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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde


Curso de Psicologia

Bruno Carvalho Rodrigues de Freitas

Uma clínica situada:


reflexões sobre ética na prática clínica em psicologia a partir de Sartre.

São Paulo
Março de 2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde
Curso de Psicologia

Bruno Carvalho Rodrigues de Freitas

Uma clínica situada:


reflexões sobre ética na prática clínica em psicologia a partir de Sartre.

Relatório Final da Pesquisa de Iniciação


Científica, com bolsa do CEPE-PUC/SP,
realizada sob orientação do professor
doutor Marcos Oreste Colpo.

São Paulo
Março de 2011
Agradecimentos

Ao professor Marcos Oreste Colpo que, além de aceitar orientar este projeto,
sempre esteve disponível para minhas questões sobre as adversidades internas
à pequisa – desde a eletiva de pesquisa em fenomenologia na qual se gestou a
primeira versão deste projeto – e por ter lutado comigo contra outras dificul-
dades mais inusitadas para que ela se tornasse realidade.

Também participaram dessa luta os professores, Luciana Szymanski e João


Pedro Perosa, a quem também devo uma leitura e comentários.
Quero ainda incluir alguns professores com quem também pude contar para
discutir as ideias deste trabalho e cujas contribuições foram muito preciosas:
Elisa Maria Ulhôa Cintra, Nichan Dichtchekenian, Camila Sales Gonçalves e
sobretudo Franklin Leopoldo e Silva a quem não tenho palavras para a gradecer
a generosidade: tive a a sorte de tê-lo como professor bem cedo – deu nisso meu
trabalho de Sartre e Psicologia.

Fábio De Maria Pimentel, pela sempre disposição de conversar sobre Sartre.


Gabriela Bitencourt, pela atenta e rigorosa revisão de algumas partes, que me
fez ver o quão é infinita a tarefa da revisão.
Camila Gui Rosatti, pela ausência presente, o carinho em muitos momentos, a
leitura, cometários e sugestões.

Michele Weltman, pelas conversas sartrianas e cafés em que nasceram este


trabalho.

A todos muito obrigado: foi bom poder contar com vocês.


“Em vão procuraríamos, como Henri-Fré-
déric Amiel, como uma criança que se
aninha no colo, as carícias, os mimos de
nossa intimidade, pois afina de contas
tudo está fora. Não é em sabe-se lá qual
retraimento que nos descobriremos: é na
estrada, na cidade, no meio da multidão,
coisa entre as coisas, homem entre os ho-
mens”

(Jean-Paul Sartre)

“Não nos tornamos homens livres à me-


dida que nos realizamos a nós mesmos
como indivíduos – como reza uma formu-
lação horrível – senão na medida em que
saímos para fora de nós mesmos, vamos
ao encontro dos demais e, em certo senti-
do, nos entregamos a eles. Somente deste
modo nos definimos como indivíduos,
não enquanto regamos a nós mesmos
como uma plantinha com o fim de nos fa-
zermos personalidades”

(Theodor Wisengrund Adorno)


Uma clínica situada: reflexões sobre ética na prática clínica
em psicologia a partir de Sartre.

Resumo

Trata-se de um trabalho que pretende refletir acerca das questões éticas envolvidas nas
práticas clínicas em psicologia a partir da concepção de homem de Jean-Paul de Sartre como
ser-em-situação. Com o objetivo de compreendê-la, recorre à análise de momentos da obra
em que Sartre explicita esse conceito: O Ser e o Nada, faz uso também da peça: As Moscas.
Redunda, portanto, num estudo acerca de alguns pontos fundamentais da ontologia de
Sartre, a saber, a definição de liberdade, facticidade, e a articulação delas, ou seja, a situação.
Mas tem, sobretudo, a preocupação de mostrar que o pensamento sartriano pode embasar
uma reflexão acerca da psicologia clínica contemporânea, norteando uma discussão sobre a
ética dessa prática.

Palavras-chave: Psicologia clínica, ética, Sartre, liberdade e situação.


Sumário

1ª Parte: Introdução 7
I.................................................................................................................................8
Apresentação..........................................................................................................................8
Nota sobre a relação entre a Psicologia e o pensamento de Sartre........................................13
II..............................................................................................................................16
Objetivos..............................................................................................................................16
Metodologia.........................................................................................................................18
Relevância e justificativa........................................................................................................19
Bibliografia ...........................................................................................................20

2ª Parte: A noção sartriana de situação 22


I – Intencionalidade e Situação: Aspectos da Recepção Francesa da Fenomenologia...23
II – Ser-em-situação...............................................................................................33
1º momento – Introdução ...................................................................................................35
2º – Meu lugar: terra natal e ordenamento espacial das coisas........................................................42
3º – Meu passado: temporalidade, história e significação..............................................................47
4º – Meus arredores: coisas-utensílios e responsabilidade.............................................................53
5º – Meu Outro: técnica, linguagem, primado da situação na interpretação, relação indivíduo-sociedade,
reconhecimento e facticidade da alteridade....................................................................................57
6º – Minha morte: Sartre a partir de/contra Heidegger, absurdo da morte, expectativa........................80
7º – Conclusão.....................................................................................................................94
Bibliografia............................................................................................................99

3ª Parte: Uma clínica situada 100


I – Ética: entre dever ser e poder ser.................................................................101
Nota sobre ética e clínica....................................................................................................103
Nota sobre ética em Sartre..................................................................................................104
II – Clínica situada...............................................................................................107
III – Epílogo: (est)ética.........................................................................................114
Bibliografia..........................................................................................................120

Levantamento bibliográfico 121


1ª Parte: Introdução
_____________________________________________________________
I

Apresentação

“(...) posso assegurar-lhes que estão mal informados se supõem que o conselho e a orientação nos
assuntos da vida façam parte integral da influência analítica. Pelo contrário, na medida do possível,
evitando exercer o papel de mentor desse tipo, e o que mais desejamos é que o doente tome suas
decisões de maneira autônoma . Também com vistas a esse propósito, exigimos do paciente que adie
para o término de seu tratamento quaisquer decisões relativas à escolha de uma profissão, encargos
de negócios, casamento ou divórcio, e que só as ponha em prática quando o tratamento estiver termi-
nado. Devem admitir que tudo isso é diferente daquilo que imaginavam. Apenas, no caso de algumas
pessoas muito jovens ou muito carentes de ajuda, ou instáveis, não conseguimos pôr em prática essa
voluntária limitação de nosso papel. Com elas, temos de combinar as funções de médico e de
educador; mas, sendo esta a situação, estamos muito cônscios de nossa responsabilidade e nos condu-
zimos com a devida cautela.
Os senhores, no entanto, não devem, com base em minha veemência em defender-me da acusação de
que os neuróticos são encorajados, no tratamento analítico, a gozar a vida plenamente — os senhores
não devem concluir daí que os influenciamos em favor da virtude convencional. Está muito longe de
ser este o caso. É verdade que não somos reformadores, mas apenas observadores; não obstante, não
podemos deixar de observar com olho crítico , e constatamos ser impossível tomar o partido da
moralidade sexual convencional ou ter em alto apreço a forma pela qual a sociedade procura regula-
mentar na prática os problemas da vida sexual. Podemos atribuir à sociedade um cálculo aproximado,
segundo o qual aquilo que ela descreve como sua moralidade exige um sacrifício que não vale a pena,
e seus procedimentos não se baseiam na honestidade e não demonstram sabedoria. Não livramos
dessas críticas os ouvidos dos pacientes, habituamo-los a emitir pareceres isentos de preconceitos,
tanto sobre assuntos sexuais como sobre outros assuntos; e se, havendo-se tornado independentes
após completado o tratamento, os pacientes, mediante seu próprio julgamento, decidem por alguma
posição intermediária entre viver uma vida livre e uma vida de absoluto ascetismo, sentimos nossa
consciência tranquila, seja qual for sua escolha ” (FREUD, Imago, 1996, p. 435, grifo meu e correções
Cf. ed. Amorrortu, 1994, p. 394).

Pode causar certo estranhamento começar um texto cuja pretensão é introduzir a


um trabalho sobre Sartre por uma citação, e bem longa, de Freud, ainda mais caso se leve em
consideração o tema do texto do qual extrai-se essa citação que pode ser bem expresso em
seu título: Transferência – contudo, não se toma, que fique claro, a psicanálise como modelo
de todas as práticas clínicas em psicologia, nem se quer dizer que todas são como ela, muito
menos parte-se desse pressuposto.
Esse trecho de Freud indica pontos que se relacionam com esta pesquisa, divergindo
ou convergindo. Eis os três motivos que justificam o interesse em começar desta forma. O
primeiro é que a partir dela pode-se problematizar a prática clínica em psicologia, embora
seja um texto de psicanálise e voltado para discussão do tema da técnica psicanalítica e,
nesse sentido, seja um exemplo restrito a uma das diversas fundamentações teóricas de
prática clínica. Em segundo lugar, esse excerto, por ser, além de teoricamente também
historicamente circunscrito, pode servir de contraponto a uma realidade social que permitia

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certas condições de possibilidade de realização do trabalho clínico que hoje não mais se
apresentam. Já o terceiro motivo é que há uma inesperada consonância entre os objetivos da
psicanálise expostos acima e a compreensão sartriana de liberdade, o que já indica uma
proximidade entre Freud e Sartre, para além, como se verá mais adiante, daquelas que são
explicitadas pelo próprio filósofo.
Logo no início do excerto, Freud aponta aquilo com o que a psicanálise não deve, em
hipótese alguma, ser confundida, a saber, com um trabalho pedagógico. É contra essa visão –
de que o psicanalista daria conselhos, exercendo a função de “mentor” – que Freud elenca o
objetivo principal da psicanálise: a autonomia das decisões do paciente. Dessa forma, Freud
afasta as possíveis incompreensões da psicanálise distinguindo-a do âmbito da educação.
Importa ressaltar aqui que, por mais que esse objetivo proposto por Freud seja para o campo
que inaugura, psicanálise, trata-se também de um ideal que pode ser estendido para outras
teorias sobre a terapêutica psicológica, ou seja, qualquer prática clínica por mais divergente
que seja da psicanálise não deve buscar o desenvolvimento da dependência do paciente, mas
antes sua autonomia.
Além disso, o papel do psicanalista é caracterizado como sendo o de um “observador
com olhar crítico”, observador não somente do paciente, mas principalmente da sociedade,
já que se contrapõe a um “reformador” da sociedade. É, aliás por ter uma visão crítica 1 da
sociedade – que pode, segundo Freud, ser sintetizada na ideia de um logro, pois exige do
cidadão mais do que deveria dar: “exige um sacrifício que não vale a pena” –, que o trabalho
psicanalítico se faz possível, pois, caso contrário, a psicanálise seria apenas uma prática de
adequação do indivíduo às regulamentações sociais, prática de conformação, e, dessa
maneira, não seria uma prática que culminaria na autonomia do indivíduo. Tal o potencial
de modificação da visão de mundo subjacente às escolhas do paciente que Freud atribui a
seu método, que o período de análise deve ser considerado como uma espécie de moratória,
ou seja, deve-se adiar para o término da análise qualquer decisão importante. Essa é, em
suma, a maneira pela qual deveria se dar um processo de análise. Uma maneira ideal, pois
Freud mesmo aponta a necessidade de em alguns casos, ao atender alguém em uma posição
de maior fragilidade (“pouca idade, carentes de ajuda e instáveis”), o psicanalista precisar
exceder os limites de sua posição e atuar como um “educador”. Essa descrição do modelo
ideal de trabalho e sua exceção são um tanto curiosas, pois parece que, na realidade, esse

1 O sentido de crítica nesse contexto não tem relação com um discurso contrário à realidade, com uma
difamação, ou, por assim dizer, o falar mal de algo, pelo contrário tem o sentido de um olhar que examina
atentamente e sem preconceitos antes de emitir qualquer parecer. Aqui se retoma propriamente o sentido
kantiano do terno que aponta para a atitude de sempre colocar as opiniões diante do “tribunal da razão”.
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ideal nunca se realiza, em outros termos, parece que, caso se leve em consideração as
demandas da clínica – mesmo da época de Freud –, sempre o psicanalista acabaria tendo que
ultrapassar seu limite de observador crítico. Assim, o ideal ficaria apenas como uma diretriz
a ser seguida, pois muitos, senão quase todos os tratamentos, não poderiam de início
cumprir essas recomendações, ou não poderiam adiar decisões importantes da vida prática,
ou já iniciariam o tratamento justamente por uma “carência de ajuda” que exigiria o deslo-
camento da posição ideal do psicanalista. Conquanto, o fato desse ideal não se realizar, isso o
torna, por um lado ainda mais importante, pois como princípio norteador da prática, do
fazer, não deve, em hipótese alguma, ser relegado a um plano. Deve, pelo contrário, pautar
todas as decisões do psicólogo, noutros termos, mesmo as atitudes do psicólogo que não
considere o paciente como um indivíduo autônomo, devem ser pensadas visando a que o
paciente venha a aceder a essa condição.
O excerto também deixa claro que uma das reprimendas que Freud fazia à sociedade
era quanto a sua deletéria e insincera moralidade e o quanto ela pesava sobre seus paciente
em termos coercitivos, sem que em troca nada lhes fosse concedido. Freud, além de expli-
citar esse ponto de vista, também defende-se de uma incorreta imagem que a psicanálise
tinha, a saber, a de uma suposta permissividade, de uma indulgência: “os neuróticos são
encorajados, no tratamento analítico, a gozar a vida plenamente”. Segundo ele a psicanálise,
no que concerne à sexualidade não deveria condenar qualquer comportamento, deveria
antes devolver ao indivíduo as possibilidades de escolha autônoma entre o ascetismo e o
hedonismo absolutos. Se, contudo, na época de Freud o grande problema era a sexualidade e
como a sociedade lidava com ela, reprimindo-a, de maneira alguma ele ainda persiste como
primordial. O imperativo hodierno é o gozo e que deveria ter como contrapartida a respon-
sabilidade pelo seu próprio desejo2. E, por consequência, as demandas de uma clínica da
época de Freud em contraste com as atuais são completamente diferentes, isso quer dizer
que o papel da sexualidade nos dias atuais é outro do papel dos tempos de Freud – não que a
sexualidade não seja mais uma questão.
O que é mais interessante desse excerto é que para Freud o psicanalista não realiza
um trabalho que concebe o homem descolado de sua sociedade; como já mencionado, o
psicanalista não deve ser um “reformador”, mas sim um “observador de olhar crítico”, tanto

2 Pode aqui parecer que se trata de uma referência a Lacan, e de fato, é o caso. Contudo, é preciso notar que
nesse ponto, a referência seria também a Sartre. Isso porque, o tema da responsabilidade é fundamental
para Sartre, em primeiro lugar, mas sobretudo, pois Sartre também trata da questão do desejo n'O Ser e o
Nada, no capítulo intitulado: o para-se e o ser do valor. Além disso, porque a discussão sobre o gozo e o
desejo para Lacan deriva das mesmas fontes filosóficas que Sartre, ambos foram muito influenciados pela
leitura de Hegel do filósofo russo Alexandre Kojève.
10
da sociedade, quanto do paciente, é justamente por sê-lo em relação à sociedade é que pode
ser também em relação ao paciente. Disso decorre que caso não se conceba o paciente como
inserido socialmente, o tratamento redundará num trabalho que pode incorrer em culpabi-
lização do paciente ou numa falsa responsabilização, ou seja, que menospreze o papel da
sociedade nessa interação e supervalorize o do indivíduo, e por consequência desequilibre
essa interação.
Isso não significa, obviamente, que a mesma relação social não possa ser vivida tran-
quilamente por uns, e por outros ser vivida como fonte de sofrimento, em outros termos,
dizer que considerar o meio social, as exigências de uma determinada sociedade sobre um
indivíduo específico, os sacrifícios que deve haver de sua parte para integrar-se, dizer isso
não anula o fato inescapável da construção subjetiva de uma realidade psíquica.
Circunscrever, entretanto, a prática clínica a apenas esse âmbito é um evidente redu-
cionismo. Como, por outro lado, não incorrer em tal equívoco se o único material que a
clínica tem é o discurso do indivíduo 3? Seria o caso de recorrer a outras fontes, como relato
de amigos, parentes?
A concepção de clínica que opere tendo os mesmos objetivos da de Freud, em uma
palavra, autonomia, deve necessariamente responder negativamente à segunda pergunta,
pois, em primeiro lugar seria uma deslegitimação do discurso do indivíduo, e, portanto, uma
prova de desconfiança da parte do psicólogo, o que evidentemente ameaça todo o trabalho.
Mesmo porque, o psicólogo não deve necessariamente julgar verdadeiro ou falso o discurso
do indivíduo, mas antes tentar explicitar seu sentido, o que em termos sartrianos seria algo
como explicitar as escolhas envolvidas no modo de ser para o qual este discurso aponta. E,
nesse sentido, chega-se à semelhança que se queria apontar entre o excerto citado de Freud
e o pensamento de Sartre.
Sartre em O Ser e o Nada, expõe ao longo do livro, sobre o qual já se disse ser uma
“antropologia a priori” (PRADO Jr., 2005, p. 10), sua concepção de homem e que pode ser
bem sintetizada no conceito de situação. Situação é uma relação entre facticidade e liber-
dade. O primeiro dos termos significa na filosofia aquilo que é um fato e no pensamento de
Sartre tem o sentido de um fato contra o qual não se pode obstar, dessa forma, pode-se

3 Aqui há uma mudança de registro na designação daquele que se submete a uma psicoterapia, pois em
última instância. Se antes o termo utilizado era paciente, ou até mesmo doente, era por se tratar de um
comentário mais próximo à citação freudiana. No que concerne ao outro lado da relação, aquele que presta
o serviço, será designado preferencialmente por psicólogo porque não se quer entrar da discussão acerca
do termo psicoterapeuta, que remeteria às primeira psicoterapias de tratamento moral, e também porque
remete a ideia de cura, bem complicada em psicologia; nem o termo analista que é de uso quase exclusivo
dos psicanalistas. Doravante, portanto, utilizar-se-ão os termos indivíduo, para quem recebe o serviço;
psicólogo para aquele que presta o serviço e prática clínica para o serviço, o trabalho.
11
compreendê-lo ao lado daquilo que é em-si, o ser-em-si, ou seja, “aquilo que é opaco a si
mesmo porque está pleno de si. Melhor dito, o ser que é o que é” (SARTRE, 1943, p.38).
Assim, a facticidade seria aquilo que é e não pode não ser, que é necessário que seja, um
exemplo importante seria o fato que ao homem não cabe escolha de ser livre, a própria
liberdade é facticidade. Mas e liberdade? Ela é, em primeiro lugar, algo que define a condição
humana, é a indicação de uma abertura de possibilidades de ser, e dever ser compreendida
como o ser-para-si, ou seja, o ser que “não é o que é e é oque não é”, o ser que não é o ser-
em-si: não é o que é e, ao mesmo tempo, é o que não é, pois caracteriza-se por não ser de
modo pleno, acabado e fechado, mas pelo contrário como aquilo que (ainda) não é, é,
portanto, o devir, o projeto (no sentido de um lançar-se, um projetar-se em direção a …),
enfim algo por fazer.
Situação, portanto, é a relação de uma liberdade (de uma consciência, um homem, de
um ser-para-si) com um obstáculo, uma adversidade (um ser-em-si). Mas se situação é
relação, um obstáculo só existe se houver uma liberdade que o constitua dessa maneira, é o
homem enquanto liberdade que transforma, encara algo como um obstáculo ou não: “é a
nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar depois” (IDEM, p. 594). A liber-
dade, no entanto, surge apenas pois há um dado bruto, um ser-em-si sobre o qual ela age:
“as resistências que a liberdade desvela sobre o existente, longe de constituir um perigo
para ela, nada mais fazem do que permitir-lhe surgir como liberdade” (IDEM, p. 595), ou
seja, e novamente dando voz ao filósofo: “liberdade é originariamente relação com o dado”
(IDEM, p. 599). Situação é, portanto, uma relação de constituição dialética entre liberdade e
facticidade, uma espécie de retro-constituição, é a partir de um termo que se constitui o
outro e vice-versa, noutros termos, uma imbricação reciprocamente dependente.
E, além disso, esse ser-em-si sobre o qual age a liberdade, é não apenas um obstá-
culo físico como o exemplo que Sartre dá de uma montanha que para um alpinista é um
percusso a ser percorrido para se chegar ao topo, mas que para alguém que apenas queira
chegar ao outro lado é um obstáculo. Esse dado bruto é também: “meu lugar, meu passado,
meus arredores, meu próximo e minha morte”. E disso pode-se depreender um pouco o
alcance do que significa falar em situação. Situação significa a história de vida de alguém e a
história donde se mora: o lugar onde se esta inserido, uma sociedade e seus valores, minha
relação com os outros. Mas se pode vislumbrar em todos esses âmbitos uma relação: a
vivência subjetiva, e a inserção social e, nesse sentido, enquanto imbricação dialética, essa
dicotomia dissolve-se.

12
Dessa forma, o conceito sartriano poder ser útil para se pensar a relação indivíduo e
sociedade e, no caso da psicologia clínica, como por mais que se trabalhe prioritariamente
individualmente, não se pode esquivar do fato de que qualquer indivíduo é, nas palavras de
Heidegger, um in-der-welt-sein e, para Sartre, um ser-em-situação, mas, sobretudo, sofre
determinações com as quais tem que lidar ininterruptamente.
O que se pretendeu mostrar até aqui é que, em primeiro lugar, não deve provocar
estranheza o propósito de se valer do pensamento de Jean-Paul Sartre para pensar a prática
clínica, mas que, pelo contrário, certas formulações sartrianas são extremamente perti-
nentes. E é preciso ressaltar que as questões da psicologia sempre fizeram, em alguma
medida, parte das preocupações de Sartre, basta lembrarmos que seus primeiros livros
tratavam especificamente de questões concernentes à psicologia, ainda que sua pretensão
fosse fazer uma crítica radical à psicologia de sua época. Em segundo lugar, que Sartre pode
contribuir para a compreensão das questões que permeiam a prática clínica em geral – inde-
pendente de qualquer filiação teórica –, que sua concepção de homem como ser-em-situ-
ação pode ajudar a afastar alguns perigos da prática clínica, que talvez possam ser sinteti -
zados da seguinte forma: 1) buscar exorcizar quaisquer possibilidades de se psicologizar o
homem, ou seja, visa compreender o homem em seu contexto, pois parte-se do princípio
que só dessa forma é possível compreendê-lo, 2) a prática clínica não pode priorizar, nem a
uma função pedagógica, nem uma função acolhedora – embora, em consonância com a
citação de Freud, ambas até possam ter seu lugar, conquanto sirvam para ensejar um
momento crítico.

E, por fim, que caso se tenha uma concepção de psicologia clínica que não se
conceba o indivíduo descolado do mundo, ou seja, que não incorra nesses deslizes, traba-
lharia de alguma forma uma compreensão de homem próxima a de Sartre, a de ser-em-situ-
ação. E que, portanto, pensar a ética dessa prática a partir do pensamento de Sartre pode ser
muito pertinente.

Nota sobre a relação entre a Psicologia e o pensamento de Sartre

Sartre, apesar de ser muito mais conhecido como um filósofo, teve ao longo de toda
sua experiência intelectual uma preocupação com temas, por excelência, da psicologia. Não

13
é exagero dizer que em toda sua obra explicitamente 4 teórica Sartre trata de problemas
importantes da psicologia. Num de seus últimos livros, Critica da Razão Dialética, em que o
dialogo com o marxismo já estava bem estabelecido, e portanto, talvez se esperasse que
houvesse um certo desprezo pelo psíquico, pode-se dizer que há um estudo de psicologia de
grupos, pois uma das questões que Sartre quer responder é como se formam os partidos
políticos, para tanto ele acaba mostrando todo o processo de constituição e dissolução de
grupos. Esse talvez seja o exemplo mais interessante, pois é mesmo onde ingenuamente
poder-se-ia não esperar essa preocupação, também aqui a dimensão psicológica se faz
presente, isso talvez fique mais claro se se compreender o contexto dessa questão da consti-
tuição do partido como um grupo, trata-se de uma crítica a correntes marxista da época
que, segundo Sartre, fundamentavam sua prática numa concepção tosca de dialética. Talvez
se possa sintetizar brevemente essa crítica fazendo referência a uma das Teses contra
Feuerbach de Marx, que, para Sartre, era deturpada, ou melhor, esquecia-se um pedaço,
trata-se da tese III:
“A doutrina materialista sobre a mudança das contingências e da educação se esquece de que tais
contingências são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. Deve por isso
separar a sociedade em duas partes – uma das quais é colocada acima da outra” (MARX, 1845, p. 161)
O que Sartre chama atenção em diversos momentos d' A questão de Método5, prefácio
da Critica da Razão Dialética, é justamente que o marxismo de sua época não era fiel a Marx,
pois não era mais dialético, era pelo contrário positivista, pois julgava que havia apenas uma
relação de causalidade simples entre a infra-estrutura – as condições materiais –, sobre a
super-estrutura, trata-se, em suma, de uma acusação de reducionismo a um determinismo
econômico. Sartre, entretanto, defende uma compreensão dialética do homem, lembra que
aos homens não cabe um mero papel passivo diante da História, não são agidos pela História
– nem pela estrutura6. Sartre trabalha com a noção dialética de mediação, a questão para ele
será justamente a como se dá a mediação entre o Singular e o Universal, ou seja, “pretende
encontrar as mediações que permitem engendrar o concreto singular, a vida, a luta real e
datada, a pessoa a partir das contradições gerais das forças produtivas e das relações de
produção” (SARTRE, 1957, p. 136). Em suma, o que se pretendeu mostrar nessa referência à

4 'Explicitamente', pois parece ser consensual entre os comentadores que o pensamento sartriano
desenvolve-se na imbricação entre filosofia e literatura: não é exagero dizer que Sartre faz filosofia também
quando escreve romances ou peças, e faz literatura quando escreve ensaios filosóficos. Apenas como
exemplos de trabalhos que tentam expor essa relação entre filosofia e literatura pode-se citar: a dissertação
de Thana Souza, A literatura para Sartre: a compreensão da realidade humana e o livro de Fraklin Leopoldo
e Silva, Ética e Literatura em Sartre.
5 Talvez o momento mais expressivo do texto nesse sentido seja por volta da p. 124 (SARTRE, 1957) , no final
da parte intitulada: Marxismo e Existencialismo, quando Sartre cita uma carta de Engels.
6 Nesse ponto, que foge ao propósito desta pesquisa, pode-se dizer que Sartre entre numa polêmica com
Lévi-Strauss, que responderá em seu O Pensamento Selvagem.
14
C. R. Dialética, foi que, em decorrência de uma concepção realmente dialética proposta por
Sartre, seria extirpada a tendência a desprezar toda questão psicológica presente numa
compreensão corrente no marxismo criticado por Sartre. Uma vez que uma compreensão
economicista estivesse nos fundamentos de um pensamento marxista, o indivíduo – não
seria exagero dizer tudo – estaria subsumido às mudanças estruturais nas formas de
produção e, com isso, que espaço teríamos para a psicologia? Talvez então não seja exagero
dizer que essa reformulação do marxismo, via existencialismo – considerado por Sartre uma
parte do marxismo –, seja uma forma de conciliar uma preocupação marxista – que tenta
pensar a totalidade, a sociedade – a uma visada também para o particular, mais precisa -
mente o singular, ou seja, para Sartre, trata-se justamente de articular dialeticamente essas
instâncias.
Mas além desse exemplo mais inesperado, podemos citar também o fato de que em
consonância com essa crítica ao marxismo Sartre tinha um projeto já antigo de mostrar o
que seria uma psicanálise existencial – termo cunhado por ele mesmo já n' O Ser e o
Nada. Esse projeto que Sartre não realiza na clínica, é levado a cabo na pesquisa e redação de
biografias de escritores. Foram realizadas duas delas completamente, uma sobre Jean Genet 7,
e outra sobre Baudelaire, e duas que não chegaram a ser finalizadas, uma sobre Gustav Flau-
bert, cujo projeto original previa quatro volumes, mas foram realizados apenas dois que, no
entanto, totalizam mais de mil páginas, e uma outra sobre o escritor russo Dostoiévski, que
ficou apenas em projeto. Disso pode-se notar enorme dedicação de Sartre a tentar
compreender a singularidade, os projetos e escolhas de um indivíduo, mas sempre conside-
rando que elas não são feitas independente do mundo, isto é, que o homem é um ser-em-si -
tuação.
Uma terceira classe de exemplo, que ilustra a preocupação de Sartre com temas da
psicologia, é composta pelos seus primeiros livros, cuja imbricação com a psicologia salta
aos olhos. Grosso modo, todos eles versam sobre uma crítica a psicologia da época – a
gestalt theorie, a psicologia de cunho mais positivista e fisiologicista – a partir de uma relei -
tura de temas fundamentais da fenomenologia, trata-se de uma tentativa de propor uma
psicologia fenomenológica. São praticamente todos livros que precedem a redação d' O Ser e
o Nada (1943), com exceção do romance A Náusea (1938) e o livro de contos O Muro (1939)
que compõe esse conjunto: A Imaginação (1936), A Transcendência do Ego (1937) – embora
esse tenha um diálogo mais cerrado com filósofos, também é possível dizer que versa sobre

7 Esta obra foi abordada na tese de doutorado defendida no programa de pós-graduação em psicologia clínica
da PUC-SP de Daniela Ribeiro Schneider: Novas perspectivas para a psicologia clínica: Um estudo a partir
da obra Saint Genet: comédiet et martyr de Jean-Paul Sartre.
15
uma questão do âmbito psicológico –, Esboço de uma teoria das emoções (1939) e por fim, O
Imaginário (1940) – continuação dos temas tratados em A Imaginação. Dessa forma, comple-
ta-se o terceiro campo cuja presença de temas próprios à psicologia são tratadas na obra de
Sartre, que ele faz filosofia a partir de questões psicológicas
E, com isso, espera-se ter mostrado que, apesar desta pesquisa ir buscar uma refe-
rência na filosofia para pensar a prática clínica, fundamenta-se num autor que teve uma
interlocução com a psicologia extremamente profunda. E mais que isso, ao considerar o
enfoque que se pretende para esta pesquisa é sobre o lugar da ética na prática clínica em
psicologia, sendo assim, o pensamento de Sartre faz-se ainda mais pertinente para emba-
sá-la, isso porque não é exagero dizer que há uma preocupação com problemas éticos em
cada linha da obra de Sartre.

II

Objetivos

Pode-se elencar dois grandes objetivos para esta pesquisa. Um primeiro que se insere
na categoria de análise e compreensão de um conceito de um dos pensadores mais impor -
tantes do século XX, o conceito sartriano de situação. Já o segundo seria pensar relações
desse conceito com a psicologia, mais detidamente com a prática da psicologia clínica,
essencialmente norteadas por uma perspectiva ética.
Buscar compreender e explicitar o conceito sartriano de situação, seu lugar na obra
em que é formulado, O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia fenomenológica; sua relação com à
facticidade e a liberdade, assim como seu lugar no projeto sartriano de uma psicanálise exis-
tencial. Nesse sentido, perscrutar obras literárias de Sartre é também uma necessidade, pois
parte-se da hipótese de que nos livros dessa trilogia de Sartre está justamente sendo apre-
sentada a noção de situação – tal como ele o fizera com a contingência em A Náusea,
conforme já vários pesquisadores indicaram. Devido a esse percurso, este trabalho acaba
também tendo uma leitura acerca do que seria a passagem para a segunda fase do pensa-
mento de Jean-Paul Sartre, marcada pela publicação da Critica da Razão Dialética – que
explicita o denominado8 “encontro com o marxismo”. Isso porque este trabalho opera com a

8 O trabalho clássico de Gerd Borheim, Sarte: Metafísica e Existencialismo, é um exemplo de uma leitura que
refere se ao pensamento de Sartre como tendo um momento metafísico (ou teórico) e outra histórica (ou
marxista), ver o cap. “A conversão à História”.
16
hipótese (também defendida por alguns pesquisadores) de que é justamente o conceito de
situação que irá possibilitar essa passagem – ainda que ele não perdure ileso ao longo da
trajetória intelectual de Sartre –, não havendo, portanto, uma ruptura entre as fases, por
assim dizer, metafísica e marxista de Sartre, defendendo que, pelo contrário, talvez não seja
pertinente tal divisão.
E, sobretudo, para além de uma análise de texto, do estudo teórico filosófico, este
projeto de pesquisa tentará derivar do pensamento de Sartre, em especial no que concerne a
sua concepção de homem como ser-em-situação, contribuições para uma reflexão acerca da
ética na prática clínica em psicologia. Não se pretende porém aplicar o conceito sartriano à
prática clínica, mas sim apresentar subsídios a uma reflexão sobre a prática da psicologia
clínica contemporânea. Isso porque se parte da hipótese da presença de desafios que esse
fazer enfrenta hodiernamente que impõe aos psicólogos em geral, não apenas os que traba-
lham na área clínica, além disso, também independente de qualquer fundamentação teórica
de prática clínica. Justamente por isso não se pretende nessa pesquisa fazer um estudo de
uma fundamentação teórica para a prática clínica, mas antes realizar uma reflexão a partir
do pensamento de Sartre sobre a prática clínica. Em outros termos, não se pretende realizar
apenas um estudo teórico do pensamento sartriano – um estudo puramente de história da
filosofia –, nem tampouco, um estudo teórico de psicologia clínica que propor-se-ia a buscar
estabelecer, diretrizes de trabalho, técnicas – ou seja, uma tentativa de aplicar o pensa -
mento de Sartre (pretensão que parece ser no mínimo bem complicada, pois ele não tem
nenhuma preocupação com uma teoria clínica, embora tenha se dedicado por demais às
teorias psicológicas de fundamentação fenomenológica, nesse sentido, provavelmente resul-
taria numa teoria distante do pensamento de base, ou quando muito uma teoria apenas
inspirada na filosofia) –, mas este trabalho pretende sim mostrar como a concepção de
homem sartriana de ser-em-situação pode ser de grande valor para problematizar questões
éticas da prática clínica contemporânea, e, por consequência, a própria prática.
Disso advém uma dupla consequência: tem-se uma ampliação concomitante a uma
restrição o objeto de estudo em dois sentidos. O primeiro seria que: se o objeto de estudo
fossem as teorias psicológicas de Sartre – como a sua teoria das emoções, seu estudo sobre
a imaginação e sobre o imaginário – isso, por um lado, significaria um aprofundamento
nesse campo ainda pouco explorado de pesquisa, mas por outro, um estudo apenas teórico e
mais voltado ao campo do estudo da história da filosofia, pois a esses textos não foi dada
muita importância no campo da psicologia – até talvez fosse esse estudo também perti-
nente, mas não nesta pesquisa. Entretanto, sendo assim, esta pesquisa afastar-se-ia da preo-

17
cupação clínica, ou seja, poder-se-ia aprofundar num estudo teórico do pensamento de
Sartre e com isso, fica complicado tratar da questão da clínica. Num segundo sentido pode-
se pensar que, ao ter a prática clínica em vista, uma possibilidade seria tentar derivar de
bases filosóficas uma teoria sobre a prática clínica pode mostrar-se desastrosa na medida em
que o próprio autor nada deixou de indicações nesse sentido, o que redundaria em uma
ampliação das técnicas clínicas, mas também uma provável deslealdada ao espírito do
pensamento de Sartre. Já uma outra possibilidade seria o estudo de um pensador contem-
porâneo da importância de Sartre para enriquecer e dar subsídios para a prática clinica,
para por pauta a que serve esse trabalho, qual seu lugar social. Nessa opção, o objetivo não
se restringiria a apenas um estudo de utilidade restrita aqueles que se interessam por feno-
menologia, seria, pelo contrário – e é justamente esse o maior objetivo dessa pesquisa –,
mostrar como o pensamento de Sartre pode contribuir para discutir a ética da prática
clínica da psicologia em geral, ou seja, de maneira que não se circunscreva aos psicólogos de
inspiração fenomenológica. Parece, portanto, ser a melhor caracterização de objeto de
estudo que comporte a relação entre a filosofia sartriana e a prática clinica em psicologia,
pois prima pela amplitude no que concerne ao interesse acadêmico, sem, contudo, renun-
ciar à possibilidade de realizar uma leitura rigorosa do pensador, um estudo que não se
distancie das ideias e concepções do autor.

Metodologia

A metodologia deste trabalho será a análise detalhada de um momento importante


d'O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia fenomenológica . Especificamente sua quarta parte
intitulada: Ter, Fazer e Ser, sobretudo a segunda parte do primeiro capítulo: Liberdade e
Facticidade: a Situação. O método propriamente consistirá em realizar uma análise de texto
que se volte para a compreensão da economia interna do texto, ou seja, que procure
deslindar o movimento do texto, atentando para sua estrutura: quais as ideias mais impor-
tantes e que lugar ocupam na tessitura textual; em uma palavra, realizar uma leitura
cerrada do texto, um close reading. Além disso, faz-se necessária, devido à questão deste
trabalho, a incursão nas obras de literatura na peça: As Moscas. Não se pretende, contudo,
ao atentar para a literatura, fazer crítica literária ou compreender esses livros a partir de
conceitos do pensador, pelo contrário explicitar um conceito a partir dos livros – isso
porque se parte do pressuposto unanime entre os comentadores que a experiência intelec-

18
tual de Sartre não pode ser compreendida sem recorrer a seus escritos literários, o que, é
exatamente o caso do conceito de situação – ou seja, pretende-se usar as peças extraindo
alguns momentos, circunstâncias em que algum personagem se encontra, para expor para
onde aponta o conceito de situação, como se configura, como esta noção é ali construída. E
para compreender a elaboração da noção de situação será preciso buscar compreender a
recepção francesa da fenomenologia, para tanto, será utilizado o seguinte texto de Sartre:
Uma Ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a intencionalidade. Isso no que
concerne ao escrutínio propriamente da noção de situação o deverá constituir uma primeira
parte do trabalho. Já para a segunda parte, que versará sobre a clínica, pretende-se discutir a
partir da análise da parte precedente: o espaço da clínica (aquilo que na psicanálise se
chama de setting, ou enquadramento); a atitude do psicólogo frente ao indivíduo e suas
implicações, bem como o vínculo que sustenta esse trabalho.

Relevância e justificativa

Compreender o conceito de ser-em-situação dentro da experiência intelectual de


Sartre e, portanto, o fato da liberdade ser situada pode ajudar a desenvolver a hipótese de
que esse conceito é a porta de entrada para a chamada segunda fase do pensamento de
Sartre – presente em estudos que trazem em seu bojo a possibilidade de ver continuidades
onde costuma-se9 ver rupturas redundando em uma compreensão mais global da obra
sartriana. Ainda que essa hipótese já venha sendo defendida por alguns pesquisadores, estu-
dando, sobretudo, o conceito de história 10 em Sartre, acerca do conceito de situação, que
pelos motivos acima expostos parece ser dotado de grande valor heurístico, permanece não
muito estudado. Para além disso, nas pesquisas da área da filosofia, as temáticas psicológicas
são muito pouco exploradas – mesmo considerando a preocupação do próprio autor de
constituir uma psicanálise existencial, projeto apresentado n'O Ser e o Nada e que suas
obras teóricas iniciais são todas uma tentativa de, por uma ótica fenomenológica, buscar
fundamentar teoricamente a psicologia. E, é principalmente inovadora a proposta de refletir
sobre prática clínica a partir da filosofia sartriana é um campo ainda muito pouco explorado

9 Cf. nota 8. Rupturas essas que são contrapostas nos trabalhos dos pesquisadores: Renato dos Santos Belo e
Cristina Diniz Mendonça – tanto em seu artigo, quanto em sua tese de doutoramento.
10 Sobre este ponto, do conceito de história, merecem destaque os seguintes trabalhos: O paradoxo da
Liberdade: Psicanálise e História em Sartre , de Renato dos Santos Belo; Desilusão e História na Psicanálise
de J.-P. Sartre, de Camila Salles Gonçalves, mas sobretudo, os excelentes artigos de Franklin Leopoldo e
Silva.
19
– pelo levantamento bibliográfico realizado, há alguns poucos artigos publicados e uma tese
de doutorado11.

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11 Aqui se refere aos trabalhos de Camila Salles Gonçalves, de Cléa Góis e Silva, e de Daniela Ribeiro
Schneider
20
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SARTRE, J. P., Situações I, São Paulo, ed. Cosac Naify, 2005.
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SOUZA, T. M., A literatura para sartre : a compreensão da realidade humana, dissertação de mestrado não
publicada, FFLCH – USP, 2004.

21
2ª Parte: A noção sartriana de situação
_____________________________________________________________
I – INTENCIONALIDADE E SITUAÇÃO: ASPECTOS DA RECEPÇÃO FRANCESA DA
FENOMENOLOGIA

Uma vez que esta pesquisa pretende estudar a noção sartriana de ser-em-situação e
refletir a partir dessa referência sobre a prática clínica do psicólogo , com a pretensão de
construir um solo conceitual seguro, buscar-se-á acompanhar o nascimento desse conceito
nos textos de Sartre. Para tanto, neste capítulo, será abordada a relação entre o conceito de
Husserl de intencionalidade e a noção de situação de Sartre. Inicialmente o texto que servirá
de base a abordar essa relação é: Uma Ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a
intencionalidade.

