:

«O que fizeram, pergunto, os meus príncipes, o meu exército, a minha cavalaria?


Ignoraram o combate! Por acaso não se engrandece o homem quando vem e se com­
porta valentemente perante o seu senhor? É belo o nome de quem combate, respeita-se
um homem por causa do seu valor, desde os tempos antigos [...]. Não conseguíeis con­
vencer-vos de que eu sou o vosso muro de ferro? [...] Os príncipes, os oficiais, os solda­
dos não vieram ajudar-me enquanto combatia, venci sozinho milhões de países, mon­
tando V itó ria -em -T eb a s e M u t-e s tá -c o n te n te , os meus nobres cavalos: foram eles que
me ajudaram quando combatia sozinho contra numerosos povos. Eu próprio lhes darei
de comer, todos os dias, na minha presença, quando estiver no Palácio.»

Na prática, este renovado modelo de soberano age por intermédio de um ins­


trumento, o exército, que já possui — com algumas alterações entre a 18.“ e a 19.“
dinastias — uma estrutura bastante bem definida hierarquicamente. Do soldado
(w ‘w) passa-se para o «chefe dos cinquenta», provavelmente uma subunidade da

148
unidade táctica constituída por 250 homens, sob o comando de um «Porta-estan­
darte» {t3y srit). Há depois os oficiais superiores {hry-pdt) que comandam uma
fortaleza, e os oficiais generais, o mr ms\ «General», o mr ssmt, «General da
cavalaria», o «escriba do exército» (5^ mS) que, provavelmente, também é si nfrw,
«escriba das recrutas». Acima de todos há um general-em-chefe {mr miVwr), que
é, em geral, um príncipe da família real. Fora desta série estão os comandantes
das guarnições em zonas ocupadas ou controladas e os inúmeros contingentes de
estrangeiros: mercenários ou prisioneiros de guerra que são egipcizados e utiliza­
dos para fins militares. Os corpos do exército contam com 5000 pessoas e são
dois, durante a 18.“ dinastia, e três, e depois, quatro no tempo dos Ramsés; com­
portam duas «armas», a infantaria e os carros de guerra. Para missões especiais
há ainda a «marinha», que utiliza barcos especiais e está armada, mas de que não
consta que tenha tido de travar verdadeiras batalhas navais: é utilizada sobretudo
no transporte de tropas num quadro estratégico geral, que se serve indiferenciada­
mente dos archeiros, dos infantes e dos condutores de carros. Aliás, possuímos
relatos, que se podem considerar técnicos, de várias batalhas egípcias, relatos
esses que se baseiam em «diários» escritos por pessoas nomeadas para esse efeito.
No seu túmulo, Tjaneny gaba-se de «ter escrito os feitos que Sua Majestade [Tut­
més III] praticou em países estrangeiros, e que foram escritos tal como foram exe­
cutados» (Urk. IV.622); por outro lado, conseguiu reconstituir-se (Yeivin) o
desenrolar da batalha de Megido, que foi chefiada por esse rei e travada de
acordo com um plano imaginado e cumprido (pelo menos, até onde foi possível)
independentemente do valor dos combatentes.
Todavia, o que nos interessa não é descrever as estruturas militares do Egipto
ou narrar a história das conquistas militares fora das suas fronteiras, mas ver
como este novo clima influiu nas realidades individuais — tanto quanto nos é
possível conhecê-las — e como casos individuais acabaram por caracterizar toda
a sociedade.
Algumas autobiografias do início da 18.“ dinastia podem ser um precioso
ponto de apoio para uma pesquisa deste género, e mostram até que ponto, nessa
época, era possível sentir que se participava na história da nação, até que ponto
os casos individuais se sentiram associados aos acontecimentos do país. Eis a
autobiografia de um tal Ahmés, filho de Iben:

«Falo-vos, ó homens, e dou-vos a conhecer os favores que recebi, que fui recompen­
sado com ouro por sete vezes, à vista de todo o país, e também com escravos e escravas,
e fui gratificado com inúmeros cargos, porque o nome de um valente é aquele que cum­
priu, e não existe esquecimento nesta terra, por toda a eternidade.»

E afirma:

«Vim ao mundo na região de Nekheb, e o meu pai era um soldado [w’w] do rei do
Vale e do Delta, Seqnenra, justificado, chamado Babas, filho de Ra-inet. Alistei-me em
seu lugar no barco do “ Touro Selvagem” no tempo do Senhor dos Dois Países, Neb-
pehtyra, quando ainda era jovem e ainda não tinha mulher e dormia numa cama de

149
rede. Mas quando me foi dada uma casa, alistei-me no barco “ Setentrional” porque
era um valente. Depois, fiz parte do séquito do soberano, como infante, estive atrás do
seu carro durante o cerco da cidade de Avaris e depois combati a pé, à vista de Sua
Majestade. Depois fui para o [barco] A q u e le Q u e S u rg e e m M ê n fis e combati na água
no canal de Avaris. Saqueei e ajudei: contaram isso ao rei e ele voltou a dar-me o ouro
do valor.» (Urk. IV.l e segs.)

Idêntica no tom à autobiografia de Ahmés é a de um tal Amenemheb, que


menciona os locais da suas batalhas, na Palestina e na Síria, com denominações
geográficas muito precisas, e recorda constantemente os seus despojos e as suas
recompensas. Assim, perto de Alepo, «trouxe treze asiáticos como prisioneiros de
guerra, treze homens, sete burros vivos, treze lanças de bronze com embutidos de
ouro». Faz mais prisioneiros, leva-os para Karkemish, para Qadesh e para outros
locais e entrega-os ao rei: «Então, o meu senhor deu-me o ouro da honra. Lista:
dois colares de ouro, quatro pulseiras, duas moscas, um leão [a mosca e o leão
são condecorações militares], uma escrava e um escravo.» (Urk. IV.890 e segs.)
Mas há pormenores ainda mais precisos: quando o príncipe de Qadesh solta
uma poldra no cio para provocar a agitação entre os carros egípcios puxados por
garanhões, Amenemheb persegue-a a pé e mata-a. E quando o rei decidiu caçar
elefantes na região de Ny — na Síria — e o maior da manada o agrediu, Ame­
nemheb foi ao seu encontro e cortou-lhe a tromba: «Então o meu senhor pre­
miou-me com ouro; deu-me [...] e três mudas de roupa.»
O que transparece deste textos é um orgulho de veteranos, o prazer, dir-se-ia,
de se ter participado na história, o gosto das honrarias com que o soberano quis
fazer partilhar a sua glória, já não solitária, os combatentes, brindando-os com
condecorações que atestam o seu valor, e, por fim, a discreta alusão a uma rela­
ção directa, quase de companheiros de armas, com um soberano. Amenófis II,
durante a festa de Opet que se seguiu à sua coroação, encontra este Amenemheb
remando no seu barco; reconhece-o e chama-o ao Palácio: «Conheço-te desde o
tempo em que estava ainda na casa paterna e tu eras um companheiro de meu
pai. Agora nomeio-te lugar-tenente do exército, e a partir de hoje comandarás a
guarda real.» (Urk. IV. 9(X).)
Teremos algo mais a dizer acerca desta intimidade de relações entre soberanos
e oficiais. Contudo, chegou a altura de esclarecer uma situação mais geral. Os
soldados são um grupo social hereditário, que transmite a sua posição de pais
para filhos. São registados em listas constantemente actualizadas, e quando o
militar é dispensado, o filho ocupa o seu posto e as vantagens que lhe estão asso­
ciadas, ou seja, o usufruto de um pedaço de terra, normalmente situado em
zonas circunscritas, para que se possam constituir autênticas aldeias militares,
cujos residentes tinham à sua disposição um campo e os escravos que foram rece­
bendo como recompensa da sua bravura, Não são verdadeiros proprietários, pelo
menos até à 19,* dinastia, mas constituem um grupo que vive do trabalho de
outrem, e que prepara assim o nascimento de uma classe intermédia entre a classe
dominante e a dos trabalhadores privados da posse dos meios de produção.

150
A faceta «burguesa» da 18.* dinastia, que se delicia com objectos de boa quali­
dade, de bom gosto fácil, de uma difusa jovialidade, é, em parte, gerada por esse
núcleo de pessoas dispensadas do trabalho diário, e de modesta mas nào mínima
abastança.
Aliás, há textos em que os soberanos (Ramsés II, Ramsés III) se vangloriam
das vantagens que proporcionaram aos seus soldados, vantagens essas que foram
um facto, como, apesar das hipérboles habituais, provam as inúmeras esteias
dedicadas por soldados a Ramsés II — que figura como deus — e sobretudo às
suas estátuas divinizadas (as chamadas «Esteias de Horbeit» — na realidade, de
Pi-Ramsés).
A existência de um exército regular acaba assim por modificar profundamente
a estrutura econômica do país, favorecendo a longo prazo a constituição de uma
pequena e média propriedade paralela às terras da Coroa, dos príncipes e, princi­
palmente, dos templos. A situação econômica dos postos mais elevados vai, natu­
ralmente, melhorando; e os oficiais são os que conhecemos melhor porque mais
facilmente deixaram documentos da sua actividade e dos seus problemas. São eles
os responsáveis pela vida e pela eficiência do exército e dividem-se em dois gru­
pos: oficiais combatentes e oficiais dos serviços. Embora seja duvidoso que o pes­
soal tenha sido repartido pelas duas tarefas de uma forma metódica e total, uma
das características mais evidentes do exército egípcio é, de facto, a importância e
o cuidado concedidos à organização. Medem-se as distâncias entre as cidades,
preparam-se os portos para os desembarques, calculam-se as rações, as cargas, as
armas que devem ser postas à disposição, as atribuições dos indivíduos, etc. As
reproduções de um acampamento egípcio — em Qadesh, antes da batalha de
Ramsés II — mostram um fosso sobre o qual estão colocados os escudos e, no
seu interior, tendas que albergam escabelos e mesinhas, louças e alfaias, e há
ainda pessoas a lavar, lançando água, a descarregar os burros, etc. É uma
pequena cidade organizada, onde se vive uma vida comodamente quotidiana;
porém, o facto de, no auge de uma arriscada campanha militar, estes aspectos
«civis» continuarem a ser plenamente válidos revela um aumento notável do tra­
balho e da vigilância por parte dos serviços auxiliares.
Um exercício escolar, que se compraz sobretudo em alinhar toda a terminolo­
gia possível (e muita da qual já não nos é possível determinar com certeza) numa
ostentação retórica, diz-nos o que se deve esperar que a intendência leve consigo
durante uma expedição à Síria:

«Ocupados em fazer com que estejam prontos os ginetes da esquadra que se [des­
tina] a Kharu [a Síria], juntamente com os seus chefes de estrebaria e com os seus pala-
freneiros; com os seus sacos de pêlo cheios de provisões e palha finamente moída; com
os seus alforges cheios de [pães] k y lle stis; com cada burro vigiado por dois homens;
com os carros feitos de madeira brry, carregados com toda a espécie de armas de
guerra; oitenta setas na aljava, a h m y t, a lança, a espada h rp , a espada q w t; o s k - h m ,
o chicote de madeira tja g a com correias, a clava para o carro, o bastão da guarda, o
dardo de Khatty [o país dos Hititas] e o afrouxa-rédeas, com o punho de cobre de liga
sêxtupla gravado a buril [...]. Têm as couraças colocadas junto deles, os arcos [...] às

151
suas cordas. Verificaram a madeira dos arcos, esticando-a, o seu couro triÈy é de polida
textura [?], o leme é de madeira tja g a desbastada, calçado de couro, bem acabado,
oleado e polido.»

Um exemplo clássico deste interesse pela organização surge num famoso texto
literário, a polêmica carta de um escriba do exército, um tal Hori, em resposta a
um colega, Amenemope, que lhe escreve num tom considerado ofensivo. A carta,
cheia de malévola cortesia, responde ao rival e faz-lhe uma série de perguntas que
testam a sua maturidade profissional. São perguntas sobre geografia, contabilidade,
avaliação da existência de mão-de-obra, divisão de rações, feitas por alguém que
é um literato, mas também um funcionário, e, acima de tudo — como faz questão
de demonstrar — um soldado porque, para redigir a sua carta, vai para junto dos
cavalos, que são típicos do estatuto de militar. Não podemos deixar de transcrever
um excerto desta carta, para se perceber o que são esses oficiais:

«O escriba avisado, intuitivo [...] resplandece na escuridão à frente do exército, que


ele ilumina! Foste enviado numa expedição à Fenícia [(?)...]. Tens à tua frente 1900 sol­
dados, 520 sherden, 1600 qehaq, mesahsh [100], 880 núbios. Total: 5000, sem contar
com os seus oficiais. Trazem-te como presente pão, gado, vinho. O número dos
homens é demasiado grande para ti, e as provisões são escassas [...]. Os soldados são
muitos e poucas as provisões [...]. O exército está equipado e pronto. Regista-os
depressa, cada qual segundo a sua companhia. Os beduínos observam furtivamente:
“ Que escriba tão sábio!” [em siríaco, no texto], dizem. É meio-dia e o acampamento
está em brasa. Dizem: “ São horas de partir. Não enfureças o oficial! Temos uma longa
marcha à nossa frente.” Mas por que não há pão? O acampamento onde passamos a
noite fica longe. Por que nos maltratas, bom senhor? No entanto, és um escriba inteli­
gente [...].»

Esta proeminência das funções organizativas e administrativas aparece em


vários documentos. Os modelos de cartas oficiais que são fornecidos aos estu­
dantes das escolas da época dos Ramsés, e que parecem uma antologia de mate­
riais autênticos, falam de alistamentos feitos por engano que têm de ser revistos:
jovens destinados ao sacerdócio que são recrutados como soldados, veteranos
inseridos em listas de camponeses (Boi. 1094), convites peremptórios para se res­
peitarem as competências recíprocas de vários oficiais (An. V. v. 25.2 e segs.), ou
registos de postos fronteiriços (An. III. v. 6.1) onde se enumeram as passagens
dos mensageiros que trazem ordens do Egipto para as guarnições sediadas nos
países controlados. Estas guarnições são constituídas por pequenos grupos de
soldados comandados por um oficial egípcio e estão formalmente à disposição
dos príncipes locais, para apoiarem a sua autoridade e, paralelamente, garantirem
a sua fidelidade. Aliás, há muitos oficiais que são investidos de funções civis e
enviados como embaixadores à Síria — o país onde fizeram o serviço militar e
que, por esse motivo, conhecem bem.
Um indício particularmente eloquente desta vocação administrativa parece ser
o facto de a personagem que, na hierarquia militar, surge logo a seguir ao «gene­
ral» ser o «escriba das recrutas» (ou «do exército»). É ele quem se ocupa de todo

152
o emaranhado de listas que permitem que os filhos dos soldados profissionais
ocupem o lugar dos pais ou que obrigam as aldeias a fornecer, «de acordo com
os seus números» (Urk. IV, 1007), pessoal para o exército, como auxiliares de
vários tipos. Listas que são actualizadas, e que compreendem também os escravos
de guerra que são atribuídos às várias administrações e que a estas podem ser
requeridos.
Conhecemos alguns desses «escribas das recrutas» e com este título há certas
personagens fora do comum.
Uma delas é o «escriba das recrutas» de Amenófis III, Amenhotep, filho de
Hapu, O facto de o exército poder ser utilizado não só em operações de guerra
mas também em obras civis que exigem mão-de-obra faz com que esses «escribas
das recrutas» estejam ligados a actividades de obras públicas a todos os níveis (na
carta polémica de Hori, já citada, encontramos, por exemplo, soldados a extraí­
rem pedras ou a erguerem obeliscos). Por isso, Amenhotep é também «superin­
tendente de todas as obras do rei» e «superintendente dos trabalhos da montanha
da quartzite [o Gebel el Ahmar, perto do Cairo]» e, consequentemente, responsá­
vel pelas imponentes obras públicas que caracterizam a época do seu soberano
(que, entre outros, construiu o templo de Luxor, os colossos de Mémnon — de
quartzite, justamente — e toda a cidade real de Malqata). Amenhotep foi tão
apreciado pelo seu soberano que teve direito a um templo funerário entre os tem­
plos reais da margem ocidental tebana e em breve foi divinizado; o seu culto, sob
o nome helenizado de Amenothes Paapis, prolonga-se até à época romana.
Ainda mais complexa e brilhante é a carreira de outro «escriba do exército»,
Horemheb, que, em finais da 18.® dinastia, tem nas suas mãos tantos poderes que,
ao extinguir-se a linha dinástica de sucessão, pôde assumir as funções de rei.
Sem chegar a estes casos, naturalmente excepcionais, o processo habitual de
inserção dos oficiais nas posições de comando da estrutura estatal egípcia é serem
encarregados de tarefas civis no momento em que são licenciados pelo exército.
Parenen, «superintendente da estrebaria real», foi «escriba da Casa da Vida dos
Dois Países» e encarregado de organizar as festas do deus Osíris (Wien 906.51).
Horemheb, que fora oficial no tempo de Tutmés III e Amenófis II, torna-se, no
reinado do filho deste, Tutmés IV, «superintendente de todos os sacerdotes do
Alto e do Baixo Egipto». No reinado de Tutmés III, Mai é nomeado «Príncipe e
Chefe dos Profetas do X nomos do Alto Egipto», «Companheiro de Sua Majes­
tade Tutmés IV em todos os países estrangeiros desde a Núbia até à Síria [Naha-
rina]» e «chefe da estrebaria»; Amenhotep, sumo sacerdote de Onúris em Tinis.
Os generais são muitas vezes encarregados de administrar propriedades do faraó
ou das mulheres da casa reinante ou dos templos funerários reais. Os «escribas
das recrutas» tornam-se «administradores generais» {mr-pr wr) e na autobiogra­
fia do rei Horemheb, na sua estátua em Turim, fala-se explicitamente de oficiais
que vão reconstruir o sacerdócio tradicional após a heresia atoniana.
A osmose é constante e os títulos das personagens confirmam-na com fre­
quência, mas devia ser mais ampla do que parece, dado que, em muitos casos, os
altos funcionários tendem a omitir, nas listas dos seus títulos, os antecedentes
militares da sua carreira, insistindo apenas na sua parte civil. Por isso, há muitos

153
cuja actividade militar conhecemos apenas por acaso, o que prova que, no
Egipto, mesmo na época do seu máximo esplendor imperial, a administração
tinha mais prestígio do que o exército.
Todavia, o exército tem outro para além daquele, que é óbvio, de ter «alargado
as fronteiras» do Egipto ou de ter permitido a constituição de uma burguesia
citadina. Se, em mais de um caso, um estudo prosopográfico pode revelar que
havia oficiais superiores ligados por laços de «fraternidade de leite» ao faraó,
noutros casos as genealogias mostram personagens cujos progenitores não têm
títulos, ou têm títulos bastante modestos. A sua carreira está ligada à experiência
da guerra ou, pelo menos, de campanhas militares levadas a cabo na presença do
rei, que os promove e assim revigora com energias experimentadas e não hereditá­
rias a classe dirigente tradicional. Este processo pode ser acompanhado ao longo
de toda a 18.® dinastia e, em certa medida, vai culminar, quase simbolicamente,
nos três generais que, no final dessa dinastia, ocuparam o trono: Horemheb,
Ramsés I e Sethi I. A passagem do exército para a administração converte-se
então num facto normal, num instrumento que permite ao faraó fazer as suas
escolhas fora dos mecanismos da hereditariedade das funções.
A época dos Ramsés é aquela em que amadurece a constituição de uma
camada «burguesa» da sociedade da 18.® dinastia; a classe média dos funcioná­
rios e dos militares manifesta-se em toda a sua múltipla variedade de comporta­
mentos sociais e culturais. Escribas e soldados têm carreiras e possibilidades para­
lelas, que, no auge da sua evolução, chegam a um domínio comum. Mas as
inevitáveis tensões emergem de vários pormenores e são expressas literariamente
numa série de textos que os escribas se comprazem em transcrever nos seus livros
de exercício e de estudo e que tornam actual um velho tema da cultura dos escri­
bas: a superioridade de quem sabe manejar o cálamo em relação a todos os
outros trabalhadores. O tema é o da Sátira dos Ofícios e nascera em finais da
época feudal, quando a administração foi reorganizada como centro unificador
de poder à disposição do soberano. O texto descreve, com impiedosa verve, a
dureza das actividades específicas de todas as componentes da sociedade egípcia.
É significativo que, nessa série, falte a descrição do soldado, que tinha sido,
na época feudal, e ainda era, um elemento essencial da sociedade.
Na época dos Ramsés continua a ler-se na escola o texto exemplar da Sátira,
mas remedeia-se amplamente aquela lacuna com uma série de textos, muitas
vezes paralelos e afins, que, com perverso prazer, realçam canseiras, perigos e
frustrações da vida militar. Eis um desses textos:

«Vem, vou descrever-te os males do soldado pois que são muitos os seus superiores:
o general, o chefe dos archeiros, o oíicidX -sekeí que está à frente deles, o porta-estan­
darte, o lugar-tenente, o escriba [militar], o comandante de 50 homens, o chefe da guar­
nição. Esses entram e saem da sala do palácio do rei e dizem: “ Pode-se trabalhar!”
É acordado à 1 hora da manhã. Carregam-no como [se fosse] um burro, e trabalha
até ao pôr do Sol, com a sua escuridão nocturna. Tem fome, o seu corpo é maltratado,
está morto embora ainda esteja vivo. Recebe a ração de trigo quando é dispensado da
sua obrigação, mas depois de moído o trigo não é bom.

154
É chamado de novo à Síria e ainda não repousou. Não há roupas nem sandálias.
As armas foram roubadas na fortaleza de Tjalu.
São longas as marchas sobre as colinas, e ele bebe água de três em três dias, água
fétida, com sabor a sal. O seu corpo é roído pela disenteria. Chega o inimigo e rodeia-
-o de setas; a vida está longe dele. Dizem: “ Vá, avante, soldado valente, conquistaste
um nome glorioso!” Mas ele já não sabe quem é. O seu corpo está fraco e o joelho
cede perante [o inimigo]. Alcança-se a vitória. Os despojos destinados ao Egipto são
entregues a Sua Majestade. A estrangeira [prisioneira] desmaia durante as marchas e é
colocada às costas do soldado. Deixa ficar o alforge, que fica para outros, porque ele
vai carregado com a prisioneira. A mulher e os filhos estão na aldeia mas ele morre e
não voltará para eles.
Se sobrevive, é destruído pelas marchas. Esteja aquartelado ou no campo, está des­
contente. Se se escapa e foge com os desertores, todos os seus são presos.
Quando morre no limite do deserto, não há ninguém para perpetuar o seu nome.
A morte e a vida são-lhe [igualmente] dolorosas. Já não conhece o lugar do seu
repouso.
Sê um escriba, para que possas estar livre da vida de soldado, para que possas cha­
mar e alguém responda: “ Estou aqui!” para que possas estar livre de tormentos. Todos
procuram enaltecê-lo: lembra-te disto.»

O gosto literário pela amplificação e pelo grotesco é evidente. A desvaloriza­


ção daquilo que oficialmente é apreciado (já na 18.® dinastia a glória do valente
era exaltada) torna-se normal, como no caso da prisioneira que, mais do que uma
presa ambicionada (como, recorde-se, já era apresentada na mais antiga reprodu­
ção militar, a da época menfita, em Deshasha) converte-se num lamentável e pre­
judicial estorvo.
O carácter estereotipado dessa imagem é evidente, se recordarmos o excerto
citado da carta polêmica de Hori, onde se descreve o ambiente em que se faz a
distribuição das rações, na presença dos Beduínos: é um oficial que fala a um ofi­
cial, mas retoma o tom e a vivacidade dessacralizante do literato que observa do
exterior, no sossego do seu gabinete.
De facto, nesta época, a par desta repetição de avisos aos jovens para que não
se deixem transviar pelo fascínio dos cavalos e das armas, há uma propaganda
particularmente eficaz que, das paredes exteriores dos templos e dos seus pátios,
se estende a todo o país, narrando em complexas figurações os vários momentos
dos feitos militares do soberano, representado como comandante das suas tropas
e não como solitário massacrador ritual de prisioneiros perante o deus titular,
representações essas que se repetem em diferentes períodos e em localidades dife­
rentes: a batalha de Qadesh, de Ramsés II, tem uma série de réplicas que derivam
todas dos mesmos cartões (iguais e, por isso mesmo, oficiais) e que, por todo o
lado, colocam sob os olhares de toda a gente os dramáticos momentos da bata­
lha, as fileiras dos soldados, os mortos, os locais onde tudo ocorreu. Assim são
celebrados, nos relevos de Karnak, os feitos de Sethi I na Síria, ou os de Ram­
sés II contra os Povos do Mar, no seu templo funerário de Madeinet Habu.
A vitória, ou aquilo que se considera como tal, não é apenas um dado de facto
óbvio; mostra-sç também o modo como se obteve essa vitória, especificando até

155
os pormenores não essenciais mas característicos, como os pastores dos países ini­
migos impelindo com fúria o seu gado para longe do campo de batalha. É certo
que, mais do que uma dimensão histórica, essas reproduções conferem aos factos
de guerra a dimensão de uma narrativa que excita a fantasia. De facto, nesta
época, os feitos militares já não são narrados na linguagem seca dos «Anais» de
Tutmés III, mas na das múltiplas versões, de vários níveis de literariedade, do
relato da batalha de Qadesh que vão desde o «boletim» ao «poema» e que se
convertem em literatura oficial nas escolas (a par dos textos antimilitaristas!).
Fora do mundo oficial, no desabrochar da literatura de entretenimento própria
desta época, surgem personagens históricas do passado envergando trajos milita­
res. Há, é certo, o general Lisene com quem o faraó Pepi II mantém uma relação
equívoca; mas também há Tutmés III, celebrado como herói de feitos já remotos
no tempo, e o general deste rei, Djehuti (de cuja brilhante carreira de militar
temos os monumentos e as provas) que, segundo se diz, ocupou a cidade de Jafa
introduzindo nela, sub-repticiamente, as tropas egípcias, estratagema que será
depois usado por Ali Babá. O militar, nesta época, excita a fantasia dos Egípcios.
No relato de dramáticos pormenores das guerras líbias de Meremptah ou na
reprodução das batalhas de Ramsés III contra os Povos do Mar, surgem as perso­
nagens terríveis e preocupantes de novos protagonistas da história do Oriente
(e talvez não só do Oriente) mediterrânico. Pessoas que, deslocando-se em busca
de novos locais para se estabelecerem, destruíram o ordenado equilíbrio dos
vários impérios da região, substituindo-os por novas e mais variadas realidades
políticas.
Os vestígios destes movimentos são mais antigos e, no Egipto, existem tam­
bém testemunhos da presença de soldados pertencentes a esses povos e que se
apresentavam com os seus trajos típicos. As grandes batalhas decisivas, que impe­
diram a chegada em força desses estrangeiros ao Egipto, também puseram à dis­
posição dos Egípcios um número enorme de prisioneiros, cujo destino é descrito
num texto de Ramsés III: marcados a ferro em brasa, como se marca o gado, são
encerrados na fortaleza. A sua língua é «subvertida», são egipcizados, são explo­
rados na sua experiência e vontade militares, tornam-se soldados. É assim que,
durante um certo tempo, em grupos étnicos como os Sherden ou os Meshwesh há
soldados ao serviço do Egipto, que alargam e defendem as suas fronteiras e inimi­
gos agressivos contra quem é necessário intervir com decisão.
Segundo os costumes egípcios, esses militares estrangeiros vivem em acampa­
mentos especiais e mantêm a sua caracterização étnica, um pouco à semelhança do
que se verificou na época moderna com os contingentes coloniais dos exércitos
europeus. Todavia, segundo a regra em vigor, o comando dessas unidades é entre­
gue a egípcios (tal como o comando das tropas coloniais era sempre entregue a ofi­
ciais da mãe-pátria), à excepção das unidades de «caçadores» que patrulhavam o
deserto, e que eram constituídas por membros de tribos nômadas que conheciam
bem o local; essas unidades eram comandadas por membros da mesma tribo.
No entanto, na época posterior à dos Ramsés, aquilo que fora uma excepção
torna-se regra, e quando os prisioneiros são substituídos pelos mercenários líbios
que vêm para o Egipto como militares, estes têm a comandá-los príncipes líbios.

156
Não mudam os seus nomes para nomes egípcios, como tinham feito outrora os
estrangeiros que se tornaram importantes na sua nova pátria, e ostentam altiva­
mente na cabeça uma pena de avestruz, o adorno característico do seu povo. Dis­
tribuídos pelas guarnições que lhes estão destinadas em todo o país, esses gene­
rais tornam-se de facto os verdadeiros detentores do poder, perante uma
monarquia e uma administração cada vez mais indecisas. Tornam-se por isso
príncipes, sacerdotes oficiais das divindades locais, numa palavra, assumem todas
as prerrogativas que competiriam à monarquia e substituem de facto a monar­
quia, ao colocar no trono um dos seus, Shesonq I, fundador de uma dinastia
conhecida por «dinatia Ifbia». O paralelismo com o que acontecera aquando da
fixação dos Hicsos no trono egípcio é evidente. Se os Hicsos tinham acabado por
permutar a sua cultura nacional com a cultura egípcia, muito mais fácil foi o pro­
cesso para estes líbios, que não possuíam uma identidade cultural tão complexa
como a síria, mas sobretudo uma civilização a nível etnográfico. A época «líbia»
é, de facto, uma época caracterizada por requintadas expressões de uma civiliza­
ção que adopta, e explora, as experiências de Ramsés. Mas a sua estrutura origi-
nariamente militar, que deriva da afirmação de um grupo de comandantes de
guarnição de idêntico nível de autoridade, propõe ao Egipto um modelo novo de
estrutura política: os «reis» multiplicam-se e as cidades convertem-se em outros
tantos centros de poder, destruindo a homogeneidade política que fora a caracte­
rística e a força do Estado faraónico, homogeneidade que tinha conhecido alguns
períodos de crise mas que sempre fora sentida como ideal.
Os produtos artísticos desta época mostram um país rico e culto, e não se
pode decerto falar de decadência; melhor, uma época que, após a passagem dos
Povos do Mar, assistiu à crise da ideologia imperial em todo o Levante, essa pací­
fica conversão da totalidade egípcia num articulado sistema de cidades-estado
podia ser um elemento de modernização, de acordo com o espírito da época, de
um sistema que começava claramente a perder o passo em relação ao mundo que
0 rodeava. Esse processo terminou com a invasão dos Etíopes do Sul, que reunifi­
caram todo o Vale do Nilo, desde a confluência dos dois Nilos até ao mar, com
uma ideologia bastante diferente — e, depois, com a vitória assíria sobre esses reis
etíopes: uma vitória que, pela primeira vez, reduziu o Egipto a uma província de
um império estrangeiro.
Todavia, a história do Egipto não acaba assim. O rápido e inesperado fim do
domínio assírio deixa de novo o campo livre para as dinastias líbias, para os
«doze reis» que faziam sorrir Heródoto, que via neles uma multiplicação perversa
de um ideal monárquico que ele não partilhava. Era a reconstituição do mundo
político «líbio», que em breve iria sucumbir perante a decisão e a ambição de um
desses príncipes, Psamético de Saís.
Também neste caso, são os soldados que imprimem uma viragem à história
egípcia. Retomando o velho costume, Psamético chama soldados estrangeiros ao
Egipto; dessa vez, são soldados cários e sobretudo gregos. É com a sua ajuda que
Psamético se estabelece como rei único, transmitindo aos seus sucessores um
poder que continuará a fazer brilhar a estrela do Egipto. Encontramos esses
soldados na mais antiga inscrição em alfabeto jónico que se conhece, gravada

157
na base de um dos colossos de Abu Simbel, onde se detiveram e disseram ao ser­
viço de que rei estavam e quem era o comandante do seu contingente de «homens
de língua diferente»: um egípcio. Sabemos também onde se situava o seu aquarte­
lamento no Delta, em Dafne, actualmente Tell Dafanna.
Aparentemente, esses gregos são os sucessores dos núbios de Gebelein e dos
Hicsos de Tell Dab’a. Recentemente foi encontrada uma estátua — de fabrico
egípcio e transportada para a sua cidade na Ásia Menor —, de um desses gregos,
que, em grego, recorda as honras que lhe foram prestadas no Egipto: condecora­
ções (o «ouro do valor» dos combatente egípcios da época imperial) e recompen­
sas (uma «cidade», seja qual for o significado preciso desse termo). Entre tantas
analogias, há algumas diferenças fundamentais. A primeira, ao nível da informa­
ção: se, até agora, as nossas fontes foram as egípcias, a partir de agora passam
a ser as gregas, de Hesíodo a Tlicídides e a Plutarco, com todas as diferenças de
perspectiva e de abundância de pormenores que isso comporta.
De facto, porém, há outra diferença mais importante. Os antigos soldados
egípcios, indígenas ou estrangeiros, tornavam-se usufrutuários de terras, daquilo
que, na época ptolomaica, serão as «cleruquias». O Egipto passava assim a ser a
sua pátria, com fronteiras que tinham interesse em defender e com um sistema
político que garantia a sua posição. Os mercenários gregos não querem terras,
querem ser pagos em dinheiro. É por causa deles que, no Egipto, um soberano
acabará, excepcionalmente, por cunhar moeda; mas surge também a necessidade
de o ganhar e de estruturar o comércio para esse fim (e uma cidade comercial
grega, Naucratis, nasce no Delta, com a sua constituição e as suas leis, num qua­
dro de compromissos sancionados pelos Egípcios).
Mal recebem o seu soldo, os mercenários gregos deixam de ter quaisquer laços
com aquela terra, que serviram em troca de riquezas que acabam por ser exporta­
das — ao passo que o produto dos campos das cleruquias ficava no local e estava
sujeito a impostos. Além disso, o mercenário grego pode facilmente passar de um
campo para o outro: o general que organizou a defesa do istmo contra o perigo
persa é o mesmo que, no momento da batalha, indica o caminho ao exército inva­
sor. E não tinham faltado, anteriormente, as tensões entre soldados indígenas e
soldados estrangeiros que tinham conduzido à substituição de Aprie por Amásis.
A conquista persa do Egipto deu início a uma época de situações totalmente
novas: durante alguns períodos, o país foi uma satrapia regida por interesses per­
sas, durante outros, foi um país rebelde ao jugo estrangeiro, governado por sobe­
ranos indígenas, uns efêmeros, outros (como foi o caso dos dois Nectanebo)
capazes de reconstruir e reavivar uma tradição de grandeza. Mesmo nesta época
a presença militar foi um elemento essencial da vida social e política: como tropas
de ocupação ou de apoio à luta pela independência, os soldados têm com fre­
quência um papel de primeiro plano. O governo persa coloca no país guarnições
suas, que ocupam os clássicos acampamentos militares nas fronteiras (entre eles,
o acampamento de Elefantina, na fronteira meridional com a Núbia, é o mais
conhecido pelos papiros aramaicos que se referem ao local e documentam a vida
de uma colônia militar de hebreus, raro testemunho directo de um mundo que,
em geral, só conhecemos através do filtro da tradição bíblica). Como súbditos

158
persas, os Egípcios saem, por sua vez, das suas fronteiras e enviam tropas para
participarem nas empresas militares do Grande Rei, e há quem saiba fazer car­
reira precisamente nas forças armadas persas, como um tal Glos, que foi almi­
rante da frota que derrotou Evágoras de Chipre (381 a. C.).
Todavia, nos períodos em que o Egipto é independente e se encontra em
guerra potencial com Susa, a situação é bastante mais complexa. A hostilidade
para com a Pérsia associa a política e os interesses egípcios aos gregos, e se, na
época saítica, já tinham vindo soldados gregos auxiliar as milícias egípcias, agora
a presença grega assume um carácter muito diferente. Trata-se de auxílios oficiais,
com tropas comandadas por personalidades extremamente representativas, como
o espartano Agesilau (um rei de Esparta) ou o ateniense Cabria. Tropas que, no
Egipto, agem formalmente no âmbito de uma soberania local, mas que, na reali­
dade, obedecem às ordens que lhes são dadas pela instável política das suas cida­
des de origem em relação aos Persas. Perante soberanos que, em muitos casos, só
sobrevivem graças à sua presença e à sua ajuda, estes generais gregos ditam as
condições em que pensam poder agir, e interferem nos assuntos internos egípcios.
Cabria conseguiu que a monarquia financiasse a defesa com os tesouros dos tem­
plos, mas, quando Atenas lhe ordena explicitamente que regresse à pátria, deixou
inesperadamente o país onde exercera uma autoridade quase de sirdar, para
empregar o termo com que era designado o residente britânico que «aconse­
lhava» a monarquia egípcia na época colonial. Durante a conquista grega e o rei­
nado ptolomaico, e depois, durante a anexação ao Império Romano, os soldados
egípcios ainda são elementos essenciais para a vida social: as cleruquias ptolomai-
cas retomam os velhos modelos de soldados fixados em colônias agrícolas, a pre­
sença de soldados egípcios na batalha de Rafia é o primeiro indício da revigora-
ção do elemento indígena no Egipto ptolomaico e, na época romana, o facto de
terem servido nas unidades imperiais faz com que os veteranos que regressam à
pátria assumam uma importância especial nas suas cidades de origem e sejam um
elemento de junção com o resto do mundo romano. Contudo, estes problemas
teriam de ser tratados a partir de uma documentação totalmente diferente e num
âmbito mais largo, e não é oportuno encará-los aqui.
Os traços com que, de uma forma rápida e por vezes quase elíptica, tentámos
individualizar os vários momentos e os vários significados sociais e culturais da
presença do soldado na história egípcia deverão ter mostrado até que ponto esta
personagem, que é das que menos dão nas vistas no amplo quadro dessa civiliza­
ção, é, de facto, uma das suas componentes essenciais: através da evolução de sig­
nificados sempre diferentes, vimos a presença dos soldados como protagonistas
nos períodos de crise da história egípcia. Todavia, uma das características dessa
civilização é ter ocultado a importância das armas (e da posse das armas) sob
outros ideais de ordem e de convivência pacífica e — embora tenha sabido exaltar
a coragem e o valor — ter depois insistido sobretudo na importância da sageza
e da justiça.

159
CAPITULO VII

O ESCRAVO

p o r A n to n i o L o p rie n o
In tro d u ç ã o

O egiptólogo sente inevitavelmente um certo mal-estar quando é chamado a


discorrer acerca da figura do escravo no antigo Egipto, na medida em que a pró­
pria hipótese da existência de uma forma qualquer de escravatura de tipo clássico
no Vale do Nilo continua a ser objecto de discussão entre os estudiosos da histó­
ria econômica e social. E se é verdade que, desde a antiguidade bíblica, a imagem
que subsiste para os Ocidentais é a do Egipto como bêt ‘abãdim, «casa de escrava­
tura», como civilização que baseia a sua própria riqueza na exploração do traba­
lho forçado, o egiptólogo não pode considerar como casual a ausência, numa
sociedade como a do Egipto faraônico onde o documento escrito inunda toda a
esfera comunicativa do indivíduo e do Estado, de uma codificação jurídica do
estatuto de «escravo». A abundância de documentação escrita — epigráfica e
papíria, literária e administrativa, religiosa e profana — transmitida pela cul­
tura egípcia parece contrastar nitidamente com a escassez de informações acerca
da situação antropológica (no sentido mais amplo do termo) dessa figura
humana: é um facto — como veremos, documentado — que muitos dos grupos
sociais descritos nos decretos reais ou nos textos administrativos estavam sujeitos
a várias restrições da liberdade individual, mas uma questão bastante mais difícil
de resolver, e que exige um reexame atento das fontes, é saber a qual desses gru­
pos — a que correspondem definições como mrj. t, «dependentes», ou d.t, «pes­
soal», hsb.w, «trabalhadores forçados», bSk.w, «operários», hm.w, «servos»,
hm.w-nzw, «servos reais», sqr.w-*nh, «prisioneiros de guerra», ‘3mw.w, «Asiáti­
cos», etc. — se aplica com propriedade a definição de «escravos».
O problema apresenta, em parte, um aspecto meramente terminológico, e por
isso potencialmente negligenciável: a leitura de estruturas sociais ou de factos cul­
turais de uma civilização qualquer através dos paradigmas de referência (mesmo
linguísticos) elaborados por outra é sempre, sob o ponto de vista hermenêutico,
um processo espúrio; mas, na prática da análise intercultural, o estudioso não
pode deixar de operar à luz da sua experiência histórica. Poder-se-á falar de
«cidade» no Egipto faraônico? Certamente que sim, na medida em que a oposi­
ção entre n\tj, «cidadão» (ou seja. Egípcio) e ‘3mw, «beduíno» (ou seja, asiático)
constitui um topos cultural bastante frequente na literatura egípcia clássica;
veja-se o famoso excerto da Profecia de Neférti (29-33):

163
Um pássaro estrangeiro fixar-se-á nas planuras do Delta depois de ter feito o ninho
junto dos habitantes da cidade:
por sua culpa, os homens permitiram que ele se aproximasse. E agora, tudo o que
era belo se perderá:
os lagos piscosos ricos em caça, pululantes de peixes e de pássaros!
Já não há nada de belo e o Egipto está prostrado devido a esses animais,
ou seja, os Beduínos que percorrem o país:
no Oriente nasceram inimigos, ao Egipto desceram os Asiáticos!

Será, porém, muito difícil encontrar, mesmo em Mênfis ou em Tebas, uma agorà
de tipo ateniense. Existirá uma filosofia egípcia? Certamente que sim, se pensar­
mos, por exemplo, na afirmação do tema da «pesquisa intelectual» {hhj nj jb) no
seio do gênero literário das «Lamentações» durante o Médio Império: Khakheper-
raseneb intitula a sua obra literária Colecção de Palavras, Colectânea de Ditos,
Investigação de Frases como Pesquisa Intelectual Composta pelo Sacerdote de
Heliópolis Khakheperraseneb, Filho de Seni, Chamado Ankhu. Mas seria obvia­
mente impossível encontrar no Egipto uma análise metalinguística da sofia, isto
é, de uma filosofia em sentido grego. E os exemplos poderiam multiplicar-se.
Todavia, a questão essencial é saber como é analisado do seu interior o tecido
social egípcio, e que evoluções históricas se podem aí detectar. Muitas vezes, o
estudioso ou o leitor moderno tendem a tratar a cultura egípcia como se ela repre­
sentasse uma estrutura estática e como se, em 3000 anos de história faraônica,
não tivesse havido alterações substanciais. Falando da escravatura, observaremos,
porém, que os textos administrativos do Egipto antigo permitem distinguir evolu­
ções evidentes no conceito e na prática da escravatura, e obter um quadro de con­
junto que converge com o que as fontes literárias revelam acerca da história das
idéias na sociedade faraônica. Esta dicotomia entre «textos administrativos» e
«fontes literárias» não deve surpreender-nos; mais do que outras civilizações do
Oriente antigo, o Egipto elaborou uma série de elementos formais que distinguem
o discurso literário propriamente dito da documentação de natureza pragmática:
uma rígida aplicação de convenções métricas, prosódicas e estilísticas, muitas
vezes um registo linguístico diferente, e sobretudo uma diferente apresentação do
estatuto e da psicologia dos indivíduos e dos grupos sociais são traços específicos
do domínio literáro stricto sensu e principalmente dos seus dois gêneros mais
representativos, isto é, o «ensinamento» e a «narrativa». São gêneros que tratam
do «belo» {hfr), por oposição ao «verdadeiro» {m3’) dos textos religiosos (e, em
parte, dos políticos), por um lado, e ao «real» dos textos administrativos, por
outro: assim, teremos sempre de examinar a documentação egípcia à luz de diver­
sos filtros interpretativos, ligados à natureza das fontes textuais de que, por vezes,
nos serviremos. O deus, o rei, o estrangeiro, documentados nos textos pragmáti­
cos, nem sempre correspondem às suas ficções literárias: pense-se na ironia com
que o mito osiriano é apresentado na narrativa do período dos Ramsés Conflito
entre Hórus e Seth pela Herança de Osíris, ou na oposição entre o estatuto divino
do faraó, nos textos teológicos, e a leveza com que a relação equívoca entre o rei
Neferkara (Pepi II, da 6.® dinastia) e um dos seus generais, Lisene de seu nome,
constitui o tema da narração fragmentária homônima, ou na prudência do príncipe

164
beduíno de Detjenu e do soberano mitani de Naharina, que reservam aos fugiti­
vos do Egipto (respectivamente, Sinuhe e o Príncipe Predestinado) um tratamento
muito diferente da barbárie característica do esterótipo cultural do Asiático.
E, sintomaticamente, o que a tradição ocidental reteve, desde os tempos de Heró-
doto, foram mais as figuras de «homens egípcios» insertas nos textos literários do
que nos textos teológicos: recordemos a sua descrição da malvadez de Quéops
(2, 124 e segs.), favorecida decerto pela surpresa de um grego diante da grandiosi­
dade arquitectónica das pirâmides, em que era inevitavelmente levado a reconhe­
cer os efeitos de um forte centralismo autoritário, mas que também se baseava
numa tradição literária autóctone, que tendia a considerar Quéops como o protó­
tipo do rei mau, como nos demonstram os relatos do papiro Wetscar, posteriores
em cerca de um milênio à época em que a narração se situa; ou recordemos as
figuras de Féron (2, 211), o «Faraó» por excelência (provavelmente Ramsés II) e
Rampsinito (2, 121 e segs.) (provavelmente identificável com Ramsés III), prota­
gonistas de temas folclóricos retomados depois por outras tradições literárias do
Próximo Oriente.

