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Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, n° 1, junho de 2008, Brasil Boa comida em banquetes como razao para arriscar a vida: o discurso de Sarpédon a Glauco (Iliada X11 310-328) Teodoro Renné Assuncao FALE-UFMG e-mail: teorenno@letras.ufing br RESUME Bref commentaire sur Ie fameux discours de Sarpédon a Glaucus dans I'iade (XII 310-328), visant a esquisser une proposition de lecture matérialiste de ce discours ott V'objectif déclaré de P'acte de squer la vie au combat (dont le présupposé est évidemment la mortal) serait non pas la gloire (le Jéos) qui immortalise, qui ici n’est jamais explicitée, mais la justification de la reconnaissance sociale (et du pouvoir politique) implicite dans une jonissance (et une possibilité de offre) exceptionnelle des banquets. MOTS-CLES: banquets; risque de vie; combat; discours de Sarpédon a Glaueus; Hiade XT. nuntius antiquus Bel Horizonte 1p jo de 2008 Boa comida em banquetes como razao para arriscar a vida: 0 discurso de Sarpédon a Glauco (Iliada XII 310-328) Teodoro Renné Assungio FALE-UFMG e-mail: leorenno@ letras. uimg.br RESUME, Bref commentaire sur le fameux discours de Sarpédon & Glaucus dans T'Iliade (XII 310-328), visant & esquisser une proposition de lecture matérialiste de ce discours oit Tobjectif déclaré de Tacte de risquer la vie au combat (dont le présupposé est évidemment la mortalité) serait non pas la gloire (le kléos) qui immortalise, qui ici n’est jamais explicitée, mais la justification de la reconnaissance sociale (et du pouvoir politique) implicite dans une jouissance (et une possibilité de offre) exceptionnelle des banquets. MOTS-CLES: banquets; risque de vie; combat; discours de Sarpédon & Glaucus; Iiade XI. Antes que comecemos uma proposta de leitura ¢ comentario (isto é um breve ensaio de interpretagio), concentrados tematicamente no que o titulo anuncia antes de 8), convém, como primeiro e modesto exercicio de nossa leitura (nfo visando a nenhuma especificar seu objeto (o discurso de Sarpédon a Glauco na Ilfada XII 310~ correspondéncia ritmica com os hexdimetros datilicos homéricos, apesar de mantida a unidade do verso, mas apenas a alguma preciso semantica), uma tentativa, cuja comodidade pritica na sequiéncia é evidente, de tradugdo deste discurso: Glauco, por que nds dois somos ao maximo honrados: 310 com um assento, com cares e com mais tagas na Licia, e todos nos contemplam como dew e posstimos as margens do Xanto um grande dominio bom para a vinha e para a lavoura que produ trigo? Por isso, 6 preciso agora, estando entre os primeiros Lic nos postarmos ¢ afrontarmos © combate queimante para que um dos Licios bem encouracados diga assim: “Nao sem gléria na Licia governam nossos reis, ¢ consomem gordos carneiros e vinho escolhido e suave como mel; mas entdo também a for é valente, pois combatem entre os primeiros Licios’ 6 caro amigo, se, com efeito, fugindo desta guerra, 322 devéssemos ser sempre nio-envelheciveis e imortais, ‘nem eu mesmo combateria entre os primeiros nem te enviaria para o combate em que o guerteiro obtém boa sorte; € agora, pois de todos os mods as Queres da morte esto sobrepostas/ aos mithares, das quais niio 6 possivel um mortal escapar nem fugir, AJnuntius antiquus Belo Horioute 1p jjuaho de 2008 ‘vamos! ou demos o triunfo a alguém, ou alguém o dé a nds.' 328 1. Uma critica a leitura dualista deste discurso Obedecendo, num primeiro momento, ao padrdo de uma leitura ja consagrada em nosso tempo deste discurso de Sarpédon (como, por exemplo, nos artigos La belle mort et le cadavre outragé de Jean-Pierre Vernant ¢ Banter and banquets for heroic death de Pietro Pucci), tentemos ver 0 que nos diz sua conclusdo ou segunda parte (v. 322-328), que invocaria nao mais raz6es sociais ou utilitarias (0 prestigio traduzido em bens materi is) para o feito herdico, mas o que Vernant chama de motivagao de ordem metafisica; ‘Nao sao, pois, nem as vantagens materiais nem o primado de condi¢ao nem as marcas de honra que tém o poder de levar um homem a empenhar sua psyché em duelos sem trégua onde se conquista a gloria (... A verdadeira razao do feito herdico reside alhures; nao ressalta de calculos utilitérios nem da necessidade de prestigio social; poder-se-ia dizer que ela é de ordem metafisica; (..).) De fato, Sarpédon prope af que o fundamento tiltimo da moralidade guerreira, ou seja, da disposigio de arriscar a vida em combate, & a mortalidade e a sujeiga0 a0 tempo (© envelhecimento), justamente © que distingue um heréi (um “mortal”, Bpovdc, de um deus (um “imortal”, d@ctvertog). A morte, que € inevitivel, pode assumir milhares de formas ~ em principio ndo previamente determindveis ~ que podem ocorrer a qualquer momento, sendo, pois, sua genérica iminéncia derivada do mero fato de se estar vivo. Atentemos, porém, ao modo como o poeta define explicitamente o objetivo do guerreiro no iiltimo verso deste discurso: “Ou demos o triunfo (etzo0¢) a alguém, ou alguém 0 dé a n6s”, Na Nota critica a “bela morte” vernantiana, eu ja havia notado que, segundo esta formulagdo, a “gl6ria” cabe apenas a quem mata endo a quem morre, ' O texto grego da ZHfada utilizado neste artigo & o de Allen, Th. W.; Monro, D. B. Homeri opera: Has. Seventeenth impression. Oxford: University Press, 1989. Tomi LI. AS tradugdes dos outros trechos iados da Iliada também so minhas e seguem os mesmos critérios enunciados nesta abertura, * CL. Vernant, J.P. La belle mort et le cadavre outrage. In: L'individu, ta mort, Vamour, Paris: Gallimard, 1989, p. 121-140, 1 edigo em Gnoli, G.; Venant, I-P. (org.). La mort, les morts dans les sociétés anciennes. Cambridge! Paris: Cambridge University Press & Editions de la Maison des Sciences de I’ Homme, 1982, p. 45-76 e Pucci, P. Banter and banquets for heroic death. In: The song of the Sirens. New York: Rowman & Littlefield, 1998, p. 49.68, 1 edigao em Benjamin, A. (org.). Post-structuralist classies. London: Routledge, 1988, p. 132-159. CE. Vernant, J-P. A bela monte e 0 cadaver ultrajado. Tradugao de Elisa Kossovitch e Joao A. Hansen. Discurso 9. S30 Paulo,1979, p. 40. AJnuntius antiquus Belo Horizonte 1 3, jo de 2008 mesmo que ela seja “herdica”.