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HERO E LEANDRO: o manuscrito perdido de A. F.

de Castilho
Eduardo da CRUZ 1

RESUMO
A partir da leitura do manuscrito de um poema inédito de António Feliciano de Castilho, Hero e Leandro ou a
sacerdotisa de Vénus, encontrado no espólio dos Viscondes de Castilho no Arquivo Nacional Torre do
Tombo, situamo-lo entre as produções de juventude desse autor a partir de indicações biográficas sugeridas
pelo poeta. A análise desse poema permite apontar caminhos estéticos e políticos na poética castilhiana, na
transição entre os modelos árcades e os românticos na década de 1820.

PALAVRAS-CHAVE: Manuscrito, Romantismo, Mito, António Feliciano de Castilho, Liberalismo Português.

ABSTRACT
From the reading of the manuscript of an unpublished poem by António Feliciano de Castilho, Hero e Leandro
ou a sacerdotisa de Vénus, found in the estate of the Viscounts of Castilho in the Arquivo Nacional Torre do
Tombo, we situate it among the productions from his youth using biographical indications suggested by the
poet. The analysis of this poem allows the discovery of the aesthetic and political paths in the poetics of
Castilho, in the transition between the arcadian and romantic models in the 1820s.

KEYWORDS: Manuscript, Romanticism, Myth, António Feliciano de Castilho, Portuguese Liberalism.

1 Doutor em Estudos de Literatura pela UFF (2012), com tese sobre a Revista Universal Lisbonense de António Feliciano de Castilho
(1842-1845). Prof. Adjunto de Literatura Portuguesa do Departamento de Letras e Comunicação Social / Instituto de Ciências
Humanas e Sociais / UFRRJ.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

Em 2012, enquanto pesquisávamos o fundo dos Viscondes de Castilho no Arquivo Nacional Torre
do Tombo (ANTT), em Lisboa, recebemos, por um equívoco na catalogação, um manuscrito intitulado “Hero
e Leandro ou a sacerdotisa de Vénus — poema em cartas” 2, com as indicações: “únicos fragmentos que
apareceram”; “devem ser da primeira mocidade do autor”; e “não há vantagem em imprimir estas informes
tentativas”. Eram, de fato, dois conjuntos. Um deles era composto por textos desordenados, versos riscados e
substituídos, além de indicações de partes do texto que continuariam em outras páginas. O segundo tinha o
mesmo conteúdo, mas organizado segundo as instruções e numeração do primeiro maço e escrito com outra
letra e com ortografia diferente 3.
Apesar de o catálogo do ANTT indicar Júlio de Castilho (1840-1919), o segundo Visconde de
Castilho, como autor desse poema, sabe-se que o verdadeiro compositor foi seu pai, António Feliciano de
Castilho (1800-1875). A Revista Universal Lisbonense, tomo 7, n. 29, de 22/06/1848, em notícia intitulada
“Grande perda para a nossa litteratura”, conta que, “pela segunda vez, se extraviou o preciso thesouro
litterario, que com tanto amor e trabalho tem andado a juntar por muito tempo o talento brilhante e aturado
estudo do Sr. Antonio Feliciano de Castilho” (p. 347) e inclui, entre o material perdido, “um poema
denominado Leandro e Hero” (p. 348). Esse extravio pode ser uma das causas de estar o poema incompleto e
ainda inédito.
Entretanto, uma nota de José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha (1810-1879), irmão do poeta,
em seu Grinalda Ovidiana, publicado no Rio de Janeiro —onde residia —, para acompanhar Os Amores,
paráfrase de A. F. de Castilho ao texto de Ovídio Nasão, em 1858, informa que “o nosso paraphrasta
começou, sobre o systhema das suas Cartas de Eccho e Narciso, umas Cartas de Hero e Leandro, de que
algumas ainda existem em nosso poder, escapadas ao auto da-fé; promettia ser obra de grande valor” (p. 684).
Seria essa a causa do extravio? O poema estaria no Rio de Janeiro, tendo sido trazido por José Feliciano? É
curioso pensar nesse “auto da-fé”, que teria queimado algumas produções castilhianas. Afinal, Castilho não é
um poeta reconhecido por descartar seus escritos. Ele refundiu e republicou diversos poemas, além de ter
preparado um volume de Escavações Poéticas, em 1844, com escritos da juventude, e ter deixado material
suficiente para o filho compilar outros volumes de poemas, Novas Escavações Poéticas, e editar o livro que
havia ficado em projeto, Presbitério da Montanha. Como explicar um possível descarte desse poema,
sobretudo uma destruição apenas parcial?

