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Exclusão digital e fotografia: apropriações

e utilizações dos equipamentos de captação da imagem

Daniel Meirinho De Souza

Resumo

O objeto deste artigo parte das relações criadas entre os


indivíduos e as tecnologias digitais de captação fotográfica.
É desenvolvido um entendimento sobre os avanços, as
transformações e a popularização que a fotografia tem
sofrido, até chegar a uma alargada acessibilidade. Com
base no levantamento de dados recolhidos a partir de
uma amostra sistemática de entrevistas realizadas por
investigadores de Lisboa, Coimbra e Porto, para o projeto
de investigação “Inclusão e participação digital”, esta
análise procura compreender as apropriações e utilidades
dadas à imagem fotográfica e aos equipamentos de
captação imagética por parte dos indivíduos entrevistados,
incluindo a utilização e captação da fotografia gerada pelos
celulares como ferramenta digital, as suas especificações
e características, e a relação que a fotografia possui com a Palavras-chave:
Fotografia, inclusão
memória e o registro, enquanto função social. digital, celulares

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Photography and digital exclusion:
appropriations and uses of
image capture equipment

Daniel Meirinho De Souza

Abstract

The purpose of this article part of relations established between


individuals and the technologies of digital photo capture. It
developed an understanding of the advances, changes and
popularization that photography has to suffer, until you reach
a wider accessibility. Based on survey data gleaned from a
systematic sample of interviews conducted by researchers from
Lisbon, Coimbra and Porto, for the research “Digital Inclusion
and Participation”, this analysis seeks to understand the uses
and appropriations given to the photographic image and
equipment to capture imagery from individuals interviewed,
including the use and collection of photographys generated by
mobile phones as digital tool, its specifications and features,
Keywords:
Photography, digital inclusion,
and the relationship that photography has with memory and
mobile phones and memory registration as a social function.

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Introdução

O “fosso digital” em que se encontram algumas parcelas sociais pas-


sa a intensificar-se como objeto de interesse político e acadêmico a
partir da década de 90 (SELWYN, 2006). No início do século XXI,
alguns entusiastas tecnológicos, como Strover (2003) e Compaine
(2001), declararam a exclusão digital como vencida, ou pelo menos
em vias de extinção. No entanto, a equidade de acesso ainda está
longe de ser alcançada. São gritantes as desigualdades criadas pela
tecnologia, sendo esta uma barreira limitadora entre os que estão
imersos no conhecimento e os que dele se encontram excluídos. É
possível crer que os alicerces para a compreensão do “fosso digital”¹
passam pelo entendimento entre inclusão e exclusão digital e o seu
grau de correlação com a exclusão social. Jung (2001), na sua pesqui-
sa, ressalta que a exclusão digital pode ser apenas uma característica
superficial, que mascara as desigualdades sociais mais importantes.
Entendemos que a partir da condição de acesso poderemos obter
uma das diversas variáveis que condicionam a compreensão, de for-
ma mais analítica, das problemáticas de desigualdade e “marginali-
dade” social.
Desenvolvemos um entendimento sobre os avanços, as
transformações e a popularização que a fotografia tem vindo a
sofrer, até chegar a uma alargada acessibilidade. O seu baixo cus-
to, as melhores condições para aquisição de equipamentos, bem
como a sua agregação a outros aparelhos como celulares e PDAs,
mostram a função híbrida que a fotografia têm vindo a assumir
no campo tecnológico. A fotografia digital, hoje, apresenta mu-
danças radicais através da imediata visualização da imagem, dos
menores custos de produção, além de uma grande facilidade em
manipular, editar e difundir a imagem. Em poucas palavras, a fo-
tografia ganha um novo suporte que a populariza e a torna mais
presente na vida cotidiana das pessoas.

Daniel Meirinho (FCSH/UNL, LiSboa) . Exclusão Digital e Fotografia: apropriações e utilizações (...) 271
Este artigo é constituído por um enquadramento teórico,
no sentido de identificar qual o ponto de situação referente às
pesquisas nas áreas da fotografia e inclusão digital realizadas
no mundo. Uma reflexão teórica fundamentada serve como
base estrutural para a análise empírica. As orientações meto-
dológicas são os pontos norteadores para traduzir as motiva-
ções que levaram ao propósito deste trabalho.

A fotografia como ferramenta tecnológica


É pelo fato da sociedade atual se encontrar em contato direto
com algumas tecnologias que propomos analisar as transfor-
mações e influências de uma, em específico: a fotografia. Par-
timos do pressuposto de que, com os avanços tecnológicos no
campo imagem fotográfica, esta se torna parte integrante das
relações interpessoais, pois nela estão eternizados recortes de
momentos que não se poderão repetir, existencialmente.
A partir do instante em que a fotografia é analisada como
uma tecnologia, através da sua popularização, a imagem fo-
tográfica torna-se uma influência crescente nas relações com
pessoas, objetos, conhecimento e a imaginação de cada indi-
víduo. É verdade que tal situação pode ser observada com a
pintura, antes do surgimento da daguerreotipia², no século
XIX. Entretanto, nunca seria tão divulgada e acessível como
na era digital. O fato é que a imagem fotográfica tem vindo a
passar por uma transformação radical na sua função social na
vida cotidiana (BOURDIEU, 1965).

