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A brincadeira e o desenvolvimento da imaginação e da criatividade

O jogo simbólico ou de faz de conta, particularmente, é uma ferramenta para a criação


da fantasia necessária a leituras não convencionais do mundo. Abre caminho para a
autonomia, a criatividade, a exploração de significados e sentidos. Atua também sobre a
capacidade da criança de imaginar e de representar, articulada com outras formas de
expressão. São os jogos, ainda, instrumentos para aprendizagem de regras sociais.

Ao brincar, afeto, motricidade, linguagem, percepção, representação, memória e


outras funções cognitivas estão profundamente interligados. A brincadeira favorece o
equilíbrio afetivo da criança e contribui para o processo de apropriação de signos sociais. Cria
condições para uma transformação significativa da consciência infantil, por exigir das crianças
formas mais complexas de relacionamento com o mundo. Isso ocorre em virtude das
características da brincadeira: a comunicação interpessoal que ela envolve não pode ser
considerada ao pé da letra; sua indução a uma constante negociação de regras e à
transformação dos papéis assumidos pelos participantes faz com que seu enredo seja
imprevisível.

Por meio da brincadeira, a criança pequena exercita capacidades nascentes, como as


de representar o mundo e de distinguir entre pessoas, possibilitadas especialmente pelos
jogos de faz de conta e os de alternância respectivamente. Ao brincar, a criança passa a
compreender as características dos objetos, seu funcionamento, os elementos da natureza e
os acontecimentos sociais. Ao mesmo tempo, ao tomar o papel do outro na brincadeira,
começa a perceber as diferentes perspectivas de uma situação, o que lhe facilita a elaboração
do diálogo interior característico de seu pensamento verbal.

A brincadeira permite a construção de novas possibilidades de ação e de formas


inéditas de arranjar os elementos do ambiente. Os objetos manipulados na brincadeira,
especialmente, são usados de modo simbólico, como um substituto para outros, por
intermédio de gestos imitativos reprodutores das posturas, expressões e verbalizações que
ocorrem no ambiente da criança. Por exemplo, ela pega um toco de madeira e o usa como um
pente, passando-o cuidadosamente sobre a cabeça. Mais tarde, a reprodução das situações é
menos memória em ação e mais comportamento baseado em regra. A criança pode apenas
fazer um gesto, sem usar qualquer objeto, para simular estar se penteando ou ainda dizer: “Já
me penteei!”, sem executar um ato observável, e essa declaração ser usada por ela e seus
companheiros como integrante do enredo que está sendo criado.

Ao imitar o outro, as crianças necessitam captar o modelo em suas características


básicas, percebendo-o em sua plasticidade perceptivo-postural, conforme se ajustam
efetivamente a ele. Com isso, decodificam o conjunto de impressões que captam do outro,
experimentando diversas possibilidades de ações no meio em que estão inseridas e
diferenciando os elementos originais trazidos para a situação presente. Isso permite ao
indivíduo recuperar o passado no presente, ao mesmo tempo em que este é projetado para o
futuro, abrindo-se para o novo.

O campo interpsicológico produzido pelas interações infantis nas brincadeiras, quando


a criança e seus parceiros confrontam suas próprias “zonas de desenvolvimento proximal”, nos
termos de Vygotsky, leva-os a representar a situação de forma cada vez mais abstrata e a
construir novas estruturas autorreguladoras de ação, ou seja, modos pessoais, historicamente
construídos, de pensar, sentir, memorizar, mover-se, gesticular, etc.

Podemos dizer, assim, que a base de toda ação criativa reside em uma inadaptação
experimentada pelo indivíduo em relação ao meio, a qual cria necessidades e desejos, exigindo
novas respostas. A ação criativa, por sua vez, necessita da imaginação, que depende de rica e
variada experiência prévia e se desenvolve especialmente por meio da brincadeira simbólica. A
criatividade assim possibilitada daria condições para o indivíduo constituir-se em um ambiente
em contínua mudança, em que ocorre constante recriação de sentidos.

Necessidades e desejos formulados no processo de adaptação do indivíduo a uma


situação, particularmente a situações construídas no faz de conta, condicionam percepções
que são trabalhadas pela seleção e dissociação de elementos extraídos das impressões
sensoriais. Tais elementos, alterados e distorcidos pela imaginação, são depois recombinados,
formando um sistema, que será posteriormente cristalizado em uma obra. Essa encarnação da
fantasia passa, então, a existir no mundo e a influir sobre outros objetos sociais, reiniciando o
processo.

A imaginação desenvolve-se por toda a vida. Ela é livre, embora ainda pobre na
criança, ao passo que o adulto, por ter uma experiência mais diversificada, pode experimentar
uma função imaginativa extremamente rica e madura.

Há recíproca vinculação entre imaginação e emoção. Ao mesmo tempo em que as


imagens da fantasia selecionam e recombinam elementos da realidade segundo o estado
interior do indivíduo, os sentimentos e alegrias de personagens imaginários o emocionam.

Essas reflexões podem colaborar para discutir a questão da criação humana de um


modo que não enxergue a genialidade como atributo inato, abrindo caminho para a promoção
de experiências educativas que a estimulem. Se a experiência é o alimento da imaginação, os
inventos científicos, as produções artísticas e também os sistemas políticos e as relações
interpessoais são seus frutos. Por sua vez, grandes descobertas resultam do acúmulo de
experiência prévia coletiva. Inventar algo não é tarefa de um gênio isolado. Mesmo os
indivíduos considerados geniais operam com as possibilidades existentes a seu redor, sendo a
obra criadora, portanto, um fato histórico. Ela não aprece antes que sejam produzidas as
condições materiais e psicológicas necessárias a seu surgimento.

Em outras palavras: para se desenvolver, a função imaginativa depende da


experiência, das necessidades e interesses, da capacidade cominativa exercitada na atividade
de dar forma material aos seus frutos – os conhecimentos técnicos e as tradições, ou seja, os
modelos de criação que influem no ser humano.

Oliveira, Zilma de Moraes Ramos de. Educação Infantil: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2011. P. 163-167.

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