Publicado originalmente 1939 em La Nouvelle Revue Française, este texto de Sartre é


considerado um trabalho de um momento em que ele está às voltas com a questão da cons-
ciência a partir de seus estudos sobre Husserl. Por volta de 1939, Sartre também publica
livros que indicam claramente seu objeto de estudo no momento – além de uma coletânea
de contos, intitulada O muro de 1939. Esses estudos têm como objeto privilegiado a psico-
logia, mas uma psicologia que se queria crítica em relação ao que se fazia até então – que era
uma psicologia empírica, psicofisiológica e até mesmo a psicologia da forma (gestalt). O
autor propunha, ao invés, uma psicologia fundada na fenomenologia husserliana, se bem
que mesmo aí o pensamento sartriano já não era uma aplicação de Husserl, mas sim uma
espécie de fenomenologia radicalizada. Grosso modo, pode-se dizer que se Husserl propõe
uma filosofia que trabalha com a noção de eu, ainda que um eu transcendental; para Sartre,
entretanto, o próprio Husserl não teria levado às últimas consequências a noção de intenci-
onalidade, pois se o fizesse, perceberia que não existe eu. A consciência não é um lugar, um
receptáculo de conteúdos exteriores. É um ato, é uma direção a alguma coisa, é, nesse
sentido, sempre relação com algo, ou seja, é intencional. Essa tese, apresentada esquemati-
camente, encontra-se desenvolvida em A Transcendência do ego de 1937, texto que funda-
menta a forma como Sartre utilizará a fenomenologia nos textos dedicados à psicologia:
Esboço de uma teoria das emoções de 1939 e O Imaginário de 1940. Era então um momento
na experiência intelectual de Sartre que o contato com a fenomenologia husserliana se fazia
de forma mais íntima. E o texto que agora se pretende analisar pode ser compreendido
como uma síntese da leitura sartriana de Husserl, de como ele utiliza o conceito de intencio-
nalidade e o articula com sua noção de consciência, sendo assim, um ponto de confluência

23
de várias de suas publicações desse período da sua obra, em que ele está mais profunda-
mente mergulhado nos referenciais da fenomenologia.
Na apresentação de O Imaginário, Bento Prado Jr. e Luiz Moutinho resumem o que se
pretende dizer sobre essas obras iniciais de Sartre: os comentadores amarram a tese de um
livro com a imagem metafórica de outro texto – a tese de A transcendência do Ego e a
imagem do texto que se pretende analisar sobre intencionalidade – e ambas com as preocu-
pações de Sartre sobre psicologia fundamentada na fenomenologia. Mas sobretudo indica o
ponto de convergência entre a noção de intencionalidade e a noção de situação que se
pretende assinalar neste capítulo:
“Em 1935, Sartre é convidado, por um ex-professor, a redigir um texto sobre o mesmo tema que já
tratara em sua agrégation12: a imagem. Nessa ocasião, ele escrevia A Náusea, cuja redação iniciara em
1931; temporariamente abandona Antoine Roquentin13 e volta à psicologia.
Seu interesse pelo tema não era pequeno: a ideia de imagem está intimamente ligada à ideia de cons-
ciência, que obsedava o jovem filósofo. Era já essa ideia o tema central de A transcendência do Ego,
obra de 1934; a consciência aí aparece como vazia. Liberada de todo conteúdo, daqueles famosos
conteúdos que a velha ideia de representação levara a forjar e que se exprimem na metáfora do Espíri-
to-aranha, que atrai as coisas para sua teia, cobre-as com sua baba branca e lentamente as deglute,
reduzindo-as à sua própria substância. Uma mesa, um rochedo, uma casa são apenas 'conteúdos da
consciência', representações internas da coisa espaço-temporal. O que Sartre então queria era
expulsar esses conteúdos da consciência, extirpar tudo o que dela pudesse torná-la opaca, pesada,
inerte, tudo enfim que levasse a pensá-la como um meio espacial, para tornar possível captá-la em sua
essência em puro-ato. Foi sobretudo essa possibilidade que Sartre, de início, viu na fenomenologia de
Husserl e que fez 'empalidecer de emoção' quando em 1932, diante de um coquetel de abricó, ouviu
Aron falar da intencionalidade. Esse conceito fornecia-lhe nada menos que a chave para superar a
velha 'filosofia alimentar' e seu Espírito-aranha, permitindo afirmar a um só tempo a soberania da
consciência e a presença do mundo tal como nos aparece” (PRADO Jr., MOUTINHO, 1996, p. 5 – 6,
grifo meu.)
Qual afinal seria o motivo pelo qual Sartre teria ficado tomado de tamanha emoção
ao ouvir seu amigo Raymond Aron explicar o que fenomenologia a partir de um drinque?
Qual a relação entre fenomenologia e um coquetel de abricó?
Este episódio é relatado por Simone Beauvoir em A Força da Idade: segundo ela,
Sartre teria sido
“vivamente atraído pelo que ouviu dizer da fenomenologia alemã quando, numa noite no Bec de Gaz,
em Montparnasse, Raymond Aron, que naquela época estudava Husserl em Berlim, tomou de um copo
de abricó e disse: 'Estás vendo, meu camaradinha, se tu és fenomenologista, podes falar deste
coquetel, e é filosofia'. Sartre empalideceu de emoção, ou quase: era exatamente o que ambicio -
nava há anos: falar das coisas tais como as tocava, e que fosse filosofia. Aron conven-
ceu-o de que a fenomenologia atendia exatamente a suas preocupações: ultrapassar a oposição
do idealismo e do realismo, afirmar a um tempo a soberania da consciência e a
presença do mundo, tal como se dá a nós ” (BEAUVOIR, 1984, p. 138, grifo meu).
Desse excerto – que evidentemente serviu de base para os comentadores citados –
fica mais claro que foi a possibilidade de um filosofar sobre o concreto, – aquilo que se pode
tocar –, do exercício intelectual poder ser feito a partir da experiência do cotidiano que fez

12 Termo dado na França para o concurso para professor.


13 Personagem principal do romance citado.
24
Sartre emocionar-se com a fenomenologia: se for possível filosofar sobre o que se tem nas
mãos – até mesmo um drinque –, a filosofia desceria do seu pedestal metafísico, ganharia
então concretude e seria palpável. É, portanto, por possibilitar uma crítica a uma posição
idealista ou realista, que Sartre diagnostica em seus professores, apontando para uma filo-
sofia do concreto, que a fenomenologia passa a ser a porta de entrada para uma nova filo-
sofia, o existencialismo.
A pretensão deste capítulo será então mostrar que este texto de Sartre sobre intenci-
onalidade sintetiza a experiência intelectual de Sartre até então e aponta para seus futuros
desenvolvimentos. Nesse sentido, como o objeto desta segunda parte da pesquisa é estudar a
noção de situação, buscar-se-á mostrar como esta é dependente da forma como Sartre se
vale do conceito de intencionalidade. Isso porque, situação é uma noção que articula inex -
trincavelmente a consciência ao mundo, nos termos desses comentadores, ou liberdade e
facticidade nas palavras de O Ser e o Nada – sendo este o ponto de convergência entre a
noção de situação e a de intencionalidade que se expressa no final das duas citações.
É, no entanto, a princípio, difícil de creditar tamanha importância ao texto. Embora
tenha um título imponente e que prometeria uma análise profunda de um conceito da filo-
sofia de Husserl, o leitor é logo frustrado pelos seguintes motivos: seu modesto tamanho –
um texto que tem apenas quatro parágrafos não muito longos –, seu tom às vezes marcada-
mente auto-biográfico como logo em seu primeiro parágrafo: “todos nós líamos”, mais
adiante “nós procurávamos”, e não é um “nós” que inclui o leitor, mas, que antes refere-se a
um relato pessoal, de sua geração de estudantes. Dessa forma, como é possível dizer que o
autor alcança seu objetivo de explicar um conceito, a seu ver fundamental, da fenomeno-
logia husserliana?
A hipótese que se pretende defender neste capítulo é que o texto longe de se propor
a realizar uma exegese conceitual, de se configurar como um trabalho de história da filo-
sofia, na verdade, expõe, a partir da experiência individual, aspectos de uma experiência
coletiva, ou seja, que a partir dele se pode compreender muito menos o pensamento de
Husserl, mas aspectos importantes da recepção francesa da fenomenologia e o papel de
Sartre nesse processo. Mas ficaria a questão: como é possível dizer que este texto expõe algo
da recepção francesa da fenomenologia?
Um primeiro aspecto a se considerar para explicar a importância do texto é seu
caráter ensaístico, pois, dessa forma, alguns pontos que poderiam relegar este texto a uma
posição inferior, seriam melhor compreendidos: os traços biográficos e literários do texto,
bem como seu aspecto fragmentário e inconcluso são as características que possibilitam a

25
classificação do texto com um ensaio, gênero que formatará a quase totalidade da produção,
explicitamente filosófica, de Sartre – como atesta o título de sua obra mais conhecida: O Ser
e o Nada (note-se que aparece no título tal caracterização sobre o texto) ensaio de ontolo-
gia-fenomenológica. Em suma, essas características não indicam acaso, falta de rigor ou de
método, são, ao invés, muito justificadas, pois neste gênero: “o pensador, na verdade, nem
sempre pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem desemara-
nhá-la” (ADORNO, 1958, p. 30), noutras palavras, num novelo que resiste a deslindar-se,
imbricam-se experiência individual e experiência coletiva, social; análise conceitual (estudo
de um conceito) e uso do conceito (sua apropriação pelo pensador); sujeito (autor, pensador
e sujeito do conhecimento) e objeto (a sua própria experiência enquanto estudante de filo-
sofia, o pensamento de Husserl).
Isso, todavia, não bastaria para que se valorizasse este pequeno texto. Não fosse o
fato de que o gênero ensaio e a fenomenologia, tal como na França se estabeleceu, há uma
afinidade que deve ser ressaltada: se esta fenomenologia pretendia tratar do concreto, o
ensaio passa a ser o gênero mais apropriado. Nele estão jungidos autor e assunto; sujeito e
objeto, em suma: consciência e mundo: na forma do texto já está presente a tese
que o texto enuncia . Se é a intencionalidade uma explosão da consciência, portanto,
uma ruptura com as categorias de sujeito-objeto definidas de forma estanque, então a forma
ensaio é intencional, pois organiza-se em acordo com o conceito de intencionalidade tal
como o texto expõe.

Sendo assim, parte-se agora para uma análise mais detalhada das ideias do texto. Do
título,“Uma Ideia Fundamental da Fenomenologia de Husserl: a intencionalidade” pode-se
apreender que este texto será um comentário ao pensamento de Husserl, mas um comen-
tário bem circunscrito, pois ateve-se a um conceito específico de Husserl, a intencionali-
dade, e mais que isso, que já emite um juízo sobre esse conceito, pois ele é apresentado,
como central, ou melhor, como algo fundante na fenomenologia.
No primeiro parágrafo encontra-se a metáfora, mencionada mais acima e que terá
centralidade em todo o texto, do Espírito-aranha e seu desenvolvimento. Trata-se de uma
imagem que busca expressar uma relação gnosiológica 14 específica. O cerne desta relação
manifesta-se na ideia de assimilação: “das coisas às ideias, das ideias entre elas e dos espí-
ritos entre eles” (SARTRE, 1939, p. 55), ou seja, a relação sujeito-objeto é descrita por uma
espécie de incorporação, por parte do sujeito, de conteúdos alheios a este. Relação esta que

14 Gnosiologia é o estudo sobre a origem, a natureza e os limites dos atos do conhecimento.


26
encontra sua síntese nas expressões: “Ele a comia com os olhos”, “filosofia alimentar” ou
“digestiva” (IDEM). São portanto imagens de duas classes que são associadas para descrever
a essa relação de conhecimento com assimilação: a imagem da visão e da alimentação;
conhecer seria sinônimo de ver ou de comer, mas pode ser sintetizado pela ideia da
ingestão.
O central neste parágrafo é que nele se realiza uma crítica às posturas idealistas 15 e
realistas16, tanto a perspectiva realista quanto a idealista se valem desse movimento de
ingestão do mundo pela consciência. Na primeira, a independência dos objetos em relação
ao sujeito garantiria que eles sejam introjetados com algo que veio de fora do corpo, como
um elemento completamente estranho, que talvez se possa aproximar mais com a metáfora
da visão, pois, a princípio, acredita-se ver o que existe no mundo, que a visão simplesmente
constata a existência. Na postura idealista, o sujeito participa do processo desde o início ao
depender de suas possibilidades para a apreensão do mundo, processo talvez mais próximo
da imagem da alimentação, que o corpo desde o início mastiga a comida, digere com suas
enzimas – as “diástases” (IDEM) a que o texto se refere – e no final tem um produto que não
é o objeto que foi ingerido.
Resta ainda contudo a imagem do Espírito-Aranha. O que se pretende com ela é
comparar a relação gnosiológica do espírito com o mundo à relação da digestão de uma
aranha. Sabe-se que as aranhas não possuem um sistema digestivo interno desenvolvido:
para digerir suas presa elas injetam seu veneno, que paralisa a presa e atua como o nosso
suco gástrico digerindo a presa de dentro para fora. Assim, o sujeito ou o espírito atuaria
como uma aranha que deglute algo que lhe é externo apropriando para si o que lhe serve
através de suas enzimas digestivas: “todos acreditávamos que o Espírito-aranha atraía as
coisas para sua teia, cobria-as com uma baba branca e lentamente as deglutia, reduzindo-as
à sua própria substância” (IDEM)
Em seguida, é preciso ressaltar o já mencionado caráter autobiográfico abrindo para
a exposição do contexto do campo de disputa intelectual da época desse texto, que é patente
neste parágrafo. A maneira como o autor descreve a alimentação do espírito-aranha expli-
cita que essa metáfora é compartilhada por seus colegas e denota o pertencimento a um

15 Idealismo aqui se refere sobretudo a forma como Kant compreendia a relação sujeito-objeto (isso se
explicita no segundo parágrafo quando se faz referência ao neokantismo). Trata-se de uma relação que
estabelece certa dependência do objeto em relação ao sujeito que o apreende, ou seja, a compreensibilidade
de um objeto depende do sujeito que o compreende, este estabelece então certos limites ao conhecimento,
o que se explicita no conceito kantiano de coisa-em-si, um resíduo do objeto – na verdade aquilo que ele é
em si mesmo – que sempre escapa à compreensão representando um limite ao conhecimento.
16 Realismo refere-se a uma postura de relação gnosiológica em que o termo que tem precedência é o objeto,
ou seja, a cognição apenas forneceria significados ao mundo objetivo, pois este tem total independência e
estatuto ontológico anterior.
27
grupo. Em suma, Sartre comenta haver uma insatisfação com a filosofia da época, em espe-
cial com seus professores, Brunschvig, Lalande e Meyerson – grandes nomes à época –, e
uma pretensão generalizada: “os mais simples e os mais rudes dentre nós procuravam por
algo de sólido, qualquer coisa, enfim, que não fosse o espírito.” (IDEM).
Cabe, por fim, apontar uma consequência dessa atitude gnosiológica que também a
imagem da alimentação do Espírito-aranha acaba expressando. Na medida em que a aranha
lança seu veneno e suas enzimas que paralisam e digerem o objeto, duas coisas acontecem
no final do processo: seu alimento foi completamente alijado de qualquer vida e já não se
distingue de si mesma. Analogamente, os objetos aos quais o sujeito se relaciona, por sua
vez, também morrem, não sendo apreendidos em suas particularidades e também o sujeito
encontra apenas a si mesmo nessa relação com uma espécie de falsa mediação. Uma vez que
as enzimas da digestão são produtos do próprio sujeito, elas contaminam o objeto impe-
dindo uma relação com ele mesmo, assim, ao cabo do processo de conhecimento, o sujeito
acaba por conhecer a si mesmo: “por toda parte [Sartre e seus colegas] encontravam tão-so-
mente uma névoa baça e distinta: eles mesmos” (IDEM). A relação de conhecimento,
portanto, reduz-se a um sujeito, que tentando conhecer os objetos, ilude-se achando que se
defronta com eles, mas apenas defronta-se consigo mesmo, pois não tem uma relação direta
com o mundo.
No segundo parágrafo, explicita-se um pouco mais a quem se refere esta crítica: a
todo o empiriocriticismo, ou seja, os neokantianos, que são incluídos numa crítica a qual-
quer psicologismo. Nesse sentido, estende-se um pouco mais descrição da “filosofia diges-
tiva”, mas agora Sartre já explicitamente apresenta Husserl como uma solução: pois, se
anteriormente o espanto com o fato de não estarmos nos relacionando com os objeto eles
mesmos, e como isso é contrário á nossa experiência, já era uma referência, agora que “não
cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas nas consciência” (IDEM), a referência é
mais explícita. Faz uso do exemplo da árvore que Husserl também usava para reafirmar a
tese contrária a relação de gnosiológica de assimilação: “Vocês veem esta árvore aqui – seja.
Mas a veem no lugar exato em que está: à beira da estrada, em meio à poeira, só e curvada
sob o calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Ela não conseguiria entrar em suas
consciências, pois não é da mesma natureza que elas ” (IDEM, p. 55-6, grifo meu)
O autor, em seguida, trabalha um ponto de crucial importância, a saber, que “a cons-
ciência e o mundo são dados de uma só vez: por essência exterior à consciência, o mundo é,
por essência, relativo à ela” (IDEM, p. 56). Essa relação só pode, para Sartre, ser compreen-
dida na imagem de uma explosão da consciência em direção ao mundo: “ 'conhecer é

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explodir em direção a' , desvencilhar-se da úmida intimidade gástrica para fugir, ao
longe, para além de si, em direção ao que não é si mesmo” (IDEM, grifo meu). Dessa forma,
“de um só golpe a consciência está purificada (…) não há mais nada nela a não ser um
movimento para fugir de si, um deslizar para fora de si (…), pois a consciência
não tem 'interior' ; ela não é nada senão o exterior de si mesma, e essa fuga absoluta, essa
recusa de ser substância, que a constitui como consciência” (IDEM, grifo meu). Em síntese, a
consciência é puro ato.
E aqui se flagra a mencionada tese d' A Transcedência do Ego, da noção vazia de eu.
Esse segundo parágrafo, portanto, amplia, em seu início, um pouco a descrição da “filosofia
alimentar”. Mais adiante, começa a descrever o que de interessante Husserl pode oferecer: o
imperativo da impossibilidade de se “dissolver as coisas na consciência”. Por fim, descreve
uma concepção de consciência extremamente curiosa, uma consciência, que, no limite, não
é consciência. Com isso Sartre explode, tanto a noção de consciência quanto as bases que
fundamentavam a filosofia que já tão velha cobre-se de teias de aranha.
É partindo dessa nova concepção de consciência como explosão que começa o
terceiro parágrafo. Dela o autor deriva a ideia da derrelição, ou seja, do ser estar lançado no
mundo, do abandono do ser no mundo, da inospitalidade, da hostilidade do mundo. Mas
essa descoberta só é possível porque a intencionalidade, ou seja, o fato de que “toda consci-
ência é consciência de alguma coisa” nos remete ao mundo, é, entretanto, uma remissão
direta, imediata, sem medição. Nas palavras de Sartre:
“Ser é explodir para dentro do mundo, é partir de um nada de mundo e de consciência para subita -
mente explodir-como-consciência-no-mundo. (…) Essa necessidade da consciência de existir
como consciência de outra coisa que não ela mesma, Husserl a chama de intenciona -
lidade” (p. 56-7)
É dessa forma que Sartre termina o terceiro parágrafo cuja ideia central é apontar o
sentido de intencionalidade: um rompimento com a tradição que entendia a relação episte-
mológica como uma relação mediada, para propor um retorno às coisas concretas, propor
que o sujeito conhece um objeto, pois relaciona-se diretamente com ele. Para Sartre,
portanto, o central é mostrar como consciência e mundo estão jungido inextrincavelmente.
E isso é o suficiente para “pôr um termo à filosofia aconchegante da imanência” (IDEM, p.
56).
E agora no quarto e derradeiro parágrafo pode-se perceber qual o alcance da crítica
sartriana a seus mestres. Para Sartre, “a filosofia francesa que nos formou não conhece
quase nada além de epistemologia” (IDEM, p. 57). O que indica que a tarefa que lhe coube é
fazer o que seus mestres não fizeram, ou seja, ontologia, falar dos próprios seres, do que
existe. Sartre aponta que conhecer um objeto é apenas um modo da consciência, de certa
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forma, ele aponta que é possível, por assim dizer, viver um objeto, ou seja, relacionar-se com
o objeto existente, e indica as emoções em relação a um objeto como esse outro modo de
consciência, nas palavras dele:
“vivemos e sofremos antes de tudo. Eis que essas famosas reações 'subjetivas' – ódio, amor, temor,
simpatia –, que boiavam na malcheirosa salmoura do Espírito de repente se desvencilham dele: são
apenas maneiras de descobrir o mundo. São as coisas que subitamente se desvendam para nós como
odiáveis, simpáticas, horríveis e amáveis” (IDEM, p. 57).
E é a concepção desse outro modo da consciência que explica o que Sartre quer dizer
ao atribuir a Husserl uma proeza: “Husserl reinstalou o horror e o encanto nas coisas”
(IDEM), ou seja, ele, ao conceber a consciência como ato, teria aberto caminho para uma
relação imediata com as coisas.
Eis que agora aparece muito sinteticamente a maneira como será apropriada por
Sartre a noção de intencionalidade para realizar um Esboço de uma Teoria das Emoções:
Husserl
“limpou o terreno para um novo tratado das paixões que se inspiraria nesta verdade tão simples e tão
profundamente desconhecida pelos nossos refinados: se amamos uma mulher, é porque ela é amável.
Eis-nos libertados de Proust. Libertados ao mesmo tempo da 'vida interior'” (IDEM).

E aqui nota-se claramente o que já vinha se insinuando que três são as faces da noção da
consciência como explosão: 1) a explosão das bases da filosofia neokantiana – alimentar, 2)
da noção de consciência como substância, lugar, ou receptáculo e 3) da noção de interiori-
dade.
E na conclusão do parágrafo, o texto aponta as consequências éticas do exis -
tencialismo sartriano, o sentido da existência não está dado, mas não só não é previa-
mente definido, determinado, como se constrói em um lugar específico, fora do âmbito da
interioridade, nas ações concretas sobre o mundo, antecipando assim as noções de engaja-
mento e de situação:
“Em vão procuraríamos, como Henri-Frédéric Amiel, como uma criança que se aninha no colo, as carí-
cias, os mimos de nossa intimidade, pois afina de contas tudo está fora. Não é em sabe-se lá em qual
retraimento que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as
coisas, homem entre os homens” (IDEM).
É justamente este o sentido de ética com que se trabalhará nesta pesquisa: o que se
costuma chamar de 'sentido da vida', ou a 'identidade' não se encontrará numa noção de
intimidade ensimesmada, numa remissão sem mais à história do indivíduo, ao invés será
precisamente nas relações que são possíveis de ser traçadas no presente. Relações com os
outros, com as coisas, com a sociedade, com seu passado, com seu lugar etc. Trata-se,
portanto, de uma concepção de homem em que o indivíduo se faz necessariamente em
relação, em direção a, isto é, num movimento intencional. A proposta dessa pesquisa é então

30
compreender como Sartre analisa esses âmbitos de relação e pensar como o que se pode
aprender disso para refletir a prática clínica.
Como esquema estrutural deste texto nota-se então há uma dupla pretensão:
analisar e expor as antinomias, as contradições internas na tradição filosófica na qual Sartre
nasceu, sendo, dessa forma, uma espécie de ajuste de contas com a tradição; por outro lado,
expor aquilo que a fenomenologia tem de mais fundamental, mais frutífero, a intencionali-
dade. Essas pretensões se mostram também na estrutura do texto que pode ser divido em
duas partes: uma crítica e outra propositiva, a primeira seria o primeiro parágrafo e as
primeiras linhas do segundo, já a segunda parte seria o resto texto.
Depois de se ter comentado mais detidamente o texto ressaltando seu caráter autobi-
ográfico o que aponta para a possibilidade de compreender em que sentido se falou em
recepção da fenomenologia, é preciso trazer a tona um outro aspecto de se compreender
essa noção de recepção. Trata-se de esboçar17 algumas diferenças entre a forma como
Husserl e Heidegger falavam em intencionalidade e a forma como Sartre falará.
Pode-se para isso ter em vista o lema da fenomenologia: o retorno às coisas
mesmas. Tentar-se-á muito, en passant, apontar como os três pensadores entendiam esse
bordão, como se deve entender esse bordão no interior do pensamento deles.
Ainda que Sartre não o use muito, há sim um sentido muito claro de como ele
aparece em seus textos: trata-se justamente deste retorno ao concreto explicitado no texto
em que se trabalhou.
“Recusamos o idealismo oficial em nome do 'trágico da vida'. Este proletariado longínquo, invisível,
inacessível, mas consciente e atuante, fornecia-nos a prova – obscuramente para muitos dentre nós –
de que não estavam resolvidos todos os conflitos. Tínhamos sido educados no humanismo burguês e
este humanismo otimista despedaçava-se, já que adivinhávamos, em torno de nossa cidade, a
multidão imensa dos 'sub-homens conscientes de sua sub-humanidade', mas sentíamos este despe-
daçar de uma maneira ainda idealista e individualista: os autores que amávamos explicavam-nos, por
esta época, que a existência é um escândalo. O que nos interessava, entretanto, eram os homens reais
com seus trabalhos e suas dores; exigíamos uma filosofia que desse conta de tudo sem nos aperceber
de que ela já existia e que era ela, justamente, que provocava em nós esta exigência. Um livro teve
muito sucesso entre nós nessa época: Vers le Concret (Rumo ao Concreto), de Jean Wahl, e ainda nos
decepcionava este 'vers' (em direção a … ): é do concreto total que queríamos partir”. (SARTRE, 1957,
p. 119).
Neste trecho da Questão de Método, Sartre, novamente usando daquele plural que
ele se valeu em 1939 para se referir à sua geração, descreve agora, em 1957, com mais
precisão o se está pretendendo dizer. É justamente esse espírito que o título do livro de Wahl
citado resume tão que bem. Uma preocupação com o lugar do indivíduo no mundo. Ainda

17 É realmente um esboço do que poderia ser um estudo da história do conceito de intencionalidade. Não é
possível nem é a pretensão deste trabalho aprofundar muito nisso: a pretensão aqui é apenas contrastar um
pouco a forma como se desenvolveu a fenomenologia na Alemanha com a França. Para um outro
desenvolvimento desse tema ver a tese de Cristina Diniz Mendonça, sobretudo a parte final.
31
que aquela geração estivesse defrontando-se com o absurdo da existência, tema que
Heidegger tanto trabalhou, faltava para ele uma possibilidade de falar do concreto. Dessa
forma, a fenomenologia mesmo já foi, desde seu início, compreendida por eles como um
passo nessa direção, caminho esse que, no caso de Sartre, redundará numa reavaliação do
marxismo, justamente o tema do texto que se acabou de citar. Por fim, seria interessante
sublinhar uma frase desse trecho que se pode servir para se pensar como a fenomenologia,
sobretudo aquela como Sartre propõe, pode ajudar a um conhecimento mais próximos dos
homens eles mesmos: “o que nos interessava, entretanto, eram os homens reais com seus
trabalhos e suas dores” (IDEM).
Este caminho para o concreto só pôde ser traçado pelo que se costuma chamar de
giro ontológico no pensamento de Heidegger. E aqui adentra-se ao sentido que este
pensador confere ao lema da fenomenologia: se, para Sartre, 'retorno às coisas mesmas,
tinha este tom concreto – pensado o termo coisa em sua materialidade –, podendo abarcar
as dores e sofrimentos dos homens, é precisamente porque Sartre pôde se valer do movi-
mento operado no interior da fenomenologia por Heidegger.
Para compreender o que se trata este giro, é preciso ter em mente que campo central
dos trabalhos de Husserl era a epistemologia e a gnosiologia. Inclusive o tal lema era refe-
rido a esses âmbitos. Husserl herda de seu professor – e também de Freud – Franz Brentano
a noção de intencionalidade inclusive esse uso para designar um movimento da consciência
em direção a uma exterioridade. Dessa forma, as 'coisas mesmas' desses pensadores – ainda
que não sejam exatamente as mesmas 18 – circunscrevem-se ao âmbito da relação sujeito-ob-
jeto, seriam muito menos as coisas empíricas, mas os atos do conhecimento, isto é, as coisas
tais como elas se mostram na consciência. A crítica de Sarte ao idealismo volta aqui então
com todo peso, pois as coisas concretas não estão em pauta, a consciência continuaria rela-
cionando-se consigo mesma, apenas digerindo o que ela mesma regurgitou.
O giro ontológico seria então uma mudança no objeto. Se para Husserl o problema
central era como se dá a relação de conhecimento, para Heidegger, a questão é completa-
mente outra: trata-se que indagar-se acerca do ser, o que é o ser? A inversão é tão grande
que até mesmo o problema do conhecimento passa a ser subsumido a questão do ser, se eu
não souber o que é 'isto', nem o que é este 'é' que uso para designar o 'isto' não posso me
questionar sobre como conheço isto que agora tenho em minha mão.

18 Para precisar estas diferenças remete-se aos trabalhos de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, tanto um artigo
publicado numa revista de divulgação – Husserl: intencionalidade e fenomenologia – em que ele resume
um pouco esse movimento, quanto em seus demais trabalhos.
32
O que fica de Husserl e Brentano então? Precisamente a noção de uma vinculação
íntima entre consciência e o mundo. É interessante notar que é justamente por essa razão
que Sartre é tão elogioso a Husserl e não a Heidegger, embora esse inversão da epistemo-
logia para a ontologia seja fundamental. Além disso, Sartre não se preocupa em explicitar
todo esse percurso. Inversões essas que são essenciais para se compreender algumas dife-
renças fundamentais nessa história da fenomenologia que se pode traçar a partir do
conceito de intencionalidade. História essa que não pode deixar de levar em conta o papel
de Kojève como um leitor de Hegel e Heidegger que já imprimia nos seus cursos um tom
mais concreto, ao realizar uma certa visada antropológica desses autores 19, que pôde servir
para os desígnios daquela geração.

O que se pretendeu com o exame deste texto de Sartre foi analisar a noção de inten-
cionalidade, mas justamente porque esta noção é fundamental para se compreender o que
Sartre ira desenvolver posteriormente sobre a rubrica de situação. Sobretudo, esse recuo
para as fundações da noção de situação é necessário porque nele também já se insinua o
sentido de ética com que se que construir uma reflexão sobre a clínica.

II – SER-EM-SITUAÇÃO

“Eles não vivem apesar dessas lacu-


nas, mas justamente em função
delas"
(Primo Levi)

Nesta parte será analisado mais detidamente como Sartre compreende a noção de
situação. Será então trabalhado o capítulo: Liberdade e Facticidade: a situação d'O Ser e o
Nada. O capítulo pode ser dividido em 7 momentos, cinco deles são divisões presentes no
próprio texto aos quais se acrescentarão uma introdução e uma conclusão: 1) Introdução,
em que se pretende limpar o terreno argumentativo das noções de liberdade para que se
possa apresentar o que se compreende por liberdade; em seguida parte-se para a discussão

19 ARANTES, P. E. “Um Hegel errado mas vivo. Notícias sobre o seminário de Alexandre Kojève”. In: IDE (21)
1991: 72-79; e “Hegel no espelho do Dr. Lacan”. In: IDE (22) 1992: 64-77; e SIMANKE, R. T. Metapsicologia
lacaniana. Discurso Editorial, São Paulo, 2002.
33
sobre o que Sartre chamou de “estruturas da situação” (SARTRE, 1943, p. 602), 2) Meu lugar;
3) Meu passado; 4) Meus arredores; 5) Meu próximo; 6) Minha morte e termina-se o capítulo
com uma 7) Conclusão, em que se analisa os momentos finais do capítulo do livro.
É preciso, antes de dar início ao exame deste momento do livro de Sartre, situar,
ainda que brevemente, o contexto em que esse capítulo se insere. O que aqui se chama de
capítulo Liberdade e Facticidade: a situação é, na verdade, um subcapítulo do Capítulo 1: Ser
e Fazer: a Liberdade e insere-se na Quarta parte: Ter, Fazer e Ser d'O Ser e o Nada. Segundo a
introdução desta quarta parte, ela tratará do momento – talvez central – do livro em que se
esboça uma teoria da ação :
“O valor supremo da atividade humana é um fazer ou um ser? E, qualquer que seja a solução adotada,
que será do ter?A ontologia deve poder informar-nos sobre esse problema; é, além disso, uma de suas
tarefas essenciais, se o Para-si é o ser que se define pela ação. Portanto, não devemos concluir esta
obra sem esboçar, em seus grandes traços, o estudo da ação em geral e das relações entre o fazer,
o ser e o ter.” (SARTRE, 1943, p. 535, grifo meu)
Esta quarta parte trata, portanto, de articular e explicitar as conexões existentes
entre as “categorias cardeais da realidade humana [que] classificam em si todas as condutas
dos homens” (IDEM): o Ter, o Fazer e o Ser. A questão para o autor situa-se no âmbito de uma
discussão filosófica no campo da Moral. Sartre pretende discutir ontologicamente o
problema da moral, ou seja, discutir, articuladamente, a relação do ser e a questão da
conduta humana: “O objetivo da moral foi por muito tempo prover o homem com o meio de
ser” (IDEM). Dessa forma, o autor traça duas tradições na história da Filosofia: uma que, ao
substituir o “ser pelo fazer como valor supremo da ação” (IDEM), trata o movimento de
forma substancialista, sendo, em suma, uma perspectiva que prioriza o ser e não o fazer
numa concepção de ação; e uma outra que prioriza o fazer numa teoria da ação, isto é, a que
trabalha com a hipótese de que “o ser do homem há de reabsorver-se na sucessão de seus
atos [e que, portanto,] a meta da moral já não será elevar o homem a uma dignidade ontoló -
gica superior” (IDEM). Ainda que por enquanto não possa ficar claro em que sentido Sartre
situar-se-á nessa última tradição, já se pode adiantar a centralidade da ação para ele na
medida em que, “semelhante conexão [entre Ser, Fazer e Ter] transparece quando
mostramos um agente moral que faz para fazer-se e que faz-se para ser” (IDEM).
Com isso pretendeu-se apontar o tema do qual trata esta quarta parte. A noção de
situação, contudo, foi antecipada pela discussão da questão da liberdade no sentido que o
título aponta: A condição primordial da ação é a liberdade , noutros termos, num primeiro
momento do esboço de uma teoria da ação, Sartre apresenta a ideia de que no fundamento
de qualquer ação está a liberdade. Contudo, (e aqui é forte o sentido dessa conjunção adver-
sativa, pois serão apresentados os obstáculos) no próximo capítulo, Liberdade e Facticidade:

34
a situação, Sartre tratará da relação da liberdade com as adversidades, ou facticidade e,
agora sim, adentra-se, ao capítulo da situação, pois esta será apresentada como a articulação
entre a liberdade e a facticidade.
Cabe aqui antes de começar, de fato, o exame deste capítulo justificar a escolha de
circunscrever a análise a ele. Poder-se-ia objetar que, se no capítulo anterior o autor expôs
sua concepção de liberdade, seria um equívoco não tomá-lo como objeto de análise. Entre -
tanto, essa observação não se sustenta pelos seguintes motivos. Em primeiro lugar, tem-se
como motivo de ordem conceitual o fato de que a concepção de liberdade de Sartre apenas
irá ganhar peso, ou atingir sua forma plena, ao levar em conta a facticidade, ou seja, ao
considerar que a liberdade é situada e, dessa forma, o capítulo sobre a situação, ao retomar
os aspecto fundamentais do anterior, pode ser considerado como uma síntese de ambos os
temas; em segundo lugar, porque, em muitos aspectos nesse capítulo serão retomados temas
centrais do livro como, por exemplo, a relação do Para-si com a História, o tema da alteri -
dade e da morte. Mas, sobretudo, porque há um motivo de ordem metodológica para essa
escolha: o objeto desta pesquisa, a prática clínica em psicologia, em muitos aspectos vale-se
de uma teoria da ação e é neste capítulo em que se pode dizer que Sartre sintetiza seus
elementos fundamentais. Mais que isso, como a clínica é um espaço em que se dará lugar
para a insatisfação, para a frustração, para o sofrimento do indivíduo, estudar como Sartre
concebe em sua teoria da ação, a relação do homem com os obstáculos que tem que superar
pode ser enriquecedor, sobretudo, ao se considerar que esse estudo pode ensejar algumas
portas de entradas para uma reflexão sobre aspectos éticos dessa atividade.

1º momento – Introdução

Sartre começa o capítulo traçando uma distinção entre uma concepção de “senso
comum20” (SARTRE, 1943, p. 593) que se posiciona contrária à liberdade e a concepção dos
“adeptos da liberdade humana” (SARTRE, 1943, p. 593). Trata-se da prova fática dos limites à
nossa liberdade, isto é, expõe uma concepção determinista de homem na qual este aparece
como uma figura impotente, fracassada, refém das circunstâncias, como que um barco com
mastro e leme quebrados: até pode ter um capitão, contudo, por mais que ele pretenda
dirigir o barco, este estará ao sabor dos ventos. Em suma, o argumento contra liberdade
consiste sempre em “lembrar-nos de nossa impotência” (IDEM) diante dos limites:

20 Embora o autor denomine de senso comum, em alguns momentos imagina-se que ele tenha em vista
adversários que se poderia tentar nomear, esforço que, foge, contudo, ao escopo deste trabalho.
35
“longe de podermos modificar nossa situação a nosso bel-prazer, parece que não podemos modificar-
nos a nós mesmos. (…) Bem mais do que parece 'fazer-se' o homem parece 'ser feito” pelo clima e a
terra, a raça e a classe, a língua a história da coletividade da qual participa, a hereditariedade, as
circunstâncias individuais de sua infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos aconteci-
mentos de sua vida” (IDEM).
O ponto central para Sartre – que servirá de guia ao longo de todo o capítulo – para contra-
por-se a essa visão determinista do homem é que:
“O coeficiente de adversidade das coisas, em particular, não pode constituir um argumento contra
nossa liberdade porque é por nós, ou seja, pelo posicionamento prévio de um fim, que surge o coefici -
ente de adversidade” (IDEM).
Nascem as adversidades, portanto, de uma relação; uma relação entre o homem e aquilo que
– à primeira vista – se manifesta como obstáculo, noutros termos, só são adversidades para
esta determinada pessoa, para a qual tal objeto se mostra desta maneira específica.
Para ilustrar esse ponto central, Sartre elabora um exemplo que convém ter em
mente ao longo de todo o capítulo, é o que se poderia chamar do exemplo do rochedo :
Em primeiro lugar, pode-se salientar que a escolha de uma pedra não parece ser ingênua ou
fortuita da parte do autor, pois a pedra 21 parece sintetizar, em grau máximo, a possibilidade
de expressar, pela sua rigidez e pela sua densidade o caráter resistente de algo. Ao se traba-
lhar, então, com uma imagem que congrega em si vários elementos da ideia de resistência e,
ao mostrar que a pedra não seria em si algo resistente, começar-se-ia destruindo o argu -
mento do senso comum contra a liberdade. Pensando num indivíduo e um rochedo, este só é
um obstáculo, só oferece resistência, quando se pretender removê-lo, quando não se
pretende que ele estivesse ali. Mas se a pretensão for escalá-lo, o rochedo não mais se mani -
festará a esse indivíduo como um obstáculo, passa a ser, pelo contrário, uma condição neces-
sária. A utilidade primeira do exemplo é mostrar que o rochedo, em si mesmo, é “neutro”
(IDEM, p. 593-4), antes: “espera ser iluminado por um fim a se manifestar como adversário
ou auxiliar” (IDEM), mais ainda: “é a nossa liberdade que constitui os limites que espera
encontrar depois” (IDEM, p. 594).
Também é preciso constatar que o rochedo se mostra de uma forma específica
apenas porque se circunscreve
“no interior de um complexo-utensílio já estabelecido. Sem picaretas e ganhos, veredas já traçadas,
técnica de escalagem, o rochedo não seria fácil nem difícil de escalar; a questão não seria colocada, e o
rochedo não manteria relação de espécie alguma com a técnica do alpinismo” (IDEM)
Este trecho foi importante citar porque, além de explicitar que se trata de uma
relação entre um fim – criado por uma liberdade – e um obstáculo, ele antecipa aspectos que
aparecerão nas próximas partes: a relação com os utensílios será tratada na parte: 'Meus

21 Pode-se aqui ter me mente a expressão “ter uma pedra no sapato” como expressão de um incômodo, de
algo que resiste à realização do que se pretende. Tema este que será retomado na nota 31, p. 91.
36
arredores'; já a relação com os caminhos, as veredas será abordada em 'Meu lugar'; a relação
com a relação com a técnica (e a linguagem) será tratada em 'Meu próximo'.
Sobre algo que é próprio ao em-si, um residuum, que torna algo mais ou menos resis-
tente – o rochedo é mais ou menos escalável –, é preciso considerar que, isso que sobra, esse
resíduo, não é, entretanto, um limite à liberdade. Pelo contrário, é a partir dele que a liber-
dade se manifesta como liberdade. O resíduo de adversidade é uma condição para a liber-
dade: a liberdade se faz, jamais sem ele, nem apesar dele, mas, por assim dizer, em cima dele.
“Assim, ainda que as coisas em bruto (que Heidegger denomina 'existentes em bruto') possam desde a
origem limitar nossa liberdade de ação, é nossa liberdade mesmo que deve constituir previ -
amente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais as coisas irão manifestar-
se como limites. Mesmo se o rochedo se revela como 'muito difícil de escalar' e temos de desistir da
escalada, observamos que ele só se revela desse modo por ter sido originariamente captado como
'escalável'; portanto, é a nossa liberdade que constitui os limites que irá encontrar
depois” (IDEM, p. 594, grifo meu).
Um outro aspecto a refutar na concepção determinista de homem é a pressuposição
de que ser livre é realizar o que se pretende sem quaisquer obstáculos ou barreiras, noutras
palavras, associar liberdade com realização ilimitada de projetos. Essa relação entre
conceber e realizar, de pronto, é interditada na vida real. Sartre lembra que, em sonho,
talvez ela seja válida, mas no que concerne a questão da liberdade, ela não faz sentido e
assim e argumenta:
“O ser dito livre é aquele que pode realizar seus projetos. Mas, para que o ato possa comportar reali-
zação, é preciso que a simples projeção de um fim possível se distinga a priori da realização deste fim.
Se bastasse conceber para realizar, estaria eu mergulhado em um mundo semelhante ao do sonho, no
qual o possível não se distingue de forma alguma do real. Ficaria condenado, então, a ver o mundo se
modificar segundo os caprichos das alterações de minha consciência, e não poderia praticar, em
relação à minha concepção, a 'colocação entre parênteses' e a suspensão do juízo que irão distinguir
uma simples ficção de uma escolha real. Aparecendo desde o momento em que é simplesmente
concebido, o objeto não seria o nem escolhido nem desejado. Abolida a distinção entre o
simples desejo , a representação que posso escolher e a escolha , a liberdade desapare-
ceria com ela. Somos livres quando o termo último pelo qual fazemos anunciar a nós
mesmos o que somos constitui um fim , ou seja, não um existente real, como aquele
que, na suposição precedente, viria a satisfazer nosso desejo, mas sim um objeto que
ainda não existe. Mas em consequência, este fim, só pode ser transcendente caso
esteja separado de nós ao mesmo tempo que nos é acessível. Somente um conjunto de
existentes reais pode nos separar deste fim – assim como este fim só pode ser conce -
bido enquanto estando por-vir dos existentes reais que dele me separam ” (IDEM, p. 594-
5, grifo meu).
A liberdade, portanto, depende das coisas reais enquanto projeto, das coisas
enquanto coisas projetadas mas ainda não existentes, sem elas existirem dessa forma a
liberdade não existe:
“De sorte que as resistências que a liberdade desvela no existente, longe de constituir
um a perigo para ela, nada mais fazem do que permitir-lhe surgir como liberdade. Só
pode haver Para-si livre enquanto comprometido em um mundo resistente. Fora desse
comprometimento, as noções de liberdade, determinismo e necessidade perdem inclusive seu
sentido” (IDEM, p. 595, grifo meu)