O escravo e a literatura

Neste momento, começa já a destacar-se uma singular característica do


escravo em relação a outras figuras do homem egípcio: a sua existência é mencio­
nada desde os mais antigos textos propriamente literários da civilização egípcia,
como as Lamentações de Ipu-wer, do Médio Império, onde a evolução cultural
que a sociedade conheceu, na passagem do Estado menfita para a época feudal,
parece ideologicamente fixada em sentido negativo através de uma série de oposi­
ções entre um áureo passado (o do Antigo Império) e um trágico presente (o do
Primeiro Período Intermédio): «Agora, até os escravos [hm.wt\ falam sem reser­
vas/e quando a patroa dá uma ordem, os servos [b3k.w] mostram-se impacien­
tes» (Adm., 4, 13).
Contudo, a condição humana desta figura (de hm ou de b3w) nunca nos surge
narrada a nível literário. A Sátira dos Ofícios, autêntico clássico da literatura do
Médio Império, também conhecida, por intermédio do seu autor pseudo-epigrá-
fico, pelo nome de Ensinamento de Khety, descreve as vantagens da profissão de
escriba em relação a todas as actividades laborais, que, no Egipto, tendem a cor­
responder a condições específicas do homem, que se identifica com o seu ofício
mais do que em outro local. Em todas essas condições individuais e sociais, o
escriba, que é o veículo dos valores da classe dirigente do Médio Império, que
oscila entre a fidelidade às instituições do Estado, resumidas na pessoa do sobe­
rano, e a afirmação da sua própria individualidade, catalisada no êxito profissio­
nal, reconhece uma dependência do indivíduo em relação ao seu próprio traba­
lho, que lhe parece mais un índice de «servidão» do que de mero «serviço».
Esse texto constitui um autêntico clássico da literatura médio-egípcia, e as
suas características antitéticas tornaram-se paradigmáticas para a percepção do
trabalho dependente, ao longo de toda a história da cultura egípcia. Seis séculos

165
depois, o nome de Khety é recordado como o mais importante dos grandes auto­
res sapienciais do passado, num dos mais famosos textos escolásticos do período
ramesséssida (século Xlll a. C.):

Haverá ainda alguém como Hardjedef?


haverá alguém como Imhotep?
Na nossa geração não há ninguém que se assemelhe a Neférti,
ou a Khety, o mais importante de todos.
Basta-me recordar-te o nome de Ptohemdjehuti,
ou o de Khakheperraseneb.
Haverá alguém que se assemelhe a Ptahotep,
ou se compare a Kaires?
(papiro Chester Beatty IV 2, 5v-3, 11)

Mas o motivo da ausência, na Sátira dos Ofícios, de uma menção mais explí­
cita à condição do escravo reside, na minha opinião, no facto de a escravatura
nunca ter sido considerada pela cultura egípcia como uma condição humana bem
definida, como um estatuto próprio de um grupo social autónomo: pelo contrá­
rio, no interior de todos os grupos profissionais existentes no Egipto há um
amplo leque de diversos níveis de sujeição, e a Sátira dos Ofícios fornece-nos a
prova filológica disso mesmo, dado que o facto de se ser «arrastado para o traba­
lho» (jihm.w hr b3k=f) ou «obrigado a trabalhar nos campos», {mnj.tf), ou
ainda a indicação da impossibilidade de O carpinteiro fazer reverter para a sua
família o produto do seu trabalho (jin pnq n hrd.w=f), do castigo do tecelão
com cinquenta chicotadas por um dia de «absentismo» (hwj.tw=f m h m 50) e
talvez mesmo da submissão do jardineiro a um jugo (k3r.y hr jni.t m3wd), não
são mais do que a elaboração literária de várias formas de trabalho forçado.
Todavia, o facto de que não se tratava propriamente de escravatura é demons­
trado pela aparição, na mesma época e num outro texto literário — as Narrativas
do papiro Westcar (7, 9-16), que datam de finais do Médio Império —, de duas
figuras designadas pelo termo que se costuma traduzir por escravo (ou seja, hm)\

«Então foram equipadas as barcas para o príncipe Herdedef, e ele navegou para
sul, até Djedesneferu. Quando essas barcas acostaram, ele viajou por terra, sentado
numa cadeirinha de ébano, com varais de madeira preciosa revestida de ouro. Quando
chegou a casa de Djedi, a cadeirinha foi colocada no solo, e ele levantou-se para o sau­
dar. Encontrou-o deitado numa esteira, à entrada de casa: um escravo, amparando-lhe
a cabeça, aspergia-o com um unguento, enquanto outro lhe massajava os pés.»

Mas só durante o Novo Império é que o escravo começa a fazer parte, ainda
que muito indirectamente, do repertório de figuras humanas características da
literatura sapiencial. No seu ensinamento, cuja primeira redacção data da
segunda metade da 18.® dinastia (1570-1293 a. C.), Ani aconselha: «Não fiques
com o escravo [hm\ de outrem quando ele tem má reputação» (V, 15). A escrava­
tura torna-se assim parte integrante da ideologia egípcia, e é sabido que na cul­
tura faraónica os condicionamentos ideológicos desempenham um papel bastante

166
relevante tanto para a coesão social (pense-se no conceito de «Maat», funda­
mento da vida religiosa e política da sociedade faraónica) como para a afirmação
do indivíduo (recordem-se as rígidas instruções emanadas dos textos sapienciais
para garantir a sobrevivência do «Ka», isto é, da parte da alma do indivíduo que
permanece entre os vivos e passa a constituir objecto de culto funerário). Como
Posener foi o primeiro a afirmar, é precisamente a literatura que demonstra mui­
tas vezes, ao longo de toda a história da cultura egípcia, ser o veículo privilegiado
para a transmissão da ideologia. Para superar a dificuldade de interpretação
gerada, por um lado, pela menção indirecta da escravatura, a partir do Médio
Império, e, por outro, pela ausência total de caracterização ideológica da mesma,
e para compreender a situação antropológica do escravo no Egipto, devemos pôr
de parte a documentação literária e debruçarmo-nos sobre a documentação histó­
rica e administrativa. E se os textos chamados «históricos» (autobiografias,
decretos, anais, etc.) forem sempre lidos tendo presente a dificuldade de, no
Egipto, se distinguir a «verdade» ideológica {m3\t) da «realidade» histórica sub­
jacente, o recurso à documentação administrativa, fundamental para a reconsti­
tuição do dia-a-dia do Egipto antigo, exige duas observações peliminares: (a) a
sua consistência quantitativa e qualitativa varia consideravelmente de acordo com
as diferentes épocas arqueológicas: é bastante reduzida no Antigo Império, mais
vasta no Médio Império, para o qual dispomos dos ricos arquivos constituídos
pela correspondência de Heqanakhte e pelos papiros de Illahun, bem como de
alguns importantes textos administrativos — como o papiro de Brooklyn —, e
torna-se bastante abundante para o Novo Império, sobretudo no que se refere à
área de Deir el-Medina, a cidade dos operários da necrópole tebana, permane­
cendo abundante, mas silenciosa quanto ao problema da escravatura, ao longo de
toda a época tardia; (b) essa documentação revela nítidas características «empíri­
cas»: se, na literatura egípcia, até as figuras de indivíduos se revestem de uma
função paradigmática (os autores sapienciais são sempre nomes pseudo-egípcios,
Sinuhe é o modelo do funcionário do Médio Império que oscila entre a dedicação
ao soberano e a sua afirmação pessoal, Uenamun é o símbolo da desilusão egíp­
cia pela perda da centralidade política, etc.), nos textos administrativos a atenção
centra-se unicamente no facto episódico, e seria inútil procurar un código jurídico
ou um decreto económico nas formas que eles assumem na antiguidade clássica,
sobretudo em Roma. Ver-nos-emos assim obrigados a basear-nos exclusivamente
na análise indutiva, muitas vezes generalizando o que é sugerido por um único
documento, mas confiando no facto de que, embora fragmentário, o nosso
conhecimento do Egipto antigo é estatisticamente bastante representativo: a uma
ausência de documentação escrita de um determinado aspecto corresponde prova­
velmente a sua ausência — ou a sua escassa relevância — no conjunto da cultura
egípcia, e à abundância de documentação corresponde, pelo contrário, na maior
parte dos casos, uma notável relevância histórica do fenómeno em questão.

167
o A n tig o Im p é rio

Comecemos por analisar sumariamente as características estruturais da socie­


dade egípcia no início da sua história documental. O chamado Decreto de Dahs-
hur (Urk.1209-23), em que o rei Pepi I, da 6.^ dinastia (c. 2332-2283 a. C.), deter­
mina a entidade das pessoas e das propriedades inalienáveis destinadas às
«cidades das pirâmides» do rei Sneferu, da 4.®dinastia (c. 2613-2589 a. C.), men­
ciona a classe dirigente do Antigo Império como sendo constituída por «rai­
nhas», «príncipes», «nobres» e «funcionários» (^ryw.w), a cujo serviço estão os
«dependentes» (jnrj.V, ib., 210, 14-17). A oposição social que se detecta de facto
no Antigo Império é a que existe entre «funcionários» e «dependentes» — uma
oposição a que corresponde, no plano ideológico, a que existe entre «nobreza»
ip\t) e «povo» {rhj.t), que iria permanecer na literatura religiosa ao longo de toda
A história egípcia: a essa oposição vem juntar-se, com o triunfo do culto solar
heliopolitano, durante a 5.^ dinastia, o «sacerdócio solar» (hnmmw.t), e essa tri­
pla distribuição ideal da sociedade egípcia mantém-se imutável até ao século li
d. C., como é demonstrado pelo papiro de Oxirrinco, redigido em língua egípcia
e em alfabeto grego e a que se acrescentaram alguns signos demóticos: a
«nobreza», o «povo» e o «sacerdócio», que constituem os três pólos sociais desde
o Antigo Reino, conservam-se vivos nos respectivos pe, lhe e hameu. Mas não se
trata de modo nenhum de classes sociais estanques, de «castas» de modelo
indiano, mas de divisões flexíveis, em que ao indivíduo é concedida a possibili­
dade de ultrapassar o seu estatuto de origem, como revela a inscrição autobiográ­
fica de Henqu em Deir el-Gebrãwí (6.® dinastia): «Quanto àqueles que noutros
centros foram trabalhadores dependentes [mrj.w] ao meu serviço, a sua função
converte-se aqui na de funcionário [sr/wl» (ibid., 78, 6-7). «Dependente» não sig­
nifica «escravo», designa, isso sim, a massa do povo, regularmente empregada na
actividade agrícola (a propriedade dos terrenos mantinha-se nas mãos do rei, isto
é, do Estado) mas que, de vez em quando, era recrutada para o serviço obrigató­
rio; por vezes, esses «dependentes» trabalhavam como operários: pense-se no tra­
balho necessário para a construção das pirâmides do Antigo Império, a cuja
organização se refere, por exemplo, o primeiro grafito datado do Wadi Mamma-
mat {ib., 148, 16-148, 10):

«Missão desempenhada pelo filho mais velho do rei, o tesoureiro do deus, o gene­
ral da expedição [w5’ «exército»] Djati, dito Kanefa, que cuidou dos seus homens no
dia do combate, que soube prever a chegada do dia do recrutamento obrigatório. Dis-
tingui-me entre a multidão e executei esse trabalho para Inhotep, com 1000 homens do
Palácio Real, 100 homens da Necrópole, 1200 sapadores e 50 soldados de engenharia.
Sua Majestade ordenou que da Residência viesse toda essa gente, e eu organizei esse
trabalho em troca de provisões de cevada de toda a espécie, enquanto Sua Majestade
pôs à disposição 50 bois e 200 cabras para o abastecimento diário.»

Outras vezes, eram empregados como soldados, para as longas expedições


na Núbia e na Líbia de que nos falam outros dignitários da 6.^ dinastia, como
Uni ou Herkhuf {ib., 101, 9-102, 8):

168
«Sua Majestade derrotou os asiáticos que vivem na areia, tendo recrutado um exér­
cito constituído por algumas dezenas de milhares de homens de todo o Alto Egipto,
das regiões a sul de Elefantina e a norte do n o m o s de Afroditópolis, das duas unidades
administrativas do Baixo Egipto, de Sedjer e do interior de Sedjer, por núbios de Irtjet,
de Medja, de Yam, de Uauat e de Kaan, bem como da terra dos Líbios.»

Além disso, os «decretos de isenção», como o Decreto de Dahshur acima


mencionado, informam-nos de que uma parte relativamente grande da população
estava isenta das corveias por estar ao serviço de um conjunto funerário real
(a «cidade da pirâmide») ou de uma fundação privada ou religiosa. Também
neste caso se trata mais de «serviço» do que de «escravatura», porque nessa
população isenta detecta-se a mesma diversificação social que realçámos anterior­
mente: os que aí desempenham as suas funções (uma classe que, progressiva­
mente, vai sendo também constituída por sacerdotes e funcionários, que vêem
vantagens económicas nessa condição de «isentos») usam o título de fjntj-'^,
«aquele que preside ao lago», sob cujas ordens trabalham mais uma vez os
«dependentes» (mrj.t):

« A Minha Majestade ordenou que essas duas cidades da pirâmide fossem isentas
de qualquer trabalho para o Palácio Real, de executarem qualquer trabalho forçado
para qualquer lugar da Residência, bem como de prestarem qualquer c o rv e ia , de
acordo com o requerido por todos. A Minha Majestade ordenou que qualquer h n tij- s
dessas duas cidades da pirâmide fosse isento de qualquer actividade de mensageiro por
via fluvial e terrestre, para Norte ou para Sul. A Minha Majestade ordenou que
nenhum campo pertencente a essas duas cidades da pirâmide fosse arado pelos depen­
dentes de qualquer rainha, de qualquer príncipe, de qualquer nobre ou funcionário,
excepto pelos (jntj.w -s dessas duas cidades da pirâmide.» (Ib., 210, 7-17.)
«Ordenei a isenção desta capela funerária e de quanto lhe pertence em matéria de
pessoal [mrj.t] e de gado graúdo e miúdo. Contra estas disposições nenhuma reivindi­
cação poderá prevalecer. Quanto a cada homem enviado em missão para o Sul, a
Minha Majestade não permite que as suas despesas de viagem sejam debitadas a esta
capela funerária, nem as de elementos do séquito de uma missão real. A Minha Majes­
tade ordenou a isenção desta capela funerária. A Minha Majestade não permite que esta
capela funerária seja tributada com qualquer imposto pela Residência.» (Ib., 214, 2-7.)

À população egípcia opõem-se, já a partir do Antigo Império, os prisioneiros


de guerra estrangeiros (designados por sqr.w-'nh, «ligados para toda a vida»).
Sabemos que, a partir da época de Sneferu (2613-2589 a. C.), foram levadas a
cabo grandes expedições militares à Núbia, com o objectivo de conseguir mão-de-
-obra a empregar na economia do Estado. A ideologia dessas razias está bem
representada nos chamados «textos de esconjuro», fórmulas de carácter apotro-
paico gravadas nas figurinhas de terracota dos príncipes estrangeiros cujo poder
se pretendia neutralizar, ou no ritual da «morte dos inimigos» e nas reproduções
dos prisioneiros dc guerra eom os braços atados atrás das eostas, que figuram nos
relevos dos templos faraônicos ao longo de toda a história egípcia. Os prisionei­
ros de guerra ou de incursões nos territórios de ocupação (principalmente na

169
Núbia e, depois, progressivamente, também na Ásia e na Líbia) irão constituir o
grupo humano mais vasto a que, a partir do Médio Império, se aplicará a defini­
ção de «escravo» (/&, 103, 7-104, 3):

«Este exército regressou em paz,


depois de ter destruído a terra dos habitantes da areia.
Este exército regressou em paz
depois de ter saqueado a terra dos habitantes da areia.
[...]
Este exército regressou em paz
depois de ter trazido muitos dos seus soldados como
prisioneiros de guerra.»

Estas guerras ou incursões no exterior são comandadas por potentados e por


nomarcas locais, cuja afirmação levará à desagregação do Estado menfita e cuja
perspectiva mais «provincial» se exprime na cultura do Primeiro Período Inter­
médio. Os textos autobiográficos constituem não só o veículo privilegiado de
expressão dos valores dessa nova classe dirigente mas também o gênero literário
de que derivará tanto a literatura sapiencial como a narrativa. Esses textos docu­
mentam uma evolução «meritocrática» que se, por um lado, é o sintoma do nas­
cimento de uma alta burguesia que irá constituir a classe culta do Médio Império
(a que representa o próprio público da produção literária, que, no Médio Impé­
rio, atinge precisamente uma plenitude formal), por outro, dilata notavelmente o
tecido social egípcio, fomentando a aparição de formas de escravatura individual
(/ô., 217, 3-5): «Ikmbém fiz para ele [ou seja, o rei] a contabilidade dos seus bens
pessoais durante um período de 20 anos. Nunca bati em ninguém de forma a
fazê-lo cair sob os meus dedos. Nunca reduzi ninguém à escravatura [b3k]»,
afirma o arquitecto Nekhebu (6.® dinastia), demonstrando assim indirectamente
a existência dessa forma de coerção, embora servindo-se do termo b3k, que, ante­
riormente, designava a dependência ao rei de uma forma genérica e caracterizava
portanto todos os egípcios: apreciado, elogiado, amado pelo rei mais «do que
qualquer outro servo», é uma das figuras de estilo mais frequentes nas autobio­
grafias dos dignitários menfitas (cfr. ib., 52, 5; 81, 6; 84, 1; 99, 4). E como que
a fixar visualmente essa evolução, no citado texto autobiográfico de Henqu, em
Deir el-Hehâwí, o próprio verbo b3k, «reduzir à escravatura» surge acompa­
nhado pelo determinativo (ou seja, por um signo do sistema gráfico hieroglífico
que especifica a classe lexical a que o termo de referência pertence) de um homem
sentado com o pescoço cingido por um jugo (ib., 77, 4; cfr. Davies, 1902, tab. 24,
9): «Nunca reduzi a escrava nenhuma das vossas filhas.»
Este excerto leva-nos a pensar que, no Egipto, a escravatura obrigatória come­
çou, em finais do Antigo Império, por recrutamentos abusivos de raparigas do
povo por parte dos funcionários da administração local. Mas um indício ainda
mais decisivo de uma alteração da situação social é a aparição, na mesma época,
do termo que o egiptólogo traduz normalmente por «escravo», ou seja, hm,
acompanhado, numa das suas primeiras e raríssimas ocorrências, por um deter-

170
minativo de homem ou de mulher sentados e carregando uma clava, que é justa­
mente o fonograma (isto é, o signo hieroglífico que indica uma sequência de
fonemas) da palavra hm (Fischer, 1958, 131-37): «Quanto aos nobres, aos funcio­
nários e aos dignitários, que [...] nomearem um dos meus escravos ou escravas,
que [...] um dos meus sacerdotes funerários, que conduzirem [...].»
Este determinativo é idêntico ao que, no Antigo Império, é por vezes associado
aos termos que, como vimos anteriormente, indicavam a condição de «serviço» (b3k)
ou de «dependência» imrj.t) que caracterizava grupos de operários ou de soldados ou
mesmo os etnónimos de população estrangeira, «núbios» ou «asiáticos». Isso leva-
-nos a considerar que, enquanto a condição de sujeição caracterizara genericamente,
durante o Antigo Império, o trabalho dependente, que era o da maioria da população
agrícola, a que se opunha binariamente o âmbito palaciano, em finais dessa época,
o emergir de uma nova estrutura social, cujas características analisaremos ao falar­
mos do Médio Império, favorece o nascimento da «escravatura» como forma
extrema de trabalho forçado. Os próprios Textos das Pirâmides, o primeiro corpus
teológico egípcio, que contém o conjunto de mitos e de rituais ligados à morte do rei,
documentam indirectamente esta evolução social quando, na Fórmula 346, as versões
de Merenra (c. de 2283-2269 a. C.) e de Pepi II (c. de 2269-2184 a. C.) substituem por
«escravos» (hm.w) os «Magarefes» (^.^/w.w) do Texto da Pirâmide de Teti, do início da
6.® dinastia (2343-2333 a. C.): «Fórmula a recitar: As almas estão em Buto, sim, as
almas estão em Buto; em Buto estarão sempre as almas, em Buto está a alma do rei
defunto. Que vermelha é a chama, que vivo está Khepri; alegrai-vos, alegrai-vos!
Escravos, dai-me de comer!» {Pyr., 561.)
É também nesta perspectiva que se deve interpretar o facto de o termo hm sur­
gir anteriormente apenas em nomes compostos que designam funções próprias do
âmbito religioso {hm-ny-, «servo do deus») ou funerário (hm-k3, «encarre­
gado do culto funerário»), de as suas primeiras utilizações com o novo significado
(entre a 5.“ e a 6.® dinastias) se referirem ao âmbito real («Nunca disse nada de mal
de ninguém, nem do rei nem dos seus servos», in Urk., I 233, 13-14), e de o primeiro
termo em que é possível reconhecer as características do escravo ser o composto
hm-nzw, «servo do rei» (cfr. Davies, 1901, tab. 16; Lepsius, 1849, II, 107): «Peneirar
0 trigo por parte dos servos do rei.» Além disso, o facto de, após uma fugaz aparição,
durante a 6.® dinastia (Cairo 54994, cfr. Bakir, 1952, 14-15), o grupo daqueles que são
«comprados» ou «alugados» (/sw.w) para desempenharem a função de sacerdotes
funerários desaparecer da documentação é sintoma de uma sociedade que tende para
uma progressiva especialização da actividade laborai do indivíduo. Podemos por­
tanto afirmar que só progressivamente, no final da época menfita, é que se afirmou
um tipo particular de «escravo», que já não era alguém «ao serviço de», mas uma
nova figura humana, caracterizada justamente pelo estatuto de sujeição.

O Médio Império

Esta evolução parece concluir-se durante o chamado «Primeiro Período Inter­


médio» (2260-2061 a. C.), definição que, para o egiptólogo, designa o período da

171
história egípcia situado entre o Antigo e o Médio Império, uma época repleta de
profundas evoluções religiosas (com a afirmação da dimensão moral e da teologia
do «Ba» nos Textos dos Sarcófagos), culturais (com o desenvolvimento de uma
verdadeira literatura, em que a consciência individual e as expectativas da socie­
dade se confrontam dialecticamente), políticas (com o crescimento do poder pro­
vincial em relação ao rígido centralismo menfita) e económicas (com uma redis-
tribuição da riqueza provocada por uma série de escassas cheias do Nilo); uma
época em que se amplia notavelmente o espectro das classes sociais, e é documen­
tada, pela primeira vez, a transacção comercial de «trabalhadores» {b3k.w)\ há
quem adquira três «trabalhadores» e sete «trabalhadoras» para além dos que lhes
foram deixados em herança pelo pai (Daressy, 1915, 207-208), e mesmo quem
crescente vinte «cabeças» ao seu património (Clère e Vandier, 1948, n.° 7). Mas
também é importante notar que, para lá das diferenças sociais, cada egípcio,
mesmo o escravo, é um «homem» {rmt), um «indivíduo» dotado de uma digni­
dade autónoma mesmo quando está ao seriço de outrem (esteias de Merer, MNK-
-XI-999, 7-8): «Adquiri bois, adquiri homens, adquiri campos, adquiri cobre», ou
ainda (esteias BM 1628, 13-15): «Os homens ao serviço de meu pai, Mentuhotep,
tinham nascido em casa, propriedade de seu pai e de sua mãe. Também os meus
homens provêm da propriedade de meu pai e de minha mãe, e para além desses,
adquiri outros com os meus próprios meios.»
Na mais complexa estrutura social do Médio Império, assiste-se a uma ten­
dência para a identificação do indivíduo com o seu trabalho: a partir dessa
época, as esteias de particulares caracterizam normalmente o titular mencio­
nando o seu ofício ou a sua profissão, e o fruto literário desse estado de coisas
é precisamente a Sátira dos Ofícios, acima ventilada. Portanto, o egípcio médio
já não é apenas, como no Antigo Império, o «dependente» (jnrj) que, de tempos
a tempos, é recrutado para a corveia ao serviço do Estado; como indivíduo cons­
ciente, por um lado, do seu próprio estatuto, e, por outro, das suas capacidades,
pode libertar-se dessas tarefas através de um período de serviço sacerdotal (w*b)
e tornar-se assim um «pequeno burguês» (nds) livre (MNK-XI-999, 10-11); «Não
permiti que a água deles inundasse os campos de outrem, como é justo que se com­
porte um burguês eficiente para que a sua família disponha de água suficiente.»
A outra face da medalha surge, porém, como se depreende da Sátira dos Ofí­
cios e dos versos do Ensinamento para Merikara que transcrevemos a seguir, com
a evolução inversa, que obriga quem permaneceu um simples camponês ou arte­
são dependente de um «burguês» a sujeitar-se, no Médio Império, a formas de
trabalho forçado (ou aos pesados impostos por esse trabalho), enquanto os mem­
bros da classe dirigente, isentos de impostos, estão englobados na definição admi­
nistrativa de «funcionários» (Merikara 100-102):

«Os muros de Medenit são resistentes, o seu exército é numeroso


os seus dependentes [mrj.w] sabem manejar as armas,
para além das pessoas livres [ w ‘b] que lá vivem.
A região menfita abriga dez mil pessoas,
burgueses [nds.w] isentos do trabalho forçado [w‘ò n n b 3 k .w = f \ .
E também aí vivem outros funcionários [5r7H'.H’] desde a época em que havia a Residência:
as suas fronteiras são seguras, a sua defesa é forte.»

172
Que o «pequeno burguês» representa uma figura social típica do Médio Impé­
rio é também demonstrado pelo facto de os textos literários dessa época tenderem
a projectá-la anacronicamente para as épocas anteriores, em que ela era, como se
viu, sociologicamente impossível: pense-se no «burguês» Djedi dos relatos do
papiro Westcar {yide acima, p. 168), que é descrito a ser massajado por dois escra­
vos. A par de uma difusa promoção social da classe trabalhadora, tanto dos livres
como dos dependentes, que surgem agora como «ligados» (de acordo com o signi­
ficado etimológico do termo mrj) a um serviço público ou como servidores de par­
ticulares (e, nesse caso, são muitas vezes designados por d.t, «pessoal de ser­
viço», como nos papiros de Illahum, tab. 10, 7 e 21), a diferença social entre eles,
por um lado, e, por outro, os escravos, ou seja, aqueles grupos de «recrutas força­
dos» {hsb.w), de «desertores» {ãj.w) ou de «servos reais»» {hm.w-nzw) de que nos
falam profusamente os textos administrativos do Médio Império, passa a ser consi­
derável. Os dois primeiros termos designam os soldados e os camponeses obriga­
dos a um período obrigatório ao serviço das expedições militares, arquitectónicas
ou agrícolas do Estado. A documentação mais abundante é fornecida pelos papi­
ros de Illhaun e pelos papiros Reisner, que referem que os recrutas eram utilizados
sobretudo nas escavações de pedra para as empresas arquitectónicas do Estado (são
frequentes as «listas dos hsb.w que escavam a pedra para as pirâmi­
des», cfr. papiros de Illahun, tab. 15, 14 e 31, 25), e pelo texto administrativo de
Brooklyn (cfr. Hayes, 1955, 39-40, 76-77) que refere que eles eram obrigados a prestar
serviço, durante um certo período de tempo, nas terras do Estado {hbs.w). Em
caso de fuga ou deserção, o castigo eram os trabalhos forçados para toda a vida
(ib. tab. VI, 57): «Ordem emanada para a Grande Prisão no ano 31, terceiro mês
da estação estival, dia 5, para que ele seja condenado com todos os seus a traba­
lhar por toda a vida nas terras do Estado, segundo o que foi decidido pela corte.»
Quanto ao grupo dos hm.w-nzw — cujo correspondente feminino é o termo
hm.wt, «escrava», sem qualificação complementar — dispomos também da
documentação do papiro de Brooklyn. Os «servos reais» são egípcios que têm a
mesma condição dos asiáticos reduzidos a escravos em consequência de campanhas
militares ou de transacções comerciais: originariamente detidos, sobretudo por
fuga, são entregues como «propriedade» a um particular. A condição de fugitivo
que, devido ao endurecimento policial do poder central durante o Médio Império,
se tornara relativamente frequente em comparação com as épocas anteriores,
conhece agora uma codificação literária particularmente viva na narrativa de
Sinuhe, que, por várias vezes, embora indirectamente, realça a frequência com que
diferentes categorias de cidadãos, impelidos por motivações diversas, tanto sociais
como económicas ou políticas, são obrigados a fugir do Egipto (Sinuhe B 29-43):

«Passei aí ano e meio, acolhido por Ammunenshi, o príncipe do Retjenu do Norte,


que me disse: “ Sentir-te-ás bem comigo, porque ouvirás falar egípcio!” Disse-me isto
porque conhecia o meu carácter e ouvira falar das minhas qualidades, já que os egípcios
que estavam com ele lhe tinham falado de mim. Então perguntou-me: “ Por que vieste
até aqui? Sucedeu algo no Norte?” “ O rei do Alto e do Baixo Egipto voou para o seu
horizonte e agora ninguém sabe o que pode suceder”, disse-lhe eu, embora não fosse

173
totalmente verdade, “ fui informado disso quando regressava de uma expedição à
Líbia. Tive medo: o coração saltou-me do peito e arrastou-me para a estrada do
deserto, sem que eu tivesse sido acusado, ou me fosse lançado à cara, ou tivessem sido
ouvidas calúnias ou se tivesse ouvido o meu nome na boca do porta-voz. Não sei quem
me trouxe para este país: foi como uma decisão de Deus.’^>

Embora pertencessem nominalmente ao Estado, ou seja, ao rei (donde a sua


designação de «servos reais»), os fugitivos que acabavam por ser presos eram
entregues, tal como os escravos asiáticos, à guarda de um senhor, que podia doá-
-los, transmiti-los por herança ou vendê-los (papiro de Brooklyn, tab. 14, 26-31;
papiros de Illahun, tab. 12, 6-11, e cfr. tab. 13):

«Que as minhas quinze pessoas [tp.w, «cabeças»] e os meus prisioneiros \hnmM>


= j, «a mim associados»] sejam dados a minha mulher, Senebtisi, para além dos setenta
que lhe dei da primeira vez. Faço a minha mulher esta doação, que será depositada na Sala
dos Porta-Vozes da Cidade do Sul, como contrato que ostenta o meu selo e o selo de
minha mulher, Senebtisi.
Transmito este título de propriedade a minha mulher, a senhora das regiões orientais
Shefut-filha-de-Sopdu, também chamada Tetis, correspondente a tudo o que me cedeu o
meu irmão, o encarregado do selo da direcção dos trabalhos Ankhren, incluindo qualquer
propriedade, seja onde for, entre tudo o que ele me cedeu. E ela, por sua vez, poderá cedê-
-lo a qualquer um dos filhos que teve comigo. Cedo-lhe também os quatro asiáticos que
me foram cedidos por meu irmão, o encarregado do selo da direcção dos trabalhos Ankh­
ren, e ela, por sua vez, poderá cedê-los a qualquer um dos seus filhos.»

Ao contrário do servo real ou do asiático, o trabalhador [ b 3 k \ acusado de


mau serviço é despedido, mas não é vendido; a prova é-nos dada pela correspon­
dência de Heqanakhte, um proprietário de terras do Médio Império (c. 2000
a. C.) que, durante uma viagem de trabalho, continua a controlar a administra­
ção dos seus bens, enviando instruções por carta à sua família (Heqanakhte I 13
v-14): «Manda embora a serva [ b 3 k .t\ Senen — está atento! — no próprio dia em
que receberes esta carta. Se passar mais um dia que seja em minha casa, há sari­
lhos! Foste tu quem lhe permitiste tratar mal a minha esposa!»
A profunda inserção de uma serva na estrutura familiar, a tal ponto que
pudesse comprometer o seu equilíbrio, é também demonstrada por esta «carta ao
morto» esculpida num vaso do Primeiro Período Intermédio, em que o remetente
pede a seu defunto pai e à mãe deste para lhe darem um filho de sua mulher,
Seni, que ficara perturbada após a intervenção de duas servas, que são descritas
como aquelas a cuja influência malévola são imputadas as dificuldades surgidas
na vida do casal (Oriental Museum Chicago 13945, 2-7):

«Trago-te este vaso, em relação ao qual será tua mãe a decidir. É reconfortante que
sejas tu a dar-lho. Fará com que me nasça um filho varão saudável, porque tu és um
espírito capaz. Quanto às duas servas, ou seja, Nefertjentet e Itjai, que entristeceram
Seni, neutraliza a sua intervenção e evita, por mim, qualquer acção malévola feita con­
tra minha mulher, porque tu sabes que preciso dela! Expulsa-as, expulsa-as!»

174
Embora seja hereditária, como é realçado pelo facto de Dedisobek, filho da
escrava Ided, ser também um escravo {hnv. cfr. Gauthier-Laurent, 1931, 107-25),
a condição de escravo não exclui, porém, a possibilidade de se ascender a uma
camada culturalmente mais elevada (papiros de Illahun, tab- 35, 10-13): «Esta
comunicação é para informar o meu senhor de que estão a tratar do teu servo real
Uadj-hau, ensinando-o a escrever sem lhe permitir fugir.» Ao contrário do que
acontecia com os recrutas forçados, que se tornavam forçados para toda a vida,
a fuga de um «servo real» era castigada com a morte {ib., tab. 34, 17 e segs.):
«Encontrei o servo real Sobekemhat que tinha fugido, e meti-o na prisão para ser
julgado [...]. Será portanto condenado à morte na Sala do Porta-Voz.»
A variedade das actividades laborais exercidas pelos escravos remete-nos para
um aspecto já realçado anteriormente, quando analisámos a ausência dessa figura
nos textos literários egípcios, isto é, que a escravatura egípcia não é tanto um fenó­
meno «horizontal», um estatuto autonomamente definido, mas «vertical», uma
condição de forçado no interior do seu próprio ofício: os «servos reais» são-nos
apresentados como camponeses, criados, ou sapateiros; as «escravas» são cabelei­
reiras, jardineiras, tecelãs. O mesmo se passa com os seus correspondentes asiáti­
cos, que se distinguem apenas porque o seu nome é precedido do etnónimo,
embora esse seja por vezes egípcio, sobretudo na segunda geração: «a asiática
Aduna e seu filho Ankhu» (Hayes, 1955, 87 e segs.). Por outro lado, o seu número,
bem como a transmissão do estatuto de escravo aos filhos, contribuem para se
poder comparar a condição de «servo real» com a de escravo asiático: dos setenta
e nove servos referidos na lista existente no verso do papiro de Brooklyn como per­
tencentes a uma mesma propriedade, pelo menos trinta e três são egípcios!

O Novo Império

Quando deixamos o Médio Império, o estatuto de escravo parece estar relativa­


mente consolidado: remonta ao Segundo Período Intermédio — a época em que a
invasão dos Hicsos obriga o Egipto a dar início a um longo período de confrontos
militares com o mundo asiático, que caracterizará todo o Novo Império — um
documento que esclarece também alguns aspectos jurídicos dessa condição, discu­
tindo a cedência à população de uma cidade de uma escrava que, até então, era
partilhada pelos poderes públicos e privados (papiro Berl, 10470, 1, 2-2, 9):

«O prefeito da cidade, vizir, superintendente das Seis Grandes Cortes, Amenem-


hat, envia esta ordem ao Porta-voz de Elefantina, Heqaib: “ Foi emitida uma ordem da
corte do vizir, no ano 1 da época de Khu-baq, primeiro mês da estação estival, dia 27.
A ordem refere-se ao seguinte pedido feito pelo administrador Itefseneb, filho de
Heqaib: ‘Senbet, filha de Senmut, é uma escrava [hm.t] pertencente ao pessoal ao ser­
viço [d.t] da população de Elefantina, mas também é escrava de Sankhu, filho de
Hebsi, meu senhor. Peço que essa escrava me seja cedida a mim ou à população, de
acordo com o que decidirem os seus proprietários.” A conclusão é que se faça como
os seus proprietários decidirem. Estas são as ordens [...]. Chegou da corte do vizir uma
resposta a este rolo de couro, na qual se diz: “ Foram interrogados os advogados

’J5-T -
da população em relação ao que escreveste. Dizem que estão de acordo em que a
escrava seja cedida à cidade de acordo com o que os seus proprietários decidirem, ace­
dendo ao pedido feito a esse respeito pelo nosso irmão, o administrador Itefseneb.” Os
proprietários devem agora ser obrigados a prestar juramento em relação a isso, e as
ordens devem ser comunicadas à escrava Senbet.»

A novidade deste texto reside, por um lado, na importância adquirida pela


«população», cuja função como instância que gere os bens públicos substitui a
função nominal do rei no caso do «servo real» do Médio Império, e, por outro
lado, na possibilidade (talvez por intermédio do matrimónio) de passar do esta­
tuto de escrava para o de «cidadã», o que projecta esta figura para um estatuto
muito semelhante ao do liberto, em Roma. E, como os períodos de alteração
social ao longo da história faraónica apresentam sempre dois aspectos, um eman-
cipatório e inovador, o outro burocrático e restritivo (basta recordar o que acon­
teceu no início do Médio Império, com a afirmação de uma nova classe média
livre acompanhada, porém, por um endurecimento da estrutura política do poder
central que provocou inúmeros fenómenos de emigração ou de fuga do país; ou
o que acontecera em Amarna, no século xiv a. C., onde a reforma religiosa de
Akhenáten será acompanhada por uma brutal repressão dos centros de poder
alternativos ao Palácio), a essa abertura das possibilidades jurídicas do escravo
alia-se a sua aparição como componente imprescindível da sociedade egípcia,
provocando o desaparecimento progressivo de uma classe autónoma de «depen­
dentes». Na história da semântica, acontece com frequência que uma expressão
originalmente conotada com um sentido positivo em relação a outra tenda a nive­
lar-se no significado neutro, criando assim a necessidade de um novo termo con­
siderado mais prestigioso: pense-se no nivelamento do italiano donna (de
domina, «senhora») a partir do significado original de femina, na conotação
depreciativa que este último termo possui no italiano femmina e na substituição
de domina por um novo pólo positivo: signora. Com uma evolução semelhante,
durante a 18.® dinastia (c- 1570-1293), o termo mrj vai perdendo progressivamente
o significado neutro de «dependente», passando a caracterizar funções bastante
idênticas às do servo real do Médio Império, como se vê pela possibilidade de o
faraó «doar» algum do seu pessoal a um particular: o alto funcionário Minmose
recebe do rei 150 dependentes como recompensa por ter contribuído para a fun­
dação de numerosos templos {Urk.lV 1444, 18):

«Pois bem, quanto a estes [templos] que acabei de mencionar, fui eu quem lhes
construiu os alicerces, dirigindo com total diligência o trabalho nestes grandes monu­
mentos, com os quais o meu senhor satisfez os deuses [...]. A minha inteligência esteve
sempre ao seu serviço. Sua Majestade elogiou-me pelo meu grande talento e garan-
tiu-me uma carreira mais rápida do que a dos outros funcionários: foram-me doados
150 dependentes, presentes, roupas.»

Esta desvalorização jurídica da mão-de-obra livre local é o indício mais evi­


dente de uma restruturação global do tecido social egípcio na época imperial,
como consequência da política externa da segunda 18.® dinastia: o envolvimento

176
militar e comercial do Egipto com o mundo asiático leva ao Egipto um elevado
número de asiáticos, ou como reféns de guerra ou comprados no mercado de
escravos, que no Próximo Oriente de finais da Idade do Bronze tinha o Egipto
como principal comprador e era provavelmente controlado por beduínos asiáticos
— basta pensar no relato bíblico da venda de José aos mercadores ismaelistas que
se dirigiam ao Egipto (Gén., 37). Desaparecem, portanto, os «servos reais» e os
«forçados», sintoma de uma estrutura social, a estrutura do Médio Império,
baseada ainda no controlo político (e policial) interno, e afirma-se a necessidade
da força de trabalho estrangeira para fazer frente ao acréscimo de despesas
gerado por um imponente aparelho militar. O general Ahmés, filho de Ebana,
cujo texto autobiográfico dc cl-Kab (Urk., IV, 1-11) nos fornece a descrição mais
pormenorizada da expulsão dos Hicsos e da afirmação da 18.® dinastia tebana nos
reinados de Ahmés (1575-1550 a. C.), Amenófis I (1550-1528 a. C.) e Tutmés I
(1528-1510 a. C.), oferece-nos uma pista para compreendermos a aparição da
escravatura estrangeira no início do Médio Império, gabando-se por várias vezes
do facto de o rei lhe permitir de vez em quando tratar como escravos os asiáticos
por ele conquistados como reféns de guerra. E na apresentação estereotipada do
mundo militar aparecem sempre associadas figuras de escravos (papiro Anastasi
III, 6, 2 e segs.):

«Vem, deixa que te descreva um ofício desgraçado, o de oficial de cavalaria. Por via
do pai de sua mãe é destinado à estrebaria que tem uma dotação de cinco escravos
[hm .w]. São-lhe confiados dois, mas não obedecem ao que ele diz [...]. As gentes vêm
buscar as provisões: então começa o seu tormento, é atirado ao chão e dão-lhe cem
bastonadas.»