* Mas, © que entio eu ndo notei com a devida atengio é que a tradugiio vernantiana de e8xog por “gldria” era imprecisa, pois o eXxo¢ designa mais propriamente o “grito de triunfo”, o “triunfo” ou a “vit6ria”> Ora, 0 que esta tradugdo de Vernant permitia era uma assimilagdo imprépria e interessada do ebyog, “triunfo”, com o xhéoc, que € 0 termo homérico que designa propriamente a “gloria”. E, na seqiiéncia, em outro movimento quase insensivel de assimilagao, Vernant atribuia a esta “gldria” uma qualificagao que aqui nao & dada ao eXxos, a0 mula)? dizer “gléria imorredoura”. Sabe-se muito bem que o sintagma (e nao wA£0¢ oOrtov, que se traduz por “gléria imorredoura”, aparece uma tinica vez na Miada AX 413), no discurso em que Aquiles diz que sua mie previu duas Kijpec (formas de morte) excludentes para ele: ou permanecer lutando em Trdia, perder o retomno (vdcto¢) e obter a gléria imorredoura (kié0¢ &6@rtov), ou voltar para casa (@ a terra pétria), viver uma longa vida, mas perder a nobre gloria (whtog boOAdv).” De modo anélogo, alguns traduzem o adjetivo Kvdttverpav, que no verso 325 do canto XII qualifica jiéyqv (“combate”), como “em que o guerreiro (cvip) obtém a gloria (‘x080¢)”. Mas a assimilagio do xb80¢ com 0 KAEog também é imprépria, pois. como Emile Benveniste demonstrou em Le vocabulaire des institutions indo- européennes,® 0 «v80¢ é uma espécie de “poder magico” ou de “graga” que o deus confere ao herdi; algo, portanto, que nio depende apenas de sua habilidade ou * Cf, Assungao, Teodoro Renn6, Nota critica a “bela morte” vernantiana. Classica, Sdo Paulo, vol. 7/ 8, p. 54, 1994/ 1905: £ exaamente ito que lemos na uitima frase do discurso de Sdrpedon: adguire-se a ‘ploria pela morte infligida ao inimigo, mas € este que a adguire por “nossa” propria morte. O feito heréico — objeto do canto que atingird as geracdes seguintes — é portanto maar, aro que, longe de audmitir a morte, supoe evidentemente o fato de ainda estar vivo. SCF, Pucci, ap. cit, p. 61/ Benveniste, Emile. Le vee. In: Le vocabulaire des institutions indo-européennes 2. Patis: Minuit, 1969, p. 242: I incline with Emile Benveniste (1969, 2: 242) to attribute to this word the meaning of “veeu de victoire” and then “victoire”, though it is possible to reach the same result by postulating “scream or boast of triumph” and then “triumph”, “victory"/ La traduction usuelle de “eakhos” est “victoire, tiomphe”. (..) "Eakhos” esti “vicwire” ou “sloire”? Ni Pun ni Cau: au combat le guerrier fait un “veu" et un seul, celui de remporter ta victoire. Pour un querrier, accorder le “vcea", équivaut a donner la “victoire”: tes conditions de emploi expliquent ce slissement apparent de sens. Nous ramenons done “edkhos” au sens de “veew” (..). Para uma posigao diferente, que tende a assimilar os sentidos de etzoc, Kidog € KAG0¢ como basicamente o de “gloria”, ver Mueliner, Leonard. The meaning of homeric eGrojtat through its Formulas. Innsbruck Beitrdge zur Sprackwissenschaft Innsbruck, Vol. 13,p. 108-113, 1976. ° Cf. Finkelberg, Margalit. Is xA¢og d0@ttov a homeric formula? Classical Quarterty. Cambridge, vol. 36, p. 1-5, 1986. 7 Cf, Niada 1X 410-416 (minha traducio). * Cf, Benveniste, Emile. Le pouvoir magique, In: européennes 2. Pati: Minuit, 1969, p. 57-68. Le vocabulaire des institutions indo- AJnuntius antiquus Belo Horizonte 1 pt jo de 2008 determinagdo, e¢ que Ihe garante a vit6ria, Minha tradugdo algo livre de xvSidverpav por “em que o guerreiro obtém boa sorte” visa, pois, marcar o elemento de “sorte” (na Ifada expresso teologica Kd80¢. Curiosamente, neste discurso de Sarpédon, 0 khéog (a “gloria”), embutido no nente como intervengio divina) presente no adjetivo negativo doxheéec, “sem gléria” ou “ndo-gloriosos”, que, negado pelo od no verso S18, qualifiea os reis Iicios, aparece associado aos privilégios de mesa ou banquete (aparentemente “materiais” apenas, mas também signo maior de reconhecimento social) como “os gordos carneiros” e “o vinho escolhido e suave como o mel”, [Deve- notar o valor quase adverbial (ou seja, predicativo) de ob cwheéeg (“nao sem gldria”), modalizando 0 verbo xowpavéovow (“st0 lideres/ governam”) e dando a entender que a reputagio ou a gléria é simultinea (ou devida) ao ato de governar ¢ nao algo a ser buscado além desta vida na meméria das geragdes futuras.] Sarpédon parece aqui estar apenas retomando aquilo que no comeco de seu discurso define a “honra” (a tytn) do rei especial na mesa”, “as carnes” e “% ”. Ora, se atentarmos bem na \S mais numerosas ta qualificag2o deste “dominio” especial que € 0 téjtevog (apropridvel de terras piblicas em si no de reconhecimento social a algum grande feito guerreiro), veremos que sua fungao 6 justamente a de fornecer aqueles dois alimentos que, juntamente com a carne, compdem a refeigdo homérica: o vinho e o pao. Seria itil aqui precisar melhor o sentido de téptevoc, Segundo Henri Jeanmaire em Courof et Courétes. 