2.1 As transformações referentes à função so-


cial da fotografia
A fotografia transgride o poder temporal e simbólico e assu-
me um papel de representação de momentos, lugares, ob-
jetos e lembranças de bons tempos. Carole Rivière (2006)
apresenta ideias distintas quando afirma que a função da
fotografia, particularmente a de registro familiar, não de-
saparece com avanços tecnológicos, mas se altera. Sobre a
sua função, assume que “têm gradualmente alargado a prá-
tica de situações fotográficas cada vez mais diversificadas,
profanado o seu uso, até agora reservado para momentos
excepcionais” (RIVIÈRE, 2006, p.120). Van House (2005)
confirma a teoria quando diz que “com uma câmara sempre
disponível e com fácil visualização e partilha de fotografias,
as pessoas têm encontrado novas formas de usar as imagens

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para suportar usos sociais. Formas estas não utilizadas an-


teriormente.” (VAN HOUSE et al., 2005, p.1856).
Um dos processos mais significativos de avanços e trans-
formações que a fotografia viveu ao longo da sua história, mais
ainda do que a invenção da Kodak por George Eastman³ ou a
migração do analógico para o digital, tem sido a associação
da fotografia a outros dispositivos como o celular. Tal situação
pode ser verificada pela relação de extensão do corpo e situa-
ção de domesticação e dependência que os celulares assumem
na sociedade atual. A função de obtenção da imagem fotográ-
fica pelo dispositivo telefónico concretiza o sonho de uma câ-
mera portátil, que qualquer pessoa pode levar para qualquer
lugar, mas que não apresente apenas um único recurso: a de
captação fotográfica. Os indivíduos que precisavam carregar
um equipamento fotográfico, ao sair de casa, agora estão mu-
nidos do aparato constantemente.
A popularização da coleção de imagens da vida cotidiana
tornou-se realidade com a Kodak, em 1889. Com o slogan You
press the button, we do the rest4, Eastman transformou o ato fo-
tográfico num ato fácil, popular e sem necessidade de técnicas
e conhecimentos mais avançados. No entanto, hoje em dia, se-
gundo Rivière (2006), a imagem fotográfica alcançou um nível
ainda maior de acesso e reprodução com as câmeras acopladas
aos celulares. Desta forma, a popularidade dos equipamentos fo-
tográficos, para captar momentos domésticos e habituais, atinge
o seu apogeu. A autora vai mais além quando diz que “o ‘telefo-
ne móvel’ é o primeiro estado, a prótese da pessoa” (RIVIÈRE,
2006, p.121). Assim, comenta que o celular conduz a um efeito de
banalização do ato de fotografar, permitindo às pessoas fazê-lo
diariamente, a qualquer hora e de qualquer maneira.
A autora aponta ainda que a utilização da fotografia pe-
los celulares constitui uma mudança fundamental na função
social da fotografia. A autora afirma que as fotos ou vídeos
captados pelos telefones não são produzidos para marcar a
memória, para imprimir ou guardar álbuns. Segundo a pes-
quisadora, existem concepções distintas entre a fotografia tra-
dicional e a gerada por telefone.
Esta divergência não se trata de eternizar o momento e re-
cordar os laços sociais, mas de circular na rede, através dos envios
rápidos e imediatos. É trocar com o outro, pela rede, ou mesmo
mostrar diretamente para quem está ao lado o “veja essa foto que
fiz agora”, ou como diz Rob Shields (2003): “olha! É nos 5 segun-
dos atrás!”. O que importa, como explica Rivière, é marcar o pre-
sente banal e não os momentos especiais e solenes.

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Barbara Scifo (2005) prefere observar este fenômeno de mu-
dança através de um olhar sociológico. Para a autora, o ato de
fotografar transformou-se com o telefone em algo lúdico e não
banal. Uma essência quase mágica, onde acontece um jogo de
capturar imagens e partilhar com amigos.
Estudos feitos no Japão, Finlândia, França e Itália (KOSKI-
NEN, 2004; KATO, OKABE et al., 2005; RIVIÈRE, 2005; ROU-
CHY, 2005; SCIFO, 2005; GOGGIN, 2006) mostram que a maior
parte dos utilizadores de câmaras fotográficas pelos celulares não
fazem, ou não se preocupam em fazer, um backup do material
visual produzido. Os utilizadores enviam as fotografias a amigos
ou usam-nas como fundo de tela do aparelho, sem a preocupa-
ção de guardar estas imagens como memória. Neste caso, a di-
fusão imagética é feita de forma diferenciada daquela usual de
arquivar as imagens em álbuns.
Tomamos como exemplo um dos diversos estudos publica-
dos sobre a utilização e função da imagem fotográfica gerada por
celulares. Uma pesquisa feita em 2003, no Japão, com jovens e
adolescentes aponta que as fotografias digitais captadas pelos
celulares faziam parte de um processo de socialização e eram
compartilhadas, apenas, com as pessoas mais íntimas do círculo
de amizades. Okabe (2004) diferencia estas das obtidas por uma
câmera fotográfica tradicional. Através do estudo, o investigador
observa que as imagens num telemóvel são de curta duração e
mais efémeras. Podem ser tiradas para compartilhar um momen-
to com alguém e depois serem apagadas. Situação contrária é re-
gistrada com fotografias feitas com uma câmera fotográfica, por
exemplo, de turista ou profissional, onde as imagens são feitas
com a finalidade de serem arquivadas. “Os telefones com câmera
alteram a definição de que a fotografia é especial e duradoura,
para transitórias e ordinárias” (VAN HOUSE et al., 2005, p. 1854).
Scifo (2005), no seu estudo, apresenta uma visão distinta. Para a
investigadora italiana, as fotografias geradas por telefone não apre-
sentam o caráter de curta duração, mas continuam a ter a função de
registro. O dispositivo telefônico até potencializa o acesso ao arqui-
vo. “A câmera do telefone também funciona bem como um arquivo
fotográfico de memórias, um arquivo dentro dos celulares de fácil
alcance. Algo para olhar repetidamente” (SCIFO, 2005, p.365).
Apesar de a investigação de Okabe ter sido desenvolvida há oito
anos – muito tempo quando falamos de inovações e domesticação
tecnológica – e no Japão, que apresenta um contexto social, econô-
mico e cultural bastante diferenciado, não sendo possível uma com-
paração direta com a pesquisa proposta neste artigo, é importante
perceber que os indivíduos estão a utilizar a convergência digital dos

