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Samba, disciplina e identidade

Emilio Gozze Pagotto*

1. Introdução

Segundo Hermano Vianna[1], um dos "mistérios" que cercam o samba foi ter passado de música de
redutos extremamente pobres da cidade do Rio de Janeiro a gênero musical nacional, num período de tempo
muito curto. De fato, ainda está por explicar o que teria levado a essa rápida promoção, embora, a partir do
texto de Vianna se possa formular a hipótese de que o projeto nacionalista dos anos trinta encontrou no
samba o grande veículo de significação de identidade, levando os meios de comunicação a promoverem o
gênero, que assim passou a definir o centro da nacionalidade musical, passando os demais gêneros (com
exceção talvez do choro e da marchinha) à periferia da nacionalidade, tomados por regionais (é o caso dos
ritmos nordestinos, gaúchos, mineiros, etc.). Da leitura de Vianna, pode-se inferir que um dos fatores que
explicaria essa disseminação teriam sido os laços entre as elites e as camadas mais pobres da população, os
quais teriam sido mais fortes e mais freqüentes do que normalmente se supõe no Brasil, mesmo antes do
advento do samba. Segundo ainda o mesmo autor, não teria o samba nascido marginalizado e perseguido,
cultivado em redutos isolados, durante muito tempo, para depois ser descoberto pela elite e guindado à
posição de música nacional. Desde cedo o samba já teria interagido com o mundo da elite, tendo-se criado a
sua mística "genuína" posteriormente.

O samba consagrado como gênero nacional de que trata Vianna vem a ser o que Carlos Sandroni[2]
chamou de "paradigma do Estácio", ou seja, o samba nascido entre os fundadores da primeira escola de
samba – a Deixa Falar – nas cercanias do bairro do Estácio, no Rio de Janeiro. Como aponta Sérgio Cabral,
essa nova forma de manifestação artística se espalha pelos morros do Rio de Janeiro com uma velocidade
espantosa, juntamente com a instituição escola de samba. Assim, não só o samba se torna o gênero nacional,
como também passa a ser fervorosamente cultivado nos morros e subúrbios, primeiramente do Rio de Janeiro
e posteriormente de outras cidades do país, juntamente com a instituição da escola de samba.

A pergunta que esse trabalho faz é justamente essa: como explicar que o novo gênero se espalha de
maneira tão rápida nos morros, a ponto de se tornar, num curto espaço de tempo, uma tradição equiparável
àquelas que se costuma rotular de folclóricas?

Um pouco de história

Quando se fala do surgimento do samba, à parte a sua origem rural na forma de diversos ritmos
encontrados em várias regiões do país, à parte a própria etimologia da palavra, que a ligaria a rituais de
fertilidade africanos, temos que ter em mente o seu aparecimento como gênero de música popular, aqui
entendido como em Sandroni[3] , ou seja, como produto de consumo nas sociedades urbanas modernas.
Entre outras características, isto tem como conseqüência a constituição da função de autoria e todas as
conseqüências que daí advêm: direitos autorais, comercialização, etc.

É como produto de consumo que o samba se torna o gênero nacional destacado por Vianna. Como tal, -

e aqui sigo Sandroni[4] – tem dois "nascimentos": o primeiro, ligado à casa da Tia Ciata, e às manifestações
do samba de roda do Recôncavo baiano transplantadas para a capital federal e espertamente lançadas por
Donga e companheiros para o mercado de consumo do carnaval carioca (embora tais composições – e aqui
destacamos "Pelo Telefone"- , originalmente tivessem características que as colocariam como mais adequados
a ambientes fechados). Nesse primeiro nascimento, o que temos é o percurso segundo o qual uma
manifestação cultural produzida no âmbito que Sandroni chama de folclórico – ou seja, desvinculada dos
meios de comercialização de cultura de massa – é guindada ao plano do popular – entendido aqui como
manifestação formatada para consumo. A análise que Sandroni[5] faz da estrutura do samba "Pelo Telefone"
é, nesse sentido, bastante elucidativa. Nela, podemos ver como os "autores" – Donga e Mauro de Almeida -
buscam "retocar" a canção a fim de que ela tenha o formato adequado para consumo.