2 Portugal/ANTT/Colecção Castilho/cx. 49, ms. 3, n. 2.

3 Como não há coerência ortográfica no manuscrito, inclusive pelo fato de António Feliciano de Castilho ser cego e depender de
secretários para escrever o que ele ditava, optamos por atualizar a ortografia de todas as citações desse poema.

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Hero e Leandro

Júlio de Castilho, que, aparentemente, indica que “não há vantagem em imprimir estas informes
tentativas”, afirmava, em 1863, possuir esse poema, ainda inédito, nas “notas para serem lidas — Castilhos”
(p. 103) que acompanhavam a segunda edição da adaptação do drama Camões feita por seu pai. Se o poema
não estava completo, como indica José Feliciano, não seria mesmo indicado publicá-lo. Importa-nos, então,
levantar motivos para que António Feliciano não o tivesse terminado, ou reconstruído, no caso de alguma
parte ter sido realmente perdida. Para isso, vamos tentar localizar o período de composição e as questões
políticas e estéticas de Castilho nesse momento, seguindo indicações dadas pelos próprios poemas, pois
acreditamos que essa produção está num momento de forte tensão entre a sensibilidade romântica e a razão
árcade na poética castilhiana, além de apontar ideais políticos defendidos pelo liberalismo português.
António Feliciano de Castilho começa sua vida pública como poeta com dois longos poemas de
homenagem à monarquia: Epicedio na Sentida Morte da Augustissima Senhora D. Maria I Rainha Fidelissima,
de 1816, e A Faustissima Exaltação de Sua Magestade Fidelissima o Senhor D. João VI ao Throno, de 1818.
Com essas publicações ele consegue um cargo público oferecido por d. João VI, exercido por um tio tendo
em vista que o autor agraciado era cego, mas perdido com a revolução liberal de 1820. O livro que António
de Castilho publica a seguir, em 1821, é a primeira parte das Cartas de Eco e Narciso. Sobre ele, não é difícil
dar razão a Teófilo Braga quando diz que é o mesmo assunto repetido à exaustão. O lirismo cede lugar a uma
narratividade numa novela epistolar na qual Eco está apaixonada por Narciso, que ignora, foge e desdenha de
seu amor. Em um bosque idílico, os dois jovens trocam longas cartas em decassílabos brancos esculpidos nos
troncos das árvores. O livro só se completa na segunda edição, de 1825, quando são publicadas as duas
partes do poema. É mais uma sequência de cartas em decassílabos brancos entre Eco e Narciso, seguidas de
outras composições sobre o mesmo tema, algumas delas já anunciando a retomada da tradição métrica
popular, em redondilha. Como narrativa, há um problema estrutural que parece não ter sido previsto pelo
autor. Como toda a história é narrada por cartas, quer de Eco quer de Narciso, após o jovem se transformar
em flor e Eco se perder entre as montanhas, quem narrará esses acontecimentos? Foi preciso arrematar com
um idílio “para servir de conclusão ao romance”, no qual se contam as queixas de Liríope e o que se passou
com Narciso.
Quanto à composição poética, o autor faz uma autocrítica e reconhece o excesso de figuras míticas,
tanto neste livro quanto n’A Primavera, publicado em 1822, entre os dois volumes das Cartas, portanto. Além
disso, ele tentou tornar a segunda parte menos monótona, assumindo que “há n’ella mais poesia, mais
movimento, mais variedade e attitudes” (CASTILHO: 1903, p. 17). Ao mesmo tempo, Castilho assume que há
novidade nesse estilo de poesia que estava publicando, tanto na segunda parte das Cartas quanto na

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Primavera, o cantar a natureza portuguesa. Ele estaria nacionalizando um gênero de poesia comum a alguns
alemães do século XVIII e ao suíço Gessner, seu modelo preferido. “Castilho era muito dedicado ao poeta,
que representava a seus olhos uma actualidade sem problemas demasiados e, sobretudo, sem polémica”
(FRANÇA: 1993, p. 42). É um ataque frontal ao desespero de certa poesia de moda romântica, ao mesmo
tempo em que critica o modelo árcade com toda sua profusão de imagens retiradas da mitologia greco-
romana – da qual ele mesmo tinha dificuldade de se desvencilhar.
Homens de mais imaginação que juízo, arrojaram-se acima das nuvens, vagaram por
entre os astros, viram por toda a parte deuses; mas, esquecendo-se da terra e dos
homens, mereceram que a verdade os desamparasse, e perderam todo o direito á
estima dos amigos dos homens e da Natureza. Os loiros do Parnaso teem-se
desfolhado debaixo de uma chuva de gelo brilhante. A tempestade continúa, o
horizonte ameaça brilhar ainda muito tempo com o fogo dos raios em vez da
claridade pacifica do sol. Os nossos jovens litteratos se acham na mais difficil posição
entre rochas escarpadas. (CASTILHO: 1903, p. 16)