Essa evolução só termina com a afirmação do Egipto como potência imperial


(e imperialista), durante a segunda metade da 18.® dinastia, como prova o facto
de, no início do Novo Império, o pessoal doado a título de recompensa por parte
do rei ser, por vezes, ainda designado pelos termos utilizados no Médio Império,
tais como «cabeças» ou «gentes» (cfr. Hubachi, 1950, 13-18): «Fui elogiado na
«Casa da recompensa» com a doação de 20 homens e 50 jeiras de terra», e pelo
facto de, enquanto os anais de Tutmés III (1490-1436 a. C.) ainda designam por
«homens [rmt,w\ em cativeiro» os prisioneiros de guerra estrangeiros {Urk. IV
698, 6) e, no Médio Império, o pessoal de serviço aos templos, também consti­
tuído por esses estrangeiros, se designa por «dependentes» {ib., 172, 5; 207, 9;
742, 14, 1102), a partir de Amenófis III (1405-1367 a. C.), o trabalho forçado nos
templos passa a ser executado por «escravos e escravas» [hm.w, hm.wt] e con­
verte-se num topos muito repetido durante a posterior 19.® dinastia (1293-1185
a. C.) {ib., 1649, 6-8; cfr. Kitchen: 1968, I, 2, 15; 23, 6; papiro Harris I 8, 9; 47,
10; 58, 3; 59, 5; 60, 3): «O seu lago [do templo] estava cheio pela grande inunda­
ção, repleto de peixes e de pássaros, de flores; a sua casa de trabalho estava cheia
de escravos e escravas, filhos dos príncipes de todos os países estrangeiros, despo-
jos de Sua Majestade.»

177
No final da 18.® dinastia, o serviço de escravo tornou-se tão corrente no seio
da sociedade egípcia que o termo hm é aplicado até aos ushabti, ou seja, às esta­
tuetas de madeira, terracota ou faiança que faziam parte integrante dos adornos
fúnebres, porque se destinavam a executar, no Além, os serviços de que o defunto
necessitasse. Por outro lado, é difícil perceber que o escravo pudesse também ser
«alugado», durante um certo período, por pessoas cuja condição social nos
parece relativamente humilde, na medida em que o motivo que leva a alugar uma
escrava é a necessidade de comprar roupas, apesar de o preço do aluguer nos
parecer objectivamente excessivo (papiro Berlim 9784, 1-10);

«Ano 27, terceiro mês da estação estivai, dia 20, no tempo da Majestade do rei do
Alto e do Baixo Egipto Nebmaatra, filho de Rá Amenófis [III], a quem seja permitido
viver eternamente como seu pai Rá, todos os dias. Dia em que Neb-mehi, um pastor
do templo de Amenófis, se apresentou em casa do pastor Mesi, dizendo: “ Estou sem
roupa; dá-me a paga de dois dias de trabalho da minha escrava Harit.” Então, o pastor
Mesi deu-lhe um vestido [dSjw] que valia 3 s h a ti e meio e um vestido [ícfw] que valia
meio s h a ti. Depois, veio de novo ter comigo e disse-me: “ Dá-me o equivalente a qua­
tro dias de trabalho da escrava Henut.” Então, o pastor Mesi deu-lhe trigo [...] que
valia 4 s h a ti, seis cabras que valiam 3 s h a ti e prata que valia 1 s h a ti, num total de 12
s h a ti. Mas, dois dos dias de trabalho da escrava Henut foram particularmente quentes;
por isso, ele deu-me também dois dias de trabalho de Meriremetjuef e dois dias de tra­
balho do escravo Neh-sethi, na presença de algumas testemunhas.»

Com o período dos Ramsés, a relação entre escravo e senhor converteu-se


também num topos dos modelos epistolares (papiro Lansing 11, 3): «Tal como um
escravo {hrri\ serve o seu senhor, também eu quero servir o meu senhor.» Tanto as
«Miscelâneas», colectâneas antológicas de vários modelos de textos (cartas,
hinos, preces) para uso das escolas, como os textos históricos e autobiográficos
apresentam o escravo como tendo sido obtido como despojo de guerra ou selec-
cionado entre a juventude nobre das zonas ocupadas pelos egípcios:

«Trouxe como prisioneiros muitos daqueles que a minha espada tinha poupado e
vieram de mãos atadas atrás das costas à frente dos meus cavalos, e trouxe também
dezenas de milhares das suas mulheres e dos seus filhos, e centenas de milhares de
cabeças de gado. Encerrei os seus chefes em fortalezas que tinham o meu nome, e jun­
tei a eles os chefes dos archeiros e os chefes de tribo, marcados a fogo e convertidos
em escravos, tatuados com o meu nome, e as suas mulheres e os seus filhos foram tra­
tados do mesmo modo.» (Papiro Harris I 77, 4-6.)
«Quando se conquista a vitória, os prisioneiros de guerra são entregues a Sua
Majestade, para serem deportados para o Egipto. A mulher estrangeira desmaia
durante o caminho e agarra-se ao pescoço do soldado.» (Papiro Lansing 10, 3-5.)
«Aplica-te com extremo cuidado, precisão e competência a preparar tudo antes da
chegada do faraó, o teu bom senhor: pão, cerveja, carne, doces e tortas e também
incenso, óleo doce, ô \ t o - d f t de Chipre, óleo finíssimo de Khatti, óleo da Babilônia,
óleo de Takhsi, óleo mitani, em suma, os inúmeros óleos do porto para ungir o seu
exército e a sua cavalaria. E ainda bois, gado ocidental castrado [...], vasos e pratos
de prata e de ouro, escravos de Karka e jovens de estirpe sacerdotal para o serviço

178
doméstico de Sua Majestade, [...] escravos cananeus da Síria, jovens robustos e belos
núbios de Kush para transportarem o leque.» (Papiro Anastasi IV, 15, 1 e segs.)

Durante a primeira metade do Novo Império, é ainda o rei (recorde-se a desig­


nação de «servo real» que, no Médio Império, era aplicada aos fugitivos captura­
dos) quem mantém a posse jurídica do prisioneiro estrangeiro e quem decide da
sua doação a particulares. Observando o seu patrimônio de bois e de escravos
reproduzido nas paredes do seu túmulo tebano, o tesoureiro Maia (época de
Horemheb, 1335-1308 a. C.), diz {Urk., IV 2163, 7-11):

«[Isto é tudo o que] é concedido como demonstração de favor que goza junto do
rei quem louva o deus perfeito, aquele que o senhor das Duas Terras ama pelo seu
carácter, que transporta o leque à direita do rei, o superintendente do tesouro Maia,
justificado, entre os prisioneiros trazidos como despojos de Sua Majestade entre os
Asiáticos. O soberano disse: Fica com eles!’h

Em finais do Novo Império, desenvolve-se uma jurisprudência tendente, por


um lado, para a codificação da posse do escravo, que pode mesmo ser comprado
ou vendido entre particulares — por exemplo, o papiro Cairo 65739, do período
dos Ramsés, descreve-nos uma longa disputa legal pela posse de dois escravos
sírios que opõe um soldado a uma mulher — e, por outro lado, para a sua protec­
ção jurídica. Os textos administrativos documentam a possiblidade de o escravo
possuir bens: na rigidez do seu estilo burocrático, o papiro Wilbour, da época de
Ramsés V (1145-1141 a. C.), da 20.® dinastia — o mais importante registo admi­
nistrativo da época faraônica relativo à medição e à distribuição de terrenos —,
ao incluir por várias vezes o escravo entre os proprietários do terreno objecto de
medição, é talvez o testemunho mais eloquente de uma igualdade de direitos jurí­
dicos entre cidadãos livres e escravos (papiro Wilbour 26, 34-38):

«Medição dos terrenos efectuada a oeste do Palheiro de Hórus: propriedade do


escravo Panebtjam 3 lavras, 1, 1 V 4 medidas de trigo; propriedade da senhora Tabase
3 lavras, 1, 1 2 / 4 medidas de trigo; propriedade do sequaz dos Sherden Pakharu 3
lavras, 1, 1 2 / 4 medidas de trigo; propriedade do sacerdote Paranakhte 5, 1, 1 2 / 4
medidas de trigo.»

O escravo também tem direito a um tratamento judiciário justo: uma escrava


culpada de furto é condenada apenas a restituir o dobro do valor dos objectos
roubados (papiro Leida 352: Cern, 1937, 186-89). E é no contexto desta abertura
das possibilidades jurídicas do escravo que se deve considerar também a emanci­
pação, que, no fundo, constitui o aspecto simétrico da presença da escravatura
como componente estável da sociedade faraônica. Do Novo Império chega até
nós uma quantidade de textos administrativos que referem várias possibilidades
legais de emancipação, muitas vezes ligadas a uma forma do do ut des entre
escravo e senhor, como no caso daquele escravo que aceita desposar uma sobri­
nha inválida do seu senhor {Urk., IV, 1369, 4-16):

179
«Ano 27, sob a Majestade do Rei do Alto e Baixo Egipto Men-Kheper-Rá, filho de
Rá Tutmés [III], a quem seja concedido viver e durar como Rá eternamente. O bar­
beiro do rei, Sa-Basket, chegou perante os príncipes do palácio dizendo: “ O meu
escravo, um homem chamado Ameniu, que eu fiz prisioneiro com o meu próprio
braço quando acompanhei o soberano [...], Nunca foi espancado, nem nunca esteve
preso atrás de uma porta do palácio real. Dei-lhe como esposa Ta-Kemmet [«a cega»]
filha da minha irmã Nebel-Ta, que anteriormente vivia com a minha mulher e a minha
irmã. Então, ele saiu de casa, sem ser privado de nada [...] e se ele decidir chegar a um
compromisso judicial com a minha irmã, que ninguém empreenda nada contra ele.” »

A emancipação pode estar também associada a formas de adopção por parte


do particular a quem o escravo presta serviço, como neste documento da época
dos Ramsés, em que uma mulher estéril adopta os filhos que o marido tivera de
uma escrava — o que confirma tudo o que observámos no Médio Império, ou
seja, que, na ausência de tal procedimento, a condição jurídica de escravo devia
ser hereditária (Papiro de Adopção, 16 1-IV):

«Comprámos a escrava Dienihatiri e ela deu à luz três filhos, um rapaz e duas rapa­
rigas, três ao todo. E eu adoptei-os, alimentei-os e eduquei-os, e cheguei ao dia de hoje
sem que eles me tenham feito algum mal; pelo contrário, trataram-me bem e eu não
tenho outros filhos ou filhas senão eles. E o superintendente das esteias, Pendiu,
ligado a mim por laços de parentesco já que é meu irmão mais novo, entrou em minha
casa e desposou Taimennut, a irmã mais velha. E eu aceitei-o para ela e ele está hoje
com ela. Emancipei-a, e se ela der à luz um filho ou uma filha, também eles serão
cidadãos livres na terra do faraó, já que vive com o superintendente das esteias, Pen­
diu, meu irmão mais novo. E os outros dois filhos viverão com a irmã mais velha na
casa desse superintendente às esteias Pendiu, meu irmão mais novo, que eu hoje
adopto como filho, exactamente como eles.»

«Emancipado» é aqui uma tradução da expressão egípcia «tornado livre


[nmhj] na terra do faraó», que, a partir do Médio Império, exprime a condição
daqueles que receberam do Estado, a título vitalício e muitas vezes como recom­
pensa pelo serviço militar prestado, um pedaço de terreno que assim se torna,
pelo menos na prática, seu. Como veremos, com o fim do empenho militar egíp­
cio no exterior, em finais do 2.° milênio, este grupo social irá constituir, no l.°
milênio, uma das «classes» rígidas em que, segundo os autores gregos contempo­
râneos, se divide a sociedade egípcia. Para o escravo, uma outra possibilidade de
emancipação é ser «purificado» {sw‘b) pelo rei, passando assim a fazer parte,
como homem livre, do serviço do templo: a formulação mais clara desse tipo de
emancipação está contida na chamada «Esteia da Restauração» de Tutankhamon
(1347-1339 a. C.):

«Sua Majestade construiu as barcas [dos deuses] no Nilo em madeira de cedro do


melhor do Líbano, do mais precioso da costa asiática, embutida com o melhor ouro
dos países estrangeiros, que iluminavam o Nilo. Sua Majestade purificou escravos e
escravas, cantadeiras e bailarinas que antes tinham sido escravas que trabalhavam

180
na moagem no Palácio Real. Foram recompensadas pelo trabalho executado para o
Palácio Real e para o tesouro do senhor das Duas Terras. Declarei-as livres da escrava­
tura e ao serviço dos padres, ou seja, de todos os deuses, desejando contentá-los
fazendo o que o seu Ka deseja, para que eles protejam o Egipto.» {U rk ., IV 2030, 1-11.)

Convirá determo-nos por um momento no emprego do termo sw ‘b, para


designar a emancipação do estado servil. Recordar-se-á que o termo w’b desig­
nava, no Médio Império, a condição do «burguês» {nds) que, mediante a aquisi­
ção de um cargo sacerdotal, era isento do serviço obrigatório ao Estado. Num
certo sentido, a evolução semântica deste termo aponta para uma evolução mais
geral da história cultural: se, na sociedade aristocrática e, por assim dizer, «nilo-
cêntrica» do Médio Império, a «purificação» tinha sido um fenômeno associado
à passagem do indivíduo da condição de «dependente» para a de «burguês», na
sociedade cosmopolita do Egipto imperial, passou a indicar também a passagem
da escravatura para o serviço remunerado no templo. Numa estrutura social mais
complexa como a do Novo Império, o âmbito semântico desta palavra já não
exprime apenas a condição do indivíduo egípcio que melhora o seu estatuto
social, inclui também a do grupo social dos escravos estrangeiros, segundo um
processo idêntico ao que acontece com todos os fenômenos de «democratiza­
ção»: por um lado, de abertura das possibilidades de promoção social, por outro,
de nivelamento por baixo das elites culturais de uma sociedade. No início do
Novo Império, a função templar torna-se assim, a par da militar, um dos dois ser­
viços periodicamente prestados pelo indivíduo ao Estado. Nesta perspectiva, a
existência da escravatura não é portanto considerada automaticamente como o
indício de uma estrutura política mais despótica do que a de uma sociedade que
dela esteja (ainda) privada; pelo contrário, no Egipto do Novo Império, conver­
te-se, paradoxalmente, num dos sintomas de uma evolução da estrutura social no
sentido «democrático».
No entanto, segundo uma óptica moderna, um dos aspectos mais desconcer­
tantes dessa burocratização da escravatura é a existência de «casas de escravas»
destinadas aparentemente à «produção industrial» de filhos — recordar-se-á que
tanto a definição de «escravo» atribuída ao filho de uma escrava, no Médio
Império, como a menção explícita de um processo de emancipação dos filhos
tidos de uma escrava, no Novo Império, nos levaram a considerar que, no Egipto,
a escravatura era, por norma, hereditária. Dessas «casas de escravas» possuímos
uma reprodução, proveniente do túmulo tebano de Rekhmira, da 18.^ dinastia
(Davies, 1943, tab. 231), e uma referência filológica, contida noutro grande texto
administrativo da época dos Ramsés, o papiro Harris I, onde figuram as listas das
propriedades pertencentes aos maiores templos egípcios. Na oração a Ptah que dá
início à secção dedicada ao templo de Mênfis, menciona-se um «puro estabeleci­
mento feminino» que parece destinado à produção de mão-de-obra escrava
(papiro Harris I 47, 8-9):

«Emanei para Ti grandes decretos com palavras secretas, registados no arquivo do


Egipto, feitos em rochas trabalhadas com o escalpelo, e organizei para sempre o serviço

181
no Teu nobre templo e a administração do Teu “ puro estabelecimento feminino”.
Reuni os seus filhos que dantes estavam dispersos por outros serviços e destinei-os para
o teu serviço no templo de Ptah, como ordem que lhes era dada para sempre.»
Contudo, a condição de escravo parece, porém, caracterizar unicamente o
estrangeiro reduzido à escravidão: aos egípcios que, movidos por dificuldades
económicas ou obrigados pela administração da justiça, cedem ao Estado os
direitos da sua própria pessoa, é aplicada a definição genérica de «servos»
(bSk.w), cuja condição humana e social devia, porém, assemelhar-se bastante à
dos escravos estrangeiros:
«Mais: no fim do 9.° dia do terceiro mês da estação estival, fui mandado pela Sala
Grande do Palácio Real seguir esses dois servos. Quando, no dia 10.° da estação esti­
val, cheguei ao recinto de Tjeku, disseram-me que uma mensagem do Sul relatava a
sua passagem no 10.° dia da estação estival. Quando cheguei à fortaleza disseram-me
que eles tinham passado a cerca setentrional de muros da torre de Seti-Meneptah-
-amado-como-Seth. Quando receberes esta minha carta, escreve-me acerca deles.
Quem os encontrou? Que sentinela os deteve? Que homens os seguem? Informa-me de
tudo o que lhes sucedeu. Quantos mandaste segui-los? Adeus.»
«Servo» (b3k) surge assim como um termo genérico, cujo valor semântico
abrange também a condição do escravo estrangeiro (hm). Neste contexto, não
esqueçamos que na tradição bíblica, para quem o Egipto é, por antonomásia, a
«casa da escravatura», podem ser os próprios Egípcios que, por necessidades eco­
nómicas provocadas pela carestia, escolhem a escravidão, vendendo os seus bens
e a sua própria pessoa (Génesis, 47, 13 e segs.). E por isso, num documento do
Museu de Turim, um sacerdote de Medinet Habu chamado Amenkhan discute,
no seu segundo contrato de matrimónio, após a morte da primeira mulher, a
sorte de nove servos, cuja posse transmite aos filhos da primeira mulher, e de
mais quatro, que ele cede à segunda mulher e de quem esta se torna única pro­
prietária apenas em caso de morte do marido ou de divórcio. O documento de
Turim é interessante porque, a par dos servos locais, contém um excerto fragmen­
tário que refere também uma escrava estrangeira (hm.t), e sobretudo porque as
duas mulheres de Amenkhau são também apresentadas como libertas: usam exac-
tamente o título de «livre cidadã» ('nh.t nj.t n\t) que nos remete para o primeiro
documento analisado neste parágrafo dedicado ao Novo Império, isto é, o texto
em que a «população» de Elefantina acolhia o pedido de emancipação apresen­
tado por uma escrava cuja posse partilhava. E ainda mais esclarecedor nos
parece, neste contexto, a formulação que o vizir escolhe para dar o seu acordo às
cláusulas do contrato de matrimónio de Amenkhan (papiro Turim 2021, 3, 11-4, 1):
«Mesmo que não fosse sua mulher, mas apenas uma síria ou uma núbia por ele
amada, a quem tivesse decidido ceder um dos seus bens, quem poderia [alguma vez]
anular o que ele fez? Sejam portanto cedidos à cidadã Anoksunedjem os quatro servos
que lhe cabem a ela e a Amenkhan, juntamente com tudo o que de futuro ele adquirir
com ela, todos os bens que ele declarou querer ceder-lhe, dizendo: “ Os meus 2 / 3 para
lá do seu oitavo, e nenhum dos meus filhos ou filhas porá em causa este acordo que
hoje firmei em favor dela.” »

182
É claro que aos servos egípcios, como aliás aos escravos estrangeiros, também
não está vedada a possibilidade de possuírem bens (cfr. o testamento de Nau-
nakhte: Cerny, 1945, 29-53): esses servos constituem aquilo que poderemos defi­
nir como subproletariado e cuja condição surge nos textos associada, por um
lado, à dos escravos e, por outro, à dos camponeses e artesãos, ou seja, do prole­
tariado remunerado, oferecendo-nos assim um aspecto complementar desse fenô­
meno tipicamente egípcio que é a dissimulação da escravatura, que nos textos
nunca aparece totalmente definida, mas apenas sugerida nos seus aspectos essen­
ciais. No início do Novo Império, na correspondência de um tal Ahmés de
Peniati, que nos transmitiu um dos poucos arquivos administrativos da 18.®
dinastia, a mãe de uma serva (bSk.t) queixa-se por esta ter sido cedida pelo
patrão, a quem ela a tinha alugado, a um terceiro, levando-nos assim a considerar
que, ao contrário dos escravos estrangeiros, os servos egípcios não constituem por
norma objecto de transacção comercial mas que estavam sobretudo ligados a um
serviço específico, A questão é depois transposta para o plano jurídico e torna-se
bastante complexa:

«[Isto é] o que Ahmés de Peniati disse ao seu senhor, o tesoureito Tai: por que é
que a serva que estava comigo me foi tirada e dada a um outro? Não sou por acaso
o teu servo, que obedece às tuas ordens de noite e de dia? Faz com que eu possa pagar
o equivalente ao seu valor, porque ela ainda é uma criança, e não pode prestar nenhum
serviço. Ou então, ordene o meu senhor que seja eu próprio a prover ao serviço que
lhe couber, como a uma qualquer serva do meu senhor, porque a mãe da rapariga es­
creveu-me queixando-se por eu ter permitido que a sua filha fosse levada enquanto
estava aqui comigo, e que ela tinha renunciado a protestar por isso junto do meu
senhor porque a rapariga estava sob a minha responsabilidade, como uma filha. Disso
se queixou a mim.» (Papiro Louvre, 3230, 2.)
«Esta é uma comunicação para te informar acerca da serva alugada ao nobre Teti.
Portanto, ele enviou Abui, o superintenedente do pessoal de serviço, com a seguinte
mensagem: “ Leva a questão a tribunal, porque ele não respondeu às afirmações de
Ramsés, o superintendente dos agricultores. Quanto à questão da serva do nobre Mini-
-nefi, ele não quis dar ouvidos à minha sugestão de que a questão seja levada perante
os magistrados.” » (Papiro British Museum, 10107, 3-12.)

Também nestes textos administrativos, a sociedade egípcia do Novo Império


nos surge cada vez mais articulada numa série de grupos profissionais e artesa-
nais, no interior dos quais os «servos» constituem o segmento inferior, conti­
nuando aquele processo que já destacámos in fieri nos textos administrativos do
Médio Império. As antíteses estilísticas que, na Sátira dos Ofícios da época clás­
sica, opunham ainda o mundo livre da aristocracia, resumido na figura do
escriba, à sociedade egípcia «dependente» no seu conjunto, representada pelos
ofícios e pelas profissões, voltam a surgir nas «Miscelâneas» sob um aspecto mais
corporativo: agora é a própria actividade profissional do escriba que se contrapõe
a todas as outras, independentemente do seu prestígio social, que — como no
caso do profeta ou do sacerdote, no terceiro dos excertos que se seguem — devia,
aliás, ser bastante mais elevada do que o das outras:

183
«Vê com os teus próprios olhos: diante de ti desfilam agora os vários ofícios: o
lavadeiro passa o tempo a andar acima e abaixo, e todos os seus membros devem estar
fracos de tanto lavarem todos os dias as roupas dos vizinhos e os seus panos. O oleiro
está sujo de lama como alguém a quem tivesse morrido um familiar [...]. O sapateiro
mistura os curtumes e exala um cheiro terrível [...]. O cesteiro prepara grinaldas e lus­
tra as mísulas e tem de passar a noite a trabalhar como quem trabalha à luz do dia.
Os mercadores têm de navegar por toda a parte, e circulam como o cobre, transpor­
tando mercadorias de cidade em cidade [...]. O carpinteiro que trabalha no estaleiro
tem de transportar e arrumar a madeira e, se produz hoje a mesma quantidade de tra­
balho que ontem — pobres dos seus membros! Tem o patrão à perna, que lhe diz das
boas! E o seu dependente que está nos campos — este é o mais duro de todos os ofí­
cios: passa o dia carregado com as alfaias, agarrado à sua caixa de ferramentas.»
(Papiro Lansing 4, 2 e segs.)
«Agora, o escriba chegou à margem, para registar o imposto sobre a colheita. Atrás
dele há guardas com bastões e Núbios com chibatas. Diz [ao camponês]: “ Entrega o
cereal!’’ “ Mas, não há nenhum!’’ e é espancado selvaticamente: é atado e atirado ao
poço, mergulhado na água de cabeça para baixo, e a mulher é presa na sua presença.
Os filhos são acorrentados. Os vizinhos de trabalho abandonam-no e fogem. E, no
fim, nem sequer há cereal!» {Ib., 5, 7 e segs.)
«O profeta também serve como o agricultor, e o sacerdote oficia e passa o tempo,
três vezes por dia, metido no rio, quer seja Inverno ou Verão, mesmo que o céu esteja
ventoso e chuvoso.» (Papiro Anastasi II, 7, 6-7, 7.)

A época tardia

Este fenómeno de corporativização torna-se ainda mais típico na sociedade


egípcia do l.° milénio a. C. Acabámos de ver que, com o Novo Império, a escra­
vatura, que caracterizava sobretudo os prisioneiros de guerra imperiais e os asiáti­
cos comprados no mercado de escravos, se convertera numa componente funda­
mental da estrutura social egípcia, sem que uma figura autónoma de escravo
passasse, porém, a fazer parte de pleno direito do rico repertório de tipos huma­
nos a que a literatura recorreu. Com a decadência do poder imperial e a diminui­
ção progressiva da influência do Egipto na Ásia, durante a Idade do Ferro, tam­
bém diminui sensivelmente a presença de escravos no Vale do Nilo. Os
estrangeiros estão agora presentes no Egipto em grupos organizados autonoma­
mente: basta pensar no progressivo desenvolvimento das colónias e nos grupos de
mercenários gregos, semitas e cários, por exemplo, em Naucratis ou em Elefan-
tina. Há alusões à escravatura propriamente dita que remontam ao início do l.°
milénio, mas são, sintomaticamente, raras em relação à abundância da época dos
Ramsés; na inscrição em que o potentado líbio Sheshonq, «grande chefe dos
Meswesh» e futuro fundador da 22.® dinastia bubastita (946-712 a. C.) com o
nome de Sheshonq I, declara desejar criar, em Abidos, uma fundação piedosa
para manter o serviço fúnebre de seu pai, Nemlot, entre o pessoal dessa fundação
é mencionado um camponês sob cujas ordens trabalham quatro escravos {h m .w ),

184
«no total 5 homens por um valor global de 4 deben e um kite de prata», segundo
está escrito em típico estilo burocrático (Esteias Cairo JE 66285, 13-14). Após
esta época, o termo hm deixa de aparecer na documentação administrativa; por
conseguinte, a situação da época tardia acabou por se assemelhar bastante àquela
que vimos caracterizar os inícios da história faraónica, com a ausência de uma
codificação formal da escravatura e a sua menção unicamente no contexto pala­
ciano ou templar. Não admira, portanto, que, no século v a. C., Heródoto, que
foi o primeiro leitor ocidental da civilização egípcia, não mencione o escravo
entre as «sete classes do Egipto» (Aigyptíon heptà génea) que, segundo ele, carac­
terizavam a sociedade da época tardia (2, 164): «São sete as classes dos Egípcios,
e entre eles alguns são denominados sacerdotes, outros guerreiros, outros criado­
res de gado, outros pastores, outros mercadores, outros tradutores, outros bar­
queiros. São estas as classes sociais dos Egípcios, e as suas denominações ba­
seiam-se nos ofícios.» E também não admira que, poucos anos depois, Platão
nos forneça uma análise da sociedade egípcia em muitos aspectos idêntica; no
Timeu, um sacerdote egípcio fala das leis do seu país ao legislador ateniense
Sólon (24 a-b):

«Nota em primeiro lugar que a classe [gènos] dos sacerdotes está separada das
outras; vem depois a classe dos artesãos, onde cada grupo trabalha por sua conta e
sem se misturar com os outros; depois, as classes dos pastores, dos caçadores e dos
camponeses, todas distintas e separadas. Além disso, como aliás deves ter notado, a
classe dos militares está separada de todas as outras, sendo-lhe imposto por lei que se
dedique unicamente ao exercício das actividades ligadas à guerra.»

E na época romana, para Diodoro Sículo (I, 73-74), a sociedade egípcia com­
preende, para além dos militares, três classes de cidadãos livres, ou seja, os pasto­
res, os agricultores e os artesãos. Como poderemos nós interpretar esta interpreta-
tio graeca da composição da sociedade egípcia? Sacerdotes, militares e
camponeses (no sentido mais amplo de «trabalhadores do sector agrícola») são as
três componentes fundamentais que emergiram da desagregação da sociedade
imperial: os sacerdotes administram, numa situação de privilégio, a economia
templar, que se tornou bastante mais rica do que a que continuava a ser gerida
pelo Palácio; os militares profissionais são na sua maioria mercenários, alguns
dos quais ao serviço de várias dinastias; os agricultores e os pastores são os
nmh.w, ou seja, os herdeiros daqueles «homens livres na terra do faraó» do Novo
Império, a quem a posse de um pedaço de terra assegurava a independência eco­
nómica em relação ao poder central. Numa sociedade que viu reduzir-se os seus
horizontes políticos (mas não, necessariamente, os culturais) e que se tornou uni­
camente nilocêntrica, deixa de haver espaço para os escravos. A escravatura, que
é um fenómeno de sociedades em expansão económica, foi substituída por for­
mas de «clientela», que se explicam, por um lado, pelo laço corporativo que une
o indivíduo ao seu grupo profissional — um laço tão estreito que, para o leitor
grego, parece constituir um indício de classes sociais rigidamente estanques —, e,
por outro lado, pela frequente transacção comercial de escravos — definidos mais

185
uma vez pelo termo b3k, «serviço». Os contratos da época saítica e persa dão-nos
inúmeros exemplos disso — já sem qualquer diferença entre egípcios e estrangei­
ros; nesses contratos, a condição de escravo é apresentada como regida por uma
série de restrições jurídicas, de que era, porém, possível ser emancipado e que
muitas vezes constituía uma opção voluntária, e repleta de motivações ideológi­
cas, do indivíduo em busca de protecção económica, o que leva a interpretá-la
mais como uma forma de clientela do que de escravatura (Louvre E 706 3r-7; cfr.
Bakir, 1952, tab. 17; Griffith, 1909, III, pp. 52 e segs.):

«Fizeste-me concordar com o preço para me tornar tua serva. Agora sou tua serva,
e ninguém poderá afastar-me de ti e eu não poderei libertar-me [ou seja: «tornar-me
nmh»\\ mas permanecerei ao teu serviço, juntamente com os meus filhos, mesmo no
caso de me dares dinheiro, trigo ou qualquer propriedade da região.
A serva Tapnebtynis, filha de Sebekmeni e da mãe Esoeri, afirmou diante do meu
senhor Sobek, senhor de Tebtynis, o grande deus: “ Sou a tua serva juntamente com os
meus filhos e os filhos dos meus filhos. Nunca mais serei livre [nmh] no teu templo,
para a eternidade. Tu proteger-me-ás, manter-me-ás, guardar-me-ás, conservar-me-ás sau­
dável, preservar-me-ás de todos os espíritos masculinos e femininos, de todos os homens
em transe, dos epilépticos, dos afogados, dos bêbados, dos pesadelos, dos mortos, dos
homens do rio, dos desequilibrados, dos inimigos, das coisas vermelhas, das desventuras,
das pestilências.” » (Papiro BM 10622, 7-14.)

O próprio termo nmh que, no Médio Império, definira, a partir do seu signifi­
cado original de «órfão», a pessoa privada de protecção jurídica, e que, no final
do Médio Império, caracterizara o pequeno proprietário de terras isento de
impostos, para passar a designar progressivamente a libertação do estado servil,
revela-se o mais adequado para nos permitir concluir esta breve história da escra­
vatura no Egipto: enquanto nos papiros gregos do Egipto se observa a progressiva
afirmação da escravatura de tipo helenístico, que se baseia nos despojos de
guerra, na compra de escravos do mundo sírio-palestiniano, como nos informam
os papiros de Zenão, na escravatura por dívidas e na hereditariedade dos escravos
nascidos em casa do patrão, nos textos autóctones da época ptolomaica a forma
mais usual de escravtura (mesmo voluntária) tornou-se a do serviço nos templos:
ao «nascido livre» opõe-se agora o «nascido no recinto do templo», aquele tem­
plo que, como último bastião de pura egipcianidade numa sociedade votada ao
sincretismo primeiro, guardará, reelaborará e fixará nas suas paredes os textos
religiosos do seu passado milenar, e que depois se desmoronará, dando início à
nova época do Egipto cristão.

Conclusão

A análise da figura do escravo no antigo Egipto cumpre assim uma tripla fun­
ção histórica: em primeiro lugar, esclarece o alcance e a estrutura de algumas impor­
tantes mudanças sociais que ocorreram no interior do mundo faraônico ao longo
dos seus três milênios de história documental: desde a sociedade piramidal

186
(em todos os sentidos!) da época menfita até à progressiva «meritocracia» (e à
problemática humanística a ela associada) do Médio Império, do centralismo
burocrático de Ramsés até à aparição de grupos profissionais estanques como
«classes sociais», durante a época tardia; em segundo lugar, contribui para uma
crítica da hipótese que definiremos como «evolutiva» no estudo da história da
humanidade, segundo a qual as civilizações clássicas comportariam, sob o ponto
de vista da história social, económica e jurídica, uma superação de tudo o que
fora elaborado nas culturas da Idade do Bronze e do Ferro do Oriente mediterrâ-
nico: de facto, o Egipto faraónico recorreu, de acordo com as necessidades econó­
micas e da história das ideias nos seus sucessivos momentos históricos, a diversos
tipos de «escravatura», que vão desde a ausência desse estatuto durante o Antigo
Império, quando toda a sociedade egípcia se encontra na situação de dependência
total do controlo estatal, até ao seu reconhecimento e à existência de escravos
«políticos» durante o Médio Império, desde a abundância de escravos estrangei­
ros, no Novo Império, até ao emergir de várias formas de escravatura mais ou
menos voluntária, durante o 1° milénio a. C.; por fim, permite traçar uma «his­
tória social» da cultura egípcia, pela análise do funcionamento do complexo
mecanismo social do mundo oriental antigo, mas que oferece ao historiador tra­
ços de uma extraordinária modernidade (como a desconfiança na codificação
jurídica em relação à jurisprudência episódica: pense-se nas características do sis­
tema legal anglo-saxão em comparação com os de tipo romano e napoleónico) e
que, por conseguinte, favorece o repensar crítico dos próprios fundamentos da
cultura ocidental.

187
CAPITULO VIII

O ESTR A N G EIR O

p o r E dda Bresciani
Em 1961, Sergio Donadoni escrevia o seguinte acerca da posição do Egipto
antigo em relação às realidades estrangeiras existentes para lá das suas fronteiras:
«Os impérios universais não sofrem por aquilo que nós sentimos como limita­
ções: vêem-nas como um caos nebuloso e desorganizado, que é apenas uma mol­
dura negativa da realidade do cosmos politicamente unido e perfeito.»
Instrumento útil para o poder régio, esta concepção mantém-se viva ao longo
de toda a civilização egípcia: a intervenção contra os que provocam distúrbios é
um acto obrigatório por parte do faraó, garante, junto da divindade, da ordem
universal, enquanto os perturbadores, os povos não egípcios estabelecidos a sul,
a leste, a oeste do Egipto, são «vencidos» por definição, mesmo antes de comba­
terem. Cenas e símbolos que têm por tema o conjunto dos adversários — os
«Nove Arcos» — repetem-se como exemplo e, simultaneamente, como advertên­
cia, durante toda a história egípcia, e mesmo na época greco-romana; as figuras
eternamente «pisadas» dos vencidos vêem-se sob as solas das sandálias do rei, no
chão e sob a balaustrada dos palácios, no pedestal das estátuas reais.
O Egipto histórico, etnocêntrico, já nos Textos das Pirâmides se concebia a si
próprio como centro do mundo: «Olho de Hórus», o Egipto foi destinado pelo
deus a ser uma nação, ou melhor, «a nação» criada por Hórus-faraó:

«As portas que existem em ti erguem-se para proteger.


Não se abrem para os ocidentais,
Não se abrem para os Orientais
Não se abrem para os Meridionais.
Não se abrem para os Setentrionais! [...]
Abrem-se para Hórus! Foi ele quem as construiu,
foi ele quem as ergueu, foi ele quem as salvou de todos os ataques de Seth
contra elas!»
{Pyr., 1588-1606)

Eis a justificação, tão precocemente elaborada em tom mitológico, da oposi­


ção entre o Egipto e os seus vizinhos dos quatro lados do mundo, orientados
astronomicamente, entre o reino de Hórus — o Egipto, onde tudo vive numa
ordem perfeita — e o reino de Seth — os «países estrangeiros», o reino do «dife­
rente», da desordem.
Entretanto, o reino do faraó era protegido, oficial e ritualmente, contra os
estrangeiros que resistissem a fazer parte do mais feliz dos Estados possíveis.

191
o Egipto: as operações mágico-políticas destinadas a tornar inofensivos os estran
geiros hostis, são testemunhadas pelos chamados textos de esconjuro («Achtung
texte») do Antigo Império, escritos em vasos e estatuetas de argila encontrado
em Gizé e em Sacará, e que enumeram os nomes de príncipes e de países, d
Núbia e da Ásia, que devem ser exorcizados «juntamente com os seus [súbditos
vencidos [ou seja: «que inevitavelmente serão vencidos»]».

«Todos os rebeldes deste país, todos os homens, todos os funcionários, todos o


súbditos, todos os varões, todos os eunucos, todas as mulheres, todos os chefes, todo
os núbios, todos os combatentes, todos os mensageiros, todos os aliados e todos o
confederados dos países estrangeiros que se revoltarem e que se encontrem no país d
Uauat, de Djatin, Irtjet, Iam, lanekh, Masit, Kaau, ou que conspirarem ou causarem
desordens devido a más palavaras de todos os tipos contra o Alto e Baixo Egipto [serão
destruídos] para sempre.»

Estes rituais tão particulares estão confirmados, tanto no Antigo como no Médio
Império, e comprovam uma riqueza de conhecimentos concretos e directos acerca
da geografia, da política, da toponímia, das línguas da África e da Ásia, e acerca
dos príncipes de regiões sobre as quais o faraó tinha pretensões — e actuações —
de domínio, mas dos quais, mesmo devido à sua presença em território egípcio, se
receava o eclodir de rebeliões ou conjuras. Os casos, mais raros, em que as pessoas
atingidas pelo esconjuro usam nomes egípcios podem designar estrangeiros residentes
no Egipto ou mesmo súbditos egípcios desencaminhados e «rebeldes».
Vencidos, e convencidos, aos «estrangeiros» só resta a hipótese de obedecerem
se ficarem no seu país, como súbditos submissos e leais, se, solicitamente, fornece
rem ao faraó as riquezas das suas terras, ou se forem levados para o Egipto para
servirem o rei ou o templo, encontram, no mundo organizado do sistema político
faraónico, uma situação que lhes é útil, no espírito pregado pela filosofia «lealista»
faraónica, tão claramente expressa por Sesóstris I na Núbia, no Wadi el Hudi:
«Durará eternamente a estirpe de todo o [nômada] lunti da Núbia que se reconheça
súbdito como um servidor que age segundo o poder deste soberano perfeito.»
A diversidade, a «estranheza» dos países estrangeiros em relação ao Egipto é
realçada, descrita, representada com curiosidade pelos Egípcios antigos, e é reco
nhecida sob a forma de uma série de características antropológicas, etnográficas
e mesmo ambientais e ideográficas que tornam diferentes os povos estrangeiros,
embora — pelo menos na elaboração bem desenvolvida que conhecemos de mea
dos da 18.® dinastia, que não pode, porém, excluir a eventual aparição de precon
ceitos nos contactos diários — inseridos «como iguais» na criação providencial do
demiurgo divino: «Foi Áton, que criou os homens,/ que os distinguiu pela sua
natureza e os fez viver,/ que distingiu as cores da pele» (papiro Boulaq 17, Hino
a Ámon-Rá) e também, dirigindo-se ao deus:

«Criaste o mundo segundo o teu desejo [...],


os países estrangeiros, a Síria, a Núbia e a terra do Egipto
Colocaste-os nos seus lugares,
providos do que lhes é útil,

192
cada qual tem a sua comida e o seu tempo de vida.
Como diferenciaste os povos estrangeiros,
as suas línguas são diferentes pelos idiomas,
diferentes são os caracteres e a pele.
Criaste aquilo de que vivem
todos os longínquos países estrangeiros:
criaste um Nilo [a chuva] no céu, que caiu para eles,
que faz ondas nos montes como o mar,
para banhar os seus campos nas suas terras.
Como são excelentes os teus conselhos,
ó senhor da Eternidade!
O Nilo no céu é para os povos estrangeiros,
e para os animais de todos os desertos onde caminham com os seus pés.
O Nilo [verdadeiro] vem para o Egipto do [oceano do] Além.»
(H in o a Á to n , Túmulo de Ai em El Amarna).

Os países estrangeiros, com os seus produtos exóticos, foram criados para


enriquecerem os templos e os armazéns do Egipto, como se lê nos Mil Cantos em
Honra de Ámon:

«Os países estrangeiros vêm a ti


repletos de produtos maravilhosos,
todas as regiões estão cheias de temor a ti:
reverdece por ti a Terra de Deus.
As águas trazem-te [barcos] carregados de resina
para festejar o teu templo com fragrância festiva;
destilam bálsamo para ti as árvores de incenso [...].
Cresce para ti o cedro
[com cuja madeira] é construída a tua barca.
A montanha envia-te blocos de pedra para fazer grandes as portas
[do teu templo];
barcos estão por ti sobre o mar,
nas margens carregam-se barcos,
fazem-se navegar por ti [...].»

A concepção universalista e supra-racial do Egipto do Novo Império está elo­


quentemente ilustrada no túmulo tebano de Sethi I: asiáticos, negros, líbios e
egípcios, vestidos com os seus trajos nacionais, avançam sob a vigilância de
Hórus, todos da mesma forma, em direcção ao mesmo destino no outro mundo
prometido pelas crenças religiosas.
Na maioria dos casos, os estrangeiros estabelecidos como guarda-costas do rei
e como soldados no Egipto conservam o seu trajo nacional: os seus toucados
característicos e os seus desfiles — tal como a chegada de mercadores exóticos e
dos cortejos dos portadores de tributos estrangeiros — constituíam um espectá­
culo frequente no Egipto.
Os soldados dos destacamentos militares núbios, recrutados a partir do
Antigo Império, usam as suas armas típicas (setas, arcos, machados), envergam

193
amplos cintos que lhes caem para as coxas, decorados com losangos, e cingem
com fitas as cabeleiras encrespadas; os mercenários líbios conservam o costume
de tatuar o corpo e usam na cabeça até quatro plumas; os homens dos destaca­
mentos de Sherden (um dos chamados Povos do Mar), que servem na guarda de
Ramsés II, são vistosos, com as suas patilhas e os bigodes encaracolados, o elmo
e os escudos redondos, as casacas cobertas de pregos de metal.
Nas cenas dos «tributos» existentes em túmulos de altos funcionários do
Novo Império, a reprodução da chegada ao Egipto dos «tributários» do mundo
egeu é muito sugestiva; os pormenores que distinguem o «cretense» são expressos
com tal precisão (as cabeleiras compridas e encaracoladas, as botas, de pele toda
decorada, até ao joelho, os saiotes enfeitados com pompons) que não permitem
duvidar que os artistas egípcios teriam tido à sua disposição esses exóticos mode­
los. Aliás, pintores e escultores gostam de reproduzir as diferentes variedades étni­
cas, e divertem-se — por que não? — a traçar e a acentuar com alguma ironia a
dureza de certos traços negróides ou a imponência de alguns narizes semitas.
A diferença de cor que existe entre «o olho de um asiático» e «o olho de um
núbio» é utilizada num texto de prognóstico de fertilidade:

«Deves olhar para os olhos da mulher à luz do dia, e se vires que um dos seus
olhos é como o de um asiático e o outro como o de um núbio, [a mulher] não dará
à luz, mas se forem da mesma cor, dará à luz.» (Papiro Berlim 3038, r. 2, 1-2.)