A segunda filiação – à qual Sandroni[6] atribui a designação de "paradigma do Estácio" – está ligada ao
surgimento da própria escola de samba. Esta segunda "invenção" do samba se deu na região do bairro do
Estácio, no Rio de Janeiro, entre sambistas que fundaram o que é reconhecido como a primeira escola de
samba – a "Deixa Falar" (mais à frente vamos discutir o próprio rótulo escola de samba e o fato de que a
"Deixa Falar" nem sempre foi considerada escola de samba).

Foi este segundo paradigma que foi alçado à condição de gênero nacional e é a sua criação que nos
interessa. Mais propriamente, o que gostaria de destacar é o processo por meio do qual, num curto espaço de
tempo, "o samba criado pelos compositores do Estácio de Sá espalhou-se pelo Rio de Janeiro com uma
velocidade que deve ter surpreendido até os compositores do bairro" , nas palavras de Sérgio Cabral (cf.
Cabral, 1996: 60). É esta velocidade que me interessa neste trabalho. O que explicaria que num período de
tempo tão curto o samba – e a escola de samba – se espalhasse com tanta rapidez entre a população pobre
do Rio de Janeiro (e de outros estados)? Senão vejamos: a partir das informações contidas em Sérgio
Cabral[7], temos uma cronologia das escolas de samba que é bem ilustrativa do que se quer dizer aqui:

em 1928 – 12 de agosto é fundada a primeira "escola de samba" e é feito o lançamento da primeira gravação
do novo estilo, por Francisco Alves (por sinal, o samba "A malandragem")
em 1929 – a Mangueira é fundada – em abril, 28
em 1932 – é promovido pelo jornal Mundo Sportivo o primeiro desfile das escolas de samba
em 1934 – fundação da União das Escolas de Samba – 28 filiadas
em 1935 – já com subvenção oficial da prefeitura do Rio de Janeiro – com as escolas desfilando sob o tema "A
Vitória do Samba", para celebrar o primeiro concurso realizado sob o patrocínio oficial.

Vejamos: num período de seis anos a instituição das escolas de samba já contava com uma entidade
agregadora – a União das Escolas de Samba - e já se realizavam concursos patrocinados pelo poder público. O
mais interessante é que os inúmeros testemunhos colhidos por Sérgio Cabral demonstram que, uma vez
inventado, o novo gênero foi levado às diversas comunidades, obviamente a partir das inúmeras redes sociais
de contato entre a população que habitava, em especial, os morros cariocas. Por exemplo:

O compositor Carlos Cachaça , considerado menestrel da Mangueira, que nasceu perto do


morro no dia 3 de agosto de 1902, (...) revelou que, na sua infância, também não havia samba
por lá, embora houvesse carnaval. Foi testemunha da primeira vez que em que se cantou um
samba na Mangueira. E quem cantou nem pertencia à comunidade: foi Elói Antero Dias, o Mano
Elói, um personagem muito importante da negritude carioca[8]

Paralelamente, o gênero se populariza pelo rádio, sendo veiculado também em discos, mas é
importante dizer que as primeiras gravações ainda não traziam o gênero plenamente, já que não havia, por
exemplo, instrumentos de percussão nas gravações (a primeira contando com percussão do samba de rua,
como se sabe, foi Na Pavuna). Esta é, então a questão: o que explica um espalhamento de um novo gênero
musical e a agremiação no qual ele é praticado, de maneira tão rápida?

Para responder a essa pergunta, penso que não basta somente nos atermos à rede de contato entre as
comunidades. Ela é certamente o veículo, mas não é, por si, o motor desse espalhamento. Ao mesmo tempo,
essa é uma questão diferente daquela levantada por Vianna. Naquele trabalho, trata-se de explicitar o pacto
entre elite e povo, que explicaria, segundo Vianna, a apropriação do samba, que é guindado à posição de
ícone nacional. Ora, seguramente não é a relação entre elite e povo, apontada por Vianna, que acarretará o
espalhamento do samba nas camadas mais pobres da população das cidades. Ele está em outro lugar.
Paralelamente, penso haver uma relação entre o espalhamento do novo gênero e a instituição das escolas de
samba com a transformação dele no gênero nacional por excelência. A hipótese com a qual trabalharei é a de
que se trata de dois processos diferentes, inter-relacionados. No caso da transformação do samba no gênero
nacional, estão em jogo as forças poderosas de identidade nacional e a própria relação entre as elites e as
classes mais pobres, que é, como demonstrou Vianna bastante antiga no Brasil. No caso do espalhamento dos
sambas pelos morros, penso que esteja em jogo uma reação a esse processo identitário mais amplo, uma
articulação das camadas mais pobres numa reação à estratificação social, à pressão exercida de cima para
baixo. O samba seria, deste ângulo, a primeira grande reação da antiga escravatura, encontrando finalmente
seu caminho de expressão e de organização.