37
A liberdade, em outras palavras, se constrói junto às coisas, em relação com elas.
Retomando a discussão do capítulo precedente referente ao conceito de intencionalidade de
Husserl, pode-se dizer que a liberdade – assim como a consciência, na medida em que aquela
é um movimento desta – tende em direção às coisas, é, portanto, intencional.
Não obstante isso é preciso considerar que, embora liberdade não seja sinônimo de
realização, na medida em que escolher é idêntico ao fazer, é também “um começo de reali-
zação” (IDEM, p. 595). Mais precisamente:
“a fórmula 'ser livre' não significa 'obter o que se quis', mas sim 'determinar-se por
si mesmo a querer (no sentido lato de escolher). Em outros termos, o êxito não importa em abso -
luto à liberdade.” (IDEM, grifo meu).
Neste ponto do texto, com o fito de dar corpo a essa ideia, Sartre lança mão de uma
outra imagem, o exemplo do prisioneiro. Mesmo um homem que esteja aprisionado,
não sendo livre para escapar nem muito menos livre para sequer desejar sair da prisão.
Entretanto é livre ainda. Livre, na medida em que a escolha é idêntica ao fazer, para “tentar
escapar (ou fazer-se libertar) – ou seja, qualquer que seja sua condição ele pode
projetar sua evasão e descobrir o valor de seu projeto por um começo de
ação” (IDEM, grifo meu).
O ponto central deste exemplo, carregado de expressividade na medida em que a
prisão sintetiza a ideia mais concreta de restrição de liberdade, é explicitar que liberdade
não pode significar possibilidade de realização. Diante de uma concepção tradicional de
liberdade que a entende como ausência de impossibilidade, obstáculos aos meus desígnios,
evidentemente que seria muito fácil achar exemplos de momentos em que, em havendo
obstáculos e limites, a liberdade estaria ausente. A prisão pode ser vista como cena máxima
da restrição da liberdade: de movimento, de ação, sem dúvida. Ser, contudo, a fonte do
movimento que projeta um estado de coisas diferente – no caso: uma situação em que não se
está preso –, é algo que não se poder retirar de alguém. Nesse sentido, o “conceito técnico e
filosófico de liberdade, o único que consideraremos aqui, significa somente: autonomia de
escolha” (IDEM). E essa autonomia deve ser entendida no âmbito da distinção entre liber-
dade de escolha e liberdade de obter o que se escolheu , mas sem, entretanto,
distinguir intenção e ato, pois a escolha já é, em certo sentido – o do projeto de uma ação –
uma realização:
“Nossa descrição da liberdade, por não distinguir o escolher do fazer, nos obriga a renunciar de vez à
distinção entre intenção e ato. Não se pode separar intenção do ato, do mesmo modo como não se
pode separar o pensamento da linguagem que o exprime; e, assim como acontece de nossa palavra
revelar-nos nosso pensamento, também nossos atos nos revelam nossas intenções” (IDEM, p. 595-6).
O autor, então, com esses exemplos vai trabalhando as várias faces da questão dos
aparentes limites à liberdade. Para tanto, vale-se do argumento de que o coeficiente de
38
adversidade é como limitador da liberdade mas com outro propósito: procura mostrar que
ele é “indispensável à existência de uma liberdade” (IDEM, p. 596), isto é, pode, por um lado,
mostrar que aquilo que costumeiramente se compreende como limite à liberdade é antes
condição para que ela exista: “a liberdade não é dirimida pelo dado” (p. 596). Mas também
indica “algo como um condicionamento ontológico da liberdade” (IDEM), à ela seria possível
impor a condição de que ela só exista a partir de uma resistência. Nesse sentido, “parece
aqui haver uma precedência ontológica do Em-si em relação ao Para-si” (IDEM), quer dizer,
uma precedência do dado bruto, da facticidade, da adversidade em relação à liberdade; não
sendo, portanto, exagero dizer que a liberdade nasce da adversidade.
Esse ponto é a retomada do que Sartre chama da facticidade do Para-si, que
agora se mostra como facticidade da liberdade : o Para-si é livre, mas não é seu próprio
fundamento. A liberdade – ou a consciência, ou o homem22 – não pode escolher ser
livre. Haveria uma redução ao absurdo, pois para ser livre primeiro, seria necessário ser
livre para escolher ser livre ou não:
“De fato, somos uma liberdade que escolhe, mas não escolhemos ser livres: estamos condenados à
liberdade, como dissemos atrás, arremessados na liberdade, ou como diz Heidegger, 'em derrelição'. E
vemos que tal derrelição, não tem outra origem salvo a própria existência da liberdade. Portanto, se
definimos a liberdade como escapar ao dado, ao fato, há um fato do escapar ao fato. É
a facticidade da liberdade. ” p. 596-7.
A liberdade não existe, portanto, sem o coeficiente de adversidade, ela é, nesse
sentido, intencional. Segundo Sartre:
“A liberdade, por seu próprio surgimento, determina-se em um 'fazer'. Mas, como vimos, fazer, pres -
supõe a nadificação de algo dado. Fazemos alguma coisa de alguma coisa. Assim, a liberdade é falta de
ser em relação a um ser dado, e não surgimento de um ser pleno. E, se a liberdade é esse buraco no ser,
esse nada de ser, como acabamos de dizer, ela pressupõe todo o ser para surgir no âmago do ser como
um buraco (…). Só podemos ser livres em relação a tal estado de coisas e apesar deste ”
(IDEM, p. 598, grifo meu).
Esquematicamente, “a concepção empírica e prática de liberdade é inteiramente
negativa; parte da consideração de uma situação e constata que esta situação me deixa
livre para perseguir tal ou qual fim” (IDEM, grifo meu), isto é, considera que a liberdade
seria um estado, por assim dizer, vazio, em que não haveria relação com nada. E aqui, pela
primeira vez utiliza-se o termo situação, mas com o sentido de um limite, que algo que cons-
trange a liberdade.
Apresenta, em seguida, mais um exemplo de uma concepção negativa de liberdade –
exemplo aliás bem significativo do momento histórico da escrita do livro, pois o autor
realizou boa parte do texto com a França ocupada pelos nazistas –, trata-se do exemplo do
salvo conduto para circular na França ocupada: o salvo conduto, enquanto liberação de

22 Como se verá adiante, Sartre busca articular os âmbitos da ontologia e da antropologia.


39
uma constrição, seria fonte da liberdade, sendo, assim, uma ilustração da forma com que o
senso comum entende a liberdade. E aqui esse exemplo ganha já matizes da discussão sobre
o engajamento, pois sabe-se que Sartre participou em movimentos políticos contra a
ocupação nazista e em noutro livro da mesma época, As Moscas, Sartre trata justamente
desse tema e da questão dos colaboracionistas – que marcou profundamente o orgulho naci-
onalista francês com o estigma da traição.
Se há pouco mostrou-se a facticidade da liberdade, agora é preciso reconhecer que
nesta encontram-se facticidade e contingência :
“Dissemos que a liberdade não é livre para não ser livre e que não é livre para não existir. Isso porque,
com efeito, o fato de não poder não ser livre é a facticidade da liberdade, e o fato de não poder
não existir é a sua contingência. Contingência e facticidade identificam-se: há um ser cuja
liberdade tem-de-ser em uma forma do não-ser (ou seja, nadificação). Existir como fato da liber -
dade ou ter-de-ser no meio do mundo é a mesma coisa, o que significa que a liber-
dade é originariamente relação com o dado ” (IDEM, p. 599, grifo meu)
Tentando sintetizar esquematicamente, o que se quer dizer é que, em primeiro lugar,
há na liberdade um ponto de tangência entre contingência e facticidade: na medida em que
à liberdade não pode escapar sua condição de ser livre este é o fato da liberdade; por outro
lado, a impossibilidade da liberdade deixar de existir enquanto liberdade é a sua face de
contingência, pois não há razão para que assim seja. Além disso, há duas formas de relação
da liberdade com o dado, uma definição negativa, pois exclui o dado da concepção de liber-
dade e outra positiva. Nas palavras de Sartre, assim poderia ser compreendida a primeira
definição:
“O dado não é causa da liberdade (pois o dado só pode produzir o dado) nem razão da liberdade (pois
toda 'razão' vem ao mundo pela liberdade). Tampouco é condição necessária à liberdade, já que
estamos no terreno da pura contingência. Também não é uma matéria indispensável sobre a qual a
liberdade deve exercer-se (…). O dado não entra de forma alguma na constituição da liberdade” (IDEM,
p. 599)
Já a segunda definição, positiva, na medida em que trabalha como a ideia de a liber-
dade só se faz na relação com o dado bruto é assim apresentada por Sartre: a liberdade
“interioriza-se como negação interna do dado. Simplesmente, é a pura contingência que a liberdade
nega fazendo-se escolha; é a plenitude de ser que a liberdade colore de insuficiência e negatividade
iluminando-a à luz de um fim que não existe. (…) Esse dado nada mais é do que o Em-si nadificado pelo
Para-si que tem-de-sê-lo. (…) Por sua própria projeção rumo a um fim, a liberdade constitui como ser
no meio do mundo um datum particular que ela tem-de-ser. A liberdade não o escolhe, pois isso seria
escolher a própria existência, mas pela escolha que faz de seu fim, ela faz com que esse datum se
revele dessa ou daquela maneira (…). Assim, a própria contingência da liberdade e o mundo
que, com sua contingência própria, circunda tal contingência irão aparecer à liber -
dade somente à luz do fim que ela escolheu, ou seja, não enquanto existentes em
bruto, mas na unidade de iluminação de uma só nadificação ” (IDEM, p. 599-600, grifo meu)
Agora, depois de tratar desse duplo aspecto da relação da liberdade com o dado,
Sartre utiliza novamente o termo situação, mas com o sentido que será adotado no capítulo
que que já se anunciou algumas vezes nesta pesquisa: como um fenômeno ambíguo no qual
não se distingue mais a liberdade da facticidade, sendo, portanto a explicitação de uma
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tensão dialética entre esses polos e a expressão de um amálgama indissociável fenomenolo-
gicamente.
“A situação, produto comum da contingência do Em-si e da liberdade, é um fenômeno ambíguo, no
qual é impossível ao Para-si discernir a contribuição da liberdade e a do existente
bruto. Com efeito, assim como a liberdade é um escapar a uma contingência que ela tem-de-ser para
dela escapar, também a situação é livre coordenação e livre qualificação de uma dado em bruto que
não se deixa qualificar de modo algum” (IDEM, p. 600, grifo meu).
Sarte retoma, em seguida, o exemplo do rochedo e entra em cena a noção de
projeto como explicitação da noção usada até agora de motivo, fim, intenção ou desejo:
“Sendo igual o desejo de escalar, o rochedo será fácil para um alpinista atlético, difícil para outro,
novato, mal treinado e de corpo franzino. Mas o corpo, por sua vez, só se revela bem o mal treinado
em relação a uma escolha livre. É porque estou aí e faço de mim o que sou que o rochedo desenvolve
com relação a meu corpo um coeficiente de adversidade (…). E, em certo sentido, sou eu quem escolhe
meu corpo como franzino ao levá-lo a defrontar-se com dificuldades que eu mesmo faço nascer”
(IDEM, p. 601)
O rochedo só aparece de tal ou qual maneira porque há um projeto. Acrescenta
também uma distinção entre projeto inicial e secundário, sendo que aquele é o ser-no-
mundo, que confere sentido para o projeto secundário. Nas palavras do autor:
“Assim, o rochedo se destaca sobre o fundo de mundo por efeito da escolha inicial de minha liberdade.
Mas, por outro lado, minha liberdade, não pode decidir se o rochedo 'a escalar' irá servir ou não à
escalada. Isso faz parte do ser em bruto do rochedo. Todavia, o rochedo só pode manifestar sua resis-
tência à escalada se for integrado pela liberdade em uma 'situação' cujo tema geral é a escalada. Para o
simples viajante que atravessa a estrada e cujo livre projeto é pura ordenação estética da paisagem, o
rochedo não se mostra nem escalável, nem como não-escalável: manifesta-se somente como belo ou
feio. Assim, é impossível determinar em cada caso particular o que procede da liberdade e o que
procede do ser em bruto do Em-si. O dado em si mesmo, como resistência ou como ajuda,
só se revela à luz da da liberdade projetante. Mas a liberdade projetante organiza
uma iluminação de tal ordem que o Em-si mostra-se como é, ou seja, resistente ou
favorável (…). Portanto, é somente no e pelo livre surgimento de uma liberdade que o
mundo desenvolve e revela as resistências que podem tornar irrealizável o fim proje -
tado. O homem só encontra obstáculo no campo da sua liberdade. Melhor ainda: é impos-
sível decretar a priori o que procede do existente em bruto ou da liberdade no caráter de obstáculo
deste ou daquele existente particular” (IDEM, p. 600-1, grifo meu).
E esse excerto já aponta também para a explicitação do que Sartre mesmo chama de
paradoxo da liberdade – que implica necessariamente a noção de situação – na exata
medida em que ela tenta justamente abarcar as faces aparentemente contraditórias da
relação entre necessidade e contingência, ou consciência e facticidade, ou liberdade e neces-
sidade, ou ainda, nos termos que aqui se tenta configurar: liberdade e facticidade. Tal para-
doxo é, em suma, a explicitação de uma relação entre polos que se compreendidos desvincu-
lados simplesmente não existiriam enquanto tais, isto é, tem uma conexão necessária que o
conceito de intencionalidade tenta expor:
“Começamos a entrever o paradoxo da liberdade: não há liberdade a não ser em situação,
e não há situação a não ser pela liberdade . A realidade humana encontra por toda parte resis-
tências e obstáculos que ela não criou; mas essas resistências e obstáculos só tem sentido na e pela
livre escolha que a realidade humana é” (IDEM, p. 602, grifo meu).

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A noção de situação, dessa forma, é a única forma de se conceber fenomenologica-
mente – quer dizer por meio da noção fundamental de Husserl de intencionalidade – a
questão da liberdade. O que se pretendeu até aqui foi mostrar a profundar e inquebrantável
imbricação entre liberdade e facticidade que a noção de situação abarca. Se, por um lado, a
liberdade só existe porque há um dado bruto que lhe opõe resistência, de outra parte, tais
adversidade nada seria se não houvesse uma liberdade que, pelo seu projeto, a compreen-
desse, a abrangesse enquanto adversidade, noutros termos, ela só se manifesta dessa forma
em relação ao projeto de uma consciência – instância essa que também não existe, por assim
dizer, no vácuo. A noção de situação é, enfim, a explicitação de um fenômeno que se dá
simultaneamente e que não pode ser compreendido de forma cindida.
Por fim, Sartre apresenta o que ele denomina de “diferentes estruturas da situ -
ação” (IDEM, 602), ou seja: “meu lugar, meu corpo, meu passado, meus arredores, na
medida em que já determinados pelas indicações do Outros, e, por fim, minha relação funda-
mental com o Outro” (IDEM). Enfim, os mais diversos campos em que a liberdade depara-se
com alguma adversidade. Trata-se de tentar a cada um dos próximos momentos responder à
seguinte questão: como se dá a relação da liberdade com essa categoria de limi -
tação aparente, em que sentido seria ela realmente um limite para a liber -
dade?

2º – Meu lugar: terra natal e ordenamento espacial das coisas

Lugar enquanto uma das estruturas da situação é “ordem espacial e a natureza


singular dos 'istos' que a mim se revelam sobre fundo de mundo” (IDEM, p. 602). É tanto o
lugar geográfico que habito, quanto “a disposição e a ordem dos objetos que presentemente
me aparecem” (IDEM). Meu lugar é uma das relações imanentes à existência, isto é, desde
que se exista estar-se-á em relação a um lugar, não é possível escapar a uma relação com o
lugar.
“É impossível que eu não tenha um lugar, caso contrário eu estaria, em relação ao mundo, em estado
de sobrevoo, e o mundo, como vimos anteriormente, não iria manifestar-se de forma alguma” (IDEM)
Um outro aspecto não tão evidente dessa estrutura da situação é a relação do lugar
com a história: o lugar que ocupo hoje
“só posso ocupá-lo em função daquele que ocupava anteriormente e seguindo caminhos traçados
pelos próprios objetos. Este lugar anterior me remete a outro, este outro a outro, e assim sucessiva -
mente, até a contingência pura de meu lugar, ou seja, aquele dentre meus lugares que já não remete a
nada de mim: o lugar que me é destinado pelo nascimento” (IDEM, p. 603)

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Trata-se, pois, da construção singular de um caminho que, em alguma medida,
remete sempre ao lugar que se ocupa no nascimento, mas uma construção que se faz a
partir de uma base de pura contingência: “o nascimento e o lugar a que ele me destina são
coisas contingentes para mim. Assim, é, entre outras características, ocupar seu lugar, ou
melhor, como acabamos de dizer, recebê-lo” (IDEM). No entanto, erige-se sobre essa base de
contingência uma história, mas uma história singular que se autonomiza – sem poder,
contudo, ser pensada independentemente – dessa primeira relação com um lugar que não
dependeu de uma escolha. Isso implica necessariamente que: “os lugares livremente esco-
lhidos por meus pais não podem valer de modo algum como explicação de meus lugares”
(IDEM).
Já aqui se pode entrever o aspecto que se ressaltou há pouco, a saber, que meu lugar
pode ser, na medida em que parece ser determinante na vida, uma restrição à liberdade,
“uma vez que este lugar original será aquele a partir do qual irei ocupar novos lugares de
acordo com regras determinadas” (IDEM), ele parece ser muito mais que o primeiro lugar,
mas um lugar que se imporá como uma força motriz direcionadora das escolhas futuras.
Seria então meu lugar um limite à minha liberdade?
Instaura-se novamente o debate entre os partidários do livre-arbítrio e os adversá-
rios da liberdade; para aqueles, a partir de cada lugar ocupado, abrem-se inúmeras possibili-
dades novas imprevistas; para estes, pelo exato motivo de que novas possibilidades são
abertas, fecham-se outras inúmeras possibilidades e essas restrições seriam limitadoras.
Meu lugar está, desse modo, associado às outras condições de minha vida de modo determi -
nante. O debate fica assim parecendo insolúvel. Segundo Sartre, isso se deve porque “não foi
colocado no devido terreno” (IDEM).
Tal como a noção de situação recoloca o paradoxo da liberdade, aqui Sartre diz ser
necessário considerar a antinomia do lugar para compreender fenomenologicamente a
relação da liberdade com o lugar:
“a realidade humana recebe originariamente seu lugar no meio das coisas (…). Sem realidade humana
não haveria espaço nem lugar – e, todavia, esta realidade humana pela qual a localização vem às coisas
recebe seu lugar entre as coisas sem ter domínio sobre isso” (IDEM, p. 603-4)
Mesmo considerando essa ambiguidade da relação entre a liberdade e essa estrutura
fática da situação, há, em certo sentido uma proeminência do Para-si, do indivíduo, em
relação ao lugar, pois a única localização concreta que se pode revelar a mim é a minha
própria: “aquela definida por meu lugar considerado como centro, e para a qual as distân-
cias são calculadas absolutamente entre o objeto e eu, sem reciprocidade” (IDEM, p. 604). Se,

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contudo, pode existir uma extensão auxiliar ou adversa é porque existe esse centro organi-
zador da experiência que é a consciência:
“antes de tudo, existo meu lugar, sem escolha, também sem necessidade, como puro fato absoluto de
meu ser-aí. Sou aí: não aqui, mas aí. Eis o fato absoluto e incompreensível que está na origem da
extensão, e, consequentemente, de minhas relações originais com as coisas” (IDEM).
Este lugar é também, por outro lado, uma relação unívoca. Mas ainda assim, sem
reciprocidade, há relação, pois “posso não posso estar em outra parte para estabelecer esta
relação fundamental” (IDEM). Mais que isso, há uma relação de alteridade, ainda que
unívoca, há uma relação. Há um movimento da consciência, mesmo que ela sempre tenha de
partir do seu lugar, em direção a algo que lhe é externo, pois é a partir dessa relação que a
consciência pode se construir:
“para que algo como uma extensão originariamente definida como meu lugar venha ao mundo e, ao
mesmo tempo, me defina rigorosamente, não basta somente que eu exista meu lugar, ou seja, que eu
tenha-de-ser-aí: é preciso também que eu possa não ser completamente aí, de modo a
poder ser lá, junto ao objeto situado a dez metros de mim e a partir do qual anuncio
meu lugar a mim mesmo. A relação unívoca que define meu lugar se enuncia, com
efeito, entre algo que sou e algo que não sou ” (IDEM, p. 604-5, grifo meu).
Há, entretanto, duas condições para que exista essa possibilidade de êxtase, isto é, da
consciência sair do seu lugar para que a consciência seja intencional: “Escapar àquilo que
sou e nadificá-lo” (IDEM, p. 605), sem contudo, abrir mão da relação. Noutros termos e resu-
mindo, “implica, como tal, uma compreensão daquilo que sou enquanto ser-aí. Mas, ao
mesmo tempo, é preciso definir com exatidão aquilo que sou a partir do ser-aí de outros
'istos'” (IDEM). E, para ilustrar, Sartre retoma o exemplo do rochedo quando este é
compreendido num projeto de escalada:
“Sou, enquanto ser-aí, aquele em direção ao qual alguém vem correndo, aquele que ainda precisa
escalar por uma hora antes de estar no topo da montanha etc. Portanto, quando olho o topo da
montanha, por exemplo, trata-se de um escapar a mim mesmo, acompanhado de um refluxo que
opero a partir do cimo da montanha rumo a meu ser-aí, de modo a me situar” (IDEM).
A primeira condição é, em síntese, que:
“devo ser aquilo que 'tenho-de-ser' pelo próprio fato de escapar a isso. Para que eu me defina pelo
meu lugar, é preciso, antes de tudo, que eu escape de mim mesmo de modo a posicionar as coorde -
nadas a partir das quais irei definir-me mais estreitamente como centro do mundo” (IDEM).
Já a segunda condição é: “Escapar, por negação interna, aos 'istos'-no-meio-do-
mundo que não sou e pelos quais anuncio a mim mesmo aquilo que sou ” (IDEM). Noutras
palavras, se era necessário escapar àquilo que sou, é também necessário transcender aquilo
que não sou. Essa operação se dá na medida em que a liberdade projeta nos “istos” do
mundo, ou seja, nas coisas com que se relaciona necessariamente um fim; estas são ilumi-
nadas pelo projeto inicial. E assim articulam-se as ideias de projeto e lugar:
“esta determinação da localização, que pressupõe a transcendência toda, só pode ocorrer em relação a
um fim. É à luz do fim que meu lugar adquire significação. Porque jamais posso ser simplesmente aí:
meu lugar é captado, precisamente, como exílio, ou ao oposto como esse lugar natural e tranquili -
zador e favorito (…) querência (…); é em relação ao que projeto fazer – em relação ao mundo em totali-
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dade, e, portanto, a todo meu ser-no-mundo – que meu lugar aparece-me como auxiliar ou um impe-
dimento. Estar no lugar é, antes de tudo, estar longe de... ou perto de... – ou seja, o lugar está dotado
de sentido em relação a certo ser ainda não existente que se quer alcançar. É a acessibilidade ou a
inacessibilidade deste fim que define meu lugar. Portanto, é à luz do não-ser e do futuro que minha
posição pode ser atualmente compreendida” (IDEM, p. 606).
Retomando então a questão: será o meu lugar um obstáculo à minha liberdade? Será
que ela pode ser compreendido como algo que determina minha ações? Certamente não se
pode pensar que minhas ações se fazer à revelia, ou em desconexão com meu lugar. Mas
como então compreender a relação da liberdade e a facticidade do meu lugar? Em primeiro
lugar é preciso levar em conta que: “Essa escolha de meu fim penetra até mesmo nas rela-
ções puramente espaciais (alto, baixo, direita e esquerda etc.) de modo a conferir-lhes uma
significação existencial” (IDEM, p, 607), ou seja, que meu projeto como que abraça inclusive
minhas relações espaciais.
“Assim, devemos dizer que a facticidade do meu lugar só me é revelada na e pela livre escolha que faço
de meu fim. A liberdade é indispensável à descoberta de minha facticidade. Conheço esta facticidade a
partir de todos os pontos do futuro que projeto, é com seus caracteres de impotência, contingência,
fragilidade e absurdidade que ela aparece-me a partir do futuro (…). Mas, reciprocamente, a factici-
dade é a única realidade que a liberdade pode descobrir, a única que pode nadificar pelo posiciona -
mento de um fim. Por que, se o fim pode iluminar a situação, é pelo fato de ser constituído como nadi -
ficação projetada desta situação. O lugar aparece a partir das mudanças que projeto. Mas
mudar implica justamente alguma coisa a mudar, algo que é precisamente o meu
lugar. Assim, a liberdade é a apreensão da minha facticidade ” (IDEM, grifo meu).
O que se está reiterando, mas agora levando em consideração minha relação com
meu lugar, é que:
“é a própria liberdade que cria os obstáculos de que padecemos. É ela mesmo que, posicionando seu
fim – e escolhendo-o como inacessível ou dificilmente acessível –, faz aparecer nossa localização como
resistência insuperável ou dificilmente superável aos nossos projetos. É ela que (…) constitui sua
próprias restrição (…). Mas, precisamente, não poderia haver liberdade a não ser restringida, posto
que a liberdade é escolha. Toda escolha, como veremos, pressupõe eliminação e seleção; toda escolha é
escolha de finitude” p. 608.
Em síntese o que Sartre defende é que meu lugar não pode ser considerado como
sendo algo que coarcta a liberdade. Em primeiro lugar porque a consciência tem “poder de
nadificação e de escolha” (IDEM, p. 609), mas sobretudo porque não pode a liberdade, em
hipótese alguma, ser sequer cogitada sem isso que lhe oferece resistência, sem estar vincu-
lada ao que lhe é adverso; sempre se está comprometido:
“Assim, não importa o momento que se considere, irei captar-me comprometido no mundo, em meu
lugar contingente. Mas é precisamente este comprometimento que confere seu sentido a meu lugar
contingente e que é minha liberdade. Decerto, ao nascer, tomo um lugar, mas sou responsável pelo
lugar que tomo” (IDEM, p. 609).
Antes, contudo, de se analisar como se dá a relação da liberdade com o passado, é
interessante ver como Sartre, em sua peça As Moscas23, apresenta o personagem central,

23 Para que se tenha em mente uma breve apresentação da peça: “As Moscas (Les Mouches , 1943) representa
o início da carreira de Jean-Paul Sartre como dramaturgo e o de seu "teatro de situações". Do mesmo ano
de O Ser e o Nada – obra-prima do existencialismo sartriano-, a peça é uma versão existencialista da lenda
grega de Orestes. Este é o filho do rei Agamêmnon – comandante das tropas gregas na Guerra de Tróia –
45
Orestes, a partir da sua noção de situação, e sua relação com esta estrutura da situação, o
lugar, é central no desenvolvimento da peça.
Um dos eixos centrais da peça, em seu enrendo, é a questão da relação de Orestes
com seu lugar. Orestes, filho de Clitemnestra e Agamêmnon, foi como que expatriado logo
após Egisto e sua mãe terem tomado o trono de Agamêmnon após o regresso da guerra de
Tróia: Orestes foi adotado por uma família rica de outra cidade quando os executores da
ordem de Egisto, piedosos de assassinar uma criança, abandona-la em uma floresta. No
momento do começo da peça, ele encontra-se, com seu tutor, numa viagem em que adentra
sua terra natal. Nesse sentido, a apropriação que Orestes acaba por final fazendo de sua
cidade envolve momentos em que paulatinamente vai podendo se defrontar com seu lugar
de nascimento.
Num primeiro momento, logo que adentra as portas da cidade e é informado da
desgraça que se abate em Argos: a maldição dos deuses devido ao assassinato do rei, Orestes
mostra-se indignado com que os deuses não tenham vingando Agamêmnon com a morte de
Egisto, porém declara-se, em ultima instância indiferente: “Seria preciso... Ah! Sei lá o que
seria preciso, não me importo; não sou daqui” (SARTRE, 1943b, p. 11), ou seja, como vivi
minha vida até agora como se não fosse nascido aqui eu não tenho relação com o que acon -
tece aqui, não estou comprometido com a história deste lugar.
Logo em seguida, na segunda cena, Orestes acha o castelo de Egisto, em que morou
com com família biológica, que primeiramente lhe deu um lugar, mas não reconhece em
nada este lugar como seu:
“Eis meu palácio. Foi aqui que meu pai nasceu. Foi aqui que uma puta e seu cafetão o assassinaram. Eu
também nasci aqui. Tinha uns três anos quando os soldados de Egisto me levaram. Nós certamente
passamos por esta porta; um deles me tinha em seus braços, eu tinha os olhinhos esbugalhados e, sem
dúvida, eu chorava... Ah! Nenhuma lembrança. Vejo uma edificação muda, impotente na sua soleni-
dade provincial. Eu a vejo pela primeira vez.” (IDEM, p. 16).
Orestes, no entanto, sofre de um sentimento de estranhamento, de um vazio, de não
reconhecimento de si mesmo, pois ressente-se da falta de sua história e de seu lugar. Não
reconhece a sua família adotiva como sua, mas ao mesmo tempo, também não vê a sua
família biológica com sendo o seu lugar primeiro, antes, pelo contrário, sente-se completa-

->45 que, com a irmã Electra, se vinga dos assassinos de seu pai, Egisto e a rainha Clitemnestra, esposa de
Agamêmnon e mãe deles. O episódio foi revisitado pelos três grandes poetas da tragédia clássica, Ésquilo,
Sófocles e Eurípides. Em As Moscas Sartre transforma a vingança de Orestes em metáfora para os temas da
liberdade e da má - fé e para a crítica à idéia tradicional de "destino" como em voga, no governo autoritário
de Vichy, durante a Ocupação nazista da França (1940-44). Esse governo, apoiado pela hierarquia da Igreja
Católica francesa, difundia uma ideologia "religiosa" de culpa e resignação diante da derrota militar frente
a Hitler. A peça de Sartre pode, assim, ser lida como apologia ao movimento da Resistência antifascista dos
franceses. ” (SOARES, 2005, p. 5).
46
mente estrangeiro em sua própria terra (“vós que tanto lamentáveis ser um estrangeiro em
vosso próprio país” (IDEM, p. 7)):
“Há homens que nascem engajados: não tem escolha, forma lançados num caminho, ao fim do
caminho há um ato que os espera, o ato deles ; eles vão, e os pés deles, nus, apertam fortemente a
terra e arranham-se nas pedras. Isto te parece vulgar a alegria de ter de ir a algum lugar? E há outros,
silenciosos, que sentem no fundo do coração o peso de imagens turvas e terrestres; a vida deles
mudou porque, num certo dia de sua infância, aos cinco canos, aos sete anos... Está bem não são
homens superiores. Eu já sabia, aos sete anos, que era exilado: os odores e os sons, o barulho da
chuva nos telhados, os tremores da luz, eu os deixava deslizar ao longo do corpo e cair ao redor de
mim eu já sabia que eles pertenciam aos outros e que eu não poderia jamais torná-los minhas
lembranças. Pois lembranças são uma gordurosa nutrição para os que possuem as casas, os animais, os
criados e os campos. Mas eu... Eu sou livre, graças a Deus. Ah! Como sou livre. E que
soberba ausência é minha alma ” (IDEM, p. 17, itálicos do autor e negritos meus)
Aqui já se explicita que todas as estruturas da situação não podem ser pensadas sepa-
radamente, no presente caso: o lugar não se manifesta separado da história que este lugar
tem para mim e que não se perde quando exilado ou quando se sobreviveu a uma tentativa
de assassinato. Conquanto a estrutura Meu passado ainda não tenha sido analisada, já se
pode antever a imbricação entre Meu passado e Meu lugar. Todas essas coisas que compõe o
meu lugar, o “lugar geográfico” e “a ordem dos objetos que me aparecem”: a casa, o portão,
a chuva na casa etc., estão absolutamente imbricados com a memória que se tem dessas
coisas e esta é iluminada pelo projeto, pelas ações pelo “ato”.
Outrossim, essa fala de Orestes tem importância num sentido diverso. Em seu final há
uma auto-proclamação como alguém livre, levando isso em conta, esse trecho serve para
explicitar o que seja o sentido do senso comum – que se discutiu acima – de liberdade, como
essa “soberba ausência”, como uma ilusão de total independência com relação às coisas, ao
mundo, à sua história. Orestes estaria então num momento em que compreende liberdade
como ausência de de compromisso. Contudo, liberdade não é ausência de comprometimento
com as coisas: a peça desenvolver-se-á no sentido de Orestes aperceber-se dessa
compreensão leviana de liberdade, das consequências dessa ingenuidade e da necessidade
de responsabilizar-se por suas escolhas incluindo uma visada sobre seu passado. Aliás, o
central para Sartre é que essa suposta ausência de comprometimento é impossível, mesmo
quando se quer hipostasiar um desprendimento, uma total desvinculação, essa mesma
posição não deixaria de ser, por isso mesmo, uma posição em relação às coisas, uma posição
de má-fé, na medida em que não passa de uma tentativa de escamotear essa abstenção de
posicionamento diante do mundo.
Tentou-se mostrar até agora como Sartre apresenta a relação da liberdade com a
facticidade, num primeiro momento enfocando a relação com o lugar e, por meio da peça,
apresentou-se uma transição entre a relação do lugar com a história, que será analisada
mais detidamente agora seguido a argumentação de Sartre.
47
3º – Meu passado: temporalidade, história e significação

No que concerne ao passado, novamente, a estratégia de Sartre é tentar mostrar a


maneira com que a liberdade se relaciona ao passado, em que sentido o passado pode ser
considerado um coeficiente de adversidade; trata-se, em suma, da reposição da questão:
pode esse aspecto da existência ser considerado fenomenologicamente um limite para a
liberdade?
“O passado não determina nossos atos tal como o fenômeno anterior determina o fenômeno conse -
quente; sem dúvida mostramos que o passado carece de força para constituir o presente e prefigurar o
porvir. (…) A liberdade tem-de-ser seu próprio passado, e esse passado é irremediável, parece inclu -
sive, ao primeiro contato, que ela não pode modificá-lo de forma alguma: o passado que é o que é, fora
de alcance; é aquilo que nos infesta à distância, sem que possamos sequer virar o rosto para obser -
vá-lo. Se não determina nossas ações, ao menos o passado é de tal ordem que não podemos tomar uma
nova decisão a não ser a partir dele” (SARTRE, 1943, p. 609-10).
Dessa forma, num certo sentido, o passado, ainda que não determine minha liber-
dade, não pode também ser, por assim dizer, esquecido, ou seja, não se vive sem uma relação
específica e singular com o passado, a liberdade não pode pura e simplesmente desenre-
dar-se do passado. Assim, “O passado é presente e funde-se insensivelmente com o presente
(…). Tudo que sou, tenho-de-sê-lo à maneira do tendo-sido” (IDEM, p. 610).
Isso tudo redunda novamente num esquema de paradoxo – tal como o paradoxo da
liberdade e o paradoxo do lugar –, o que se pode chamar do paradoxo da temporalidade
(do passado, pode-se dizer que seja da temporalidade, pois nele se articulam os três tempos):
“Não posso me conceber sem passado, ou melhor, sem passado eu sequer poderia pensar seja o que for
a meu respeito, posto que penso acerca daquilo que sou, eu sou no passado; mas, por outro lado, sou o
ser pelo qual o passado vem a si mesmo e ao mundo” (IDEM)
Este ser pelo qual passado pode se manifestar é um ser que projeta, que se lança em
direção ao futuro. A argumentação sartriana vai justamente no sentido de apontar o projeto
livremente constituído numa escolha como o ato que une os três tempos. E, na tentativa de
expor essa íntima vinculação, vale a pena seguir as palavras do autor numa citação mais
longa que expõe o passado como um Em-si, um dado bruto, que pode ser modificado, pelo
Para-si, pelo seu projeto, ou incluir uma determinada visada sobre o futuro:
“A liberdade, sendo escolha, é mudança. Defini-se pelo fim que projeta, ou seja, pelo futuro
que ela tem-de-ser. Mas, precisamente, porque o futuro é o-estado-que-ainda-não-é daquilo que é, só
pode ser concebido em estreita conexão com aquilo que é. E não é possível que aquilo que é ilumine
aquilo que ainda não é: pois aquilo que é é falta e, consequentemente, só pode ser conhecido
enquanto tal a partir daquilo que lhe falta. É o fim que ilumina aquilo que é. Mas de modo a ir buscar o
fim por-vir para anunciar a si, através dele, aquilo que o que é, é necessário estar já para além daquilo
que é, em uma tomada de distância nadificadora que faz surgir claramente aquilo que é, em estado de
sistema isolado. Aquilo que é, portanto, só adquire sentido quando transcendido rumo
ao porvir. Aquilo que é, portanto é o passado (…). O caráter irremediável chega ao

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passado a partir da minha própria escolha do futuro: se o passado é aquilo a partir
do qual concebo e projeto um novo estado de coisas no futuro, então esse passado,
em si mesmo, é aquilo que é abandonado em seu lugar, aquilo que, por conseguinte,
acha-se fora de toda perspectiva de mudança ; assim, para que o futuro seja realizável, é
preciso que o passado seja irremediável” (IDEM, p. 611, grifo meu).
Bem, mas se o passado não determina o futuro como sendo regido por uma relação
causal, do tipo: tendo ocorrido o evento A, necessariamente deverão ocorrer os eventos B e
C; se, por outro lado, também não se pode viver sem passado, é por cima dele que se cons-
truirá qualquer sentido. E o que une essas duas faces, que, num olhar incauto, manifes-
tam-se como antitéticas, como paradoxais, é um projeto que se depreende das escolhas de
uma consciência.
Dessa forma, adentra-se o campo da significação – campo tão famigerado na
clínica, pois trabalha-se, em geral, na perspectiva de que o passado determina o futuro,
redundando num círculo vicioso de difícil escapatória e grande força de repetição –, pois
tem-se agora a relação entre um fato e a consciência. Para argumentar no sentido contrário
à causalidade estabelecida pelo passado, Sartre apresenta o exemplo da coqueluche,
uma doença infantil, um fato bruto incontestável que ao ser vivido traz ao seu redor algo
mais fluido, uma significação:
“Há no passado um fato imutável: tive coqueluche aos cinco anos de idade; e há um
elemento variável por excelência: a significação do fato bruto com relação à totali -
dade de meu ser . Porém, por outro lado, uma vez que a significação do fato passado penetra nesse
passado de ponta a ponta (não posso 'recordar' minha coqueluche de infância à parte de um projeto
preciso que define sua significação), é impossível para mim, em última instância, distinguir a imutável
existência em bruto do sentido que ela comporta (...). Em si mesmo, o fato bruto é; mas à parte dos
testemunhos do outro, de sua data, do nome técnico da enfermidade – conjunto de significações que
dependem de meus projetos –, que pode ser esse fato em bruto? Assim, essa existência do em bruto,
embora necessariamente existente e imutável, representa como que o objetivo ideal e fora de alcance
de uma explicação sistemática de todas as significações inclusas em uma recordação. Sem dúvida, há
uma matéria 'pura' da memória (...), mas quando ela se manifesta, é sempre no e por um projeto que
comporta a aparição desta matéria em sua pureza” (IDEM, p. 612, grifo meu).
O ponto fundamental a ser ressaltado é o caráter de situação da relação entre um
dado bruto e uma significação, isto é, trata-se novamente da ideia de uma relação entre uma
consciência intencional e algo que oferece um coeficiente de adversidade. Portanto, tal
como já se discutiu, num sentido mais abstrato, acerca da noção de situação, o que se quer
dizer é que, em sendo dialética a relação estabelecida entre os termos – o dado e a signifi-
cação, ou a liberdade e a facticidade –, não há possibilidade de manifestação de nenhum
deles isoladamente: fenomenologicamente eles aparecem à consciência simultaneamente.
Disso decorre que qualquer tentativa de conhecer o dado bruto, puro seria fadada ao
fracasso, ou nos termos de Sartre, seria uma conduta de má-fé, isto é, ter tido coqueluche na
tenra infância só poderá ser significado como uma desgraça, como uma benesse, ou seja lá
qual outra significação esse fato adquirir, ao ser iluminado pelo projeto – necessariamente

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um movimento da consciência que parte do presente abocanha o futuro e o rebate para o
passado.
Há que se fazer, entretanto, uma ressalva e de grande importância: o fato da signifi-
cação do meu passado depender do meu projeto presente, não abre as portas de uma liber-
dade ilimitada, em certo sentido, o passado não deixa de ser um obstáculo:
“não significa, de forma alguma que eu possa variar conforme os meus caprichos, o sentido de meus
atos anteriores, mas sim que, muito pelo contrário, o projeto fundamental que sou decide absoluta -
mente acerca da significação que possa ter para mim e para os outros o passado que tenho-de-ser.
Com efeito, só eu posso decidir a cada momento sobre o valor do passado: não é
discutindo, deliberando e apreciando em cada caso a importância de tal ou qual
acontecimento anterior, mas sim projetando-me rumo aos meus objetivos, que
preservo o passado comigo e decido por meio da ação qual seu sentido ” (IDEM, p. 612,
grifo meu).
O Para-si é livre porque pode mudar seu projeto fundamental. É precisamente este
que, por assim dizer, decide a significação das coisas, pois se altera apenas por meio de
ações. Como as decisões só existem com base nas ações, são as consequências delas que
perfazem o projeto, não se trata aqui de uma possibilidade de um projeto deliberado de uma
consciência. Em seguida, Sartre apresenta o exemplo de uma crise mística 24 na adoles-
cência e da estada numa prisão. Ambas as significações desses fatos serão apreendidas pelas
ações que, da articulação dialética entre essas experiências e a liberdade, advierem.
Há também um outro exemplo do casamento , em que Sartre tenta explicitar com
outras nuances a ideia de que: “a premência do passado vem do futuro” (IDEM, p. 613). O
enfoque agora é mostrar que:
“os compromissos que assumi pensam em mim (…) Mas isso ocorre precisamente porque meus
projetos são de tal ordem que reassumo o vínculo conjugal, ou seja, precisamente porque não projeto
a recusa deste vínculo. (...) Com a modificação do projeto fundamental todos “meus compromissos
anteriores perderão toda sua premência” (IDEM)
A partir desse exemplo, Sartre faz uma sutil distinção entre duas atitudes com
relação à negação do meu passado, a alteração do meu projeto: há o “passado sempre vivo e
sempre confirmado” (IDEM, p. 614) que sempre reatualizo e também o “passado ambíguo
que deixou de me agradar e mantenho de soslaio” p. 614, um passado morto e vivo. Em
síntese:
“Passado vivo, passado semimorto, sobrevivências, ambiguidades, antinomias: o
conjunto dessas camadas de preteridade é organizado pela unidade de meu projeto. É
por esse projeto que se instala o sistema complexo de remissões que faz com que um fragmento qual-
quer de meu passado penetre em uma organização hierarquizada e polivalente, na qual, como na obra
de arte, cada estrutura parcial indica, de diversas maneiras, várias outras estruturas parciais e a estru-
tura total” (IDEM, p. 614, grifo meu).