A carta escrita por Amenófis II ao seu vice-rei da Núbia — Usersatet, que a


mandou recopiar numa das suas esteias encontradas em Semna, no Sudão —
mistura aos tons altivos — obrigatórios, em certa medida, por parte de um
faraó — com que se refere aos asiáticos e núbios (é imediata a associação com o
diagnóstico — muito mais lúcido e pragmático — acerca dos «vis asiáticos» dado
por Khety II a seu filho Merikara, mais de meio milênio antes), divertidas piadas
em relação ao harém cheio de mulheres exóticas que fazem as delícias do seu alto
funcionário, conselhos para se precaver contra os «magos» núbios (mas acerca
deste preconceito corrente no Egipto voltaremos a falar) e observações acerca da
inadequação dos súbditos africanos para cargos de confiança no Egipto, devido
à sua incapacidade para ocuparem outros lugares senão os de fiéis de armazém:

«Cópia da ordem enviada por Sua Majestade, por sua própria mão, ao filho do rei
Usersatet. Sua Majestade estava em Tebas no “ Kap” do faraó, e bebia e passava ale­
gremente um dia:
“ É-te enviada esta ordem do rei, grande de massacre, forte de braço, vitorioso com
a sua cimitarra, que prendeu os Setentrionais e aterrorizou os Meridionais em todos os
seus lugares. Não existe um rebelde em nenhum país.
Tu [resides entre os Núbios], és um herói que faz prisioneiros em todos os países
estrangeiros, um guerreiro auriga que faz capturas para Sua Majestade Amenófis, [que
recebe tributos de] Naharina, que faz tributário o país dos Hititas, és o senhor de uma
mulher da Babilônia, de uma serva de Biblos, de uma rapariga de Alalakh [na Síria]
e de uma anciã de Arapakha.
Nenhum destes povos da Ásia [Takhesi] serve para nada.”

194
Outro discurso ao filho do rei:
“ Não confies nos Núbios para nada, evita as suas gentes e os seus magos!
Olha, o servo que um homem, ainda há pouco tempo, trouxe [para o Egipto] para
fazer dele um funcionário, não é um funcionário que tu [possas utilizar] para redigir
um relatório para Sua Majestade.
[...]
Não dês ouvidos às suas palavras, não te impressiones com os seus despachos.’’»
{Urk., IV, 1343-44).

Para os mestres-escola, o facto de se vir de Kush não era uma garantia de ele­
vado quociente de aprendizagem; significativamente, um dos textos inseridos nas
«Miscelâneas escolares» (papiro Bolonha, 1094, 3, 5-3, 10), dá-se o exemplo da
macaca ao aluno que não quer estudar: «Até a macaca consegue ouvir as pala­
vras, embora tenha vindo de Kush.»

Não foi a antropologia moderna que descobriu que «a comida faz o homem»;
para os Egípcios, o tipo, a qualidade e o modo de cozedura dos alimentos já são
um dos critérios distintivos dos povos, tal como o vestuário. *
Os beduínos que acolhem Sinuhe dão-lhe comidas diferentes das egípcias,
porque são cozinhadas em leite: «Foi feito para mim muito vinho de tâmaras e foi
usado leite em todos os [alimentos] cozinhados»; quando regressa ao Egipto,
Sinuhe volta a ser egípcio, despojando-se, material e metaforicamente, do habitus
beduíno:

«Sua Majestade disse à esposa real: “ Vê, Sinuhe regressou com o aspecto de um
asiático educado pelos beduínos.’’ Ela soltou um grande grito e todos os príncipes sol­
taram exclamações e disseram a Sua Majestade: “ Mas não é ele, ó soberano meu
senhor!’’; mas Sua Majestade disse: “ É ele [...].’’ O meu corpo foi rejuvenescido, fui
barbeado, pentearam a minha cabeleira, foram abandonados no deserto as vestes
d’Aqueles-que-correm-pela-areia; fui vestido com tecidos de linho e ungido com óleo
fino. Estava deitado num leito e deixara a areia para aqueles que lá vivem e o azeite
para aqueles que com ele se ungem.»

Num artigo erudito e espirituoso, Serge Sauneron mostrou há alguns anos a


fraca opinião que os Egípcios tinham da cozinha dos seus vizinhos meridionais;
embora os testemunhos sejam todos da época tardia ou muito tardia, é indubitá­
vel que essa opinião se foi formando durante os muitos séculos de contactos e de
convivência entre os dois povos. Num relato demótico (Setne II), que tem como
protagonista Setne (Setem) Khaemuaset, filho de Ramsés II, um mago de Kush
vem ao Egipto para desafiar os magos do faraó a lerem uma carta sem desenrola­
rem o rolo de papiro selado, e, depois de ter definido a Núbia como «a pátria dos
manjares de resina», o faraó ordena que se preparem para o hóspede alojamentos
e «porcarias [para comer] ao gosto etíope».
Outro texto, que se lê em Esna e remonta à época de Trajano, explica que o
providencial deus-demiurgo Khnum diferenciou os produtos dos países estrangei­
ros e os alimentos adequados à constituição física dos Núbios:

195
«[Khnum] criou os produtos dos estrangeiros no interior dos seus países, para
terem um tributo a levar para fora;
o Senhor do torno [é Khnum imaginado como oleiro] é também seu pai,
o deus Tanen [um deus da terra] que criou tudo o que existe sobre o seu solo,
fazendo para eles alimentos do tipo [apreciado] pelas gentes do país [núbios de]
Ibeha, próprios para sustentar o seu corpo.»

Noutro re]ato demótico (Petubasti de Estrasburgo, 15, 20-21) Minebemaat,


príncipe de Elefantina, é insultado como «negro comedor de resina». O próprio
facto de se ter pouca comida, em comparação com a abundância agrícola que o
Nilo proporcionava ao Egipto, servia para distinguir o estrangeiro errante: o
Asiático nômada tinha de se deslocar para encontrar novos alimentos, e as popu­
lações líbias, como se lê na esteia de Meremptah em Karnak, «vagueiam constan­
temente e têm de lutar para encher a barriga todos os dias».
A introdução de «estrangeiros» no mundo confiado ao faraó já está docu­
mentada nos «Anais» gravados na «Pedra de Palermo» e em outros documentos
da época; núbios e líbios penetram no Vale do Nilo em número bastante elevado,
rotulados como «prisioneiros vivos» capturados em acções bélicas e em saques.
Quanto ao primeiro soberano da 4.® dinastia, Sneferu, a «Pedra de Palermo»
menciona 7000 prisioneiros «do país dos Núbios», juntamente com 200 000 cabe­
ças de gado, grande e pequeno. Quanto à dinastia seguinte, a mesma «Pedra de
Palermo» menciona, durante o reinado de Sahura, a entrada de grandes quanti­
dades de minerais preciosos dos países vizinhos e do Sinai (os «Terraços da Tur­
quesa») e materiais exóticos de Punt (olíbano, âmbar amarelo, malaquite,
madeira, etc.); os relevos do templo funerário deste faraó, em Abussir, reprodu­
zem, como se tivessem sido fotografados, o tipo físico, o modo de vestir, as tatua­
gens características de alguns chefes militares de várias regiões da Líbia, captura­
dos e levados para o Egipto com as suas famílias e o seu gado; quanto aos
animais roubados são indicados estes números: 123 400 bovinos, 223 200 burros,
232 413 cabras, 243 689 ovelhas. Associar a captura de prisioneiros à de cabeças
de gado revela a motivação «econômica» do domínio faraônico sobre os países
estrangeiros; são as riquezas em minerais, animais, plantas, braços humanos,
capacidades artesanais — a que o faraó precisa de ter acesso, e que lhe cabem por
graça divina. Ainda em Abussir, o deus Ash, «senhor da Líbia», diz a Sahura:
«Levo-te tudo o que de bom existe neste país»; noutras cenas lêm-se afirmações
proferidas pela divindade, como, por exemplo, «Dou-te todos os povos hostis
com todas as provisões que existem em todos os países estrangeiros», «Dou-te
todos os países estrangeiros do Oeste e do Leste, todos os inuti [núbios nômadas]
e os mentiu [asiáticos nômadas] que existem em todos os países.»
As reproduções de Abussir testemunham a chegada por via marítima, durante
o reinado do mesmo soberano, de asiáticos — não prisioneiros mas, segundo
parece, comerciantes provenientes provavelmente de Biblos —; a bordo, homens,
rapazes e mulheres saúdam, com entusiasmo, o faraó: «Saudamos-te, ó Sahure,
deus dos vivos! Contemplamos a tua beleza!», «Saudamos-te, Sahure, amado por
Thot, senhor dos países estrangeiros!»

196
O grupo hieroglífico que caracteriza uma ou duas personagens a bordo dos
barcos parece que não deve interpretar-se (como sugere Boreux no seu Etudes de
nautique égypíienné) como «sinaleiro», «quartel-mestre sinaleiro»; é preferível
aceitar a sugestão de «intérprete» dada por A.H. Gardiner e em parte modificada
por H. Gordicke, que prefere um significado mais geral de «estrangeiro» que
serve como mercenário no exército do Egipto.
Todavia, a tradução genérica de «estrangeiro» não parece possível, como pre­
tenderia Goedicke, quando se trata dos títulos de dois médicos do Palácio do
Antigo Império; no caso do médico interno Iri, esse grupo hieroglífico significa
«aquele que reconhece os sintomas da urina dentro da bexiga» e, no caso de
outro médico, chamado Khui, significa «aquele que reconhece os sintomas do
tumor oculto»; tratava-se de especialistas de medicina interna, capazes de «inter­
pretar» a linguagem patológica do corpo.
A existência de «intérpretes», de «estrangeiros-que-sabem-falar-egípcio» inse­
re-se no quadro, tão característico para o ambiente egípcio, de um intenso e muito
precoce comércio internacional; por isso, nos barcos que chegam da Ásia aos por­
tos egícios de Sahura se quis indicar, por escrito e por capricho realista, a pre­
sença em todas as tripulações de um «egiptófono» que tornou compreensíveis,
traduzindo-as, as exclamações dos estrangeiros em honra do faraó.
A existência de uma classe de estrangeiros bilingues («intérpretes») — estran­
geiros de nascimento ou filhos de casamentos mistos? —, inseridos na sociedade
egípcia e utilizados profisionalmente, está bastante documentada no Antigo
Império; o «Decreto de Dahshur» {Urk., I, 209, 16) especifica alguns desses gru­
pos provenientes de regiões núbias como Medja, Iam, Iretjet, e que deviam fazer
parte dos «núbios pacificados» mencionados no mesmo decreto (Urk., I, 211,
3.10). Como aqueles, estes estavam provavelmente ao serviço do Egipto, utiliza­
dos como «vigias» e «intérpretes» durante as expedições ao Sinai, à Núbia, ao
mar Vermelho, muitas vezes sob o comando de altos funcionários como os gover­
nadores de Elefantina, Herkhuf, Pepinakhte e Sarenput, empenhados em provei­
tosas missões militares e comerciais nas regiões africanas de onde são trazidos
indígenas e produtos exóticos; o famoso anão dançarino levado por Herkhuf a
Pepi II ainda criança era um pigmeu proveniente da região de Iam, a sul da
segunda catarata do Nilo.
Se, no Novo Império, os «intérpretes» já não figuram, salvo raríssimos casos,
entre os ofícios, isso talvez esteja relacionado com normas diferentes e com con­
tactos linguísticos cada vez mais profundos entre egípcios e estrangeiros nas
várias regiões do Império Egípcio e no próprio Egipto.
Para reencontrarmos uma classe específica de «intérpretes», temos de chegar
ao século VII a. C., quando, segundo Heródoto (2, 154), por vontade de Psamé-
tico I, se criou essa categoria para difundir o conhecimento da língua grega em
todo o Egipto.
A presença maciça de núbios no exército egípcio é confirmada, já na 6.“
dinastia, pela inscrição dc Uni {Urk., I, 98 e segs.), que, à cabeça de um exército
de muitos milhares de homens não só do Baixo e do Alto Egipto, mas também
«provenientes de lertjet da Núbia, de Medjar da Núbia e do país da Líbia», levou
a cabo vitoriosas e repetidas expedições contra «Aqueles-que-vivem-na-areia», os
beduínos nômadas da região do Carmelo.
A partir do Antigo Império, grupos ou indivíduos de proveniência africana —
Núbios ou Kuxitas, não necessariamente e não apenas «prisioneiros de guerra» —
encontram colocação no Egipto como mão-de-obra assimilada à classe trabalha
dora indígena, como é o caso, por exemplo, dos habitante de Punt, homens e
mulheres, que, no Médio Império, trabalhavam como criados no palácio de
Merur, no Fayum, e como tropas mercenárias; a aceitação social e a assimilação
cultural é favorecida, no caso dos núbios e dos habitantes de Punt, pela afinidade
étnica de base, mas também é um facto em relação aos verdadeiros negros de
Kush, as populações napateias, que se introduzem em grande número no Egipto,
a partir de meados da 18.® dinastia, quando as estradas que conduzem ao Darfur
e ao Kordofren estavam sob o controlo directo do faraó. Há alguns números que
podem ser significativos: segundo os «Anais» de Tutmés III {Urk., IV, 708 e
segs.), entre os anos 37 e 41 do seu reinado, foram trazidos de Kush mais de 200
prisioneiros, entre os quais 4 filhos do príncipe de Irem; na 19.® dinastia, Ram-
sés II, em Amara, enumera cerca de 7000 prisioneiros das regiões dos negros.
Os prisioneiros capturados eram utilizados no Egipto de várias formas e pas
savam a depender do Palácio, dos templos e mesmo dos templos funerários reais;
uma série de pequenas esteias comemorativas encontradas em Qrna, no templo
funerário de Tlitmés IV, testemunha o modo como se fixaram junto do seu tem
plo funerário colônias de africanos capturados no «vil país de Kush» e de «sírios
capturados por Sua Majestade na cidade de Gezer», que foram depois empregues
em trabalhos específicos: os africanos, nas estruturas de serviço na ala sul do
templo funerário de Tutmés IV (nas cozinhas e na padaria ou «casa do pão») e
os palestinianos, tradicionalmente viticultores experimentados, nas estruturas de
serviço na ala norte do templo (nas cantinas ou «casa do vinho»).
Uma solução para a condição servil imposta a núbios e a asiáticos pode en-
contrar-se também, durante o Novo Império, na requintada produção de colheres
para cosméticos, em madeira ou marfim, com o cabo reproduzindo um escravo
(núbio, negro ou asiático) curvado sob o peso de uma grande jarra ou de uma
ânfora (o recipiente, munido de uma tampa com gonzos, contém o unguento).
Durante o Primeiro Período Intermédio, na 11.® dinastia, em Gebelein, no
Alto Egipto, havia uma colônia de mercenários núbios que deixaram vestígios da
sua existência numa vintema de esteias de tipo egípcio convencional pela decora
ção, pela religiosidade e pelos textos hieroglíficos, mas características pelas figu
ras dos titulares e das suas famílias: os soldados núbios têm cabeleiras encrespa-
das, muitas vezes cingidas por uma fita, outras vezes atravessadas por um alfinete
(ou um osso?), o largo cinto termina por vezes em franjas ou caudas de animais;
na mão têm o arco e as setas, símbolo do seu ofício. Nas esteias de núbios, em
Gebelein, nota-se a presença constante de um ou dois cães, os amigos, os compa
nheiros de guerra dos soldados (esses cães, porém, não têm o nome escrito como
os cães líbios, com nomes líbios, do célebre relevo conservado no Museu do
Cairo e proveniente do túmulo — contemporâneo das esteias de Gebelein — de
Antef II, em Deir el-Bahari). Se a mulher do «núbio Sunu» (esteias Boston MFA

198
03,1848) era provavelmente egípcia, o filho de ambos, que se chamava Nebeska,
era também um soldado e, na esteia, enverga o trajo nacional núbio; toda a famí­
lia do «núbio Tjenenu» (esteias do Museu de Turim, Supl. 1270), ele e mais qua­
tro irmãos eram soldados de profissão, e todos estão representados na esteia de
Gebelein com o seu trajo nacional.
O grupo étnico de mercenários provenientes da região dos Medjai, junto da
segunda catarata do Nilo, teve uma importância especial na dinastia de Mentuho-
tep e continuou a ser apreciado como tropa de elite durante a 12.® dinastia; poste­
riormente, a denominação de Medjai passou a designar um corpo de polícia espe­
cial, que muitas vezes prestava serviço nos templos,
Nem todos os africanos adquiriam uma posição social alistando-se no exér­
cito: muitos, libertados ou «adoptados», tornavam-se «egípcios» e progrediam
socialmente, como foi o caso do núbio Amenaiu que, tendo sido feito prisioneiro
durante uma campanha de Tutmés III e cedido pelo soberano ao seu barbeiro,
Sabastet (este gaba-se: «venci-o com a força do meu braço enquanto acompa­
nhava o soberano») desposou a sobrinha do barbeiro e viveu feliz e contente: a
acta de alforria (conservada num papiro do Museu do Louvre) foi redigida, no
ano 27 de Tutmés III, «perante os «rapazes do kap», certamente porque os
núbios que pertenciam ao Kap (e que eram, por norma, de uma classe social ele­
vada e instruídos) tinham uma função, digamos assim, «consular» em relação aos
outros núbios menos afortunados.
Esta instituição revela uma ausência fundamental de preconceitos raciais, no
Egipto antigo, e, ao mesmo tempo, a existência de uma política de assimilação cul­
tural dos «vencidos» aos vencedores; já a partir do Médio Império, o «kap» dos
palácios reais acolhia e educava, juntamente com os filhos do faraó e dos nobres,
os filhos dos chefes e dos nobres núbios e, pelo menos a partir do Novo Império,
também asiáticos; os «rapazes do kap», que eram estrangeiros, faziam carreira no
Egipto, no Palácio, na administração e no exército, ou então, já depois de terem
regressado ao seu país, mantinham laços políticos e culturais com a terra do faraó.
O «kap» no interior do Palácio desempenhava funções de «harém masculino»
ou de «clube só para homens», um lugar onde o faraó descansava, bebia e estava
na companhia dos amigos, como sabemos pela carta acima citada de Amenófis II
ao seu vice-rei da Núbia: «Sua Majestade estava em Tebas, no “ kap” do faraó,
e bebia e passava alegremente um dia» {Urk., IV, 1343-44). Um desses «rapazes
do kap» africanos é Heqanefer, príncipe de Miam na época de Tutankhamon, que
é representado no cortejo exótico, que vai homenagear o faraó, pintado no
túmulo tebano do vice-rei de Kush, Hui: Heqanefer enverga um trajo misto, afro-
-egípcio (mas no seu túmulo na Núbia está reproduzido como egípcio). Os jovens
príncipes que o acompanham, e que irão converter-se em «rapazes do kap», estão
já vestidos à egípcia; a princesa africana, vestida de linho branco pregueado, irá
decerto para o harém feminino, enquanto subsistem dúvidas acerca da identidade
da nobre dama negra, vestida num rico estilo egípcio-bárbaro que revela certos
esplendores meroíticos, que, transportada num carro puxado por bois, pode ser
uma esposa do príncipe de Miam ou do de Uauat ou destinar-se igualmente ao
harém do faraó.

199
Havia uma categoria de estrangeiros, sobretudo núbios e kuxitas, que goza­
vam de uma reputação especial no Egipto: os magos. Até a deusa ísis, enquanto
maga, se declara «núbia», e nos textos mágicos existem nomes e fórmulas núbios
— incompreensíveis e portanto muito mais eficazes — que se revestem de um
poder especial.
Em Gebel Silsila, na capela de Horemheb, onde está reproduzido o regresso
de uma expedição vitoriosa à Núbia com um desfile de prisioneiros vêem-se qua­
tro magos núbios executando uma dança mágica gestual acompanhada por um
cântico (em favor, espera-se, do faraó...). Poderosos, os magos núbios eram peri­
gosos, se hostis; e recordamos o que, a este respeito, vimos Amenófis II recomen­
dar ao seu vice-rei da Núbia (p. 194).
Um papiro de conteúdo mágico (Leiden 343-345, r. VI, 8) alude a poderosos
magos palestinianos, «a gente de Altaqana que fala com as serpentes», enquanto
a existência, no Egipto, de um homem de Biblos perito em medicina é provada
pelo papiro médico Ebers, datável da 18.® dinastia: «Outra receita para os olhos
que me comunicou um asiático de Biblos» (papiro Ebers, 63. 8-11); na receita em
questão figura também a mais antiga menção conhecida da palavra «ibnu», «alú-
men», em egípcio, que, atribuída a um «asiático de Biblos», pode ser um indício
de que, quer o termo quer a utilização dessa substância para fins medicinais
seriam estranhos à tradição egípcia e teriam chegado ao Egipto vindos do Pró­
ximo Oriente.
A fama dos magos núbios continua na época greco-romana, no segundo dos
relatos demóticos do ciclo de Setne Khaemuaset, que, como já recordámos, des­
creve a chegada à corte de um mago vindo da Etiópia (Kush) para desafiar os
magos do Egipto a ler o papiro selado, sem o desenrolarem.
Os nômadas beduínos, pastores que vagueiam pelas fronteiras do Delta orien­
tal e em volta da passagem do Wadi Tumilat, eram familiares aos Egípcios e, na
sua maioria, bem recebidos, desde os tempos mais remotos. Na «Profecia de
Neférti», escrita na 12.® dinastia, lê-se o seguinte: «Eles [os asiáticos] pediram
água da forma habitual para dessedentarem os seus rebanhos.»
A partir do Médio Império, os Asiáticos tornam-se cada vez mais numerosos.
Pitorescas caravanas deslocavam-se entre o Próximo Oriente e o Egipto: reprodu­
zida com minúcia surpreendente nas famosas pinturas do túmulo de Khnumho-
tep, em Beni Hassam (c. 1900 a. C.), vê-se a chegada de uma tribo inteira de
beduínos, homens, mulheres, burros carregados com arcos, machados, lanças,
harpas de madeira de um tipo não egípcio, guiados pelo seu chefe, Abishai, desig­
nado com uma certa fanfarronice por «Heqa Khasut», «príncipe dos Países
Estrangeiros».
Entre os carpinteiros estrangeiros devem incluir-se os «Fenekhu», nome que,
desde o Antigo Império, designava sem dúvida os carpinteiros do boscoso
Líbano, embora depois passe a indicar de uma forma menos precisa as várias
regiões costeiras da Ásia; na época ptolomaica, portanto, o termo hieroglífico
«Fenekhu» corresponde ao grego Phonikè.
Os documentos do Médio Império contêm listas de sírios que, a par dos novos
nomes egípcios, conservam os seus nomes de origem, na sua maioria

200
teóforos de divindades como Reshef, Shamash, Anat, Baal e Balaat; assumindo
nomes egípcios, porém, os estrangeiros já então se mimetizavam, tornando difícil
ou impossível distingui-los.
Na 13.® dinastia, a usurpação do trono por parte do sírio Khendjer («Javali»),
um ex-mercenário dos contingentes ao serviço do faraó, deve ter feito aumentar
as presenças estrangeiras no Egipto. Creio que será supérfluo insistir nas conse­
quências da entrada e da fixação no Egipto de gentes da Ásia e das suas divinda­
des, provocadas pelo domínio dos Hicsos no Delta, onde a capital, Avaris, tinha
como divindade oficial Baal, Baal-Sutekh, um deus já «suspeito» na mitologia
«osiríaca» egípcia, que o tinha «limitado» a reinar fora do território do Egipto,
nos países estrangeiros.
Durante o domínio dos Hicsos, as Duas Terras, o Vale e o Delta, estão de
novo divididas, como se tivessem regressado ao caos anterior à história; a fron­
teira oriental deixou passar os invasores asiáticos, que se aliam, por comunhão de
interesses, ao príncipe de Kush. É uma situação anómala, de que Camose, o prín­
cipe de Tebas, toma consciência em termos exactos quando se dirige aos seus con­
selheiros que prefeririam deixar as coisas como estavam: «Gostaria de saber o que
significa este meu poder, se um chefe está em Avaris e outro em Kush, e eu me
sento juntamente com um asiático e um núbio, e cada qual tem o seu pedaço
deste Egipto.» (Tab. Carnavon.)
Segue-se uma «guerra de libertação» cheia de episódios vitoriosos para os
Tebanos, que termina com a expulsão do inimigo, que é perseguido até à Pales­
tina, e com a «reorganização» do Egipto reunificado; a descrição da conquista da
capital dos Hicsos, Avaris, põe em evidência as mulheres, apetitoso despojo para
os vencedores:

«Vi nos terraços as tuas mulheres que, através das ameias, olhavam o porto; não
se mexeram quando me ouviram, mas estenderam o nariz sobre as muralhas, como os
filhotes dos mochos que estão no seu buraco, dizendo: “ Está perdido.” » (Esteia de
Karnak.)

A conquista de Avaris e do seu porto, com os barcos e as riquezas, e a captura


dos seus habitantes são amplamente exaltadas por Camose:

«O teu coração está despedaçado, ó vil Asiático! Bebo o vinho da tua adega,
daquele que os asiáticos que agora são meus prisioneiros pisaram para mim[...].
Meti as tuas mulheres nos barcos, capturei os cavalos. Não deixei uma só tábua
dos 300 barcos de cedro verde, cheios de outro, de lápis-lazuli, de turquesa, de inúme­
ros machados de cobre, e de óleo, incenso, gordura, mel, madeira-;7w/-e», alfarrobeira,
vs\dLáéix?í-sepni, de todas as madeiras preciosas e de todos os bons produtos da Síria.»
(Esteia de Karnak.)

Todavia, nos longos anos em que Tebas e Avaris conviveram sem choques vio­
lentos, os invasores residentes tinham assimilado a cultura egípcia; a carta que o
mensageiro capturado por Camose levava ao príncipe de Kush era «escrita pelo punho
do príncipe de Avaris» e em egípcio (ao contrário, por exemplo, do mensageiro

201
do príncipe de Naharina capturado por Amenófis II e referido na Esteia de Mên-
fis, que levava ao pescoço uma carta de argila, com o texto gravado evidente­
mente em escrita cuneiforme); é bastante curioso constatar que, na sua carta,
Apópis acusava o soberano de Tebas de o ter atacado à traição, sem o avisar, e
de o ter atacado no seu território, sem ter sido atacado: o «bárbaro» acusa o
egípcio de barbárie...
Os séculos posteriores de domínio egípcio na Ásia trouxeram para o Vale do
Nilo, para além de escravos e escravas vendidos por mercadores, inúmeros gru­
pos de prisioneiros de guerra que eram inseridos na sociedade egípcia, e até de
uma forma estável, como colonos; uma inscrição de Ramsés II, em Abu Simbel
(escrita como nota a uma reprodução que mostra o faraó matando líbios) for­
nece informações importantes sobre a prática de transferir, ou deportar, alte­
rando a sua colocação inicial, populações vencidas de uma região do império
para outra:

«O deus perfeito, que mata os Nove Arcos


que esmaga os países do Norte,
que é poderoso nestes países,
que leva o país da Núbia para o país do Norte,
e os Asiáticos para a Núbia.
Colocou os asiáticos Shasu no país do Oeste,
fixou os Líbios nas colinas [da Ásia],
enchendo as fortalezas que construiu
com as gentes capturadas pelo seu poderoso braço.»

O papiro Wilbour (III, 44 e segs.) dá algumas sugestões acerca da localiza­


ção, durante a época dos Ramsés, de colónias semitas no Egipto, na zona de
Oxirrinco; entre as localidades mencionadas para trabalhos de lavra, encon­
tram-se as localidades de Pa-en-Shasu (os shasu lá estabelecidos adoravam uma
«Háthor»), Per-Baalat («O templo da deusa Baalat»), Kharu («Síria»), Na-
-Kham («A sede dos Sírios»); outros topónimos referidos no mesmo documento,
como Pa-en-Medjai e Pa-en-Nehem, apontam também para a existência de insta­
lações de gentes de Medjai e de núbios.
Na época de Shesonq III existia em Afroditópolis uma comunidade de beduí­
nos Shasu, originários da Média Síria, quase de certeza uma das colónias de
militares ou de prisioneiros fundadas na época dos Ramsés; no período bubastita
existia ainda, a norte de Afroditópolis, uma comunidade de mercenários
Sherden.
A introdução no Egipto de prisioneiros capturados na Ásia durante acções de
guerra foi contínua e intensa. Em certos casos, pode ser quantificada graças a
documentos oficiais: Amenófis II trouxe como despojo de guerra de uma única
campanha asiática 838 mulheres, 550 guerreiros marianu com as suas 240 mulhe­
res, 328 filhos de príncipes, 2790 cantadeiras dos príncipes de todos os países
estrangeiros com as suas jóias; o mesmo faraó, na campanha militar do ano 9
do seu reinado (1440 a. C.), capturou um número de pessoas ainda mais elevado:

202
«Príncipes da Síria [Retenu]: 127; irmãos dos príncipes: 179; Apiru: 3600; beduínos
shasu feitos prisioneiros: 15 200; Sírios Kharu: 36 300; gente de Nuhasseb [Alepo] cap­
turada viva: 15 070; as suas famílias: 30 652. Total: 89 600 pessoas.» (Esteia de Mit
Rahina, CGC 6301.)

Embora, se se fizer a soma, este total peque por um excesso de mais de 10 000
prisioneiros, não deixa de ser impressionante e é significativo para documentar a che­
gada ao Egipto de gente de nível social, e também étnico, notavelmente diferenciado.
Impressionante é também o número de mulheres estrangeiras que passaram a
fazer parte da população do Egipto durante o Novo Império, desde as que se des­
tinavam aos haréns do faraó ou de personalidades egípcias, até às tecelãs, às cria­
das domésticas, às cantadeiras e às bailarinas.
As casas de prazer eram reforçadas com atracções exóticas, e aí se tocava tam­
bém música com instrumentos antes ignorados no Egipto. Os bailarinos núbios
eram acompanhados por tambores e tamborins, os líbios, identificáveis pelas três
plumas na cabeça e que conhecemos dos relevos de Deir el Bahari, executavam
danças rituais, semelhantes à moderna «dança dos paulitos», a um ritmo mar­
cado pela batida de dois boomerangs.
Em Luxor, numa cena da festa de Opet, está reproduzido um grupo de canto­
res asiáticos designados por «cantores de Khepeshit»; ainda no meio tebano, nas
cenas de harém esculpidas nos blocos da época amarniana de Karnak, reconhe-
cem-se cantadeiras núbias; cantadeiras sírias (caracterizadas pelas vestes de fran­
jas sobrepostas) podem ver-se em outras cenas de harém, esculpidas nas paredes
do túmulo de Aie e do túmulo de Tutu, em El Amarna.
A influência do Próximo Oriente sobre os costumes e a moda egípcios atinge,
em meados da 18.® dinastia, o próprio faraó, Amenófis III, de quem nos chegou
uma extraordinária estatueta em serpentina (de Tebas, actualmente no Metropoli­
tan Musuem of Art de Nova Iorque) que o mostra envolto numa longa túnica
asiática, com a orla franjada, e as mãos cruzadas à frente, numa atitude que
evoca os tipos da estatuária elamita, ou melhor, babilónica, contemporânea.
Os motivos tecidos na túnica de Tutankhamon revelam também a influência
de temas decorativos do Próximo Oriente; pelo menos a partir da época amar­
niana, a cerveja passa a ser bebida através de um sifão em ângulo recto, como nos
mostra uma esteia (do Museu de Berlim) dedicada por um militar sírio chamado
Terera. O Egipto do Novo Império vai também buscar aos seus vizinhos orientais
novos tipos de armas, formas de vasos, novas tecnologias, como as do fabrico de
recipientes de vidro, e novos sistemas de construção de navios e carruagens.
O interesse pelo estranho/estrangeiro envolve também a botânica e o
ambiente: na 18.® dinastia, surge no Egipto a romãzeira, Hatshepsut manda tra­
zer de Punt arbustos de incenso com as respectivas raízes, nas suas campanhas
militares na Ásia Tutmés III «conquista» também plantas invulgares, que são
observadas e desenhadas (plantas inteiras, folhas, flores e sementes: verdadeiras
páginas dc um herbário, o mais antigo herbário do mundo) que, reproduzidas
numa parede do templo do rei em Karnak, são conhecidas pela designação de
«Jardim Botânico de Tutmés III».

203
Os exemplos da influência da Ásia sobre a literatura egípcia não são muitos,
mas alguns são inegáveis, como as Histórias de Anat e Seth, Astarté e o Mar^ o
episódio (situado porém fora do Egipto, no Vale do Cedro líbio) da rapariga de
Bata cobiçada pelo Mar (na História dos Dois Irmãos), a alusão {in papiro Anas-
tasi I, 23. 7) a uma história que tinha por protagonista Qagerdi, príncipe de Iser,
perseguido por um urso e obrigado a trepar a uma árvore. O interesse pela leitura
de textos literários escritos em cunéiforme é sugerido pela existência de relatos
mitológicos entre as tabuinhas de El Amarna {Adapa e o Vento do Sul, Nergal e
Aresh-kigal) (Amarna, ed. Knudzon 356-58); a troca frequente de correspondên­
cia em escrita cunéiforme, confirmada pelos arquivos amarnianos, entre o Egipto
e o Próximo Oriente, exigia que houvesse na corte escribas e leitores de escrita
cunéiforme, circunstância confirmada, aliás, pela descoberta, em El Amarna, de
um vocabulário de palavras egípcias transcritas foneticamente em cunéiforme.
O exército egípcio do Novo Império compreendia um número sempre cres­
cente de mercenários estrangeiros: basta recordar, quanto à época de Ramsés II,
a lista das tropas de uma expedição à Fenícia (imaginada pelo autor da Carta
Satírica, papiro Anastasi I, para pôr em evidência a incapacidade organizativa do
rival: «As tropas que tens na tua frente são 1900: sherden 520 [líbios], qehaq
1600, [líbios] mashwash 100, núbios 880, total 5000, sem contar com os seus ofi­
ciais.»
Apesar de os Egípcios já conhecerem bem e de uma forma directa os países
do Próximo Oriente, podiam circular notícias alarmistas acerca dos estrangeiros;
na mesma Carta Satírica (papiro Anastasi I, 23, 7-8), os perigos de uma viagem
à Síria são descritos com cores vivas:

«A estrada é estreita e está infestada de [beduínos] shasu que se escondem no


matagal; alguns medem 4 ou 5 côvados de altura [2,5 ou 3 metros!] desde a cabeça até
aos pés; de rostos ferozes, o seu coração não é terno e não dão ouvidos a brincadei­
ras.»

Entre os inimigos que as vitórias da 19.® dinastia tinham trazido para o Egipto
como prisioneiros, incluem-se os habitantes do «país de Kheta», os Hititas, que
os artistas egípcios caracterizam fisicamente atribuindo-lhes rostos imberbes, com
duplo queixo e cabelos compridos e encaracolados. Em meados do século X lli,
as novas condições históricas impuseram aos dois países novas relações, agora
pacíficas, que culminaram no tratado de paz bilateral — e bilingue — entre Ram­
sés II e o rei hitita, cujas longas negociações intensificaram o contacto com o
Egipto por parte de mensageiros e embaixadores, num propósito de «paz e boa
fraternidade», como refere a versão hieroglífica do tratado que conhecemos, pro­
veniente de Tebas; as divindades dos dois países, mil de cada lado, também foram
testemunhas do pacto entre os dois antigos inimigos: pelos Hititas, desde o deus-
-Sol, senhor do céu, até à deusa-Sol da cidade de Arina, e ao deus da tempestade,
para terminar com os Rios da Terra de Khatti; pelo Egipto, desde Ámon, a Rá,
a Seth, aos deuses masculinos e femininos, terminando com os rios e as monta­
nhas da Terra do Egipto.

204
Pi-Ramsés e o Delta oriental encheram-se de gente de Khatty, os Hititas,
quando, em finais do reinado de Ramsés II, Khattusil II decidiu dar a sua filha
por esposa ao faraó; segundo a «Esteia do Matrimónio» (gravada num dos lados
do templo de Abu Simbel), a princesa levava consigo um esplêndido dote («ouro,
prata, bronze, escravos, inúmeras parelhas de cavalos, gado, cabras, milhares de
carneiros, sem fim») e era acompanhada por príncipes hititas; nessa mesma
esteia, a descrição das relações amistosas entre Egípcios e Hititas é um tanto des­
concertante, se se pensar quantas vezes, nos textos egípcios, foi expresso o des­
prezo pelo «vil país de Khatti»; no fundo, o novo afecto e o velho desprezo eram
decerto convencionais:

«Enquanto a filha do grande príncipe de Khatti vinha para o Egipto, a infantaria,


os carros e os notáveis de Sua Majestade escoltavam-na, misturados à infantaria, aos
carros e aos notáveis de Khatti. Comiam e bebiam em conjunto, de um só coração,
como irmãos, sem se molestarem uns aos outros.»

Como acontece em todas as histórias de amor, a princesa hitita, «de rosto


belo como uma deusa», encantou o coração de Ramsés, que escolheu para ela,
esposa real, o nome egípcio de «Maa-neferu-Rá» («Aquela que vê beleza de Rá»)
em substituição do nome hitita.
Se a «exportação» de divindades egípcias se associa à propagação da influên­
cia política egípcia já desde o Antigo Império (Thot e Háthor, no Sinai e em Biblos;
Háthor, em Punt) e vai depois aumentando, não surpreende que o Egipto, por sua
vez, tenha também «importado» e acolhido, como hóspedes integrados, divinda­
des estrangeiras das regiões e dos países limítrofes, em certos casos comprazendo-se
em conservar-lhes o nome, o aspecto, o vestuário e os mitos originários e, em outros
casos, relativos a contactos muito antigos, levando a efeito uma assimilação que
oculta as características originárias (por exemplo, o caso da líbia Neit ou do líbio
Ha; e, a Oriente, o caso do deus Soped, de origem asiática muito remota).
Um deus núbio como Dedun, «que preside ao país dos Núbios», é já mencio­
nado nos Textos das Pirâmides, embora depois fique confinado às regiões a sul
de Assuão, colaborando, diríamos nós, com o poder do faraó, a quem entrega os
exóticos produtos africanos; a máscara de leão e o toucado do pigmeu Bes con­
servam todo o «exotismo» da magia exótica.
Quanto às divindades asiáticas, a sua chegada ao território egípcio é acompa­
nhada, como é natural, pela chegada de gentes asiáticas.
O triunfo das divindades sírio-palestinianas no Egipto, em paralelo com as
outras manifestações de cosmopolitismo, deu-se durante o Novo Império: Reshef
e Baal são divindades guerreiras e os seus monumentos egípcios ostentam orgu­
lhosamente os exóticos trajos nacionais, idênticos aos dos mercenários que ser­
vem o faraó. Horun, identificado com a Grande Esfinge, em Gizé, era adorado
pelo menos a partir da época de Amenófis II; deus amorreu dos pastores, Horun
é invocado com cantilenas mágicas em egípcio e em amorreu transcrito em signos
egípcios no papiro mágico Harris, para que proteja os rebanhos do lobo e dos
outros animais perigosos.

205
Durante o Novo Império, a zona de Mênfis, onde se tinham fixado numerosas
colónias, militares e civis, de sírios e palestinianos, foi um centro de irradiação do
culto da «deusa nua» Qadesh — acolhida no templo de Ptah como sua esposa (os
deuses também aderem à moda e têm mulheres estrangeiras no seu harém!);
Astarte é declarada, desde a época de Amenófis II, que lhe atribuía uma venera­
ção especial como «deusa-cavaleira» e divindade guerreira, «senhora de Perune-
fer»; Perunefer («boa viagem») era um porto fluvial próximo de Mênfis onde
existiam estaleiros navais e arsenais, e que era um centro importante pela concen­
tração de imigrados, comerciantes, artesãos e mercenários asiáticos.
A estátua de Astarté de Nínive, considerada curandeira, foi enviada pelo rei
Tushratta, de Mitanni, para junto de Amenófis III, que estava doente. Anat, por
sua vez, é titular de culto em Pi-Ramsés, e Ramsés II declara-se «amado por Anat».
Vinda do Oriente, chegava também ao Egipto a doença chamada «asiática»
(«A dos Aamu») para cuja cura é proposta uma receita que consiste em pronun­
ciar, sobre algumas substâncias medicamentosas, uma fórmula mágica que
envolve Seth, deus dos países estrangeiros:

«Fórmula para a doença-Asiática: “ Quem é sábio como Rá, quem é sábio como
Rá?” Enegrecer o corpo com carvão para capturar o deus [causa da doença, atraído]
à superfície. [Dizer]: “ Tal como Seth lutou com o mar, Seth lutará contra ti, ó asiática,
para que não entres no corpo de fulano, filho de fulano.” » (Papiro Hearst, 170, 11,
12-15.)

Mas talvez fosse preciso falar a essa «Asiática» apenas no seu idioma estran­
geiro; assim, a fórmula «usada neste caso pelos habitantes do país de Keftin [cre­
tenses]» e que era fornecida ao médico egípcio, era a seguinte: «Saantakapa-
piuaia-aiamaantarakukara». Esta bárbara acumulação de sílabas não pode deixar
de ser eficaz!
Há muito tempo que se sabe que o papel activo exercido pelos estrangeiros,
em especial semitas, na sociedade egípcia, se acentua na época dos Ramsés, época
em que, segundo cálculos feitos, metade, por exemplo, dos «copeiros [udepu] do
rei» conhecidos é de origem estrangeira; a posição de udepu era tudo menos
humilde, e implicava a confiança do soberano na lealdade do seu copeiro (toda­
via, entre os que aderiram à conjura palaciana contra Ramsés III, figuram vários
copeiros de origem estrangeira).
Entre os imigrados, os que pertencem a uma classe social mais elevada são os
«filhos dos príncipes», que — de acordo com uma política consciente, expressa
por Tutmés III num excerto citado a propósito das relações entre o Egipto e o
Próximo Oriente, na 18.® dinastia — eram levados para o Egipto como reféns,
educados no harém ou no «kap» e instruídos à egípcia, de modo a convertê-los,
mal regressassem aos seus países, em súbditos leais e mesmo culturalmente favo­
ráveis aos dominadores. Há ainda a referir a prática dos chamados «matrimónios
diplomáticos», que introduzia no harém faraónico princesas e mulheres de alta
linhagem de todos os reinos do Próximo Oriente; uma moda, a das esposas exóti­
cas, imitada também pelos particulares.