Assim, podemos seguir Vianna e dizer que o samba não nasce perseguido, para depois ser guindado à
categoria de música nacional, supra regional e supra social , mas que, ao contrário, nasce já como produto de
música de consumo. Porém, isso não implica que não haja um outro processo em jogo, por meio do qual o
samba e suas formas de organização e de execução se tornam um veículo de expressão e de identidade das
camadas mais pobres, especialmente aquelas oriundas dos antigos contingentes de escravos. Teríamos assim
um caso muito curioso, no qual uma determinada forma artística de expressão nasce, não no plano do
folclórico, mas já como produto da sociedade de consumo, mas serve de expressão de uma parcela
significativa da sociedade. Aqui podemos ver a grande singularidade do samba: nasce para a sociedade de
consumo e se enraíza nos grupos que o inventam como traço de identidade. Veja que no caso de gêneros
como o da música regionalista, o que se dá é o contrário – um determinado gênero cultivado no plano
folclórico é guindado à condição de ícone de identidade pelas elites, e isto reforça eventualmente a sua
atuação no plano folclórico. No caso do samba, trata-se de um gênero nascido no âmbito da prática urbana,
imediatamente colocado como produto de consumo, mas que se enraiza, desce ao degrau do folclórico,
transformando-se em elemento de identidade. A partir daí, teremos uma tradição que é evocada até os dias
de hoje e que é colocada em xeque por Vianna – ou seja – haveria um samba "puro", "essencial" que seria
necessário preservar dos ataques da modernização e da indústria cultural? Ora, ele e outros mostram que o
samba já nasce como produto, logo tal tipo de invocação resultaria sem sentido. No entanto, é preciso
destacar o caso singular do samba: a invenção do gênero datada, circunscrita historicamente, vai representar
a criação de um ícone de identidade que é, como tal, elevado posteriormente à condição de bem
transcendental. Veja que o primeiro desfile subvencionado, de 35 já fala na vitória do samba. Do que se está
falando de fato?

O novo samba e seus inventores

Já é lugar comum atribuir a formação das favelas no Rio de Janeiro a dois fatores: uma forte migração
de populações de baixa renda de vários pontos do estado e do país para a capital e o processo de
reurbanização da cidade, iniciado pelo prefeito Pereira Passos, que retirou os moradores dos cortiços da cidade
velha, obrigando-os a ocupar os morros. Nessas localidades, conservam-se práticas culturais muito ligadas ao
universo rural brasileiro, como o jongo, as danças de umbigada, o candomblé. Ao mesmo tempo, esta é uma
população procurando adaptar-se ao modus operandi das cidades, isto é, emprego, salário, obrigações, etc.

Aqui temos um fenômeno geracional e social. Quem vai desenvolver o samba moderno são os jovens
dessa camada muito pobre da população: a primeira geração criada nesse ambiente. Ou seja, os morros são
ocupados pelos pais dessa geração, que ou nasce nos morros, ou para lá se muda ainda muito criança. Temos
assim uma juventude negra que não viveu a escravatura, crescida no ambiente urbano, mas ao mesmo
tempo excluída dele, que ainda tem contato com uma série de práticas de origem africanas ligadas ao
universo rural brasileiro.

O que gostaria de argumentar é que essa geração tem nos seus pais os praticantes de música e dança
no âmbito do folclórico. E vai ser essa geração que vai inventar uma nova música popular (no sentido de
música de consumo e autoral). A grande peculiaridade do samba moderno é que:
1) já nasce como produto de consumo (ou seja, rapidamente ganha o disco e o rádio, partindo daí para se
tornar gênero nacional);

2) nasce como elemento do carnaval, isto é, como possibilidade de integrar-se no carnaval;


3) passa a marcar uma classe, uma geração, um povo geograficamente circunscrito e, por conseguinte,
retorna a alguns de seus aspectos "folclóricos" que lhe deram origem.