24 Este exemplo será retomado quando se tratar da estrutura: Minha morte (p. 82). Disso se depreende
novamente a imbricação existente entre as estrutura da situação.
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Sartre, além disso, apresenta também um outro nível da relação com o passado, um
nível social: amplia-se a consideração da história do indivíduo para a nação, para uma
totalidade, uma sociedade:
“Esta decisão acerca do valor [da significação], da ordem e da natureza de nosso passado é simples-
mente a escolha histórica em geral. Se as sociedades humanas são históricas, isso não
decorre simplesmente do fato de que têm um passado, mas sim do fato de que elas
reassumem o passado a título de monumento ” (IDEM, p. 614, grifo meu).
E, para desenvolver esse ponto importante da conexão entre o meu passado e o
passado da sociedade mostrar-se-ão três exemplos: dois d'O Ser e o Nada, sobre a relação
entre os Estados Unidos e a França no que diz respeito à entrada na I Guerra Mundial;
sobre a significação que a tomada da Bastilha adquire e outro d'As Moscas, em que
Orestes, como já se apresentou, relacionava seu passado e seu lugar unificando-os por um
ato.
No primeiro, Sartre apresenta a entrada dos EUA na I Guerra como, um fato que, num
primeiro momento, pode apenas parecer como tendo uma justificativa utilitária, pois dever-
se-ia apenas ao fato de que poderia ser um empreendimento lucrativo. Quando, no entanto,
relembram-se as relações de ajuda entre esses países (provavelmente Sartre tem em vista a
ajuda francesa aos estadunidenses na sua guerra de independência) é conferido um novo
sentido para a entrada na guerra como uma dívida de honra de um país para com o outro.
Este exemplo tem a pretensão de ampliar o que era dito no âmbito individual, em que uma
pessoal conferia um sentido para um evento em sua vida, para também uma compreensão
histórica. É preciso deixar claro: não está em questão se esta justificativa é apenas um
pretexto político para os empreendimentos econômicos, mas sim que há um projeto político
que aponta para a configuração desse evento histórico nesses termos, ou seja, ainda que seja
apenas um pretexto ele foi criado, está inserido em um pretexto político.
O exemplo da queda da Bastilha busca salientar que essa significação é sempre cons-
tituía a posteriori, não está colada ao evento em si: “o sentido do passado social está 'perpe-
tuamente em suspenso'” (IDEM, p. 616), isto é: a queda da Bastilha poderia ser vista como
oriunda de um motim disparatado, ou a primeira aparição da força popular que irá executar
a marcha sobre Versalhes nas Jornadas de Outubro. Nesse sentido, há também na história a
proeminência do futuro sobre o passado:
“O período atual, portanto, determina se um período definido do passado está em continuidade como
presente ou é um fragmento descontínuo do qual emergimos e que se distancia. Assim, seria neces-
sário uma história humana finalizada para que qualquer acontecimento, como por exemplo, a tomada
da Bastilha, pudesse receber um sentido definitivo” (IDEM, p. 615).
Retomando, como terceiro exemplo, a peça: o desenvolvimento do enredo será em
direção a uma apropriação por parte de Orestes de seu lugar e de sua história, unificados por

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um projeto que se concretiza em um ato. Conforme o personagem insinua numa fala ao seu
preceptor antes mesmo de reencontrar sua irmã, que lhe guiará no crime de assassinato da
mãe para vingar o pai:
“Se houvesse um ato, sabes, um ato que me desse o direito de cidadania entre eles; seu eu pudesse me
apossar, nem que fosse por um crime, de suas memórias, de seu terror, e de suas esperanças para
preencher o vazio de meu coração, ainda que eu tivesse de matar minha própria mãe...” (IDEM, 1943b
p. 20)
Pode-se, dessa forma, também considerar que há um ponto de tangência entre a
história individual e a história social: “exatamente como as sociedades, a pessoa humana
tem um passado monumental” (SARTRE, 1943, p.616). O que Orestes busca é justa -
mente pertencer a uma história que não seja sua própria história , por assim
dizer, biográfica, mas antes uma história que transcende a sua vida enquanto indivíduo,
integra sua família, seus antepassados, sua língua, sua cidade – seu lugar –, sua cultura, sua
sociedade etc. Há, portanto, algo na condição humana que clama pela vinculação, uma ânsia
de pertencimento, ou melhor, a ausência de laços impõe ao indivíduo o esgarçamento de sua
identidade; há então um paralelo entre o tecido social e a tessitura da identidade, ou seja a
construção da subjetividade: esta não se constitui sem aquela – talvez seja esse um ponto
central que se pode destacar na pela lendo-a pelo prisma da noção de situação.
Argumentar que o passado está em suspenso, não importa em que nível – individual
ou social –, não é, de maneira alguma, o mesmo que dizer que o passado apareça de uma
forma vaga ou indiscriminada, e que se poderia fazer o que bem entender com ele. Pelo
contrário, o passado é “captado pelo Para-si, a cada momento, como rigorosamente deter-
minado” (IDEM, p. 616). As possibilidade de reavaliação do passado, de significação do
passado tem seus limites, o passado tem também sua face de resistência, de adversidade.
Nesse sentido, retoma-se com outras nuances o paradoxo da temporalidade num excerto,
que conquanto longo, é tão expressivo e sintético que vale a pena seguir em sua totalidade:
“O caráter suspensório do passado, com efeito, não é de forma alguma miraculoso [não permite à
liberdade realizar qualquer transformação]: apenas expressa, ao nível da petrificação e do Em-si, o
aspecto projetivo e 'à espera' que a realidade humana tinha antes de voltar-se para o passado (…). Ao
petrificar-se, ela se condena a esperar perpetuamente por esta homologação que esperava receber de
uma liberdade futura. Assim, o passado está indefinidamente e suspendo, porque a realidade-humana
'era' e 'será' perpetuamente à espera. E espera e suspenso nada mais fazem senão afirmar
mais nitidamente a liberdade como constituinte originário. Dizer que o passado do Para-si
está suspenso, dizer que seu presente é uma espera, dizer que seu futuro é um livre projeto, ou que o
Para-si nada pode ser sem ter-de-sê-lo ou é uma totalidade-destotalizada, significa a mesma coisa.
Mas, precisamente, isso não encerra qualquer indeterminação em meu passado, tal como ele a mim se
revela presentemente: quer apenas colocar em questão os direitos que tem de ser definitiva minha
atual descoberta de meu passado. Mas, assim como meu presente é espera de uma confir -
mação ou de uma invalidação que nada permite prever, também o passado, envolvido
nesta espera, mostra-se preciso, na medida me que essa espera é precisa. Mas seu
sentido, ainda que rigorosamente individualizado, é totalmente dependente desta
espera, a qual, por sua vez, se coloca, na dependência de um nada absoluto, ou seja,

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de um livre projeto que ainda não é. Portanto, meu passado é uma proposição
concreta e precisa que, enquanto total, espera ratificação ”. (IDEM, p. 616-7, grifo meu).
Sartre, em seguida, buscou expor acerca dessa estrutura da situação é que há duas
formas do Para-si se se relacionar com seu passado em que se pode vislumbrar uma atitude
de má-fé: 1ª) escolher-se sem solidariedade consigo mesmo, mas sem abolir seu passado,
afirmando sua total liberdade. Uma maneira, de certa forma, que se funda numa ilusão, pois
mascara uma relação que está sempre posta como não existente. 2ª) Escolher-se, ao rejeitar
o tempo, em relação de íntima solidariedade com seu passado, como sendo seu próprio
passado, em busca de um terreno sólido e tranquilo; entendendo qualquer outra conduta
como uma fuga de si mesmo, escolhem, portanto, rejeitar a rejeição, e o passado, em conse -
quência, exige-lhes uma dura fidelidade. Recorrerão com frequência a toda má-fé possível
para reiterar-se, para reafirma seu passado, buscando preservar a fé que depositaram
naquilo que são, que constitui uma estrutura essencial do seu projeto.
Para concluir: “tal como a localização, o passado se integra à situação quando o Para-
si, por sua escolha do futuro, confere à sua facticidade passada um valor, uma ordem hierár-
quica e uma premência a partir dos quais essas facticidade motiva seus atos e suas
condutas” (IDEM, p. 619).

4º – Meus arredores: coisas-utensílios e responsabilidade

Sartre começa a analisar esta estrutura da situação trabalhando com o significado do


termo: meus arredores não é lugar que ocupo,
“são as coisas-utensílios que me circundam, com seus coeficientes próprios de adversidade e de utili -
dade. Decerto, ao ocupar meu lugar, funfamento a descoberta dos arredores (…). Mas, reciprocamente,
os arredores podem mudar ou serem mudados pelos outros sem que eu nada tenha a ver com essa
mudança ” (IDEM, p. 619).
Ao ocupar meu lugar, sem dúvida, relaciono-me com alguns arredores, mas esses
podem se modificar independente do meu lugar. É preciso considerar que entre os lugares e
os arredores não há reciprocidade, apenas aqueles fundam estes: uma modificação dos arre-
dores não configura uma mudança de lugar, mas uma modificação do lugar altera os arre-
dores. Isso quer dizer que, “de modo geral, o coeficiente de adversidade e de utensilidade
dos complexos não depende unicamente de meu lugar, mas [também] da potencialidade
própria dos utensílios” (IDEM, p. 620). Para ilustrar essa configuração da estrutura da situ-
ação que circunscrever meus arredores, Sartre nos fornece o exemplo do percurso de
bicicleta: com a pretensão percorrer certa distância de bicicleta com velocidade, um furar

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de pneu, ventos e Sol forte são considerados os arredores. Arredores que são apenas deste
ou daquele jeito de acordo com meu projeto. Em suma, é o que em alemão se chama de
Umwelt, ou seja, mundo circundante, “a organização sintética desses perpétuos 'acidentes'”
(IDEM, p. 620).
Em seguida, tal como na analise das outras estruturas da situação, Sartre apresenta
uma antinomia: o paradoxo dos arredores:
“Se é verdade que cada objeto de meus arredores se faz conhecido em uma situação já revelada e que a
soma desses objetos não pode por si só constituir uma situação, e se é verdade que cada uten -
sílio se destaca sobre fundo de situação no mundo, nem por isso é menos certo o fato
de que a transformação brusca ou a aparição brusca de um utensílio pode contribuir
para uma radical mudança da situação ” (IDEM, p. 620, grifo meu).
Bem, mas uma vez que à liberdade podem ocorrer imprevistos que malogrem o
projeto, não seria lícito dizer que a liberdade estaria limitada pelos meus arredores, pelos
utensílios que me cercam? Reconhecer a impotência diante de meu arredor que, com seu
coeficiente de adversidade, emperra meus projetos é admitir que não haja liberdade?
Não, porque, como já se argumentou na introdução, a liberdade é de escolha, não é
liberdade de obtenção. Isso significaria que a mudança dos arredores implica uma mudança
no projeto? Não por dois motivos: 1º ) não se altera o “projeto principal, o qual, ao contrário,
serve para medir a importância dos [projetos secundários]. Com efeito, se a mudanças são
captadas como motivos, para abandonar tal ou qual projeto, só pode ser à luz de um projeto
mais fundamental” (IDEM, p. 621). 2º ) O aparecimento de um objeto também não
“provoca a renúncia de um projeto, ainda que parcial. É preciso que este objeto, com efeito, seja
apreendido como uma falta na situação original; é preciso, pois, que o dado de sua aparição ou desapa-
rição seja nadificado, que eu tome distância 'com relação a ele' e, consequentemente, que eu tome
decisão a meu próprio respeito em seu presença” (IDEM, p. 621).
Para ilustrar que os utensílios, ainda que tenham um coeficiente de adversidade não
possam, por isso, ser considerados como restritores à minha liberdade, Sartre apresenta um
exemplo do carrasco com o utensílio da execução, o exemplo dos torqueses:
“Sequer os torqueses do carrasco nos dispensam de sermos livres. Não significa que seja sempre
possível evitar a dificuldade, reparar o dano, mas simplesmente que a própria impossibilidade de
prosseguir em certa direção deve ser livremente constituída; tal impossibilidade vem às coisas por
nossa livre renúncia, em vez de nossa renúncia ser provocada pela impossibilidade da conduta a
cumprir” p. 621-2.
Em síntese: se posso agir é preciso que o faça sobre algo independente
de mim, da minha existência e da minha ação. É a partir de algo que me é exterior
que minha liberdade atua, ela não existe sem ser intencional ou situada, quer dizer não
existe pairando no vácuo, sem relacionar-se com as coisas-utensílios:
“Minha opção pode me revelar aquela existência, mas não a condiciona. Ser livre é ser-livre-para-
mudar. A liberdade, portanto, encerra a existência de arredores a modificar (…). Por certo, é a liber-
dade que os revela como obstáculos, mas, por sua livre escolha, não pode fazer mais do que inter-
pretar o sentido de seu ser” (IDEM, p. 622).

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Sartre retoma aquele exemplo da bicicleta e dos possíveis acidentes, como um furar
de pneus, para agora acrescentar que, em certa medida esses imprevistos – que os arredores
podem significar em vista de um projeto – já são, na realidade, previstos. Em certo sentido,
as adversidades que podem atrasar um percurso de bicicleta, um pneu furado, o vento forte,
o Sol, já constam no projeto. Por mais imprevisto que algo seja, já está incluído no projeto:
“em meu projeto fora criada certa margem de indeterminação 'para o imprevisível' (…) e isso se dá (…)
pela própria natureza de meu projeto. [Isso porque,] todo projeto da liberdade é projeto em
aberto, e não projeto fechado. Ainda que inteiramente individualizado, contém em si a possibili-
dade de modificações posteriores” (IDEM, p. 623, grifo meu).
Numa certa perspectiva, não há surpresa no mundo, exceto a experiência da contin-
gência absoluta, da derrelição, do absurdo desta vida. Na medida em que sempre, desde o
início, estive mergulhado na situação, ou seja, em relação com meu lugar, com meu passado
e com meus arredores – os utensílios do mundo –, não há uma relação primordial de desco-
nhecimento com essas faces da facticidade. O que extrapola as possibilidade de conheci-
mento, de previsão, é
“o tema original do surpreendente não é o fato de que tal ou qual coisa em particular exista nos
limites do mundo, mas sobretudo o fato de que haja um mundo em geral, ou seja, de que eu esteja
arremessado no meio de uma totalidade de existente essencialmente indiferentes a mim. Isso porque,
escolhendo um fim, escolho ter relações com esses existentes e o fato de esses existentes tenham rela-
ções entre si: escolho o fato entrarem em combinação de modo a anunciar a mim aquilo que sou. [Em
suma,] sem dúvida, a adversidade vem às coisas pela liberdade, mas isso na medida em que a liberdade
ilumina sua própria facticidade como 'ser-no-meio-de-um-Em-si-de-indiferença'” (IDEM, p. 623-4).
Partindo dessa relação primeira entre a liberdade e esse estranhamento com a exis-
tência das coisa no mundo, o que se pode chamar de derrelição, ou experiência da contin-
gência absoluta, do fato de se estar atirando no meio do mundo, das coisas, das pessoas, mas
sem nenhuma necessidade para que assim fosse; é justamente considerando esse “exílio no
meio da indiferença” (IDEM, p. 624), ou a experiência de Orestes de sentir-se vazio enquanto
hipostasiava sua vinculação com sua terra natal. É tendo em vista essa relação da liberdade
com a contingência (que Sartre chamará de “estrutura primitiva da situação ” (IDEM,
624)), que podemos entender as estruturas, por assim dizer, mais desenvolvidas da situação.
Nesse sentido, relação da liberdade com a contingência, em certo sentido, funda as outras
possibilidades de relação, pois é por meio dela que se estabelece um projeto, é no movi -
mento de tentar preencher essa indeterminação, essa falta, essa contingência absoluta que
se configura um projeto. Ao se projetar – lançar-se em direção ao futuro – para escolher um
fim a consciência abarca também uma específica gama de relações com as coisas do mundo e
não se pode estar vivo sem realizar esse tipo de escolha primordial.
“Assim, a adversidade das coisas e suas potencialidades são iluminadas pelo fim escolhido. Mas só há
fim para um Para-si que se assume como sendo abandonado aí no meio da indiferença. Por esta
assunção, o Para-si nada traz de novo a essa derrelição contingente e em bruto, salvo uma signifi-

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cação; faz com que haja doravante uma derrelição, faz com que essa derrelição seja descoberta como
situação” (IDEM, p. 625).
Essa formulação final – que já ocorreu noutros momentos –, de que a única coisa que
a liberdade faz é agregar uma significação às cosias, como que tivesse pendurando uma
etiqueta, não é, contudo, precisa. Em certo sentido, de fato, a liberdade circunscreve-se a
esse âmbito de etiquetadora, porém, é preciso considerar que não se trata da possibilidade
de se associar uma significação a um dato bruto. O que se pretende é argumentar que, feno-
menologicamente, as coisas se manifestam já previamente vinculadas, as significações não
são então acrescentadas às coisas, mas aparecem nas coisas no momento em que eles se
mostram. Não há aqui um indivíduo que deliberadamente escolhe tal ou qual significação,
pelo contrário elas surgem concomitantemente às escolhas o Para-si e se expressam nas
suas ações, mas isso não significa dizer que o indivíduo escolhe (no sentido de deliberar
conscientemente da repercussão) as consequências de suas ações em sua totalidade, pelo
contrário elas guardam sempre uma face oculta. No que concerne às significações, o que se
tentou mostrar no capítulo anterior, em que se tratou da noção husserliana de intencionali-
dade, ocorre também aqui: que não há cisão entre sujeito e objeto: as coisas já se manifestam
(embora não em sua totalidade) tal como são.
As coisas existem em-si independentemente de nós, mas nós só temos acesso a elas
por meio de uma relação, portanto, estamos alijados do contado com os Em-sis em bruto,
eles somente vem a nós por meio de uma relação, noutros termos, por um ato de nadifi-
cação:
“embora existamos cercados por presenças (esse corpo, este tinteiro, aquela mesa etc.), tais presenças
são inapreensíveis enquanto tais, pois só oferecem seja o que for de si próprias ao cabo de um gesto ou
um ato projetado por nós, ou seja, no futuro” (IDEM, p. 625).
Mas se apresentam de uma vez só,
“não estamos apartados das coisas por nada, salvo por nossa liberdade; é a liberdade que faz com que
haja coisas, com toda indiferença, imprevisibilidade e adversidade que têm, e fez com que estejamos
inelutavelmente apartados delas, pois é sobre fundo de nadificação que as coisas aparecem
e se revelam vinculadas umas às outras . Assim, o projeto de minha liberdade nada agrega às
coisas; faz com que haja coisas (…); faz com que as coisas se revelem na experiência, ou seja, se desta-
quem sobre o mundo no decorrer de um processo de temporalização.” (IDEM, p. 625, grifo meu).
Por fim, Sartre, neste ponto introduz, quase que sub-repticiamente, de forma seme-
lhante a que ele procedeu no final do seu texto sobre Husserl, o tema da responsabilidade: é
pelo fato de se estar inelutavelmente vinculado ao mundo, de ser-em-situação, numa
relação de intimidade com as coisas tal que, dessa proximidade não se pode escapar, é que
uma relação manifestar-se-á como facticidade em relação à liberdade; é devido a isso que o
tema da responsabilidade – ou nos termos de Orestes, comprometimento ou engajamento –,
articulado com o paradoxo da situação, se impõe de maneira inequívoca, ou seja, se a vincu-

56
lação da consciência com o mundo é tão primitiva que qualquer ato implica uma relação
com a totalidade:
“É porque minha liberdade está condicionada a ser livre, ou seja, não pode escolher-se como liber-
dade, que existem coisas, ou seja, uma plenitude de contingência no âmago da qual ela mesmo é
contingência; é pela assunção desta contingência e pelo seu transcender que pode haver ao mesmo
tempo uma escolha e uma organização de coisas em situação; e é a contingência da liberdade e a
contingência do Em-si que se expressam em situação pela imprevisibilidade e a adversidade dos arre-
dores. Assim, sou absolutamente livre e responsável por minha situação. Mas também
jamais sou livre a não ser em situação ” (IDEM, p. 626, grifo meu).

5º – Meu Outro: técnica, linguagem, primado da situação na


interpretação, relação indivíduo-sociedade, reconhecimento e
facticidade da alteridade

“O que pode significar para nossa 'situação' o fato original e contingente de existir
em um mundo onde 'há' também o Outro” (IDEM)? Esta pode ser considerada a questão que
norteará a tessitura deste momento do capítulo, questão que configura o tema da alteridade
como uma das estruturas da situação. E, para abordá-la, ao autor a dividirá em “três catego-
rias de realidade que entram em jogo para constituir minha situação concreta” (IDEM): 1)
“os utensílios já significantes (a estação, o sinal da ferrovia, a obra-de-arte, o aviso de
mobilização para o serviço militar)” (IDEM); 2) “a significação que descubro como
sendo já minha (minha nacionalidade, minha raça, meu aspecto físico” (IDEM) e 3) “o
Outro como centro de referência ao qual tais significações remetem ” (IDEM).

O ponto central da primeira categoria é que a pluralidade das significações não é


correspondente a pluralidade de consciências, pois as significações não se revelam apenas
pelo fim de cada consciência isolada, como uma mônada, pelo contrário:
“existe em 'meu' mundo algo além de uma pluralidade de significações possíveis; existem significa-
ções objetivas que a mim se mostram como significações que não foram criadas por mim. Eu, por
quem as significações vêm às coisas, encontro-me comprometido em um mundo já significante e que
me reflete significações não determinadas por mim” p. 627.

Nesse sentido, se por um lado as significações são independentemente desta consci-


ência, ela em alguma medida depende da relação com Outro, esse outro cria significações
para as coisas que não são a minhas significações. De outra parte, isso em nada obsta a que
essas significações partam também de mim. Sendo, portanto, as coisas, em certa medida,
detentoras de um coeficiente de adversidade, pois não são no mundo por mim, minha cons-
ciência não é criadora do mundo e das coisas que nele habitam, ao invés, ela é lançada no

57
mundo sem qualquer propósito ou regra, em meio a organização das coisas que não foi feita
por mim.
Como exemplo dessas coisas que me chegam como algo externo e às vezes adverso,
são dados todos sinais que existem na paisagem complexa de uma cidade:
“Quando ao dobrar uma esquina, descubro uma casa, não é apenas um existente em bruto que revelo
no mundo; já não faço somente com que 'haja' um 'isto' qualificado de tal ou qual maneira, mas a
significação do objeto que então se revela resiste a mim e permanece independente de mim: descubro
que o imóvel é um prédio de aluguel, o conjunto de escritórios da companhia de gás ou de uma prisão
etc.; a significação, aqui, é contingente, independente da minha escolha, apresenta-se com a mesma
indiferença da realidade mesmo do Em-si (…). Igualmente, o coeficiente de adversidade das coisas
revela-se a mim antes de ser experimentado por mim: uma profusão de sinais deixam-me de sobrea-
viso: 'reduza a velocidade. Curva perigosa', 'Atenção escola', 'Perigo de morte', 'Obras a cem metros'
etc.” (IDEM, p. 627).
Esses sinais representam um aspecto da relação com o Outro: “Os sinais acrescentam
ao coeficiente de adversidade que faço surgir sobre as coisas um coeficiente propriamente
humano” (IDEM, p. 627).
Recai-se agora novamente naquela questão, central no tema da situação, mas agora
pelo prisma da alteridade e mais especificamente sob a perspectiva da relação que o Outro
tem comigo mediada pelas coisas: os sinais, na medida em que determinam condutas a ser
seguidas, não estariam coarctando minha liberdade? “Na medida em que obedeço, entro na
fila, submeto-me aos fins de uma realidade humana qualquer” (IDEM, p. 628), não seria
correto dizer que “já não haveria situação, enquanto organização de um mundo significante
à volta da livre escolha de minha espontaneidade; haveria um estado de coisas que me é
imposto” (IBIDEM)? A resposta é pela negativa. Contudo cabe aqui acompanhar o argu-
mento de Sartre, em que medida a relação de alteridade que mantenho por intermédio da
minhas relação com as coisas não pode ser considerada um limite à liberdade? Ou se pode,
de que forma será ela um limite?
Em primeiro lugar, há que se considerar que “meu pertencer a um mundo tem valor
de um fato” (IDEM, p. 628) e “entre as características de fato desta 'facticidade' (…) há uma
que denominamos existência-no-mundo-em-presença-dos-outros” p. 629. E, essa forma de
existência vinculada ao outro, introduz a questão da técnica. Isso porque, é por intermédio
delas que é se apropria do mundo, ou seja,
“no nível das técnicas de apropriação do mundo, do próprio fato da existência do outro resulta o fato
da propriedade coletiva das técnicas. A facticidade, portanto, exprime-se nesse nível pelo fato de
minha aparição em um mundo que só revela-se a mim por técnicas coletivas e já constituídas, que
visam fazer-me captá-lo com um aspecto cujo sentido foi definido sem meu concurso. Essas
técnicas irão determinar meu pertencer às coletividades: à espécie humana, à coleti -
vidade nacional, ao meu grupo profissional e familiar” (IDEM, p. 629, grifo meu).

Assim, são as técnicas (por exemplo, andar, segurar, julgar, falar – e aqui abre-se
caminho para uma discussão sobre o tema da linguagem) que situam o indivíduo no

58
mundo. Por serem compartilhadas por certos grupos sociais, as relações de pertencimento
são construídas, são cimentadas pelas técnicas. Isso quer dizer que analisando as técnicas de
um indivíduo compreende-se também em qual mundo este situa-se. “Mas não possuímos
tais técnicas desta maneira abstrata e universal” (IDEM, p. 629): fala-se uma língua materna
específica, e dessa forma, pertence-se à humanidade mediada pela coletividade nacional;
indicamos assim nossa filiação pela língua materna.
“Além disso, saber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua tal como os
dicionários e as gramáticas acadêmicas definem: é torná-la minhas através de deformações e as sele-
ções provincianas, profissionais, familiares. Assim, pode-se dizer que a realidade de nosso pertencer
ao humano é nossa nacionalidade” (IDEM, p. 629).
Em seguida Sartre apresenta dois exemplos sobre as técnicas, o exemplo do esqui-
ador e o exemplo da constituição da noção de classe. No primeiro, o ponto central é
discutir a nacionalidade: ser francês ou ser norueguês implicam diferentes técnicas de esqui,
diferentes relações com a neve: morar nos alpes implica, por exemplo, que o esqui seja
usado como meio de transporte, não como esporte. Há um estilo nacional, uma técnica
partilhada por um grupo social, com especificidades que a distinguem de outros grupos, o
que implicará uma diferente relação com o mundo. Já a questão da classe, o ponto central é
que para a constituição de uma classe é necessário o compartilhamento de certa
weltanshchaug: é a partir dela que pode nascer uma determinada “fisionomia proletária”
(IDEM, 630).
E agora nota-se também que a relação com as técnicas, com a linguagem enquanto
técnica, fariam renascer novamente a fatídica questão dos limites à liberdade, ou seja, após
discutir brevemente sobre a técnica, Sartre, recoloca a questão sobre se os sinais, enquanto
representantes de uma relação com o Outro, podem se considerados com um fator que
restringe minha liberdade:
“Meu nascimento e meu lugar envolve minha apreensão do mundo e de mim mesmo através de certas
técnicas. Logo, essa técnicas não escolhidas por mim conferem ao mundo suas significações. Aparen-
temente, não sou eu quem decide, a partir de meus fins, se o mundo me aparece com as oposições
simples e fatiadas do universo 'proletário' ou com as nuanças inumeráveis e ardilosas do mundo
'burguês'” (IDEM, p. 630-1).
Reaparecem aqui as estruturas da situação do passado e do lugar – o que explicita o
caráter exclusivamente didático das divisões no texto de Sartre, pois fenomenologicamente
as coisas se dão de forma simultânea –, pois o nascimento e, por consequência, o lugar onde
se deu o nascimento implicam para o indivíduo uma inserção num mundo específico de
técnicas. Estas são, no entanto, apresentadas como candidatas possíveis ao cargo de adversi-
dades absolutas, ou puras. Enquanto o homem é inserido – à primeira vista – passivamente
num complexo de técnicas e significações que lhe são alheias, pois não foram escolhidas por
ele, o mundo então apareceria como tendo uma significação em si na qual o indivíduo é
59
inserido ao nascer, uma significação que, embora criada por indivíduos, por ser criada cole-
tivamente, em alguma medida, se manifesta estranha para eles, pois em muitos aspectos
esta significação se faz sem que o indivíduos, percebam, sem sua deliberação racional: a
realidade aparece a mim como sendo construída independente de mim, o mundo não se
manifesta como sendo organizado a partir dos meus fins, dos meus projetos. Seria então
aqui que se imporia a nós um obstáculo, um ponto final?
Seria então a linguagem uma adversidade fundamental, cuja relação com a consci-
ência seria, ainda que inevitável, fundada numa sujeição do indivíduo ao todo social organi-
zado pela linguagem como técnica?
Para o encaminhamento dessa resposta, Sartre discutirá um pouco mais sobre
linguagem. Segundo as pesquisas dos linguistas 25, parece que a linguagem é uma realidade
que
“a palavra ou a regra sintática é uma realidade individual, com sua significação e sua história. E, de
fato, os indivíduos parecem ter pouca influência na evolução da língua. Fatos sociais como invasões,
grandes vias de comunicação, relações comerciais, parecem ser as causas essenciais das mudanças
linguísticas. Mas tal impressão resulta do fato de não se colocar a questão no verdadeiro terreno
concreto” (IDEM, p. 631).

Mas o que significa colocar a questão no “verdadeiro terreno concreto”? Sem dúvida
lembra a discussão precedente sobre o conceito de intencionalidade, ou seja, remete àquela
discussão sobre o sentido da fenomenologia de Husserl, sobre o Rumo ao Concreto que se
quis dar à ela na França. Tal direcionamento significa aqui um atentar para a possibilidade
real que se tem de se relacionar com a linguagem, descrever uma relação vivida, concreta
com a linguagem. É isso que, segundo Sartre, falta aos estudos de linguagem e isso que faria
com que as pesquisas dos linguistas – e com isso todo o estruturalismo, inclusive suas decor-
rências no interior da Psicanálise 26 – incorressem em grande impropriedade na sua conside-
ração da linguagem.
A estrutura elementar da linguagem não é a palavra, mas a frase. As pesquisas
linguísticas atentam-se, segundo Sartre, para a palavra e, assim, não poderiam compreender

25 Não se sabe a quem ou quais pesquisas o autor se refere. É bom lembrar que o livro de Sartre é um ensaio e,
como tal, não tem pretensões acadêmicas, não precisando assim citar fontes.
26 Aqui poder-se considerar que se abrem questões de estudo da relação entre Sartre com o estruturalismo e
com a Psicanálise, notadamente, Lacan. Tanto Levi-Strauss, quanto Lacan divergirão neste ponto de Sartre.
Talvez possa-se sintetizar a peleja – para variar um pouco em se tratando de Sartre – em torno da questão
da liberdade. Dentro de uma concepção estruturalista, o indivíduo, por assim dizer, some: ele é engolido
pela estrutura e com ele é rifada também a liberdade. E como se busca mostrar, todo os esforço de Sarte é
em pensar um potencial de liberdade como ontológico, como imanente à existência humana – tanto assim
que abdicar dele seria, para ele, má-fé. O fato é que aqui – já em O Ser e o Nada – essa divergência, ainda
que não estivesse posta, pois a discussão com o estruturalismo é posterior, já apareceria avant la letre, na
medida em que os argumentos de Sartre já poderiam ser considerados a partir do desenvolvimento da
noção de situação. Talvez até não seria exagero dizer que, em parte, o estruturalismo foi uma reação a essas
ideias.
60
a questão em sua totalidade e, para tanto, nota-se que opera aqui, em pano de fundo, a
estrutura fenomenológica da Gestalt, da figura-fundo, da parte, a palavra em relação ao
todo, a frase.
“é somente no interior da frase, com efeito, que a palavra pode receber real função designativa; fora
da frase, é apenas uma função proposicional (…), está integrada a um contexto, tal como uma forma
secundária em uma forma principal. A palavra, portanto, tem apenas uma existência puramente
virtual fora das organizações complexas e ativas em que se integra” (IDEM, p. 631-2).

O que se vem mostrando até agora é que não se pode cindir uma reflexão sobre
linguagem da noção de situação, pois sem ela se depara com a impossibilidade de
compreensão (interpretação) do sentido sem considerar a situação. O fundamental na cons-
tituição do sentido, não são nem as palavras sozinhas, nem a sintaxe, mas o uso que delas se
faz:
“nem as palavras, nem a sintaxe, nem as 'frases feitas' preexistem ao uso que delas se faz. Sendo a
frase significante a unidade verbal, trata-se de um ato construtivo só concebível por uma transcen-
dência que transcende e nadifica o dado rumo a um fim. Compreender a palavra à luz da frase
é exatamente compreender qualquer que seja o dado a partir da situação e
compreender a situação a partir dos fins originais. Compreender uma frase do meu interlo-
cutor é, com efeito, compreender o que ele 'quer dizer', ou seja, aderir a seu movimento de transcen-
dência, lançar-me com ele rumo a possíveis, rumo a fins, e retornar em seguida ao conjunto dos meios
organizados para compreendê-los por sua função e seu objetivo. Além disso, a linguagem falada,
sempre é decifrada a partir da situação. As referências ao tempo, à hora, ao lugar,
aos arredores, à situação da cidade, da província ou do país aparecem antes da
palavra (…). Escutar o discurso é 'falar com', não simplesmente porque imitamos
para decifrá-lo, mas porque nos projetamos originariamente rumo aos possíveis e
porque a compreensão deve se estabelecer a partir do mundo ” (IDEM, p. 632, grifo meu).
Apresentou-se até agora com Sartre que a linguagem também não limita minha
liberdade. Novamente: sem a linguagem não há liberdade e sem liberdade não há linguagem.
A segunda parte dessa frase remete à ideia de que sem a situação a linguagem não pode ser
compreendida, o falante e o ouvinte sempre pressupõem uma situação – em alguma medida,
a mesma, pois compartilham em a mesma língua. Outro aspecto a ser salientado é o uso da
linguagem, quer dizer, a linguagem falada e o contexto em se fala, a situação que configura a
linguagem: “se a frase preexiste à palavra, somos remetidos ao discursador como funda-
mento concreto do discurso” (IDEM, p. 633) como aquele que faz o uso das palavras e as arti-
cula em frases.
“A frase é um projeto que só pode ser interpretado a partir da nadificação de algo dado (o próprio
dado que se quer designar), a partir de um fim posicionado (sua designação, que pressupõe outros
fins, em relação aos quais é apenas um meio) (…). A frase é um momento da livre escolha de mim
mesmo, e como tal é compreendida pelo meu interlocutor” (IDEM, p. 633).
A linguagem toma forma a partir da situação e de um fim projetado por um falante, que, ao
fazer uso da linguagem, transcende a si mesmo impondo ao ouvinte certo movimento em
direção ao seu projeto, isso como condição para que se dê uma compreensão entre os dois,

61
ou seja, a linguagem é utilizada pelo homem. Não é o homem que se insere na linguagem,
sendo veículo desta. Não é, portanto, um mero títere, mas sim o polo organizador.
Mas para compreender essa relação entre o homem e a linguagem é preciso ver mais
de perto a relação entre linguagem e o projeto. E enquanto tal só a liberdade, ou o homem,
pode aparecer como polo organizador da linguagem a partir de um projeto. Para que as
palavras mantenham relações entre si “é preciso que estejam unidas em uma síntese que
não proceda de si próprias. Assim, é no interior do projeto livre da frase que se organizam as
leis da linguagem; é falando que faço a gramática; a liberdade é o único fundamento possível
das leis da língua” (IDEM, p. 634). E, por mais que sejam possíveis as mais variadas conexões
entre as palavras, essa multivocidade de conexões decorre de dois fatos: 1º ) “É preciso que
as palavras tenham sido reunidas e apresentadas por uma livre conexão significante” (IDEM,
p. 635), ou seja, um eu doador de sentido e 2º ) “É preciso que esta síntese seja vista de fora,
ou seja, pelo Outro, e no decorrer de uma decifração hipotética dos sentidos possíveis dessa
conexão.” (IDEM, p. 635), isto é, uma outra consciência que poder lançar-se intencional-
mente junto ao projeto da primeira. Assim, tanto o eu quanto o outro ampliam exponencial -
mente essa pletora de conexões.
Adentra-se agora questão da relação entre a multivocidade das conexões entre as
palavras, o projeto, a liberdade e a alteridade, cada palavra abre uma série de possibilidades
de conexões com outras:
“captada previamente como encruzilhada de significações, é vinculada a uma outra captada igual-
mente como tal. A apreensão do sentido verdadeiro, ou seja, expressamente desejado pelo falante,
poderá deixar no esquecimento ou subordinar os demais sentidos, mas sem suprimi-los. Assim, a
linguagem, livre projeto para mim, tem leis específicas para outro. A 'frase', como acontecimento,
contém em si a lei de sua organização, e é no interior do livre projeto de designar que podem surgir as
relações legais entre as palavras. Com efeito, não pode haver leis da fala antes de falarmos.” (IDEM, p.
635).
Dessa forma, reaparece aqui o mesmo esquema que já se mostrou da relação entre
liberdade e facticidade: há leis da linguagem às quais me submeto, mas não inteiramente e
leis essas que só existem por meu intermédio, pois eu falo. É pelo projeto de algo expressar
do falante que a linguagem vem à tona. Pode-se, nesse sentido, ver o próprio Sartre fazendo
essa relação entre situação e linguagem:
“característica original de toda situação; é por seu próprio transcender do dado enquanto tal (o
aparato linguístico) que o livre projeto da frase faz surgir o dado como sendo este dado (estas leis de
sintaxe e de pronúncia dialetal). Mas o livre projeto da frase é precisamente o propósito de assumir
este dado-aqui, não se trata de uma assunção qualquer, mas do apontar rumo a um fim ainda não exis -
tente através de meios existentes, aos quais confere justamente sus sentido de meio. Assim, a frase é
ordenação de palavras que se tornam estas palavras somente em virtude se sua própria ordenação”
(IDEM, p. 635-6).
Retomando o fio da meada: o ponto chave, para Sartre, é que os linguistas tomariam
a linguagem em si e, desprezando a linguagem falada e o papel proeminente do falante ao

62
organizar as leis da linguagem, transformariam-na em algo morto. Assim, não poderiam
conceber as coisas em sua concretude. Seus trabalhos não concebem qualquer lugar para o
indivíduo, denotando uma compreensão de homem como mero executor, como assujeitado.
E o que se vê aqui é um esforço no sentido contrário, na pretensão de salientar a possibili-
dade de transcendência do homem.
“Toda fala é livre projeto de designação na dependência da escolha de uma Para-si
pessoal e deve ser interpretada a partir da situação global desse Para-si. Primeira -
mente vem a situação, a partir da qual compreendo o sentido da frase, sentido esse
que não deve ser considerado como algo dado, mas como um fim escolhido em um
livre transcender de certos meios. Eis a única realidade que os trabalhos do linguista
podem encontrar. A partir dessa análise regressiva poderá elucidar certas estrutura mais gené-
ricas, mas simples, que constituem como que esquemas legais. Mas esses esquemas, não irão valer, por
exemplo, como leis do dialeto, são abstrato em si mesmos. Longe de presidir a constituição da frase e
de ser o molde no qual esta se verte, tais esquemas não existem salvo na e por essa frase. Nesse
sentido, a frase aparece como livre invenção de leis” (IDEM, 635, grifo meu).
Apesar de um pouco extenso, esse excerto é importante pois articula os pontos mais
importantes ao redor dos quais orbitam a questão da linguagem: a proeminência do falante
sobre as regras da fala, o projeto como eixo organizador traçado pelo falante.
O que, sobretudo, é preciso destacar aqui é o primado da situação num movi -
mento de interpretação . Tendo em vista que o objeto desta pesquisa é a prática clínica
em psicologia, pode-se pensar que a escuta e sua interpretação, ou as possibilidades que essa
escuta se dê é um tema fundamental da técnica da clínica, é então crucial o espaço que
agora se dedica para discutir uma teoria da linguagem. Nesse trecho aparece uma ideia
central que Sartre desenvolverá no seu capítulo da psicanálise existencial. Surge a ideia do
primado da situação para a configuração de uma interpretação. Aliás, é justamente esse um
dos motivos pelos quais se escolheu estudar o capítulo da situação e não da psicanálise exis -
tencial. Seria um trabalho manco uma leitura que não se detivesse na noção sartriana de
situação. Em síntese: qualquer interpretação deve levar em conta que: “primeiramente vem
a situação, a partir da qual compreendo o sentido da frase, sentido esse que não deve ser
considerado como algo dado, mas como um fim escolhido em um livre transcender de certos
meios” (trecho da última citação). Isso posto, a crítica que Sartre faz para os linguistas, de
que a linguagem só pode ser compreendida a partir da noção de situação, valeria também
para os psicólogos clínicos, resguardadas, é claro, sua diferença de objetos de estudo, isto é,
do indivíduo na clínica a única coisa que se estaria escutando seria uma fala sobre sua situ-
ação e, como tal, esta realidade não poderia ser compreendida de outra forma. Noutros
termos, toda a fala remete a uma situação, ou mais precisamente, é uma fala situada, uma
fala que aponta para as estruturas da situação, o passado, o lugar, a sociedade, a linguagem,
o Outro, a morte etc.. Dessa forma, o fundamental dessa noção de situação, e que se está

63
tentando desenvolver partindo da forma como Sartre compreende a noção husserliana de
intencionalidade, é que o indivíduo não é, em hipótese alguma um ser cindido 27, é antes pelo
contrário, sempre em relação, inclusive as tentativas de se escapar, obnubilar à uma relação
– o que Sartre chamará de má-fé – não deixariam de ser uma forma de relacionar-se com
seja lá o que for, noutros termos: até a não relação (falsa, como a má-fé, ou não) seria uma
relação, como Sartre argumentará, inclusive uma tentativa de não escolher será uma
escolha – e, enquanto tal, trará consequências para a liberdade das quais não pode escapar,
mas não como obstáculos à liberdade, antes como algo com o qual a liberdade não pode
escapar de lidar, algo que está vinculado.
Em síntese, ser-em-situação é ser um ser para o qual está sempre em questão seu
próprio ser – como Sartre repete exaustivamente ao longo do livro – e isso quer dizer que
ele nunca deixa de ser responsável por suas ações, que estas nunca deixam de, por assim
dizer, persegui-lo – se a pretensão for salientar o lado de adversidade dessa relação – ou
servir de substrato para outras possibilidades de transcendência – salientado o lado da liber-
dade que é imanente à situação – não se quer dizer com isso que a noção de situação possa
ser considerada ambígua, ou imprecisa, o fato é que ele implica as duas coisas sem que com
isso a liberdade seja posta por terra, pois ela só existe em situação.