0 téevog forneceri apenas © vinho e © pio (“um grande dominio bom para a vinha e para a lavoura que produz _trigo”: guTaAIIe Kat Gpovpng mvpoddpoto - v. 314), enquanto o gado: bois, porcos © cameiros ~ que constitui, ao lado do rémenos, © essencial da renda dos que possuem terras e bens — jamais é dito como sendo criado ¢ mantido no véstevog. Mas isto implica também que a cultura desta terra (assim como a transformago de seus produtos em alimentos) seja feita por servigais que se ocupam dela e a fazem produzir, pois hed como lembra ironicamente H. Jeanmaire, “é evidente que 's. pomares, olivais e mesmo ° Cf. Jeanmaire, H. L’entretien du Laos: tém&nos et geras. In: Couros et eourétes: essai sur Véducation spartiate et sur les rites d’adolescence dans Vaniiquité hellénique. Lille: Bibliotheque Universitaire, 1939, p. 78 AJnuntius antiquus Bel Horizonte 1 pS, jo de 2008 searas de cevada nao saem de uma terra qualquer por meio de um golpe de varinha magica”.'° Por outro lado, seria necessario também lembrar que ~ no instante mesmo em que se afirma a consciéncia da morte (trago que distingue o hersi tanto do animal quanto do deus) como fundamento da distingao social ~ é concomitantemente afirmado, como instancia de reconhecimento desta distingdo social, o banquete pablico ou real, que pressupde no sé a cultura da terra para fornecer trigo e uvas (atividade desconhecida entre deuses e animais), como também o sacrificio de animais domésticos — conferindo ao banquete um cariter religioso — e a coc¢do dos alimentos (também desconhecidos entre deuses e animais que, no caso do sacrificio, sao respectivamente destinatérios e vitimas mas nunca oficiantes), Mas € preciso também expli jar melhor que, se nesta passagem 0 tétev0G aparece como um dominio piblico e real (cuja fungdo € prover os banuetes puiblicos reais), aqui curiosamente justificado por um valor guerreiro (ou seja, pela coragem destes reis em atris rem a vida no combate) € néio meramente pelo poder politico, em outras situagdes 0 téptev0¢ pode ser concedido a um sacerdote (e se tomar um dominio voltado para o culto de um deus) ou a um guerreiro que se tenha distinguido ou va atalha por sua habilidade e coragem (mas sem que seu poder politico seja explicitado). H. Jeanmaire lembra do téwevog oferecido ao encolerizado e retirado Meleagro pelos Ancidos para que ele defenda a ameagada Calidénia, assim como do que pergunta Aquiles a Enéias no canto XX, quando eles esto para se afrontar, apés ter descartado a hipétese de que ele possa suceder Priamo na realeza, ou seja \ o que ele espera dos Troianos & a concessiio de um tétevoc.'' Ora, esta possibilidade de conces 10 do tétevog como reconhecimento de feitos guerreiros excepcionais desconecta de algum modo do nascimento o estatuto social e o liga antes a um mérito demonstrado pela performance, abrindo assim, como no caso da disputa entre Aquiles & Agamémnon, uma possivel tensdo entre o reconhecimento social devido a exceléncia guerreira provada no combate e aquele devido ao poder politico que, neste caso, apoia- se no maior contingente guerreiro liderado por Agamémnon. Aqui, porém, 0 poder politico (com um pos ‘el elemento religioso, ainda que nao uma identificagao com a divindade: “E todos nos contemplam como deuses”) coincide com a coragem de arri '° Cf, Jeanmaire, op. cit. p. 75 (minha tradugio). "CE Jeanmaire, op. eit. p. 74. AJnuntius antiquus Belo Horioute, 1° 1p jjuaho de 2008 a vida na frente do combate, sendo ambos reconhecidos por uma posi¢io de honra no banquete deste discurso de arpédon) © rei licio (e, por extensio, © aristocritico guerreiro homérico) deve arriscar ao maximo sua vida nas primeiras fileiras do combate. Esta justificagdo do ato herdico pode parecer algo pobre em seu demasiado concreto materialismo, Mas devemos lembrar primeiro que, pa fa esta aristocracia guerreira, a guerra (e nao 0 comércio ou a inddstria) & 0 tinico meio digno de obter riquezas constituir meios de vida que nio impliquem a escravidio de um trabalho rotineiro.® preciosos ou mulheres, so os banquet s (ou a parte que se tem neles) a primeira instincia de reconhecimento social, como © confirmam, na Iiada, os banquetes oferecidos aos grandes chefes por Agamémnon, ou, na Odisséia, as recorrentes cenas tipicas de recepgao, Caberia aqui, entdo, determo-nos um instante no modo de reconhecimento social implicito na breve e formular descri¢ao do banquete dos reis Iicios presente no discurso de Sarpédon a Glauco (e a compararmos a0 “modelo” homérico do banquete como instancia privilegiada de distingdo social). Sarpédon, logo no comego do discurso, diz a Glauco que eles so honrados (v. 310), isto & desfrutam da tux} (do prego” ou “Com um consideragio social”) “ao maximo” (uciA1070), da seguinte maneira: assento (Epon), com cares (xpéacw) © com mais numerosas tagas (heiorg Benciecow)” (v. 311). Apesar do seu valor genérico de “assento”, ligado ao radical *sed- de *8G@ “sentar", 88pm teria nesta ocorréncia, como marcam os icionérios Lidell-Scott e Cunliffe,'? 