206
A identificação dos estrangeiros nos documentos é facilitada, se eles, ou os
seus parentes, têm um nome não egípcio: Jupa, filho de Urkhia, e Lullu, filho de
Buka, são hurritas; o avô de Paser, vizir de Sethi I, também tem um nome hur-
rita: Papaia; a mãe do vizir Neferronpet chamava-se Qafraiat, um nome semita
que significa provavelmente «aquela que tem os cabelos louros»; a mãe do
copeiro Pentaur chamava-se Aurati e a sua irmã, Lukasha (Esteia Cairo N. Prov.
12/6/24/17); o chefe desenhador Bania, o pintor Qefaa (Túmulo Tebano n.° 140),
o ourives Pa-tjai-Baal, os carpinteiros navais Aarasu e Bania (papiro Pertersburgo
1116 B 16) são semitas. Nomes como Ishtar-ummi («Astarté é minha mãe»: Urk.
IV, 11, n.° 63), Ynusa, Baal-mahar e Uarna não deixam dúvidas acerca da origem
semita de quem os usa; também um nome que seja formado a partir de um topó-
nimo estrangeiro é um indício seguro e útil: Pa-Luka («o Lido») ou Pen-Hazor
(«o de Hazor») ou Pa-assur («o assírio»).
No entanto, desde a época mais remota que o imigrado dá um nome egípcio
aos filhos, encobrindo assim a sua origem: no Novo Império, é típico o caso de
Pa-ameru («o amorreu») e de sua mulher, Karen, que dão aos filhos nomes egíp­
cios: um, Merira, torna-se escudeiro de Tutmés II, o outro chama-se Useretmin.
Na onomástica adoptada pelos estrangeiros durante a 18.® dinastia, nota-se
uma preferência por nomes egípcios formados com o elemento «Heqa» (por
exemplo, Heqa-nefer), enquanto, na época dos Ramsés, se preferia nomes «lealis-
tas» compostos com o nome do faraó: assim, o porteiro Akhber passa a cha­
mar-se Ramsés-nakhte («Ramsés é poderoso»); por sua vez, Ramsés-empra, cha­
mado Reri-Iunn («amado de Heliópolis»), uma personalidade eminente na corte
por ser «primeiro copeiro, flabelífero à direita do rei, primeiro arauto de Sua
Majestade» chamava-se originariamente Ben-Azan de Zeri-Basani, que é uma
localidade a leste do lago Tiberíades.
Um dos fiéis de Akhenáten, que o seguiu para El Amarna, era Tutu, «primeiro
servidor de Akhenáten no templo de Áten», «primeiro servidor de Akhenáten na
barca», «inspector de todas as obras do faraó e inspector de todas as obras públi­
cas», «tesoureiro», «chefe de todo o país»; a partir do seu nome (Tutu = semita
Dudu), alguém sugeriu que ele seria provavelmente o mesmo Dudu conhecido pelas
cartas de Amarna, enviadas por Azim, filho de Abdishirta, rei dos Amorreus, pos­
sibilidade que parece confirmada pelo facto de, numa inscrição do seu túmulo des­
coberto em El Amarna, Tutu se apresentar como um homem que compreende as
palavras dos mensageiros estrangeiros e pode transmiti-las ao Palácio:

«Quanto aos mensageiros de todos os países estrangeiros,


eu transmitia as suas palavras ao Palácio,
porque estava diariamente no Palácio.
Era enviado como delegado do faraó com todas as ordens de Sua Majestade.»

Outro caso muito interessante é o de Sarbaina (ou Sarbakhana), alcunhado de


Abi, uma personagem que associava às funções de profeta de Ámon as de profeta
de divindades semitas, Baal e Astarte, na cidade de Perunefer; tendo vivido pro­
vavelmente em meados da 18.® dinastia, fora sepultado em Sacará.

207
o semita Aper-ia (ou Aper-el), que viveu em finais da 18.® dinastia e cujo
túmulo rupestre foi localizado recentemente em Sacará e investigado por A. Zivie
com resultados brilhantes, chegou mesmo a ocupar o cargo de vizir, o mais alto
cargo administrativo do Estado egípcio, o que nos leva a compará-lo com o José
do Egipto da narrativa bíblica.
Um problema que não pode, por agora, ser solucionado com segurança diz
respeito à época da chegada ao Egipto do povo hebreu e à data do Êxodo; nos
livros sagrados, o Egipto é o cenário onde se movem as personagens mais presti­
giosas, como Abraão, que chegou com Sara ao verde Delta — protótipo da Terra
Prometida —, ou como José, que, no Egipto, foi vendido como escravo pelos
Ismaelitas, comprado por Putifar, oficial do faraó e capitão das guardas,
nomeado mordomo de Putifar e elevado pelo faraó ao cargo de vizir, ou, enfin,
como o egipcizado Moisés.
Segundo a Bíblia {Gênesis, 15, 13), os Hebreus teriam vivido durante mais de
quatro séculos no Egipto, antes de Moisés os guiar para fora do Delta; todavia,
até hoje, nos documentos egípcios, não existem vestígios dos Hebreus como um
povo particular, na medida em que eram certamente um dos muitos grupos de
asiáticos fixados no Egipto, onde viviam trabalhando — e por que não? —
mesmo como fabricantes de tijolos e pedreiros. Embora o étnico «Apiru» (nome
usado por semitas que parecem ter sido uma espécie de mão-de-obra móvel,
sujeita a deslocações constantes, quer na Ásia, quer no Egipto) possa evocar o
de «Hebreu», não há até hoje provas que nos permitam identificar os dois etnó-
nimos.
Segundo a tradição faraônica, a raça líbia constituía, como já foi dito, uma
das quatro populações do mundo; na realidade, até à 19.® dinastia, o interesse, e
os interesses, do Egipto concentram-se sobretudo na Núbia e em Kush e nas
regiões da Ásia, interiores e costeiras; o controlo sobre os seminómadas da Líbia
limitava-se a tentar deter, com acções dissuasoras e com capturas de prisioneiros
e de gado, as suas contínuas e insidiosas incursões no Delta e no Oásis do deserto
ocidental.
Durante a 19.® dinastia, a pressão dos Líbios Tjehenu, a quem se tinham
unido aliados muito mais aguerridos e agressivos, torna-se ameaçadora na fron­
teira com o Delta, e obriga Merneptah a intervir; na «Grande Inscrição de Kar-
nak», os anteriores fenômenos de subtil invasão por parte das populações líbias,
e a nova e perigosa agressividade, estão muito bem descritas e fornecem anota­
ções etnográficas que primam pelo desprezo para com os «Povos do Mar» «que
não têm prepúcio», ou seja, claro está, que não são circuncisados; o chefe dos
invasores é o «chefe vil da Líbia, Merirei, filho de Did», os aliados são «Sherden,
Ghekelesh e Equesh dos países [estrangeiros] do Mar {n p3 yní\ que não têm pre­
púcio, que foram mortos e a quem foram cortadas as mãos por não terem [prepú­
cios]»; também são mencionados os Lukki e os Tursha. Portanto, os Líbios ti­
nham-se aliado a grupos desses «Povos do Mar» que, mais tarde, durante o
reinado de Ramsés III, tentarão, inutilmente, entrar no Delta pela fronteira orien­
tal e pela costa do Mediterrâneo.

208
Merneptah enfurece-se contra os Egípcios que, desde há algum tempo, deixam
de controlar os estrangeiros:

«O Egipto foi entregue à invasão de todos os países,


os Nove Arcos puderam saquear as suas fronteiras.
Os rebeldes podem invadi-lo todos os dias [...]
[de tal forma que os Líbios] entraram por várias vezes
nos campos do Egipto vindos do Grande Rio [o Nilo],
passaram os dias e os meses ocupando [o país],
chegaram às colinas do oásis [...]
vindos do estreito de Farafra:
isto está testemunhado, dizem, desde os tempos dos reis
nos documentos de outros tempos.
Ninguém foi capaz de [os destuir] como vermes,
não houve modo de aniquilar os seus corpos,
porque amam a morte e odeiam a vida,
e o seu coração enfurece-se contra a gente que sabe [?] [...].
Passando o tempo a vaguear pelo país,
combatendo todos os dias para encher as suas barrigas,
vêm ao Egipto em busca de comida para as suas bocas [...].»

Na mesma inscrição, Merneptah gaba-se da vitória sobre o chefe líbio, que


fugiu «deixando atrás de si, com a pressa, as sandálias, o arco e a aljava» e de
cujo acampamento os vencedores trazem para o Egipto todos os seus bens, as
mulheres e os móveis; graças às vitórias do rei, no Delta já não se receiam os
estrangeiros líbios, nem se ouvem já falar línguas estrangeiras:

«Vive-se amenamente e felizmente


caminhando livremente pela estrada
porque já não há medo no coração das gentes;
as fortalezas são entregues a si mesmas, os poços abrem-se [de novo]
[...]
Já não se ergue um grito na noite:
“Alto! Vem lá alguém, vem lá alguém que fala estrangeiro.” »
(Esteia de Israel)

Para os Líbios, até então inimigos fugidios pelo seu próprio carácter nômada,
chegou também o momento de se inserirem efectivamente no esquema universa-
lista de que continua a alimentar-se a ideologia faraônica: Ramsés III pode ga­
bar-se de ter levado os Líbios vencidos para o Egipto onde, submetidos a uma
lavagem cultural ao cérebro, esqueceram, a par da língua natal que foi substituída
pela língua egípcia, qualquer pretensão nacionalista.

«Levados para o Egipto, [os prisoneiros líbios] foram metidos na fortaleza [...].
Ouviram, ao serviço do rei, a língua dos Egípcios; o rei fê-los esquecer a sua própria
fala e subverteu as süas línguas.» (LD III, 218.)

209
o exército de Ramsés III que subjugou os Líbios era constituído por soldados
egípcios e por grupos de mercenários shardana, por filisteus (os Filisteus/Palesti-
nianos também fazem parte do conjunto dos «Povos do Mar»), sírios shasu e
núbios.
Os Sherden tinham entrado no Egipto como mercenários já a partir da época
de Amenófis III; o seu carácter de mercenários é confirmado pelo facto de, nas
guerras contra os Hititas, os Sherden figurarem entre os inimigos dos Egípcios, e
serem aliados dos Líbios na época de Merneptah, tal como os Filisteus (Pereset)
oriundos de Creta.
Após a 21.® dinastia, sucedem-se no trono de Hórus dinastias de origem
estrangeira, primeiro líbias, depois de Kush, a dinastia etíope de Napata; fenô­
meno «escandaloso», mas superado de facto pela aculturação egípcia desses
«estrangeiros».
O fundador da 21.® dinastia, Sheshonq I, descende de uma famíla de velhos
colonos militares de Heracleópolis, de «chefes dos Ma» (abreviatura de Mesh-
wesh, os mesmos Meshwesh a soldo do faraó, mas também aliados dos inimigos
do Egipto derrotados pelos Ramsés) fixados em Bubasto e cujo fundador era um
líbio que tinha o nome bárbaro de Bui-nana.
Pode parecer um exemplo da ironia da história que seja precisamente durante
os reinados dos estrangeiros, que usam os nomes bárbaros de Sheshonq e Osor-
kon, que o Egipto reencontrou (a par de um certo equilíbrio interno e de uma
recuperação econômica testemunhada também pela notável actividade de cons­
trução) um renovado prestígio internacional, com várias alianças na Ásia e acções
destinadas a deter a agressividade da Assíria.
O receio de perigos vindos de «diferentes» hostis não se extinguiu: é nesta
época que começam a surgir «amuletos oraculares», que têm por missão proteger,
em toda a parte, «da magia dos Sírios [Kharu], da magia dos Etíopes, da magia
dos Núbios, da magia dos Asiáticos Shasu, da magia dos Líbios Puti, da magia
das gentes do Egipto».
Neste contexto, o étnico kharu pode designar os Palestinianos sedentários ou
já a costa fenícia, o étnico shasu, os Semitas nômadas a leste do Delta e na Trans-
jordânia, isto é, populações como Árabes, Kenitas, Medianitas, Edomitas, Ama-
lecitas ou talvez já Judá-Israel.
O fundador da 24.® dinastia, Tefnakhte de Saís, também pertencia a uma
poderosa família de «Chefes dos Meshwesh», e proclamara-se, por volta do ano
730 a. C., «Grande Chefe dos Líbios e Grande Príncipe do Oeste», antes de se
proclamar rei para se opor às pretensões do rei de Napata, o kuxita Piankhi (ou
Peje, segundo a proposta recente de alterar a grafia tradicional do nome). Neste
momento da história egípcia, é um negro quem se faz reconhecer como soberano
de Kush e do Egipto, após uma marcha vitoriosa e triunfal ao longo de todo o
Vale do Nilo, e quem celebra em Mênfis o jubileu dos faraós.
É impressionante que a conquista do Egipto por parte do soberano de Kush
— o país longínquo onde os triunfos faraônicos tinham levado, muitos séculos
antes, a sua civilização — seja apresentada oficialmente por Piankhi (Grande
Esteia de Gebel Barkal), que retoma conscientemente o modelo glorioso dos

210
grandes faraós do Novo Império, como um cruzada conduzida contra os Egípcios
revoltados contra o decreto do deus Ámon, o deus de Tebas e, ao mesmo tempo,
de Napata, que concedeu ao rei de Kush o poder soberano sobre todos os países:

«Ámon de Napata permitiu-me deter a soberania sobre todas as regiões,


de modo que aquele a quem eu diga: “ És rei”, [sê-lo-á],
mas aquele a quem eu diga: «Não és rei”, [não o será].
Ámon de Tebas permitiu-me deter a soberania sobre o Egipto,
de modo que aquele a quem eu diga: “ És coroado”, o será,
mas aquele a quem eu diga: “ Não és coroado”, não o será;
a cidade de todo aquele em quem recair a minha atenção [benévola]
não será destruída, pelo menos pela minha mão.
São os deuses que criam um rei
— embora os homens também possam criar um rei;
a mim, criou-me [rei] Ámon.»
(Esteia 26 de Gebel Barkal)

No Egipto do século vii, a defesa contra a invasão estrangeira das fronteiras


orientais cabe aos africanos de Kush: Shabataka envia um exército para ajudar
Ezequias de Judá (fraca ajuda, porém, que na Bíblia é comparada à «cana par­
tida que fere a mão que nela se apoia»); Taharqa combate valorosamente antes de
recuar perante o ataque de Assurbanípal, que chega a Tebas com um exército for­
mado por fenícios, sírios, cipriotas e também egípcios do Delta. De facto, os prín­
cipes egípcios do Norte estão prontos a colaborar com o inimigo assírio, para se
oporem à intolerável soberania de Napata.
Não se possuem documentos directos, monumentais, do domínio assírio na
província do Egipto; conhece-se, porém, a práxis usada pelos Assírios para a
administrarem, práxis que evoca a que foi usada pelo Egipto do Império com os
súbditos núbios e com os asiáticos que eram levados como reféns e educados à
egípcia; inspirando-se no mesmo critério, os Assírios levavam para Nínive os
jovens príncipes das cidades egípcias tributárias e vassalas, davam-lhes uma edu­
cação assíria, impunham-lhes novos nomes assírios; foi assim que o príncipe de
Saís, filho de Necao e futuro fundador da 26.® dinastia, Psamético, passou a usar
o nome assírio de Nabushizibanni; não é por acaso que foi Psamético I — a
quem o facto de ter feito parte do sistema assírio tinha proporcionado contactos
úteis com os senhores dos outros Estados vassalos da Assíria — que, aproveitan­
do-se do enfraquecimento de Napata e do interesse da Assíria por outros locais,
recuperou a independência e a liberdade do Egipto, garantindo a necessária supre­
macia militar com o recrutamento de mercenários jónios e cários na Anatólia.
Os contactos entre o mundo grego e o Egipto antes do helenismo tinham sido
precedidos, como todos sabemos, pelas relações do Egipto com a civilização
minóica, antes, e micénica, depois; desde a 18.® dinastia que os antigos habitantes
de Creta figuram nas reproduções tumulares como importadores de materiais, ou
seja, segundo a convenção iconográfica faraônica, como portadores de tributos;
os pintores egípcios, com o seu habitual talento e o seu grande cuidado etno­
gráfico, caracterizaram-nos pela fisionomia, pelo toucado, pelos trajos, pelo

211
calçado, pelos próprios objectos que transportam. Neste domínio, os estudos d
Jean Vercoutter, aparecidos há vários anos, continuam a ser fundamentais; sabe
-se que os textos egípcios designam os Micénicos pelo nome de Keftiu (os Kafto
da Bíblia); os Keftiu (pertencentes ao mundo egeu e também aos países da cost
síria) eram alguns dos que, no Novo Império, frequentavam o Egipto como mer
cadores e importadores de «tributos» diversos.
As costas e os portos egípcios não eram desconhecidos dos Gregos d
Homero: recorde-se a narração, na Odisséia, das tentativas de desembarque d
Ulisses, um pirata idêntico aos «Povos do Mar», mas do século vill. Na linear B
surge com frequência o nome geográfico Aigyptiu, onde se pode reconhece
Àigyptos, o nome grego do Egipto; remonta ao século vii a fundação de Naucra
tis, o principal centro mediterrânico de ligação dos tráficos do comércio grego, j
nessa época muito intenso e organizado.
Os mercenários jónios e cários (os «homens de bronze» do citadíssimo excert
de Heródoto, 2, 152-153) tinham sido aliciados por Psamético com salários sedu
tores e com promessas de terras {stratòpedá) onde poderiam fixar-se. Para
mundo grego, o Egipto saíta era o país onde um mercenário podia enriquecer: em
Priene, descobriu-se recentemente uma estátua egípcia com um texto grego, ded
cada por um soldado jónio da época de Psamético I, e que é um document
extraordinário do precoce bilinguismo cultural greco-egípcio e dos contactos entr
o Egipto e o meio helénico da Ásia Menor, tão cheios de consequências para
Grécia arcaica. O Egipto da 26.^ dinastia conservava ainda um prestígio cultura
que tornava a sua visita obrigatória para intelectuais e filósofos gregos.
A composição etnicamente variegada do exército de Psamético I é testemu
nhada pelos famosos grafitos de Abu Simbel, traçados em grego, em cário e em
fenício: jónios e cários continuaram a residir em Mênfis mesmo no sécul
seguinte, de tal forma que Alexandre Magno foi encontrar na região os seus des
cendentes, os «Helenomenfitas» e os «Cariomenfitas».
A conquista de Cambises, em 525 a. C., transforma o Vale do Nilo num
satrapia do império aqueménida; mais ainda do que nos tempos gloriosos em qu
o império era «egípcio», o Egipto dos séculos vi e v — aquele por onde Heró
tf
doto viajava — era pluriétnico e plurilingue: desde o sátrapa, persa e, por norma
príncipe membro da família do Grande Rei, que residia em Mênfis com a su
corte e os administradores dos bens da satrapia e do tesouro do rei, até à mult
dão de escribas, juizes, chefes das províncias ifratarak), às guarnições de solda
é dos, aos muitos mercenários, exportadores, traficantes, sobretudo fenícios.
- A língua oficial das províncias do império aqueménida (e, portanto, também d
^ Egipto) é o aramaico, chamado, em egípcio, «escrita (as)síria»); por ordem d
ü Dario, o corpus das leis egípcias «anteriores ao ano 44 de Amásis» foi traduzid
do demótico para o aramaico (papiro Bibliothèque Nationale de Paris, n.° 215 r.)
' As zonas das guarnições de fronteira, desde Migdol a Marea e a Elefantina
O no Sul, albergavam gentes de várias nacionalidades, de vários cultos e religiões
e os templos e capelas para as divindades estrangeiras surgiam um pouco po
todo o Egipto; no período da dominação aqueménida existiam, em Assuão, cape
las para o culto de Nabo, de Melkat Sciamin, de Banit, ao passo que, já ante

212
da conquista de Cambises (talvez desde o tempo do édito de Ciro que estipulava
o regresso à Babilónia dos exilados de Israel, ou mesmo desde a época de Psamé­
tico II) colonos militares judeus tinham construído, na ilha de Elefantina, um
templo para Javé.
Nos decénios da reconquistada independência da Pérsia, o Egipto tornou-se
aliado e ponto de referência de todos os inimigos do Grande Rei; até à conquista
do país por parte de Alexandre Magno, o Vale do Nilo conheceu e acolheu toda
a espécie de aliados e exilados.
«Para os Egípcios, a época líbia, a conquista etíope, mas sobretudo as violen­
tas invasões, assíria e depois persa, seguidas pela passagem para o império de
Alexandre Magno, e depois pelo domínio dos Ptolomeus e dos Romanos, assu­
mem, enquanto atentados contra o «Trono de Hórus», o carácter mitológico de
um «Regresso de Seth», que, tendo sido expulso do Egipto e relegado para o país
dos Asiáticos, «regressa aos seus desvios e à rapina», sob a forma do conquista­
dor assírio, de Cambises, de Xerxes; o exorcismo ritual, a destruição mágica pelo
fogo da figurinha-substituto de Seth, o deus da desordem, é o último recurso do
Egipto derrotado:
«Para trás, ó rebelde vil,
cujo avanço Rá travou [...]
Não voltarás a aproximar-te do Egipto.
Morrerás errando pelos países estrangeiros,
não penetrarás mais nas Margens de Hórus,
no reino que lhe fora concedido!»
(«Ritual contra Seth-Apópis», U rk ., Vi, 17, 22 e segs.).

Rituais idênticos, destinados a proteger o Egipto dos invasores estrangeiros, e


que recordam as fórmulas dos textos de esconjuro de dois milénios antes, lêem-se
em Edfu, no «Livro para paralisar a humanidade [hostil]».
«Todos os príncipes de todos os países asiáticos,
todos os seus maiores, todos os seus notáveis,
todos os seus soldados, todos os seus magos,
e todas as magas que existem entre eles [...],
que se diz que vão aliar-se
aos rebeldes contra o faraó.» (Edfu, V, 132, 5-6.)

Em Dendera esconjuram-se os invasores estrangeiros e, ao mesmo tempo, os


magos e os réprobos, que poderiam profanar a cripta:
«Local cujo segredo está oculto
para o caso de os Asiáticos entrarem na fortaleza.
Os fenícios [Fenekhu] não se aproximarão,
os gregos [Haunebu] não entrarão,
os que vivem na areia não circularão por aqui,
um mago não desempenhará aqui a sua função,
as suas portas não se abrirão para um réprobo.»
(Dendera, Segunda cripta.)

213
Mas já é tarde para que as portas do Egipto se possam fechar.
Aos «vencedores» egípcios desta época resta o imaginário do orgulho nacio­
nal: dizer que Cambises é filho do último faraó dinasticamente legítimo, Aprie,
e que Alexandre é o «filho de Ámon», mas também o filho de Olímpia e de Nec-
tanebo II, o faraó mago que fugiu para a Núbia (oh, a magia núbia!) perseguido
pelo persa Artaxerxes.

214
CAPITULO IX

O M ORTO

p o r S erg io D o n a d o n i
Para quem analisa o material acumulado nos museus que albergam os seus
monumentos, a civilização egípcia tem muitas vezes — embora injustamente —
assumido uma conotação fúnebre. É o resultado do modo como se fizeram as esca­
vações, num país que esconde da arqueologia as suas cidades antigas, perpetuan-
do-as ao longo dos séculos como lugares habitados ou ocultando-as sob o anual
depósito de lodo deixado, durante milênios, pelas cheias do Nilo. A esses tão
pouco acessíveis testemunhos de vida opõem-se as condições especiais dos cemité­
rios, situados no deserto, fora das zonas inundadas, sob um clima que permite a
sobrevivência dos materiais que, em quase todos os outros locais, teriam sido des­
truídos. E isso convida a favorecer essa perspectiva de descoberta de objectos que,
durante demasiado tempo, constituiu o objectivo último da arqueologia militante.
Esses testemunhos monumentais tornam-se ainda mais explícitos e significati­
vos (e por isso são realçados pela pesquisa) pelo entusiasmo que os antigos Egíp­
cios maifestam em relação à escrita, enchendo papéis e paredes com textos reli­
giosos relativos aos mortos, o que permitiu conhecer, de uma forma articulada e
directa, as concepções míticas, os rituais, as interpretações autênticas, conheci­
mento que não possuímos em relação ao resto do mundo antigo.
Uma sociedade que foi fundamentalmente mundana, racionalmente pragmática,
satisfeita com a sua alegre vitalidade surge-nos assim subvertida pelos acasos da
documentação: e toda a obra que tenta descrevê-la não pode subtrair-se à obrigação
de dedicar uma parte considerável do discurso a esse aspecto das suas manifestações.
Também não podemos subtrair-nos a essa imposição, mas desta vez não nos
caberá tratar da antropologia religiosa, que nos descreve os elementos que consti­
tuem a personalidade egípcia, e a forma como eles sobrevivem ou não, nem fala­
remos das várias — opostas e confluentes — concepções escatológicas, nem ten­
taremos interpretar o sentido último das grandes antologias de textos funerários
que nos oferecem, escaladas no tempo, colectâneas de fórmulas, ou dos «Guias
do Além», que representam momentos particulares da especulação sacerdotal.
O que nos interessará será o modo como o indivíduo continua a agarrar-se à
estrutura da sociedade dos vivos e aí provoca factos e situações, mesmo quando já
não faz parte activa dessa sociedade. Esse «morto que agarra o vivo» não pode ser
descurado, não é um desaparecido (mesmo se desapareceu na dor e na saudade da
memória), é alguém que continua a agir através de uma vontade e de uma actividade
que desempenhou enquanto vivo, mas na medida em que tinha consciência de ser um
«futuro defunto» (e, em alguns casos, como veremos, mesmo já como defunto).

217
Por isso, o domínio da pesquisa é bastante restrito em relação ao tradi­
cional; todavia, a sua ausência teria reduzido bastante o quadro que temos vindo
a traçar das personagens egípcias e do seu papel numa sociedade bem definida.
A consciência de um passado concretamente representado por aqueles que
nele viveram cria uma solidariedade entre os que existem e os que existiram; e, à
medida que essa solidariedade se vai alargando e espraiando no tempo, mais
nítido é o sentimento da dívida que o presente tem em relação ao passado — isto
é, o sentimento de que a tradição é um ponto de apoio válido e vital para a activi-
dade humana.
Uma civilização tão obstinadamente atenta aos precedentes de todas as suas
manifestações como é a civilização egípcia está particularmente apta a apreciar a
continuidade do tempo e também a representação — mesmo se apenas como
memória — daquilo que pode parecer terminado.
Por conseguinte, a fronteira entre o Aquém e o Além, tão dramaticamente sentida
nas civilizações antigas, pode tornar-se mais instável do que em outras sociedades.
Bastará recordar, como exemplo, dois casos típicos, que poderiam multiplicar-se
ad libitum. Sinuhe, o protagonista da mais famosa obra literária egípcia, narra a
longa história da sua vida e as aventuras que a preencheram. Trata-se de uma história
narrada na primeira pessoa, mas — explicitamente — depois da sua morte, já que
conclui com esta frase: «Gozei dos favores do soberano até ao dia da chegada.»
Do mesmo modo, a introdução à acta do processo pelo assassínio de Ram-
sés III refere a nomeação do tribunal encarregado de julgar o caso — e quem o
nomeia é o próprio rei morto, agora num outro mundo, já não acessível aos con­
jurados, mas ainda capaz de agir na sociedade de que foi afastado.
Tal atitude representa uma faixa específica da rica fantasia egípcia, que não se
cansou de imaginar um Além bem definido, nem sempre tranquilizante, mas suscep­
tível de ser reconhecido nas suas características, descrito nos seus traços, e de que
podem fornecer guias, completados pelos formulários que permitem responder aos
seres humanos que lá se encontram, ou falar com eles. É um mundo que, potencial­
mente, inclui a morte entre os outros acontecimentos da natureza e que nessa inclu­
são encontra o modo de alimentar uma visão optimista de perpétuos regressos e
rejuvenescimentos, como acontece com o ciclo diurno, o ciclo solar, o ciclo das
vegetações, o ciclo da Lua, o ciclo das cheias do Nilo. Os mais antigos textos funerá­
rios que possuímos, os que estavam esculpidos no interior das pirâmides reais da 6.“
dinastia (c. 2200 a. C.), referem-se muitas vezes a esses fenómenos recorrentes,
fazendo sentir não só o seu valor de modelo, por assim dizer simpático, mas tam­
bém a sua mais profunda valência dialéctica: «Aquilo que te dizem: “ Vai”, para que
regresses! Dorme, para que despertes! Morre, para que vivas!» {Pyr., 1975.)
Morrer é um momento da existência: quando se quer falar de um tem.po ante­
rior à história (mas, nesse tempo, diz-se que nasceu o soberano para quem é reci­
tada a fórmula), descreve-se esse tempo como uma época em que «ainda não nas­
cera o céu, ainda não nascera a terra, ainda não nascera a morte» (Pyr., 1466 b/d).
«Ser» quer dizer «morrer» e é, por isso, o pressuposto do «morrer para viver»
da fórmula acima citada.
Este — chamemos-lhe assim — optimismo cósmico não exclui, naturalmente,
um sentido de morte totalmente diferente. Foi significativamente notado que nos

218
Textos das Pirâmides os verbos que exprimem a morte são utilizados apenas para
serem negados. E é também de notar que a sobrevivência após a morte pode com­
portar uma inversão total da situação anterior. Uma fórmula mágica recorda que
o mel «é doce para os vivos e amargo para os mortos», e é nesta perspectiva que
devem ser interpretadas as antigas e sempre repetidas fórmulas para impedir que
o morto caminhe de cabeça para baixo, beba a sua urina e se alimente com os
seus excrementos. Estas situações invertidas são também elas fruto de uma dialéc­
tica estritamente consequencial, mas bastante menos reconfortante do que aquela
para quem o renascer é consequência da morte.
Recordemos mais simplesmente alguns textos que vão desde finais do 3.° milé­
nio a. C. até à idade cristã, e que relatam a experiência imediata da recusa do
conforto mitológico.
Há aquele que se intitula Canto do Harpista, gravado (como refere um papiro
que o reproduz) na parede do túmulo de um príncipe tebano, Antef, que viveu
por volta de 2100 a. C.:

«Gastam-se as gerações e passam [...]. O que são as suas cidades? Os muros caí­
ram, as suas cidades parecem nunca ter existido. Não há quem venha do Além e des­
creva o seu mundo, e descreva as coisas e acalme o nosso coração para que alcancemos
o lugar para onde eles foram [...]. Chegará o dia do grito [= o lamento fúnebre] —
mas o do coração cansado [ = o defunto] não ouve o grito deles: os seus lamentos não
salvam ninguém do túmulo.»

No outro extremo da tradição egípcia, já na época grega, situa-se o texto que


talvez mais tragicamente exprime o horror ao Além e que resume as experiências
literárias que, a partir do Harpista, focaram este tema vital:

«O Ocidente é o país do torpor, uma perpétua escuridão é a morada d’“Aqueles


que lá estão.” Dormir é a sua ocupação: não acordam para ver os seus irmãos, não
olham para os seus pais nem para as suas mães; os seus corações esquecem as suas
mulheres e os seus filhos.
A água da vida, onde está o alimento de toda a vida, é sede para mim. Só chega
àquele que está na terra. Eu sinto sede mesmo se a água está próxima [...]. A Morte,
“ Vem!” é o seu nome e chama todos a si. E eles vêm depressa até ela, embora o seu
coração trema de terror. Ninguém a vê entre os Deuses e entre os homens. Os grandes
estão na sua mão como os pequenos [...]. Ela rouba o filho à sua mãe com mais
agrado do que o velho que vive perto dela [...].
Vós que vindes a este cemitério! Oferecei-me incenso sobre a chama e água em
todas as festas do céu.»

O fim — inesperado — com o pedido dessas oferendas rituais cuja inutilidade


se acabou de referir, é talvez o último toque de amargura. Todavia, no equilibrado
mundo egípcio, mesmo esta consciência dolorosa da aniquilação sabe gerar uma
resposta: na morte está também o remédio para quem foi vencido pela vida. No
mesmo âmbito cultural, embora não na mesma época, do Canto do Harpista,
duas personagens que perderam a fé na sociedade humana exprimem o seu desejo
de aniquilação e de fuga. Um espectador de um mundo tão pervertido acaba por
dizer à sua alma, com a qual teve uma longa conversa acerca da oportunidade de
aceitar uma sociedade depravada:

219
«Está a morte diante de mim, hoje
como o perfume da mirra
como estar sentado sob a vela num dia de vento
Está a morte diante de mim, hoje
como o perfume do lódão
como estar sentado na margem da embriaguez
[...]
Está a morte diante de mim, hoje,
como quando um homem deseja ver a sua casa
Depois de ter passado muitos anos na prisão.»

E é assim que um miserável que não consegue fazer valer o seu evidente
direito perante os juizes mundanos, se prepara para o suicídio e diz: «Um sedento
que se aproxima dos poços; a boca de uma criança que se abre para o leite: esta
é a morte que se deseja ver.»
Todavia, a par deste polêmico desejo de morte, que é próprio de épocas agita­
das e que equivale a uma denúncia política e social, existem palavras não mitoló­
gicas de serena contemplação do destino último. Um túmulo tebano da 18.®
dinastia contém o texto mais significativo neste sentido, e que se opõe explicita­
mente ao Canto do Harpista (que, na sua origem, também era — recorde-se —
um texto gravado na parede de um túmulo):

«Ouvi as canções que estão nos túmulos de outros tempos e o que elas dizem, exal­
tando a existência na terra e depreciando o país dos mortos. Mas porquê proceder
assim em relação ao país da eternidade, justo, correcto, e isento de terrores? Lá, a luta
é uma abominação e não há quem se arme contra o seu companheiro. Todos os nossos
familiares repousam, desde a época da Primeira Vez [a criação], nessa terra que não
tem inimigos. Todos os que nascerem, lá viverão. Nem um ficará no Egipto, não há um
que não vá para lá. A duração do que se fez na terra é como um sonho; mas diz-se
“ Benvindo em saúde e integridade!” àquele que chega ao Ocidente.»

Uma bivalência constante une ao pessimismo do instinto um desejo de sereni­


dade e de confiança. A Morte comporta-se como «um caçador no deserto» {Pyr.
851 b), apanha com o seu laço os vivos, como se fossem caça (Ankhnesneferibre,
2, 132), mas, ao mesmo tempo, transforma o homem num «espírito luminoso»,
transfere-o para o mundo encantado dos vários Elíseos egípcios.
Portanto, para os Egípcios, a sobrevivência tem um fundo ao mesmo tempo
mitológico e humano. Um facto sentimentalmente elementar traduz-se numa série
de experiências culturais: especulativas, éticas, literárias. É esta a premissa neces­
sária para enquadrar as várias funções sociais que, a diferentes níveis e com dife­
rentes significados, tem, no mundo egípcio, a figura e a personalidade do
defunto. Desaparecido da cena terrestre, não mais «sobre os dois pés», como se
diz, continua, porém, directa ou indirectamente, activo no mundo dos homens.
Há, no entanto, uma distinção preliminar que convém fazer desde já e que se
refere ao que se passa com o soberano defunto e ao que se passa com os seus

220
súbditos. As inúmeras implicações da morte de um rei reflectem a sua natureza
e a sua situação única, assumem uma função ao mesmo tempo paradigmática e
inimitável, e disso se fala noutro capítulo desta obra.
A manifestação mais evidente deste estado de coisas é a própria natureza do
sepulcro que, para o rei, é sempre diferente do dos seus súbditos mas que, sem­
pre que muda, deixa o modelo à disposição destes. Assim, quando as pirâmides
reais são substituídas pelos túmulos cavados na rocha, as necrópoles enchem-se
de pirâmides, tipo de monumento até então excluído aos particulares, e outras
observações semelhantes poderiam fazer-se relativamente à decoração e aos
textos.
Os túmulos, nas suas diferentes formas, eonstituem, porém, o testemunho e a
fonte de pesquisa mais explícita de que dispomos para a época mais remota.
E veremos que é também no túmulo que se baseia a capacidade de os mortos
influírem no destino dos vivos. Há os muito pobres, que desaparecem no nada da
morte, lançados ao rio como os animais mortos. Há os pobres, que são «atirados
para o deserto» depois de terem sido «arrancados às suas casas», como refere um
texto. Todavia, neste caso, os túmulos, embora pobres, podem testemunhar, atra­
vés das oferendas que neles são depositadas, não só os laços que os unem aos
vivos, mas também a capacidade de continuarem a servir-se dos bens que são
úteis para os vivos.
Não são, evidentemente, estes os casos que nos ajudam na nossa pesquisa,
que se baseia nos túmulos de pessoas mais importantes na hierarquia do Egipto
antigo. Já as mais antigas «Instruções» que nos foram transmitidas pela literatura
egípcia, e que são atribuídas a príncipes e vizires da época das pirâmides, dizem
que se deve «fundar uma casa» e preparar um túmulo. Se o Canto do Harpista
se refere explicitamente a estes textos para denunciar a sua inanidade, isso deve-se
à dramática incerteza da época feudal que se seguiu à das pirâmides. Todavia,
mal a sociedade egípcia se fixou de novo no seu leito ordenado, tal como se refu­
tou (e vimo-lo, citando um texto bem explícito) o pessimismo do Harpista tam­
bém se retomou o tema da urgência em preparar o futuro sepulcro de cada um.
Assim fala Any, um sábio da época imperial, com uma visão ao mesmo tempo
serena e melancólica bastante mais complexa do que a dos seus confiantes prede­
cessores antigos, e que sabe também carregar-se da amargura dos textos contra os
quais toma posição:

«Torna perfeito o teu lugar no vale [a necrópole tebana], o túmulo que ocultará o
teu cadáver. Coloca-o em primeiro lugar entre os actos que contam para ti [...]. Não
há dano que recaia sobre quem faz isso. E ele é feliz. Prepara-te. Quando o teu “ Men­
sageiro” te vier buscar, encontrar-te-á pronto para ires para o lugar da paz. E tu dirás:
“Aqui vai alguém que se preparou antes de tu chegares.’b

Mas, ainda na época grega, um texto moralista demótico aconselha as pessoas


a não abandonar a sua terra — na época do cosmopolitismo helénico! — para
não correrem o risco de perder o sepulcro que poderiam ter na pátria: «Quem
morre longe do seu país é sepultado [só] por misericórdia.» (Papiro Insinger.)