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celulares nas suas relações sociais. Mesmo os jovens japoneses, no


estudo Uses and Possibilities of the Keitai Camera, assim como os
nossos entrevistados ao compartilharem fotografias de algum acon-
tecimento do dia, passam a interagir com seus familiares e amigos
através das imagens captadas.
A partir da sua funcionalidade como registro do real, a imagem
fotográfica assume uma função social de tornar eternos os mo-
mentos, sejam estes de reunião social ou familiar, pela captação de
momentos solenes e para reforçar a integração do grupo familiar.
Existe claramente a intenção do registro que reforçará a memória
através do arquivo, no que Bourdieu (1965) chamava de “verdade da
lembrança” e Barthes (1980) de “ratificação do passado”. A prática
também requisitava o momento solene, o tempo de revelação do
filme e a documentação em álbuns. É com o regresso ao álbum, dos
momentos familiares (volta ao passado), que a fotografia consegue
reforçar a memória individual e coletiva.

2.2 Fotografia e memória


Com a evolução dos processos e a popularização da fotografia,
os retratos em família passam a ser produzidos sem a presença
de um profissional, permitindo que os familiares produzam as
suas fotografias e os seus álbuns, perpetuando assim, mais efi-
cazmente, uma memória secular. Bourdieu (1965) evidencia o
significado do “álbum de família”, quando afirma:

A galeria de retratos democratizou-se e cada família tem, na


pessoa do seu chefe, o seu retratista. Fotografar as suas crian-
ças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar-lhes,
como um legado, a imagem dos que foram... O álbum de fa-
mília exprime a verdade da recordação social. (BOURDIEU,
1965, p.53-54).

Para fundamentarmos melhor a função que a fotografia


possui como objeto de memória, partimos do pressuposto de
que a fotografia apresenta e representa um real reproduzido
de um determinado recorte do tempo e do espaço. Se cons-
tatarmos que a imagem fotográfica é a revelação de um olhar
que observa um determinado momento histórico, pode ser
apresentada como realizadora da construção e produção da
memória, sendo essa representada pela imagem. A reconsti-
tuição, seja de recordação pessoal ou histórica, irá provocar
um processo de (re)criação de realidades.
Historicamente, a fotografia passa a ser o suporte

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ideológico para uma representação “perfeita” do real
que o homem moderno perseguia desde a Antiguidade.
Esta imagem transforma-se num elemento referencial
da ação, caracterizando uma lembrança provocada pelo
olhar que vê e uma síntese da memória pessoal de cada
indivíduo. A partir dessa lembrança, são construídas re-
des de significados precisos que singularizam a rememo-
ração pelo ato emocionado. Esta provoca no observador,
a partir da cumplicidade estabelecida entre ele e a ima-
gem, a sensação de que aquele momento já não existe,
mas que é permanente na realidade da fotografia.
Segundo Pollak (1992), a memória é constituída por
acontecimentos, por pessoas/personagens e por lugares.
“Existem lugares da memória, lugares particularmente
ligados a uma lembrança, que pode ser uma lembrança
pessoal, mas também pode não ter apoio no tempo cro-
nológico” (POLLAK, 1992, p. 2).
Dubois (1984) afirma ainda que “a memória é feita de
fotografias” (DUBOIS, 1984, p. 314-317), sendo a imagem
fotográfica, portanto, uma das formas modernas que
melhor encarna o prolongamento das artes da memória.
Dubois salienta também que a memória pode ser enten-
dida como uma máquina, feita de câmera (os lugares) e
de revelações (as imagens).
O fato é que a fotografia historicamente foi – e continua
a ser – um fenômeno que revolucionou a memória, a so-
ciedade da época e o pensamento moderno. A concepção e
visão de mundo alteraram-se a partir do seu advento com a
sua chamada visão imparcial, precisa, metódica, inequívo-
ca, que muito contribuiu nos campos da evolução tecnoló-
gica, informativa, dedutiva, historiadora do campo social.
Este é o grande valor pertencente à fotografia. Com ra-
zão, Le Goff (2003) afirma que esta “revolucionou a me-
mória” pois, de imediato, a fotografia pode ativar a memó-
ria, falar sobre um passado, permitir revivê-lo no presente,
mesmo não sendo pertencente ao indivíduo que a observa,
mesmo não sendo até a rememoração de seu passado.