Ora, aos vinte e cinco anos não era Castilho um desses “jovens litteratos”? A profusão de referências
mitológicas não o aproxima também dos homens que “viram por toda a parte deuses”? Estranhamente,
António Feliciano parece se colocar, em 1825, acima dos “mancebos” a quem ele escreve o prólogo ao
mesmo tempo em que já despreza em parte os versos que está publicando, pois recomenda que os jovens
poetas esqueçam tanto as figuras mitológicas que pululavam nos poemas árcades e em seus próprios escritos
(“Jove”, “Eolo”, “Neptuno”, “Acheronte”) quanto as “rochas escarpadas”, o locus horrendus característico dos
poemas da escola romântica (“Raios”, “Ventos”, “Tempestades”, “Furias”) para cantar “a ternura, o amor, o
prazer, os campos, e a felicidade” (CASTILHO: 1903, p. 17). Deve-se cantar a “felicidade” sem se esquecer
“da terra e dos homens”. Seria isso possível? Talvez, se lembrarmos que Portugal devia estar passando,
quando ele publica a Primavera, em 1822, por um momento de grande entusiasmo e expectativas, após a
revolução liberal e o retorno do rei e da Corte. Vencidas as primeiras dificuldades políticas, era tempo de se
pensar no homem e em sua felicidade. É o tema dos poemas que compõem a Primavera. O fim do sofrimento
do inverno e o desejo de renovação que acompanha a nova estação, as brincadeiras de criança, as festas
entre amigos, o amor familiar, a vida numa sociedade em harmonia com a natureza. Estranhamos, portanto,
as palavras de José-Augusto França, para quem a corrente poética de filiação “elmanista” que se encontrava à
roda de Castilho “ficava à margem do tempo” (1993, p. 42), enquanto os “filintistas”, como Garrett, adquiriam
“responsabilidades novas”.
Esta pequena batalha da literatura pode demonstrá-lo. As obras de Castilho e de
Garrett assumem um valor exemplar: o primeiro vai cantar os amores de Eco e de

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Hero e Leandro

Narciso, porque para si estes anos eram um “tempo de prazer suave e doce”; o
segundo, no frio da mansarda de Paris, vai compor a história trágica de Camões
(FRANÇA: 1993, p. 43).

1821 e 1822 não são 1825, ano de publicação de Camões. Parece pouco tempo, mas intermeado
pela Abrilada, de 1824, reação absolutista que levou Garrett ao exílio. O “tempo de prazer suave e doce” é o
da primeira edição das Cartas, de 1821. Não queremos com isso dizer que não haja diferenças de dicção e de
temas nos dois poetas. Enquanto Garrett está profundamente marcado pela campanha liberal, Castilho, cuja
cegueira o impossibilita para a luta e mesmo para o exílio, precisava buscar outro meio de ação. “Sempre
uma nauseabunda doçura, uma linfática brandura!” resume Teófilo Braga ([19--], p. 329), argumentando que
a “imensa felicidade cansa; é preciso contrastes, agitações, para que a criação do artista corresponda às
multímodas volições e encontradíssimas impressões que se passam no indivíduo” (BRAGA: [19--], p. 327).
As agitações não demoraram a aparecer. Em 1826, com a morte de D. João VI e a questão dinástica
com o golpe absolutista de D. Miguel, toda a “nauseabunda doçura” desaparece. Nesse clima, António
Feliciano compõe, em seu retiro com o irmão em S. Mamede da Castanheira do Vouga, em 1830, uma
“Epístola ao Morgado de Assentiz”, que abrirá mais tarde seu volume de Escavações Poéticas. Nesse longo
poema, o sujeito começa apresentando seu tempo: “D’este século o estame vai fiado/ Das furias pela mão na
stygia noite,/ Magnanino Assentiz: medra no fuso,/ Farto de sangue, de peçonha e léthes.” E, após descrever
todo o horror, indaga: “Que ha-de fazer um coração sensível?” Ele, após recomendar ao velho morgado o que
fazer, assume: “Se não posso dormir, traduzo Ovidio;/ Romantiso, edifico os meus castellos” (CASTILHO:
1846, p. 1).
Segundo o que mais tarde viria a lume, é efetivamente o período mais fértil de sua vida. Apesar de
todas as atribulações por que passam a nação e sua família, o eremitério na serra, sem muitas distrações, e
com o irmão pároco a servir de secretário, facilitam a atividade literária, seja em leituras, em traduções ou em
composições próprias. Quase todas demorariam a ser publicadas. Durante o regime de D. Miguel, apenas sai
um livro, Amor e Melancolia ou a Novíssima Heloisa, de 1828, sobre o qual é preciso atentar às palavras de
David Mourão-Ferreira:
[...] relendo agora praticamente todos os versos de Castilho, mais e mais me persuado
que é urgente reabilitá-lo em parte como poeta [...]; e que um livro como Amor e
Melancolia – publicado, não o esqueçamos, em 1828 –, tendo sido talvez aquele que
o autor posteriormente menos refundiu (quase não refundiu), apresente, sob inúmeros
aspectos, características incomparavelmente mais modernas que, por exemplo, ainda
mesmo as Flores sem Fruto, de Garrett, que são de 1845. (MOURÃO-FERREIRA: 1976,
p. 48)