221
o túmulo é a casa onde o morto reside, e a sua estrututa é, em muitos casos,
a de uma casa; há uma parte destinada à vida social do titular, aquela onde se
reúnem os seus herdeiros, onde se lhe faz as oferendas cerimoniais apropriadas,
onde a decoração desempenha várias funções através do máximo de ostentação
possível. Trata-se da zona que, na casa oriental, é o diwân, a que se contrapõe o
harím, ou seja, neste caso, a parte secreta do túmulo, onde repousa o corpo,
rodeado por tudo aquilo de que necessita para a sua misteriosa sobrevivência.
À medida que o tempo foi passando e os costumes se foram alterando, este
esquema foi apresentando variantes, que vão desde uma imitação perfeita da casa
(incluindo um toiletté), na época antiga, até uma transferência do significado do
harím para o campo mitológico, como demonstram as reproduções que, a partir
de determinada altura, começam a surgir e que aludem ao Além, concretamente
identificado com a cela funerária.
A primeira coisa que emerge desta identificação do túmulo com a casa é a
confirmação de que o túmulo só tem sentido se nele existe um inquilino: mais do
que anular-se com o seu desaparecimento do mundo, a personalidade específica
ganha vigor com essa passagem para uma eternidade potencial, no cuidado con­
creto com o corpo, cuidado que depressa vai levar à prática da mumificação, e,
ainda mais significativamente, na identificação e definição de uma memória atra­
vés da palavra e através da imagem. A maior parte da escultura egípcia está con­
dicionada pelo desejo de fornecer um ponto de apoio físico a uma «alma» (cha­
memos-lhe assim), identificável na singularidade do seu nome. A estátua não é
um monumento, uma recordação comemorativa: é uma forma específica da pes­
soa, tem uma vitalidade própria que lhe é reconhecida pelo rito que sobre ela se
opera para «lhe abrir a boca» (como se faz com um corpo depois da mumifica­
ção). É um facto que deve sublinhar-se para se compreender com que raízes se ali­
menta a experiência figurativa egípcia, que sentido tinham a sua vocação tipifica-
dora e a sua vocação realista.
Do mesmo modo, o nome e os títulos do defunto são a evocação de um indi­
víduo específico. Uma evocação que na tradição se vai enriquecendo com porme­
nores narrativos, pormenores que, por um lado, insistem em aspectos generica­
mente (e tradicionalmente) louváveis, e, por outro lado, põem em evidência casos
singulares e tipificadores de uma vida, ou mesmo — em certos casos extremos
e ilustres — toda a sucessão de uma actividade vital desde o seu início até ao
seu termo.
O estreito paralelismo que pode existir entre as manifestações figurativas e as
manifestações verbais da personalidade revela a sua valência comum última, à
margem dos valores artísticos a que dão lugar: a capacidade de vida de quem já
está para lá da barreira do Além está na concretização de uma memória, uma vez
que já não existe o imprevisto da acção — mas uma memória que faz tudo para
ser autônoma, e que assim se constitui em personalidade não dependente do sen­
timento e da memória dos que sobrevivem.
A «glória» existe no Egiplo; pode dizer-se; «Eu escutei as palavras de Imho-
tep e de Hardjedef, que se dizem em provérbios e que nunca desaparecerão.» Há
quem, no fim de uma profecia literária, conclua: «Um erudito [no futuro]

222
far-me-á libações, quando vir que aquilo que eu disse se concretizou.» (Neférti.)
Mas não é através dessa glória que passa a sobrevivência dos sepulcros: é uma
sobrevivência, por assim dizer, pessoal e não devida a outras. A estátua existe, as
biografias, breves ou vastas, começam por um «eu», e não são exaltações mas
autobiografias. Uma pedra tumular ou uma estátua como as que adornam os
sepulcros das nossas igrejas e que reproduzem um piedoso sono eterno não
seriam concebíveis na perspectiva egípcia. De olhos abertos, a estátua habita a
sua casa e aguarda os seus hóspedes, e os textos nas paredes repetem aquilo que
o dono da casa quer dizer-lhes.
Talvez seja demasiado simplista afirmar que tenha sido esta a origem de certas
experiências figurativas e literárias bem definidas (embora qualquer obra de arte
seja, em certo sentido, uma obra de ocasião, como foi dito por alguém que sabia
destas coisas) e portanto não é o que nos interessa. Basta-nos ter identificado a
existência precisa daquele que foi arrancado ao mundo da experiência diária.
Essa «existência» incide pesadamente sobre o mundano, converte-se num dos
seus elementos. Economicamente, em primeiro lugar: o vivo, enquanto futuro
morto, destina uma parte das suas disponibilidades para satisfazer as suas futuras
necessidades perpétuas, representadas pelas oferendas de vários tipos que, em
inúmeras ocasiões, deverão afluir ao seu túmulo. Antes disso, há que prover à
construção do sepulcro: um trabalho complexo, que implica a actividade de
pedreiros, canteiros, arquitectos, decoradores, escribas. Em muitos casos, as ins­
crições autobiográficas realçam que todos esses artesãos foram devidamente
pagos, que nenhum foi obrigado a trabalhar contra sua vontade; noutros, recor­
da-se que partes do sepulcro (sobretudo as que eram feitas de materiais preciosos,
como o granito de Assuão ou o calcário branco e compacto de Tura) foram dadas
pelo soberano em paga de serviços notáveis, ou que houve operários do palácio
que participaram na construção. A oferta real ao túmulo depressa é consagrada
numa fórmula que acabará por se generalizar — mas tudo isso significa a possi­
bilidade de se subtrair uma parte dos bens ao consumo mundano para ser utili­
zada tendo em vista um prestígio pessoal: uma prática que pesa bastante sobre a
vida econômica do Egipto antigo.
Comecemos pelas operações destinadas a conservar a realidade pessoal de
qualquer indivíduo morto, a mumificação. É uma prática que exige, ao mesmo
tempo, capacidades técnicas, conhecimentos ou experiência de anatomia e de quí­
mica, funções rituais. Não nos interessam aqui os pormenores do processo; o que
importa é assinalar que isso é considerado essencial (como é óbvio, precisamente
porque é o processo mais elementar para se conservar a personalidade autônoma
e concreta do defunto), mas tem um preço. Já o mais antigo descritor do pro­
cesso, Heródoto, quando refere os vários processos de mumificação, sublinha
essencialmente os seus diferentes preços.
Não temos informações que nos permitam quantificar o preço da operação e
do serviço cultuai que lhe está associado: todavia, quanto à época ptolomaica, o
acaso quis que alguns arquivos tebanos fornecessem alguns esclarecimentos
acerca do funcionamento dos negócios de autênticos agentes funerários que
repartem entre si os vários domínios de competência, que litigam perante os

223
tribunais pela interpretação das cláusulas do seu contrato, que denunciam roubos
ou transferências de múmias e que, num caso, se dirigem à polícia por causa de
um furto de que foram vítimas e a que atribuem o valor de 10 talentos: uma soma
que foi calculada suficiente para que cinco pessoas pudessem viver durante um
ano. Nesta época, pode falar-se de uma verdadeira indústria de múmias, mas é
provável que algo de semelhante tenha também acontecido nas épocas mais
antigas.
As informações que possuímos acerca dos preços do sarcófago são muito
mais abundantes e específicas: essa riquíssima mina de dados quotidianos que
são os papéis da aldeia dos operários da necrópole tebana em Deir el-Medina, na
época dos Ramsés, descreve-nos não só vários tipos de sarcófago e respectivos
preços, mas também os de outros instrumentos funerários ligados à sepultura. É
óbvio que os preços podem variar de acordo com o tipo de objecto produzido,
mas podemos identificar certos preços standard. Um sarcófago normal de
madeira tem um preço que se situa entre os 20 e os 30 deben (1 deben = 91 gra­
mas de cobre, segunto estas contas) para a caixa, e entre os 8 e os 12 deben para
a decoração (mas há modelos que atingem montantes bastante mais elevados, que
podem atingir os 200 deben). Outros sarcófagos de tipo diferente (como os antro-
póides ou inteiros) têm preços ligeiramente diferentes; no entanto, é apenas a
título de indicação genérica que aqui se dão estas informações, limitadas no
tempo e no espaço, e que não podem de modo algum aplicar-se a todos os perío­
dos da história egípcia.
Esta actividade, destinada a garantir as bases da sobrevivência do indivíduo
através da mumificação e da sua deposição num sarcófago, é apenas a fase preli­
minar. A presença da múmia como pessoa que habita no túmulo comporta outa
forma de consumo de bens: os que constituem os adornos funerários.
Na época mais antiga, trata-se essencialmente — mas não exclusivamente —
de bens de consumo destinados ao cuidado do corpo: vasos contendo diversos
produtos, unguentos, enfeites para o toucado, etc. — e, naturalmente, o enxoval
pessoal, que em certos casos podia chegar a preciosas e esplêndidas jóias, como
nos enxovais das princesas da 12.^ dinastia, em Dhashur e em Illahun, de que
derivam talvez as mais belas peças de ourivesaria egípcias.
Todavia, a vitalidade do defunto vai tendo necessidade de tudo o que a evolu­
ção do nível de vida no Vale do Nilo introduz nas exigências diárias das pessoas,
e assim os enxovais vão ampliando o leque da sua variedade, até incluírem prati­
camente tudo o que se pode encontrar numa casa terrena. Para se ver o que com­
pete a um casal de defuntos de uma classe não decerto baixa mas também não
muito alta como pode ser a de um arquitecto real, pode fornecer-se o inventário
do que foi encontrado num túmulo felizmente intacto e perfeitamente conservado
(e não disperso após a sua descoberta, como aconteceu com outros): o do arqui­
tecto Kha e de sua mulher, Merit, que viveram em plena 18.® dinastia, em Tebas.
O túmulo, que é um dos tesouros do Museu Egípcio de Turim, era, na realidade,
um entre muitos. Eis o inventário. Os sarcófagos dos esposos (três — uns dentro
dos outros —, para o marido, e dois para a mulher, envoltos exteriormente em len­
çóis de linho de 15 metros de comprimento e 2 metros de altura), uma estatueta

224
de madeira de Kha, uma miniatura do Livro dos Mortos e duas estatuetas de
encarregados dos serviços do Além {ushabti) são os inevitáveis elementos fúne­
bres. Todavia, tudo o resto está ligado à vida de todos os dias. Um cofre contém
o enxoval pessoal do marido: uma bolsa de pele com cinco navalhas de barba em
bronze, uma pinça, uma aguçadeira, um pente de alabastro com pomada, duas
agulhas de bronze, um pente de madeira, vários tubos de antimónio, um cantil
com a respectiva corda para pendurar, um funil de terracota pintado, um copo de
esmalte azul-celeste, um vaso cilíndrico de prata, um copo de prata, um coador
de prata e um de cobre, duas tabuinhas de escriba com os respectivos pincéis,
quatro pilões para moer as cores, uma tábua para escrever de madeira estucada,
um côvado desdobrável, um estojo de balança, uma broca, um machado de
madeira, um escalpelo de bronze, três pares de sandálias de couro. Além disto, há
ainda a incluir uma esteira de viagem, vários bastões de passeio, um cofre com
objectos de toilette e outro com a roupa pessoal. Esta consta de uns cinquenta
pares de cuecas, vinte e seis tangas, dezassete túnicas de Verão e uma pesada
túnica de Inverno, a que se juntam ainda quatro peças de pano.
O enxoval pessoal da mulher é constituído por uma peruca entrançada, com
o armário onde era guardada, e agulhas de bronze, alfinetes de osso para o
cabelo, um pente de madeira, um penteador franjado, vasos de alabastro com
perfume, vasos de prata e de vidro, etc.
Todavia, para lá destes bens pessoais, há toda uma série de móveis, de utensí­
lios domésticos: uma cadeira de espaldar (sobre a qual estava a estatueta de Kha),
uma dezena de bancos de vários tipos, duas mesinhas de madeira, quatro de
caule de papiro e de cana, duas camas com os respectivos encostos de cabeça,
treze cofres (cinco dos quais são imitações de modelos embutidos); e lençóis, toa­
lhas, tapetes; um gomil de bronze com a respectiva bacia, vasos e outros objectos
de bronze. E há também os víveres: pães, vinho, óleo, leite, farinha, aves assadas
e salgadas, e também carne salgada e peixe seco. E toda a espécie de legumes cor­
tados, e cebolas, alhos, cominhos, zimbro, para dar sabor e aroma, e fruta: uvas,
tâmaras, figos, nozes de palmeira dum.
E, por fim, as ofertas dos amigos: um tabuleiro de xadrez, bastões preciosos
e, como ofertas reais, uma sítula de prata e um côvado de ouro.
Este amontoado de produtos de todo o gênero é o que vemos reproduzido
nas cenas de funerais que adornam alguns túmulos tebanos. No momento em
que o sarcófago é levado para o seu lugar definitivo, seguido pelas pessoas da
família e pelas carpideiras, há um desfile de personagens que transportam
objectos diversos, móveis, caixas, ornamentos: é uma parada de ostentação que
não tem outro valor senão prestar um serviço, que se pensa ser útil, ao morto.
Ao mesmo tempo que se lhe fornece tudo o que possa de qualquer forma ser-
-Ihe útil — num clamoroso acto de fé nas suas capacidades de fruir do mundo
—, convida-se a ter em conta a pessoa para quem essa quantidade de bens é
subtraída ao uso imediato, e a considerar que toda essa ostentação é uma forma
de a exaltar (e individualizar).
É evidente que as despesas com a conservação do corpo e com a confecção do
enxoval se baseiam na mesma posição sentimental e intelectual — mas também é

225
evidente que o morto provoca assim dois factos econômicos profundamente dife­
rentes: no primeiro caso, trata-se de uma compensação por um serviço (por assim
dizer), no segundo, trata-se de uma subtracção pura e simples de bens, uma des­
truição de riqueza.
Contudo, não é só por estas vias que o morto continua a agir — precisamente
por estar morto — na sociedade econômica humana. Entre as ofertas mais anti­
gas e de certo modo mais explicitamente significativas existem (como dissemos)
as de comida: ofertas que provam que o morto pertence também ao nosso
mundo. A par das que eram depositadas no armazém subterrâneo do sepulcro,
há outras ofertas análogas que têm de ser periodicamente fornecidas para as com­
pletar, e os textos formulares mais antigos que possuímos, os Textos das Pirâmi­
des (e provavelmente um dos seus núcleos particularmente antigo), referem-nos as
palavras que acompanham esse acto que se vai transformando em rito, e que o
filho diz ao pai enquanto lhe oferece o pão e a cerveja.
Um túmulo de uma dama da 2.^ dinastia conservou para o arqueólogo uma
refeição inteira, servida em pratos rústicos de terracota e de que se pode fornecer
a ementa, que compreende pão de espelta, sopa de cevada, peixe, um pombo,
uma codorniz, dois rins, entrecosto e perna de boi, figos no forno, bagas, doces
de mel, um produto lácteo, vinho. E, quanto aos séculos seguintes, haveria múlti­
plos exemplos a referir; segundo o costume tipicamente egípcio, a realidade des­
sas ofertas é acompanhada por uma lista dos elementos fornecidos, com a indica­
ção das respectivas quantidades, que é colocada junto da cena do banquete
reproduzida nas paredes do túmulo e cuja formulação típica fala de 1000 pães,
1000 jarros de cerveja, 1000 bois, 1000 gansos, etc.
A estas referências que nos são fornecidas pela magia da palavra, juntam-se
as referências que nos são fornecidas pela magia da forma (se quisermos expri-
mir-nos de uma forma tão simplista): as paredes do túmulo cobrem-se de repro­
duções da oferta de víveres feita por personagens simbólicas, e, progressivamente,
com a descrição figurativa dos processos através dos quais cada oferta atinge a
sua plenitude (ou seja, desde a sementeira do cereal até à cozedura do pão ou à
confecção da cerveja).
Também neste caso a necessidade de manter em vida a personalidade indivi­
dual do titular do túmulo é «ocasião» para uma experiência artística fundamen­
tal: a da reprodução de todo um processo, ou seja, da organicidade de uma narra­
ção através das figuras, que é uma das grandes conquistas da arte egípcia desde
os seus inícios.
Mas para lá deste aspecto, que oscila entre o simbólico, o evocativo e mesmo
o mágico, a oferta tem uma realidade própria; e as exigências desse sustento efec-
tivo satisfazem-se destinando-lhe um pedaço de terreno, cujo rendimento servirá
para pagar um serviço de oferta futuro. Esse serviço é confiado a uma pessoa que
poderemos designar por «sacerdote funerário» (um «servo do gênio», como se
diz em egípcio) que é responsável por ele e que pode ou não ser o «filho dilecto»
do defunto; espera-se que ele cumpra essas funções de uma forma bastante
precisa durante toda a sua vida, e, para que esse serviço não cesse com a sua
morte, tem a obrigação de transmitir a um dos seus filhos o terreno que lhe foi

226
concedido como paga (contra o costume que determina que a herança seja repar­
tida por todos os descendentes), e assim, de pai para filho, aquilo a que podere­
mos chamar uma fundação funerária continuará a existir, condicionada ao ser­
viço do túmulo.
As fundações mais antigas parece terem sido doadas pelo rei a personagens da
corte, que usufruem assim, por favor real, não só de elementos estruturais do
túmulo, mas também de meios para sustentar as futuras exigências de culto e de
oferta.
Não é pois por acaso que as fundações mais antigas usam nomes compostos
com o nome do rei; mas, com o passar do tempo — e também com uma maior
possibilidade de dispor de um patrimônio imobiliário por parte de particulares —
as fundações vão perdendo o seu carácter régio.
Um bom exemplo das condições a que um sacerdote funerário tem de obede­
cer para poder usufruir dos bens que lhe foram confiados é-nos fornecido pela
inscrição de uma personagem cujo nome se perdeu, que assim recordou, nas
paredes do seu túmulo, os pactos firmados entre o titular e o seu sacerdote,
durante a 4.® dinastia:

«Não permito que nenhum sacerdote funerário seja alguma vez autorizado a ven­
der a qualquer pessoa o campo, as pessoas e tudo o que eu fiz por ele, em função da
oferta funerária aqui [no túmulol feita, ou a legá-la em testamento a qualquer pessoa,
excepto se os der ao seu único filho.» (U r k ., I, 12.)

Este texto não é único e — como foi destacado por um jurista — é juridica­
mente importante porque nos revela que um particular pode fazer com que a sua
vontade produza efeitos jurídicos válidos no momento em que já tiver deixado de
existir. Para além disso, veja-se também o mecanismo pelo qual essas obrigações
se concretizam: as ofertas que são levadas ao túmulo não são consumidas pelo
morto a não ser de um modo misterioso e que não reduz a sua quntidade. Por
isso, podem ser «transferidas» para outro túmulo e, sucessivamente, para mais do
que um defunto, acabando por se manter à disposição do sacerdote. Por outro
lado, nada impede que a mesma pessoa esteja ao serviço de vários túmulos —
e, sobretudo, que esteja ao serviço de um túmulo real, onde as prebendas são
mais ricas.
Referentes a um grupo de sacerdotes funerários de um templo real, possuímos
inúmeros extractos administrativos e contabilísticos, da época menfita e conserva­
dos em papiros, que nos revelam uma empresa bastante complexa. Quanto às fun­
dações privadas — que são as que mais nos interessam, porque os reis nem sem­
pre constituem a regra — podemos analisar uma série de contratos que o
governador de uma província do Médio Egipto, Asyüt, firmou com o sacerdote
funerário, a quem compete controlar, por sua vez, o cumprimentos dos contratos
para os fornecimentos do túmulo por parte dos sacerdotes do templo da cidade:

«O príncipe, nomarca, chefe dos profetas, Hapy-djefa, diz ao sacerdote funerário:


“ Todas estas coisas que estipulei com estes sacerdotes estão sob o teu controlo. De
facto, é o sacerdote funerário de uma pessoa quem mantém as suas ofertas. Por isso

227
te mostrei estas coisas que dei aos sacerdotes em troca daquilo que eles me deram. Está
atento para que não seja retirado nada. Oxalá possas fazer com que o teu filho e teu
herdeiro ouça, que herdará a função de meu sacerdote funerário, ouça todas as pala­
vras relativas aos bens que eu lhes dei. Eu dei-te campos, gente, gado, jardins, como
os dos funcionários de Asyüt para que tu possas celebrar o rito por mim com coração
alegre. Tu controlas as minhas coisas que eu coloquei sob a tua autoridade. Tem-las na
tua frente por escrito. Essas coisas serão para o teu único filho dilecto, que exercerá
para mim as funções de sacerdote funerário à cabeça dos teus outros filhos, como usu­
fruto que não pode ser diminuído e que ele não poderá repartir pelos seus filhos,
segundo esta palavra que eu dei perante ti. [...].” Contrato que o nomarca, chefe dos
profetas, chamado Hapydjefa, fez com o Conselho do templo. Dar-se-lhe-á pão e cer­
veja no dia 19 do l.° mês de a k h e t, no dia da festa w ag.
Nota do que eles devem dar:

Lista nominativa Cerveja (jarros) Fogaças Pães brancos


Chefe dos profetas 4 400 10
Sacerdote arauto 2 200 5
Preboste aos mistérios 2 200 5
Sacerdote da tanga 2 200 5
Chefe do armazém 2 200 5
Superior à hipóstila 2 200 5
Chefe do Palácio do K a 2 200 5
Escriba do templo 2 200 5
Escriba da tábua das ofertas 2 200 5
Ritualista 2 200 5

Assim ele lhes dará por isto: 22 dias templares dos bens da casa de seu pai e não
da casa do nomarca. Quatro dias ao chefe dos profetas, dois dias a cada um deles.
Ele disse-lhes: “ Quanto a um dia templar, é 1/360 por ano. Dividi portanto todas
as coisas que entrarem neste templo como pão, cerveja, carne da ração diária — o
que correponde a 1/360 do pão, da cerveja, de todas as coisas que entram neste tem­
plo — por cada um desses dias templares que eu vos dei.
Estes são bens da casa de meu pai, não são bens da casa do nomarca, porque eu
sou filho de um sacerdote w ab como cada um de vós.
Passarão estes dias a todo o conselho do templo que houver (então), dado que
serão eles que me proverão do pão e da cerveja que eles me dão.” E eles ficaram
satisfeitos.»

É uma contabilidade complexa, com responsabilidades variáveis, que se dirige


a categorias e níveis diversos de destinatários e contratantes.
O que se nota, quando se examina esta documentação, é que o culto funerário
acaba por determinar uma série de usufrutos que se transformam inevitavelmente
em posse — e que, com o decorrer dos séculos, se convertem em propriedade:
modifica-se assim a estrutura da sociedade egípcia, geram-se novas situações jurí­
dicas, e em muitos casos políticas, nos casos em que o pessoal das fundações

228
é subtraído ao sistema dos impostos e das liturgias — e por isso atinge uma auto­
nomia em relação ao Estado. Eis o que pode concluir-se a partir de um exemplo,
o decreto de Pepi II a propósito de uma fundação, em Dahshur, para um rei seu
antecessor remoto (e é importante que seja remoto para se avaliar o efeito prolon­
gado destas medidas):

«O pessoal da fundação de Sneferu não deverá em nenhum caso ser desviado do


seu emprego normal: é proibido destiná-lo às liturgias ou às construções régias [...].
Além disso, isento a dita fundação dos impostos que recaem sobre os canais, as bacias
e os fossos, animais de criação e de reprodução e árvores, bem como da liturgia que
comporta o alojamento dos mensageiros reais de passagem no local.»

Este esboroamento do poder régio através de fundações auto-administradas,


através da constituição de usufrutos ligados a pessoas e a templos, que compro­
metem aquilo que fora uma estrutura centralizada, foi um elemento determinante
para o fim da monarquia menfita. Há outros factos que devem também ter-se em
conta, se não se quiser ter uma visão demasiado simplista do processo histórico,
mas esta incidência dos costumes funerários sobre a vida económica é mais um
sinal do peso que a personalidade do morto, a sua obstinada vitalidade para lá do
tempo prescrito pela natureza, uma vitalidade que lhe foi dada pela civilização
em que está inserido, têm na sociedade egípcia.
Um mecanismo tão cheio de consequências foi modificado no Egipto do
império, quando a função de «sacerdote funerário» foi substituída pela de liba-
dores rituais. Todavia, os mortos continuam a intervir na distribuição das rique­
zas, embora passivamente e numa economia — por assim dizer — submersa, que,
de certa forma, restabelece os equilíbrios violentamente destruídos pela economia
de ostentação e de prestígio. No preciso momento em que são depositados nos
túmulos, os bens tão clamorosamente subtraídos à circulação tendem a voltar a
circular, a ter uma validade menos simbólica. Isso significa, por outras palavras,
que, pelo próprio facto de haver riquezas funerárias, há ladrões de túmulos.
A violação dos túmulos é uma prática regular no Egipto antigo, desde os pri­
meiros tempos. Verifica-se arqueologicamente e conhece-se pelos documentos que
denunciam essas violações e apropriações. Entre estas, as mais ilustres e docu­
mentadas são as violações de túmulos em finais da época imperial. Trata-se de
violações de tal gravidade e frequência que acabaram por provocar a transferên­
cia de um grande número de corpos de soberanos dos sepulcros de que eram titu­
lares para um esconderijo comum, tão bem escolhido e tão seguro que só em
finais do século passado foi encontrado (e também por ladrões!), mas também
despojado dos objectos funerários que tinham tornado tão aleatório o repouso
desses corpos nos seus túmulos oficiais. E não é, afinal, por acaso que os corpos
de tantas personagens que conhecemos da história (um acaso quase único, esta
possibilidade de contemplar as feições — embora mumificadas — de soberanos
quase lendários) permaneceram escondidos até a pesquisa arqueológica — e, por
consequência, o mercado — ter dado também valor a esses objectos que, até
então, não o tinham tido.

229
Desse saque de túmulos reais chegaram-nos as actas que relatam os interroga­
tórios dos ladrões, com as suas confissões (por vezes, extorquidas e decerto nem
sempre verídicas). O conhecimento dos tesouros do túmulo de Tutankhamon dá
um corpo concreto às descrições dos ladrões:

«Abrimos os seus cofres e os sarcófagos onde eles estavam, e encontrámos a nobre


múmia do rei, com duas espadas, e havia uma grande quantidade de amuletos e de
jóias de ouro ao seu pescoço e a sua cabeça estava coberta de ouro. A nobre múmia
deste rei estava toda coberta de ouro e o seu sarcófago era de prata embutida e de ouro
por dentro e por fora, ornado de todas as pedras preciosas.
Tirámos o ouro que tinham colocado sobre a nobre múmia deste deus [rei], os seus
amuletos e as jóias que estavam ao seu pescoço e o sarcófago onde ele repousava.
Encontrámos também a rainha, e também tirámos tudo o que encontrámos sobre
ela, e ateámos fogo ao seu sarcófago.
Trouxemos os objectos funerários que tínhamos encontrado, como objectos de
ouro, prata e bronze, e repartimo-los. O ouro que encontrámos sobre esses dois deuses
e sobre a sua nobre múmia, como amuletos, jóias e sarcófago, devidimo-lo em oito
partes.»

É óbvio que penetrar em túmulos deste género devia comportar tais riscos e
dificuldades que não se pode deixar de pensar em complexas e certamente altas
conivências, repartidas por grupos tão amplos de pessoas que, em certas épocas,
se pode suspeitar que toda a população vivia dessas acções. Um papiro compi­
lado no ano 17 de Ramsés IX contém sete colunas de uma lista de ladrões de
metal dos túmulos reais: nessa lista figuram escribas, mercadores, barqueiros,
guardas do templo, escravos de altas personalidades, mas todos devido a roubos
de pequenas quantidades de bronze: as quantidades maiores e de metais bem
mais preciosos acabaram decerto noutras mãos que não nas da ralé que caiu na
rede. Essa dolorosa perda da integridade do túmulo, bem como a possibilidade de
ele ser contaminado por comportamentos indecorosos e por clamores, é um medo
constante que se exprime numa série de fórmulas esculpidas nos túmulos mais
antigos. O morto promete êxito e ajuda àqueles que, ao passarem pelo seu
túmulo, recitarem as fórmulas da oferta. No entanto, destas frases pode passar-se
para ameaças precisas contra quem, pelo contrário, provoque a cólera do morto:
a esses «torcerei o pescoço como a um ganso», diz-se; ou, mais ameaçadora­
mente, «que o crocodilo venha ao seu encontro na água, a serpente na terra!
Quem fizer qualquer coisa contra este [sepulcro], não serei eu que farei qualquer
coisa contra ele, será Deus quem o julgará» {Urk., 1, 23), ou, noutro local, «o
Deus Grande julgá-lo-á» {Urk., 1, 73). Na origem, esse Deus Grande é o rei,
enquanto senhor e organizador da necrópole, mas, pouco a pouco, vai-se tor­
nando uma divindade cósmica capaz de vingar as injustiças, de cuidar dos direi­
tos daqueles que a ele recorrem.
O tribunal a que o morto alude não é, provavelmente, deste mundo, mas espe­
ram-se dele que produza efeitos, pelo menos no comportamento de quem possa
temê-lo no seu derradeiro momento.

230
No novo Império, tal como desaparece o mecanismo social do sacerdócio
funerário, também os apelos aos sobreviventes assumem outro tom, e, ao apelar
ao visitante para recitar a fórmula da oferta, tem-se mais em conta o sentimento
do que o direito:

«É só uma leitura, não há despesa, não há censura que provenha disso. Não há a
luta com outros, não há uma opressão do mísero no seu derradeiro momento. São
palavras amenas, que satisfazem, e que o coração não se cansa de escutar. É apenas
um sopro da boca [...]. Será bom para vós, se as disserdes.»

Nota-se claramente um modo bastante diferente de associar as exigências dos


defuntos à sociedade dos vivos. Se quisermos aperceber-nos um pouco mais deste
aspecto, temos de retroceder e de ter em conta outras série de considerações.
De um modo mais subtil do que através desses pesados estímulos económicos,
os mortos podem influir sobre a sociedade figurando como modelos — ou pelo
menos como ponto de chegada para concepções que dão de novo forma aos seus
ideais.
A época das pirâmides soubera dar à realeza uma conotação especial mesmo
nos seus destinos ultraterrenos. A humanidade comum está destinada à terra, o
rei ao céu: «Os homens escondem-se, os Deuses voam» {Pyr. 159 c). E, quando
morre, o rei converte-se no típico deus morto, Osíris, e como ele participa numa
ressurreição. Este luminoso destino é garantido por ritos e rituais reservados ao
rei, ao passo que a divina sobrevivência do soberano se torna quase uma garantia
comum para toda a sua corte, que dispõe os seus túmulos (de aspecto e estrutura
diferentes do dele) em volta do lugar onde a natureza divina do rei se torna eterna
— a pirâmide — permitindo-lhe assim continuar a cuidar do bem-estar daqueles
que tinham constituído a sua sociedade, e que têm o direito de continuar junto dele.
O fim deste mundo foi descrito mais de uma vez pelos Egípcios, que apontam
como típico sinal desse momento o abandono e a ruína dos túmulos, o facto de
os textos que garantiam a transformação do rei em Osíris se tornarem acessíveis
a todos. Um mundo onde a autoridade central se atenuou e deixou em liberdade
energias que dantes eram canalizadas para a estrutura unitária do Estado, mistu­
rou antigas hierarquias e prometeu que cada indivíduo teria possibilidade de atin­
gir posições antes inesperadas numa sociedade serenamente estratificada. Coloca-se
o problema da igualdade, de uma justiça válida por si, e não só como adesão a
uma vontade, embora toto caelo superior, como tinha sido a vontade régia.
Esta potencial aniquilação da estratificação social é simultaneamente uma
valorização explícita da autonomia do indivíduo e manifesta-se — tipicamente —
no facto de, com a difusão dos rituais e das concepções escatológicas reais, todos
poderem esperar «transformar-se em Osíris» depois de mortos: a partir desse
momento, o nome do deus cabe a todos os defuntos que indistintamente com ele
se identificam.
A utopia de uma igualdade coloca toda a gente no mesmo nível superior, numa
perspectiva ultraterrena, mas também age neste mundo, num vaivém de impulsos.
Com efeito, a «transformação em Osíris» significa participar da natureza real —

231
mas, por isso mesmo, significa igualmente não só que os indivíduos devem sub-
meter-se aos ritos adequados, mas também que devem submeter-se, no Além, ao
exame da legitimidade do seu acesso ao nível divino, que aos reis fora exigido.
E isso significará a obrigação de aderir a um modelo de vida que se caracteriza
pela «justiça».
Como o morto-homem, por tortuosas e longas vias, influiu na estrutura e na
economia do mundo, também o morto-deus introduziu no ideal quotidiano ele
mentos desagregadores da visão estatal mais arcaica, através de uma definição do
que, em si, o «bem» é, num mundo humano onde (como revela a lista oficial das
culpas que se imagina que o defunto deva especificamente negar perante o tribu­
nal do Além) o interesse pelo próximo é o que dá a medida do que é lícito.
Se estas características, que definimos até agora, se referem ao defunto na sua
história de membro de uma sociedade em geral, há que ter em conta outra série
de aspectos da sua essência, que o ligam a pessoas terrenas menos individualiza­
das e menos específicas.
Há ocasiões precisas para isso, que são as festas dos mortos, quando as famí
lias se reúnem nos túmulos, se fazem ofertas e todos participam num banquete
que pode ser animado com danças, músicas, cantigas, em comunhão com aquele
que, embora já não exista, continua a garantir a estrutura da sua família.
Nas inscrições, os mortos pedem aos vivos que cuidem deles numa série de
ocasiões: as listas não são iguais no tempo e no espaço, mas todas parecem pedir
uma recordação e uma oferta em todas as festividades importantes (e também nas
menos importantes porque são constantes: no início do ano, no início do mês, da
quinzena, da década, etc.). Não é de admitir que essa convivência constante
durante as festas se tenha verificado, mas há certas ocasiões, como a «Festa do
Vale», em Tebas, desde o Novo Império até à época tardia, que parece terem cum­
prido deveras essa função de ligação entre os dois mundos em que a humanidade
egípcia se divide.
Na época tardia, e em especial no Egipto ptolomaico, existiam sociedades de
culto que reúnem grupos de pessoas com actividades afins. Essas confrarias exi­
gem a observância de várias normas de vida e dão uma importância particular às
disposições dos regulamentos — que chegaram até aos nossos dias — referentes
aos deveres para com os membros da confraria que venham a morrer. Há obriga­
ções de tipo prático e outras que se destinam a ajudar, material e psicologica­
mente, a família do defunto:

«Choraremos e acompanharemos à necrópole o membro da nossa confraria que


morrer do decurso do ano. Cada membro dará 5 d e b e n para a sua sepultura, e serão
entregues 10 rações funerárias aos seus sobreviventes. Levaremos connosco o filho do
morto ou o seu pai, irmão, sogro ou sogra para bebermos juntos, para que o seu cora­
ção possa de novo sossegar.»

A morte é uma solicitação a uma solidariedade piedosa.


O modo mais explícito de manifestar a viva personalidade do defunto, a sua
capacidade de intervenção, talvez resida na prática, tipicamente egípcia, das rela­
ções epistolares que os vivos podem manter com os seus mortos.

232
o grupo mais numeroso desses documentos remonta aos tempos mais antigos,
anteriores ao império. Algumas dessas cartas são escritas em materiais de escrita
normais — o papiro, a tela — mas muitas vezes o texto é escrito num vaso de ter­
racota, e sobre ele deveria ser colocada a oferta, de que o espírito do morto se apro­
ximaria para se alimentar. Nessa ocasião, poderia ler os pedidos que lhe eram feitos.
A leitura de cartas verdadeiramente particulares é sempre um exercício difícil,
e muito mais o é quanto mais afastadas estão de nós, no tempo e no espaço. Por
isso, mesmo as «Cartas aos Mortos» que aludem, numa linguagem familiar, a
factos ocorridos enquanto eles ainda estavam vivos são muitas vezes pouco com­
preensíveis nos seus pormenores. Todavia, compreende-se sempre que aquele, ou
mais frequentemente, aquela que se dedica a esses extremos pedidos de escuta tem
a narrar casos para os quais necessita de uma ajuda sobrenatural, de carácter dra­
maticamente urgente, e sob o peso de uma dolorosoa impotência para se fazer
valer com os meios e na realidade da vida diária.
Se o morto, com as suas inscrições, tenta manter relações de certo modo jurí­
dicas com o vivo, augurando-lhe tudo o que há de bom, ou ameaçando-o com
um julgamente em que ele será o acusador, por outro lado, o vivo pede ao morto
que continue a intervir para resolver aquilo que, na vida da família, não está de
acordo com o que se presume ter sido o seu desejo e que é também o desejo de
quem lhe escreve.
Embora a reconstituição dos pormenores não seja fácil nem unívoca, uma
carta como a que se segue narra, porém, uma história de interesses que também
significam prestígio social:

«Uma irmã que fala a seu irmão, um filho que fala a seu pai. A tua condição é a
de alguém que vive um milhão de vezes. Que Ha, senhora do Ocidente [o país dos
mortos] e Anúbis, senhor da sepultura, façam como tu desejas. É para te recordar que
o enviado de Behesti chegou junto do leito onde eu estava sentada à tua cabeceira, e
que eu mandei chamar ly, o filho de Irti, para o recomendar ao enviado de Behesti,
e tu disseste: “ Protege-o!” com medo de ly o ancião [...]. Mas agora, Uabuet e Isesis
vieram devastar a tua casa. Pegaram em tudo o que lá havia para enriquecer Isesis por­
que queriam empobrecer o teu filho, para enriquecer Isesis [...]. Ficará frio o teu cora­
ção, sabendo isto? Preferia que levasses contigo quem está na tua presença a ver teu
filho submetido ao filho de Isesis. Desperta teu pai, ly, contra Behesti, ergue-te e corre
contra ele. Tu conheces quem veio procurar-te aqui, em busca de uma sentença em
relação a Behesti [...].»

Já conhecemos este fermentar de ódios, esta intervenção das alturas para esta­
belecer direitos e privilégios, pela correspondência entre o sacerdote funerário
Heqanakhte e a sua família, durante o Médio Império: uma correspondência tão
viva, recorde-se, que pôde ser aproveitada num famoso romance de Agatha Chris-
tie. Aqui o ambiente é o mesmo, mas agora a autoridade já só pode exercer-se
através desse sinistro despertar dos mortos da família, a quem se pede que pro­
nunciem sentenças condenatórias à margem de qualquer discussão em juízo.
De uma época bastante mais tardia, a época dos Ramsés, chega-nos um exem­
plo dessa fé na capacidade dos mortos para condicionarem a vida dos seus

233
parentes ainda vivos, exemplo esse que nos dá a visão de quem está do outro
lado, ou seja, a vítima. Confiada a uma estatueta de mulher, provavalemente ima­
ginada como mensageira do Além, foi encontrada uma carta enviada num papiro,
em que um viúvo escreve à sua esposa, para lhe exorcizar o espírito e para lamen­
tar os prejuízos que ela o faz padecer e que, segundo diz, são imerecidos: para o
provar, recorda todas as provas de afecto e de devoção que ele lhe deu durante a
vida em comum, num quadro extremamente vivo e expressivo; desta vez, é o vivo
quem pede para ser julgado perante o tribunal do Além, desejando que ele lhe
restitua a tranquilidade que merece:

Ao espírito excelente, Ankhiry


Que mal te fiz para estar no estado em que me encontro? O que fiz contra ti?
O que tu fizeste é que me oprimiu, embora eu não tenha feito nada de mal contra ti.
Desde que vivia contigo como teu marido até ao dia de hoje, o que fiz contra ti que
se deva ocultar? O que te fiz? O que tu fizeste é que me leva a acusar-te. O que fiz con­
tra ti? Far-se-á um julgamento com palavras da minha boca na presença dos Enéades
do Ocidente [os deuses do país dos mortos], e julgar-se-á entre ti e mim [por meio]
deste escrito, porque contém as minhas palavras e a minha carta. O que fiz contra ti?
Desposei-te quando era ainda jovem. Estive contigo quando exercia todos os ofícios.
Estive contigo e nunca te abandonei, e não fiz sofrer o teu coração. E isto fiz quando
era jovem e quando exercia todos os cargos importantes para o faraó [...]. E nunca te
abandonei, mas disse: “ Esteve [sempre] comigo.” Assim dizia.
E todos os que vinham ter comigo [quando estava (?)] na tua presença, não os rece­
bia, para te agradar, e dizia: “ Farei o que desejares.” Mas agora, tu não dás sossego
ao meu coração. Irei a julgamento contigo, e ver-se-á quem tem e quem não tem razão.
Olha, quando fui encarregado de instruir os oficias do exército do faraó e da sua cava­
laria, mandava-os prostrar diante de ti, e eles traziam coisas boas para te ofertar. Não
te escondi nada nos dias da tua vida, e não te fiz sofrer nenhuma pena em tudo o que
fiz contigo como teu senhor. Nunca me encontraste a fazer-te uma afronta, como um
camponês que entra em casa alheia. Não permiti que alguém me levasse o que eu tinha
ganho contigo [?]. E quando me vi no estado em que estou, tornei-me incapaz de me
ir embora como era meu costume, e dei por mim a fazer o que faz quem está no meu
caso quando está em casa [em relação aos teus unguentos], e também aos teus alimen­
tos e às tuas roupas. E isso era-te levado, e eu não o levava para outro lugar, mas dizia:
«A senhora está [ali(?)].» Assim dizia, porque não te queria desgostar. Mas tu não
sabes reconhecer o bem que te fiz.
Escrevo para que saibas o que me estás a fazer.
Quando tu adoeceste com a doença de que morreste, eu [mandei vir] um médico-
-chefe, e ele curou-te e fez aquilo que tu lhe disseste: “ Faz isto.”
Quando segui o faraó [...] até ao Alto Egipto, e tu estavas nesse estado, passei oito
meses sem comer nem beber como um homem. E quando cheguei a Mênfis, pedi [licença]
ao faraó e dirigi-me ao lugar onde tu estavas [sepultada] e chorei muito diante de ti, com
todos os meus. Dei-te panos de linho do Alto Egipto para te enfaixar e mandei que se fizes­
sem muitos tecidos, e mandei que não se descurasse nada de bom que fosse feito para ti.
Já passaram três anos, e eu vivo [sozinho], sem entrar em [outra casa], embora não
seja adequado que assim proceda quem está nas minhas condições. Fi-lo por ti. Mas
tu não distingues o bem do mal e julgar-se-á a ti e a mim. As irmãs estão em casa, mas
eu não fui juntar-me com nenhuma delas.»

234
Pelo final da carta, parece que o viúvo tinha a intenção de voltar a casar mas
que, antes disso, queria esclarecer a sua posição com a primeira mulher, precaven­
do-se contra o seu rancor. Também neste caso, o terreno e o ultraterreno cru­
zam-se com uma tal fluidez que teremos de considerar que isso era considerado
normal para a cultura egípcia.
O último caso a citar é ainda mais complexo. Quando morreu Nesikhonsu,
mulher do sumo sacerdote de Ámon que fora proclamado rei, e filha de uma
outra alta individualidade do Delta que também fora proclamado rei, o esposo
sobrevivo desse matrimónio nitidamente dinástico não devia sentir-se totalmente
seguro da sua posição perante a nova e mal controlada autoridade que a mulher
conquistara precisamente pelo facto de se ter afastado do jogo dos poderes deste
mundo. Por isso, aproveitando-se da sua posição de sacerdote, conseguiu que o
seu deus, Ámon, pronunciasse um oráculo em que declarava que divinizara a
princesa e fizera com que ela usufruísse, no Ocidente — o país dos mortos —, de
todas as oferendas de que usufruem aqueles que aí se tornaram deuses, e que as
divindades da região lhe fizessem a recepção que lhe era devida.
Como recompensa para este tratamento, que estava de acordo com a sua
dupla natureza real de filha e mulher de soberano, a princesa — para obedecer
também ao oráculo pronunciado pelo deus tebano — ficaria tranquila e seria
benévola para com o esposo sobrevivo e para com tudo o que a ele estivesse
ligado, em pessoas e bens.
A forma do decreto divino, transcrito num longo texto que chegou até nós num
papiro e numa tabuinha, dá já como certo o juízo favorável ao marido, no caso
de entre ele e a mulher morta ocorrer aquilo que ameaçava o viúvo de Ankhiry.
Todos os casos que temos vindo a ilustrar mostram o tremendo poder terreno
de que eram dotados aqueles que já não viviam na terra, mas que podiam tornar
a exercer a sua capacidade de vingança mais como justiceiros do que como juízes.
Por isso, é compreensível que, nos textos mágicos de protecção, a lista das forças
e dos seres hostis mencione normalmente «qualquer morto e qualquer morta» de
que é preciso ser-se salvo como de qualquer outro «inimigo». De facto, na apa­
rente serenidade da necrópole egípcia, fermentam temores primordiais que só em
parte se consegue esconjurar. É por isso que, temidos pelos vivos, há mortos que
se apresentam nas suas biografias ideais não só como pessoas que, no seu tempo,
foram piedosas e benfeitoras, mas também capazes de se colocar à disposição dos
vivos. É o caso de um tal Djedhor, que viveu no início da época grega no Egipto,
que se gaba de ter sido alcunhado de O Salvador: em vida, salvou na sua cidade
mais de uma pessoa da mordedura das serpentes e, depois de morto, com a sua
estátua coberta de fórmulas mágicas, continua à disposição de quem confiar nele.
Esta benéfica presença no mundo sob a forma de estátua, de que há outros
exemplos, não é o único processo utilizado pelos mortos para, do Além ou pelo
menos de um outro nível de existência, ajudar os que ainda vivem. Alguns indiví­
duos de conclamada sabedoria tornaram-se Deuses: podemos acompanhar a his­
tória da divinização de muitos deles, porque os conhecemos através dos documentos
que deixaram pessoalmente, na sua qualidade de homens, e conhecemo-los tam­
bém na perspectiva que assumiram aos olhos de uma posteridade mesmo bastante

235
remota, É o caso do homem de confiança de Djoser, em finais da época arcaica,
e do homem de confiança de Amenófis III, que se tornaram divindades popula­
res — e de muitos outros. A estes, que devem à sua vida exemplar o facto de se
terem convertido em Deuses, outros se juntam, que o ficam a dever ao modo
como morreram: são aqueles que, afogando-se no Nilo e repetindo assim um por­
menor da lenda de Osíris, ascendem automaticamente ao nível de divindades, de
tal forma que se lhes pode dedicar templos e dirigir preces.
Mas talvez estejamos a transpor os limites deste capítulo e a entrar em con­
cepções mais amplamente religiosas do que sociais.
Do mesmo modo, fica fora do quadro proposto toda uma série de documen­
tos francamente literários, cujo tema são as relações com mortos que aparecem
aos vivos, ou que pelos vivos são procurados nos seus túmulos, ou as visitas ao
Além, voluntárias ou não. Um material extremamente interessante sob muitos
aspectos, variado, pitoresco e, em vários casos, aventurosamente sedutor, mas que
também é arriscado utilizar como documentação da realidade mundana concreta
que, porém, em muitos outros aspectos, nos parece que se deva reconhecer ao
«traspassado» — e aqui a palavra não é um eufemismo, tem valor próprio.
Porque nesta expressão está a característica dessa vitalidade egípcia tão prepo­
tentemente interessada nas coisas do dia-a-dia e do real que não é capaz (ou não
quer) acreditar que possa existir uma ruptura entre a vida terrena e uma não vida.
Os túmulos do antigo Egipto são ainda hoje o testemunho mais rico, mais expres­
sivo, mais vivo, da existência que pulsou sobre as margens do Nilo.

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CAPITULO X

O R EI

p o r E r ik H o r n u n g
Na concepção dos Egípcios, a pirâmide social da humanidade culmina no rei.
Está mais próximo dos deuses, pertence, de facto, ao seu mundo e não é separá­
vel deles. Em casos particulares, apresenta-se aos homens como um deus, objecto,
portanto, de veneração cultuai. Mas, em primeiro lugar, ele próprio é administra­
dor do culto e representante da humanidade perante os deuses. As paredes, as
pilastras e as colunas do templo egípcio estão totalmente cobertas com cenas de
culto, onde o rei faz oferendas e reza diante das divindades do país. Como não
pode estar presente em todos os templos, tem de delegar as funções çultuais nos
sacerdotes; estes, através das cenas reproduzidas, legitimam perante os deuses o
seu papel de celebrantes que substituem o rei. Nenhum particular pode erigir,
renovar ou ampliar edifícios de culto, tarefa que compete exclusivamente ao sobe­
rano. Por isso, nos templos do Egipto greco-romano, ainda se constrói por ordem
«do faraó», que então é um Ptolomeu ou um imperador romano. É este o motivo
da continuição dessa instituição, que sobreviveu a inúmeros domínios estrangei­
ros, a começar pelo dos Hicsos. Só com o triunfo do cristianismo é que o faraó
«filho de deus» será substituído por um outro filho divino, que está acima de
todos os soberanos. Até esse momento — e durante 3500 anos — a instituição da
realeza egípçia nunca foi posta em causa. Viveu momentos de crise, sobretudo
após o final do Antigo Império e na época amarniana, mas até os odiados domi­
nadores estrangeiros, como os Hicsos e os Persas, se aproveitaram do significado
religioso que tornava sacrossanta a figura do faraó. Nunca se fez uma crítica a
esse cargo e juízos acerca da pessoa do soberano só foram expressos claramente
em fontes tardias, como a Crônica demótica; todavia, já nos textos mais antigos,
alguns reis, como Quéops ou Pepi II, são caracterizados de uma forma bastante
negativa.
A figura do faraó ocupa uma posição central não só no domínio da religião
mas também no da arte e da história do antigo Egipto. Antes de Alexandre
Magno, falamos de época faraônica e a nossa subdivisão da história egípcia ba-
seia-se de facto em dinastias de soberanos. Também a arte e a literatura, que ope­
ram por comissão estatal, assumem a realeza como ponto de referência. E se nos
detivermos a observar o mundo das «pessoas», as camadas sociais mais baixas,
também aí, como pano de fundo omnipresente, encontramos a figura do faraó:
é para ele que se trabalha, é dele que se recebem os meios de sustento, é nele que
se apoiam todas as esperanças religiosas. Esta é a realidade do Egipto desde que
começou a esboçar-se a história dos faraós.