Fundamentos metodológicos
para a análise dos dados
Com a finalidade de tentar esclarecer algumas questões que ron-
dam a fotografia e com base na teoria propostas relativamente
à sua função social e a relação criada com os seus utilizadores,

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sugerimos algumas questões para análise. Entre elas: Para quem


fotografa, existem diferenças entre captar uma realidade a partir
de dispositivos distintos? É possível afirmar que a fotografia está
a passar por uma transformação da sua função social com a mi-
gração para o digital? A fotografia promove laços familiares e de
integração social? Se sim, existe uma relação entre a imagem fo-
tográfica, as recordações e lembranças das pessoas? O que muda
com as tecnologias digitais de captação da imagem fotográfica?
Quais são as variáveis que marcam as relações de apropriação en-
tre os indivíduos e a fotografia?
Como suporte para responder a estas questões, procura-
mos uma análise mais detalhada das entrevistas a 65 famílias
residentes em Portugal, no âmbito do Projeto Inclusão e Par-
ticipação Digital (2009-2011). Entre as problemáticas a serem
trabalhadas pelo Projeto, estão questões voltadas para as de-
sigualdades sociais traduzidas pelas disparidades de acesso e
uso das tecnologias por diferentes indivíduos e famílias, ten-
tando estabelecer uma reflexão nas condições, apropriações e
naturezas desta utilização e participação.
As entrevistas semi-estruturadas foram desenvolvidas a
partir de um questionário aplicado entre os meses de Novem-
bro e Dezembro de 2009, nas cidades portuguesas de Lisboa,
Porto e Coimbra. O questionário foi estruturado em duas par-
tes, sendo a primeira com questões voltadas para a história, vi-
vências e trajetórias de vida dos entrevistados e uma segunda
com perguntas relacionadas com as utilizações, apropriações,
condições de acesso e uso dos mídia digitais. Foram inquiri-
dos dois membros da mesma família de diferentes gerações.
Após a realização das entrevistas, iniciamos a análise e
leitura das mesmas. A partir da decomposição, foram cruza-
dos as respostas que mencionam a fotografia com as seguintes
variáveis: sexo, idade, estatuto socioeconômico, utilização e
apropriação dos equipamentos fotográficos.
Apesar do questionário conter apenas uma única questão
diretamente relacionada com fotografia: Tem uma câmara foto-
gráfica ou de filmar? O que costuma fazer habitualmente com
ela? Quando era criança, a sua família também tinha estes equi-
pamentos?, existiam outras referências ao ato de fotografar.
Como algumas respostas apontam o uso dos celulares
para a captação de fotografias, também achamos necessário
incluir as três perguntas relativas ao tema inseridas no inqué-
rito. No entanto, só foram dissecadas as respostas em que os
entrevistados comentavam a utilização de recursos fotográfi-
cos nos seus celulares. Entre elas estão: Tem celular? Que tipo

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de celular possui, que características tem? Que tipo de utili-
zação lhe costuma dar? E em relação à sua família, quem foi
a primeira pessoa na família a ter um celular? (no caso de ser
imigrante) Usa o celular para contactar a sua família e amigos?
Que outros meios usa para contactar a sua família?
A partir deste contexto, e com estes dados disponíveis para
análise, foi feita uma observação analítica com a finalidade de
tentar entender as relações existentes entre os entrevistados e a
imagem fotográfica. Neste caso, chamaram-nos a atenção as res-
postas referentes a fotografias obtidas pelos celulares e de que
forma esse suporte visual é utilizado como objeto de memória.

Apropriações e utilizações dos


equipamentos fotográficos
Os entrevistados, quando questionados se o equipamento fo-
tográfico ou de filmar estava presente nas suas infâncias, res-
pondem sempre com um saudosismo de um passado que já
se foi, mas continua a ser imortalizado graças aos registros
fotográficos. Esta é a relação presente entre a fotografia, a
lembrança e as memórias de cada indivíduo. Observamos que
igualmente os entrevistados, independente do seu estatuto
socioeconómico, género e geração, comentam que possuem
registros fotográficos arquivados.
Ao tentar-se fazer um perfil básico dos entrevistados, visualiza-
mos que os que possuem menor utilização de dispositivos fotográfi-
cos são homens, acima dos 45 anos, com baixa escolaridade. Nestes,
as câmeras estão sob encargo, normalmente, dos filhos, netos ou
esposa. No ponto referente ao gênero, os membros familiares femi-
ninos despontam como utilizadores frequentes dos dispositivos fo-
tográficos. A questão da situação económica e social não é necessa-
riamente um empecilho para obter tais equipamentos. Isso deve-se
ao fato do mercado apresentar ofertas acessíveis. Assim, a condição
socioeconômica da família pode ser uma variante importante, no
que se refere à especificação e funcionalidades do equipamento,
mas não à posse destes dispositivos.

4.1 A fotografia feita por celulares


Um fato notório, na leitura das entrevistas realizadas, é que
quase metade dos entrevistados anunciam já não utilizarem
as máquinas fotográficas enquanto aparelho de captação de
imagem, sendo este equipamento substituído pela função de
câmera fotográfica de alguns celulares.