Vejamos isso musicalmente:

1) Ismael Silva admite em mais de um lugar que a nova batida foi criada para facilitar o carnaval de rua,
sendo mais propícia à dança individual em espaços abertos e ao desfile em linha reta – daí a crítica que faz
Donga, chamando-a de marcha[9];

2) Os sambas de desfile de escola tinham todos somente a primeira parte, sendo a(s) segunda(s)
improvisada(s) no decorrer do desfile. Esta prática levaria também a que os divulgadores do samba como
produto incentivassem as parcerias dos artistas "de morro" com compositores profissionais, nas quais os
primeiros entravam com a primeira parte e os outros com a segunda. É isso que explica, em parte, a grande
produção de Noel Rosa, muito procurado para essa tarefa;

3) Inicialmente, o novo samba era pensado para acompanhamento de percussão, o que em parte se explica,
seja pela falta de recursos fianceiros de seus praticantes, seja pela sua falta de formação musical, seja pela
proximidade com as práticas folclóricas.

Ora, o que temos aqui? Temos uma prática musical híbrida: de um lado, guarda muitas semelhanças
com o nível folclórico: ausência de acompanhamento musical, obra não terminada, contando sempre com a
participação da assistência; por conseguinte, obra com mais de uma assinatura. Por outro lado, os refrões já
"têm dono", têm autoria e vão encontrar no mundo da produção musical o seu formato final. Assim, esse tipo
de música, que ao mesmo tempo serve aos propósitos do mercado, ainda tem a sua forma atrelada a práticas
folclóricas, que permitem, portanto, a sua utilização em ambientes de ritualização e socialização. Dessa forma,
diferentemente do samba anterior que era uma apropriação de motivos folclóricos já existentes e trazidos do
interior do Brasil, temos aqui a invenção de uma tradição – obviamente não a partir do vazio, mas calcada nas
práticas dos batuques diversos – contando, porém, com a interação com a sociedade de massa, os meios de
produção capitalista.

Disciplina e identidade

Do depoimento de Ismael Silva a Sérgio Cabral, no livro "A história das escolas de samba", fica bem
claro que o novo ritmo acabou tendo uma função importante que foi a de propiciar aos integrantes das
camadas mais pobres participar dos desfiles de carnaval. Por volta dos anos vinte, o carnaval contava com
bailes particulares e o desfile de ranchos e cordões, que contava com subvenção oficial, regras de concurso,
etc.

Ao mesmo tempo, como é sabido, havia uma certa perseguição a rodas de malandros, em função do
fato de que costumavam dar margem a práticas violentas, como é o caso da batucada. Pondo ordem na casa:
se costuma dizer que o samba sofreu no princípio muita perseguição. Como argumenta Vianna[10], o samba
não surgiu completamente segregado e nem teria havido um isolamento completo entre as elites e as práticas
populares. Por conseguinte, não seria o caso de dizer – seguindo Vianna – que o samba foi objeto de grande
perseguição. Ou seja, se de um lado da mitificação do samba se costuma levar a extremos a sua suposta
perseguição, de outro Vianna deixa de lado, a meu ver, um aspecto importante da história: o fato de que os
inventores do samba do Estácio – Ismael e sua turma – não eram exatamente parte integrante da classe
trabalhadora. Constituíam uma legião de marginalizados sociais, frutos da grande migração do final do século
XIX e da falta de uma política integradora das pessoas oriundas do regime escravocrata. Assim, se não se
pode falar de uma perseguição sistemática ao samba, no sentido de perseguir uma determinada forma de
música, também não é menos verdade que os encontros de sambistas vinham permeados de outras práticas
que eram coibidas – com ou sem preconceito – pela polícia do estado[11].
Sandroni[12] faz um interessante levantamento do destino que teve a geração que inventou o samba,
chamando a atenção para o fim precoce que muitos tiveram:
Canuto (parceiro de Noel Rosa em "Esquecer e Perdoar") morre tuberculoso em 1932, com menos de trinta
anos;
Antenor Gargalhada – morre tuberculoso em 1941
Ernani Silva – autor de "Primeiro Amor" – morre aos 28 anos, atirado de um morro.
Gradim – (autor de "Nem assim") morre tuberculoso
Nilton Bastos – grande parceiro de Ismael Silva – morre tuberculoso aos 32 anos
Rubem Barcelos – citado como o primeiro a fazer sambas no novo estilo – morre tuberculoso aos 23 anos.
Mano Edgar – assassinado aos 31 anos em briga de jogo
Brancura – morre aos 27 anos, com insanidade mental
Baiaco – morre aos 22 anos de úlcera