0 valor particular de “assento de honra’”. No caso das “tagas” (Bendecow) é 0 adjetivo “mais numerosas” (whetorg) que define a sua modalidade particular de abundancia e generosidade como signo distintivo de honra, enquanto as “carnes” (wpécow), apesar de ndo qualificadas por nenhum adjetivo, discretamente sugerem, pelo mero fato de estarem no plural, a minima abundancia ‘iter concisamente distintivo das “mais implicita na pluralidade (ou quantidade). Esse ca numerosas tagas” e das “cares” é, pouco depois, retomado de outra maneira na seguinte formulagio do que constitui este banquete real: “gordos cameiros™ '° Ch. Lidell H. G.; Scott, R.A Greek-English lexicon. Oxford: Clarendon Press, 1977, p. 478/ Cunliffe, R.J.A lexicon of the homeric dialect. Fifth printing. Norman: University of Oklahoma Press, 1988, p. 105. AJnuntius antiquus Belo Horizonte 1 7, jo de 2008 (niove. 1ijAc0) e “vinho escolhido melissuave” (civdv TEctov weAmmdée - v. 319- 320), onde os adjetivos marcam nao tanto a quantidade quanto a qualidade da carne e do vinho consumido. Se ha, enfim, alguma homologia (ou analogia estrutural) entre estas duas diferentes descrigdes do banquete, possivel pensar que ao “assento de honra” (E8pn) da primeira descrigéo corresponde na segunda (onde ele esté, enquanto tal, ausente) fato de que os reis a Lica governam = nio. sem gloria” (od ov da Kekec Avxink Kota KoIpavéovew - v. 318), sendo possivel, entio, pensar ndo numa “gloria imperecivel” que transcende geragdes, mas em uma gloria mund: . ligada ao poder politico e que se traduz numa posi¢Zo de honra no banquete. Estes mesmos trés elementos de disting’o social (ou yum), 0 “assento de honra”, as “mais numerosas tagas” (ou o “vinho escolhido melissuave”) & as “carnes” (ou “gordos camneiros”), serio encontrados também de outras formas em outras descrigies do banquete homérico, segundo sugere © modelo tragado por Suzanne Said no conhecido estudo Les crimes des prétendants, la maison d’Ulysse et les festins de “Odyssée A honra se diz primeiro em termos de carnes: 0 lombo alongado do animal sacrificado constitui um géras (ie., “parte da honra”) do mesmo modo que uma cativa e serve igualmente como reconhecimento do valor excepcional de um guerreiro. Assim, no canto VII da Héada, Agamémnon marca para Ajax a estima na qual ele © (em por (er resistido a Heitor, dando-the de presente o lombo ). Este pedago escothido cabe igualmente 20 rei Ele traduz também a consideracio que se dé normalmente ao héspede. () A honra se diz também em termos de tagas. Por si 56, a consumacao de vinho em um banguete reservado aos chefes (gérontes) constitui um privilégio. Por isso, fala-se duas vezes em Homero de um gerodsios oinos (Il. 4. 217, Od. 13. 8), que Paul Mazon traduz por “vinho de honra”. O mimero de tagas servidas a cada um durante um banquete & também um meio de marear a hierarquia entre os convivas. Todos tém, de fato, direito a um dattron (Il 4, 262), isto 6: a uma ragdo de vinho, sem diivida igual para todos. Mas o rei ¢ os guerreiros reconhecidos por sua valentia tm direito a mais tagas”. (...) A honra se diz enfim em termos de lugares ou assentos (hédra). Basta ler as cenas de recepgao ao héspede na Odisséia para constatar que hé um lugar de honra constitufdo por um assento solene (thrdnos ou Kliste) colocado ao lado do rei ou do chele da casa. Assim, Telémaco, no canto I, faz com que Atena-Mentes se assente a seu lado: quando ele mesmo chega a Pilos em companhia de Atena, fazem com que ele se assente sobre um assento entre Nestor e AJnuntius antiquus Bel Horizonte 1p, jo de 2008 tum de seus fithos; e, quando ele est em Esparta, oferecem a ele um assento ao lado de Menelau."" Assim, pois, 0 banquete primeiramente permite definir, pelas exclusdes que ele pressupde, uma comunidade humana, sendo signo marcado de isolamento ou marginalidade (isto & de nao integrago a uma comunidade) a naio-participagdo nos seus banquetes (como indica, por exemplo, 0 mito de Belerofonte na iiada). Ainda segundo Suzanne Suid: ‘Ao mesmo tempo o banquete enuncia por meio de toda uma série de signos convergentes a hierarquia que existe entre os membros desta comunidade, pois todas as atividades que sucedem no quadro do banquete, que seja o assentar-se, o comer ou o beber, omar significativas e por testemunhar 0 grau de consideragao de que cada um gora."* Ora, no caso dos reis licios, a quem cabem nao somente os privilégios de mesa ‘assento de honra”, ‘mais. numerosas tagas” € “carnes”) como a propriedade de um “grande domi * (néjevog), que Ihes permite também oferecer banquetes generosos, h4 uma coneiliatéria coincidéncia entre poder politico e coragem guerreira como critério de reconhecimento ¢ distingdo social no banquete. E, pois, como se “Homero™ afirmasse através da comida (a qual, como diz Fausto Codino,'° jamais é tratada por ele de forma leviana) nao s6 a importancia social de uma personagem cujo valor guerreiro ou politico é assim reconhecido, mas também a importéncia concreta do bem-estar deste corpo animado que, como nos sugere 0 canto XI da Odisséia, & a tinica e verdadeira forma de existéncia que possuimos. E preciso. entdo, rever uma leitura ja consagrada deste discurso de Sarpédon (como a presente nos artigos ja citados de J.