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“Hoje em dia, quem têm um bom telemóvel já não precisa


de uma câmara. Eu tenho um telemóvel. Tem três mega pi-
xels. (…) o meu telemóvel5 faz fotografias de qualidade como
uma máquina de três mega pixels faz. Por isso é que eu não
tenho câmara. Tenho lá uma câmara em casa, mas não a uso.”
(Português e Segurança, 47 anos).
Do total das entrevistas aplicadas, observamos que mais
da metade dos entrevistados possuem um celular com o re-
curso de câmera fotográfica. Destes, quase metade afirmam
utilizar a captação fotográfica através do aparelho, contra uma
pequena parcela que declara não a usar. Os utilizadores das
funções do dispositivo para fotografar são maioritariamente
os membros da família mais jovens ou adultos até os 40 anos,
com algumas poucas exceções.
As pessoas após os 40 anos mostram-se mais adversas
a essas utilizações do seu aparelho de telefone móvel. Esse
comportamento pode ser analisado pela idade dos indivíduos
decorrente do pouco interesse pela tecnologia. Em certa en-
trevista, uma senhora de 42 anos, que diz fazer uso assíduo
das tecnologias através do computador e da Internet, quando
questionada sobre as funções do seu telefone celular, afirma
que este apresenta recursos tecnológicos híbridos, mas utili-
za-o para a função mais básica que ele proporciona.
“Sei que faz imensas coisas que eu não utilizo, estou a ficar
velhinha e nunca utilizei. Sei que dá para gravar Mp3, que tira
foto, dá pra filmar, essas coisas. Essencialmente dá pra telefonar.
(…) oh, faz isso, têm lá fotos, tem lá filmes, às vezes me pergunto,
mas pra que isso?” (Portuguêsa e Secretária, 42 anos).
Não existe uma grande diferença entre os utilizadores
com maior ou menor grau de habilitações literárias. Assim,
como os que possuem mais ou menos capital cultural, ou até
econômico. Com a acessibilidade dos valores de aquisição
de celulares com recursos múltiplos em Portugal, mesmo os
entrevistados com condições financeiras mais desfavoráveis
conseguem ter posse de um aparelho com, pelo menos, a fun-
ção de câmera fotográfica.
Apesar de metade dos entrevistados afirmar não possuir
mais câmeras fotográficas, mencionam fazer fotografias, na
mesma, a partir dos seus aparelhos telefônicos. Alguns dizem
que a maior parte das utilizações que dão aos celulares é mes-
mo a de câmera fotográfica. “Quando eu vou a algum lado, tiro
uma fotografia para ficar como recordação. Tiro fotografias à
minha família para ficar aqui guardado (…) e é essa a utili-
zação do telemóvel.” (Português e Estudante, 17 anos). “Hoje

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em dia, quem tem um bom telemóvel já não precisa de uma
câmara.” (Segurança, 47 anos).
Estudos nesta área, como os de Ling (2004), Castells
(2007) e Goggin (2006), comprovam que as funções fotográ-
ficas, audição de música e envio de mensagem (SMS e MMS)
estão na mesma proporção que a utilização básica do disposi-
tivo, a de fazer ligações.
Enquanto a câmera apenas capta instantes festivos, deter-
minados e pontuais, o celular captura imagens do cotidiano,
pois está sempre à mão. Esta análise reforça alguns estudos ci-
tados como os de Koskinen (2004), Kato, Okabe et al. (2005),
Rivière (2005), Rouchy (2005), Scifo (2005) e Goggin (2006),
que apontam para uma mudança na função social da fotogra-
fia. A partir das respostas apresentadas, é possível perceber as
diferenças entre as fotografias tiradas pelas câmaras fotográ-
ficas e as captadas pelas câmeras incorporadas aos telefones.
Esses usos e funções distintos são apontados no nosso enqua-
dramento teórico realizado.
“Uma coisa quando eu acho ‘bacana’ é quando eu estou
em algum lugar e me apetece de gravar aquela imagem e eu
lembro que eu tenho telemóvel e isso, para mim, é uma das
coisas que eu mais gosto da modernidade.” (Imigrante brasi-
leiro e Officie Boy, 35 anos)

4.2 Gênero e imagem


O grupo de entrevistados mais jovens e, especialmente, do
sexo feminino comentam utilizar com mais frequência o re-
curso fotográfico dos seus celulares. Segundo trabalhos da
historiadora brasileira Miriam Moreira Leite (2000), sobre
“retratos de família”, e da antropóloga Myriam Lins de Bar-
ros (1989), sobre “álbuns de família”, as mulheres, dentro do
grupo familiar e de amigos, assumem o papel de “guardiãs”
das memórias familiares e dos seus grupos de relações. Desta
forma, podemos dizer que, no aspecto do registro e memória
fotográfica, é na adolescência que se inicia uma ‘carreira’ de
responsáveis pelas lembranças e recordações.
Nas entrevistas, também se observa a importância do pa-
pel da mãe como retratista e conservadora das lembranças
familiares. À matriarca é confiada uma responsabilidade so-
cial de preocupação e acompanhamento do crescimento dos
filhos, além da preservação, organização, catalogação das fo-
tos e da memória fotográfica da família. Uma imigrante bra-
sileira, que afirma fazer uso assíduo do computador e Inter-