Esta é um dos traços diferenciadores entre o "primeiro" e o "segundo" tipo de samba para os quais
Sandroni vai chamar a atenção: enquanto os criadores do estilo antigo de samba, mais próximo do maxixe, já
eram músicos de carreira consistente, os criadores do novo estilo pertenciam a uma geração que vivia no
limite entre a normalidade social e a marginalidade. A exceção do primeiro estilo seria Sinhô, que morreu aos
42 anos tuberculoso; do estilo novo, podemos apontar Ismael Silva, que, a despeito das adversidades que
viveu, alcançou idade mais avançada.

Trata-se, portanto de uma geração de jovens, nascidos no começo do século, até os anos 10, filha de
migrantes em sua maioria negros, que vêm de várias partes do país tentar a vida na capital. Encontram uma
república tentando "civilizar" o país, transformar, ao menos sua capital, numa reprodução das capitais
européias. Note que essa geração que começa a ocupar os morros compartilha o período com a belle époque,
com o saneamento do Rio de Janeiro, com o Parnasianismo.

Assim, a criação daquela que é considerada a primeira escola de samba a "Deixa Falar" buscava antes
de tudo constituir um lugar possível de inserção de pessoas daquela parte da sociedade no carnaval
institucionalizado. E o carnaval era algo bem disciplinado desde o começo do século. A hipótese que gostaria
de defender é a de que o processo disciplinador do estado terminou por gerar um forte sentimento de
identidade, tanto das escolas individualmente, quanto do samba e dos seus praticantes, no geral. Assim, a
primeira "escola de samba", nas palavras de Sérgio Cabral:

...além de reunir os jovens e revolucionários compositores do bairro, pretendia também


melhorar as relações dos sambistas com a polícia, já que, sem a autorização policial, não tinham
direito de promover as rodas de samba no Largo do Estácio e muito menos de desfilar no
carnaval. Por isso, trataram logo de legalizar a situação do grupo. Honra seja feita, a
perseguição policial so samba já não era tão violenta. Perseguia-se o jovem negro, como antes,
durante e depois do Deixa Falar, uma das facetas mais fortes do racismo brasileiro. Mas
raramente por cantar, dançar ou tocar samba[13].

O carnaval, nas décadas de 10 e 20 era bastante disciplinado no Rio de Janeiro: as agremiações


contavam com apoio oficial, promoviam-se concursos entre os blocos e os ranchos. Não havia ainda, como
assinalam vários pesquisadores, uma música típica de carnaval, cantando-se todo tipo de música nesses
desfiles. Assim, o "Deixa Falar" se organiza como um bloco, para, dois ou três carnavais depois, se inscrever
no concurso de ranchos, no qual não obteve muito sucesso. Pouco depois, desapareceu como agremiação. No
seu rastro, no entanto, se organizaram dezenas de outros blocos, que rapidamente tomaram o título de
"escola de samba", tendo sido realizado, como já vimos, seu primeiro concurso em 1932 (cf. mais à frente
discussão sobre o rótulo "escola de samba").

Em primeiro lugar, por que era necessário organizar um bloco? Como o próprio Sérgio Cabral frisou, para
garantir a inserção no carnaval como um grupo. Assim, esses jovens estavam inventando um novo gênero
musical – uma batida nova adequada ao desfile na rua – e, em função das exigências do Estado, fundam
também uma nova maneira de brincar o carnaval – a escola de samba.

Em segundo lugar, o que significava organizar um bloco? Implicava ter uma ata de fundação, um
organograma de cargos e funções, um sistema de escolha de dirigentes, um livro caixa, enfim, todos os
requisitos formais que tornam possível uma instituição existir no mundo oficial. Além disso, implicava lidar
com a autoridade policial competente, que liberaria, ou não, a presença nas ruas. Se levarmos em
consideração que esta geração que inventou o samba é constituída de jovens negros à margem do mercado
de trabalho formal, às vezes envolvida em pequenas contravenções, morando precariamente nos morros,
ainda na sua fase inicial de ocupação, temos uma situação inusitada: de praticamente todos os aspectos da
vida social institucionalizada, esses jovens se encontram apartados. No entanto, para se integrarem no
carnaval – em princípio a festa da transgressão – é preciso que se organizem na forma da lei.