-P. Verna it e a de Pietro Pucci), segundo a qual se oporiam af duas ordens de raz6es para 0 ato herdico: uma material ou social e outra metafisica. O que Sarpédon esté propondo aqui, menos solenemente talvez do que possa parecer & primeira leitura, € que, uma vez que a morte ¢ o envelhecimento sio inevitaveis (ainda que sua forma seja indetermindvel), o guerreiro deve arriscar corajosamente sua vida no e, visando ni comba jade do canto na meméria das geragdes segt "5 Cf, Said, Suzanne. Les crimes des prétendants, la maison d*Ulysse et les festins de I'Odvssée. In: Said, S. eral (org. Etudes de ltératare ancienne. Pais: Presses de Ecole Normale Supérieure, 1979, p. 21 (minha tradugso). Cf, Said, op. cit, p. 2 'S CE. Codino, F. Inrroducione a Omero. Torino: Einaudi, 1990, p. 107: In Omero (..) la questione det ‘mangiare non ® mai sranata con leggerez AJnuntius antiquus Bel Horizonte 1 9, jo de 2008 apenas a uma melhor qualidade desta sua nica vida, traduzida em bens, boa comida & reconhecimento ptiblico, e implicando obviamente o ato mesmo do risco de tudo perder (morrendo no combate). Henri Jeanmaire, em Courof et Courétes, parece ter sido © Gnico a ousar uma leitura nao envergonhadamente materialista (ou seja: homérica) deste discurso de Sarpédon, quando o paratra ‘ia assim: Fé que de todo modo € preciso morrer, viva entao a vida do guerreito que, em troca de uma morte da qual ninguém pode se gabar de escapar, proporciona uma existéncia larga, no somente a gl6ria (kiéos), mas a honra (géras) sob sua forma mais materialmente sensivel, a dos extras de carne e de rodadas de vinho suplementares.® 2. A relaciio com a prépria morte ¢ os privilégios reals A honra maxima real, descrita primeiramente como privilégios no banquete Cum assento, cares e tagas mais numerosas”), assim como pela posse de um dominio fértil, concedido publicamente pela comunidade (o téy1ev0¢) capaz de produzir o vinho © 0 pio que sio oferecidos em banquetes de retribuig%io, e descrita uma segunda vez como poder politico de reis na Lieia (“na Licia governam nossos reis”) ¢ novamente como privilégios de mesa, isto é: boa comida e boa bebida (“gordos careiros e vinho escolhido e suave como o mel”), corresponde, pois, em uma equagao que faz idealmente justiga aos privilégios ciais dos que detém o poder, a capacidade (também afirmada duas vezes com a retomada de um mesmo sintagma formular) de arriscar a vida no combate, naquela posigao em que a exposigao & morte é maior, ou seja, na vanguarda: “Entre os primeiros Licios” (Avxiotot éta mpditorow - v. 315 e 321). Portanto, jé nesta primeira parte do discurso (v. 310-321), Sarpédon indica que € uma relagdo especifica com a propria morte (assim como com a do inimigo), taduzida pela disposigio radical de arriscar tudo no combate, o que fundaria o poder politico e os privilégios sociais destes reis que sdio também necessariamente chefes de guerreiros. © que, neste discurso de exortagdo guerreira a um rei (Glauco), € formulado positiva nente como correspondéncia entre honras reais (ou seja: privilégios no banquete) e valor guerreiro (ou seja: coragem de combater entre os primeiros), pode, eventualmente, em um outro discurso de exortago que retoma estes dois elementos tradicionais, as mir uma formulagao negativa € sarcdstica em que as honras de banquetes reais (ou do conselho de reis isto & dos “ancidios”) no mais corresponde a "CE. Jeanmaire, op. cit, p. 78 (minha traduco), AJnuntius antiquus Belo Horizonte p10, jo de 2008 disposigao corajosa de arriscar a vida nas primeiras linhas, 0 que deveria justamente despertar 0 addi¢, 0 “pudor” ou a “vergonha” destes reis, dos quais se espera alguma exceléncia guerreira, como neste discurso de Agamémnon a Menesteu e a Ulisses 6 fitho de Peteu, rei alimentado por Zeus tu, excelente em truques malignos, dvido de ganhos, por que encolhidos vos afastais, ¢ esperais os outros? A.v6s dois convém, estando entre os primeiros, vos postar ¢ participar do combate queimante; pois vs dois também primeito ouvis meu apelo para o banquete, quando os Aqueus preparam um banquete para os ancigos, Entao ha boas cares assadas para comer e tagas, de vinho suave como o mel para beber, enquanto v6s dois quiserdes, Mas agora de bom grado contemplaricis mesmo se dez colunas de Aqueus frente de vés combatessem com o bronze impiedoso."” Mas, assim como a mera suspeita contida na pergunta pelas razes das honras assim também a aparente disjungtio entre as honras de banquetes de chefes guerreiros © 0 seu real valor militar é explicitamente desmentida pela ago corajosa destes reis que, ao longo da Iliada, jamais tendem a um comportamento primariamente covarde e dese modo comprovam narrativamente a justeza desta ideologia aristocritico-guerreira, Mesmo nao suprimindo de todo a possivel diferenga e tensdo (como no caso do conflito entre Aquiles e Agamémnon) entre a exceléncia guerreira € 0 poder politico, é como se 0 texto iliddico afirmasse basica e reiteradamente a identidade a0 eviden entre os politica ¢ socialmente melhores e os melhores na guer que os grandes feitos herdicos dos que combatem na frente (e podem desequilibrar a batalha) sdo (segundo 0s catélogos do exército) invariavelmente de grandes chefes guerreiros, ou seja, de reis (como o demonstra, do lado aqueu, as sucessivas dpiotetct de Diomedes, de Agamémnon, de Ulis s, de Ajax, de Patroclo, como substituto de Aquiles ede Aquiles). E, precisamente no caso de Sarpédon e de Glaueo, que sio primos e tm um mesmo avi Belerofonte, podemos supor que a realeza (transmitida a partir desse) teve sua origem e fundago nao exatamente no sangue, mas na bravura e exceléncia guerreira de quem foi capaz