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Nos tempos mais antigos, a pessoa do rei é totalmente absorvida pela sua fun­
ção e pelo ritual que lhe é inerente. O próprio nome individual, que ele recebe ao
nascer, tem muitas vezes um carácter programático, isto é, contém um programa
político-religioso; isto é válido, por exemplo, para os nomes compostos com Rá
(o nome do deus do Sol) da 4,® dinastia, ou com Ámon, da 12.^ e 13.® dinastias
(Amenemhat = «Ámon está no auge», Amenhotep = «Ámon está contente»).
Mais tarde, no Novo Império, o nascimento do rei é protegido pelo véu do mito.
O deus Ámon em pessoa assume o papel de pai que gera, juntamente com a rai­
nha, o futuro rei. Ciclos figurativos e textos (sobretudo os de Hatshepsut, em
Deir el-Bahari, e de Amenófis III, no templo de Luxor) descrevem o aconteci­
mento, o nascimento da criança semidivina, a sua legitimação por parte de Ámon
e os cuidados prestados pelas amas celestes. Numerosas inscrições informam que
o rei é chamado à realeza ainda «no ovo».
No momento da coroação, ao nome do soberano é associada uma lista de cinco
títulos, que durante o antigo Império se estabiliza definitivamente. Em primeiro
lugar, vem o nome de Hórus, que surge já na época pré-dinástica. Esse nome iden­
tifica o rei como manifestação terrena de Hórus, o deus do céu que tem a forma
de um falcão, configurado como «Hórus no Palácio». Para lá do leão e do touro,
o falcão é o animal com que o faraó mais vezes se identifica; no Novo Império,
faz-se por vezes retratar como ser misto, com asas, ou mesmo com cabeça de fal­
cão. «O falcão voou para o céu» é a expressão que indica a morte do rei.
No Novo Império, todos os soberanos associam ao título de «Hórus» o ele­
mento «Touro Poderoso», reassumindo assim o aspecto arcaico que o rei revestia
na paleta de Narmer. Sob a forma de touro manifesta-se por vezes o deus Seth,
outro poder divino que se identifica com o rei; o faraó é «Hórus e Seth», unifica
na sua pessoa os dois irmãos inimigos. Todavia, nesse antagonismo é Hórus
quem vence e Seth nunca encontrou um lugar fixo nos títulos reais, já que, sendo
uma divindade violenta e o assassino de Osíris, sempre desempenhou um papel
negativo. Através do mito de Osíris, desde a 5.® dinastia que o aspecto do rei
ligado a Hórus vai ampliando o seu significado; como é considerado o filho de
Osíris e todos os reis, depois de mortos, se tornavam «Osíris», também o Hórus-
-rei se torna o mítico filho de seu pai.
O segundo título real é formado com o elemento Nebti, «as duas Senhoras»,
que designa concretamente as duas deusas protectoras do Alto e do Baixo Egipto:
Nekhbet, a deusa-abutre, e Uto (Uadjit), a deusa-cobra. A encarnação de divin­
dades femininas na pessoa masculina do rei não é nada de excpecional; o exemplo
mais conhecido é o dualismo de Sekhmet e Bastet, o aspecto terrível e o aspecto
misericordioso da divindade, que o rei reúne em si, tal como na sua pessoa se
reconciliam os dois irmãos inimigos, Hórus e Seth. O Egípcio ama as dualidades,
que só unindo-se formam um todo, e o rei possui, acima de tudo, a dualidade das
duas metades do país, o Alto e o Baixo Egipto.
O terceiro título é designado por «nome de ouro» (ou «nome do Hórus de
ouro», em tempos mais antigos). Exprime igualmente a natureza de falcão do rei,
mas o ouro representa simbolicamente a matéria de que são feitos os deuses e as
suas imagens. O significado deste título em particular mantém-se obscuro.

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o chamado «nome do trono», que a partir do Médio Império inclui sempre
o nome do deus solar Rá, constitui o quarto título: Nesut-biti, «Rei do Alto e do
Baixo Egipto», portanto, rei de todo o país, cuja unificação corresponde, para os
Egípcios, ao início da história. Esse nome está, além do mais, encerrado numa
«carteia» de forma oval, um amuleto entrançado que, com fins protectivos,
envolve o nome do rei. Nas inscrições hieroglíficas, as carteias com os nomes
reais destacam-se nitidamente no interior do texto e têm dado um contributo fun­
damental para a decifração da escrita.
Numa segunda carteia, está incluído o nome de nascimento do rei, que ele
mantém mesmo depois da coroação, e que, a partir da 4.® dinastia, surge ligado
ao título de «Filho de Rá». Nos seus apelativos, o soberano é definido como
«filho» de muitas outras divindades, mas, nos títulos oficiais, só se inclui a refe­
rência ao deus solar; ao mesmo tempo, a recorrente definição do faraó como
«imagem» de Rá figura apenas no âmbito dos apelativos. Na abundância de epí-
tetos que rodeiam o rei como uma nuvem luminosa e que mudam de inscrição
para inscrição podem perceber-se os vários tons que cada época, na sua concep­
ção da realeza, quis acentuar. Epítetos como «Aquele que conquista todos os paí­
ses com a sua força vigorosa» ou «Aquele que faz viver a verdade e destrói a
mentira» ou «o Nilo do Egipto, que inunda o país com a sua perfeição» mostram
o que se espera do faraó, mas nada exprimem acerca da personalidade individual
do soberano.
Para além das componentes «oficiais» dos títulos e dos apelativos variáveis,
as inscrições reais recorrem a uma abundante série de títulos e atributos para
designar o soberano. Ele é «Senhor das Duas Terras», «Senhor das coroas» e
«Senhor do culto», mas também «deus bom». A designação de «Faraó» referida
no Antigo Testamento e também nos textos coptas do Egipto cristão torna-se cor­
rente a partir do Novo Império. Literalmente, significa «A grande [ou a maior]
Casa»; de início, designava o palácio real e foi depois transferida para a institui­
ção e para a pessoa do rei — tal como acontece com a «Sublime Porta» ou a
«Casa Branca».
A expressão hm. /, que traduzimos por «Sua Majestade» substitui amiúde o
título e o nome do soberano. Como a palavra h.m designa, para além do rei, tam­
bém os escravos, deduz-se que se refira à pessoa física do soberano; nestes
casos, as inscrições gregas usam o título de basiléus. Também são frequentes as
locuções impessoais referentes ao rei — «recompensou-se», «ordenou-se», «en­
viou-se», etc.
As insígnias reais, que distinguem o faraó dos outros homens, revelam algu­
mas afinidades com as divinas. Enquanto os Egípcios, contrariamente aos Asiáti­
cos, são quase sempre reproduzidos bem barbeados, os deuses e os soberanos
ostentam uma longa barba cerimonial, recurva naqueles e nestes fixada ao queixo
por uma fita atada à volta da cabeça. Quando o rei, após a morte, se torna um
Osíris, também é reproduzido com a barba divina; pelo contrário, o deus Ptah
aparece sempre reproduzido com a barba típica do rei.
No Antigo Império, o único tipo de trajo envergado pelo faraó é um saiote
chamado shendjut, nome que ainda sobrevive hoje na denominação de sindone,

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que se aplica ao sudário que se encontra em Turim. Esse saiote é muito curto,
geralmente plissado e guarnecido ao centro por um pedaço de tecido trapezoidal;
este tem também uma variante mais recente, triangular e revirada. Ambos os fei­
tios se se distinguem nitidamente do feitio dos saiotes dos deuses e dos funcioná­
rios. Enquanto os imperadores romanos, no seu papel de faraós, continuam a
envergar este tipo de saiote arcaico, no Novo Império, o rei já prefere envergar
uma longa saia lisa, cobrindo também a parte superior do corpo com uma espé­
cie de camisola sem mangas. Por ocasião da festa do jubileu (a festa Sed), enverga
um manto curto, bastante justo.
Os elementos mais importantes dos paramentos reais são porém as coroas,
cuja variedade se confirma desde os tempos mais antigos. A coroa branca, sím­
bolo do Alto Egipto, é uma alta tiara de material macio (provavelmente couro),
que se torna mais estreita na extremidade superior e culmina numa espécie de
intumescência. Por seu lado, a coroa vermelha do Baixo Egipto, uma calote
achatada na parte superior, guarnecida com um «caracol» em espiral, de mate­
rial desconhecido. As duas coroas juntas constituem a «dupla coroa», que qua­
lifica quem a ostenta como soberano de todo o Egipto. No Novo Império, apre­
cia-se em especial a «coroa azul», semelhante a um elmo, que também é de
couro e enfeitada com pequenas placas de metal. Essa coroa é um atributo
exclusivo do rei, ao passo que as outras são também usadas pelos deuses. A par
destas, existe ainda uma série de coroas com plumas, elaboradas em época tar­
dia em sobreposições compósitas, decoradas com chifres e serpentes-ureus, ele­
mentos que, por norma, se podem aplicar em todas as coroas. Dado que até
hoje não foram encontradas coroas originais, temos de nos basear apenas em
reproduções e não podemos saber quais os tipos que eram efectivamente
usados.
Em vez da coroa, o faraó usa muitas vezes um barrete de pano — um tecido
às riscas, rectangular, atado à volta da cabeça e fixado na testa por uma tira; as
extremidades anteriores caem para o peito e as posteriores pendem nas costas,
como uma pequena cauda. Embora rara, a combinação barrete-coroa está tam­
bém documentada, mas, sobretudo nas estátuas, à coroa prefere-se o barrete de
pano. Este também pode ser enfeitado com serpentes-ureus, como símbolo com­
plementar de soberania; com o «sopro de fogo» do seu veneno, afastam os pode­
res inimigos da pessoa do rei. Mesmo quando o soberano enverga apenas a
peruca, que no Egipto é usada indistintamente por homens e mulheres, é o sím­
bolo da serpente-ureu que o distingue dos outros homens.
A cauda de touro enrolada à cintura, documentada desde as reproduções mais
antigas, remete para o aspecto da soberania associado ao touro. Todavia, quando
o rei assume as funções sacerdotais, enverga uma pele de pantera. Nos pés, cos­
tuma usar sandálias e, no tesouro funerário de Tutankhamon, foram encontradas
também luvas, visivelmente destinadas ao equipamento de auriga. As duas mais
importantes insígnias do poder que o faraó empunha são o antigo bastão de pas­
tor curvo e o chamado «açoite», provavelmente um enxota-moscas. Também Osí-
ris, como senhor dos mortos, herdou do rei esses atributos.

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Com as insígnias reais, o faraó reveste-se de uma função muito precisa, cuja
especificidade é ainda complementada pelos títulos e pelos apelativos. A tudo
isso alia-se indubitavelmente um rigoroso cerimonial da corte, de que porém
pouco sabemos; só esporadicamente, como na história de Sinuhe, é descrita uma
audiência na corte do rei. Podemos, porém, acreditar em Diodoro Sículo (1, 70),
quando diz que o dia do soberano egípcio era pormenorizada e minuciosamente
programado. Para além disso, as fontes egípcias relatam-nos as normas-tabu de
que estava rodeado. O sacerdote Rawer, numa inscrição do seu túmulo de Gizé,
refere um episódio muito perigoso para ele, ocorrido na época do rei Neferirkara,
da 5.® dinastia: durante uma cerimônia cultuai, foi atingido acidentalmente pela
clava do rei; este teve então de declarar que o gesto não fora intencional e que o
sacerdote não estava castigado. Como os deuses, também o faraó está envolto
num halo mágico. Quando alguém se aproxima do rei, fá-lo em proskynesis,
prostrado até «beijar a terra», como diziam os Egípicos.
A pessoa do soberano está totalmente submetida à função que tem de desem­
penhar. Por conseguinte, mesmo na arte figurativa, o rei não é reproduzido como
indivíduo, mas como tipo ideal. De Ramsés II, que reinou durante mais de 66
anos, não existem retratos em idade avançada; com 80 anos, continua a ser repro­
duzido em todo o seu vigor juvenil, como é exigido pela imagem idealizada do
rei. Mesmo as reproduções «realistas» de finais da 12.® dinastia e da época amar-
niana não são hoje consideradas como retratos, mas como expressão de uma dife­
rente concepção da realeza.
Só textos isolados permitem ter um acesso directo à personalidade de um
faraó. Se dispomos de uma abundante produção biográfica dos funcionários,
nenhum soberano nos deixou, infelizmente, autobiografias. Há, porém, dois
Ensinamentos que podemos atribuir a soberanos e em que o faraó fala directa-
mente ao seu filho e sucessor. Trata-se do Ensinamento para Merikara, um rei da
10.® dinastia, e do Ensinamento de Amehemhat I para seu filho Sesóstris /, do
início da 12.® dinastia. Nesses textos encontram-se afirmações muito pessoais e
até a admissão de que se falhou em determinadas circunstâncias. Amenemhat
descreve o atentado que sofreu, fala da sua incapacidade de se defender e da trai­
ção dos seus confidentes; por isso, exorta o filho a ser desconfiado, enquanto o
pai de Merikara o aconselha a ser indulgente. Embora saiba que um rei tem de
conviver com inimigos internos e externos, desconfia dos castigos duros e elogia
a «língua», o emprego convincente da palavra como arma do rei. Os dois Ensina­
mentos podem ser considerados como uma espécie de manifesto político que é
deixado para os sucessores, baseado nas experiências políticas anteriores e apre­
sentado como proferido pelo soberano defunto.
Entre os testemunhos directos de personalidades de soberanos incluem-se
também algumas cartas que chegaram até nós graças ao facto de terem sido
«publicadas» nos túmulos ou nas esteias dos funcionários; versões originais ou
cópias de cartas reais estão conservadas apenas nas tabuinhas cuneiformes do
arquivo de Tell el-Amarna, que remonta à época de Amcnófis III e IV, a que vêm
acrescentar-se as que foram encontradas nos arquivos da capital hitita, Boghaz-
kõi. Entre as referidas cartas há duas que se destacam. Pepi II, no segundo dos

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seus noventa e quatro anos de reinado, portanto seguramente ainda uma criança,
manda escrever ao chefe da sua expedição à Núbia, Herkhuf:

«Decreto real ao meu companheiro, sacerdote ritualista, chefe de caravana Herkhuf.


Tive conhecimento da carta que escreveste ao rei, ao Palácio, para que se soubesse
que regressaste bem do país de Iam [na Núbia] com o exército que estava contigo. Dis­
seste, nessa tua carta, que trouxeste contigo grandes e belas dádivas, que Háthor,
senhora de Imau, concedeu ao rei do Alto e do Baixo Egipto [Pepi II], que possa viver
por toda a eternidade.
Disseste nessa tua carta que trouxeste um anão dançarino da Terra dos Espíritos,
como o anão que Bawerdjed, o tesoureiro do deus, trouxe de Punt, no tempo do rei
Iscsis. Disseste: “ Nunca ninguém que tenha visitado Iam trouxe um como ele.” Sabes
fazer o que o teu senhor deseja e louva. Passas dia e noite preocupando-te em fazer o
que o teu senhor deseja, louva e ordena. Sua Majestade recompensar-te-á com magní­
ficas honras, que ainda resplandecerão para o filho do teu filho, de tal forma que
todos os que ouvirem o que a Minha Majestade fará te dirão: “ Haverá algo de seme­
lhante ao que foi feito ao companheiro único Herkhuf, quando regressou de Iam, pelo
zelo que revelou ao fazer o que o seu senhor desejava e louvava?” Dirige-te portanto
rapidamente para Norte, para a Residência. Deixa [ficar tudo] e leva contigo esse anão
que trouxeste da Terra dos Espíritos, vivo, são, e próspero para as danças do deus e
para alegrar e divertir o coração do rei do Alto e do Baixo Egipto, Neferkara, que
possa viver eternamente.
Quando ele subir contigo para a barca, coloca homens de confiança junto dele em
todos os lados da barca, para não cair à água. Quando estiver a dormir, de noite, põe
homens de confiança a dormir junto dele, na sua tenda. Vigia-o dez vezes por noite.
A Minha Majestade deseja mais ver esse anão do que as dádivas do Sinai e de Punt.
Se chegares à Residência com esse anão vivo, são e próspero, a Minha Majestade fará
por ti algo de maior do que foi feito para o tesoureiro do deus, Bawerdjed, no tempo
do rei Isesis, porque a Minha Majestade deseja ardentemente ver esse anão.»

Mesmo através da estilização retórica do redactor da corte, a carta reflecte a


alegria infantil do jovem rei pelo facto de, finalmente, após mais de um século,
um pigmeu ser de novo «importado» para o Egipto desde o coração da África,
não só para dançar durante as cerimónias religiosas, mas também para alegrar a
corte. Impaciente pela espera, Pepi exorta Herkhuf a apressar-se e, sobretudo, a
garantir a chegada do anão à residência, onde uma rica recompensa aguarda o
digno funcionário. Este, satisfeito com uma carta tão pessoal do rei, deu-lhe uma
ampla ressonância na inscrição autobiográfica do seu túmulo, em Assuão.
Um funcionário do Novo Império, o vice-rei da Núbia Usersatet, imortalizou
uma carta pessoal que lhe foi escrita por Amenófis II, reproduzindo-a numa
esteia colocada na segunda catarata, hoje conservada no museu de Boston. Neste
caso, a situação é totalmente diferente: o velho soberano recorda ao companheiro
de armas as campanhas na Ásia Menor, mas faz também uma crítica explícita ao
seu comportamento como vice-rei. Por isso, essa carta revela-nos o estilo decidi­
damente pessoal de Amenófis II ao dirigir-se ao alto funcionário, escolhido entre
os companheiros de armas e de juventude:
«[ano 23...]»

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A tradução de um excerto dessa carta, devidamente comentado, figura no
ensaio de Edda Bresciano relativo aos estrangeiros e incluído nesta obra. O texto
aí traduzido conclui-se como segue:

«Não confies nos Núbios, evita-os, a eles e aos seus encantos. E depois, olha para
esse miserável desse escravo que nomeaste para funcionário, não é decerto o tipo de
funcionário que terias proposto a Sua Majestade; ou será que querias aludir ao provér­
bio “ se falta um machado de ouro, com embutidos de bronze, basta um grosso bordão
de madeira de acácia” ? Não escutes pois as suas palavras e não te preocupes com as
suas embaixadas!»

Por vezes, as inscrições oficiais referem opiniões e acções muito pessoais do


rei. Na esteia da vitória, em Karnak, Camose descreveu de uma forma extrema­
mente viva a sua batalha contra os Hicsos; Ramsés II faz um relato insólito da
derrota dos Hititas, em Qadesh, tornando-se porta-voz da política de paz que
conseguiu depois concretizar através de pactos e de vínculos matrimoniais com
quem, até àquele momento, fora seu inimigo. Só recentemente se teve conheci­
mento de uma esteia do rei Taharqa (25.® dinastia), que descreve uma corrida para
as tropas, num percurso que vai de um acampamento militar próximo de Mênfis
até Fayum. O próprio soberano participou em parte da corrida, premiando
depois os soldados com um sumptuoso banquete. A estes pormenores biográficos
há ainda a acrescentar outro tipo de documentação que muito mais concreta­
mente nos permite conhecer a figura do soberano. No Museu Egípcio do Cairo
conservam-se os corpos embalsamados de numerosos soberanos do Novo Império
que, de tempos a tempos, são impiedosamente expostos ao público. Enquanto os
corpos de Alexandre Magno e de Augusto se desfizeram em pó, esses plurimilena-
res soberanos mostram-nos ainda hoje o seu aspecto físico, a pele, os cabelos e os
sinais de doenças passadas.
Já no Antigo Império os reis eram mumificados, mas das suas sepulturas con-
servaram-se apenas restos muito escassos, até porque os primeiros arqueólogos
consideravam o material antropológico desprovido de valor. Além disso, se os
sacerdotes da 21.® dinastia, por volta do ano 1000 a. C., não tivessem transferido
para dois locais secretos as múmias reais ainda existentes, hoje, do Novo Império
só restaria a múmia encontrada no túmulo intacto de Tutankhamon. Um dos dois
esconderijos, uma câmara lateral do túmulo de Amenófis II, só foi descoberto
em 1898 pelo Serviço de Antiguidades egípcio; o outro, um pequeno túmulo a sul
do vale de Deir el-Bahari, já tinha sido descoberto em 1871 pelos habitantes do
local; só dez anos mais tarde é que o director do Serviço de Antiguidades, Mas-
pero, conseguiu desvendar o seu segredo. Em 1881, as múmias reais foram trans­
portadas em procissão triunfal desde Luxor até ao Cairo e aí, após uma paragem
provisória num mausoléu, puderam finalmente repousar numa sala isolada do
Museu Egípcio.
Por isso temos dc novo acesso aos restos mortais de grandes reis como Tutmés
III, Sethi e Ramsés II; após vários exames muito precisos, surgiram os caracteres
somáticos, as doenças, as causas da morte e até os grupos sanguíneos. Agora,

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sabemos que Tutmés III media 1,62 m de altura, tinha feições delicadas e morreu
com cerca de 70 anos. Amenófis III sofria de obesidade e, na velhice, padecia de
fortes dores de dentes, ao passo que Amenófis I, Tutmés III e Ramsés IV tinham
uma dentadura perfeita. Siptah revelava ainda sinais de uma paralisia infantil e
Ramsés V fora atingido pela varíola, de que morreu ainda jovem. Também é sur­
preendente o número de faraós que sofriam de artrite.
Ao contrário, portanto, da estilização idealizante da arte, as múmias dão-nos
uma imagem o mais possível aproximada do verdadeiro aspecto de muitos reis e
fornecem pormenores biográficos que as outras fontes omitem. Todavia, o poten­
cial comunicativo deste tipo de documentação antropológica é limitado, já que a
determinação da idade do morto não leva, com os meios actuais, a nenhuma con­
clusão definitiva.
A pele vazia da múmia nada revela acerca dos pemsamentos e dos sentimentos
do homem, de modo que só nos resta confiar nas biografias e nas opiniões que
outras fontes atribuem às diversas personalidades.
A este respeito, as inscrições dos soberanos e dos funcionários pouco nos
dizem, privilegiando aspectos diferentes daqueles que nos interessariam. À bata­
lha decisiva de Megido, onde Tutmés III aniquilou uma coligação inteira, os
«Anais» do rei só dedicam três versos:

«Então a pujança de Sua Majestade passou para a cabeça das tropas e quando [os
inimigos] viram a imponência de Sua Majestade, fugiram desordenadamente para
Megido, com os rostos aterrorizados.»

Todavia, os «Anais» descrevem pormenorizadamente as consultas do rei com


o exército e o escalonamento das tropas antes do combate. Nota-se uma maior
abundância de pormenores nos textos e nas reproduções da batalha de Qadesh,
travada 200 anos depois por Ramsés II contra os Hititas e que, aliás, não foi uma
vitória para o Egipto. Isto é característico do estilo de um novo período, em que
a antiga cena simbólica do «abate dos inimigos» é substituída por pormenoriza­
das reproduções das batalhas do faraó contra os seus adversários. A minuciosa
descrição da batalha de Qadesh, que constituiu quase uma catástrofe para o
Egipto, servia porém a Ramsés II para apoiar a sua política de paz. Por detrás da
tal política, que decerto teve de vencer algumas resistências, nota-se a personali­
dade de um rei que soube firmar uma paz estável e duradoura, que só terminará
com o avanço dos «Povos do Mar».
Fortemente marcada pela personalidade do soberano é a política de Amenó­
fis IV Akhenáten e de seu pai, Amenófis III, como documentam as fontes da
época. Trata-se, porém, de casos relativamente excepcionais e, na maioria das
vezes, continuamos a desconhecer a personalidade de um faraó.
Um dos muitos exemplos é o de Ramsés IV, que viveu num período bastante
bem documentado. Quando nasceu, por volta de 1200 a. C., não era príncipe, já
que a sua família ainda não estava no poder. Só após a morte (talvez violenta) da
rainha Tausret é que seu avô, Sethnakht, fundou a 20.^ dinastia; o seu reinado
foi, porém, de curta duração e sucedeu-lhe Ramsés III, o pai do nosso faraó.

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Como os outros príncipes, o futuro rei participou nas batalhas contra os Líbios
e os «Povos do Mar», adquirindo assim uma vasta experiência militar. Ramsés III
terá ficado durante muito tempo indeciso acerca de qual dos seus filhos deveria
designar como seu sucessor no trono. A escolha de Ramsés IV provocou uma
conspiração no interior do harém, que queria que fosse coroado outro príncipe,
Pentaur. O velho rei foi assassinado, mas este foi o único resultado obtido pelos
conjurados; de facto, foram presos e processados e Ramsés IV pôde afirmar-se
como novo rei.
É indubitável que é preciso possuir-se uma notável energia e muita habilidade
para superar tal crise interna e garantir a supremacia do novo faraó. A sua legiti­
mação e o reconhecimento por parte dos deuses são celebrados com particular
destaque no «grande papiro Harris», de Londres. Outros documentos descrevem
o processo dos conspiradores, exigido pelo rei a um tribunal especial de 12 juízes.
Contra a corrupção, que emergiu durante o processo, Ramsés IV insere nos seus
títulos um programa de governo centrado no conceito de Maat, o princípio da
ordem, da justiça e da harmonia.
Tendo herdado de seu pai uma situação de política externa estável, pôde dedi­
car-se totalmente às acções de paz, que, para um faraó, correspondiam essencial­
mente à construção de edifícios. Expedições cada vez mais numerosas foram
envidas às pedreiras do Wadi Mammamât: mais de 8000 homens, em três anos de
reinado. Para a soberba construção do seu templo funerário a oeste de Tebas, o
rei serviu-se do material de edifícios mais antigos; noutros casos, limitou-se a
«usurpar» monumentos já existentes, com a simples aplicação da sua carteia,
fenómeno aliás corrente em todas as épocas da história egípcia. As restritas possi­
bilidades da 20.® dinastia não permitiram que Ramsés IV concretizasse plena­
mente o papel de criador que o faraó desempenhava, erigindo monumentos. Pôde
apenas completar o seu túmulo no Vale dos Reis, concebido porém segundo um
novo critério, que foi herdado pelos seus sucessores.
A planta e a decoração do túmulo real eram definidas de reinado para rei­
nado; em muitos casos, tratava-se de pequenas variantes e ampliações, mas, em
outros casos, as transformações eram mais profundas. Mantém-se em aberto a
questão de saber qual teria sido a influência do soberano nessas obras, ou seja,
se a nova concepção se ficou a dever a uma indicação directa de Ramsés IV ou
se dependeu das decisões de um hipotético órgão de sacerdotes e funcionários. As
inscrições do rei revelam-nos as suas tendências religiosas e espirituais; estuda os
textos antigos conservados na «Casa da Vida» e observa o máximo respeito pelas
normas religiosas. Portanto, será razoável pensar que o soberano se terá ocupado
pessoalmente das obras do túmulo real. Decididamente genial foi a ideia de redu­
zir e simplificar todo o edifício, ampliando-lhe porém os volumes utilizados, de
modo que a impressão geral fosse a de um imponente «palácio funerário».
Quando o rei, após seis anos de reinado, em 1149 a. C., foi sepultado, o túmulo
já estava terminado — facto surpreendente, se se tiver em conta a corrupção de
que os textos da época falam insistentemente.
Num período bem documentado como o dos Ramsés, a personalidade do sobe­
rano pode captar-se pelo menos nas suas grandes linhas. Isso é válido também

247
para Ramsés II, que, com Akhenáten e Hatshepsut, é um dos poucos faraós de
que se publicou uma monografia (Kitchen, 1982). Quanto ao Antigo Império, as
fontes são demasiado escassas para permitirem a elaboração de uma monografia
dedicada a um soberano. Todavia, Sneferu e Quéops, os primeiros soberanos da
4.® dinastia, emergem da tradição literária mais tardia como personalidades bem
definidas. As obras de poesia do Médio Império (o papiro Westcar, Neférti, o
Ensinamento para Kajemni) retratam Sneferu como um faraó benevolente e cari­
doso, que exala uma autoridade natural e trata com muita familiaridade os seus
mais altos funcionários; pelo contrário, seu filho, Quéops, é descrito, mesmo
pelas fontes mais antigas, como um déspota. Como, nos textos da época, ambos
os reis são exaltados sobretudo como construtores de pirâmides, Quéops, pelas
suas dimensões, e Sneferu, pela sua quantidade, a definição de déspota não
estava ligada apenas ao facto de erigir pirâmides.
Se, nas inscrições oficiais, o rei «nunca dorme», antes se preocupa dia e noite
com o bem-estar do país, o «roi des contes», como Posener o definiu, parece-nos
muito mais humano: procura passatempos para vencer o tédio (papiro Westcar),
tenta saber o futuro {Neférti) ou prolongar a sua vida (papiro Vandrier); no relato
de Neferkara e Sisene, pratica mesmo o amor homossexual, passando as noites
com um dos seus generais. Estamos longe da solenidade divina do faraó, mas as
reproduções nos ostraca dos Ramsés, embora não ponham em causa a instituição
régia, não a poupam à sátira; é também nesta época que surge a tendência para
«humanizar» os deuses (a luta de Hórus e Seth, a astúcia de ísis).
O carácter, desde as origens essencialmente masculino, da realeza era suficien­
temente flexível para admitir também as mulheres no cargo de faraó. A posição
e a influência política da rainha variam sensivelmente em todas as épocas da his­
tória egípcia. Como regente de um soberano ainda menor, a rainha podia exercer
um poder político efectivo, mesmo não sendo faraó. A «grande esposa real» era
sempre apenas uma, e por norma tratava-se de uma irmã ou de uma meia-irmã
do rei: a seu lado rodopiava um grande número de mulheres secundárias. Para a
sucessão ao trono, a descendência da grande esposa era um factor determinante,
de que dependia mesmo a legitimação de uma mulher como faraó.
Já na 1.^ dinastia surge uma figura eminente de rainha, Meritneit, que foi
regente até o rei Den atingir a maioridade. Meritneit reivindicou o direito a uma
série de privilégios próprios do rei, como um duplo edifício funerário e a erecção
de esteias e de estátuas. No entanto, como não usava o título de Hórus nem datou
segundo os seus anos de reinado, não é ainda de considerar como faraó de pleno
direito. Só três rainhas ousaram fazê-lo: Nofrusobek, em finais da 12.® dinastia,
Hatshepsut, na 8.®, e Tausret, em finais da 20.® dinastia. Um quarto caso, embora
não confirmado, remonta aos finais do Antigo Império (Nitócris).
Nofrusobek sucedeu a seu irmão Amenemhat IV, provavelmente por falta de
herdeiros masculinos. Uma estátua do Louvre representa a rainha com roupas
femininas, mas ornada com as insígnias propriamente masculinas do faraó, o
barrete de pano e o saiote real; nos seus títulos define-se como «Hórus femi­
nino», apresentando-se assim inequivocamente como mulher no papel masculino
de faraó. Tal como Nofrusobek, também Hatshepsut quis, no início, realçar o seu

248
estatuto feminino, evitando o habitual nome de Hórus «Touro Poderoso»; porém,
ao longo do seu reinado, que durou vinte anos, foi acentuando progressivamente
as características masculinas do seu cargo, embora tolerasse junto de si a presença
de um homem, Tutmés III, como co-regente. Tausret, que já como rainha assu­
mira muitos privilégios reais, só começou a reinar como faraó depois da morte de
seu filho, Siptah.
As «esposas divinas», um cargo que se manteve desde o século viii até ao
século VI a. C., constituem um caso à parte: de facto, exerciam a soberania sobre
o Egipto em substituição do rei. De sangue real, essas mulheres eram oficialmente
as «consortes» do deus tebano, Ámon; por conseguinte, não casavam e a suces­
são ao trono era feita através da adopção. Providas de uma lista de títulos reais
própria, embora abreviada, as esposas divinas podiam datar segundo os anos do
seu reinado, construir templos e túmulos reais e gerir a sua administração
segundo o modelo faraônico. Assim, de um ponto de vista formal, esta institui­
ção revela algumas semelhanças com a soberania do faraó: na realidade, porém,
não se trata de uma realeza efectiva, como é o caso das citadas rainhas do Médio
e do Novo Império.
Hatshepsut apresenta três razões que legitimam a sua posição de faraó-
-mulher. Em primeiro lugar, afirmando a sua origem divina como filha terrena de
Ámon, nascida de uma rainha mortal, mas gerada por um pai divino. No templo
funerário de Deir el-Bahari, esse mito é representado numa sequência pormenori­
zada de reproduções. Perante os nossos olhos, dezassete cenas narram o aconteci­
mento extraordinário — a união de Ámon com a rainha, a gestação da criança
por obra do deus criador Khnum, o nascimento, a atribuição do nome, os cuida­
dos prestados pelas amas divinas e, por fim, o reconhecimento por parte de
Ámon. Um segundo ciclo integral é o de Amenófis III, no templo de Luxor; exis­
tem outros exemplos dessa ideia de realeza, de que ainda se encontram vestígios
na época de Alexandre Magno, que se proclama filho de Ámon.
Para legitimar o seu papel, Hatshepsut recorre depois ao pai terreno, Tut­
més I, afirmando que ele próprio a teria designado para exercer o cargo de faraó.
Além disso, o facto de descender directamente da grande esposa, Ahmés, dá-lhe
vantagem em relação a Tutmés III, seu co-regente, que nascera de uma esposa
secundária. A terceira legitimação é a designação directa por parte de Ámon que,
durante uma procissão sagrada, teria manifestado através do oráculo que Hats­
hepsut devia ser rei. As reproduções referentes a este facto mostram a rainha ajoe­
lhada diante do deus que, colocando-lhe uma coroa na cabeça, sanciona o seu
direito de reinar.
No Novo Império, essas formas de legitimação são bastante comuns. No
Médio Império, os reis da 12.® dinastia chegam a garantir a continuidade da
coroa através de um sólido sistema de co-regência, que foi adoptado também no
Novo Império (como no caso de Hatshepsut e de Tutmés III) e a que os Ramsés
deram depois uma forma menos «oficial», que dá um carácter ilusório ao papel
de um soberano reinante — o jovem parceiro não ostenta nenhum título e não
pode datar segundo os anos de reinado, e é designado por «Generalíssimo». As
dinastias estrangeiras da época tardia resolvem a questão da sucessão hereditária

249
com métodos um tanto diferentes dos Egípcios; os Líbios fragmentam o país em
reinos mais pequenos, confiando o maior número possível a membros da família
reinante; sob o domínio etíope, o reinado passava para um irmão e deste para um
sobrinho. Com os Ptolomeus, regressa o sistema da co-regência, de preferência
com parceiros femininos.
Durante toda a história egípcia, a situação ideal era aquela em que todos os
cargos, incluindo o de faraó, se transmitiam de pais para filhos. O próprio mito
da realeza confirma-o: apesar de todas as adversidades, Hórus consegue ser o
herdeiro de seu pai, Osíris; a usurpação do trono por parte de Seth, o irmão ini­
migo, não tem quaisquer consequências, a não ser perturbar provisoriamente a
sucessão. Qualquer novo soberano representa também uma nova geração c,
segundo as regras, nenhuma geração é omitida. Se um príncipe herdeiro morre
antes de subir ao trono, o seu lugar não é ocupado por um dos seus filhos, mas
por um irmão mais novo; Merenptah, por exemplo, é o 14.° filho do seu anteces­
sor, Ramsés II. No entanto, a linha de sucessão não obedece a um rigoroso crité­
rio de antiguidade, mas privilegia, sobre todos os outros, os filhos da grande
esposa. Como referimos, um dos motivos que provocaram a conspiração do
harém, que conduziu à morte de Ramsés III, foi a prolongada indecisão do rei na
escolha de um sucessor entre os seus filhos.
Mesmo quando a grande esposa real não tinha gerado herdeiros, havia sempre
os filhos das outras mulheres, no caso de o rei não ter morrido muito jovem. Se
tivesse tido apenas filhas, como Akhenáten, então os genros assumiam um papel
importante e eram considerados como filhos de sangue. Por vezes, um genro do
rei podia fundar uma nova dinastia, como seria o caso de Tutankhamon, se a
morte precoce não o tivesse impedido. Ainda hoje seguimos a subdivisão que
Máneton, um sacerdote que viveu no reinado de Ptolomeu II, elaborou, deduzin­
do-a de fontes mais antigas. Nem todas, mas a maior parte das suas trinta dinas­
tias correspondem ao período de reinado de outras tantas famílias que, por
direito legal do sucessor ou por usurpação, se sucedem umas às outras.
No período mais arcaico, no início do Antigo Império, os cargos administrati­
vos mais elevados também eram confiados a membros da família reinante; o fun­
cionário mais importante (vizir) devia ser um filho do rei e o prestigioso título de
repat exprime muito provavelmente que se pertence à ramificada estirpe da famí­
lia dominante, que controlava todos os poderes. Em finais do Antigo Império, a
influência da família real vai diminuindo progressivamente e, no Médio e no
Novo Império, o papel de príncipe torna-se pouco mais do que nominal.
Como nunca se definia com clareza qual dos príncipes viria um dia a ser rei,
eram todos educados do mesmo modo: o sucessor do trono era educado na escola
do Palácio, juntamehte com os outros príncipes — incluindo os filhos dos sobera­
nos estrangeiros — e com os futuros funcionários que, após a infância comum,
viriam a tornar-se seus confidentes. O cargo de educador da corte, atribuído a
funcionários que fossem dignos dele, era uma tarefa de grande responsabilidade.
A base da instrução era o conhecimento da escrita, que permitia o estudo da lite­
ratura «clássica». Na Profecia de Neférti, conta-se que o rei Sneferu tirou do
estojo os instrumentos para escrever e os rolos de papiro e escreveu pessoalmente

250
as palavras do sábio Neférti. Havia ainda a educação desportiva — as nossas fon­
tes citam o tiro ao arco, a natação e, mais em geral, o treino militar nas activida-
des de Montu, o deus da guerra. Amenófis II, o «rei desportista», refere minucio­
samente as suas proezas físicas, muito superiores às dos soldados do seu exército.
Os soberanos do Novo Império praticavam com desenvoltura a corrida em carros
puxados por cavalos, tanto na guerra como na caça, muito difundidos na época
amarniana como meio rápido de deslocação; nos tempos mais antigos, o rei era
transportado numa liteira ou de barco. Não se pode, porém, imaginar um faraó
a cavalo, porque este animal era utilizado apenas como animal de tiro.
Por conseguinte, a figura do faraó é considerada no seu aspecto físico e espiri­
tual. Através dos textos, familiarizava-se com as suas funções religiosas — como
vimos claramente no caso de Ramsés IV. Não sabemos, porém, até que ponto o
faraó, antes de subir ao trono, estava preparado para o seu papel divino. A tese
de que ele era formalmente «iniciado» nunca foi verdadeiramente comprovada.
Quando, nas inscrições reais e nos hinos, se refere que o faraó conhece os segre­
dos dos mistérios, os segredos do curso do Sol, e que «já no ovo ele sabe», trata-
-se de afirmações que se referem ao seu papel divino, não à sua pessoa humana.
Os conhecimentos necessários a uma função tão importante só podiam ser adqui­
ridos com uma educação adequada.
Os hinos para a coroação, sobretudo os do Novo Império, de Merenptah e
Ramsés IV, são as melhores fontes para se conhecer as expectativas criadas pela
subida ao trono de um um novo soberano:

«Ó dia feliz! O céu e a terra estão alegres


porque tu és o grande senhor do Egipto!
Os que fugiram regressaram às suas cidades,
os que se escondiam apareceram;
os que tinham fome estão saciados e alegres.
os que tinham sede embriagaram-se,
os que estavam nus estão vestidos de linho fino,
os que estavam sujos resplandecem.
Os que estavam na prisão estão livres,
os que estavam tristes estão alegres;
os que combatiam neste país,
pacificaram-se.
Um Nilo abundante sai das suas fontes
para refrescar o coração dos homens.
As viúvas abrem as suas casas e mandam entrar os viandantes,
as donzelas exultam
e entoam cânticos de júbilo,
[...]
Os filhos varões que nascerem terão sorte,
(porque] um criador de gerações em gerações
é o Senhor por todos os tempos.
As barcas alegram-se na corrente, não precisam de reboques:
alcançam a margem usando velas e remos.
Todos resplandecem de júbilo desde que foi dito:

251
“o rei do Alto e do Baixo Egipto Heqamaatra
ostenta de novo a coroa branca!
O filho de Rá, Ramsés,
ocupou o trono que foi de seu pai!”
As Duas Terras dizem-lhes:
“ Belo é Hórus no trono de seu pai Ámon-Rá,
do deus que o enviou, do protector
deste soberano, que conquista todos os países!” »

Assim é celebrada a coroação de Ramsés, e o hino análogo de Merenptah


sublinha ainda que Maat, a ordem ideal e perfeita, tanto na natureza como na
sociedade, foi restabelecida com o triunfo sobre a injustiça, de modo que, como
refere a estrofe final, «se vive no riso e na maravilha». Do faraó espera-se que
repita os actos do deus criador e reconduza o mundo ao estado ideal dos inícios.
A designação de «deus» surge entre os seus títulos, as reproduções exaltam-no
sempre na esfera divina e o Egipto espera dele a mesma eficácia de uma divin­
dade.
Ao enfrentar a realidade egípcia, a velha egiptologia estava ainda muito con­
dicionada pelos autores antigos, para os quais o faraó não era mais do que um
dos muitos déspotas orientais, que mandava construir pirâmides com fins cele-
brativos ou, como na Lenda de Sesóstris, era considerado como um conquistador
helenista. Só em 1902, com O Carácter Religioso da Realeza Faraónica, é que
Alexandre Moret dá início à discussão sobre a «divindade» do faraó, discussão
essa que se mantém. Continua portanto em aberto a questão da «dupla natureza»
do rei, já que, a par da natureza divina, vive a natureza humana, de que já falá­
mos e que não deve ser ignorada. Sobre esta insistiu especialmente Georges Pose-
ner, no seu ensaio de 1960, enquanto outros autores se limitaram a ter em conta
o seu aspecto divino.
A popular, mas infeliz, definição de «rei-deus», criada por Moret («le roi-
-dieu»), evidencia a natureza divina de um modo demasiado indiferenciado.
O faraó é um homem, mas a sua função é divina, por outras palavras, é um
homem que desempenha o papel de um deus. Além disso, é um sacerdote, um
servo dos deuses, que representa perante os homens. No Egipto, além do mais,
qualquer homem pode tornar-se um «deus» — os mortos são vistos geralmente
como «deuses», na medida em que, depois da morte, ocupam a mesma esfera
ultraterrena dos deuses propriamente ditos. Pensou-se que, de início, a palavra
egípcia que significa «deus» {netjer) designaria apenas o soberano defunto, mas
o que distingue o faraó de todos os outros homens é precisamente o facto de, já
em vida, ser um deus, poderíamos dizer o «deus na terra»!
Por conseguinte, é difícil definir o carácter divino do rei egípcio e talvez seja
melhor remeter para os textos e para as reproduções originais da época faraónica.
Aí a relação do soberano com o mundo divino é expressa de várias maneiras:
1. o faraó é um deus; 2. o faraó é filho de um deus; 3. o faraó é a imagem de um
deus: 4. o faraó é «amado» ou «favorecido» pelos deuses. Só as duas primeiras
afirmações é que fazem parte dos títulos «oficiais», enquanto as outras duas

