Você está na página 1de 2

DOI: 10.1590/1413-81232015206.

13022014 1961

Caponi S, Valença MFV, Verdi M, Assmann SJ, orga- A unificação, no século XIX, dos dois polos do bio-

RESENHAS BOOK REVIEWS


nizadores. A Medicalização da Vida como estratégia poder de Foucault (o da anátomo-política do corpo
de biopolítica. São Paulo: Editora LeberArs; 2013. humano, que maximiza suas forças e o integra os
sistemas eficientes, e o segundo, acima referido) em
Ana Maria Canesqui 2 grandes tecnologias de poder acirram as disputas
políticas contra os controles, reivindicando o direito
2
Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de à vida, ao próprio corpo, à saúde e à satisfação de
Ciên­cias Médicas, Universidade Estadual de Campinas necessidades humanas.
Cada capítulo traz contribuições originais sem
A medicalização da vida desperta reflexões das ciên- descartar os referenciais clássicos, introduzindo
cias sociais e humanas, sob múltiplos olhares. Alguns novas reflexões. A medicalização da loucura e das
focam os efeitos e os impactos dos saberes, técnicas classificações psiquiátricas ocupa três capítulos, co-
e intervenções da medicina sobre a normalização mentados, inicialmente, pela similaridade temática
das vidas e das sociedades, sem se restringirem aos e não obedecendo a ordenação dos capítulos, posta
impactos negativos apenas, à medida que incidem pelos organizadores da coletânea. O primeiro, assi-
sobre as condições de saúde individuais e coletivas. Na nado por Angel Martines-Hernáez da Universidade
coletânea resenhada, a biopolítica, a ética e a medica- de Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha, intitulado
lização da vida foram abordadas por cientistas sociais Fora de Cena: a Loucura, o Obsceno e o Senso Comum
(filósofos, antropólogos e sociólogos), assistentes so- associa a loucura na Europa a duas práticas: o trân-
ciais e pesquisadores das ciências da saúde (médicos, sito e o confinamento que não resolvem o problema
enfermeiros e nutricionistas). errante da loucura.
O tema derivou do Simpósio Biopolítica e Medi- A mobilidade da loucura não foi solucionada
calização da Vida, realizado em 2012 pelo Programa com os movimentos de desospitalização e desinsti-
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Hu- tucionalização à medida que ela continua imperti-
manas da Universidade Federal de Santa Catarina. nente socialmente e obscena, isto é, “fora de cena”.
Os oito capítulos oferecem ao leitor a diversidade do Reconstituindo a história de vida de Babu, um
conceito de biopolítica, considerando Foucault e os paciente psicótico crônico de Barcelona, habitante
filósofos contemporâneos Giorgio Agambem e Rober- de um residencial terapêutico, o autor mostra sua
to Exposito; os problemas médicos e políticos sobre experiência de vida e com o adoecimento e a ação dos
a medicalização da vida, a loucura, as classificações dispositivos assistenciais e da gestão estigmatizante
psiquiátricas de sofrimentos, os transtornos psíquicos dos submetidos aos sistemas de especialistas que os
e as doenças; os experimentos científicos em torno da tratam para minimizar seus sofrimentos.
sífilis e os discursos sobre o risco e a doação de órgãos. Myriam Raquel Mitjavila (socióloga) e Priscila
O conceito de medicalização, revisto anterior- Gomes Mathes (assistente social) no sétimo capítulo
mente por Tesser1, abarca o crescimento do número sobre A Psiquiatria e a Medicalização dos Anormais:
de hospitais, indústrias, laboratórios e profissionais o Papel da Noção de Transtorno de Personalidade
médicos; a maior produção, variedade e distribuição Antissocial refletem sobre a associação da loucura
de medicamentos; a incorporação de temas pela com a periculosidade; as ideias de normal/anormal
racionalidade biomédica; o controle dos indivíduos e a noção imprecisa de “transtorno” e seus tipos,
através da medicina; as novas técnicas terapêuticas usados na Clínica e na Psiquiatria.
e a incorporação de aspectos da condição humana A Psiquiatria, no decorrer de sua história, ocu-
(social, econômica e existencial) aos diagnósticos, pou-se da administrar os comportamentos ameaça-
cura, terapêutica e patologias médicas. O autor foca dores à ordem social. Exerceu o controle individual
as contribuições de Foucault, de Friedson e Illich, e social sobre os comportamentos indesejáveis, no
suas divergências e convergências sobre a medicali- contexto da modernidade tardia, medicalizando as
zação, desde o nascimento da medicina moderna à condutas, sofrimentos e desvios, desde o século XIX.
legitimação da corporação médica e sua associação Os diferentes “transtornos” são novas categorias
com o Estado e a extensão e invasão da racionalidade classificatórias, criadas nos últimos trinta anos pela
biomédica em todos os campos da sociedade. Psiquiatria, evidenciando a continuidade da avalia-
A coletânea centra-se na biopolítica e medicaliza- ção dos comportamentos e práticas ameaçadores da
ção da vida que é o segundo polo do bipoder, posto vida social e cultural.
por Foucault sobre os controles reguladores, como Sandra Caponi, filósofa, no oitavo capítulo
a bipolítica da população, atingindo as espécies de sobre Classificar e Medicar: a gestão Biopolítica dos
corpos e o corpo imbuídos nos mecanismos da vida: Sofrimentos Psíquicos usa o conceito de biopolítica
nascimento, morbidade, mortalidade, longevidade2. de Foucault não, somente, como estratégia e tecno-
1962
Resenhas Book Reviews