27 Como quer a psicanálise. Não há cisão inclusive com o que a psicanálise chama de Inconsciente o indivíduo
mantém uma relação absolutamente constante. Conquanto seja de estranhamento, há relação: as zonas
obscuras das motivações das ações não seriam por isso desligadas o indivíduo. Nem todas as escolhas são
conscientes, não há, por parte da consciência, ciência de toda a dimensão de suas escolhas. Sartre não
concordaria com a afirmação de que certas escolhas são inconscientes, pois ele se vale de uma distinção
traçada, noutro momento do livro, entre uma consciência tética das coisas – em que se tem pode
enunciar o que se faz, se vê etc, ou seja, uma consciência reflexiva –, e uma outra modalidade de relação da
consciência com o mundo, uma consciência não tética – em que se move numa zona de
desconhecimento, mas que não se poderia chamar de inconsciência.
Também partindo da noção de situação, mediada pela de intencionalidade, poder-se-ia elencar como objeto
de estudo de uma outra pesquisa a crítica sartriana do conceito de Inconsciente de Freud. Sartre não seria,
por assim dizer, ingênuo de argumentar que o homem sempre age deliberadamente, que sempre sabe o que
faz, ou que tem consciência das suas ações. Como se pode antever, a questão toda se desenvolve em torno
da noção de consciência, já mesmo do uso que agora se fez deste termo se pode ter a dimensão do
problema: ter consciência seria sinônimo de uma ação explicitamente deliberada em que se pode ter
completamente a dimensão das consequências dessa ação. Essa pretensão é, no entanto, logicamente
impossível. Portanto, toda ação seria evidentemente, em parte pelo menos, inconsciente. Sendo assim, faria
sentido utilizar esse essa noção de consciência? Para Sartre, partindo de um ponto de vista
fenomenológico, como se viu, não.
Em síntese, o central é que se a consciência é intencional, ela é muito mais um movimento, não poderia
então ser cindida entre um pedaço consciente e outro inconsciente. Seria antes justamente um deslizar de
um polo a outro, uma instância que tem justamente que lidar com o fato de que é impossível ser plena, ser
– inteiramente – consciente de si, que precisa necessariamente, por assim dizer, mover-se num terremo
algumas vezes pantanoso. E, na medida que se trabalharia com uma noção que em si comporta esse
movimento, a necessidade de esse tipo de cisão – Ics/Cs cairia por terra.
Evidentemente aqui apenas se esboça, sem grandes pretensões – assumindo o risco de ser impreciso e infiel
tanto à psicanálise quanto ao próprio Sartre –, uma entrada nessa questão, que, entretanto, não poderá ser
incluída e desenvolvida neste trabalho.
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Aqui explicita-se, então, em grande medida, a ideia norteadora desta pesquisa de
uma clínica situada . Uma clínica que não desconsidera a situação na escuta. Pelo
contrário, que parte do pressuposto de que se o homem é um ser-em-situação ele, ao ser
cindido, simplesmente não seria escutado. Escutar-se-ia apenas e unicamente uma
abstração: cisão que se insere. Evidentemente o caminho perseguido até aqui vai no sentido
de precisar mais cuidadosamente o que se trata exatamente essa noção de situação, pois não
se poderia trabalhar com uma noção sem conhecê-la, correndo o risco de, no mínimo, fazer
um uso equivocado do termo. Retoma-se então o final do argumento de Sartre sobre a
linguagem.
A partir do que foi dito sobre linguagem e situação pode-se também retomar a
questão sobre a técnica em sentido amplo: a discussão sobre a linguagem, enquanto esta é
considera uma técnica, em certo sentido, poderia ser compreendia como um exemplo do
que se pode dizer sobre as outras técnicas, ou seja, o que se diz da linguagem, serve para
todas as outras técnicas: elas não podem ser consideradas capazes de serem aplicadas sozi-
nhas, caso contrário, o homem se reduz a um mero “piloto que utiliza as forças determi -
nadas dos ventos, as ondas do mar e as marés para dirigir um navio” (IDEM, p. 634), sendo
reduzido a um papel passivo que sempre só realiza aquilo que as adversidades lhe permitem.
E com a intenção e ilustrar essa ideia de que é o indivíduo quem faz uso das técnicas e é ,
portanto, um agente ativo, Sartre apresenta alguns exemplos: o martelo e o machado são
instrumentos que só se revelam em golpes desferidos com eles, golpes, é claro, desferidos
por um agente. E o esqui que pode ser compreendido na especificidade do método francês
ou compreendido como potencialidade humana genérica, “mas essa arte [ou técnica em
sentido mais amplo] humana nada é por si mesmo; não existe em potência, mas encarna-se
e manifesta-se na arte atual e concreta do esquiador” (IDEM, p. 636), portanto, pelo uso, pelo
ato de alguém que se serve da técnica.
Neste ponto novamente se pode notar a articulação entre as estruturas da situação:
um utensílio serve ao homem por uma técnica, ou seja, meu Outro, enquanto um utensílio já
significante (como foi a primeira divisão do autor para tocar na relação entre a questão da
alteridade e da situação) relaciona-se com meus arredores, as coisas utensílios que me
circundam. Então estas poderiam ser consideradas tanto parte dos arredores e da relação a
alteridade? Sim, o fio da argumentação é mostrar que se de um lado elas são um aspecto
com certa independência para ser tratado como uma estrutura da situação em separado, é
também um aspecto da relação com o outro, mas o é de uma forma muito específica,
enquanto que estes objetos já tem uma significação que em certa medida me é exterior, por

65
um lado poderia aparentemente ser considerado um obstáculo à minha liberdade. Enfim,
como se viu, a argumentação do autor foi no sentido de mostrar que não. Estes também não
constituem exclusivamente uma restrição à liberdade, não quer dizer que eles não ofereçam
resistência, o que Sartre que dizer que é, ainda assim, a liberdade não deixa de existir, não se
criam fronteiras para a liberdade, ou melhor, ela existe justamente atuando sobre esse
coeficiente de adversidade. Tudo se passa como se ela só existisse pois está presente algo
sobre o qual ela pode atuar, nos termos do Sartre, à consciência é interditado o acesso a algo
sem que seja intermediado por um movimento de transcendência ou de nadificação do dado
– que portanto nunca é puro. Em síntese:
“não pretendemos apresentar o Para-si como livre fundamento de seu ser: o Para-si é livre, mas em
condição, e é essa relação entre a condição e a liberdade que queremos precisar com o nome de situ -
ação” (IDEM, p. 637).

A segunda categoria, as significações que descubro como já sendo minhas,


Sartre tocará numa questão, de suma importância para sua argumentação, e de maior
importância ainda para o tema desta pesquisa, a saber, a relação indivíduo-sociedade.
Esse tema maior será abordado em três diferente aspectos: 1) a relação indivíduo-espécie, 2)
Outro, linguagem sociedade e 3) Outro, história e sociedade no que concerne a estes dois
últimos aspectos deve-se ter em mente que, ao defini-las, o autor já fornece os seguintes
exemplos: nacionalidade, raça e aspecto físico.
No primeiro deles, Sartre tenta expor a ideia de que existem significações que
surgem ao indivíduo como algo dado que advém da espécie:
“É certo que, sem espécie humana, não há verdade; restaria apenas uma abundância irracional e
contingente e escolhas individuais, às quais nenhuma lei poderia ser atribuída. Se algo como uma
verdade existe, susceptível de unificar as escolhas individuais, é a espécie humana que pode fornecer.
Mas, se a espécie é a verdade do indivíduo, não pode ser algo dado no indivíduo (…). A espécie humana
– como conjunto de técnicas próprias para definir a atividade dos homens – longe de preexistir a um
indivíduo que a manifeste, do mesmo como tal ou qual queda particular exemplifica a lei da gravi -
dade, é o conjunto de relações abstratas sustentadas pela livre escolha individual. O Para-si, para esco-
lher-se pessoa, faz com que exista uma organização interna que ele transcende rumo a si mesmo, e
esta organização técnica é, nele, o nacional ou o humano” p. 637.
O primeiro ponto que salta aos olhos neste trecho é que na relação indivíduo-espécie,
a questão da técnica continua a ser tratada. É bem difícil dividir esses momentos. A espécie
humana é descrita como algo que unifica as técnicas de todos os homens, evidentemente em
nível máximo de abstração a ponto de nenhum homem ou sociedade mais se reconhecer
nesse espectro. Nesse sentido, reapareceria a questão: poderiam ser as técnicas, enquanto
unidade referente à espécie humana, mas distante da singularidade – justamente devido a
essa distância –, consideradas um limite à liberdade? Já se sabe que não, pois considera-se
também aqui aquele mesmo esquema de uma relação inextrincável com a facticidade:

66
“longe de preexistir a um indivíduo que a manifeste [as leis da linguagem são] o conjunto de relações
abstratas sustentadas pela livre escolha individual. O Para-si, para escolher-se pessoa, faz com que
exista uma organização interna que ele transcende rumo a si mesmo, e esta organização técnica é,
nele o nacional ou o humano” (IDEM, p. 637)
Em seguida, iniciando o segundo aspecto – Outro, linguagem sociedade – também
retorna questão da linguagem ressaltando-se, no entanto, o caráter de uma significação já
dada à liberdade e apontando para o tema da nacionalidade e da alteridade:
“Quando utilizo estas regras [linguísticas] aprendo dos outros, e dela me sirvo porque os outros, em
seus projetos pessoais, fizeram-na ser. Minha linguagem, portanto, é subordinada à linguagem do
outro, e, em última instância, à linguagem nacional” (IDEM, p. 637).
Logo após, reaparece aqui, como que numa digressão que recapitula com muita
clareza, a noção da situação como relação inescapável num trecho que vale a pena ser citado
inteiro devido a seu caráter sintético:
“A existência de significações que não emanam do Para-si não poderia constituir um limite externo à
liberdade deste. O Para-si não é primeiro homem para ser si mesmo depois, e não se
constitui como si mesmo a partir de uma essência humana dada a priori; mas, muito
pelo contrário, é um esforço para escolher-se como si mesmo pessoal que o Para-si
mantém em existência certas características sociais e abstratas que fazem dele um
um homem; e as conexões necessárias que acompanham os elementos da essência humana só
aparecem sobre o fundamento de uma livre escolha: nesse sentido, cada Para-si é responsável em seu
ser pela existência de uma espécie humana” (IDEM, p. 637, grifo meu).
Em primeiro lugar, a ideia de que o Para-si relaciona-se com os limites é um aspecto
que aqui recebe uma formulação muito precisa: o Para-si antes de tudo é. Em seguida, por
não poder escapar de relacionar-se com, de ser um ser-em-situação, num segundo momento
é que se torna homem. A humanidade surge justamente desse emaranhado de articulações
que agora se tenta não perder, mas que, a partir da escolha, manifesta-se para a consciência
absolutamente intrincado e sem possibilidade de ser vivenciado separadamente. Além disso,
como não se é homem sem ser esta escolha fundamental, ser homem é precisamente ser
esta escolha, ser uma encarnação dessas “características sociais e abstratas”, ou melhor, ser
homem é ser esta escolha que implica um vínculo específico – singular – com o tecido social.
Se ser homem é ser antes de mais nada uma escolha de ser homem, abrem-se as portas
novamente para a questão da responsabilidade: o Para-si é inteiramente responsável pela
suas escolhas do que elege como paradigma do que é ser homem e tal escolha implica a
humanidade inteira28 – disso advém a imagem tão associada ao existencialismo do peso do
mundo nas costas.
E, em continuação, desenvolvendo a ideia da transcendência, é preciso considerar
que o Para-si só pode escolher-se “para-além” das significações que não emanam dele:
“Cada Para-si, com efeito, só é Para-si escolhendo-se para-além da nacionalidade e da espécie, assim
como só fala escolhendo a designação para-além da sintaxe e dos morfemas. Este “para-além” é

28 Aqui, ao explicitar que o Para-si, ao escolher, traça também um paradigma de homem, já se antecipa a
imbricação entre ontologia e situação (antropologia) que se verá posteriormente.
67
suficiente para assegurar total independência em relação às estruturas que ele trans -
cende; mas isso não impede que o Para-si se constitua como para-além em relação a
estas estruturas aqui ” (IDEM, p. 638, grifo meu).
E este trecho é crucial pois enfatiza que o movimento de transcendência, assim como
não apaga o objeto que transcende, também não é limitado por isso que tenta transcender,
isto é, tal movimento só existe intencionalmente, não sendo possível pensá-lo noutra
circunstância que numa relação.
E agora retomando o segundo dos aspectos é apresentada uma outra característica: a
simultaneidade da existência dos Para-sis, do Para-si e seu Outro. O Para-si vem ao
mundo que é dotado de sentido por outros Para-sis,
“e no ato pelo qual estende seu tempo, o Para-si se temporaliza em um mundo cujo sentido temporal
já está definido por outras temporalizações: é o fato da simultaneidade. Não se trata aqui de um limite
à minha liberdade, mas sim do fato de que é nesse mundo mesmo que o Para-si deve ser livre; é
levando em conta essas circunstâncias – e não ad libitum [conforme a vontade] – que ele deve esco-
lher-se. Mas, por outro lado, o Para-si, ao surgir, não padece a existência do outro; está constrangido a
manifestá-la em forma de uma escolha” (IDEM, p. 638).
Nesse momento se explicita do ponto de vista da relação de alteridade, que também
esta relação deve ser compreendida como situada. Retoma-se aquela questão que sempre se
busca responder: pode tal aspecto – no caso a relação com o Outro – ser compreendido como
um limite à minha liberdade? E novamente pode-se ver que não, ainda que também não
signifique que, por assim dizer, pode-se tudo – conforme já se discutiu, liberdade não pode
ser pareado com possibilidade de realização –, o Para-si não se imobiliza pela relação com o
outro. É a partir deste mundo, destas possibilidade de relação com os outros que o Para-si
deve escolher-se. Nesse sentido, Sartre realiza aqui uma boa síntese do paradoxo da liber-
dade considerado aqui pelo prisma da alteridade. Mas, em seguida, acrescentam-se alguns
passos na argumentação em direção a sustentar a ideia de que, também nessa relação, a
liberdade está presente, situada, é claro:
“É através de uma escolha que [o Para-si] irá captar o Outro como Outro-sujeito ou Outro-objeto. (…) O
Para-si se experimenta como objeto no Universo sob o olhar do Outro. Mas, uma vez que o Para-si,
transcendendo o Outro rumo aos seus próprios fins, faz dele uma transcendência-transcendida, o que
era livre transcender do dado rumo a fins agora lhe aparece como conduta significante e dada no
mundo. (…) O Outro-objeto torna-se um indicador de fins, e, por seu livre projeto, o Para-si se arre-
messa em um mundo no qual condutas-objeto designam fins” (IDEM, p. 639).
As relações com o Outro são então também remetidas ao projeto que unifica a
escolha traçada29 pelo Para-si: é por meio deste projeto que a relação com o outro se dá, o

29 Um ponto importante aqui é que à essa escolha não pode ser, contudo, atribuído necessariamente um valor
de deliberação: pode-se perceber o traçado das escolhas do Para-si apenas a posteriori, quer dizer, apenas
depois dos fatos se darem, ao se debruçar analiticamente sobre a história de um Para-si é que,
retrospectivamente, o sentido dessas escolhas pode ser alinhavado, reconstituído. Tarefa essa que deve se
realizada pelo método da psicanálise existencial desenvolvido noutro capítulo do livro, mas que
também não se poderá abordar aqui com a necessária atenção. (Ver também a nota 22, em que se tocou
também nesta questão das escolhas e do Inconsciente)
68
ser-ser-Para-outro se mostra de uma determinada forma a um Para-si porque este tem um
projeto específico delineado, há uma relação de reciprocidade entre projeto dos Para-sis e a
forma como o ser-Para-outro se mostra.
Finaliza esta recapitulação do paradoxo da situação ressaltando o que, por assim
dizer, empurra o Para-si em direção a esse movimento de transcendência ou nadificação,
mas acrescenta agora a nuance – nada desprezível – relação com o Outro. Isso decorre do
fato de que o homem está lançado num mundo cujo sentido lhe está alienado:
“O Para-si surge em um mundo que é o mundo para outros Para-sis. Tal é o dado. E, por isso mesmo,
como vimos, o sentido do mundo está alienado para o Para-si, Significa, justamente, que o Para-si se
encontra em presença de sentidos que não vêm ao mundo por ele” (IDEM, p. 638).
Pode-se agora compreender o terceiro daqueles aspectos: Outro, história e sociedade.
Isso porque à relação do Para-si e o Outro acrescentam-se agora as especificidades da
relação com a história:
“O Para-si, uma vez que toma posição em relação ao Outro, faz surgir as técnicas no mundo como
condutas do Outro enquanto transcendência-transcendida. É nesse momento, e somente nele que
aparecem no mundo burgueses e proletários, franceses e alemães – homens, enfim. (…) O Para-si não
pode fazer com que o mundo onde surge seja atravessado por tal ou qual técnica (…), mas faz com que
aquilo que é vivido pelo Outro como projeto livre exista por fora como técnica, fazendo-se precisa-
mente aquele pelo qual um lado de fora advém ao Outro. Assim, é escolhendo e historicizando-se no
mundo que o Para-si historiariza o próprio mundo e faz com que este fique datado por suas técnicas.
A partir daí, precisamente porque as técnicas aparecem como objetos, o Para-si pode escolher apro-
priar-se delas. (…) Faz com que as leis internas do ato do Outro, que estavam fundamentadas e susten -
tadas por uma liberdade comprometida em um projeto, convertam-se em regras objetivas de conduta-
objeto, e essas regras tornam-se universalmente válidas para toda conduta análoga, enquanto que o
suporte das condutas, ou agente-objeto, torna-se, além disso, qualquer um” (IDEM, p. 639).
Articulando técnica – também mediada pela alteridade – e projeto, Sartre possibilita
pensar como se dá a relação entre história e sociedade. É também o Para-si que é apresen-
tado com um polo organizador desses âmbitos. Nem a história, nem a sociedade – enquanto
modalidades da alteridade – podem ser consideradas limites à liberdade, devem antes, ser
também compreendidas numa relação de situação, em suma: Como é a partir deste mundo
que o Para-si se coloca em questão (põe seu 'si' como questão para si mesmo), a historiari-
zação não restringe a liberdade: “Ser livre não é escolher o mundo histórico onde surgimos
– que não teria sentido –, mas escolher a si mesmo no mundo não importa qual seja” (IDEM,
p. 640).
Para finalizar esta segunda categorias – das significações que descubro “já minhas” –
é preciso passar em revista, ainda que brevemente, alguns exemplos do livro, pois, o ilus-
trar, explicitam os pontos tratados.
O primeiro deles explicita a relação entre história e técnica apontando para o
equivoco do anacronismo ao se tentar pensar um outro limite à liberdade. O autor se põe a
seguinte pergunta: poderia alguém considerar que as técnicas de uma época específica são

69
restritivas para a liberdade? Seriam, as técnicas existentes na Idade Média, um impeditivo
para a liberdade? Pode parecer que sim, pois elas não permitiriam por exemplo que se
comunique com pessoas noutros países no mesmo dia. Seria, contudo, isso uma limitação à
liberdade? Não. É, pelo contrário, um julgamento anacrônico. Não se pode julgar as técnicas
de um determinado período histórico pelos padrões de outro. Seria também equivocado
pensar que numa avaliação das estratégias militares de uma época em que não existia certa
técnica, ou instrumento, este estaria faltando. Isso poque os homens de cada época “foram
somente aquilo que escolheram ser, o foram absolutamente em um mundo tão absoluta-
mente pleno como o das [forças em conflito na época da escrita do livro: ocupação nazista
da França)” (IDEM, p. 640).
Pode parecer uma questão trivial essa, mas o exemplo visa dar resposta a uma visão
um tanto estabelecida de que a liberdade dos homens modernos seria maior que dos
antigos, por exemplo. Em se tratando de regimes políticos, poder-se-ia ter a impressão de
que os homens que vivem sob a égide de uma democracia moderna teria um 'grau de liber-
dade' maior que os vassalos. O argumento consiste em salientar o vínculo íntimo – em
termos de situação – entre história, uma dada sociedade e os indivíduos. Um vassalo teria,
num regime feudal,
“infinitas possibilidades de escolhas, tantas como as que possuímos hoje. (...) o feudalismo enquanto
relação técnica de homem a homem, não existe: não passa de um puro abstrato, sustentado e trans -
cendido por milhares de projetos individuais de tal ou qual homem, vassalo em relação ao seu senhor
(…). Todo projeto de um homem dessa época deve se realizar como um transcender rumo ao concreto
desse momento abstrato. Portanto, não é necessário generalizar a partir de numerosas experiências
de detalhe para estabelecer os princípios da técnica feudal: essa técnica existe necessária e completa-
mente em cada conduta individual e pode ser elucidada em cada caso ” (IDEM, p. 640-1).
Talvez possa-se sintetizar a relação entre história e as técnicas da seguinte maneira:
“Assim, quando o Para-si se afirma frente ao Outro-objeto, descobre ao mesmo tempo as
técnicas. A partir daí, pode apropriar-se delas, ou seja, interiorizá-las” (IDEM, p. 641). Nesse
processo de incorporação da técnica, ocorrem, de imediato, duas coisas: 1) elas são transcen-
didas pela finalidade que o Para-si as emprega, 2) a técnica se integra ao Para-si “é reassu-
mida e sustentada pela liberdade que a fundamenta” (IBIDEM).
E no que concerne ao Para-si, a sociedade e a história:
“O Para-si não poderia ser uma pessoa, ou seja, não poderia escolher os fins que ele é, se não fosse
homem, membro de uma coletividade nacional, de uma classe, de uma família etc. Mas estas são
estruturas abstratas que ele sustenta e transcende através de de seu projeto. O Para-si faz-se francês,
sulista, operário, para ser si mesmo no horizonte dessas determinações. E, igualmente, o mundo que a
ele se revela, aparece dotado de certas significações correlatas às técnicas adotadas. Aparece como
mundo-para-o-francês, mundo-para-o-operário etc., com todas as caraterísticas imagináveis. Mas
essas características não tem 'selbstständigkeit' [independência]: antes de tudo, é o seu mundo, ou
seja, o mundo iluminado pelos fins, que se revela como francês, proletário etc.” (IDEM, p. 642).

70
Pode-se agora acompanhar a terceira das categorias de relação com o Outro: Outro
como centro de referência para o qual essas significações confluem . Outro
como limite real a minha liberdade, o ser-ser-Para-outro.
“Pelo surgimento do Outro, aparecem certas determinações que eu sou sem tê-las escolhido. Eis-me,
com efeito, judeu, ou ariano, bonito ou feio, maneta etc. Tudo isso, eu o sou para o outro, sem espe -
ranças de apreender o sentido que tenho do lado de fora, nem, por razão maior, de modificá-lo. (...) Se
minha raça ou minha ou meu aspecto físico não fossem mais do que uma imagem no Outro ou a
opinião do Outro a meu respeito, logo resolveríamos a questão; mas vimos que trata-se de caracteres
objetivos que definem meu ser-Para-outro a partir do momento em que outra liberdade surge frente a
mim. começo a existir em uma nova dimensão de ser, e desta vez, não se trata para mim de conferir
um sentido a existentes em bruto, nem de reassumir por minha conta o sentido que outros conferiram
a certos objetos” (IDEM, p. 642).

É dessa forma que o Outro é descrito como uma instância, que na medida em que é
capaz de apreender a imagem de um Para-si, cria à revelia deste um ser-Para-outro do Para-
si. O Outro ao me ver cria imagens de mim que dizem o que sou, imagens que me aparecem
como alheias às minhas escolhas. Imagens que apontam, portanto, para a condição fática da
minha relação com o Outro. Em seguida, trata-se de uma nova dimensão do Para-si, uma
dimensão que se mostra ainda mais irredutivelmente fática, pois não basta um movimento
da liberdade em direção a conferir sentido a um fato bruto, nem de relacionar-se com o
sentido que outros deram para certos objetos: “não tenho o recurso de reassumir por minha
conta esse sentido que tenho, pois este só poderia ser me dado a título e indicação vazia”
(IDEM, 142). O Para-si padece da condição de “alienação total de si”:
“alguma coisa de mim – segundo esta nova dimensão – existe à maneira do dado, pelo menos para
mim, posto que este ser que sou é padecido, é sem ser tendo existido. Aprendo e padeço esse algo de
mim nas e pelas relações que mantenho com os outros; nas e pelas condutas dos outros para comigo”
(IBIDEM).
O que eu sou é, portanto, determinado pelo Outro configurando a alienação do Para-
si, pelo Outro, em seu ser-Para-Outro e Sartre apresenta os seguintes exemplos para explici -
tação dessa condição: ser visto como menor de idade pela sociedade me impõe uma série
de restrições e proibições; ser-Para-outro como judeu na época que o livro foi escrito na
França – ocupada pelos nazistas – também impunha outro tipo de restrições 30 . Assim, não é
possível simplesmente negar essa realidade que o Outro confere ao Para-si.
No entanto, ainda que o Outro, na medida que detém uma espécie de segredo sobre
mim, seja um limite real a minha liberdade, pois seja “uma maneira de ser que é nos imposta
sem que a nossa liberdade constitua seu fundamento” (IDEM, p. 643), ainda assim, é preciso
considerar que “o limite imposto não provém da ação dos outros. Em um capítulo prece-

30 Acerca das proibições, o autor, por exemplo, menciona que alguns restaurantes não permitiam a entrada de
judeus. Além disso, sobre este tema que aparece n' O Ser e o Nada, por assim dizer, de soslaio – nos
exemplos – cumpre ao menos pontuar que Sartre também se deteve nele noutros trabalhos: escreveu
Reflexões Sobre a Questão Judaica na mesma época, que é publicada em 1943.
71
dente, observamos que bem a tortura não nos despoja de nossa liberdade: é livremente que
sucumbimos a ela” (IBIDEM).
Talvez aqui alguém pudesse se perguntar, sobretudo no que concerne ao anti-semi-
tismo, sucumbimos livremente a tais restrições? Seriam então, se sempre escolhemos livre-
mente, os judeus responsáveis por escolher submeter-se a relações opressivas e restritivas?
Sartre não estaria exacerbando o argumento ao dizer que até a situação de tortura é esco-
lhida pelo Para-si?
Pensando no que concerne à clínica, não se estaria escorregando para o polo oposto e
sobrevalorizando o indivíduo, ao se tributar a ele todas as possibilidades de escolha, inclu-
sive numa circunstância em que se encontra tão alijado da sua liberdade? Se às vezes incor -
re-se, na clínica, num caminho de remeter tudo ao indivíduo, mas no sentido de colocá-lo
como consequência das relações familiares, ou das influências do 'meio', não se estaria
agora permanecendo nessa postura de sobrecarregar o individuo, mas com uma força que
não consegue se realizar frente às adversidades?
Pretende-se aqui mostrar que essas perguntas são sempre respondidas pela negativa
seguindo a argumentação de Sartre. Não se trata de uma outra forma de manifestar-se uma
concepção de homem31, a saber, monadológica, ou seja, que compreende o homem como
autor de sua vida, mas um autor que cria sua vida alheio ao que lhe é externo, outro.
Concepção que tem sua mais acabada formulação do pensamento liberal clássico e que é tão
importante para o surgimento da Psicologia enquanto ciência e que tem profundos ecos nas
práticas e teorias psicológicas contemporâneas. Não se trata de uma outra forma de indivi-
dualismo, embora também não prescinda da categoria de sujeito, pois o Para-si sartriano
não deixa de ser um polo organizador de experiência, algo próximo do que se pode chamar
de uma noção moderna de subjetividade. Não é, contudo, uma subjetividade, por assim
dizer, ensimesmada. Talvez possa-se pensar numa subjetividade situada . Uma forma de
compreender o sujeito como intimamente relacionado ao mundo, às coisas mesmas – no
sentido mais concreto da recepção francesa da fenomenologia –, ao Outro. Não seria exage-
rado dizer uma concepção dialética de homem remetendo ao pensamento de Hegel, pois tal

31 Este um ponto é central, embora como pano de fundo, desta pesquisa, pois seu objetivo é trabalhar
pressupostos éticos da clínica e, por isso, acaba esbarrando numa questão epistemológica. Ao se tratar da
ética na clínica acaba-se percebendo que um dos nós desse questionamento seria a concepção de homem
que norteia o trabalho do psicólogo e tal questão redunda inevitavelmente numa problematização
epistemológica. Sobre a imbricação entre ética e epistemologia, especificamente no que concerne à
Psicologia remete-se ao seguinte trabalho: FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as psicologias: Da epistemologia à
ética das práticas e discursos psicológicos, Petrópolis: Vozes, 2004. No que respeita a concepção liberal de
homem: FIGUEIREDO, L. C., A invenção do psicológico: Quatro séculos de subjetivação 1500-1900 , São Paulo,
Educ, Escuta, 1999; em especial o capítulo, 'A Gestação do Espaço Psicológico no Século XIX: Liberalismo,
Romantismo e Regime Disciplinar'.
72
como Husserl, este outro pensador teve profunda relação com as ideias de Sartre, sobretudo
n'O Ser e o Nada. Talvez a noção de ser-em-situação seja justamente um ponto em que se
pode notar a articulação dessas duas matrizes teóricas no pensamento de Sartre. Ao se ter
em mente, por exemplo, o capítulo da Fenomenologia do Espírito em que é descrita a dialé-
tica do senhor e do escravo, Independência e dependência da consciência de si: Dominação e
Escravidão e o capítulo de Sartre sobre a relações concretas com o Outro , em que o autor
descreve a relação de alteridade estabelecidas entres os polos do sadismo e do masoquismo,
nota-se que a referência é explícita, além do fato do próprio Sartre remeter a Hegel em
diversos momentos do livro.
Pode-se pensar que a chave para as questões elencadas acima encontra-se justa-
mente na forma como Sartre32 se valeu do pensamento de Hegel, em especial da dialética do
senhor e do escravo. Não cabe aqui fazer um resumo do texto de hegeliano, para não tornar
por demais longa essa digressão em que se pretende apenas apontar as relações entre Sartre
e Hegel. O que interessa é antes afirmar que numa situação de opressão – assim como a que
Hegel descreve – isso não implicará necessariamente uma obstrução total da liberdade. Se
para Hegel o escravo encontra-se numa posição, de certa forma, vantajosa, pois é por meio
do trabalho – de uma relação de negação, ou transcendência, da coisa – que ele pode ultra-
passar, ou melhor, suspender sua condição de escravo, para Sartre haveria algo análogo: o
Para-si transcende o dado bruto num movimento de negação que o permite afirma uma
liberdade ontológica. Ainda que essa liberdade não se realize – e já se insistiu que liberdade
não pode ser equiparada à realização –, ela não deixa de ser (d)A condição humana.
E aqui a referência a Hegel foi proposital. Se há uma relação em que se pode pensar
uma subjugação e opressão tão grande quanto aquela por que passaram os judeus, certa-
mente seria a relação de escravidão – aliás eles foram durante muito tempo escravos.
O que se pretendeu foi alinhavar no pensamento de Sartre a relação com Hegel, em
especial no que concerne à alteridade – tem que agora se analisa dentro do capítulo sobre a
situação – à noção de intencionalidade – quer dizer ao pensamento de Husserl – e à noção de
situação. Mostrar que para Sartre a liberdade é irredutível. Mas isso se mostra em duas pers-
pectivas, por ser situada e por ser fundamentada numa concepção dialética de homem.
Assim, sem dúvida é porque escolhemos que submetermo-nos a determinadas circunstân-
cias. Pretendeu-se mostrar esse ponto por outro caminho além da argumentação do próprio
texto.

32 E novamente aqui não se trata apenas de Sartre, mas de toda uma geração de pensadores franceses.
Remete-se aqui ao curso de Kojève que, de certa forma, sintetizou essa recepção. Cf.: KOJEVE, A. Introdução
à Leitura De Hegel, Ed.: Contraponto, Rio de Janeiro, 2010.
73
Aqui, antes de retornar ao texto, talvez caiba um breve parênteses sobre a famosa e
famigerada frase de Sartre, citada absolutamente indiscriminadamente e muitas vezes total-
mente descontextualizada, a saber, “o inferno são os outros”. Esta frase da peça Entre
Quatro Paredes33 de 1947 – portanto posterior aos textos analisados nesse trabalho – trata
justamente desse “limite real à minha liberdade”. Nessa peça o foco de Sartre é mostrar o
potencial cristalizador na visão do Outro sobre o Para-Si. O Outro transforma uma realidade
dinâmica, efêmera e indeterminada – ou seja um Para-si – em um Em-si, em algo petrifi-
cado34 e determinado; não é exagero falar em um olhar de Medusa que a tudo congela
emanando do Outro em direção do Para-si, um olhar que ao criar um Para-outro eterniza um
específico momento do Para-si despojando do Para-si sua maior característica, a contin-
gência. É exatamente esse poder congelante do olhar que Sartre retratará na peça e no capí-
tulo homônimo do livro que ora se analisa. Tanto na peça, quanto no capítulo do olhar,
Sartre não explicita, contudo, a sua noção de ser-em-situação, ou melhor, ainda que trabalhe
com essa noção não ressalta que esse limite à liberdade, embora real, não é um obstáculo à
liberdade. Donde a incompreensão dessa frase no sentido de que Sartre seria apenas um
rabugento que teria uma visão pessimista das relações de alteridade.
Falta ainda precisar um pouco mais em que sentido Sartre fala que o Ser-par-Outro é
um limite real para a liberdade – e agora pretende-se esclarecer ainda mais a referência a
temática do olhar em Sartre, em especial à peça.
“o verdadeiro limite à minha liberdade está pura e simplesmente no própria fato de que um outro
me capta como outro-objeto , e também no fato, corolário anterior, de que minha situação
deixa de ser situação para o outro e torna-se forma objetiva , na qual existo a título de
estrutura objetiva. É esta objetivação alienadora de minha situação que constitui o limite permanente
e específico de minha situação, assim como a objetivação de meu ser-Para-si em ser-Para-Outro cons-
titui o limite de meu ser. E são precisamente esses dois limites característicos que representam as
fronteiras de minha liberdade” (IDEM, p. 643-4, grifo meu).
Trata-se aqui de um momento crucial em que sintetizam-se vários pontos da argu-
mentação tecida até aqui sobre a alteridade. Há como que um “lado de fora” que o olhar do
Outro me impõe e sobre o qual “não posso agir diretamente” (IDEM, p. 644) e isso decorre
simplesmente do fato de que “minha transcendência existe para uma transcendência”
(IBIDEM), ou seja, eu, enquanto transcendência, sou objeto passível de transcendência do
Outro. “O inferno são os outros” porque o Outro detém o poder de me anular completa-
mente – em certo sentido –, retira do Para-si sua característica fundamental, justamente o
fato de não ter nenhuma característica a priori. É aqui, no olhar objetivador do Outro sobre

33 “Todos esses olhares me devoram... Ah, eu pensava que vocês seriam muito mais numerosas. Então é isso o
inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembrar: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não
precisa de nada disso: o inferno são os outros” (p. 125). SARTRE, J-P, Entre Quatro Paredes, ed: Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 2008.
34 Aqui também ganha cor a imagem de Sartre para descrever a noção de Em-si, comparando-o a uma pedra.
74
o Para-si que se encontra o limite à liberdade, tanto o limite da minha situação, quanto o
limite do meu ser. Nesse olhar eu deixo de ser, passo a ser apenas um Ser-para-Outro. Minha
situação deixa de ser uma relação dinâmica e passa, ao ser congelada, vista apenas como um
momento e, portanto, deixa de ser situação. Esse limite, todavia, só existe porque minha
relação com o outro é primariamente situada, ou seja, é por me relacionar com o outro, num
primeiro momento, como facticidade que posso num segundo momento ser visto pelo outro
apenas como um objeto, como um fato, como uma existência cristalizada, já acabada e redu-
zida em si mesma. É por isso que o Outro é considerado um inferno, pois representa para
mim algo sobre o que jamais terei qualquer poder: o Ser-para-Outro que é construído de
mim – ainda que seja feito a partir de mim – o é feito pelo poder de nadificação do Outro
sobre um dado bruto, ou melhor que atua transformando transformando as coisas em Em-
sis, o Outro, nesse sentido, não se relaciona como as coisas mesmas, mas como ser-pa-
ra-Outro que foi construído delas.
E é essa capacidade de alienação extrema que Sartre cunhará a alcunha de infernal,
pois é algo que escapa à situação: “a alienação me escapa; constitui a própria exterioridade
da situação, ou seja, seu ser-fora-para-o-outro” (IDEM, p. 644), nesse sentido,
“jamais a encontro na situação (…) Assim, o sentido mesmo de nossa livre escolha consiste em fazer
surgir uma situação que exprime tal escolha e da qual uma característica essencial é ser alienada, ou
seja, existir como forma em si para o outro” (IBIDEM).
Em síntese pode-se dizer que:
trata-se, afinal, não de um obstáculo frontal que a liberdade encontra, mas de uma espécie de força
centrífuga em sua própria natureza, uma fragilidade em sua constituição que faz com que tudo quanto
a liberdade empreende sempre tenha uma face não escolhida por ela, uma face que lhe escapa e, para
outro, será pura existência (…). Vir ao mundo como liberdade frente aos outros é vir ao
mundo como alienável. Se querer ser livre neste mundo frente aos outros, então
aquele que assim se quiser também irá querer a paixão de sua liberdade ” (IDEM, p. 645,
grifo meu).
É este “obstáculo frontal”, a alienação, que Sartre chamou de “limite real à liber-
dade”. Além disso, a alienação aparece aqui então como algo inalienável da condição
humana: o Para-si não pode deixar de ter uma face que pode se perder pela visada do Outro.
. Isso, entretanto, não constitui algo externo à situação, faz parte da situação essa perspec-
tiva alienada e alienante da relação com o Outro, este perder-se no olhar do Outro. Dessa
forma, “seria absurdo sequer sonhar em existir de outro modo que não em situação” (IDEM,
p. 644).
Realizou-se então uma digressão sobre a relação entre Hegel e a temática da alteri-
dade e um outro aparente desvio em que se traçou considerações sobre o Olhar. Todavia,
sempre com a pretensão de precisar em que sentido Sartre fala de um limite real a liber-
dade sem desviar da questão da alteridade: se no âmbito da “existência-Para-si”, somente eu

75
posso limitar minha liberdade, agora considerando a existência-Para-Outro, surgem limites
à consciência, portanto: “minha liberdade, nesse novo nível, também encontra seus limites
na existência da liberdade do outro” (IDEM, p. 644).
No entanto, estava-se antes num ponto em que após considerar que o outro é um
limite real à minha liberdade – pois detém um segredo sobre mim, configura algo do qual
me alieno de mim – e se acirrar o argumento no sentido de que até sob tortura o Para-si
escolheu sua situação, esboçava-se uma ressalva, ou melhor, começava-se a introduzir a
ideia de que “o limite imposto não provém da ação dos outros” (IBIDEM), indicando que tal
limite adviria, portanto, da ação do próprio Para-si. É nesse sentido que o Para-si escolhe a si
mesmo inclusive nessas situações de tamanha opressão, em que a liberdade parece
sucumbir.
Mas agora talvez a melhor forma de começar a compreender essa ressalva – de que
mesmo havendo um limite real, tal limite não seria uma obstrução da liberdade – com mais
cuidado, e tentando desfazer esse tipo de deturpação (pessimista) da forma como Sartre
compreende a relação de alteridade –, seja justamente a continuação do exemplo dos judeus
que aparece logo em seguida no texto. Em havendo proibições aos judeus, em certa época,
“seguindo as livres possibilidades escolhidas, posso infringir a proibição, não levá-la em consideração,
ou, pelo contrário, posso conferir-lhe um valor coercitivo que ela só pode ter devido ao peso que lhe
concedo (…). Permanece o fato de que tal proibição não se encarna em meu universo e
só perde força própria de coerção nos limites de minha própria escolha , conforme eu
prefira, em qualquer circunstância, a vida ou a morte, ou ao oposto, em certos casos particulares,
julgue preferível a morte a certos tipos de vida etc” (IDEM, p. 643, grifo meu).
Aqui reaparece com força a ideia de que é necessário que o Para-si escolha um
projeto específico para que uma certa visada do mundo configure, noutros termos, reme-
te-se novamente a imbricação entre projeto, escolha e situação. Uma proibição só se mani-
festará dessa forma a um Para-si caso em seu projeto, ou seja, em seu “universo” de possí-
veis ela seja compreendida com limite a realização. Uma situação de opressão não precisa
ser compreendida como limite para a liberdade. Diante dela, ainda é possível, ao menos
imaginar formas de escapar, ainda que não seja dada uma realização consequente, muito
menos imediata. O ponto central aqui é que a potencia de nadificação, ou transcendência do
Para-si não encontra limites a não ser onde lá onde o Para-si já o colocou previamente ao
projetar-se. “Assim, a liberdade do outro confere limites à minha situação, mas só posso
experimentar esses limites caso reassuma este ser-Para-outro que sou e lhe atribua um
sentido à luz dos fins que escolhi.” (IDEM, p. 646). Portanto, ainda que o Outro seja um
limite real à minha liberdade, posso assumi-lo como limite ou não, tudo orbita em torno do
projeto do Para-si.