de enfrentar e derrotar em combate as Amazonas, os Sélimos e ainda "" Cf dliada IV 338-348 (minha traducao).. "Cf. Van Wees, H. Kings in combat: battles and heroes in the iad. Classical Quarverly. Oxford, 1988,vol. 38, p. 1-24, p. 21. Iris significant that all she characters who dominate the scenes of battle in the Hliad, are introduced to the audience, in a caralogue, as leaders of hundreds or thousands of men. (..) Moreover, the poet deliberately forges a link between being the leader of a contingent and being its best fighter. AJnuntius antiquus Belo Horizonte, p11 jo de 2008 uma emboscada dos melhores guerreiros da Licia, para s6 entdo ser reconhecido pelo rei licio com a oferta da mao de sua filha e de metade de seu reino.”” Mas 6 possivel supor também, em uma superposigao de sangue e de bravura guerreira ideologicamente itil a nobreza, que a manutengdo pelo filho da realeza herdada do pai exija a demonstragiio de uma exceléncia guerreira semelhante 4 do pai, realizando entio por atos de coragem a transmissdo efetiva da norma aristocritica de competitividade e exceléncia, tal como o sugerem as maximas de Hipéloco, filho de Belerofonte, para seu filho Glauco, ao envié-lo para Tréia (e que lembram as de Peleu a Aquiles sempre ser o mais valente ¢ estar acima dos outros, e nao envergonhar a raca dos pais, os que mais valentes vieram a ser na Efira e na vasta Licia”” Ora, a segunda parte do discurso de Sarpédon a Glauco ( 322-328), longe de afirmar uma mera e ordindria (isto é: comum a todos humanos) condicéio mortal © temporal que dissolveria em fragilidade o poder e os privilégios destes reis guerreiras,”! reafirma precisamente, a partir da basica mortalidade e sujeigio ao envelhecimento, a distingo moral (que aqui idealmente coincide com 0 poder) daqueles que tém nao apenas uma licida consciéncia de sua constitutiva e inescapavel mortalidade (assim como dos miiltiplos possiveis \determinagio modal da modos de morrer, ou seja, da morte), mas uma disposigao ou comportamento (em que esta consciéncia se realiza) de maxima coragem em tudo arriscar no combate: ou obter a vit6ria (se alguém thes der 0 eby0¢, 0 “triunfo”), justificando assim os privilégios no banquete, o poder politico e uma reputacio gloriosa (ob tv Gexheéeg) entre os vivos (que mio se confunde, porém, com uma aqui jamais explicitada “gléria imorredoura”, KAeo¢ dg0ttov), ou conceder a vitéria a um inimigo (se eles Ihe derem o e6x0c, possibilidade evocada em primeiro lugar), sendo entio mortos por ele ¢ tudo perdendo de uma vez por todas, aqui sem menor sugestZio que seja de uma possivel recompensa que seria a meméria (presumivelmente por meio do canto) — entre os que des a comunidade permanecem Vivos e as sui s futuras geragdes — desta “morte gloriosa” no combate, Ch Van Wes, op. cit, p. 18: The poet seems 1 be making a point here: the status and privileges of “kings” may be acquired by birth, he says, but they were originalty acquired through warriorhood, and those who subsequently enjoy them ought to justify this by proving themselves great warriors ® Cf. Miada V1 208-210 (minha tradugao). 2 CL, Pucci, op. cit, p. 59: The huge portrait of the king with its epic paraphernalia and rhetorical embellishments shrinks to the frail image of a mortal man, even more, tothe image of a man who knows that he is besieged at each moment by the menace of death. AJnuntius antiquus Belo Horizonte 21, pt jjuaho de 2008 E certo que a consciéncia da possibilidade sempre presente, mas indetermindvel em seus maltiplos modos possfveis, da morte para um mortal © @ sua conseqtiente escolha de um modo guerteiro de viver (combatendo nas primeiras linhas) em que aquela se torna sobremaneira iminente pode parecer uma decisfio que visa de algum modo a antecipar (precisamente, “indo de encontro a propria morte”) o poder soberano da morte e, no ato mesmo da escolha consciente de um modo de morrer, domesticé-lo (0 que, apesar da aparente astticia, seria ainda uma ilusio consolatéria). Mas, no fecho do discurso (v, 328), a abertura previamente indecidivel de duas possibilidades opostas, ser vencido e morrer (dando o triunfo a algum inimigo) ou matar e ser vitorioso (obtendo deste o triunfo), demonstra que no combate nao ha controle (nem propriamente escolha) po Esta caracterfsti vel da propria morte, nem do fato elementar de ainda es far vivo ou jé estar morto. ‘a do combate é anunciada (trés versos antes do fecho, v. 325) no adjetivo Kvdicivetpay (“em que o guerreiro obtém boa sorte”), em que o KO80g (que. sucedido por cxvip, constitui a primeira parte do composto) designa, como mostrou Emile Benveniste, niio exatamente a “gloria” (designada por «A€0¢), mas o “poder magico”, de habito concedido como uma graga pelo deus, que assegura a vitéria e fio € citado ilumina instantaneamente o guerreiro.” Ora, mesmo no caso em que o deus © € 0 guerreiro quem obtém o xO80q (segundo grupo estudado por Benveniste), 0 wo8og, enquanto “talisma irresistivel de supremacia”, é essencialmente temporsrio (isto & jamais permanente) e instével, no podendo ser previsto € muito menos controlado pelo guerreiro. Em um ja conhecido ensaio de definicio do termo, Benveniste diz: kiidos real ou hersico faz parte destes charmes de poténcia que os deuses concedem ou retiram instantaneamente, segundo suas preferéncias, a uma ou outra das partes em guerra, para restabelecer 0 equilibrio dos combates, para salvar tal