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net, confirma: “A minha mãe era muito adepta a foto, sempre


gostou muito e tínhamos muito mesmo. Também, com cinco
filhos, não é?” (Imigrante brasileira e Manicure, 42 anos). “Eu
adorava tirar fotografias. Antes de mim, a minha mãe adorava
tirar fotografias, e antes de eu nascer eles já tinham uma câ-
mara”. (Portuguesa e Formadora, 27 anos)
Para Lins de Barros (1989) o guardião da memória “está refe-
rido à família quando constrói para si e para os familiares o per-
fil desse papel social. Não é uma motivação individualizada que
leva o coleccionador a procurar, investigar, encontrar e conservar
seus bens preciosos. Ele está imbuído de um papel social que lhe
confere o direito e também a obrigação de cuidar da memória do
grupo familiar” (LINS DE BARROS, 1989, p. 38).
No entanto, é notório que esta função nem sempre foi de
responsabilidade do membro feminino da família. Quando os
entrevistados são questionados sobre se tinham equipamen-
tos fotográficos na sua infância, referem-se sempre a figa mas-
culina paterna como o “fotógrafo”, ou pelo menos o detentor
da câmera. Às mulheres, mães, era concebida apenas a res-
ponsabilidade de arquivar e manter as recordações guardadas.
Um homem, com ensino superior e uso assíduo do computa-
dor e Internet, diz: “O meu pai sempre teve uma câmara e,
quando saíamos, tirávamos fotografias e sempre tive isso em
casa.” (Português e Desempregado, 22 anos).
É perceptível uma mudança nos papéis impostos socialmen-
te a quem é determinada uma responsabilidade específica. Nas
entrevistas, observamos que atualmente o gênero feminino da
família é quem mais frequentemente assume a função de gerador
e também conservador das recordações e memórias familiares.

4.3 Fotografia como objeto de memória


Um ponto observado na análise é como as fotografias servem de
objetos de registro, memória e recordação de ocasiões e momen-
tos especiais como festas, aniversários, férias, etc. Alguns dizem
que em momentos de encontros familiares tiravam muitas fo-
tografias e estes são recordados, hoje, graças a este registro. Em
certo momento, uma entrevistada, que diz fazer algum uso das
tecnologias digitais, descreve: “O meu pai tinha uma máquina
fotográfica (…) Temos montes, temos centenas de fotografias que
o teu pai tirou”. (Portuguesa e Escriturária, 35 anos)
A partir das respostas dos entrevistados, é possível arris-
carmos afirmar que tais momentos e memórias passam a não
ser gravados nas suas lembranças e recordados se não houver

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um registro. A pesquisadora brasileira, Maria Inez Turazzi
(1995), afirma que a fotografia é que credibiliza a veracidade e
autenticidade do acontecimento.
Uma entrevistada, que diz fazer raro uso do computador
e Internet, quando questionada sobre como são as festas fa-
miliares, lembra que logo quando se coloca em um momento
“especial”, todos já questionam a participação e presença da
máquina fotográfica para a geração do arquivo, que apresenta
a função futura de rememoração e até afirmação de que dada
ocasião existiu: “É pá, a fotografia, é pá a máquina, é pá, vai lá
buscar (…) É pá, passou o Ano Novo, nem tirámos uma foto-
grafia…”. (Portuguesa e Trabalhadora fabril, 41 anos).
Sobre a veracidade e autenticidade de um fato, Turazzi
(1995) afirma que a fotografia é que credibiliza o acontecimen-
to, quando relata que:

A escola histórica filiada ao positivismo, ao transformar os su-


portes da memória coletiva em documentos com valor de “pro-
va” do tempo passado na história das sociedades, converteu a
fotografia – mesmo sem o pretender – em ‘testemunho’ por ex-
celência da evolução do tempo (TURAZZI, 1995, p. 31).

Neste sentido, pode-se dizer que as possibilidades de lem-


brança dos momentos diminuem e podem ser apagados por
completo das memórias individuais e coletivas caso não exista
um registro para recorda-los. Uma senhora com 90 anos exibe
ao entrevistador as suas recordações a partir das fotografias
emolduradas nos porta-retratos pousados em um móvel da
sala. Ela não possui uso assíduo das tecnologias e não men-
ciona as fotografias geradas por celulares, muito menos por
equipamentos de captação digital. Para a entrevistada, a ima-
gem fotográfica ainda é algo “palpável” que merece um desta-
que na casa. “Eu tenho fotografias de todas as maneiras. Olhe,
a minha filha, a mãe da Susana, tem lá uma bem bonitinha
(referindo-se as fotografias na mesa) num carrinho de bebé
quando era pequenina.” (Portuguesa e Doméstica, 90 anos).
As fotografias são diversas vezes citadas pelos entrevis-
tados como recordações de momentos “especiais”, mas na
grande maioria, se não em todas, de ocasiões felizes e nunca
tragédias e lembranças tristes. Assim, a imagem fotográfica
assume o seu papel artístico e estético de captar o belo, e o seu
papel psicossocial de ser uma representação de momentos
que valem a pena ser guardados e relembrados. Neste senti-
do, podemos entender que a memória é o que, na fotografia,

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fica registrado se materializa e se imortaliza. Em certa altura


uma mulher, com uso assíduo da internet, comenta: “A gente
tirava fotos nos momentos mais importantes da família. Nos
encontros, aniversário e essas coisas. (…) sempre utilizei mui-
to a máquina fotográfica. Durante o meu percurso na univer-
sidade. Tenho fotografias de quase todos os momentos: testes,
aulas, jantares, estudo, noites de estudo…”. (Portuguesa e En-
genheira do ambiente, 35 anos).
Os entrevistados dizem utilizar mais as câmeras fotográfi-
cas e de filmar em determinadas épocas sazonais, festivas e mo-
mentos que apresentam uma certa importância nas suas vidas,
como Natal, aniversários, fim de ano, férias e verão. Uma jovem,
em certa altura comenta: “É mais para o verão, digamos que é
mais memórias, que eu nunca vou esquecer, como este verão que
nunca vou esquecer, porque tenho tudo gravado”. (Portuguesa
e Estudante, 15 anos). “Utilizo. Mas é mais no Verão. Assim, no
Inverno usa-se quando é aniversários ou Natal. Mas tirando isso,
não se usa”. (Português e Estudante, 16 anos).