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Ainda insistindo em como o limite real à minha liberdade não poda, por outro lado,
minha liberdade, é importante ressaltar como essa relação se manifesta num nível antropo-
lógico – pois até agora esteve-se num âmbito mais ontológico –, quer dizer, como se dão as
relações humanas concretas, mais que a relação entre um Para-si, que ao configurar outro
Para-si como ser-Para-Outro e limitá-lo a essa condição, transforma-o em Em-si, como se
configura a relação de reconhecimento :
“Não posso experimentar esta alienação sem reconhecer ao mesmo tempo o outro como transcen -
dência. E este reconhecimento, como vimos, não teria sentido algum se não fosse livre reconheci-
mento da liberdade do outro. Por este livre reconhecimento do outro através da minha experiência de
minha alienação, assumo meu ser-Para-outro, qualquer que possa ser, e o assumo precisamente
porque é meu traço de união com o outro” (IDEM, p. 645).
Em certo sentido o Para-si não pode escapar de relacionar-se com o seu ser-
par-Outro,
“o livre projeto de reconhecimento do outro não difere da livre assunção de meu ser-
Para-outro. Portanto, eis que minha liberdade, de certo modo, recupera seus próprios limites, pois
só posso me captar como limitado pelo outro na medida em que o outro existe para
mim, só posso fazer com que o outro exista para mim como subjetividade reconhecida assumindo
meu ser-Para-outro. Não há circulo vicioso: pela livre assunção deste ser-alienado que experimento,
faço com que, de súbito, a transcendência do outro exista para mim enquanto tal” (IDEM, p. 645, grifo
meu).
Aqui o que se viu é o momento em que a liberdade recupera seus limites: justamente
na relação de reconhecimento, que é a relação em que o Para-si aliena-se de si pelo olhar do
Outro, também é a relação em que o Para-si passa a existir de de certa forma pelo olhar o
Outro e ganha uma forma de ser, seu ser-Para-Outro, forma essa que o Para-si não pode
deixar de se relacionar, pois faz parte da manifestação da transcendência do Outro. Então a
relação de reconhecimento pressupõe um perder-se de si no olhar do Outro, mas um encon-
trar-se também nesse mesmo olhar, pois de alguma forma o Para-si deve relacionar-se com
seu ser-Para-Outro. Deve assumi-lo, embora não necessariamente isso signifique aceitá-lo
resignadamente, mas sim posicionar-se diante desse fato como liberdade diante da factici-
dade, ou seja, como outro aspecto da situação. E aqui se nota com clareza o mesmo esquema
da relação de situação, ou seja, a reafirmação do paradoxo da liberdade, mas agora sob o
prisma da relação com o Outro: é justamente porque o Outro existe para mim que ele pode
deter um segredo sobre mim, que posso ser-para-Outro me alienando, noutros termos, essa
condição de alienação depende do fato de que o Para-si é um ser-em-situação. Um ser que ao
relacionar-se com as estruturas da situação, defronta-se, sem dúvida, com uma forte adver-
sidade. Contudo, em primeiro lugar, essa adversidade só é adversidade porque está situada,
ou seja, relaciona-se a uma liberdade. Em segundo lugar, ela em si mesmo não é nada, não é
uma adversidade, é um determinado Para-si que, ao incorporá-la em seu projeto, pode ver
um determinado fato como adversidade ou não. É nesse sentido que também o reconheci-

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mento é um campo em que as relações são situadas: o ser-Para-Outro que o Outro faz de
mim só ganha só se manifesta como um movimento de alienação do Outro em relação a mim
porque o Outro existe para mim – sem dúvida, porque eu também faço do Outro um ser-pa-
ra-outro. Assim, a relação de alteridade, o reconhecimento, implica assumir que o Outro
configura a mim como um ser estático e pode ser como que um ladrão de meu ser e que eu
faço o mesmo movimento com o Outro, que disso resulta a necessidade de se reconhecer o
Outro enquanto possibilidade de transcendência. “Assim, em qualquer plano em que em
que nos coloquemos, os únicos limites que uma liberdade encontra, ela os encontra na liber-
dade” (IDEM, p. 644), ainda que seja a liberdade do Outro.
“Sua limitação, como finitude interna, do fato, de que ela não pode ser liberdade, ou seja, de que se
condena a ser livre; e, como finitude externa, do fato de que, sendo liberdade, ela existe para outras
liberdades, as quais a apreendem livremente, à luz de seus próprios fins” (IDEM, p. 644).
Na medida em que a o Outro também é uma liberdade, de uma perspectiva ontológica não
há limite à liberdade. A liberdade só é limitada pela liberdade, portanto, por si mesma. Só há
um conflito ao se considerar de uma perspectiva antropológica, pois há a minha liberdade e
a do Outro. No entanto, há também nesse âmbito a possibilidade de uma assunção de que a
relação com o Outro implica o reconhecimento do Outro enquanto transcendência, sem
deixar de ser conflituosa essa relação pode ser encarada com imanente à condição humana e
mais um fato com o qual o Para-si deve obrigatoriamente relacionar-se.
Sartre acrescenta ainda outros pontos sobre aquele exemplo do judeu: somente assu-
mindo este
“ser-judeu que sou para [os anti-semitas], que o ser-judeu aparecerá como limite objetivo externo da
situação; se ao contrário, prefiro considerar os anti-semitas como puros objetos, meu ser-judeu desa-
parecerá de imediato para dar lugar à simples consciência (de) ser livre transcendência inqualificável”
(IDEM, p. 646).
Nesse sentido, explicita-se o fato de que é sempre referido ao para-Si que o algo da factici-
dade se manifesta, inclusive a condição 'ser-judeu'.
Essa condição que o Outro impôs ao Para-si – no caso do exemplo acima, ser-judeu –
é o que Sartre chamará de irrealizáveis: “existências perfeitamente reais; mas aqueles
indivíduos para quem são realmente dados tais caracteres não são esses caracteres; e eu que
sou esses caracteres, não posso realizá-los.” (IDEM, p. 646). Não se reduz a existência de
alguém aos caracteres que outro lhe conferiu. Posso aplicar um termo para designar minha
pessoa, mas a pessoa não será reduzia a este termo. Os irrealizáveis constituem-se sobre um
fundo de possibilidade de realização, são antes, “irrealizáveis-a-realizar” (SARTRE, 1943, p.
648-9). Existe aqui um movimento que o Para-si realiza em relação ao seu Para-Outro, o
Para-si assumi de alguma forma seu Para-Outro.

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“Há aqui apenas a indicação de uma conexão a efetuar (mas que só poderá ser feita pela interiori -
zação35 e a subjetivação da vulgaridade [ou de qualquer outro caractere], ou pela objetivação da
pessoa, duas operações que encerram o imediato desmoronar da realidade em questão)” (IDEM, p.
647).
Os caracteres não são meramente assumidos, interiorizados, mas incluídos no
“meu projeto fundamental: não me limito a receber passivamente a significação 'feiura', 'enfermi-
dade', 'raça' etc., mas, pelo contrário, só posso captar esses caracteres – ao simples título de signifi -
cação – a luz de meus próprios fins. É o que exprimimos – mas invertendo completamente os termos
– ao dizer que o fato de ser de certa raça pode determinar uma reação de inferioridade ou de orgulho,
em outras palavras, só podem aparecer com uma significação que minha liberdade lhes confere; quer
dizer, mais uma vez, que tais significações não para o outro, mas que só podem ser para mim caso eu
as escolha (…). Não escolho ser para o outro o que sou, mas só posso tentar ser para mim o que sou
para o outro escolhendo-me tal como apareço ao outro, ou seja, por meio de uma assunção eletiva”
(IDEM, p. 648).
Pode-se agora, a partir dessa compreensão das características que o Outro me atribui
e das possibilidades que tenho de lidar com elas, compreender mais um nuance que Sartre
pretende apresentar com o exemplo dos judeus: “Um judeu não é primeiro judeu para ser
envergonhado ou orgulhoso depois; mas é seu orgulho de ser judeu, sua vergonha ou indife-
rença que irá revelar a si mesmo seu ser-judeu; e este ser-judeu nada mais é além da livre
maneira de assumi-lo” (IDEM, p. 648). Há, nesse sentido, uma “livre reassunção como limites
dos limites que queremos interiorizar” (IDEM, p. 650).
“O irrealizável aparece como limite dado a priori à minha situação (posto que sou tal ou qual para o
outro), e consequentemente, como existente, sem esperar que eu lhe conceda a existência; e também
aparece, ao mesmo tempo, como não podendo existir salvo no e pelo livre projeto pelo qual irei assu-
mi-lo – assunção essa que, evidentemente idêntica à organização sintética de todas as condutas que
visam realizar para mim o irrealizável. Simultaneamente, uma vez que se dá a título de irrealizável,
manifesta-se para-além de todas as tentativas que posso fazer para realizá-lo. Portanto, que será
senão precisamente um imperativo esse a priori que, para ser, requer comprometimento, colocan-
do-se de saída para-além de toda tentativa de realizá-lo? Com efeito, o irrealizável é a interiorizar, ou
seja, provém de fora, como já constituído; mas precisamente a ordem, qualquer que seja, sempre se
define como uma exterioridade reassumida em interioridade” (IDEM, p. 649, grifo meu).
Aparace aqui novamente o esquema de uma relação situada: o irrealizável, enquanto
aquele segredo que uma liberdade detém sobre outra, é um limite; é também apenas um
limite ao ser interiorizado no livre projeto de uma liberdade. O ponto fulcral é que não se
pode, pelo menos em alguma media deixar de ser interiorizado pelo Para-si, é inescapável a
assunção pelo Para-si de seu Para-Outro – ainda que não seja condenado a uma aceitação
plena – ou seja, é irredutível a condição de facticidade da relação com o Outro:
“Embora disponha de uma infinidade de maneiras de assumir meu ser-Para-Outro, simplesmente, não
posso não assumi-lo; reencontramos aqui esta condenação à liberdade que definimos anteriormente
como facticidade; não posso abster-me totalmente com relação àquilo que sou (para ou outro) – pois
recusar não é abster-se, mas outro modo se assumir –, nem padecê-lo passivamente (o que em certo

35 Trata-se de algo muito próximo ao movimento de exteriorizar o interior e interiorizar o exterior que Sartre
referirá em Questão de Método. Um movimento que tenta descrever a dinâmica da relação entre o
indivíduo e a situação, de forma singular, sem abdicar de conferir importância para tanto a força da
liberdade, quanto para a situação. Esse é um ponto que poderia ser explorado para sustentar a hipótese de
que a noção de situação pode ser uma ponte entre o Sartre metafísico e o marxista (conforme discutiu-se
na primeira parte deste trabalho).
79
sentido dá no mesmo); no furor, na ira, no orgulho, na vergonha, na recusa nauseante ou na reivindi-
cação jubilosa, é necessário que eu escolha ser o que sou” (IDEM, p. 648).
Relacionar-se com os outros não é, portanto, uma escolha, tal como não se escolhe
ser livre – o que se chamou de facticidade da liberdade. Apenas se escolhe como ser diante
disso. É esta a ideia central de situação. Assim, a noção sartriana de liberdade não é uma
completa e irrestrita realização de meus desígnios, mas justamente a certeza impossibili-
dade da realização plena deles sem, entretanto, que isso seja uma completa anulação do
indivíduo diante das condições fáticas, das adversidades. Antes, a liberdade para Sartre
implica justamente uma eterna disputa do indivíduo com o que lhe é adversidade – o que
lhe é outro. A liberdade não advém da vitória nessa disputa – ou seja, da realização de uma
vontade – mas nasce exatamente das várias possibilidades de escolha do indivíduo lidar com
as adversidades.
Estas são, como se viu, limites externos à liberdade.
“Mas esses limites externos da liberdade, precisamente por serem externos e só se interiorizarem
como irrealizáveis, jamais serão um obstáculo real para a liberdade, nem um limite padecido. A
liberdade é total e infinita, o que não significa que não tenha limites, mas sim que
jamais os encontra. Os únicos limites com os quais a liberdade colide a cada instante são aqueles
que ela impõe a si mesmo.” (IDEM, p. 651, grifo meu).
Há ainda que se acrescentar a relação entre os irrealizáveis e o que Sartre chamará
de situações-limite, pois sua caracterização introduz aspectos da próxima estrutura da
situação, a Morte.
“A liberdade retoma por sua conta os limites irrealizáveis e faz com que estes ressurjam na situação ao
escolher ser liberdade limitada pela liberdade do outro. Em consequência, os limites externos da situ-
ação tornam-se situação-limite, ou seja, com a característica 'irrealizável' são incorporados à situação
a partir do interior como 'irrealizáveis a realizar”; enquanto reverso escolhido e fugidiço de minha
escolha, tais limites se convertem em um sentido de meu esforço desesperado por ser, embora situ-
ados para-além deste esforço, exatamente como a morte – outro tipo de irrealizável ainda por consi -
derar – torna-se situação-limite desde que tomada como um acontecimento da minha vida, apesar de
apontar ara um mundo onde minha presença e minha vida não mais se realizam, ou seja, um para-
além da vida” (IDEM, p. 650).
A morte é um irrealizável e, como tal, é interiorizado pelo Para-si: há um para-além
da vida assim como há um para-além da minha liberdade, ou uma situação para-além da
minha situação que só ganha sentido pela minha liberdade. Existe um “ser-livre-para…” por
meio do qual o Para-si se projeta em direção a possíveis,
“há a projeção de si rumo a um 'último', o qual, interiorizado por isso, torna-se sentido temático e
fora de alcance de possíveis hierarquizados. Podemos 'ser-para-ser-francês', 'ser-para-ser-operário'; o
filho de um rei pode 'ser-para-reinar'. Trata-se aqui de limites e estados negadores de nosso ser que
temos de assumir” (IDEM, p. 650).
Como será trabalhado esse ponto posteriormente, para terminar traz-se agora alguns exem-
plos em que Sartre explicita essa “projeção de si rumo a um último” que cria um sentido, um
caminho a ser perseguido. O exemplo do sionista, do burguês e do operário:

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“judeu sionista assume resoluto sua raça, ou seja, assume concretamente e de uma vez por todas a
alienação permanente de seu ser; da mesma forma, o operário revolucionário, por seu próprio projeto
revolucionário, assume um 'ser-para-ser-operário' (...) o burguês faz-se burguês negando que existam
classes, assim como o operário “ao afirmar seu “ser-na-classe” por sua atividade revolucionária”
(IBIDEM, p. 650-51).

6º – Minha morte: Sartre a partir de/contra Heidegger, absurdo da


morte, expectativa

O argumento nodal que organizará toda esta parte é que a morte não deveria ser
compreendida como algo “inumano por excelência” (SARTRE, 1943, p. 651): aqui, pelo
contrário, pretende-se considerá-la como “um acontecimento da vida humana” (IDEM).
De pronto parte para um exemplo oriundo da matemática. Seja pelo começo ou pelo
fim de uma série de eventos, a morte, enquanto fim, sempre faz parte da série. A morte é
vista como um limite. Todo limite tem uma face interna à série e uma externa que trans-
borda a série, “seu ser pertence a um processo existente e, de certo modo, constitui sua
significação” p. 651. Em seguida, com a mesma pretensão, utiliza-se de um exemplo análogo
do universo musical. Exemplo do acorde final (de conclusão) de uma melodia que
“por uma de suas faces, olha em direção ao silêncio, ou seja, o nada de som que irá suceder a melodia;
em certo sentido, tal acorde é feito de silêncio, posto que o silêncio se seguirá já está presente neste
acorde de resolução como sendo a significação do mesmo. Mas, pela outra face, o acorde final adere a
esse plenum de ser que é a melodia considerada: sem ele, esta melodia permaneceria pairando no ar, e
esta indecisão final iria refluir de nota em nota para conferir a cada uma destas um caráter
inacabado” (IDEM, p. 651-2).
Sartre, depois de expor seu ponto que tentará demonstrar ao londo desta sub-parte,
realiza o que se pode chamar de uma limpeza conceitual: passa em revista algumas concep-
ções sobre a morte, mas com a pretensão de descartá-las. São três as concepções descar-
tadas: a realista, a humanista e idealista. A morte, na primeira delas, “aparecia como
contato imediato com o não-humano; com isso, a morte escapava ao homem, ao mesmo
tempo que o moldava com o absoluto não-humano” (IDEM, p. 652). Nessa concepção sobe-
jaria uma ideia de que aquilo que se mostra à consciência – no caso, a morte – tem uma
realidade autônoma, independente do sujeito cognoscente, ela seria isso que se nota a
primeira vista, a não-vida, e, em consequência, o não-humano enquanto o que escapa ao
homem absolutamente. Dessa forma, a morte seria considerada como algo exterior à vida,
não como o acorde final que faz parte da música integrando sua conclusão e o vazio do
silêncio. Na segunda concepção (idealista e humanista), a morte não é mais externa à vida, a
morte não significa mais um limite: “bastara então, com efeito, colocar-se do ponto de vista
deste limite para iluminar o homem com uma luz não-humana” (IDEM, p. 652). Idealista pois

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é uma concepção que se funda numa subjetividade como criadora do mundo, uma subjetivi-
dade que pode introduzir a morte no seio da vida, ao nem esse acontecimento absoluta -
mente estranho ao homem, considerar como irredutível. Dessa forma a morte ganha sentido
como doadora de sentido para a vida. Essa tentativa de recuperar a morte – do exílio que as
concepções realistas (mais próximas de uma metafísica religiosa ) relegaram –, foi obra de
romancistas, Rilke e Malraux:
“era suficiente considerar a morte como último termo pertencente à série. Se a série recupera assim
seu 'terminus ad quem' [limite para alguém], precisamente por causa deste 'ad' que indica sua interio-
ridade, a morte como fim da vida interioriza-se e humaniza-se; o homem há nada mais pode encon-
trar senão o humano; já não há mais outro lado da vida, mas ainda vida” (IDEM, p. 652).
Com isso, “a morte converte-se no sentido da vida, assim como o acorde de resolução
é o sentido da melodia” (IBIDEM).
E chamada de humanista porque, dar centralidade à vida – a morte como iluminando
a vida pelo movimento do homem de doar sentido a ela, tornando-a singular – , implica,
compromete, responsabiliza o sujeito por suas ações:
“Mas a morte assim recuperada não permanece simplesmente humana, mas torna-se minha; ao interi-
orizar-se, ela individualiza; já não é mais o grande incognoscível que limita o humano, mas o fenô-
meno da minha vida pessoal que faz desta vida uma vida única, ou seja, uma vida que não recomeça,
uma vida na qual não podemos ter uma segunda chance. Com isso, torno-me responsável pela minha
morte, tanto quanto por minha vida. Responsável não pelo fenômeno empírico e contin -
gente de meu trespasse, mas por esse caráter de finitude que faz com que minha
vida, como minha morte, seja minha vida ” (IDEM, p. 652-3, grifo meu).
A morte, em síntese, quando compreendida no interior da vida, passa a ser um
evento singular, que diz respeito a um indivíduo único e incomparável, não mais à humani-
dade inteira. É nesse sentido que a morte passa a ser minha. E configura-se uma nova esca-
tologia – distinta da cristã (que é a forma mais acabada da concepção realista) que defende
um renascimento – que não admite a existência de uma outra chance, de outra vida; ou seja,
se a concepção realista, por compreender a morte como externa à vida e em certa medida
como nunca presente, como algo distante, que nunca acontecerá, desresponsabiliza o
homem por suas ações, por outro lado, a concepção idealista, por incluir a morte como um
acontecimento da vida, implica o homem em suas escolhas, pois, no limite nunca poderão
ser refeitas.
Segundo Sartre, é Heidegger quem configura filosoficamente essa concepção – ele a
recupera da literatura de espírito romântico:
“a morte se converteu na possibilidade própria do Dasein [Ser-aí], definindo-se ao ser da realidade-
humana como 'Sein zum Tode' [Ser-para-Morte]. Na medida em que o Dasein determina seu projeto
rumo à morte, realiza a liberdade-para-morrer e constitui a si mesmo como totalidade pela livre
escolha da finitude” (IDEM, p. 653).
Sartre indica pontos em comum, sem dúvida, mas precisa distanciar-se de Heidegger
no que concerne à concepção de morte. Essa recuperação da morte pode ser útil na medida

82
em que, enquanto limite à liberdade, ao ser interiorizada, é trabalhada pela liberdade, ou
seja, a interiorização da morte, possibilita a recuperação da morte pela liberdade. Até agora,
portanto, apresentou-se outras concepções da morte, mas para tratá-la da perspectiva
sartriana, é necessário – segundo o autor – recomeçar a questão do início.

Parte-se então para a perspectiva de Sartre sobre a morte. Se o próprio


conceito de inumano é um conceito humano,
“portanto, ainda que a morte, Em-si, fosse uma passagem a um absoluto não-humano, é preciso aban-
donar qualquer esperança de considerá-la uma espécie de clarabóia iluminando esse absoluto. A
morte nada mais revela senão acerca de nós mesmos, e isso de um ponto de vista humano. Significará
então que a morte pertence a priori à realidade humana [, como quer Heidegger]?” (IDEM, p. 653).
Na verdade, é preciso, segundo Sartre, ao se pensar sobre a morte, antes de mais
nada, é preciso “sublinhar o caráter absurdo da morte . Nesse sentido, deve ser rigoro-
samente afastada toda tentação de considerá-la um acorde de resolução no termo de uma
melodia” (IDEM, p. 654), isto é, encará-la como um acontecimento que, ao concluir, confere
sentido a tudo que lhe precedeu.
Com o intuito de explicitar essa contingência da morte Sartre expõe o exemplo do
condenado à morte . Num primeiro momento numa compreensão heideggeriana, para,
em seguida apresentar como compreender fenomenologicamente a morte segundo sua
perspectiva que pretende ressaltar a impossibilidade de prever, esperar ou antecipar a
morte: ela sempre sobrevêm de surpresa e num sobressalto, pegando-nos desprevenidos
num susto – tudo isso numa descrição que adere bem à conjuntura sócio-política da época
que foi escrito o ensaio, quando, por exemplo, Sartre esteve preso (1940-41) ele viu compa-
nheiros serem condenados:
“Estamos na situação de um condenado entre condenados que ignora o dia de sua execução, mas vê
serem executados a cada dia seus companheiros de cárcere. Não é totalmente exato: melhor seria
comparar-nos a um condenado à morte que se prepara valentemente para ao derradeiro suplício,
toma todos os cuidados para desempenhar um bom papel no cadafalso e, no meio tempo, é levado por
uma epidemia de gripe espanhola” (IDEM, p. 654).
Heidegger é acusado de prestidigitação ao armar um círculo vicioso, mas antes de
expor a contradição, Sartre recompõe o argumento de Heidegger:
“ele começa por individualizar a morte de cada um de nós, estabelecendo que é a morte de uma
pessoa, de um indivíduo, a 'única coisa que ninguém pode fazer por mim', em seguida, utiliza esta
individualidade incomparável que conferiu à morte a partir do Dasein de modo a individualizar o
próprio Dasein: é projetando-se livremente rumo à sua possibilidade última que o Dasein terá acesso à
existência autêntica e irá desgarrar-se da banalidade para alcançar a unicidade insubstituível da
pessoa” (IDEM, p. 654).
Dessa forma, Heidegger, explicita que: “Pode-se esperar uma morte em particular,
mas não a morte” (IBIDEM). Isso porque, “Se, com efeito, o sentido de nossa vida converte-se
em expectativa da morte, esta, ao sobrevir, nada mais pode senão colocar sua marca sobre a

83
vida” (IBIDEM). No entanto, o que Sartre argumenta é justamente que não é minha morte,
uma morte individualizada que virá me atingir, a minha morte nunca se mostra para mim,
quando ela sobrevier, já estarei morto. Nesse sentido, a única que morte que existe é a
morte, precisamente aquela que, para Heidegger, em nada afeta o homem singular. Sartre
acusa Heidegger de usar de má-fé no raciocínio ao dizer que só eu posso morrer minha
morte, pois para o Para-si, nenhuma das possibilidades de experiência que ele pode ser
podem ser vividas por outro. Mas não se trata de uma experiência singular vivida pelo Para-
si, mas antes uma ipseidade (característica absolutamente singular) constituinte de todo
Dasein:
“Assim, por este ponto de vista, o amor mais banal, é, tal como a morte, insubstituível e único:
ninguém pode amar por mim. Ao contrário, se considerarmos meus atos no mundo do ponto de vista
de usa função, sua eficiência e seu resultado, por certo, o Outro pode fazer o que eu faço” (IDEM, p.
655).
No entanto,
“não há qualquer virtude personalizadora que seja peculiar à minha morte. Muito pelo contrário, a
morte só se torna minha morte caso se coloque já na perspectiva da subjetividade: é minha subjeti -
vidade, definida pelo Cogito pré-reflexivo, que faz minha morte algo subjetivo
insubstituível. Não é a morte que confere a meu Para-si a insubstituível ipseidade:
neste caso, a morte não poderia caracterizar como minha morte pelo fato de ser
morte, e consequentemente, sua estrutura essencial, de morte não basta para torná-la este aconteci-
mento personalizado e qualificado que podemos esperar” (IDEM, p. 655-6, grifo meu).
Agora é necessário precisar que, para Sartre, há dois sentidos do verbo esperar :
expectar (ter expectativa de que algo aconteça) e esperar algo, e sendo assim, “expectar a
morte não é esperar a morte. Só podemos esperar um acontecimento determinado, em vias
de se realizar por processos igualmente determinados” (IDEM, p. 656). Posso esperar o trem
chegar, que chega em tal estação num determinado horário, trata-se de um sistema relativa-
mente isolado. Posso também dizer que tenho a expectativa de que o trem se atrase.
“Mas, precisamente, a possibilidade de minha morte significa apenas que não sou biologicamente
senão um sistema relativamente fechado, relativamente isolado; assinala somente o pertencer de meu
corpo à totalidade dos existentes” (IBIDEM).
A morte, todavia, é de um tipo de acontecimento que “pertence à categoria do impedimento
imprevisto, inesperado, que se deve sempre levar em conta, conservando seu caráter especí-
fico de inesperado, mas que não podemos esperar, posto que se perde por si mesmo no inde-
terminado” (IBIDEM).
Contudo, talvez se pudesse perguntar: mas no que concerne ao envelhecimento, não
é esperado que a morte ocorra? Ainda que Sartre aponte uma diferença entre a “morte no
limite da velhice” e a “morte que nos aniquila na maturidade ou juventude”. Esperar aquela
é considerar a vida como uma “realização limitada”, esperar a segunda é considerar a vida
“uma empresa falida”:

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“Desse modo, não posso dizer que o minuto que passa esteja me aproximando da morte. É verdade que
a morte se acerca se levo em consideração, de maneira ampla, o fato de que minha vida é limitada.
Mas, no interior desses limites, bastante elásticos (posso morrer centenário ou amanhã, aos trinta e
sete anos), não posso saber, com efeito, se a vida me aproxima ou me distancia desse termo. (…) [, ou
seja,] o próprio da morte é que ela pode sempre surpreender antes do tempo aqueles
que a esperam para tal ou qual data ” (IDEM, p. 657, grifo meu).
Noutras palavras que sintetizam com força o argumento central:
“Se é somente o acaso que determina o caráter de nossa morte, e, portanto, de nossa vida, sequer
inclusive a morte que mais se assemelha a um desfecho de melodia pode ser esperada como tal; o
acaso, ao determiná-la, dela subtrai todo caráter de fim harmonioso” (IDEM, p. 658)
Ao subtrair essa harmonia final, o absurdo da morte traz consigo a impossibilidade
de iluminar a vida – eis aqui o ponto de discórdia com Heidegger. A morte é antes um acon -
tecimento que nega a minha vida, ela não dá anima à vida, mas lhe retira substância:
“Assim, esta perpétua aparição do acaso no âmago de meus projetos não pode ser captada como
minha possibilidade, mas sim, ao contrário, como nadificação de todas minhas possibilidades, nadifi-
cação essa que já não mais faz parte de minhas possibilidades. Logo, a morte não é minha possi -
bilidade de não mais realizar presença no mundo, mas uma nadificação sempre
possível de meus possíveis e que está fora de meus possíveis ” (IDEM, p. 658, grifo meu).
Mostrar-se-á agora este fato “partindo da consideração das significações” (IDEM, p.
658):
“A realidade humana é significante. Quer dizer que faz anunciar a si mesmo aquilo que é por aquilo
que não é, ou, se preferirmos, ela é porvir para si própria. Portanto, está perpetuamente comprome-
tida em seu próprio futuro (…). Enquanto futuro, com efeito, o porvir é pré-esboço de um presente
que será; nós nos entregamos às mãos desse presente que, sozinho, a título de presente, deve poder
confirmar ou invalidar a significação pré-esboçada que sou” (IBIDEM).
A vida retira de si mesma sua significação, não é a inevitabilidade da morte que lhe
confere. A morte como estranha a mim, como um acontecimento absolutamente desconhe-
cido para mim, nunca chega para mim, quando chega aqui já não estou; a morte encarada
dessa forma não pode ser algo com um potência anímica, pelo contrário é justamente o
momento em que a vida se retira. É o futuro, é a projeção do Para-si no futuro (expressão
redundante, pois projeção implica sempre lançar-se no futuro), que rebate sua força para o
presente e o passado. E, por mais que a morte seja o futuro último inescapável, ele fenome -
nologicamente é vivido sempre como se a morte nunca estivesse, nem jamais fosse estar,
presente.
Ao se tentar compreender essa relação entre futuro, projeto e significação – que já se
tratou quando se analisou a estrutura 'meu passado' – agora com a pretensão de desarti-
cular a concepção heideggeriana de morte adentra-se ao que Sartre chamou de paradoxo
da translucidez-opacidade das condutas : minha conduta é para mim (ao cogito pré-
reflexivo) translúcida e, ao mesmo tempo, “disfarçada por uma determinação que devemos
esperar” (IDEM, p. 659), isto é, ela mostra-se ao esconder-se e esconde-se ao exibir-se. Aqui
opera novamente aquele esquema de figura-fundo da Gestalt-theorie em que a percepção é

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sempre de uma totalidade, mas nunca total: vê-se, por exemplo, uma parte sobre um fundo e
só se percebe as duas vinculadamente, ainda que o que esteja no fundo não tenha a mesma
visibilidade, sendo então opaco em relação o translúcido que se mostra com mais clareza 36.
No que respeita às condutas, elas sempre se manifestam nessa ambiguidade de mostrar-se
escondendo-se: para mim tem um significação clara, que pode, no entanto, não se mostrar
da mesma forma para o outro, assim como pode também mudar sua significação pela minha
relação de transcendência com o tempo. “Assim, nossa liberdade posterior, na medida em
que não é nossa liberdade atual, mas sim o fundamento de possibilidades que ainda não
somos, constitui como que uma opacidade em plena translucidez” (IBIDEM), isto é: o desco-
nhecimento só se mostrou desta forma após passar a ser conhecido. O opaco, o disfarçado
só se torna algo observável ao se romper a trama da opacidade.
Sartre apresenta o exemplo da vocação religiosa 37 para mostrar como que as
significações e o projeto é que iluminam minha vida – ao invés da morte. Trata-se da situ-
ação hipotética em que um jovem que, conquanto tenha certeza do sentido místico de suas
condutas, às vezes questiona-se, e precisa remeter todas suas decisões ao seu futuro cons-
tantemente para confirmá-las: “o adolescente é às vezes perfeitamente consciente do
sentido místico de suas condutas e, outras vezes, deve remeter-se a todo seu futuro para
decidir se está 'passando por uma crise puberdade' ou comprometendo-se verdadeiramente
no rumo de sua devoção” (IDEM, 659).
Isso posto, pode-se compreender melhor o sentido de espera com que Sartre
trabalha, sua concepção da vida como espera. Espera articula-se com a temporalidade e
nosso projeto, enquanto finalidade:
“daí a necessidade de esperar por nós mesmos. Nossa vida nada mais é do que uma longa espera: em
primeiro lugar, espera pela realização de nossos fins (estar comprometido em um empreendimento é
esperar seu resultado); sobretudo, espera por nós mesmos” (IBIDEM).
Há ainda que se acrescentar no que concerne à espera e ao fato de que a vida é signi-
ficante – confere significado – independente da morte, que a vida, ao passar pelo processo
de temporalização, também dela mesma deriva-se a morte. Sartre vira de pelo avesso a
concepção heideggeriana de morte, sem contudo, abrir mão da responsabilidade que a inte-
riorização da morte na vida traria consigo. Realiza isso justamente porque se o fato primor -
dial da morte é a sua contingência, o Para-si deve responsabilizar-se pela forma como

36 Esse mesmo esquema sustenta a crítica à noção de Inconsciente da Psicanálise, conforme tentou-se
argumentar na nota 22. É também muito semelhante à noção de sartriana de situação, pois nenhum dos
termos (nem figura, nem fundo; nem liberdade, nem adversidade) poderiam ser pensados isoladamente. o
que parece unificar esses ferramentas conceituais todas é justamente a intencionalidade husserliana com
seu rompimento da cisão sujeito objeto.
37 Este exemplo é retomado do momento em que se tratou das significações, na estrutura: Meu passado, lá se
chamou de exemplo da crise mística (p. 46).
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projeta suas escolhas. Noutras palavras, para Sartre é a vida que confere agora significação
para a morte, e isso ocorre porque o Para-si é na
“medida em que se temporaliza. É preciso também considerar nossa vida como constituída não
somente de esperas, mas de esperar, por sua vez, esperam esperas. Esta, a própria estrutura da ipsei -
dade: ser si mesmo é vir a ser. Todas essas esperas comportam evidentemente uma referência a um
último termo que seja esperado sem mais esperar. Um repouso que seja ser e não mais espera de ser.
Toda série é interrompida nesse último termo, o qual, por princípio, jamais é dado e constitui o valor
de nosso ser, ou seja, evidentemente, uma plenitude do tipo 'Em-si-Para-si'” (IDEM, p. 659).
Ainda poder-se-ia continuar com a impressão de que fenomenologicamente a morte,
ao ser o último acontecimento desnuda todas as escolhas do Para-si: somente este último
termo daria o sentido de toda a vida. Com a morte,
“ficaríamos sabendo para sempre se tal ou qual experiência de juventude foi frutuosa ou nefasta, se
tal ou qual crise de puberdade era simples capricho ou real pré-formação de meus comprometimentos
posteriores; a curva de nossa vida estaria estabelecida para sempre” (IDEM, p. 660).
Contudo – e este é um ponto central da crítica sartriana a Heidegger –, se assim fosse,
o Para-si não seria livre, pois o sentido de suas escolhas seria externos e ele:
“se o encerramento da conta é que dá a nossa vida seu sentido e seu valor, pouco importa que todos os
atos com os quais é feita a trama de nossa vida tenham sido livres: o próprio sentido desses atos nos
escapa se não escolhemo, por nós mesmos, o momento em que a conta será fechada” (IBIDEM).
Buscou-se mostrar, então, que, “partindo da consideração das significações” (IDEM,
p. 658), para Sartre, “se a morte não é livre determinação de nosso ser, não pode terminar
nossa vida” (IBIDEM), além disso, é a própria vida que confere significação a si mesma, pelo
movimento do Para-si de projeção no futuro, pela temporalização; confere inclusive sentido
à morte:
“já nem podemos sequer dizer que a morte confere à vida um sentido procedente do lado de fora: um
sentido somente pode derivar da própria subjetividade. Como a morte não aparece no fundamento de
nossa liberdade, só pode tirar da vida toda significação.” (IDEM, p. 660-1).
O autor, em seguida, apresenta o exemplo do jovem que ambicionava ser um
grande escritor : esperar ser um grande escritor não seria suficiente, pois toda espera
contém um germe de ambiguidade, de irrealidade, de um caráter irrealizável: “seria obsti-
nação vaidosa e insensata, ou compreensão profunda de seu valor, de acordo com os livros
que escrevesse” (IDEM, p. 661). A possibilidade da morte incidir a qualquer momento em
que o escritor está se testando “é o bastante para que tudo incida no indeterminado”
(IDEM). Com a morte toda espera perde sua significação, ela é justamente a ocasião, por
excelência, sem significação, devido ao seu caráter contingente.
“Assim, a morte jamais é aquilo que dá sentido à vida: pelo contrário, é aquilo que, por princípio,
suprime da vida toda significação. Se temos de morrer, nossa vida carece de sentido, porque seus
problemas não recebem qualquer solução e a própria significação dos problemas permanece indeter-
minada” (IBIDEM, p. 661).
Inclusive o suicídio também não escaparia a esse fato, pois
“não pode ser considerado um fim de vida do qual eu seria o próprio fundamento. Sendo ato de minha
vida, com efeito, requer uma significação que só o porvir pode lhe dar; mas como é o último ato de

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minha vida, recusa a si mesmo este porvir; assim, mantém-se totalmente indeterminado” (IDEM, p.
661-2).
Sartre neste excerto sintetiza todos os pontos que até agora foram trabalhados:
“Essas observações, como se perceberá, não derivam da consideração da morte, mas, ao contrário, da
consideração da vida; é por que o Para-si é o ser para o qual o ser está sempre em questão em seu ser,
é por que o Para-si é o ser que exige sempre um depois, que não há lugar algum para a morte no que
ser que é o Para-si. A espera da morte destruiria a si mesmo, pois seria negação de toda espera. Meu
projeto rumo a uma morte é compreensível (suicídio, martírio, heroísmo), mas não o projeto rumo a
minha morte como possibilidade indeterminada de não mais realizar minha presença no mundo, pois
tal projeto seria destruição de todos os projetos. Assim, a morte não poderia ser minha possibilidade
própria; não poderia sequer ser uma de minhas possibilidades” (IDEM, p. 662).
Entretanto, se a morte não é minha, abre-se então espaço para construção da imbri-
cação entre os temas da morte e da alteridade:
“a morte, na medida em que pode revelar-se a mim, não é apenas a nadificação sempre possível de
meus possíveis – nadificação fora de minhas possibilidades – ou somente o projeto que destrói todos
os projetos e destrói a si próprio, a impossível destruição de minhas esperas: ela é o triunfo do
ponto de vista do outro sobre o ponto de vista que sou sobre mim mesmo ” (IBIDEM,
grifo meu).
É exatamente por representar o olhar mortífero e petrificante do Outro que a morte
significa a nadificação do Para-si, não é por si mesma, mas precisamente porque advém de
um outro lugar, porque é exterior ao Para-si.
“A morte, com efeito, não é nadificação de minhas possibilidades a não ser pelo seu lado negativo: de
fato, uma vez que sou minhas possibilidades somente pela nadificação do ser-Em-si que tenho-de-ser,
a m morte enquanto nadificação de uma nadificação é posicionamento de meu ser como Em-si (…).
Enquanto o Para-si está 'em vida', transcende seu passado rumo a seu porvir, e o passado é aquilo que
o Para-si tem-de-ser. Quando o Para-si 'deixa de viver', esse passado não é igualmente extinto: a desa-
parição do ser nadificador não o atinge na parte de seu ser que é do tipo do Em-si; ele submerge no
Em-si. Minha vida inteira é; isso não significa que seja uma totalidade harmoniosa, mas sim que
deixou de ser seu próprio 'em suspenso' e já não pode modificar-se pela simples consciência que tem
de si mesmo. Muito pelo contrário, o sentido que um fenômeno qualquer desta vida fica determinado
daqui por diante, não por ele mesmo, mas por esta totalidade em aberto que é a vida interrompida.”
(IDEM, p. 662-3).
Em vida o Para-si atualiza constantemente seu passado no futuro, o passado para o
Para-si tem aquele conteúdo fático do qual o Para-si não pode deixar de assumir, mesmo
negando-o. Na morte, o passado não deixa de existir, continua existindo com Em-si, pois
perde todo seu caráter que lhe definia como Para-si, a evanescência, seu caráter eterna-
mente de sursis (de estar em suspenso). Sendo assim, não perde seu caráter significante,
mesmo sendo uma existência interrompida – enquanto existência que pode mudar. Por
exemplo, um ato específico, seja qual for, é possível qualificá-lo de
“'covardia' ou 'indelicadeza', sem perder de vista, todavia, o fato de só a cessação contingente deste
'ser-em-perpétuo-em-suspenso' que é o Para-si vivo permite, sobre o fundamento de uma absurdi-
dade radical, conferir o sentido relativo ao episódio considerado, e de que esse sentido é uma signifi-
cação essencialmente provisória, cujo caráter provisório passou acidentalmente ao definitivo” (IDEM,
p. 663).
A morte, para o Para-si, não é, em certo sentido, morte por dois motivos, pois sempre
lhe advém como algo externo e absurdo e porque o Outro detém neste momento uma