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Realmente, Amor e Melancolia destaca-se em meio à obra castilhiana. Nele a “claridade pacifica do
sol” das Cartas de Eco e Narciso dá lugar a uma noite de constante fantasia. É sintomática a advertência que o
poeta faz, informando que compôs o livro “sem cuidar no publico”, afinal, “que importa ao publico se eu
cobri de geroglificos um monumento que eu só levantei para mim?” (CASTILHO: 1862, p. [7]), questiona ele.
Parece que ele se esqueceu não apenas do público, mas “da terra e dos homens”, para pensar apenas em si e
em sua amada. É um livro de imagens, metáforas, paisagens, sons e formas em tudo diferentes dos anteriores.
“Romantizava”, sem perceber.
A Chave do Enigma, paratexto autobiográfico escrito em dezembro de 1861 para acompanhar a
segunda edição de Amor e Melancolia, vai explicar o que motivou esses poemas: escutar o próprio coração e
transformar o que ouviu em estética. Os “geroglificos” são traduzidos e descobre-se que o livro é a resposta a
uma declaração amorosa. Uma desconhecida assume-se como Eco e quer Castilho como Narciso. A jovem
dama vivia reclusa num convento, sem ser freira. O mistério e a correspondência amorosa motivam essa
exaltação da subjetividade do poeta, se acreditarmos na explicação biográfica. Entretanto, essa Chave de
Castilho funciona como Pedra de Roseta para decifrar mais do que esses poemas.
É o caso, ao que parece, de Hero e Leandro, ou a Sacerdotisa de Vénus. Apesar de o manuscrito não
indicar a autoria e o catálogo do ANTT apontar como sendo de Júlio de Castilho, sabemos, pelas referências
já apresentadas, que se trata efetivamente de composição de António Feliciano. Na capa em papel almaço
que indica o conteúdo do manuscrito, há uma anotação, esta sim de Júlio de Castilho, comentando dois
pontos: “Devem ser da primeira mocidade do Autor” e “Não há vantagem em imprimir estas informes
tentativas”. A segunda afirmativa é facilmente aceita, uma vez que o manuscrito, por maior que seja (são 19
cartas 4 em decassílabos brancos somando 1758 versos), apresenta-se, não diríamos “informe”, mas
incompleto. A primeira carta está sem seu início, com o primeiro verso sendo o 278º segundo a contagem que
aparece à margem. A última carta ficou sem conclusão, assim como a narrativa do mito. A primeira afirmativa
pode ajudar a datar o poema, além de apontar que não pode ser do Júlio a composição, pois ele não teria
dúvidas em datá-lo se fosse seu.

4 Carta I – Leandro a Cíntio – 387 versos (começa no verso 278); Carta II – Leandro a Hero – 15 versos; Carta III – Leandro a Cíntio –

69 versos; Carta IV – Leandro a Cíntio – 22 versos; Carta V – Cíntio a Leandro – 123 versos; Carta VI – Leandro a Cíntio – 48
versos; Carta VII – Leandro a Cíntio – 25 versos; Carta VIII – Leandro a Ismene – 19 versos; Carta IX – Leandro a Hero – 45 versos;
Carta X – Hero a Leandro – 29 versos; Carta XI – Leandro a Cíntio – 19 versos; Carta XII – Leandro a Cíntio – 143 versos; Carta XIII
– Leandro a Cíntio – 34 versos; Carta XIV – Leandro a Ismene – 58 versos; Carta XV – Hero a Leandro – 85 versos; Carta XVI –
Leandro a Hero – 196 versos; Carta XVII – Ismene a Cíntio – 292 versos (5 seções); Carta XVIII – Hero a Leandro – Confissão – 67
versos; Carta XIX – Ismene a Cíntio – 82 versos (a 1ª seção).