O fim da coletividade do equipamento fotográfico


Bourdieu (1965) assinala que a câmara fotográfica é considera-
da a propriedade comum do grupo familiar. Esta acompanha
as ocasiões referentes a este grupo, limitada a oportunidades
de socialização deste grupo e alguns poucos objetos.
Uma característica observada em relação à utilização dos
equipamentos fotográficos e de filmar é a de que, aos poucos,
os dispositivos abandonam a sua particularidade de uso fami-
liar para ser um objeto pessoal onde cada membro da família
possui o seu. Alguns entrevistados dizem não possuir câmeras
fotográficas, mas dizem que os seus pais ou filhos às possuem.
O mesmo entrevistado afirma já não precisar de câmera fo-
tográfica, já que o celular substitui as suas funções. Quando
questionado pelo entrevistador se possui máquina fotográfi-
ca um homem afirma: “Não tenho (…) o meu filho tem uma”.
(Português e Segurança, 47 anos).
Já uma mulher de 33 anos comprova que não é possuidora
do seu equipamento próprio, mas faz utilização da máquina
fotográfica dos seus pais. Quando interrogada sobre o mes-
mo assunto, revela: “Costumo usar uma emprestada que é da
minha mãe, mas eu minha não tenho”. (Imigrante brasileira
e Auxiliar Administrativa, 33 anos). “Temos 3 máquinas fo-
tográficas, uma é minha outra é da minha irmã e outra é da
minha mãe”. (Portuguesa e Estudante, 16 anos)

Daniel Meirinho (FCSH/UNL, LiSboa) . Exclusão Digital e Fotografia: apropriações e utilizações (...) 283
No entanto, as respostas não apontam se o equipamento
de captação fotográfica ou de filmar que possuem é digital ou
analógico, dificultando uma análise mais específica sobre a
especificação do dispositivo.
Essa característica de individualidade do dispositivo tam-
bém pode ser associada pelas multifunções que os seus celu-
lares possuem e por não sentirem mais a necessidade de aqui-
sição de uma câmera fotográfica tradicional.

4.5 Outros pontos de análise


Apesar de o questionário não aprofundar questões mais es-
pecíficas sobre a relação entre a imagem, os computadores e
a Internet, foi possível verificar alguns casos pontuais. Estes
referem-se ao computador como uma espécie de “álbum di-
gital” ou arquivo fotográfico. Um homem que trabalha como
diretor de empresa de softwares educativos afirma: “Temos
também um computador que funciona como um repositório
dos conteúdos gerais, das fotografias, portando as coisas que
partilhamos”. (Português e Director de empresa, 35 anos)
Um jovem universitário, de 22 anos, relata fazer usos fre-
quentes de edição fotográfica a partir de ferramentas infor-
máticas, uploads e downloads de imagens da Internet. “Atu-
almente, eu tenho uma câmera digital que também filma e
eu adoro usar, mesmo para tirar fotos, eu estou sempre ac-
tualizando os meus sites, essas coisas e, em viagens, princi-
palmente, o hobby que eu tenho é filmar, fazer um diário da
viagem toda e depois editar e colocar na internet”. (Imigrante
brasileiro e Estudante universitário, 22 anos).
Como a questão referente ao uso de equipamentos foto-
gráficos também abrangia às câmeras de filmar, fizemos uma
pequena reflexão. Poucos são os entrevistados que revelam
ter. No entanto, a maioria que afirma possuir câmeras de fil-
mar diz que estas estão acopladas como um recurso extra das
máquinas fotográficas e dos celulares. Menos de dez entre-
vistados comentaram ter um dispositivo de captação de vídeo
com a única finalidade de filmar. Uma senhora, auxiliar de
ação educativa, de 37 anos, afirma: “Tenho máquina de foto-
grafia digital, que dá para tirar fotografias e para filmar. Mas só
de filmar, não.” (Portuguesa e Auxiliar de educação, 37 anos).
Os membros mais adultos das famílias afirmam que pos-
suíram, em determinada fase da vida, um equipamento de fil-
mar. Lembram com saudosismo da sua utilização. Esta não só
relacionada a ocasiões especiais, mas também a fatos dos seus

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cotidianos: “Fazia filmes (risos). Fazia-mos montes de filmes


(…) filmar as pessoas na rua (risos) e os cães e não sei porque.
O meu pai tinha uma máquina de filmar quando eu era mais
miúdo, não sei que idade eu tinha ao certo mas ele tinha. Ele
ainda tem algumas coisas nossas. Ele até tem passado algumas
coisas para DVD. Volta e meia a gente vê algumas coisas anti-
gas, é engraçado”. (Português e Técnico multimédia, 31 anos).
Outros fazem uma associação imediata ao recurso hí-
brido da sua câmera fotográfica ou a função contida no seu
celular. Quando perguntado onde estaria a sua maquina foto-
gráfica um homem de 53 anos afirma: “Nada, está guardada.
Estou aqui com o telemóvel”. (Português e Proprietário de um
restaurante, 53 anos).