Em terceiro lugar, mas não menos importante, organizar um bloco – e logo em seguida uma escola de
samba - vai implicar pensar a própria organização em face do carnaval. Ou seja, implica responder a pergunta
como: quem somos?, que cores nos representam?, com que música desfilaremos?, como nos
apresentaremos? Essas questões já estavam presentes no carnaval, especialmente se considerarmos os
ranchos, agremiações trazidas, ao que parece, da Bahia, inspiradas nos ternos de folias de reis e que foram,
até os anos 40 a principal atração do carnaval carioca. Foi na oposição com os demais valores do carnaval que
as escolas de samba se constituíram como algo à parte, e esse é um movimento muito curioso, ao qual não se
tem dado muita importância.

Há uma história que ilustra muito bem o que estamos tentando demonstrar aqui. Tomo-a emprestado de
Sérgio Cabral:

No dia 1o. de maio de 1934, ao receber os dirigentes da Escola de Samba Vai como Pode
que pretendiam renovar a licença de funcionamento, o delegado de polícia Dulcídio Gonçalves
fez uma proposta inesperada: a mudança do nome da escola. Alegou que não ficava bem uma
grande escola de samba ostentar um nome tão chulo como Vai Como Pode. Paulo da Portela,
embora nunca fosse chamado de Paulo da Vai Como Pode, tentou defender o antigo nome,
segundo ele sugerido pela própria polícia. O delegado, porém, sustentou que não renovaria a
licença de nenhuma escola chamada Vai Como Pode. E sugeriu um nome que, segundo ele,
tinha a pompa adequada para uma escola de samba daquele nível: Grêmio Recreativo Escola de
Samba Portela. Diante das circunstâncias, a proposta foi aceita.[14]

Não estou querendo insinuar que a identidade das escolas de samba foi um processo que veio de cima para
baixo. O que gostaria de enfatizar é que um efeito colateral da força disciplinadora do Estado teria sido a
constituição de uma identidade coletiva que talvez não tivesse se constituído tão rápido e de maneira tão
explícita, não fossem as pressões do estado no sentido de disciplinar a festa popular, os ajuntamentos, a folia.
Não era uma folia desregrada: não só havia condições para participar, como a própria festa se transformava
em um concurso e como tal necessitava de regras.

Os concursos faziam parte do carnaval dos ranchos. O Deixa Falar começou como um bloco que fazia
uma música diferente para, logo em seguida, postular um lugar no mundo dos ranchos, onde não foi bem
sucedido, porque, obviamente, não contava com a estrutura, organização e dinheiro que as grandes
agremiações do gênero contavam. Os blocos fundados na esteira do Deixa Falar rapidamente passaram a se
auto-intitular Escolas de Samba e, em 1932, tiveram seu primeiro concurso – patrocinado pelo jornal Mundo
Sportivo -, em 1934 organizaram a União das Escolas de Samba – com 28 escolas – e em 1935 realizaram o
primeiro carnaval oficial, já com subvenção do governo. Nesse carnaval, todas as escolas desfilaram com o
tema "A Vitória do Samba".[15]

Que papel teriam tido os concursos entre as escolas? Penso que o principal papel foi operarem também
um gesto de identidade e de mitificação dessa identidade. Assim, cada escola de samba contava, nessa época,
com duzentos, trezentos componentes (o que hoje em dia é o que vai só na bateria). Eles desciam o morro
para participar de uma disputa. Essa arena moderna pode ser vista de diversas maneiras. Em primeiro lugar,
trata-se de exibir-se para outrem que detém o poder do julgamento. O interessante é que, desde muito cedo,
esse outro não provém dos mesmos extratos sociais daqueles que estão sendo julgados. Em segundo lugar, a
arena é o não lugar, é a cidade por onde se passa, mas não se mora, não se compra, não se come, não se
dorme. E nessa arena, diante dos olhos do que disciplina, os sambistas se digladiam para que se diga: quem é
o melhor de nós? O interessante é que essa disputa ritualizada não impede em absoluto a convivência dos
sambistas ao longo do ano. Como se sabe – e os depoimentos no livro de Sérgio Cabral são bem claros a esse
respeito – sempre houve uma grande circulação entre as escolas. Mas a disputa motiva, a disputa gera a
indústria, o labor, a identidade. Num primeiro momento, no plano local: eu = mangueirense// eu =
portelense. Num segundo momento: eu=sambista.