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Hero e Leandro

Sendo “da primeira mocidade do Autor”, por mais que seja difícil identificar quando acaba a
“primeira mocidade” ou quantas “mocidades” uma pessoa possa ter, imaginamos que seja do mesmo período
desses últimos livros aqui relacionados, de um Castilho jovem. O Castilho enamorado, comportando-se como
adolescente, com trocas de cartas de amor, ciúmes sem razão, dúvidas sobre a veracidade dos sentimentos de
sua amada ao ponto de visitar uma velha que “tinha fama nesse tempo de ser uma das sibillas que melhor
atinavam com os futuros” (CASTILHO: 1862, p. 321), faz com que ele pareça estar na “primeira mocidade”,
se já não estava nela cronologicamente. Além do que, o próprio enredo de Hero e Leandro traz semelhanças
ao que se passava com Castilho António: troca de correspondências entre namorados; Hero reclusa num
templo, acolhida pelas irmãs sacerdotisas, sua namorada retida num mosteiro, aos cuidados das freiras; a
distância entre os dois namorados; o desejo interdito pela religião, pela sociedade e pela família. Mais ainda
aponta “A Chave do Enigma” quando Castilho comenta sobre o início desse namoro à distância:
Reflectistes alguma vez no que seja aquelle bichinho de Deus, que pelas noites de
verão está scintillando do fundo de um relvado, sua immensa floresta? Pois aquillo é
uma namorada. O seu resplendor, que allumia as hervas até á enorme distancia de um
palmo em redondo, é a manifestação esplendida do vago e poetico amor em que ali
se consome solitaria; é uma Hero, mais sublime, chamando e attrahindo com o seu
facho um individuo da sua especie, que ella nunca viu, mas que adivinha ter-lhe sido
predestinado pela Natureza. (CASTILHO: 1862, p. 239)

É, claro, impossível saber o real motivo que fez com que Castilho não publicasse seu livro de Hero e
Leandro. Contudo, imaginando esse poema como sendo composto entre a segunda edição das Cartas de Eco
e Narciso (1825) e o Amor e Melancolia (1828), o estranhamento diminui. Tanto seu irmão José Feliciano
quanto seu filho Júlio afirmam que esse livro segue o estilo de Eco e Narciso, afinal, ambos dedicam-se a
amores mitológicos contatos em epístolas e a intertextualidade entre os poemas é clara, como se vê nesse
trecho da “Carta VII – Leandro a Cíntio”:
Quando junto do lago ia passando
Vi nele o meu semblante, e ri d’achar-me
A imitar sem pensá-lo o riso de Hero
Que graça, quanto amor há neste riso
Ausentar-me-ia já quando entalhado
Vejo um nome num choupo, era o meu nome
Eram de fresco os lindos caracteres
Que destra os gravaria? e que outra destra
Os podia gravar? Ismene, Cíntio
Ah! mil parabéns, eu volto a Sesto.