logia de governo dos povos colonizados, mas na Luiz David Castiel, médico epidemiologista
sua relação positiva com a vida que maximiza a no quinto capítulo sobre a Utopia/Atopia-Alma
força e o equilíbrio das populações ou as fontes Ata, Saúde Pública e o “Cazaquistão” discute a
de degradação da vida. Reconstitui este conceito promoção da saúde e o autocuidado. Demarca
e o de bios como saber, adotando o de biopolítica as conferências internacionais e suas diretrizes
como governo da vida. para as políticas de atenção primária (Alma Ata),
Dessa forma, examina algumas classificações apontando as resistências e as utopias, ao lado das
psiquiátricas, os transtornos e a identificação recomendações neoliberais do Banco Mundial
precoce dos comportamentos de risco, dos so- sobre os pacotes mínimos de saúde.
frimentos psíquicos “leves”, geradores de novas Admite a fragilização destes ideais utópicos
patologias, interferentes na construção do pro- e suas faces políticas; a produção de atopias, an-
cesso de reconstrução reflexiva das subjetividades, corada no paradigma imunitário biopolítico de
segundo Foucault. Esposito sobre as faces políticas e a formulação
Os filósofos César Candiotto e Thereza Salomé de novas utopias contemporâneas, propondo
D`Espíndula, no segundo capítulo sobre o Bipoder comportamentos saudáveis, a saúde perfeita, o
e Racismo Político: uma Análise a partir de Foucault controle e a manutenção à distância dos riscos.
abordam um caso clássico de experimentação em Admite dificuldades de organizar as coisas do viver
seres humanos que durou de 1932 a 1972, entre suscitadas pelas utopias desejáveis e indesejáveis.
negros de baixa renda, adoecidos de sífilis, mora- O último capítulo de Fernando Hellmann
dores do Estado de Alabama nos Estados Unidos. (doutorando em Saúde Coletiva), Mirelle Finkler
Denunciado o experimento por uma jornalista, (odontóloga) e Marta Verdi (enfermeira) sobre a
após a sobrevivência de poucos sujeitos, o fato im- Mercantilização de Órgãos Humanos para Trans-
pactou a sociedade norte-americana, conduzindo plantes Intervivos sob a Ótica da Bioética Social
o governo a indenizar seus participantes. Biopoder é menos, explicitamente, articulado ao tema da
e racismo político se uniram, dominando os que coletânea, embora toque a vida e a morte. Eles tra-
não tiveram chance de resistir à experimentação çam o debate e os argumentos bioéticos, expostos
farmacológica e política sem serem informados na literatura sobre o assunto, como a proposta do
de sua enfermidade. monopsônico, um modelo ancorado no mercado
O filósofo Marcos Nalli no terceiro capítulo ético do corpo humano, proposto pelo inglês John
sobre A Abordagem Imunitária de Roberto Esposito: Haris, que reivindica um mercado de órgãos com
Biopolítica e Medicalização analisa a contribuição apenas um adquirente centralizado, na Inglaterra,
deste filósofo italiano, que entende a biopolítica no National Health Service, administrado sob
como objeto da política, centrado na realização princípios éticos. Os argumentos e as propostas
da potência inovadora da vida, traduzida em um são recusados pelas autoras devido à possibilidade
conjunto de ações e estratégias, visando promover da interferência da lógica de mercado, os riscos e
e proteger a vida e a subjetividade, conduzindo à os efeitos da venda de órgãos sobre as populações
tanatopolítica. Dos seus efeitos positivos e negati- pobres e a valorização ética da vida de uns e a
vos resultam o enigma, solucionado por Espolito, desvalorização da vida de outros.
com o “paradigma imunitário”, que à semelhança A coletânea interessa aos cientistas sociais, pro-
da dinâmica do sistema imunológico de um or- fissionais de saúde, alunos, pesquisadores em geral
ganismo enseja a “produção negativa da vida”3. e ao público leigo, que nela encontrarão questões
O autor critica Foucault por não ter esclarecido o éticas, sociais e políticas da biopolítica sobre a
paradoxo da biopolítica. medicalização da vida, um processo em expansão.
No quarto capítulo, o filósofo argentino Ed-
gard Castro discorre Acerca de la (no) Distinción
entre Bios y Zoé discutindo bios e zoé. Endossa a Referências
proposta de Pierre Hardot sobre o intercâmbio de
significação destas expressões e seus significados, as- 1. Tesser CD. Medicalização Social e Atenção à Saúde no
SUS. São Paulo: Editora Hucitec; 2010.
sociando o bios ao mundo humano como duração
2. Rabinow P, Rose N. O conceito de biopoder hoje. Rev
da vida e modo de viver. O autor agrega reflexões Política & Trabalho 2006; 24:27-57.
sobre o processo moderno de politização da vida, 3. Esposito R. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições
comparando os diferentes entendimentos de Arendt 70; 2010.
e Foucault e de Angabem e Foucault a respeito.

Você também pode gostar