chefe que os honrou com oferendas, ow para sustentar suas proprias rivalidades. Estes favores cambiantes refletem o jogo mével das facgées no campo dos deuses, jogo que Zeus arbitra* Esta definicio deixa ver claramente que “a vantagem instantinea e irresistivel (...) no momento decisive do combate”, ou sej quilo que pode decidir 0 matar ou o morrer, a vida ou a morte, 6, em tiltima instancia, nao controlével pelo guerreiro, Cf. Detienne, M. Les mattres de verité dans la Gréce archatgue. Paris: Frangois Maspero, 1967, p. 20: “Kudos” est la gloire qui illumine le vainqueur; c'est une sorte de grace divine, instantanée, Les dieux Vaccordent a I'un er ta refuse a Vaurre, CF. Benveniste, op. cit p. 67. ™ CL. Benveniste, op. cit. p. 60. AJnuntius antiquus Belo Horizonte p13, jo de 2008 guardando uma essencial indeterminagdo (para o conhecimento sempre limitado do mortal) que faz de seu ato de combater entre os primeiros uma perigosa aposta total em que ele pode perder tudo a qualquer momento. A radicalidade do discurso de Sarpédon estaria, assim, justamente na nao- referéncia a uma possfvel transcendéncia desta experiéneia mundana tnica e irreversivel que 6 a vida mortal deste corpo animado falante e afirmagao de uma maneira de viver intensa que supde na idade viril a capacidade de tudo arriscar no combate para poder desfrutar de maximos bens mundanos (que sio Gbvios e positivos valores atistocritico- guerreiros) desta tinica vida, como o poder politico e o reconhecimento social, mas também os prazeres sensoriais implicitos nas partes de honra nos banquetes. ‘dO Se, no entanto, 0 que justifica os privilégios reais € niio uma transmis hereditéria da realeza, mas uma relagio corajosa com a propria morte que define bat amente 0 grupo dos guerreiros (¢ especificamente aqueles que combatem “entre os primeiros Licios”), resta a questo do por que apenas Sarpédon e Glauco, enquanto os dois chefes dos guerreiros Iicios (segundo a definigo do catélogo dos guerreiros troianos e seus aliados no canto II 876), deteriam estes privilégios e no 0 conjunto dos que combatem “entre os primeiros Licios” (independentemente de sua ascendéncia). E fato que 0 uso do dual ou do plural ao longo de um discurso de exortagZo dirigido a um outro (Glauco) indica uma comunidade minima entre quem profere e aquele a quem & dirigido 0 discurso, abrindo uma primeira fissura no modelo de um poder monarquico estrilo, mas © passo para a admissio neste grupo minimo de dois chefes de todos aqueles que combatem “entre os primeiros Licios”, ou seja: na posigao de risco maximo, abrindo © poder politico e os privilégios reais para uma aristocracia guerreira, ainda nio é dado aqui, assim como estamos ainda mais longe de uma chance de acesso as a0 poder aberta a todos aqueles que constituem o exército e afrontam a guerra (como, mais tarde, os idadiios-guerreiros de uma polis) @ que, no discurso de Sarpédon, formam a opiniao piblica diante da qual ele sente o dever de se justificar por seus atos: “os Licios bem encoura dos” (no gen. pl. AvKiey mbKAX Bepnrtcaw - v. 317). Isso faz com que, apesar da pretensa unicidade deste discurso, nao possa ser eliminada de todo a suspeita de que estes privilégios reais niio sejam apenas recompensa maxima (ainda que antecipada) para 0 ato de arriscar corajosamente a vida nas primeiras linhas de combate, Assim, segundo a proposigao deste discurso, para os primeiros Licios que se arriscam na frente de batalha mas no podem obter de igual modo os privilégios reais, as razdes para este risco total permanecem de algum modo obscuras. No entanto, AJnuntius antiquus Belo Horizonte a1, p 1, jo de 2008 logo apés 0 seu grande fato herdico no canto XII de ser o primeiro a transpor a muralha dos Aqueus, quando Sarpédon se ressente da resisténcia eficaz de Ajax e Teucro, ele recomhece niio poder continuar sozinho e apela para a ajuda dos companheiros de armas licios, dizendo, com um inequivoco senso de coletividade na guerra, que “o trabalho de um maior nimero é melhor” (theovev 8 te Epyov dpiewov - v. 412). 3. Nota sobre a morte de Sarpédon Gostaria, enfim, de tecer algumas breves consideragdes sobre a morte e os ritos jebres de Sarpédon no canto XVI da Miada, pois, como sugei Gregory Nagy em um conhecido artigo (em sua tiltima versio The Death of Sarpedon and the Question of Homeric Uniqueness), esses ritos poderiam indicar alusivamente uma forma de imortalizac2o por meio do culto ao heréi, desmentindo de algum modo nossa leitura do timo verso do discurso de Sarpédon a Glauco no canto XII da Mfada. O ponto de partida de G. Nagy € 0 modo como ele 1é 0 tratamento ftinebre especifico dado ao cadaver de Sarpédon, tal como sugerido primeiramente por Hera a Zeus (I. XVI 453- 457) e, depois, tal como ordenado por este a Apolo: Mas vi agora, caro Febo, e limpa o sangue escuro de Sarpédon, tirando-o dos dards, ea ele em seguida, ‘bem Jonge Ievando, lava nas correntes de um rio, © unge-o com ambrosia, ¢ reveste-0 com vestes imortais conduze-o aos rpidos guias para levarem-no, aos gémeos Sono e Morte, que rapidamente 0 colocario no territério fértl da vasta Licia, “onde the prestardo ritos fiinebres os parentes e camaradas com um timulo e uma estela: pois esta € a honra dos mortos. Nagy observa no cuidado divino especifico com este cadver, que € ndo sé lavado em um (literalmente “substancia imortalizante”, , mas ungido com “ambrosia que em casos assim protege