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Eduardo da Cruz

Estão ali o reflexo do amante nas águas do lago e a escrita no tronco da árvore. Todavia, Leandro
não se apaixona por seu reflexo, mesmo percebendo nele o mesmo riso de Hero. Ele acha graça da situação,
do engano que a imagem pode causar, e segue seu caminho. Por ali, o jovem encontra seu nome entalhado
numa árvore e fica feliz, declarando a Ismene e a Cíntio que seu amor sim é correspondido.
Apesar de não estar completo – nem sabemos se chegou um dia a estar –, podemos dizer que o
poema desse mito é melhor formalmente do que o de Eco e Narciso. Também funcionando como uma novela
dividida em epístolas versificadas, não é composta apenas por cartas trocadas entre o casal. De fato, são
cartas escritas por Leandro ao cunhado Cíntio e à irmã Ismene, que viviam no campo, enquanto ele vivia na
cidade de Abido e visitava Hero do outro lado do Helesponto, em Sesto. As cartas de Hero foram transcritas
por Leandro para que sua família soubesse exatamente o que sua amada havia escrito. Em vez de poemas
entalhados nos troncos, são efetivamente cartas trocadas, inclusive com menção a como eram enviadas e
recebidas. Sabendo do fim trágico do mito, para não cair na mesma armadilha da história de Eco e Narciso, o
autor faz a irmã de Leandro viajar até Abido para encontrá-lo. Já próximo do fim (está se armando a
derradeira tempestade que, segundo o mito, mata Leandro na travessia), ela escreve a seu marido, Cíntio, que
teme o que está para acontecer com seu irmão por estar apaixonado. O motivo das cartas é mais variado do
que o longo lamento da Eco e as recusas de Narciso. Também há uma menor profusão de figuras mitológicas.
Uma vez que o próprio mito desse amor de perdição surge separado da cosmogonia mitológica e das grandes
narrativas clássicas, os deuses praticamente não aparecem, sendo referidos principalmente na “Carta XVI”,
quando Leandro tenta convencer Hero a abandonar o celibato e o templo. O que se percebe é já a
construção de uma narrativa “da terra e dos homens”. O poeta aproveita o assunto mitológico, a luta do amor
para superar diversos obstáculos (religioso, geográfico, social, familiar), para dar variedade ao poema, como
se pode ver na mesma “Carta XVI – Leandro a Hero”:
Um raio abrase a urna, e extinga os netos
Do primeiro impostor que aos pés das aras
Agrilhoou sem dó crescente virgem.
Que ousou dizer-lhe = para o mundo és morta
Quando secreta voz lhe repetia
Que tempo de gozar, que amável mundo!
Que viu futuro pranto encher-lhe os olhos
Olhos fadados a vencer sem fruto.
A fria palidez murchar-lhe as faces
Onde o beijo de amor se tornou crime,
E aos sufocados lânguidos suspiros
Lindo o seio ondular debalde lindo.
Com punhal nos altares afiado

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Hero e Leandro

Ele cortou sacrílego de um golpe


Longa cadeia de futuros entes.
Ao homicídio à dor chamou virtudes
Aos ais um culto, à Natureza um crime

Surpreende essa crítica de António Feliciano de Castilho ao celibato clerical, mesmo que a
referência seja mitológica. Sobretudo se, segundo supomos, esse poema tenha sua composição por volta ou
pouco antes da publicação de Amor e Melancolia, tendo sido escrito antes da guerra civil que opôs liberais e
absolutistas e antes da extinção das ordens religiosas. Isso mostra que, como liberal, talvez por uma questão
pessoal, uma vez que ele estava enamorado por uma reclusa num convento, Castilho defendia ideias mais
revolucionárias do que a posição que viria a assumir após a vitória dos liberais e, principalmente, depois que
Costa Cabral restaura a Carta Constitucional e começa um governo de características ditatoriais em 1842.
Afinal, António F. de Castilho defende publicamente uma neutralidade política pouco tempo depois da
Revolução de Setembro de 1836 e utiliza essa situação neutral para manter ativa, entre 1842 e 1845, a
Revista Universal Lisbonense, da qual era o redator, enquanto outros órgãos de imprensa eram fechados ou
sofriam retaliações. Estratégia que o faz, em 1845, na mesma Revista, criticar a publicação de Eurico, o
presbítero, de Alexandre Herculano, sugerindo que o romancista emendasse ou alterasse o prefácio que
criticava justamente a obrigatoriedade do celibato para padres e monges 5.
Também em Hero e Leandro, Castilho tenta combater certa fixidez social ao defender o amor entre
pessoas de condições e origens distintas, sem a obrigatoriedade de dotes ou títulos. É o que Leandro tenta
fazer Hero compreender na “Carta XVI”:
Não podes entender quanto eu te adoro,
Quão fundo anda no peito a imagem tua.
Quanto eu dera... e tu bárbara pudeste
Pensar que igual paixão se apagaria
Nas trevas que o teu berço rodearam?
Julgas tu que sem títulos estranhos
Teus dons, o teu pudor, tua beleza
Força não têm para vencer minha alma?
Que importam de teus pais dureza o crime?
Mais int’ressante aos olhos meus te fazem
Além de bela e pura és desvalida.

Com o avanço do capitalismo, mesmo que indiretamente, como em Portugal, onde a


industrialização não chegara, segue a reificação e transformação de tudo em mercadoria. Castilho, ainda

5 Sobre essa primeira recepção, ver CRUZ, 2010.

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numa forma árcade, traz à tona uma visão de mundo e uma atuação eminentemente romântica nesse poema.
Michael Löwy defende que:
O romantismo não pode ser reduzido a uma escola literária do século XIX, ou a uma
reação tradicionalista contra a Revolução Francesa – duas propostas difundidas em
muitas obras de eminentes estudiosos da história das ideias políticas. O romantismo é
sim uma forma de sensibilidade que irriga todos os campos da cultura, uma visão de
mundo que se estende desde a segunda metade do século XVIII até os nossos dias, um
cometa cujo “núcleo” incandescente é a revolta contra a civilização moderna
industrial / capitalista, em nome de certos valores sociais e culturais do passado.
Nostalgia de um paraíso perdido – real ou imaginário – o romantismo opõe-se, com a
energia melancólica do desespero, ao espírito quantificador do universo burguês, à
reificação mercadológica, ao embotamento utilitário e, especialmente, ao
desencantamento do mundo. (LÖWY: 2004, p. 192 – grifo do autor – tradução
nossa) 6.