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espécie diferente de verdade sobre o Para-Si. É o Outro que agora confere vida à minha
morte:
“Toda descrição da própria vida, quando tentada pelo Para-si, é projeto de si para-além, desta vida e,
uma vez que o projeto alterador está, ao mesmo tempo, aglomerado à vida que ela altera, a própria
vida de Pedro metamorfoseava seu sentido temporalizando-se continuamente. Mas, agora que sua
vida está morta, somente a memória do Outro pode impedir que ela atrofie até sua plenitude de Em-si,
rompendo todas as suas amarras com o presente. A característica de uma vida morta é ser
uma vida da qual o Outro se faz guardião ” (IDEM, p. 663, grifo meu).
Guarda e vela em memória. Lembrar um morto é lembrar de sua existência singular,
ao passo que esquecer é dissolver a individualidade numa massa amorfa, esquecer não é
“nulificar-se, mas perder a existência pessoal para ser constituído com outros em existência
coletiva” (IDEM, p. 664). É este um diferente aspecto a ser ressaltado do Ser-para-Outro,
agora relacionando seu caráter de Em-si ao olhar o Outro.
Em certa perspectiva viu-se brevemente esta relação Para-si, Outro e Morte, mas da
perspectiva do morto, mas invertendo agora: descrevendo fenomenologicamente pelo
prisma do morto, nota-se que é fundamental na constituição do ser-para-Outro essa vincu-
lação com a morte:
“o outro não pode estar primeiro sem contato com os mortos para depois decidir (ao para que as
circunstâncias decidam) ter tal ou qual relação com certos mortos em particular (…). Na realidade, a
relação com os mortos – com todos os mortos – é uma estrutura essencial da relação
fundamental que denominamos 'ser-Para-outro'. Em seu surgimento no ser, o Para-si deve
tomar posição com relação aos mortos; seu projeto inicial organiza me vastas massas anônimas ou em
individualidades distintas; e determina o afastamento ou a proximidade absoluta tanto dessas massas
coletivas como dessas individualidades; estende, temporalizando-se, distâncias temporais entre elas e
si mesmo (…); fazendo-se anunciar pelo seu próprio fim que é, o Para-si determina a importância
própria das coletividades ou individualidades desaparecidas” (IDEM, p. 664, grifo meu).
Aqui salta aos olhos a relação entre a estrutura do passado, do lugar e da morte. Meu
lugar implica uma pletora de possíveis no que respeita a relação com a morte: nascer em tal
lugar, é vincular-se ao passado de uma determinada sociedade, relacionar-se inelutavel-
mente a alguns antepassados. Nesse sentido, a relação, inevitável, com a morte traz ao Para-
si um lugar específico no mundo.
Essa relação, é preciso acrescentar, é mais uma das relações às quais o Para-si não
escapa:
“Reencontramos aqui a relação originária que une a facticidade à liberdade; escolhemos uma atitude
em relação ao mortos, mas é impossível não escolher uma que seja (…). Assim, por sua própria factici-
dade, o Para-si é jogado em uma total 'responsabilidade' para com os mortos; vê-se obrigado a decidir
livremente sua sorte. Em particular, quando se trata dos mortos que nos rodeiam, não é possível não
decidirmos – explicita ou implicitamente – a sorte de suas realizações” (IDEM, p. 665).
Reaparece também, a questão da responsabilidade . Aliás, não é ocasional. Sempre
que houver uma relação que possa ser compreendida com uma estrutura da situação, isto é,
sempre que se analisar alguma adversidade com a qual o Para-si não pode deixar de se rela-
cionar, sempre que que houver esse vínculo inquebrantável, a questão da responsabilidade

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retornará. É precisamente a noção de situação, ao que parece, a chave para compreensão do
tema do engajamento em Sartre.
“Sou eu, são os homens de minha geração que decidem acerca do sentido dos esforços e das realiza-
ções da geração anterior, seja retomando e prosseguindo suas tentativas sociais e políticas, seja efetu-
ando decididamente uma ruptura e relegando os mortos à eficácia” (IDEM, p. 665).
Sendo responsáveis pelos seus mortos, pelas significações que a eles atribuirão, serão
também responsáveis pela sua história. Se o Outro detém sobre o Para-Si também este
segredo – a significação congelada que ele terá ao morrer –, e não pode deixar de ter essa
compreensão, configurando o ser-para-Outro do Para-si, então, o Outro é responsável por
esse movimento de transcendência – sua responsabilidade advém justamente do fato de não
poder deixar de realizar este movimento.
Pode agora compreender melhor o motivo pelo qual mesmo morta a vida é signifi-
cante e não perde (em certo sentido) seu caráter evanescente. Este é mantido precisamente
pelo Outro, aquele vilão que, por assim dizer, com seu olhar de Medusa, petrificava e matava
o Para-si antes da hora. Agora, no entanto, é este olhar, que mantém o Para-si vivo. Eis,
portanto, a face positiva da relação de alteridade, aquilo que se trabalhou sobre a rubrica de
reconhecimento no quando se analisou a estrutura 'meu próximo': trata-se da possibili-
dade de conceder ao Outro a possibilidade de existir enquanto transcendência, existir
enquanto outro Para-si. Entretanto, na morte, reconhecimento significa justamente respon-
sabilizar-se pelo que antes tinha que responsabilizar-se por si próprio. O Outro é agora o
agente, é ele quem determina a relação. Ainda que preserve o Para-si enquanto possibili -
dade de transcendência, o faz a partir de si – de certa forma, mantém o tipo de relação que
sempre almejou, pois de seus olhos sempre partiram um fogo congelante mortal. Retor-
na-se, então à perspectiva do (Para-si) morto:
“A vida determina seu próprio sentido, porque está sempre em suspenso e possui, por essência, um
poder de autocrítica e autometamorfose que faz com que se defina como um 'ainda-não', ou se prefe -
rirmos, como mudança daquilo que é. A vida morta tampouco cessa de muda r por ser
morta, mas não se faz: é feita. Significa que para elas os dados estão lançados, e que, daqui por
diante, irá sofrer suas mudanças sem ser, de forma alguma, responsável por elas. Não se trata apenas
de uma totalização arbitrária e definitiva; além disso, trata-se de uma transformação radical: nada
mais pode lhe ocorrer a partir do interior; está inteiramente fechada, e nada lhe
pode ser feita para penetrá-la; mas seu sentido não deixa de ser modificado pelo lado
de fora [, pelo Outro] ” (IDEM, p. 665, grifo meu).
Morte é, dessa forma, uma forma de alienação, no duplo sentido que este termo pode
comportar: como a condição passiva do ser, uma condição sem responsabilidade e como um
eu que se perde de si, encontrando-se apenas no Outro.
“a morte representa uma total espoliação (…). A própria existência da morte nos aliena totalmente,
em nossa própria vida, em favor do outro. Estar morto é ser presa dos vivos. Significa, portanto, que
aquele que tenta captar o sentido de sua morte futura deve descobrir-se como uma futura pressa dos
outros” (IDEM, p. 666).

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Em seguida Sartre apresenta duas classes de alienação em relação ao Outro, sendo
que os dois primeiros já se analisou quando se tratou do Para-Outro, contudo, admite não
ter ainda apresentado o terceiro caso que trata da morte. A primeira delas é um tipo de alie-
nação em que “podemos nadificar transformando o outro em transcendência-transcendida,
assim como podemos nadificar transformando nosso lado de fora pelo posicionamento
absoluto e subjetivo de nossa liberdade” (IDEM, p. 666). Há como que um movimento em que
“escapo sem cessar de meu lado de fora e sou sem cessar reapreendido por este, sem que,
'nesse combate dúbio', a vitória pertença a um ou a outro desses modos de ser” (IDEM). A
que classe de alienação que diz respeito à morte é, contudo, distinta, tem um ar muito mais
trágico, pois irremediável.
“Mas o fato da morte, sem aliar-se precisamente a qualquer dos adversários nesse mesmo combate
[entre o Para-si e o Outro], dá a vitória final ao ponto de vista do Outro, transportando o combate e o
prêmio para um outro terreno, ou seja, suprimindo de súbito um dos combatentes. Nesse sentido,
qualquer que seja a vitória efêmera obtida na luta contra o Outro e ainda que tenhamos nos servido do
Outro para 'esculpir nossa própria estátua', morrer é ser condenado a não existir a não ser
pelo Outro e ficar devendo a este seu sentido e o próprio sentido de sua vitória (…).
Minha existência póstuma não é simples sobrevivência espectral, 'na consciência do outro' de simples
representações a mim concernentes (imagens, lembranças etc). Mas meu ser-Para-outro é um ser real,
e, se permanece nas mãos do outro como um casaco que abandono após minha desaparição, é a título
de dimensão real de meu ser – dimensão essa convertida em minha única dimensão – e não de
espectro inconsciente” (IBIDEM, grifo meu).
No entanto, como se viu, o sentido dado pelo Outro à minha vida já acabada não se
congela, também está em suspenso. O que munda da vida para a morte é a possibilidade do
Para-si construir sua própria vida. A pergunta pelo destino definitivo da vida de alguém
depende de como se compreenda a história, depende da pergunta sobre a teleologia da
história, isto é: se o indivíduo é agente ou apenas espectador da vida.
Dando um primeiro passo em direção a uma conclusão, Sartre retoma seu que argu-
mento foi mostrar que a morte não faz parte da estrutura do Para-si. Sartre então
retoma a concepção realista de morte para explicitar o que nela há de verdadeiro fenomeno-
logicamente, seu caráter de algo que absolutamente ultrapassa e nega a vida:
“se é verdade que o realismo dogmático comete o erro de encarar a morte como estado de morte, ou
seja, algo transcendente à vida, nem por isso deixa de ser válido o fato de que a morte, tal como posso
descobri-la como sendo minha, compromete necessariamente algo além de mim. Com efeito, na
medida em que é a nadificação sempre possível de meus possíveis, a morte está fora de minhas possi-
bilidades, e, por conseguinte, eu não poderia esperá-la, ou seja, arremessar-se rumo a ela como se
fosse rumo a uma de muinhas possibilidades. Portanto, a morte não poderia pertencer à estrutura
ontológica do Para-si. (IDEM, p. 668)
É uma estrutura particular da situação com a qual a liberdade tem de se defrontar.
Mas esse tal relação está intimamente relacionada ao Outro.
“Na medida em que constitui o triunfo do outro sobre mim [, a morte,] remete a um fato, funda-
mental, decerto, mas totalmente contingente, como vimos, que é a existência do outro. (…) Se a
morte, em certa medida, pode revelar-se a nós como metamorfose dessas significações particulares
que são minhas significações, deve-se ao fato da existência de uma outro significante que assegura o

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restaurar das significações e dos significados. É por causa do outro que minha morte constitui minha
queda fora do mundo, a título de subjetividade, em vez de ser o aniquilamento da consciência do
mundo. Portanto, há na morte um inegável e fundamental caráter de fato, ou seja, uma contingência
radical, tal como na existência do outro. Tal contingência a subtrai de antemão de todas as conjecturas
ontológicas. E meditar sobre a minha vida considerando-a a partir da minha morte seria o mesmo que
meditar sobre minha subjetividade adotando o ponto de vista do outro; vimos que isso não é possível.
(…) Assim, devemos concluir, contra Heidegger, que a morte, longe de ser minha possibilidade própria,
é fato contingente que, enquanto tal, escapa-me por princípio e pertence originariamente à minha
facticidade.” (IBIDEM).
Com isso Sartre terminou aquela limpeza conceitual que se anunciou e, ao apre-
sentar morte como algo absurdo e com uma configuração tão fática quando a relação de
alteridade, terminou sua argumentação que pretende desconstruir a conceituação heideg-
geriana. Em seguida acrescenta uma homologia entre o nascimento e a morte:
“A morte é um puro fato, como o nascimento; chega-nos de fora e nos transforma em lado de fora
puro. No fundo, não se distingue em absoluto do nascimento e é tal identidade entre nascimento e
morte que denominamos facticidade” (IBIDEM).
Ambos são, portanto, acontecimentos que não dizem respeito à vida, são absoluta-
mente exteriores a ela e o são por ter em seu imo uma configuração de facticidade.
Será então que agora defronta-se finalmente com um acontecimento que imporá de
vez limites à liberdade? Estar-se-ia, ao considerar a morte um fato, retirando ao Para-si sua
possibilidade de conferir significação e, com isso, sua liberdade?
De forma alguma, ao abdicarmos do ser-para-morte heideggeriano não estamos
abrindo mão da possibilidade de conferir significado à morte, pelo contrário, “morte, ao
revelar-se a nós tal como é, nos libera de nossa pretensa coerção” (IDEM, p. 669).
Mas, para isso, Sartre precisa valer-se da distinção entre finitude e morte , pois
seria a confusão de Heidegger entre os dois termos que o teria levado a uma descrição equi-
vocada. Ao pensador alemão parece que a morte é que “constitui e nos revela nossa
finitude” (IDEM). Isso implica que a morte “assume aspecto de necessidade ontológica”
(IBIDEM) e a finitude “toma emprestado da morte seu caráter de contingência” (IBIDEM). A
morte revelaria a “unicidade da vida” (IBIDEM). Entretanto, o problema em sua descrição é o
fato dele esquecer que:
“a morte é um fato contingente, que pertence à facticidade; é a finitude é uma estrutura ontológica do
Para-si que determina a liberdade e só existe no e pelo livre projeto do fim que anuncia a mim mesmo
aquilo que sou. Dito de outro modo, a realidade humana continuaria sendo finita, ainda que fosse
imortal, porque se faz finita ao escolher-se, ou seja, anunciar a si mesmo aquilo que se é projetan-
do-se rumo a um possível, com exclusão de outros. Portanto, o próprio ato de liberdade é assunção e
criação da finitude. Se eu me faço, faço-me finito e, por esse fato, minha vida é única. Consequente -
mente, mesmo se eu fosse imortal me seria vedado 'ter uma segunda chance'; é a irreversibilidade da
temporalidade que me impede isso, e esta irreversibilidade nada é senão o caráter próprio de uma
liberdade que se temporaliza” (IBIDEM).
Assim, para Sartre finitude não implica morte: é uma característica do Para-si,
concernente, então ao âmbito ontológico, enquanto que morte é uma realidade antropoló-
gica. A finitude não anula minha liberdade, apenas parece fazê-lo quando é confundida com
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a morte. A finitude é, ao contrário da morte, algo que pertence à vida. As escolhas do Para-si
pressupõe sempre um fim. Novamente aqui retorna aquele esquema da figura-fundo: as
escolhas são sempre feitas sobre um solo de não escolhas, de negação e ao ser feita como
projeto sempre incorpora a finitude, tornando-a única. O ponto central aqui é que Sartre
articula escolha, singularidade e finitude, na medida em que se escolhe excluindo:
“Não é por ser temporalmente indefinida, ou seja, sem limites, a 'vida' do imortal será menos finita
em seu próprio ser, por que se faz única. A morte nada tem a ver com isso; sobrevém, 'entretempo', e a
realidade humana, ao revelar a si própria a finitude, não descobre por causa disso a sua mortalidade”
(IDEM, p. 669-70).
Assim, a vida se mostra finita, mas não mortal. A finitude faz parte da vida, mas a
morte permanece sendo algo absolutamente exterior. A morte não traz consigo a finitude –
como quer Heidegger –, esta é parte do elemento fático da condição humana da qual não
pode escapar e deve assumir enquanto viver. Em sendo assim, não se permaneceria com o
mesmo problema da morte como limite à liberdade?
De certa forma sim, pois o que Sartre realizou até aqui foi, aparentemente, apenas
deslocar o problema: ao destrinchar a morte da finitude, obtêm duas instâncias: uma contin-
gente e estranha ao Para si – a morte –, a outra é uma estrutura ontológica e, como tal,
imbricada na vida – a finitude. Ambas, todavia, parecem posicionar-se como limites à minha
liberdade. Por outro lado, a finitude, justamente por ser uma condição inerente à vida, pode
ser pensada segundo o esquema da situação: ela é uma adversidade a partir da qual as esco-
lhas são feitas, não são feitas apesar delas, desconsiderando-as, mas justamente é porque
existe tal facticidade que abrem-se uma série específica de possíveis.
Se a Finitude, então, pode ser compreendida por meio do esquema da situação, o que
dizer da morte? Se ela é exterior à vida e não é está compreendida como uma estrutura do
Para-si ela não seria um limite real à liberdade? O que é então a morte?
“Nada mais do que certo aspecto da facticidade e do ser-Para-outro, ou seja, nada mais que algo dado.
É absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que morrermos; por outro lado, esta absurdidade apre -
senta-se como alienação permanente de meu ser-possibilidade, que já não é mais minha possibilidade,
mas do outro. É, portanto, um limite externo e de fato de minha subjetividade!” (IDEM, p. 670).
Bem, que a morte seja algo exterior à vida já se repetiu à exaustão. Mas então aquela
concepção realista da morte estaria válida? Não pois nunca a experimentamos. Naquela
concepção, a morte aparecia, embora como algo externo à vida, como algo que tinha o poder
finalizá-la. Aqui, contudo, se nunca o Para-si se defronta, de fato, com a morte, ela mantém
seu caráter exterior. Dessa forma,
“é necessário, em certo sentido, que experimentemos a morte para termos simplesmente condições
de designá-la; este limite de fato, por outro lado, jamais é encontrado pelo Para-si, posto que em nada
é próprio a este, salvo na permanência indefinida de seu ser-Para-outro” (IDEM).

93
Mas ainda se permanece apenas reiterando o argumento da absurdidade de exterio-
ridade, do avesso da vida. Entretanto, faltou apenas um passo para que se atingisse o argu-
mento de Sartre no sentido de compreender a morte como uma situação limite :
“Que será senão um aspecto sintético de nosso avesso? Mortal representa o ser que sou Para-outro;
morto representa o sentido futuro do meu Para-si atual para outro. Trata-se, pois de um limite perma -
nente de meus projetos, e, como tal, este limite é para ser assumindo. Portanto, é uma exterioridade
que permanece exterioridade até na e pela tentativa do Para-si para realizá-la: é o que definimos
como irrealizável a realizar. (…). Assim, a morte não é minha possibilidade, no sentido anteriormente
definido; é situação-limite , como avesso escolhido e fugidiço de minha escolha. Tampouco é meu
possível, no sentido de que fosse meu fim próprio que anunciaria a mim mesmo o meu ser; mas,
devido ao fato de se inelutável necessidade de existir em outra parte como um fora e um Em-si, a
morte é interiorizada com 'última', ou seja, como sentido temático e fora de alcance dos possíveis
hierarquizados. Assim, ela me impregna no próprio âmago de cada um de meus projetos como sendo
ao avesso inelutável destes. Mas precisamente porque este 'avesso' é a assumir, não como
minha possibilidade, mas como a possibilidade de que já não haja mais possibilidades
para mim, a morte não me atinge. A liberdade que é minha liberdade permanece total
e infinita; não a morte não a limite, mas por que a liberdade jamais encontra este
limite, a morte não é, de forma alguma, um obstáculo para meus projetos; é somente
um destino desses projetos em outra parte ” (IDEM, p. 670-1).
Em síntese, é precisamente por ser exterior que a morte, por mais que – em certo
sentido – limite minha liberdade, jamais será obstáculo à ela. Na escolhas e projetos a morte
nunca está em jogo – ao contrário da finitude – é uma outra forma de continuar esses
projetos, continuá-los “em outra parte”, no Outro. Assim, a subjetividade não se afirma
contra a morte, mas independentemente dela. E aqui nota-se que, nessa que é uma situação-
limite, o esquema da situação não se aplica, porém, nem por isso, a liberdade se encontra
coarctada.

7º – Conclusão

A pretensão das descrições precedentes das estruturas da situação foi de permitir


uma
“concepção mais clara do que constitui uma 'situação'. Graças a elas será possível definir mais precisa-
mente este 'ser-em-situação' que caracteriza o Para-si na medida em que é responsável por sua
maneira de ser sem ser fundamento de seu ser” (IDEM, p. 671).
Noutros termos, foi possível compreender o que é o que é este Para-si: um ser-em-
situação. E, ainda que Sartre esteja fazendo um “ensaio de ontologia”, também descorti-
nou-se com todo esse percurso o que se pode chamar de sua concepção de homem: para
Sartre o homem é, então responsável pelo seu ser exatamente por ser um ser que cujo
fundamento não reside em seu próprio ser, é portanto, um ser que estar perpetuamente
vinculado ao mundo, aos outros, à sua história, às coisas, à sociedade; tem sua existência
situada.

94
Acompanhar-se-á agora a breve recapitulação feita pelo próprio autor, em seis
pontos.
No que concerne ao primeiro ponto , considerando a pretensão deste trabalho –
que não pode desvencilhar-se de uma cuidadosa compreensão da noção de situação –, será
apresentado um longo excerto do texto, pois Sarte mesmo anuncia que ali define o que
entende por este termo:
“Sou um existente no meio de outros existentes. Mas não posso 'realizar' esta existência no meio dos
outros, não posso captar como objetos os existentes que me circundam, nem captar a mim mesmo
como existente circundado, nem sequer dar sentido a esta noção de 'no meio de', salvo se escolho a
mim mesmo, não em meu ser, mas em minha maneira de ser. A escolha deste fim é a escolha de um
ainda-não-existente. Minha posição no meio do mundo definida pela relação de utensilidade ou de
adversidade entre as realidades que me circundam e minha própria facticidade, ou seja, a descoberta
dos perigos que corro no mundo dos obstáculos que nele posso encontrar, das ajudas que podem me
ser oferecidas, à luz de uma nadificação radical de mim mesmo e de uma negação radical e interna do
Em-si, operada do ponto de vista de um fim livremente posicionado – eis o que denominamos situ-
ação” (IDEM, p. 672).
Desse trecho o que não poderia escapar é o fato de Sarte usar a imagem de se estar
“em meio de”38 para expressar a noção de situação. No texto que já se trabalhou sobre a
noção de intencionalidade é exatamente desta forma que Sartre conclui o texto: “Não é em
sabe-se lá em qual retraimento que nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da
multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens” (SARTRE, 1939, p.57, grifo meu).
Dessa forma, espera-se ter confirmado a hipótese com que se trabalhou constante de que a
noção de situação desenvolvida no livro de 1943 está absolutamente vinculada à noção de
intencionalidade tal como Sartre descreve no texto de 1939.
O segundo ponto é que o que Sartre expõe é que a situação não é subjetiva, nem
objetiva. Ela é intencional: rompe, como se viu, essa cisão entre sujeito e objeto. Situação
não é subjetiva, pois ela não é resultado de impressões que emanam do sujeito, assim como
também não é objetiva, vez que sujeito está comprometido no mundo, cada gesto seu inter -
fere na máquina do mundo. A situação tem como polo articulados o Para-si que, com seu
projeto, lança-se em direção a um fim e articula, tanto aquilo que seria considerado como
objetividade, quanto o que seria subjetividade. Portanto, a situação,
“não constitui um conhecimento nem sequer uma compreensão afetiva do estado do mundo por um
sujeito; mas sim uma relação do ser entre um Para-si e o Em-si por ele nadificado. A situação é o
sujeito inteiro (ele não é nada mais do que sua situação) e é também a 'coisa' inteira
(não há jamais nada mais do que as coisas). Se quisermos, é o sujeito iluminando as
coisas pelo seu próprio transcender, ou são as coisas remetendo sua imagem ao
sujeito. (...) É esta vereda poeirenta e ascendente, esta sede ardente que sinto, essa recusa das
pessoas de me dar algo para beber porque não tenho dinheiro ou não sou de seu país ou sua raça; é
minha derrelição no meio dessas populações hostis, com esta fadiga de meu corpo que irá me impedir

38 Uma outra imagem que invade a cabeça ao pensar sobre a noção de situação, sobretudo depois dessa
explicitação de Sartre sublinhando esses termos (“no meio de”) é a criada pelo poeta brasileiro Carlos
Drummond de Andrade no poema "No meio do caminho". Neste poema se articulam a ideia de ser “no meio
de” à imagem da pedra coma um Em-si, como uma adversidade, como se verá mais adiante.
95
talvez a meta que me propus. Mas também é precisamente essa meta, não na medida em que a
formulo clara e explicitamente, mas na medida em que está aí, por toda a parte à minha volta, como
aquilo que unifica e explica todos esses fatos, aquilo os organiza em uma totalidade descritível em vez
de torná-los um pensamento me desordem” (IDEM, p. 672-3, grifo meu).
Aqui novamente o eco do texto sobre Husserl é gritante: inclusive a imagem da
vereda poeirenta remente aquele lugar onde se encontrava a famigerada árvore que se
sempre se menciona para falar de fenomenologia: “Vocês veem esta árvore aqui – seja. Mas a
veem no lugar exato em que está: à beira da estrada, em meio à poeira, só e curvada sob o
calor, a vinte léguas da costa mediterrânea” (SARTRE, 1939, p. 55). Mas também há ecos mais
conceituais: o projeto – a meta – que estipulo é compreendida intencionalmente, ou seja, em
unidade às coisas do mundo. Unidade que se funda num compreensão não cindida entre
sujeito e objeto, com concepção em que o indivíduo não abstraído do mundo em que vive,
pelo contrário, só se constitui como tal por estar imerso nestas circunstâncias, configurando
o que Sartre chama de situação: sujeito e as coisas (objeto) par que fenomenologicamente
não se mostra jamais cindido.
Passa-se agora ao terceiro ponto em que se pretende apontar o ponto de inter-
secção entre a ontologia e a antropologia, ou seja, quando o Para-si tangencia o homem: a
noção de ser-em-situação contém em si a concepção ontológica, pois este supera o ser-aí.
“Se o Para-si nada mais é do que a situação, daí resulta que o ser-em-situação, define a realidade-hu -
mana, dando conta tanto de seu ser-aí, como de seu ser-para-além. A realidade humana é, com efeito,
o ser que é sempre para-além de seu ser-aí. E a situação é a totalidade organizada do ser-aí interpre-
tada e vivida no e pelo ser-para-além” (SARTRE, 1943, p. 673).
É nesse sentido que também no capítulo sobre a intencionalidade falou-se que há uma
recepção francesa da fenomenologia: para Sartre, o ser-aí heideggeriano é suplantado por
uma instância que o suspende, em certo sentido, o contém, mas também é algo a mais que
ele, pois vincula o indivíduo concreto ao mundo concreto, mas faz tal relação partindo de
uma concepção ontológica. Tudo se passa, portanto, como se em Sartre a noção de ser-em-
situação fosse uma ponte da ontologia para a antropologia. E nesse sentido, talvez se
pudesse pensar que a própria noção de situação fosse um conceito que se configura em situ-
ação, pois vincula intimamente os dois âmbitos. Dessa forma, a ontologia e a antropologia
não se mostrariam fenomenologicamente desvinculadas.
Assim, não há privilégio de um âmbito em relação ao outro. E, em consequência,
“não há situação em que o dado sufocasse sob seu peso a liberdade que o constitui como tal”
(IDEM, p.673). E não se trata de uma “liberdade interior”, uma liberdade de imaginação “que
simplesmente resultava no reconhecimento da independência da vida íntima” (IBIDEM) e do
mundo, ou seja, que se valia de uma autonomia da imaginação com relação às coisas do
mundo. Retoma-se agora o exemplo do escravo :

96
“Quando dissemos que o escravo acorrentado é tão livre quanto seu amo, não queríamos nos referir a
uma liberdade que permanecesse indeterminada. O escravo em seus grilhões é livre para rompê-los;
significa que o próprio sentido de suas correntes lhe parecerá à luz do fim que escolheu: continuar
escravo ou arriscar o pior para livrar-se da servidão. Sem dúvida, o escravo não poderá obter as
riquezas e o nível de vida do amo, mas tampouco são estes os objetos de seus projetos: pode apenas
sonhar com a posse desses tesouros; sua facticidade é de tal ordem que o mundo lhe aparece com
outra fisionomia e cabe-lhe posicionar e resolver outros problemas; em particular, é necessário funda-
mentalmente que ele se escolha no terreno da escravidão e, com isso, confira um sentido a esta
obscura coerção. Se, por exemplo, escolhe a revolta, longe de ser previamente um obstáculo para esta
revolta, só adquire seu modo e seu coeficiente de adversidade pela própria revolta” p. 673.
Este exemplo tem uma dupla finalidade. Se, por um lado, apresenta a noção sartriana
de situação – no sentido daquela vinculação –, mostra a liberdade da vida interior, da imagi -
nação como estreitamente fundida ao mundo. Essa imagem também expõe a questão da
alteridade e da singularidade: “a situação do escravo é incomparável à do senhor” (IDEM,
674). Cada vida constitui em certo sentido um bloco fechado que se organiza autonoma-
mente a partir de seus projetos, não se pode, em hipótese alguma, colocar-se no lugar do
outro. Ainda que o Para-si também esteja situado em relação ao Outro, nem por isso deixa de
encará-lo como uma possibilidade de adversidade, o polo organizador é projeto do Para-si.
Dessa forma, “a comparação [entre as vidas do escravo e do senhor] só poderia ser feita por
um terceiro” (IDEM), comparação essa que também seria conformada pelo projeto deste
terceiro: “com efeito, cada uma delas só adquire seu sentido pelo Para-si em situação e a
partir da livre escolha de seus fins” (IBIDEM), portanto, “não há qualquer ponto de vista
absoluto que se possa adotar para comparar situações diferentes; cada pessoa só realiza uma
situação: a sua” (IBIDEM).
Passando agora para o quarto ponto, em que se continua a pretensão de mostrar
que “a situação apresenta-se eminentemente concreta” (IBIDEM) e singular, Sartre recorre à
literatura, convoca Kafka no conto (ou capítulo de O Processo) Diante da Lei:
“ – Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim
pediu para entrar?
O porteiro percebe que o homem já está no fim e para ainda alcançar sua audição em declínio ele
berra:
– Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou
embora e fecho-a.” (KAFKA, 1919, p. 29).
Este é o trecho final do conto em que o porteiro, ao já agonizante camponês, revela
que a porta era destino dele e apenas dele. E, é precisamente esta singularidade que Sartre
que ressaltar como uma característica do Para-si: “'Esta porta foi feita só para você'. Tal é,
exatamente, o caso do Para-si, se acrescentarmos que, além disso, cada um faz para si
mesmo sua própria porta” (SARTRE, 1943, p. 674), ou seja, os obstáculos se mostram como
tais apenas pela visada específica que cada Para-si é capaz ao projetar-se no futuro. Assim:
“o fim só ilumina o dado por ser escolhido como transcender desse dado. O Para-si não

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surge como um fim totalmente dado. Mas, ao 'fazer' a situação, ele 'se faz', e inversamente.”
(IDEM, p. 675).
No quinto ponto o que Sartre pretende ressaltar é que: “a situação não poderia ser
considerada o livre efeito de uma liberdade, ou o conjunto de coerções padecidas por mim;
provém da iluminação da coerção pela liberdade, que lhe confere seu sentido de coerção”
(IDEM), isto é, que a liberdade continuará a ser liberdade justamente porque pode iluminar
algo como coercitivo ou não.
Já no sexto ponto, retoma-se o tema de temporalidade, o Para-si é apresentado
como temporalização: “o Para-si é temporalização: significa que ele não é; ele 'se faz'. É a
situação que informa sobre esta permanência substancial que reconhecemos nas pessoas”
(IDEM). Com isso atrela-se à questão da temporalidade à da identidade reaparecendo então o
tema do caráter: “aquilo que denominamos temperamento ou caráter de uma pessoa e que
nada mais é senão seu livre projeto enquanto é-Para-outro também surge, para o Para-si,
como um irrealizável invariante” (IDEM, p. 676), ou seja, que, na verdade não é possível falar
em caráter, que esse invariante é apenas Para-outro, do ponto de vista do Para-si apenas
será invariante se ele assim o reafirmar o variável enquanto invariante. Assim, “não há
caráter: apenas um projeto de si mesmo” (IDEM).
Em síntese, a liberdade persiste, embora situada:
“a livre perseverança em um único projeto não subentende permanência alguma; muito pelo
contrário, é uma perpétua renovação de meu comprometimento, como vimos. Mas as realidades
envolvidas e iluminadas por um projeto que se desenvolve e se confirma apresentam, pelo contrário, a
permanência do Em-si e, na medida em que reenviam nossa imagem a nós mesmos, sustentam-nos
com sua perenidade; chega ser frequente confundirmos sua permanência com a nossa. Em particular,
a permanência do lugar e dos arredores, dos juízos alheios a nosso respeito do nosso passado, figuram
uma imagem degradada de nossa perseverança” (IDEM, p. 675).

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100
3ª Parte: Uma clínica situada
_____________________________________________________________
I – ÉTICA: ENTRE DEVER SER E PODER SER

Ética do grego ethos, ethike, de ethikós: que diz respeito aos costumes. Parte da filo-
sofia prática que tem por objetivo elaborar reflexões sobre os problemas fundamentais da
moral (finalidade e sentido da vida humana, os fundamentos da obrigação e do dever, natu-
reza do bem e do mal, o valor da consciência moral, etc), mas fundada num estudo metafísi-
co do conjunto das regras de conduta consideradas universalmente válidas. (JAPIASSÚ &
MARCONDES, 1996, p. 93). Circunscreve-se então ao âmbito do que talvez se possa chamar de
um dever ser, pois reflete sobre regras, normas, parâmetros, em suma, as prescrições.
As reflexões sobre a ética estão implicados no coexistir, ou seja, nos modos como as
relações entre os homens se dão e também, não menos importante, a relação dos homens
com a natureza de um modo amplo. Um dos fundamentos essenciais da ética está intima-
mente ligado ao caráter interventivo do homem, ou seja, ações, condutas exercidas pelo ho-
mem que podem ameaçar, produzir efeitos danosos ao modo de ser do outro ou da coletivi-
dade. Podemos dizer que o caráter prescritivo que envolve as ações humanas, por exemplo,
as profissionais, precisam ser devidamente cuidadas para que essas ações sejam sensíveis
para poderem refletir sobre os efeitos danosos que elas podem promover aos outros. Fala-se
na nossa época atual em condutas éticas em códigos éticos que normatizam os exercícios
profissionais Assim, pode-se dizer que quanto mais interventiva, prescritiva for uma condu-
ta exercida em qualquer nível, mais ela precisa ser refletida no que concerne aos seus efei-
tos. Os posicionamentos fortes tutelados por um pensamento metafísico assim constituído
podem promover abusos que não contemplam as diferenças entre os homens, a liberdade
humana, entre outras condições que respeitem a singularidade de um grupo, de uma comu-
nidade ou do próprio cidadão.
Os regimes políticos de exceção, totalitários impingem regras rígidas e modos de ser
comuns a todos, coibindo as diferenças e as liberdades individuais. Muitos regimes utiliza-
ram de justificativas para o banimento, exílio, ou aprisionamento de pessoas. Nesse sentido,
o poder de gestão das vidas também serviu a esses regimes totalitários diagnosticando e ex-
cluindo pessoas do convívio diagnosticando-as como esquizofrênicas, delinquentes, loucos
no seu sentido geral. Os aparelhos do estado em geral, não só a polícia, como também as ins -
tituições psiquiátricas, de assistências social etc. foram usadas para tal fim.
Além disso, é preciso considerar que reflexões éticas, quaisquer que sejam elas, estão
ancoradas numa visão de homem, isto é, posicionadas na compreensão de quem é o homem.

102
Qualquer teoria traz em seu bojo, ainda que implicitamente, uma dada concepção de homem
que norteará sua – eventual – prática. Pode-se dizer, por exemplo, ainda que correndo o ris-
co de cometer certo reducionismo, que a medicina tem uma concepção mais objetificada do
homem: ele é encarado como algo a ser estudado, dissecado, analisado, cindido em partes;
em síntese está norteada por uma cisão entre sujeito e objeto: de um lado o corpo (do) doen-
te, como metáfora do paciente, de outro, o médico que tem um saber previamente formata-
do sobre as etiologias e, portanto, subsume os sinais e sintomas do paciente àquilo que ele
conhece sobre as doenças. E é sobre esta concepção que serão ancoradas suas práticas: a
crescente especialização das áreas da medicina – a ponto de um médico desconsiderar os
efeitos de suas prescrições, por assim dizer, no terreno do outro médico. Essa concepção de
homem seria uma manifestação de uma concepção cientificista de homem, uma concepção
que impõe claramente um distanciamento entre sujeito e objeto como condição para qual-
quer realização.
Contudo, como se viu, conceito de intencionalidade da consciência proposto por E.
Husserl, aparentemente óbvio, ao assumir a tese de que toda consciência é sempre consciên-
cia de..., desconstrói as noções de uma consciência constituída por algo já dado, de uma
consciência encapsulada e rica (critica que Sartre faz ao espírito aranha que torna o conhe-
cimento semelhante a um processo digestivo), para colocar o homem como um ente consti-
tuído pelos suas relações, pelo seu coexistir, pautando-se então na manifestação real da rela-
ção sujeito objeto, ou seja, como instâncias não cindidas. Quando se observa o homem nessa
perspectiva, o homem e sua situação não se manifestam mais separados, mas como condição
para a aparição das outras relações. Assim, as condutas éticas precisam contemplar essa
condição existencial do homem zelando pelas possibilidades de ser desse homem que envol-
ve a sua capacidade de decisão, escolha e de responsabilização sobre si e sobre os outros.
Levando isso em consideração, este trabalho tem justamente a pretensão de discutir
sobre a concepção de homem que fundamenta a prática clínica em Psicologia. Como já tra-
balhado na introdução, não se trata de buscar princípios ou propor uma clínica em moldes
sartrianos, mas antes pensar os pressupostos de trabalho na clínica que podem concernir a
qualquer abordagem teórica, na medida em que se entende que a concepção de homem for -
mata, configura e alinhava todos os pressupostos de uma prática. Como, evidentemente,
cada uma das diferentes abordagens clínicas tem também uma certa maneira de conceber o
homem, não se pode pretender aqui buscar unificar todas eles em torno da concepção sar -
triana de homem, mas sim levantar questões que se crê pertinentes a qualquer proposta te -
órica.

103
Nota sobre ética e clínica

As práticas clínicas em psicologia e em psiquiatria passaram, ao longo de sua histó-


ria, por diferentes crivos de intervenção: de uma atuação fortemente prescritiva para um
posicionamento menos impositivo, que concede certa possibilidade de diferenciação em re-
lação à norma. Entretanto, atualmente as práticas de gestão da vida, asseguradas e às vezes
tuteladas por pesquisas encomendadas, apressadas, pouco rigorosas, aliadas aos grandes la-
boratórios etc., produzam medicamentos e diagnósticos enviesados ou até questionáveis
tendo em vista a excessiva medicalização e, com ela, a busca do bem estar e de uma relação
assintomática. A tristeza, por exemplo, transforma-se em depressão, a hiperatividade – ter-
mo absolutamente inexistente há alguns anos atrás – ao invés de convocar os pais e os pro-
fessores no exercício de limites necessários é prontamente medicada entre tantos outros di-
agnósticos e condutas médicas que priorizam a condição biológica e não mais psicológica do
homem. São apenas exemplos de que atualmente tudo converge para uma armação do pen-
samento, onde as atuações humanas estão associadas a tríade: exploração, produção e con-
sumo. O próprio pensamento está ancorado na ideia de eficiência produtiva, rapidez e bem
estar. Sob o ponto de vista dos alcances anteriores a essa nossa época atual – e que perma -
nece em alguma medida hoje – temos uma pratica clínica que na Idade Clássica baniu os as-
sim chamados loucos, os desarrazoados, da comunidade juntamente com os leprosos e sifilí-
ticos (Cf. História da loucura na idade clássica de Foucault). Temos no Brasil o conto de Ma-
chado de Assis, O alienista denunciando os abusos de uma prática clínica psiquiátrica.
Em contraposição a isso, há o movimento da anti-psiquiatria que aconteceu na Ingla-
terra com dois psiquiatras Ronald Laing e David Cooper na década de 60. Esse movimento
denunciava a produção da loucura como fruto da relação corpo clínico e os doentes. Nessa
época começaram as denuncias sobre essas práticas de exclusão, confinamento e cronifica-
ção da doença. Concomitante a esse movimento, surgiu a luta anti-manicomial, cujo desen-
volvimento maior se deu na Itália com Franco Basaglia que decorreu na proibição das inter-
nações e que teve influências mesmo aqui no Brasil com um momentos histórico da Consti-
tuinte (1988), criação do SUS (Sistema Único de Saúde) e que redundou na criação dos CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial).
No que respeita a psicoterapia, a relação é a mesma que se tem ressaltado, ou seja, as
teorias (metapsicologias), veiculadoras de verdades universais serão, por um lado mais pres-
critivas, intervencionistas – como no caso do crescimento da matriz cientificista na saúde –

104
e, de outro lado, as mais humanistas, que não buscam um ajustamento total do indivíduo à
uma norma. Noutros termos, vive então o perpétuo dilema da prescrição, da exacerbação
normativa ou de um certo relativismo, de uma possibilidade de redundar numa ausência to-
tal de parâmetros.
O que, em síntese, se pretendeu apontar aqui foi que a questão da ética orbita em
torno do dilema entre o dever ser e o poder ser, pois as condutas éticas precisam zelar por
uma liberdade para poder ser: não fazer a regra sucumbir com aquilo que busca regrar, por-
que, do contrário, não há conduta ética apenas obediência, subjugamento a padrões exter-
nos.