252
fazem parte dos apelativos. O «amor» (merut) e o «favor» (hesut) que os deuses
concedem ao rei exprimem a relação particular de confiança recíproca; muitas
vezes é realçado o facto de um deus ou uma deusa «amarem mais» o soberano
reinante do que os seus antecessores.
Na 4.® dinastia, Djedefra, o sucessor de Quéops, é o primeiro rei a usar o
título de «filho de Rá», isto é, do deus solar. Há variantes posteriores que defi­
nem o faraó como filho de Ámon, de Ptah e de muitos outros deuses e deusas;
nas inscrições, as divindades mais diversas dirigem-se a ele como «meu filho» ou
«meu amado filho». O mito da origem divina dos faraós das primeiras cinco
dinastias, que nos é transmitido pelo papiro Westcar, do Médio Império, demons­
tra que o rei, enquanto gerado por Rá, é realmcntc considerado como «filho» do
deus solar. Porém, na época dos Ramsés, quando o rei é denominado «filho de
Seth» — um deus que, no mito, não tem nenhum filho — pretende-se aludir
sobretudo a uma afinidade geral de carácter: pela sua índole guerreira, o faraó
participa da própria natureza do violento deus da guerra, Seth. Portanto, o apela­
tivo «filho de Seth» não significa mais do que «ele é como Seth» ou «ele é um
Seth» (naturalmente só quando combate contra os inimigos). O mesmo valor de
afinidade subentende-se dos nomes próprios não reais «filho/a do [deus/da
deusa] X», inexistentes no Antigo Império, mas muito usados no Médio Império;
mantém-se, porém, obscuro o significado religioso da expressão «filha de
Ámon», quando se refere a filhas de pais não reais.
Só no Ensinamento para Merikara (e no Gênesis) é que o apelativo «imagem
de deus» é atribuído a todos os homens; no Antigo Império ainda não é usado
e, em seguida, será reservado exclusivamente ao rei. Na 13.® dinastia surge a nova
designação de «imagem viva de Rá sobre a terra», que, com diversas variantes, se
propagará no Novo Império e na época tardia; o conceito de «imagem» implicava
pelo menos umas vinte variantes, que permitiam exprimir as nuances mais subtis.
De facto, «imagem» pode indicar um símbolo, uma estátua, uma imagem de
culto. Nos títulos oficiais, esse aspecto estava implícito na definição de «filho de
Rá». Nas inscrições, «filho» e «imagem» surgem sempre em posições paralelas;
assim, para Ámon-Rá, Amenófis III é «o meu filho amado, gerado pelo meu
corpo, a minha imagem, que eu elegi sobre a terra» {Urk., IV 1676). O filho ter­
reno parece-se em todos os sentidos com o pai divino — no aspecto, no compor­
tamento, na índole e também na posição social, na função que desempenha.
O apelativo da época dos Ramsés que caracterizava o faraó como «substituto» de
um deus é, porém, extremamente raro, porque parecia minimizar a função do rei.
Tal como as imagens cultuais e os animais sagrados, também o faraó pode
converter-se em manifestação do deus sobre a terra. Nos textos, esse processo
chega mesmo a identificar totalmente o rei com os deuses. Nas Instruções Lealis-
tas, Amenemhat III é definido como Lia, Rá, Ápis, Khnum, Bastet e Sekhmet,
portanto, identificado também com divindades femininas. Aqui, todavia, não se
trata de uma real «encarnação» da divindade no rei; o contexto da celebração
mostra claramente que o faraó, no seu papel de protector do Egipto, é, para os
homens, um Ápis (a inundação do Nilo), como pai do país, é um Khnum (que
molda os homens na roda do oleiro), na sua cólera, é a temível Sekhmet, na

253
indulgência, é a pacífica Bastet, e, na batalha, converte-se em Montu, o deus da
guerra. Esses nomes divinos são portanto uma espécie de apelativos, que descre­
vem o papel do faraó na terra.
No mesmo plano situam-se os epítetos e as reproduções do rei como animal.
Os mais importantes remontam ao início do período histórico e são o leão, o
touro e o falcão; mais tarde aparecem formas mistas, como a esfinge e o grifo.
Este reúne em si as naturezas do leão e do falcão, próprias do rei. No Egipto, o
touro representa não apenas a fertilidade, mas sobretudo a soberania; daí a defi­
nição de Osíris como «touro do Ocidente», e de outras divindades como «touro
do céu». Nas cenas triunfais, normalmente gravadas em escaravelhos e escarabí-
deos do Novo Império, o rei é representado eomo um touro que pisa o inimigo
estendido por terra; como triunfador, ele pode assumir indistintamente o aspecto
de leão, esfinge e grifo, a que se acrescentará mais tarde também o cavalo, como
animal real.
A natureza de falcão é a mais destacada nas inscrições e nas reproduções.
Desde o início da época histórica, o faraó é o falcão Hórus; os seus títulos ini­
ciam-se com o nome de Hórus e ele é visto como «falcão no Palácio» e Hórus na
terra. Quéfren criou o conhecido tipo estatuário do rei protegido pelo falcão, um
modelo que perdurará, com algumas variantes, até finais da época faraónica;
Nectanebo, para além de se fazer representar sob a protecção do grande falcão
(estátua em Nova Iorque), faz-se mesmo adorar como «o Falcão». O tipo esta­
tuário do rei com os atributos do falcão exprimem da forma mais emblemática a
compenetração na natureza de Hórus por parte do rei; frontalmente, a estátua
retrata o soberano com os ornamentos reais, enquanto nas suas costas despontam
as asas do falcão; com o mesmo objectivo, mas talvez com uma solução menos
original, são atribuídos ao rei numerosos atributos do falcão. Ramsés II gostava
de se fazer retratar com a cabeça de falcão, ainda que neste caso não se reclame
de Hórus, mas do deus solar Rá-Harakhti.
De todos os deuses, Rá é aquele com quem o faraó mais frequentemente se
identifica e da forma mais completa. Escassamente documentado nas primeiras
três dinastias, o deus adquire uma importância cada vez mais significativa na
4.^ dinastia, e na dinastia seguinte cada rei constrói ao lado da sua pirâmide um
sacrário dedicado a Rá. Djedefra, o filho e sucessor de Quéops, sanciona a rela­
ção que existe entre o rei e o deus adoptando o nome de «filho de Rá», usado
também pelos soberanos que lhe sucederam. Estes escolheram para o nome real
expressões compostas com epítetos de Rá, exprimindo depois, através dos vários
apelativos, a íntima relação que os liga ao deus solar. Além disso, a partir dos
Textos das Pirâmides, Rá afirma-se como divindade dominante no Além real.
No Médio Império, o faraó é muitas vezes definido como «rei solar», «disco
solar dos homens, que afugenta a escuridão», «sol dos países estrangeiros» ou
«aquele que ilumina as Duas Terras». Todavia, o ponto mais alto da realeza solar
será atingido no Novo Império, quando, em textos como as Litanias Solares, o rei
defunto se identificar totalmente com o Sol. Essa identificação é tripla: o faraó
diz a Rá: «eu sou tu, tu és eu, a tua alma [ba\ é a minha alma, a tua corrida é a
minha corrida no mundo subterrâneo». Identificando-se com o Sol, que renasce

254
surgindo todas as manhãs do mundo subterrâneo, do reino dos mortos, o rei quer
garantir a sua sobrevivência no Além; de facto, a decoração dos túmulos do Vale
dos Reis é dominada pela descrição da viagem nocturna que o Sol efectua no
mundo subterrâneo, na barca solar ou na sua forma de disco.
No entanto, o rei ambicionava identificar-se com Rá ainda em vida; a partir
de Amenófis II, o faraó exige que os seus funcionários o designem por «tu és
Rá!». Ámon, o «rei dos deuses», diz a Amenófis III: «entreguei-te, a ti que és
Rá, as Duas Margens [o Egipto]»; segundo parece, este mesmo soberano foi o
primeiro a inserir o seu nome no disco solar, o primeiro, portanto, a exprimir,
embora iconograficamente, a sua identificação com Rá.
Será este aspecto solar que, a partir de Amenófis III, levará à adoração do
soberano vivo. Desde o início que o faraó está rodeado de rituais, como os que
se cumprem durante a coroação ou durante a festa do jubileu (festa Sed), mas só
após a sua morte, ao transformar-se num deus, e precisamente em Osíris, se torna
realmente objecto de culto. Agora, porém, o faraó reinante faz oferendas à sua
própria imagem divinizada. O local privilegiado dessa veneração é a Núbia, a
terra do ouro e do Sol que, do ponto de vista do Egipto, é a que fica mais perto
do nascer do Sol. É aí que Amenófis III constrói os templos de Soleb e de
Sedeinga, onde se adora a sua pessoa e a de sua esposa, a rainha Teje; este exem­
plo é seguido por Tutankhamon, em Faras, e por Ramsés II, que, para além dos
dois templos de Abu Simbel, edificou outros no coração da Núbia, para aí ser
adorado como deus solar. A sua imagem cultuai — com cabeça de falcão (ou
humana) encimada pelo disco solar — sintetizava iconograficamente a identifica­
ção rei-deus, e ele próprio lhe prestava homenagem.
A veneração do rei vivo concretiza-se sobretudo em estátuas colossais; cada
uma dessas estátuas tem um nome cultuai e personifica um dos aspectos divinos
do faraó. Os seus nomes são também escritos em escaravelhos, enquanto, na arte
glíptica, a divinização se exprime principalmente pela imagem do rei dentro da
barca cultuai, que, na época amarniana, está provida de uma liteira. Durante as
procissões, o faraó divinizado, com todos os seus paramentos, é transportado aos
ombros por seres divinos ou humanos. Como o Sol, influencia o curso dos acon­
tecimentos terrenos através da sua «aparição». Além disso, enquanto, na barca
sagrada, a sua imagem pode ser substituída pelo seu nome, nas cenas de procis­
são mantém-se muitas vezes anônimo.
Os Egípcios acreditavam verdadeiramente na natureza solar do faraó. Como
o Sol, ele «resplandece» através dos monumentos mandados construir em todo o
país. Ámon, na grande sala hipóstila de Karnak, dirige ao seu amado filho,
Sethi I, estas palavras: «No meu tempo, construíste edifícios imponentes, fizeste
resplandecer Karnak com obras eternas, como o Sol, quando refulge de manhã.»
Os monumentos do faraó irradiam luz sobre todo o país, o Egipto é inundado
pelo esplendor emanado dos templos do rei e «rejubila» com ele. As cores bri­
lhantes dos relevos dos templos, o ouro que recobre a cúspide dos obeliscos e de
outros elementos arquitectónicos, as superfícies polidas e preciosas das estátuas
de pedra contribuem para o fulgor do «rei solar». Como a luz criadora, ele dá
forma ao mundo e fá-lo resplandecer para os seus súbditos.

255
Tal como os raios luminosos afugentam a escuridão, ele afugenta, ao apare­
cer, os inimigos do Estado. A sua imagem está reproduzida nas paredes exteriores
dos templos e nas pedreiras, para que os seus efeitos apotropaicos mantenham
afastados os poderes das trevas. A mesma função desempenha a imagem gravada
em escaravelhos ou outros objectos de arte menor. No Novo Império, o rei é cele­
brado e reproduzido como hábil archeiro: como o Sol «arremessa» os seus raios
e captura todos os inimigos, também o faraó, impetuoso sobre o seu carro de
guerra, arremessa infalíveis setas.
O sentido profundo deste «carácter solar» está expresso com extrema clareza
num texto de Tutmés III: a terra deve ser «como se [o próprio] Rá fosse o seu rei»
(Urk., IV 1246), ou mais simplesmente «como nos tempos de Rá», isto é, como
se o deus reinasse ainda sobre a terra ou «como no momento da criação»,
quando o mundo nasceu. É isso que o faraó pretende, quando procede como o
Sol: repete os actos do deus criador, elimina toda a desordem que se gerou desde
o nascimento do mundo, em suma, recria a perfeição das origens, agindo como
deus da criação. Numa inscrição de Tanis, Ramsés II refere-se a si mesmo como
«aquele que criou novamente o mundo, como no momento da criação»; a «Esteia
da Restauração», que conclui o período amarniano, fala-nos assim do jovem
Tutankhamon: «ele afugentou [...] a desordem para que a ordem [Maat] seja res­
tabelecida. Destrói a mentira e o mundo é como criado por obra sua». Portanto,
qualquer nova coroação traz consigo a esperança de que todo o mal seja elimi­
nado e de que o mundo regresse a uma perfeição renovada.
Uma imagem tão idealizada acaba por ser extremamente eficaz na realidade
da história egípcia. Muitas das campanhas militares que nos foram transmitidas
não exprimem uma real necessidade política ou econômica, mas apenas uma
necessidade de «derrotar o inimigo» meramente ritual; de facto, o faraó, a partir
do preciso momento em que assumia o Poder, devia afirmar-se de imediato como
triunfador dos seus inimigos. Tais demonstrações militares estão documentadas
no caso de-soberanos pacíficos, como Hatshepsut e Akhenáten.
A derrota das potências inimigas é também expressa pelas cenas de caça, onde
os animais capturados e mortos pelo faraó simbolizam os inimigos do reino. Nas
reproduções, a caça e a guerra situam-se no mesmo plano: no escrínio pintado de
Tutankhamon, por exemplo, o registo das duas cenas é idêntico e, ao fervilhar do
inimigo, numa delas, correspondem, na outra, os animais, permanecendo imutá­
vel a imponente figura do faraó que, sobre o seu carro de guerra e rodeado pelos
seus soldados, arremessa setas. Um anel de Amenófis II, conservado no Louvre,
mostra, num dos lados, o faraó combatendo os inimigos e, no outro, caçando um
leão; no templo de Medinet Habu, na extremidade sul da pilastra, Ramsés III é
reproduzido na famosa cena da caça aos animais selvagens, a que corresponde,
na extremidade norte, uma cena de batalha. Na série das «cenas de triunfo», que
documentam as relações comerciais com o exterior, o faraó recebe também ani­
mais exóticos, como elefantes, girafas e ursos que, com a sua presença, preten­
diam realçar que a soberania do faraó ehegava às fronteiras de todo o mundo
ordenado. Com o mesmo objectivo, também se criavam animais desses nos jar­
dins zoológicos da corte.

256
Se as cenas de batalha e de caça se concentram na figura imponente do faraó,
os textos também o exaltam, definindo-o como «tão eficaz como milhões de sol­
dados» ou como «muralha para o seu exército», e celebram quase exclusivamente
os seus feitos. Os nomes dos generais ou dos oficiais nunca são citados nas inscri­
ções reais. As reproduções da batalha de Qadesh exaltam Ramsés II como se,
completamente só, auxiliado apenas por Ámon, tivesse enfrentado os Hititas e os
seus aliados; o faraó teria invertido o destino da batalha depois de o seu exército
ter fracassado devido a uma emboscada. Mas esta deformação dos factos, que
corresponde, aliás, à ideologia da realeza egípcia, servia a Ramsés II para pôr em
prática uma efectiva política de paz; de facto, a solução do confronto bélico entre
as duas potências conduz, após demoradas negociações, à paz e à sua ratificação
através de uma união matrimonial, o que deparou sem dúvida com a forte oposi­
ção de uma fracção intervencionista, que não podia renunciar tão depressa às
suas posições hostis em relação aos «miseráveis Asiáticos».
Segundo a ideologia real, o faraó não trava guerras de agressão e de con­
quista, é obrigado a reagir às provocações e às «rebeliões» dos seus inimigos.
Ramsés II ataca apenas aqueles que «violaram as suas fronteiras». Um típico
motivo para uma guerra é formulado da seguinte forma: «Anunciou-se a Sua
Majestade: a miserável terra de Kush tenciona revoltar-se.» Em oposição dialéc-
tica a esta subentendida guerra de ataque, recorre-se muitas vezes a perífrases,
como «o rei amplia as fronteiras do Egipto», que exprime uma outra exigência
ideológica: o tema da «ampliação daquilo que existe», como veremos melhor
mais adiante. Pelo menos a partir do Médio Império, o rei reivindica de um modo
absoluto o direito de governar o mundo, «todas as terras, mesmo as terras estran­
geiras» que dependem dele; no Novo Império pode sem dúvida falar-se de um
império egípcio, que abrange a Palestina, a Síria, o Líbano e grande parte do
actual Sudão. Esse domínio sobre o mundo é também descrito miticamente — es­
tende-se a sul, até ao «corno da terra», a norte, até à luz ou às colunas do céu,
abarca todo o mundo ordenado até aos confins da criação; mais simplesmente, o
rei é «senhor daquilo que é abarcado pelo disco solar».
Senhor da guerra e senhor dos monumentos: eis os dois aspectos fundamen­
tais do comportamento histórico do faraó. Nos seus títulos há sempre referência
à construção de «monumentos» {menu): podiam ser edifícios, esteias, obeliscos e
estátuas, mas também novas residências (Akhenáten) ou mesmo obras de arte menor.
A criação desses monumentos é tarefa do rei e insere-se, aliás, no papel do deus cria­
dor sobre a terra. Para cumprir essa missão, o rei começa, logo a seguir à coroa­
ção, a projectar grandes construções; assim, mesmo reinados relativamente curtos
caracterizam-se por uma abundância surpreendente de monumentos. Ramsés II, que
reinou durante mais de 66 anos, deixou-nos três inscrições monumentais do seu pri­
meiro ano de reinado que começou, evidentemente, com numerosas e imponentes
construções de templos: Abidos, Abu Simbel, o Ramesseum e depois a ampliação
do Templo de Luxor, a conclusão da grande sala hipóstila de Karnak, a construção
de um túmulo soberbo no Vale dos Reis e uma série de esteias e estátuas destinadas
a decorar essas construções. Tudo isso enquanto chefiava a campanha militar con­
tra os Hititas, portanto, antes de se iniciar o tranquilo período de paz!

257
Igualmente magníficas são as obras realizadas no Antigo Império por Sne-
feru, que mandou edificar três grandes pirâmides e muitas outras de menores
dimensões. Amenófis III, um dos grandes construtores do Novo Império, man­
dou erigir inúmeras estátuas reais e divinas, e, entre estas, mais de 700 da deusa
Sakhmet. Todavia, nem todos os soberanos podiam dar-se ao luxo de utilizar
assim as forças do país. Muitos contentavam-se com um «erigir de monumentos»
mais simbólico, acrescentando inscrições em edifícios ou obeliscos já existentes,
ou substituindo a carteia dos seus antecessores pela sua, a fim de serem conside­
rados como os construtores do monumento, «usurpações» que não assumiam
qualquer carácter negativo, mas que eram totalmente legítimas e estavam de
acordo com a ideologia da realeza.
O papel do criador obrigava cada rei a fundar algo de novo, a superar as
obras dos seus antecessores, por exemplo, com o «alargamento das fronteiras»
através de campanhas militares. Essa missão é facilitada pela concepção do tem­
plo egípcio que, ao contrário do grego, nunca é projectado como uma estrutura
acabada e que pode, portanto, ser constantemente ampliado. Os elementos do
templo axial — sala hipóstila, pátio, pilastras, pórticos — podem multiplicar-se
à vontade de cada um. Assim, todos os novos soberanos têm a possibilidade de
ampliar templos já existentes ou de construir novos. No complexo sagrado de
Karnak, as construções continuaram durante mais de 2000 anos. Este engenho
em criar algo de novo pode definir-se como regra da «ampliação daquilo que
existe».
Essa regra já existia sem qualquer dúvida no Antigo Império e influiu na evo­
lução da pirâmide; a partir do Médio Império, passa a fazer parte do programa
de reinado de cada soberano. O artífice do Ensinamento para Merikara faz votos
de que o seu sucessor o supere em talento e «multiplique o que eu realizei», e diz-
-se que o jovem Tutankhamon «superou o que fora feito desde os tempos dos seus
antepassados». Nesta última inscrição, o rei também afirma que aumentou de 11
para 13 o número dos suportes para a imagem processional de Ámon, e de 7 para
11 os da imagem processional de Ptah. Estes eram portanto acrescentados para se
realizar a «amplificação de tudo o que existe», tal como o facto de se aumentar
o número dos sacrifícios ou dos dias de festa para os deuses.
Todavia, é nos edifícios que se exprime com mais evidência a sistematici-
dade e o cálculo apurado dessas ampliações. A evolução do túmulo real,
durante o Novo Império, é tão sintomática como a dos templos. Os exemplos
mais antigos, embora mais modestos, no Vale dos Reis, consistem apenas em
poucas estátuas de pequenas dimensões, mas, de reinado para reinado, a sua
imponência e a sua riqueza decorativa vão aumentando, até se chegar aos «tú­
mulos-palácio» da época dos Ramsés. Estes túmulos eram cavados na rocha a
uma profundidade que ultrapassava os 100 m e estavam totalmente cobertos de
relevos pintados. A planta e o programa decorativo evolue constantemente.
Aumenta o número das esteias e o das pilastras, os volumes modificam-se e a
decoração enriquece-se com novos motivos; paralelamente, também os sarcófa­
gos reais assumem novas formas, cada vez mais imponentes e mais ricamente
decoradas.

258
No entanto, esta contínua evolução atinge um ponto final, aquilo que hoje
designamos por «limite de crescimento». No início da 20.^ dinastia, o túmulo real
assumira proporções tais que já não era possível nem imaginável proceder a mais
ampliações. Viu-se como Ramsés IV resolveu o assunto, efectuando as modifica­
ções no interior dos volumes. Renunciando às pilastras e a parte das salas e da
decoração, reduziu o túmulo no seu conjunto, mas deu maior amplitude e altura
aos corredores, tornando assim mais incisiva a função de representação de todo
o conjunto. Desse modo, os limites eram de novo deslocados e a evolução podia
continuar.
A dinâmica deste processo parte da profunda convicção dos Egípicos de que
todas as formas de vida necessitam de renovação, de regeneração. Por isso são
celebradas grandes festas anuais, em que o faraó desempenha um papel funda­
mental; como a residência real, após a época amarniana, se situa a norte (em
Mênfis, no Delta oriental), todos os anos ele se dirige a Tebas para participar na
festa de Opet, a grande procissão das barcas divinas, de Karnak a Luxor e
regresso. Na festa de Min, renova-se também a conquista do poder por parte do
rei, que será comunicada a todo o mundo pelos pássaros lançados em direcção
aos quatro pontos do céu.
Todavia, a cerimônia mais importante para o rei é a festa Sed — o chamado
«jubileu». Documentada desde as épocas mais antigas, essa festa exprime a ideia
de que o poder e a soberania devem renovar-se totalmente em cada geração, tanto
na terra como no Além, e é essa renovação que ela simboliza. Por conseguinte, a
maior parte das festas Sed, mencionadas ou reproduzidas, é interpretada apenas
como esperança, como auspício, sem implicar uma real celebração da cerimônia.
Independentemente da duração do seu reinado, o faraó deve realizar «milhões»
ou «centenas de milhões» de festas Sed, em que se inclui o tempo da sua existên­
cia terrena. À parte certas excepções, raras e especiais, a festa Sed era celebrada
após trinta anos de reinado, portanto após a passagem de uma geração, e era
depois repetida com intervalos breves de três ou quatro anos.
Podemos fazer uma ideia mais concreta dessas festas examinando as três fes­
tas Sed que Amenófis III celebrou no seu Palácio de el-Molqata (Tebas ociden­
tal), testemunhadas por inúmeros fornecimentos (providos de inscrições) ao Palá­
cio de séries de estátuas específicas e de reproduções datadas (Túmulo de
Kheruef). Do longo reinado de Ramsés II conhecemos catorze festas Sed, anun­
ciadas sempre por altos funcionários; aqui, porém, faltam os testemunhos con­
cretos de el-Moqata, porque os palácios dos reis egípcios foram muito mal con­
servados em comparação com os seus túmulos e com os templos. No caso de
Ramsés III, conhecemos apenas os preparativos da festa, o que nos faz supor que
ele foi assassinado antes de a celebrar.
O ritual da cerimônia é descrito com todos os pormenores nos ciclos figurati­
vos de Neuserra (5.® dinastia) e de Osorkon II (22.® dinastia); há também o
«papiro dramático do Ramesseum», que se refere à festa Sed de Sesóstris I. Por
vezes, o ponto fuleral da festa é a sepultura de uma estátua do rei, que personifica
o antigo soberano; outras vezes, é a repetição do ritual da coroação, onde o rei,
«rejuvenescido», demonstra a sua força física com uma corrida cultuai perante os

259
deuses. Em el-Molqata foi também encontrada uma plataforma com 30 (!)
degraus, onde Amenófis III se sentava durante a festa.
Ainda não se sabe com toda a certeza se a festa Sed substituiu um ritual
arcaico que previa a morte do rei. Seja como for, durante essa festa, a natureza
humana do soberano é posta em evidência. A força vital do rei vai-se consumindo
com o tempo e precisa de ser totalmente regenerada para poder manter a ordem
no Estado e na natureza. A tragédia de um monopólio de poder envelhecido e
empedernido é descrita pelo mito — da época amarniana — da «destruição do
gênero humano». O protagonista é o deus Rá, que, no início, ainda reina sobre
a terra, sobre os homens e sobre os deuses, mas que depois provoca uma crise de
tudo o que fora criado: «agora Sua Majestade tinha envelhecido». Nesta situa­
ção, os homens revoltam-se contra ele, e ele, para os castigar severamente, lança
o seu «olho» de fogo. Assim, mesmo Rá, através de uma rebelião e de uma expe­
riência dolorosa, foi levado a ceder a soberania a uma nova geração. Abdicações
como a que é descrita pelo mito não estão documentadas para nenhum faraó.
O próprio conceito de festa Sed, da renovação ritual, tornava-as supérfluas; em
muitos casos, era a instituição da co-regência que, no momento oportuno, asse­
gurava a passagem de uma geração para outra. O último soberano dos Ramsés,
Ramsés XI, já de idade avançada, promulgou, para um Estado perturbado pelas
crises, uma «época de renascimento» que, porém, não lhe sobreviveu nem pôde
evitar a queda do Novo Império. Como prova de que, a par da realeza, toda a
natureza se renovava, nos anos da festa Sed registaram-se cheias particularmente
abundantes; os anais da «Pedra de Palermo» referem uma cheia extraordinária
por ocasião da festa Sed de Den, na 1.® dinastia, e Amenófis III afirma tê-lo
igualado (Túmulo de Khaemhat). Manipulação da história? Se a arte egípcia nos
dá uma imagem ideal do homem, o mesmo fazem os anais em relação à história,
onde nunca nada acontece por acaso, mas apenas por necessidade.
Mesmo em caso de eventuais catástrofes naturais, a harmonia entre o Estado
e a natureza, que hoje constitui um grave problema, nunca foi posta em causa, no
Egipto. O Estado é o faraó. Ele inseriu os seus monumentos na natureza e
tornou-a produtiva sem a violentar; mesmo as imponentes pirâmides fazem parte
dela. Natureza e Estado apoiam-se ambos na Maat, a quem estão vinculadas
todas as camadas sociais, incluindo o rei. Nela se baseiam a justiça e a verdade,
e todas as formas de vida cósmica e social. O faraó sublinha sempre que também
ele, como os deuses, «vive de Maat», isto é, está vinculado a esse princípio; esta
concepção exprime-se também iconograficamente nas cenas da «oferta de Maat»:
o rei estende aos deuses uma pequena figura de Maat, em forma de deusa acoco-
rada e com o símbolo da pluma na cabeça.
No domínio social, o princípio de Maat impede que o fraco padeça injustiças,
garantindo-lhe um tratamento equânime. Compete ao rei fazer com que esse prin­
cípio prevaleça sobre as forças adversas e sobre o natural «direito do mais forte».
No Ensinamento para Merikara afirma-se já que os soberanos devem empe­
nhar-se em «reforçar a espinha do fraco» e, a título de exemplo de uma posição
social prejudicada e especialmente necessitada de protecção do Estado, mencio­
nam-se as viúvas e os órfãos. No âmbito legal, o faraó nunca comparece como

260
juiz, nunca é formalmente invocado; no entanto, sem a sua autorização, não se
podiam, praticar castigos físicos, como o corte do nariz ou das orelhas, nem exe­
cuções capitais.
O facto de a realeza poder renovar-se e modificar as situações contrabalan­
çava o peso da burocracia e impedia o Egipto faraónico de se transformar numa
mera administração. Para limitar a crescente influência do clero, o rei nomeava
pessoalmente os grandes sacerdotes, impedindo assim que esse cargo se tornasse
hereditário. Por outro lado, o poder do faraó estava ligado ao princípio universal
de Maat e ele não podia transformar-se facilmente em déspota e tirano. Akhená-
ten, com os poderes de que dispunha, e apelando para a Maat, realizou uma
reforma do Estado provisória e instituiu uma nova religião; mas a religião tradi­
cional revelou-se mais forte e o rei não conseguiu impor durante muito tempo a
sua reforma, que de facto não lhe sobreviveu.
No entanto, o empenho em garantir a igualdade social não impediu o rei de
querer distinguir-se do resto da humanidade, apelando para a sua natureza
divina. Isso levou à concepção da pirâmide como forma sepulcral que, para além
do rei, era reservada à rainha, e por acréscimo, à construção de templos para o
culto real e à elaboração de textos funerários reais específicos. A seguir ao Antigo
Império, uma primeira onda de «democratização» permitiu que todos tivessem
acesso a muitos destes privilégios; todavia, até ao início do Novo Império, o
túmulo em forma de pirâmide continuou a ser apanágio exclusivo do rei, e só
quando este o abandonou é que os seus funcionários o adoptaram como forma
de construção pública «permitida». Para o novo tipo de túmulo real, cavado na
rocha, foram criados textos funerários adequados, os «Livros do Além-túmulo»,
que, até finais do Novo Império, se destinavam exclusivamente ao soberano; além
disso, desenvolveu-se um complexo sistema de medidas «reais», aplicadas apenas
no túmulo do rei. Entre os géneros estatuários, destaca-se a esfinge, estrita e
exclusivamente ligada à pessoa do faraó, através da qual ele manifestava o seu
aspecto divino de guardião e triunfador, assumindo a forma de um leão.
A constante criação de novas formas e concepções mostra-nos como a insti­
tuição da realeza continuava a evoluir, seguida a uma certa distância pela classe
dos funcionários. Isso manifesta-se não só na tipologia dos túmulos, dos sarcó­
fagos e das estátuas, mas também noutros domínios, como a literatura reli­
giosa. Encontramo-nos perante uma instituição que não é apenas uma das mais
antigas, mas também das mais duradouras da história da humanidade. Durou
mais de 3000 anos, sem nunca ter sido posta seriamente em causa. Surpreen­
dentemente, mesmo os soberanos estrangeiros conseguiram integrar-se nela
durante mais de um milénio, transformando-se em «autênticos» faraós; no Tem­
plo de Esna, o imperador Trajano é ainda reproduzido a dançar perante as
divindades egípcias, cumprindo assim o seu dever religioso de medianeiro entre
o mundo humano e o mundo divino. Embora os Egípcios, nos momentos de
fraqueza da instituição real, se tenham voltado para outras formas de media­
ção, como a adoração de animais sagrados e dos defuntos divinizados ou a
veneração directa dos deuses, a função religiosa do faraó continuou a subsistir
até ao triunfo do cristianismo.

261
A supremacia, sempre problemática, de homens sobre outros homens tinha
encontrado a sua expressão mais completa, sem todavia se traduzir em opressão.
No Estado do antigo Egipto podiam exprimir-se as formas criadoras e produtivas
que a essa cultura deram o contributo mais consistente. A missão do faraó exal­
tava o seu poder criador: devia agir sobre a terra como deus e vencer, através da
sua natureza divina, a imperfeição do homem.

262
ESQUEMA CRONOLÓGICO
Época tinita 1.®- 3.® dinastias c. 3000-2570 a. C.

Antigo Império 4.®- 9.® dinastias c. 2570-2140 a. C.

l.° Período 8.®-10.® dinastias c. 2140-1955 a. C.


Intermédio

Médio Império 12. ®dinastia 1955-1750 a. C.


13. ®dinastia 1750-1600 a. C.
2.® Período 14. “-17.® dinastias 1600-1540 a, C.
Intermédio (Hicsos)

Novo Império 18. ®dinastia 1540-1293 a. C.


19. ®dinastia 1293-1190 a. C.
20. ®dinastia 1190-1070 a. C.

3.° Período 21.®-23.® dinastias 1070-712 a. C.


Intermédio (Época Líbia)

Época Etíope 24.® dinastia 712-664 a. C.

Época Saítica 25.® dinastia 664-525 a. C.

Época Persa 26.®-30.® dinastias 525-332 a. C.

Época Ptolomaica 304-30 a. C.

Época Romana 30 a. C.-337 d. '

Época Copta 337-641

Conquista Árabe 641


R E F E R E N C IA S B IB L IO G R Á F IC A S

Capítulo I
Uma obra essencial para o estudo da agricultura egípcia antiga é a de F. Hartmann, L’agriculture dans
l ’ancienne Egypte, Paris, 1923. Em A. Erman, Aegypten und aegyptisches Leben im Altertum,
Tubingen 1885, cap. 17, Die Landwirtschaft, reproduzido praticamente sem alterações na mesma
obra, revista por Hermann Ranke e editada em 1923, encontra-se uma descrição magistral da
vida e do trabalho dos camponeses. Este estudo era, e continua a ser, fundamental e todos os
outros se baseiam nele. Entre os trabalhos posteriores, citemos, por ordem cronológica: P. Mon-
tet, La vie quotidienne en Egypte au temps de Ramsès, Paris, 1958; T. G. H. James, Pharaoh’s
people, London, 1984; F. Cimmino, Vita quotidiana degli Egizi, Milano, 1985, e o contributo de
L. Donatelli, repleto de excelentes ilustrações, para A. Donadoni Roveri (direcção de), Civiltà
degli Egizi: la vita quotidiana, Torino, 1987. Todas estas obras tratam do mundo camponês egíp­
cio antes do início da dinastia ptolomaica. No que se refere ao Egipto greco-romano, veja-se M.
Rostovzeff, The Social end Economic History o f the Hellenistic World, 3 vols., Oxford, 1967,
e The Social and Economic History o f the Roman Empire, 2 vols., Oxford, 1957^: são obras
fundamentais, com amplas referências às fontes, a artigos e a livros sobre o mesmo assunto e têm
excelentes índices. G. L. Dykmans, Histoire économique et sociale de l ’ancienne Egypte, 3 vols.,
Paris, 1936-1937, trata de agricultura, criação de gado, pesca, caça e, com grande acuidade, da
condição do camponês, fornecendo uma vasta série de referências às fontes e às publicações
acerca do mesmo assunto, incluindo a data da publicação.
No que se refere aos relevos dos túmulos e às pinturas que ilustram as actividades rurais, são de assi­
nalar os livros seguintes de L. Klebs: Die Reliefs des Alten Reiches, Heidelberg, 1915; Die Reliefs
und Malerein des Mittleren Reiches, Heidelberg, 1922; Die Reliefs und Malerein des Neuen Rei­
ches, Heidelberg, 1934; P. Montet, Les scènes de la vie privée dans les tombeaux égyptiens de
l ’A ncien Empire, Strasbourg-Paris, 1925; J. Vandier, Manuel d ’archéologie égyptienne, vols, v e
VI, Paris, 1969, 1978; Y. Harpur, Decoration in Egyptian Tombs o f the Old Kingdom, London-
-New York, 1987.
Pode aprender-se muito acerca dos camponeses egípcios da Antiguidade estudando os seus descenden­
tes da Idade Média e dos tempos modernos. Os trabalhos notáveis de escritores árabes menciona­
dos na p. 16 estão disponíveis em francês: Abd el-Latif, Relation de TEgypte, Paris, 1810, tradu­
zido e anotado, com lúcida erudição, por Silvestre de Sacy; Taqi ed-Din Maqrizi, Description
topographique et historique de TEgypte, Cairo-Paris, 1895-1920, traduzido por U. Bouriant.
A monumental Description de TEgypte contém o resultado das observações e das pesquisas dos
eruditos que acompanhavam as expedições militares de Napoleão ao Egipto: a segunda parte (II,
Etat Moderne) contém numerosas monografias de grande importância para o nosso estudo, de
que citamos apenas Mémoire sur l ’agriculture, de P. S. Girard e Essai sur les Moeurs des Habi­
tants, de D. Chabrol. A primeira está incluída em ii, vol. i, n. 17, pp. 491-711; a segunda está
incluída em ii, vol. ii, n. 6, pp. 363-524 da edição original (Paris, 1809 e 1812, respectivamente).
Na 2 edição, a edição Panckoucke, a monografia de Girard está incluída no vol. xvii, pp. 1-436,
e a de Chabrol está incluída no vol. xviii, pp. 1-340 (Paris, 1824 c 1826). Acerca dos fellahin do
nosso século, vide W, S. Blackman, The Fellahin o f Upper Egypt, London, 1927, com um capí­
tulo intitulado «Ancient Egypt Analogies»; H. Ayrout, Fellahs d ’Egypte, Cairo, 1952 e N. H.
Henein, Mari Girgis, village d ’Haute Egypte, Cairo, 1988.

265
Acerca dos gritos, dos chamamentos e das palavras dos camponeses durante o trabalho nos campos,
veja-se o artigo de W. Guglielmi, Reden und Rufen, in W. Helck e W. Westendorf (direcção de),
Lexikon der Ägyptologie, V, Wiesbaden 1983, col. 193-195, com amplas referências. As conver­
sas e as cantigas citadas nas pp. 20, 23 e 24 e foram, na sua maioria, extraídas de «The Sacará
Expedition», The Mastaba o f Merekura, II, Chicago, 1938, 168-170 e, em especial, de E LI. Grif­
fith, The Tomb o f Paheri (juntamente com Naville, Ahnas el Medineh, London, 1894), tab. 3.
Acerca da Sátira dos Ofícios veja-se E. Bresciani, Letteratura e poesia dell’A ntico Egitto, Torino,
1969, pp. 151-157 e M. Lichtheim, Ancient Egyptian Literature, I, Berkeley-Los Angeles, 1973,
pp. 184-192. A advertência do pedagogo, citada na p. 26, resulta da junção de três textos parale­
los, cfr. R. A. Caminos, Late-Egyptian Miscellanies, London, 1954, pp. 51, 247, 315-116 e Bres­
ciani, op. cit., p. 307. A descrição dos tormentos do camponês feita pelo mestre-escola foi
extraída de Caminos, op. cit., pp. 389-390 e de Lichtheim, op. cit., II, p. 170.
A carta escrita pelo feitor de Amenemope foi extraída de Caminos, op. cit., pp. 307-308; o relatório
de Amenemhel acerca do seu governo foi extraído de M. Lichtheim, Ancient Egyptian Autobio­
graphies Chiefly o f the Middle Kingdom, Freiburg-Göttingen, 1988, pp. 138-139; as declarações
de benemerência foram extraídas de Bresciani, op. cit., p. 131; as fanfarronices de um ceifeiro
idoso foram extraídas de G. Lefevre, Le Tombeau de Pétosiris, III, Cairo, 1923, tabs. 13 (ao alto,
ao centro) e 14 (ao alto, à esquerda); J.-M. Krutchen, Le Decret de Horemheb, Bruxelles, 1981,
pp. 193-201 fornece uma boa tradução.
A anachòresis foi objecto de inúmeros estudos de que referimos apenas três: C. Préaux, L'économie
royale des Lagides, Bruxelles, 1939, pp. 500-502, 613, art. «Grève»; Rostovzeff, The Social and
Economie History o f the Roman Empire, cit., II, p. 758, cap. «Anachoresis»; bibliografia suple­
mentar in R. A. Caminos, A Taie o f Woe, Oxford, 1977, p. 63, nota 1.
Para uma breve panorâmica das questões médicas, veja-se W. R. Dawson, Magician and Leech, Lon­
don, 1929, capítulo vi: «Ancient Egyptian Medicine» e capítulo vii: «Drugs and Doses»; e tam­
bém G. Lefebvre, Essai sur la médecine égyptienne de l'époque pharaonique, Paris, 1956. Quem
quiser aprofundar o assunto deverá consultar a grande quantidade de referências contidas nos
artigos «Heilkunde und Heilmethoden» e «Heilmittel», de W. Westendorff, no já citado Lexikon
der Ägyptologie, II, col. 1097-1101.
O relato das desgraças de uma comunidade egípcia mal governada, feito por Wermai, foi extraído de
Caminos, A Tale o f Woe, cit., pp. 70-72; quanto às citações extraídas das Am m onizioni di un
saggio egiziano, veja-se Bresciani, op. cit., pp. 65-82; Lichtheim, Ancient Egyptian Autobiogra­
phies cit., pp. 149-163.

Capítulo II
S. Allam, Das Verfahrensrecht in der altägyptischen Arbeitsiedlung von Deir el-Médineh, Tübingen,
1973.
E. S. Bogoslovsky, «Hundred Egyptian Draughtsmen», in Zeitschrift fü r Ägyptische Sprache, 107,
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273
IN D IC E

INTRODUÇÃO, p o r S erg io D o n a d o n i .................................................................... 7

I. O CAMPONÊS, p o r R ic a r d o A . C a m i n o s ................................................... 13

II. O ARTESÃO, p o r D o m in iq u e V a lb e lle ......................................................... 37


Introdução........................................................................................................... 39
Os homens e a sociedade.................................................................................. 41
O Antigo Império............................................................................................... 42
O Médio Im pério............................................................................................... 44
O Novo Império................................................................................................. 46
Os vários ofícios artesanais .............................................................................. 49
A expressão individual na vida quotidiana..................................................... 53
A expressão artística.......................................................................................... 56

III. O ESCRIBA, p o r A le s s a n d r o R o c c a t i ............................................................. 59

IV. O FUNCIONÃRIO, p o r O leg B e r l e v ............................................................... 79


A história de J o s é ............................................................................................. 81
O manual da hierarquia.................................................................................... 83
O princípio de Hecateu...................................................................................... 83
Os funcionários-deuses.................................................................•................... 87
A instrução......................................................................................................... 89
A crise da classe dos funcionários ................................................................... 93
A categoria dos funcionários............................................................................ 97
A manutenção dos funcionários....................................................................... 104
Os funcionários e a cultura do Egipto............................................................. 105

V. O SACERDOTE, p o r S e rg io P e r n ig o tti ........................................................... 107

VI. O SOLDADO, p o r S k e ih k ‘Ib a d a a l - N u b i ................................................... 133

VII. O ESCRAVO, p o r A n to n i o L o p r i e r o ............................................................ 161


Introdução........................................................................................................... 163
O escravo e a literatura...................................................................................... 165
O Antigo Império............................................................................................... 168
O Médio Império............................................................................................... 171
O Novo Império................................................................................................. 175
A época ta rd ia ................................................................................................... 184
Conclusão ........................................................................................................... 186

VIII. O ESTRANGEIRO, p o r E d d a B r e s c ia n i ....................................................... 189

IX. O MORTO, p o r S e rg io D o n a d o n i ................................................................... 215

X. O REI, p o r E r ik H o r n u n g ................................................................................ 237

ESQUEMA CRONOLÓGICO.................................................................................... 263

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 265

275

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