Foi a partir da análise do fenômeno romântico realizada por Michael Löwy, pensador marxista
brasileiro radicado na França, compreendendo o romantismo como revolta à modernidade capitalista em
busca de trazer de volta ao mundo moderno algo que teria se perdido nesse processo (um encantamento, uma
ligação outra com a natureza e com a humanidade, colocando-se contra uma lógica que reduzia tudo a
mercadoria e a cifras) que conseguimos perceber o desconcerto de António Feliciano de Castilho.
Ressaltamos aqui alguns temas caros à literatura da primeira geração romântica, como a luta pela
liberdade, a questão do celibato do clero, a decisão de amar apesar da origem e posição social de Hero, além
de um erotismo e uma tensão entre a pureza de Hero sacerdotisa vestida de branco e o desejo sexual que ela
faz crescer em Leandro. Não é também uma narrativa contada sob a “claridade pacífica do sol”, o próprio
Leandro ri-se do mito de Narciso e desdenha da paz da primavera. Aqui é a história do facho de Hero “que
pelas noites de verão está scintillando”, iluminando muito pouco a terra, mas abrasando a fantasia do jovem
Leandro, enquanto assusta sua irmã Ismene (Carta XVII):
Na frente majestoso se estendia
Sobre a terra outro céu profundo, imenso;
Este Helesponto que me assusta os olhos;
Meus olhos com terror o atravessam,

6 Le romantisme ne saurait être réduit à une école littéraire du XIXe siècle, ou à une réaction tradicionaliste contre la Révolution
française – deux propositions largement répandues dans maints ouvrages d’éminents spécialistes d’histoires des idées politiques.
Le romantisme est plutôt une forme de sensibilité qui irrigue tous les champs de la culture, une vision du monde qui s’étend de la
deuxième moitié du XVIIIe siècle jusqu’à nos jours, une comète dont le “noyau” incandescent est la révolte contre la civilisation
industrielle / capitaliste moderne, au nom de certaines valeurs sociales ou culturelles du passé. Nostalgique d’un paradis perdu –
réel ou imaginaire – le romantisme s’oppose, avec l’énergie mélancolique du désespoir, à l’esprit quantificateur de l’univers
bourgeois, à la réification marchande, à la platitude utilitariste et, surtout, au désenchantement du monde.

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Hero e Leandro

E iam pedir chorando à praia oposta


O caro irmão que lá suspira escravo.
Vendo ao longe esse templo, essa morada,
E essa torre fatal que entre ciprestes
Se ergue como um gigante ao pé das ondas
Dá morte às infiéis sacerdotisas
O susto e a compaixão me andavam n'alma!
Ali vive, ali, digo, a morte espera
Linda inocente apaixonada virgem
Nascida para amor, e amor lhe vedam.

O locus horrendus descrito por Ismene torna-se empecilho ao amor:


Com sinistro arruído as ondas vagam
E vêm correndo espedaçar-se às rochas
Co'as árvores lutando o vento muge
E um véu de nuvem escurece a lua
Que atrevimento humano há de esta noite
Atravessar os líquidos abismos
Se Leandro partiu... murada de Hero
Retém meu caro irmão junto a teus muros

Enquanto, n'A Primavera, a natureza idílica, a imagem das Graças e de ninfas, e as festas com seus
companheiros são altamente valorizadas, com paratextos de dedicação ao amor familiar, no poema de Hero e
Leandro isso não basta. Quando Cíntio propõe a seu cunhado e amigo que abandone o Helesponto e sua
travessia, que se afaste da situação de perdição a que seu amor poderia levar, Leandro indigna-se:
Que me ousaste propor! Fugir de Abido
Alongar-me de Sesto! Eu deixaria
Os sítios onde a vejo, o templo, os ares
Onde o meu coração ligado geme?
Teu campo, as tuas dríades e festas
O lar da minha infância, Ismene, e Cíntio
São tudo, e tudo e nada a troco de Hero!
Primavera e sossego, amor e as graças
Como ousas oferecer-me, ausente dela?
Que flor há-de agradar-me, em que verdura
Tristeza não verei? que ave cantando
Me não dará saudade, ou que murmúrio
De folhas, água, ou zéfiros que voem
Não encherá de lágrimas meus olhos?
Sossego, e a imagem sua a perseguir-me?
E a mente cheia de incerteza e sustos
E os ciúmes, e a dor, sempre em meu peito?
Graças, ah! nunca a viu quem julga havê-las