Nota sobre ética em Sartre

Tentou-se propor uma forma de compreender a questão da ética entre a prescrição, a


normatividade e o relativismo, um subjetivismo. É precisamente esta uma questão central
para Sartre: o homem apenas insere-se nas leis, nas determinações, nas prescrições, ou tem
alguma liberdade diante delas? Se as regras forem criadas por cada um – relativistas, subjeti-
vistas –, como então pensar a relação dos homens em comunidade? Como pensar uma ética
que integre os indivíduos na sociedade – pois uma ética pressupõe uma mínima universali-
dade – sem que o indivíduo sossobre como mero fantoche, isto é, não perca sua liberdade.
Contudo, se lhe for atribuída liberdade, como então pensar o limite desta? Faz sentido pen-
sar que haja um 'grau de liberdade': o indivíduo teria liberdade para arbitrar a respeito de
tal questão apenas até certo ponto? Como pensar uma ética que não seja formalista, isto é,
meramente prescritiva: que determine o que o indivíduo pode ou não realizar?
Todas essas questões estão, em alguma medida, no escopo da investigação sartriana
sobre o conceito de liberdade.
É possível dizer que a forma como Sarte discute o conceito de liberdade, como neces-
sariamente situada, é – senão o ponto central – um dos pilares conceituais sobre os quais se
fundam o tema da ética. Tal como se viu no capítulo de análise da noção de situação, a ma -
neira que o 'senso comum' bem como certas filosofias concebem a liberdade cria um falso
problema, pois acabam pondo a questão entre dois polos: o determinismo (seja de que espé-
cie for, ou seja, uma concepção de homem na qual este seria apenas reflexo de condições ex-
ternas) e o livre arbítrio (que se poderia chamar de absoluto, isto é, concepção na qual o ho -

105
mem teria possibilidade plena, sem qualquer entrave, de realização de seus desígnios). Em
todo o capítulo sobre a situação nota-se Sartre às voltas com a questão da liberdade e do de-
terminismo. Como tentou-se ressaltar, a grande questão desse capítulo, que é reiterada nas
mais diversas circunstâncias, é: há liberdade? Por mais que existam diversas determinações
sobre os indivíduos: por mais que haja sempre algo que surge ao indivíduo como externo e
contrário aos seus interesses, ou seja, como obstáculos para realização de suas intenções,
ainda assim é possível falar em liberdade? A conclusão a que se chegou foi que sim. Contudo,
evidentemente, não se poderia entender liberdade apenas como possibilidade de realização
de desejos. A liberdade reside precisamente na possibilidade de conceber a realização dos
desejos, poder este que em hipótese alguma é retirado do indivíduo. É para contrapor a essa
concepção simplista de liberdade como mera ausência de impedimentos, que Sartre irá cu-
nhar a noção de situação e inscrever a liberdade inextricavelmente neste campo. Assim, a li-
berdade para Sartre é sempre situada, ou seja, é sempre uma relação do homem com os obs-
táculos que a ele são impostos, a liberdade só surge, portanto, na relação com os obstáculos,
por assim dizer, na forma de enfrentamento dessas adversidades.
Adentra-se, dessa forma, a questão da escolha. Ao indivíduo não cabe não escolher
se ele irá ou não realizar uma escolha, necessariamente qualquer ação é índice de uma esco-
lha de como se enfrentou tais adversidades. Não existe a possibilidade de que o indivíduo
não esteja implicado em suas ações – ainda que nem sempre seja uma escolha deliberada e
portanto com consciência tética. Uma vez que o ser é sempre, e não pode deixar de sê-lo,
ser-em-situação, isto é, implicado com o mundo. Tudo que acontece no mundo é responsabi-
lidade dele: de alguma forma, o indivíduo se posiciona diante de qualquer evento do mundo,
nem que seja por uma tentativa de alheamento.
“O 'problema' da moral nasce de que a Moral é para-nós , ao mesmo tempo, inevitável
e impossível. A ação deve dar-se normas éticas nesse clima de insuperável
impossibilidade. É nessa perspectiva, por exemplo, que será preciso encarnar o problema da
violência ou da relação entre os fins e os meios. Para uma consciência que vivesse esse dilaceramento
e que se encontrasse, ao mesmo tempo, coagida a querer e a decidir, todas as belas, todos os gritos de
recusa, todas as indignações virtuosas pareceriam uma retórica perempta” (SARTRE, 1952, p. 185,
grifo meu).
O problema da ética ou da moral reside, portanto, precisamente no fato de que ela
precisa passar pelo indivíduo. Para Sartre, não há possibilidade de uma ética formalista, a
ética prescritiva estaria fadada ao fracasso na medida em que os indivíduos podem não en-
dossá-la. A moral é 'inevitável', pois sempre há um posicionamento do indivíduo diante das
cosias do mundo, e 'impossível', porque pressupõe certa universalidade, um certo caráter
prescritivo que determinaria o que se pode ou não realizar, coartando assim a liberdade.

106
Essa inevitabilidade da moral, o fato dela ser inescapável, é o fato que articula o tema
da escolha à questão da responsabilidade. A concepção sartriana de homem como ser-
em-situação, portanto, implica uma noção de responsabilidade que tenta apontar uma saída
para a aporia fundamental da ética: o impasse entre a prescrição impositiva, universalista e
totalizante e uma outra postura subjetivista que em última instância impede qualquer refle -
xão ética na medida em que uma ética seria apenas uma produção individual e não abarcaria
qualquer consenso.
Ser-em-situação significa responsabilizar-se pelo seu lugar no mundo, pelas suas es-
colhas: na medida em que ser-em-situação é ser necessariamente projeto, isto é, um deslo-
car-se de si mesmo em direção a … , a consciência, o indivíduo não está isolado. Está, pelo
contrário, implicado em tudo do mundo. A responsabilidade nasce, assim, mesmo que à re-
velia do sujeito: apenas pelo seu posicionamento no mundo, por estabelecer relações com os
outros, com as coisas, a sociedade, a história etc., o indivíduo está comprometido. Aliás, até
mesmo a sensação de alheamento em relação a algo é uma forma de relacionar-se com isto,
para Sartre, seria uma tentativa de camuflar a implicação – mecanismo que Sartre denomina
má-fé. Este movimento – de intencionalidade – do sujeito, por assim dizer, sair de si mesmo,
de lançar para longe de si, de distanciamento, de fuga em direção a algo é denominado pro-
jeto – sentido que também comporta o uso comum do termo de planejar algo, afinal, plane-
jar é antecipar-se no tempo em direção àquilo que se vislumbra. Projeto implica responsabi-
lidade: é sempre a partir dessa antecipação do ser em direção a algo – antecipação essa na
qual que outras coisas se perderão, ou seja, escolhas são feitas – que o indivíduo responderá
pelos seus atos, pelas suas escolhas.
E, obviamente, em havendo projeto, há circunscrição no tempo, há história, tanto
no sentido de uma biografia – uma história pessoal –, quanto no sentido de uma história so-
cial. Conforme Reimão num livro que trata precisamente do tema da ética como polo articu-
lador do pensamento de Sartre, Consciência, Dialética e ética em J-P Sartre:
“O vínculo existente entre o indivíduo humano e a História traz consigo o vínculo da Moral. A
concepção do sentido da História, a partir do sentido do projeto homem individual (…), reveste-se de
um profundo significado ético; esta pretensão, que é uma pretensão de transparência, dá, por seu
turno, unidade e coerência a toda obra de Sartre. A obsessão sartriana de assim apreender a História é
o empenho do sujeito que não abdica se sua condição de protagonista e responsável de sua história e
da história de todos; não quer dizer que a História se contraia em cada sujeito humano à escala
reduzida, mas que cada um a configura, em função de uma tensão ética, como uma totalidade
de sentido, ao escolher o mundo, escolhendo-se a si mesmo na suas valorações e nos
seus atos ” (REIMÃO, 2005, p. 365, grifo meu).
Do projeto advém os valores, sempre implicados em quaisquer escolhas. Se há liber-
dade – na radicalidade em que Sartre propõe –, não há Deus, ou qualquer instância normati -

107
va externa. Nesse sentido, uma postura ética é responsabilizar-se pelas suas escolhas, isto é,
pelas implicações delas na situação.
Isso posto pôde-se apontar uma possibilidade de compreensão do tema da ética como
articulador dos temas mais importantes do pensamento de Sarte, bem como nesse mastro
balizador, pode-se encontrar como motor a noção sartriana de situação, ou seja, é por meio
a noção de intencionalidade husserliana, encarnada, ou melhor, desenvolvida na noção de
situação que se pode encontrar a consciência como polo a partir do qual, em certa medida,
o mundo se organiza – claro que esta organização se faz sob este mesmo mundo, isto é, ins-
crita na situação, sendo, portanto, não uma organização absolutamente arbitrária ou subje-
tivista – e, na exata medida, em que é a partir dos projetos do indivíduo que se organiza o
mundo, a responsabilidade incide necessariamente sobre este mesmo indivíduo.

II – CLÍNICA SITUADA

É exatamente essa possibilidade de compreensão da questão da liberdade como situ-


ada que se pretende trazer para a discussão da ética na prática clínica. Como apontado aci-
ma, uma forma de compreender a questão da ética na clínica é a distinção entre poder ser e
dever ser. A questão da responsabilidade pôde ser tratada a partir da – aparente – antinomia
entre o determinismo e a liberdade – tal como o senso comum a entende.
“Só escolho a partir da facticidade, mas não escolho a facticidade: sou o que faço e o que me acontece
e só dessa maneira posso apreender-me. A consequência da liberdade é que, embora tudo que me
ocorra possa ser definido como absoluta contingência ou necessidade de fato, nada do que me ocorre
é acidental. Isso quer dizer que, sendo todo acontecimento humano, nunca haverá algum ao qual eu
me vincule apenas exteriormente. No domínio da existência, só haveria o acidental se houvesse o
necessário: mas o domínio da existência é contingente enquanto tal, toda contingência é humana,
portanto minha, inteiramente relacionada comigo” (LEOPOLDO E SILVA, 2003, p. 153).
É desa forma que se pode compreender a relação entre situação e ética. Aqui encon-
tram-se relacionados os temas com comprometimento, da responsabilidade e da situação.
Em primeiro lugar, é preciso salientar a forma como escolha e facticidade são aqui entrela-
çadas, aqui se delineia precisamente a formulação da noção sartriana de situação: a escolha
não se faz apesar, mas a partir da facticidade.
O que pode parecer apenas uma mudança terminológica implica uma transformação
radical na forma como se pode compreender a relação do indivíduo com as adversidades: o
indivíduo não existiria sem elas, todos seus movimentos são tentativas de lidar com elas, an-

108
tecipando-as, prevendo-as, evitando-as, fingindo que elas não existe, buscando enfim um ca-
minho possível em meio a elas.
Se não há acontecimento no mundo que seja externo à consciência, sempre se é res-
ponsável por eles. Ao se tomar uma posição alinhava-se, pelo ponto que uma escolha pode
representar, todos os acontecimentos: a escolha seria então um ponto a partir do qual o in-
divíduo, ao direcionar-se ao mundo, cria uma relação inextrincável entre si e o mundo, e, é
claro, todas as adversidades que este podem representar à uma dada liberdade.

A ponte entre a noção sartriana de situação e a clínica é que, sem es -


forço, pode-se notar que toda fala do indivíduo a outro é sempre índice de
como se configura sua situação, como tal indivíduo se articula às diversas
estruturas da situação. Nesse sentido, não seria, evidentemente, uma exce -
ção a fala no contexto da prática da psicologia clínica.
Dessa forma, alguém que fala, por exemplo, de sua relação com seus pais, tema que a
psicanálise consagrou no contexto clínico, estaria falando de uma relação entre uma factici-
dade e uma liberdade. Sartre, que muito se interessava pela psicanálise, não deixa escapar
um cometário sobre esta questão no capítulo que foi analisado. Na estrutura da situação de-
nominada de meu lugar, Sartre trata, dentre outras coisas, do nascimento e, portanto, da
relação da criança com os pais (Cf. p. 42-4). Sartre neste ponto implicitamente está se con -
trapondo ao determinismo histórico da Psicanálise, isto é, que a relação de identificação
com os pais, nas crianças de bem pouca idade, traçaria o futuro de sua vida; que todas as
questões deveria ser remetidas ao momento do complexo de Édipo. Para Sartre, conquanto a
estrutura da situação do lugar, que circunscreve o nascimento, seja contingente à consciên-
cia, a liberdade, nem por isso, sucumbe plenamente a essa determinação. De fato, meu – pri -
meiro – lugar me é dado pelo meu nascimento, que como tal remete às escolhas de meus
pais. Nasce-se em tal cidade ou país porque, em alguma medida, os pais escolheram esse des-
tino para o filho. Nascer neste lugar é partilhar certa cultura, e, portanto, inserir-se social-
mente, movimento no qual o indivíduo não está apenas como mero reflexo.
É também partilhar também certa lingua – tema que se viu quando se tratou da es-
trutura da alteridade (Cf. p. 58): meu outro. Sobre esta questão é importante, a partir da
articulação entre língua, linguagem, falante e ouvinte (ou indivíduo e psicólogo), retomar
dois aspectos para pensar a prática clínica.
Sartre, em primeiro lugar, não partilha do ponto de vista que o indivíduo é falado –
como ele sugere que os linguistas sustentariam –, pelo contrário, também no campo da lin -

109
guagem a liberdade não desaparece. É certo que existem regras gramaticais que organizam
as estruturas da fala. Contudo, sem este sujeito que organiza as palavras, conferindo sentido
a elas, embora utilizando-se dessas mesmas regras, a linguagem morreria. Dessa forma, sem
certo sentido, essas regras só passam a existir porque existe uma liberdade que as sustenta:
é esta consciência que, numa relação de liberdade e adversidade, ou seja, situada, faz as re-
gras terem vida.
Ainda que não seja possível desenvolver todas as consequências dessa posição de Sar-
tre para a clínica, não se pode deixar de apontar que seria possível traçar um debate muito
fecundo com a psicanálise francesa. Lacan, em seu período mais estruturalista, poderia ser
compreendido como um grande debatedor deste ponto com Sartre. O psicanalista francês
sustenta que o que ele chama de “direção do tratamento”, funda-se precisamente nesta con-
cepção de linguagem: nos textos sobre o manejo clínico, ele confere um primado das inter -
pretações aos elementos de linguagem. Segundo ele, ao se realizar um “retorno a Freud”,
ressurgiria a questão da análise dos chistes, dos atos falhos, enfim, dos lapsos de linguagem,
como a porta de entrada privilegiada para o inconsciente.
Provavelmente Sartre não concordaria com estas consequências para a prática clíni-
ca, pois diverge frontalmente dos pressupostos de Lacan. É bem verdade, todavia, que a no-
ção de situação permitiria uma análise semelhante dos lapsos de linguagem, ao considerar
que o indivíduo está inteiramente implicado em todos os seus atos: assim, até pelos – apa -
rentes – erros, tropeços, brincadeiras etc, o indivíduo é plenamente responsável. Portanto,
embora talvez até seja possível pensar que ambos defenderiam este aspecto do método psi-
canalítico, é evidente que os pressupostos seriam inteiramente outros: se um recorre ao pa-
radigma da linguagem – que em última instância compreende o homem como completa-
mente subsumido às estruturas, ao sistema de organização simbólico, ou seja, uma posição
determinista –, o outro, precisamente por defender uma noção de homem articulada à liber-
dade, ainda que situada, defende uma concepção de homem em perpétua e inescapável rela-
ção, não submissão, com aquilo que lhe é outro.
Em segundo lugar, retoma-se a relação entre interpretação e linguagem tal como
Sartre analisou. Como se viu (Cf. p. 63), para Sartre, há um primado da situação na interpre -
tação: “primeiramente vem a situação, a partir da qual compreendo o sentido da frase, sen-
tido esse que não deve ser considerado como algo dado, mas como um fim escolhido em um
livre transcender de certos meios.” (SARTRE, 1943, p. 635). Assim, a situação, do ponto de
vista do ouvinte, e aqui a relação com o psicólogo é quase direta, é determinante na inter-
pretação: antes de qualquer coisa, ouve-se a relação do indivíduo com suas adversidades. A

110
compreensão do sentido da frase depende absolutamente da possibilidade de se compreen-
der situação do indivíduo que fala: em certa medida, o ouvinte se lança, no ato da escuta,
nos projetos do outro nas suas antecipações no tempo, busca seguir, acompanhar para onde
apontam esses projetos; apenas nesse movimento de escuta da situação é que a compreen-
são do sentido dos enunciados se dá.
Esse movimento de projeto, como já tanto se salientou, implica uma relação com a
temporalidade , tema que é tratado em mais de um momento do capítulo, nas estruturas
meu passado e minha morte (Cf. p. 48 e p. 92).
Sobre 'meu passado', o fundamental é salientar o paradoxo da temporalidade: “Não
posso me conceber sem passado, ou melhor, sem passado eu sequer poderia pensar seja o
que for a meu respeito, posto que penso acerca daquilo que sou, eu sou no passado; mas, por
outro lado, sou o ser pelo qual o passado vem a si mesmo e ao mundo” (SARTRE, 1943, p.
610). E, com isso, é possível comentar um outro aspecto daquele determinismo da relação da
criança com os pais. O passado é um elemento com o qual não se pode abdicar e relacionar-
se, meu passado para Sartre, certamente, me constitui, ou seja, faz parte imanente da minha
situação. Em qualquer projeto meu há sempre uma relação com meu passado: sempre uma
afirmação, reatualização, confirmação ou negação, porém isso não quer dizer que haja um
determinismo: o passado não impõe inelutavelmente o que deve acontecer no futuro.
Aliás, fenomenologicamente, o movimento da temporalidade se manifesta de outra
forma: é o futuro que determinará o passado. A partir das escolhas que subsistem nos proje-
tos a liberdade organiza sua relação com a temporalidade. Os projetos, sendo antecipação no
tempo, no futuro, são estruturas a partir das quais tanto o passado, quanto o presente, terão
que, de alguma maneira, se conformar a eles. Por exemplo, com a pretensão de realizar de-
terminado fim – portanto uma antecipação no tempo está feita – meu presente – um passa-
do para este projeto – passa a ser afirmado ou reiterado conforme aquilo que se concebeu.
Sartre oferece diversos exemplos nesse sentido: de um casamento, de uma crise de identida-
de na juventude etc., eventos que, a depender de como se vislumbrar o futuro, uma calda de
significação recairá sobre eles podendo ou não alterar suas significações iniciais.
Neste ponto há outro paralelo com a psicanálise. Por um lado, essa compreensão da
temporalidade como situação permite Sartre livrar-se do determinismo histórico ontogené-
tico, isto é, da concepção psicanalítica de que as relações de objeto primária (com os pais,
sobretudo, como a mãe) determinam o futuro. Nesse sentido, pode-se dizer que o primeiro
aspecto configura-se mais como uma contradição à psicanálise. De outra parte, há uma pos-
sibilidade de compreender esta mesma questão da temporalidade situada como uma conso-

111
nância com a psicanálise. A teoria freudiana do trauma pressupõe que o futuro pode, ao tra -
zer novas significações para o passado, modificá-lo. Sendo assim, em alguma medida, há em
Freud, certa ambiguidade no que concerne a como compreender a questão da temporalida-
de. Se de um lado há determinismo, de outro o indivíduo tem certo poder sobre seu passado.
Essa relação situada com a história abre para o tema da responsabili -
dade que pode ser pensado como uma das metas do trabalho da psicologia
clínica. Que o indivíduo venha a se responsabilizar pelas suas escolhas, que possa perceber
que sejam elas deliberadas ou não terá que que lidar com as consequências de cada ato seu.
Os projetos, que trazem em seu bojo as escolhas da liberdade diante das adversidades, são
pontos em que a consciência se sustenta no tempo, na história. A partir dos projetos toda a
história vem a ser, e como as escolhas que subsidiam os projetos são sempre situadas, é a no-
ção de situação que aponta para para a responsabilidade. É precisamente por ser a tempora-
lidade e a história oriundas dos projetos situados do indivíduo que a concepção de homem
sartriana como um ser-em-situação tem como consequência necessariamente a responsabi-
lidade. Compromisso do indivíduo com todas as suas escolhas que muitas vezes se perde ou
se tenta encobrir, ao que Sartre chama má-fé, e que pode-se propor que o trabalho da psico-
logia clínica seja restaurar ou desvendar esse distanciamento do indivíduo de suas próprias
escolhas.

Pode-se, por fim, retomar alguns aspectos daquele longo trecho de Freud citado no
início deste trabalho. Freud havia aconselhado que, num processo psicanalítico, os pacientes
deveria decretar certa moratória de algumas decisões importantes da sua vida, que apenas
quando no término da análise é que o paciente estaria apto a exercer seu poder de decisão.
A análise seria então uma precondição para a autonomia dos indivíduos neuróticos, pois o
indivíduo ainda não poderia se responsabilizar por seus atos. Desenvolver a autonomia do
indivíduo pode se compreendido então como meta do trabalho na clínica. Se o processo psi-
canalítico possibilitaria ao indivíduo exercer escolhas autonomamente, então todo o traba-
lho orbita ao redor da questão da responsabilidade seria, portanto, um processo de respon-
sabilização pelas suas escolhas.
Até aqui as ideias de Sartre estariam em grande consonância com a proposta freudia-
na. Entretanto, pensando, com a concepção sartriana de situação, acerca dessa interrupção
no estado de responsabilidade pode-se notar certa divergência. Para Sartre seria impossível
um estado em o indivíduo não estivesse responsável por suas ações, poder-se-ia pensar
numa postura de má-fé, isto é, numa tentativa vã de mascarar o fato de que sempre se está

112
implicado com as coisas. Haveria, dessa forma, uma postura artificial da parte de Freud e
que, em certa medida, estaria em contradição com sua proposta de um trabalho no qual o
indivíduo pudesse, no término, responsabilizar-se por seus atos. Eis aqui outro aspecto em
que se poderia construir uma crítica sartriana à psicanálise. Esta teria uma concepção de-
senvolvimentista – em que o indivíduo iria amadurecendo aspectos pouco desenvolvidos –
operando, aquela moratória – um sursis, uma suspensão da responsabilidade – seria possível
e razoável porque se pressupõe que no processo analítico o paciente iria se desenvolver,
amadurecer, resolver seus complexos (como indica o título de um importante texto de
Freud: “A Dissolução do Complexo de Édipo”), ao conferir outro significado aos seus trau-
mas. Para Sartre, entretanto, não seria possível defender essa concepção desenvolvimentis-
ta, ou maturativo, pois nesta subsiste uma noção determinista, que como se viu Sartre re-
chaçará peremptoriamente. A ideia de desenvolvimento pressupõe que o indivíduo poderia
ter recebido certos estímulos, ter tido certas experiências que o levariam a um desenrolar
daquilo que ele teria já em si mesmo pouco desenvolvido. Sartre, conquanto sempre afirme
que a liberdade é situada, isto é, que o indivíduo não tem uma autonomia absoluta em rela-
ção às coisas, não incorrerá na afirmação de que as experiência passadas, ou que os estímu -
los do ambiente, as relações de objeto são determinantes na constituição de uma individua-
lidade: são, sem dúvida constituintes – ao serem situadas –, porém não determinantes, a li -
berdade, portanto, não se apaga diante das adversidades.
A clínica, portanto, pode ser compreendida – e nesse ponto Sartre e Freud concorda-
riam – como espaço de construção de responsabilidade. O analista, ou o psicólogo deveria
contribuir para que o indivíduo se aproximasse da sua situação. Como ilustração, poder-
se-ia retomar a história da peça As Moscas (Cf. p. 46). Orestes tinha um preceptor que o
acompanhava, essa figura, contudo, era, em certa medida, contrária a um processo de res-
ponsabilização do personagem: embora fosse alguém para quem Orestes podia expor suas
angústias com relação ao seu passado, era também uma figura que não contribuiu para a
responsabilização de Orestes com sua situação. Foi, na verdade, muito mais o contato com
sua irmã que lhe permitiu o embate com a crueza dos fatos que marcavam sua história. De
certa forma então a postura do psicólogo, poderia ser pensada como um amálgama desses
elementos: da escuta que fornece espaço para a construção das narrativas individuais a par-
tir da nomeação das angústia – que com Sartre poder-se-ia chamar adversidades –, e a pos-
tura da irmã que convoca Orestes para olhar para seu passado, para assumir e refletir sobre
o lugar que está ocupando nesta sua própria história. Até então Orestes, embora já conhe-
cesse alguns aspectos de sua história, julgava que toda a miséria da população daquela cida-

113
de que agora visita – a sua terra natal – não lhe dizia respeito. Foi preciso que ele conhecesse
toda sua história para que então pudesse questionar-se sobre o lugar que nela lutaria para
ocupar, tendo, evidentemente, que responsabilizar-se pelas suas escolhas. Pode-se se dizer
que apenas o papel do preceptor que oferece espaço para o indivíduo formular suas angústi-
as não seria suficiente para propiciar num trabalho clínico espaço para o desenvolvimento
da responsabilidade. Seria também necessário essa figura que questiona as representações
que o indivíduo tem de si mesmo, convocando-o a refletir sobre sua situação. Sendo assim,
para dar espaço da a construção de uma responsabilidade pelas escolhas, o psicólogo deveria
ser tanto o preceptor que escuta, quanto a irmã que convoca para aspectos da situação ao
questionar as posições do indivíduo.
Essa função de questionamento também defendida por Freud. E não apenas questio-
namento do indivíduo, ao se pensar utilizando os termos sartrianos, seria possível dizer que
se trata de por em questão a situação como um todo, isto é, trabalhar com uma concepção
de homem como ser-em-situação. Assim sendo, o questionamento que se dirige para o indi-
víduo não deve circunscrever-se apenas a ele. Retomando o excerto, é preciso não livrar os
ouvidos dos pacientes das críticas que se pode formular à sociedade: o olhar crítico que o
psicanalista dirige ao indivíduo apontando os elementos em que ele esforça-se para perma-
necer alheio a si mesmo, ou seja, desresponsabilizando-se de seus atos – nos termos de Sar-
tre, agindo em má-fé –, também deveria o psicanalista dirigir à sociedade. Esse movimento
crítico, todavia, não pararia aqui, deveria retornar para o indivíduo: é preciso identificar as
os lugares irresponsáveis que se ocupa na sociedade. Dessa forma, há nos dois autores um
outro pondo em comum: dirigir um olhar crítico à sociedade é também trabalhar com uma
certa noção de situação, pois pressupõe-se que haja relação entre as duas instâncias. Esta
outra consonância importante entre Freud e Sartre muitas vezes é desprezada por psicana-
listas, pois restringem sua escuta aos 'romances familiares' ou às angústias individuais. Po-
de-se aqui pensar que, a comparação entre os dois autores, tem a perspectiva de acirrar as
possibilidades críticas da letra freudiana: ressaltando uma possibilidade de leitura de Freud
em que a sociedade e outros aspectos da situação não estão apartados do indivíduo, antes
são constituintes. Dessa forma, por mais que Freud denomine psicanálise, ou seja, examinar
dividindo em partes menores, separando os mais recônditos meandros da alma, da subjetivi-
dade, é possível pensar também que essa análise não implica uma separação do que outrora
se conectava.
Pelo contrário, a análise, ou o processo de trabalho em psicologia clínica pode ser
pensado como situado, isto é, um processo em que se oferece espaço para elaboração res-

114
ponsável das escolhas por parte do indivíduo – inclusive aquelas que Freud aconselhava sus -
pender as decisões. Pode-se pensar que as decisões precisam estar ancoradas na apropriação
de uma escolha, na responsabilização pelo ônus de nossa escolhas. Um processo não precisa
ter uma finalização no sentido de um processo que re-visite nossa biografia entre outras exi-
gências para que alguém possa escolher. Na verdade nunca teremos garantia de nossas esco-
lhas, tempos sim que nos apropriar delas. A má-fé precisa ser desconstruída em favor de
uma apropriação, um questionamento dos lugares em que livremente o indivíduo escolhe
ocupar nos interstícios entre sua liberdade e as adversidades a seus projetos.
Assim, pode-se ressaltar a partir de desta leitura de Sartre sobre as questões éticas da
prática clínica, subsidiada na concepção de homem como ser-em-situação – liberdade e fac-
ticidade. A análise como condição para pensar a liberdade fora do âmbito do senso comum: é
sempre situada, o indivíduo não pode conquistar tudo, mas pode pretender a tudo, o que o
limita são suas próprias escolhas. A escuta e a crítica – entendida como questionamento dos
lugares que o indivíduo ocupa em sua situação – como elementos fundantes da relação psi-
cólogo e indivíduo. A implicação do psicólogo no mundo, isto é, a situação do psicólogo: ele
não é um reformador social – como adverte Freud – nem tampouco um incentivador do pra-
zer desmedido e hedonista – tudo é permitido. O psicólogo deve ter um olho no paciente e
um olhar critico com relação à sociedade. Nesse sentido, o psicólogo não pode ficar alheio,
dentre outros aspectos, às formas de exploração social contemporâneas, por exemplo, aos
excessos da medicalização e do diagnóstico desmedido, às relações de trabalho nas quais
muitos adoecem, a desigualdade e injustiça social etc. Assim, é preciso ver o homem em seu
contexto histórico – situado.

III – EPÍLOGO: (EST)ÉTICA

“Indicar os limites da interpretação psicanalítica e da explicação marxista, afirmar que só a liberdade


pode tornar inteligível uma pessoa em sua totalidade, mostrar essa liberdade em luta com o
destino – primeiro esmagada por suas fatalidades, depois, voltando-se para elas, digerindo-as pouco
a pouco – provar que o gênio não é um dom, mas a saída que se inventa nos casos desesperados,
descobrir a escolha que um escritor faz de si mesmo, mas sua vida e do sentido do
universo, até nas características formais do seu estilo e da sua composição, até na
estrutura das suas imagens e na particularidade dos seus gostos, traçar
detalhadamente a história de uma libertação : foi isso que desejei. O leitor dirá se consegui”
(SARTRE, 1952, 546, grifo meu).
Com estas palavras, que bem poderiam iniciar um prefácio, Sartre começa o último
capítulo de seu Saint-Genet, a biografia que escreveu sobre o escritor marginal francês Jean

115
Genet. Elas sintetizam bem o propósito deste epílogo. A noção de situação pode ser resumi -
da tensão antitética no par liberdade-adversidade, tal como se comentou diversas vezes. O
que, por fim, se pretende esboçar é uma relação entre esta tensão e os campos da ética, da
estética e a clínica. A ética sartriana pode ser compreendida inserida na questão do debate
determinismo x livre arbítrio: pôde-se ver que a responsabilidade surge, a partir das noções
de projeto e escolha, da concepção de homem como ser-em-situação, que uma ética da liber-
dade, portanto, não significa um elogio ao hedonismo, pelo contrário, as possibilidades de
ação entre um determinismo e uma liberdade passam por uma apropriação responsável das
escolhas envolvidas em cada projeto.
Tanto a psicanálise como o marxismo, nessa citação, são compreendidos como for-
mas deterministas de compreender o homem. Adentra-se a questão da estética, pois para
contrapor-se a essas concepções, Sartre irá tentar “descobrir a escolha que um escritor faz
de si mesmo”, e, para tanto, compreender escritor e sua obra a partir da noção de situação.
Descobrir as escolhas é precisamente examinar as estruturas da situação, em suma, com-
preender como o escritor posicionou-se diante daquilo que se manifestou a ele como obstá-
culos a seus projetos e qual o lugar que sua produção tem nessas escolhas. Trabalha-se com
uma ideia de que a obra é também uma forma do indivíduo situar-se no mundo, assim, com
uma liberdade situada: que “luta com o destino” e digere as adversidades39.
Como se ressaltou, a clínica pode ser compreendida como um espaço da escuta da si-
tuação: das angústias, dos dilemas oriundos das escolhas implicadas em cada projeto, pois
qualquer projeto que seja implicará renúncias de algo de liberdade diante das adversidades.
Toda a escuta clínica é em alguma medida o espaço da construção de uma
narrativa – eis o fio que liga essa reflexão estética e ética à questão da clíni -
ca. Sendo assim, pode-se refletir sobre o processo de produção artística como algo homólo-
go do processo de construção de uma narrativa na clínica.

Dessa articulação entre luta contra adversidades e uma compreensão da produção ar-
tística como uma saída que o artista cria para sua situação: a “saída que se inventa nos casos
desesperados”, pode-se também pensar num poeta brasileiro que fez de toda sua obra um
desenvolvimento desta ideia.

39 Aqui curiosamente aparece novamente a imagem da digestão tão emblemática do texto sobre a
intencionalidade, mas agora com o sinal trocado, não mais numa chave crítica, agora como o substrato do
projeto originário: digerir lentamente é índice do processo infindável e inescapável – embora as condutas
de má-fé sejam manifestações de fugas – da liberdade constituir a si própria.
116
A relação entre a noção de situação e a obra de Drummond foi uma decorrência qua-
se automática do estudo de Sartre. Retomando a imagem que Sartre mesmo utiliza para sin-
tetizar a definição de “Em-si”, a pedra (Cf. Assinalado na nota 21, p. 36) como expressão de
algo enclausurado, denso e que tem toda sua significação em si mesmo, bem como a imagem
do exemplo do rochedo (Cf. p. 36) com símbolo máximo de obstáculos a serem transpostos,
quase que se desliza sem muito atrito para a poesia mais conhecida de Drummond.
“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho


tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.” (ANDRADE, 1987, p. 15).

Publicado em 1928 (na época em que Sartre estudava fenomenologia na Alemanha)


na Revista Antropofágica, No Meio do Caminho , conquanto não tenha feito muito alarde na
época, ganhou posteriormente grande importância para os críticos devido ao seu poder de
síntese de aspectos fundamentais da obra do poeta. Conforme argumenta Arrigucci Jr.:
“Nele, pela primeira vez, surge uma situação que depois de tornará recorrente no conjunto [da obra],
o encontro do poeta com algum obstáculo que lhe barra a passagem ou interfere em seu caminho.
Como toda situação reiterada, essa pode adquirir um papel simbólico , virando parte de uma história
maior, e muito mais do que prometia à primeira vista, apesar do [pouco] impacto inicial” (2002, p. 69).
Evidentemente, neste trabalho não se pretende realizar uma profunda análise deste
ou de outros poemas da obra de Drummond. Pretende-se, no entanto, destacar alguns aspec-
to que guardam relação com o pensamento de Sartre ou podem ser interessantes para pen-
sar a prática clínica, que talvez se possa resumir na seguinte questão: não seria a clinica um
espaço privilegiado em que se lapidam as pedras encontradas no meio do caminho, em que
se busca a delicadeza cristalina diante da opaca pedra bruta?
A pedra tanto para o poeta, quanto para Sartre, tem o sentido claro de adversidades,
condição da qual, aliás, não se escapa jamais, como atestam o verso “Nunca me esquecerei
deste acontecimento”, bem como a repetição exaustiva da palavra 'pedra' que aponta para
uma dureza imperfurável – num primeiro momento. Não importa em que ordem que se es -
creveu a frase (começando por afirmar que tinha uma pedra, ou começando por afirmar o
local onde se encontrará a pedra: no meio do caminho) sempre haverá uma pedra, isto é,
uma adversidade; assim, existir é existir em meio aos obstáculos e na saída que se consegue

117
buscar para, sem fugir deles – o que seria má-fé – enfrentá-los. A facticidade, portanto, é
imante à condição humana. Justamente por isso, por viver em meio às adversidades e ten-
tando achar um caminho entre as pedras que aparentam configurá-lo previamente, o eu líri-
co viveu, envelheceu (e com ele também suas retinas), não pereceu, nem sucumbiu às apa-
rentemente determinações que obstruiriam sua liberdade.
O homem ainda existe, os obstáculos não mataram o indivíduo, não encerraram a li-
berdade; o homem ainda existe, não apesar (não deixando de lado, descartando) das dificul-
dades, mas simultaneamente e nas adversidades, ou precisamente por elas: estas são, em
certo sentido, os objetos que causam a liberdade, pois é em oposição a eles que a liberdade
se faz. Retomando o texto de juventude de Sartre, “Não é em sabe-se lá qual retraimento que
nos descobriremos: é na estrada, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, ho-
mem entre os homens” (1939, p. 57). É, portanto, na palavra do poema, “no meio do cami-
nho” que se encontrará o homem.
Comentou-se a questão da repetição da palavra pedra como uma forma de expressar
que não se pode escapar a uma relação com as adversidade. Contudo, outro aspecto também
é possível apontar acerca dessa repetição.
A repetição à exaustão pode ser compreendida também como um recurso do poeta
de desgastar as adversidades, de estilhaçá-las, de britar as pedras, de “furar de tanto reba-
ter-se com elas”, romper com o que elas significam para o indivíduo, quebrar a ideia de que
são obstáculos: é por propositalmente deparar-se incessantemente com os obstáculos que a
possibilidade de não mais concebê-los como insuperáveis, ou mesmo como obstáculos, se
forma.
“Nessa historieta circular, o que está em jogo, portanto, é sempre o princípio e o fim da criação
poética: a pedra será, recorrentemente a pedra no caminho de toda criação drummondiana. Nela
reside a dificuldades básica que para ele funda a criação: é o fato desencadeante, e, simultaneamente,
entrave do ato poético” (ARRIGUCCI Jr., 2002, p. 72-3).
Assim, o poema pode ser entendido como um poema que põe em questão precisa-
mente o ato de criação poética: trata dos obstáculos que o poeta enfrenta na criação, é uma
“meditação básica e simbólica sobre o ato criador” (IDEM, p. 73). Adversidades que foram, é
claro, superadas: o poema está feito.
Entretanto, o que predomina neste poema é um sentimento de impossibilidade de es-
capar dos obstáculos, predomina um sentimento de impotência diante dos obstáculos.
“A reiteração constante tem algo de cômico porque parece a rigidez mecânica de uma roda do
infortúnio da qual não se pode escapar; na sua mesma comicidade grotesca conota ainda algo de
terrível, cujo efeito corrói a alma, ensimesmada e abatida diante da pedra irremovível. Esse ritmo de
eterno retorno é também o movimento da reflexão que sempre volta ao mesmo ponto, como a uma
ideia fixa. Mas no meio do caminho (e do poema), sem se interromper o esforço reflexivo, surge a

118
diferença da fadiga, do desalento, da perplexidade, elementos que compõe, na verdade, um complexo
sentimento de não-poder do Eu” (IDEM, p. 71).
À reflexão, que se embate infinitamente com um mesmo objeto, uma mesma ideia
fixa, pode-se comparar o processo do trabalho da clínica. “a pedra está no início de tudo e
também, no fim. Atingindo a sensibilidade do poeta, ela desencadeia a reflexão, pois cria a
aporia que está no princípio de todo o querer saber” (IBIDEM, 73). Essa aporia, esta contradi-
ção é precisamente o que a noção de situação se propõe a abarcar. A perplexidade que mobi-
liza o indivíduo para conhecer, que desencadeia a reflexão é semelhante ao incômodo, à an-
gústia de que o indivíduo se queixa na clínica. O que leva alguém a procurar um atendimen-
to psicológico é precisamente algo que se mostra ao indivíduo como desconhecido, impene-
trável, imperfurável e que, por esta mesma razão, lhe traz angústia. Dessa forma, é algo da
situação do indivíduo, algo que lhe aparece como um conhecimento obstruído, como uma
comportamento que sempre retorna e se faz autonomamente etc., enfim algo que atrapalha,
que impede os projetos, que se mostra como uma restrição de liberdade.
Se, todavia, como se salientou, no poema predomina um tom mais pessimista, isto é,
que não concebe saída para essa eterna antinomia do retorno das dificuldades, há um poema
em que Drummond trilha um caminho para escapar a essa aporia, o Áporo

“Um inseto cava


cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,


em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto


( oh razão, mistério )
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.” (ANDRADE, 1987, p. 137).

Nesse poema, em que também Drummond se encontra às voltas com a questão do ato
criador, em que também pode-se dizer que se trata da relação entre a liberdade e a facticida-
de, narra-se a metamorfose de um inseto que depois de muito trabalho transforma-se em
flor. O inseto que cava, que busca saída, que tenta traçar seu caminho em meio às pedras,
não consegue, num primeiro momento escapar, permanecendo, assim, na mesma repetição
do mesmo que o outro poema, em que o indivíduo tropeça eternamente.

119
Eis que um caminho se consegue traçar em meio ao labirinto de adversidades da
vida, bruscamente o novelo, num emaranhado caótico, se desata. Se se considerar que o poe-
ma trata do ato criador, pode-se ter uma chave de compreensão desta imagem do labirinto:
“O primeiro passo significa, portanto, penetrar num labirinto verbal, cuja dificuldade inter-
na se espelha, para nosso espanto, na forma circular da construção. Árduo caminho, o de
procurar caminhos para tentar responder à dificuldade” (IDEM, p. 78). Processo que, nova-
mente, pode-se pensar semelhante ao trabalho da clínica.
O que, entretanto, permite a mencionada metamorfose – que novamente também é
possível pensar uma paralelo com a clínica – é precisamente assumir e defrontar-se com as
adversidade até que de tanto atritar com elas começaria um desgaste natural, isto é, precisa-
mente por defrontar-se à exaustão, sem fugir, com aquilo que se mostrar como obstáculo é
que eles podem ganhar outras significações, que se possa achar um fio de Ariadne que guie
para fora do labirinto que aprisionava o indivíduo num caos sem saída de obstáculos.
“O centro oculto do labirinto é também o centro do enredamento, onde as unidades significativas,
dando primeiro a impressão de soltas ou dispersas, acaba, por se ligar inextricavelmente. Mas o ponto
máximo da dificuldade pode ser o limiar da revelação” (IBIDEM, p. 910).
Essa revelação só advém, ao indivíduo na clínica, ou ao poeta no processo de criação
artística, pelo trabalho. É o trabalho o motor desse movimento de deparar-se constantemen-
te com os problemas. O trabalho é a atividade humana diante daquilo que resiste a essa mes-
ma atividade: é um movimento de uma liberdade que se embate reincidentemente como os
obstáculos, a atividade que não desiste diante daquilo que num primeiro momento se mos-
tra como dificuldade.
“É pelo fio fundamental do trabalho que o enlace se ata e desata. Na verdade, é pela força operante do
trabalho do poeta que se articula também a imagem poética. Assim se gera o enlace, ganha corpo a
dificuldade; da mesma força geratriz pode surgir, porém, o seu contrário. (…) Da mesma força do fazer
que persiste apesar da dificuldade, brota a novidade: flor-poema. É essa força da poesia, que pelo fazer
transforma a dificuldade, mesmo sob o risco do impasse, em arte” (IBIDEM, p. 94).
Foi o trabalho do inseto que, ao mover o indivíduo reiteradas vezes em direção aos
obstáculos com a pretensão de superá-los, pôde propiciar a metamorfose. O inseto que cava-
va sem cessar e também sem achar saída, por essa reiterada atividade pôde vislumbrar as
adversidades de outra forma transpondo-as.

É por essa possibilidade de transpor os obstáculos de, não fugindo à responsabilidade


de encará-los face a face, poder situar-se diante deles de outra forma, que uma clínica situa-
da deve lutar, isto é, por oferecer um espaço que o indivíduo possa realizar este trabalho.

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