Considerações Finais
Com as transformações impostas pelos avanços tecnológicos,
é perceptível que a imagem passa a assumir um importante
papel na comunicação interpessoal. Observa-se que algumas
tendências e mudanças nas relações interpessoais se alteram
com o surgimento do digital na vida cotidiana das pessoas.
Tentamos desta forma responder a questão se “a fotografia
promove laços familiares e de integração sócial”. Com o de-
senvolvimento da análise deste trabalho constatamos que
a imagem favorece novas formas de sociabilidade, de laços
familiares e sociais já que “seria muito pouco convencional
arquivar fotografias de estranhos para um álbum de família”
(FROHLICH, 2004, p. 37-38).
Se existe uma relação entre a imagem fotográfica, as recorda-
ções e lembranças das pessoas, pode-se afirmar que a memória é
um referencial da condição humana e desde sempre o homem se
preocupa em deixar marcas da sua existência que um dia lhe da-
rão sentido. Assim, ao promover uma ligação entre um passado
que foi registrado e que se reflete na imagem fotográfica, produz-
-se um efeito de referenciação de momentos que fazem parte da
história de cada indivíduo, podendo despertar sentimentos. Seu
imaginário trabalha criando uma ilusão intemporal. É como se
as suas lembranças retornassem naquele momento e promoves-
sem uma satisfação pessoal através de instantes eternizados pela
imagem. Sejam esses momentos positivos ou negativos, sempre
serão representados na relação de proximidade que as fotografias
têm de trazê-los de volta.
A fotografia, desta forma, passa a ser um suporte perfeito,
pois carrega consigo o real retratado por ela e a credibilida-

Daniel Meirinho (FCSH/UNL, LiSboa) . Exclusão Digital e Fotografia: apropriações e utilizações (...) 285
de e reafirmação de que aquele momento existiu. O digital só
facilita esse processo e o coloca à disposição de uma grande
parcela da sociedade.
A sociedade de consumo, regida pela generalização de
uma regra de produção de objetos de consumo, impulsiona a
novos hábitos e mudanças com a velocidade a que os avanços
afetam os indivíduos e os grupos. A acessibilidade e funcio-
nalidade que a telefonia móvel proporciona podem ser um
indício dessa economia crescente. Neste contexto, a fotografia
acompanha de perto as recentes inovações.
Sobre a questão referente aos novos dispositivos fotográfi-
cos digitais, entre eles o celular, sentimos que a imagem foto-
gráfica se insere em uma realidade que já faz parte do cotidia-
no de muitas sociedades. Podemos vivenciar uma nova forma
de abordagem de uma cultura visual, emergente.
Rob Shields (2007) alerta que as imagens, conseguidas
através dos celulares, devem ter um entendimento e enqua-
dramento estético e característico, específico do aparelho a
partir das suas funções de portabilidade, multifunções, hibri-
dismo, conexão, momento e socialização, pelo olhar rápido e
imediato. No entanto, não podemos descartar a relação que
a fotografia, obtida pelo telefone, possui com a captada pelas
câmeras, que passa pela essência e função que a imagem assu-
me. A relação existente entre a fotografia digital captada pelo
dispositivo telefónico e a memória é que ambas servem como
tecnologia útil para registro e testemunhas do nosso passado.
É ainda prematuro afirmar que a fotografia passa a assumir
um novo papel social com estas novas funções e dinâmicas refe-
rentes à tecnologia. No entanto, é evidente que esse processo está
em fase de gestação. O seu caráter de mobilidade, portabilidade,
popularização e hibridação tecnológica faz com que a imagem
atravesse um processo de transformação estrutural, não apenas
no seu formato estético, mas na sua função social.

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noTaS

1. Grifo nosso.

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2. O daguerreótipo é uma das primeiras formas de reprodução fotográfica.


Deve o nome ao seu inventor, Louis Daguerre, que descreveu pela primeira
vez a técnica do daguerreótipo em 1839. No séc. XIX, os daguerreótipos
foram muito usados, especialmente para retratos.

3. George Eastman populariza a primeira câmera simples, de fácil manuseio,


a milhares de consumidores. Nos anos que se seguiram, particularmente
após o lançamento da câmera KODAK e dos métodos simplificados de
Eastman, a captura de fotos popularizou-se, com centenas de milhares de
amadores. Quando Eastman colocou no mercado seu primeiro filme trans-
parente em rolo, em 1889, criou-se um grande impacto entre consumidores
e fotógrafos profissionais.

4. Tradução literal de: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”.

5. Termo do Português de Portugal para celular.

Recebido em: 30/07/10


Aceito em: 06/01/11

Daniel Meirinho De Souza


danielmeirinho@hotmail.com
É formado em jornalismo, mestre em Comunicação e Artes pela Facul-
dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
(FCSH/UNL) e doutorando em Comunicação e Ciências Sociais na
FCSH/UNL. É investigador do Centro de Investigação Media e Jornal-
ismo (CIMJ) e bolsista da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT),
em Portugal. Faz parte da equipe de pesquisa do Projecto Inclusão e
Participação Digital entre a UNL e a The University of Texas at Austin.

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