Este segundo movimento decorre da própria natureza da disputa: é entre iguais. Iguais oficializados: os
membros da União das Escolas de Samba. É este eu que celebra a "Vitória do Samba" no carnaval oficial de
1935. É interessante que, ao evitar o carnaval dos ranchos, os sambistas inventavam a própria arena. Então,
na tensão com a disciplina do estado, essas forças submetidas respondem reorganizando o próprio estado.

Uma das maneiras como se pode ver a constituição dessa nova arena é a maneira como a designação
daquelas agremiações vai aparecendo. No desfile de 1933, o regulamento divulgado pelo jornal Correio da
Manhã apresenta, como salienta Cabral (1996) a designação escola de samba entre aspas:

1. O desfile das "escolas de samba" começará às nove horas da noite e terminará à uma (...)

2. As "escolas de samba" que demandarem da Praça da República subirão a Rua Senador Eusébio...[16]

Para o mesmo desfile de 1933 a Mangueira entregou aos jornais uma descrição do enredo, publicada
no jornal Diário Carioca e elaborada, segundo Cabral pelo compositor Carlos Cachaça, que começa com outra
designação: “O Bloco Carnavalesco Estação Primeira, com sede à rua Saião Lobato, no Morro de Mangueira
apresenta ao povo carioca o seu modesto enredo, que representa Uma segunda-feira no Bonfim, na Ribeira"
[17]

Como instituição oficial que tem a licença de brincar o carnaval, a Mangueira é um bloco carnavalesco.
O enunciador-sambista tem o cuidado de circunscrever-se sob o rótulo oficial, ao dirigir-se a um órgão de
imprensa. No entanto, no mesmo ano, segundo nos informa o mesmo pesquisador – Sérgio Cabral – já se
realizava a primeira reunião para a criação da União das Escolas de Samba (que só se dará, de fato, em
1934). Diz o documento: “Presença das pessoas representantes das escolas de samba à primeira reunião da
Diretoria da União das Escolas de Samba, realizada em 15 de janeiro de 1933, à Rua do Rosário,34,
sobrado”[18]

Ao participar do carnaval oficial, aqueles agrupamentos reclamam um lugar diferenciado. Assim, o


rótulo escola de samba, no princípio apenas uma metáfora auto-elogiosa, se transforma na designação que
cumprirá o papel de circunscrever um território próprio. Veja que inicialmente a imprensa apõe aspas,
assinalando a estranheza de especificidade. Ao mesmo tempo, a designação bloco carnavalesco ainda circula,
mesmo quando o enunciador é o sambista, porém fazendo uma clara referência ao seu estatuto "oficial", para
logo em seguida ser assumida como um nome e um referente à parte escola de samba. Ora, esse
movimento de identidade pode ser percebido pelos próprios estatutos e regulamentos. Neles, da mesma
maneira que nos textos legais em geral, se busca definir um referente reclamado. Um eu no carnaval oficial,
que não é um rancho, não é um bloco, é um outro.

Por exemplo, no carnaval de 1933, o concurso das escolas de samba organizado pelo Jornal O Globo
trazia, no seu regulamento, “pelo menos dois dispositivos que permaneceriam para sempre nos desfiles das
escolas de samba: a proibição do uso de instrumentos de sopro (com a observação de que seriam aceitos os
instrumentos de corda) e a obrigação de cada escola apresentar baianas (ainda não se falava em "alas")”[19]
Os mesmos dispositivos apareceriam nos regulamentos da União das Escolas de Samba. Por que tais
dispositivos? A proibição dos instrumentos de sopro teria a ver justamente com o desfile dos ranchos. Teria
sido uma maneira de diferenciar o desfile dos ranchos do desfile das escolas de samba. De fato, como
Sandroni[20] salienta (embora sem concordar), uma das características musicais normalmente atribuídas ao
novo estilo de samba, em oposição ao samba "amaxixado", foi o fato de contar com maior apoio na percussão
do que em instrumentos harmônicos. Musicalmente, o samba do Estácio se teria constituído sobre uma base
percussiva, até porque seus inventores não teriam tido acesso à educação musical formal e nem teriam
recursos para a aquisição de instrumentos musicais. A prática musical do samba remeteria, assim, aos seus
ancestrais cultivados em várias regiões do país: o samba em roda, com versos de improviso acompanhados
de instrumentos percussivos.