da corrupgio) & revestido com “vestes imortai (GuBpoto. eiptertex), elementos de uma divinizacio latente que estari presente no sentido originério do verbo tapyboovew, que traduzimos por “Ihe prestardo ritos fanebres” mas que, enquanto empréstimo de um radical indo-europeu rarh-, cujo sentido € “conguistar ou superar” (@ que como sufixo comporia 0 nome grego % CF, Nagy, G. The death of Sarpedon and the question of homeric uniqueness. In: Greek mythology and poetics. Whaca: Comell University Press, 1990, p. 122-142, |* versio: Nagy, G. On the death of Sarpedon. In: Rubino, C. A; Shelmendine, C. W. (org) Approaches to Homer. Austin: University of Texas Press, 1983, p. 189-217. % CL Miada XV1 667-675 (mink traduedo). AJnuntius antiquus Belo Horizonte a, pt, juo de 2008 véxtap, significado “o que supera a morte”), teria como sentido primeiro o de “tratar alguém como um deus”, tal como € admitido pelo s6brio Dictionnaire étymologique de la langue grecque de Pierre Chantraine.”” 0 que, segundo Nagy, poderia ser interpretado como uma alusio velada a um culto local ao her que a épica homérica em sua tendéncia pan-helénica evita referéncias diretas a cultos locais a herdis, assumindo abertamente apenas a imortalizagao conferida pela propria poesia Epica (cf. 0 KA€og cioOrtov, “gloria imorredoura”). Ora, como bem sabem os linguistas, 0 sentido primeiro ou etimolégico de um termo nao é necessariamente o seu sentido verdadeiro, cabendo perguntar antes como a palavra é entendida no momento em que é usada, 0 que, neste caso, segundo o mesmo Dictionnaire étymologique de la langue grecque de P. Chantraine, seria apenas 0 de “enterrar solenemente um morto”2* Preferimos, no entanto, a tradugdo mais genérica por “prestar honras fiinebres a alguém’, j4 que suspeitamos, a partir do padrio funersrio homérico, que o rito fiinebre contivesse também a cremagio do cadaver. No caso de Sarpédon, no entanto, o modo textualmente explicitado de imortalizagao 6 bem mais modesto, consistindo apenas na memorizacio do morto efetivada plas ticamente pelo ttimulo ¢ pela estela que maream monumentalmente que ali esto enterrados os restos de um individuo tal. Curiosamente, nem nesta passagem, nem no discurso de Sarpédon a Glauco, referéneia alguma ¢ feita a uma “gléria imoredoura” (KKEog &G8rtOv) como compensagdo para uma morte herdica em combate, mas obviamente alguém poderia contra-argumentar dizendo que a propria Hiada, a0 narrar com detalhes esta morte no canto XVI, se encarrega de imortalizar o herdi. Se é impossivel refutar diretamente este contra-argumento, podemos ao menos relativizé-lo um pouco, lembrando (segundo a formulagio do fecho do discurso de Sarpédon a Glauco) que a gléria maior (para ndo dizer tinica) neste caso € de Patroclo vitorioso, ou seja: é de quem mata e ndo de quem morre (ainda que heroicamente). Como tentamos mostrar em nossa leitura do discurso de Sarpédon a Glauco, a radicalidade maior deste herofsmo licio (que, devemos lembrar, no tem como eausa direta, como € 0 caso dos Troianos, a defesa das mulheres, dos filhos e da cidade) esta ” Ct. Chantraine, P. Dictionnaire éymologique de la langue grecque. Paris: Klincksiek, 1984. Vol. 3-4, p. 1095: On admer maintenant un emprant dune langue d'Asie Mineure: on évoque Iycien “trqqas” qui est le nom d'un diew et en louvite le nom d'un dieu Tarhund., ces formes évant issues dela racine verbale hive tarh- “vaincre”. (..) Cente érymologie suppose que tapy vs signifie originellement “faire un héros de, sraiter commme un diew * Cf, Chantraine, op. cit, vol. 3-4, p. 1095: (..) “Ensevelir solennellement un mort” (..). Le verbe rapzetad S'applique d des funeraitles solennelles et ne signifie jamais “embaumer nuntius antiquus Belo Horizonte a, p16, jo de 2008 em sua nio-referéncia a uma qualquer transcendéncia das honras mundanas possiveis nesta tinica e irreversivel vida mortal do her sendo pois os seus pressupostos incontornaveis a mortalidade e 0 envelhecimento, ambos os quais definem também por meio da negacdo a natureza da divindade. Por isso, nao destacamos como Nagy esta forma exacerbada de reveréneia piblica (de que gozariam Sarpédon e Glauco entre os Licios) express na seguinte formula jodes nos contemplam como deuses” (notes BE Peove die ELoopowow - v. 312), tomando literalmente o “como” (4<) como indicador de uma comparagio (e, portanto, introdutor de uma imagem) e no de uma identidade. Que Sarpédon se rreversivelmente mortal (como qualquer outro herbi iliddico) e que deva, como é seu destino (ou lote de vida), morrer dentro em pouco nesta guerra troiana é precisamente o que diz Hera a Zeus para dissuadi-lo de proteger seu filho, de evitar a sua morte, mas também de infringir uma certa ordenacZo deste mundo de herdis ni -divinos (ainda que sejam filhos de deuses), razdo pela qual Zeus assentira a0 argumento da esposa: Sendo um guerreiro mortal, hé muito destinado a seu tote, queres de volta liberé-lo da morte muito dolorosa? Faze-o; mas nao todos os outros deuses te aprovaremos.”” Referéncias Bibliograficas ALLEN, Th. W.; MONRO, D. B. Homeri opera: lias. Seventeenth impression, Oxford: University Press, 1989. Tomi L-II. ASSUNCAO, Teodoro Renné. Nota critica & “bela morte” vernantiana, Classica. Sa0 Paulo, vol. 7/ 8, p. 53-62, 1994/ 1995. BENVENISTE, Emile. Le pouvoir magique. In: Le vocabulaire des institutions indo-européennes 2. 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