Ora, marcar isso no regulamento das escolas de samba é delimitar um território novo de disputa,
inserindo-se no carnaval como uma instituição à parte. Ao mesmo tempo, a obrigatoriedade das baianas já é
uma herança dos ranchos. A figura da baiana foi muito popular no Rio de Janeiro dos anos iniciais do século
XX. A comunidade baiana formava, como se sabe, um núcleo relativamente organizado em torno das Tias,
atuando comercialmente na venda de doces e...fantasias de baianas. Assim, aqui temos o lado oposto da
moeda: a aceitação de um modo de operação já constante do carnaval.

Últimas palavras

O objetivo desse ensaio era investigar o rápido espalhamento do samba e das escolas de samba entre
as camadas mais pobres do Rio de Janeiro. Na nossa visão, este foi o resultado de um processo de identidade
no qual uma geração buscava responder à segregação social, ao esforço disciplinador do Estado.

Uma geração filha de ex-escravos sem perspectivas na capital federal, criada nos morros recém-
ocupados, circulando entre jongos e macumbas transplantados do interior do estado ou de outros estados. A
inserção possível é a do carnaval. Mas mesmo esta está disciplinada, com regras e subvenções, concursos. É
uma geração que se elabora, que elabora a sua identidade a partir desse jogo de pressões.

É esse movimento de identidade que explicaria, a meu ver, o rápido espalhamento do samba. Foi uma
linguagem na qual se torna possível codificar anseios, tristezas e o próprio isolamento, a distância e a
proximidade com a cidade. O samba teria representado, assim, uma possibilidade de se dizer. E quanto mais o
Estado pressionava, mais a resposta ficava clara: Nós somos sambistas. Nós somos do morro. Nós somos
negros. Nós somos mangueirenses, etc. Nós somos. O fato de ter-se espalhado tão rapidamente se explicaria
justamente por se tratar de uma geração inteira buscando a cidade. A primeira delas, pós-escravidão.

A pressão do Estado pela organização teria funcionado como um dispositivo detonador, impulsionador
dos processos de identidade. A partir dela, não só se inventa uma nova forma de organização – as escolas de
samba – como também todo o universo mítico ao redor delas. O fato de o primeiro desfile ter como tema "A
Vitória do Samba" já o coloca numa perspectiva histórica, ou seja, há uma luta, há um percurso e o samba
resulta vitorioso. Isso, seis anos depois da criação da primeira escola de samba. Assim, apesar de toda a
modernidade do samba de então (musicalmente, como já dissemos, as gravações da época nem conseguiam
reproduzir o ritmo corretamente), ele já é tomado, numa dimensão heróica, mítica, que se impregnará daí por
diante. No presente de 1935 o samba já é "um passado de glórias". A geração que o inventou – rapazes na
faixa dos vinte anos – já se apresenta como guardiões desse passado imemorial.

[1] VIANNA, Hermano. O mistério do samba, p.28-36.


[2] SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p. 32-37.
[3] Idem, ibidem, p. 84-99.
[4] SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p.98.
[5] Idem, ibidem, p.118–130.
[6] Idem, ibidem, p. 32.
[7] CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba no Rio de Janeiro, 1996.
[8] CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba no Rio de Janeiro, p. 61.
[9] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p.34.
[10] VIANNA, Hermano. O mistério do samba , p.151-152.
[11] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p.41.
[12] SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p. 182-185.
[13] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p. 41.
[14] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro, p. 95.
[15] Idem, ibidem, p. 95 – 101.
[16] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba no Rio de Janeiro, p. 78.
[17] Idem, ibidem, p. 83.
[18] Idem, ibidem, p. 96.
[19] CABRAL, Sérgio. As escolas de samba no Rio de Janeiro, p. 79.
[20] SANDRONI, Carlos. Feitiço decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro, p.137-142.

Referências bibliográficas

CABRAL, Sergio As Escolas de Samba no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Lumiar Editora, 1996.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente – Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio
de Janeiro, Jorge Zahar/ Editora UFRJ, 2001.
VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Editora da UFRJ, 3a. ed, 1999.

* Emílio Gozze Pagotto é compositor, doutor em Lingüística pela UNICAMP e professor de curso de Letras da
Universidade Federal de Santa Catarina onde atua como vice-coordenador do Núcleo de Estudos Poético
Musicais, o NEPOM.

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