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

Criou a natureza apenas uma


E exauriu ao formá-la os seus tesoiros
De cada árvore tua embora as Ninfas
Saíssem cada dia a festejar-me
Debalde a própria Vénus me esposara
Em teu campestre asilo os seus favores
Valem menos que o bem de arder por Hero.

A natureza pacífica gessneriana tão exaltada por Castilho no poema de 1822 não é mais suficiente
para um ser apaixonado. Leandro deseja arder cada vez mais por Hero, como vaga-lumes atraídos pela luz. O
desejo e a paixão sobrepõem-se ao pensamento racional. É preciso viver o amor insuperável, atravessar o mar
em noite de tempestade, confrontando a natureza e até a morte em favor do sentimento, como Leandro
informa ao cunhado: “Vejo um bem, quero um mal, sigo o meu fado/ O amor é meu, dos Numes a fortuna:/
Apenas dos obstáculos, dos p’rigos,/ Das Leis, dos votos, do universo inteiro,/ Por ela hei-de viver, morrer por
ela”.
A forma do poema ainda é clássica sim, mas esse mito coaduna bem com a mentalidade romântica
de valorização do sujeito e de seus sentimentos. A perenidade desse mito na literatura ocidental, sobretudo a
portuguesa, já foi apontada por Cândido de Oliveira Martins que, mesmo não conhecendo o manuscrito
castilhiano, afirma, após analisar o poema de Bocage sobre esse mesmo mito:
[...] não surpreende que, posteriormente, a revisitação do mito de Leandro e Hero se
mantenha na pena de outros autores da cultura romântica, independentemente da sua
maior ou menor centralidade no cânone literário desta época. [...] Mau grado todos os
protestos revolucionários da estética romântica, no sentido de denegar o legado da
poética e retórica clássicas – nele incluindo naturalmente a mitologia, para muitos
exaurida de originalidade –, o que é certo é que diversos mitos, certamente mais
congeniais ao espírito e à psicologia românticos, demonstraram de modo cabal a sua
sobrevivência (MARTINS: 2012, p. 486-487).

Como temos ressaltado, António Feliciano de Castilho utiliza esse mito para elaborar questões
“congeniais ao espírito e à psicologia românticos”. Identificando-se como discípulo do vate Elmano Sadino,
não é, portanto, estranho, que ele também tivesse recorrido à história de Leandro e Hero. Entretanto, se
observarmos a última página do manuscrito, que contém uma breve bibliografia que deve ter sido consultada
por Castilho e que possui “Para o Hino de Vénus” como cabeçalho, percebemos como sua poética se
desenvolve libertando-se, mesmo que pouco, de certos modelos literários que ele havia estabelecido.
Quem acompanha sua obra sabe que, diferentemente do poeta inspirado que revelaria em poesia
seu verdadeiro eu, António Feliciano de Castilho defende o trabalho estilístico, o estudo e a ficcionalização na

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Hero e Leandro

composição do poema. Esse cuidado com a forma, principalmente em termos da sonoridade de seus versos, é
em parte devido à sua filiação elmanista (inspirada no vate Elmano, Bocage) em contraponto aos filintistas
(seguidores do modelo de Filinto Elísio). Como as duas correntes se opunham no princípio do século XIX, não
é segredo Castilho ter atacado diversas vezes o estilo de Filinto Elísio. Ele o faz, inclusive, n'A Primavera.
Porém, nessa breve bibliografia a que nos referimos, junto a clássicos como Anacreonte, Safo, Horácio e
Ovídio, encontramos a “Ode a Vénus de Filinto”, o que obriga a que seus leitores amenizem ainda mais o
peso das críticas que o autor das Escavações Poéticas faz ao vate Filinto.
Se Amor e Melancolia está, inclusive pela forma, abandonando os temas clássicos, mais próximo de
uma sensibilidade romântica do que a narrativa de Hero e Leandro, podemos imaginar que, diferentemente
do que seu autor afirma no prólogo, ele cuidou sim do público ao compor seus versos. A valorização
subjetiva do sentimento, que faz com que todas as ações e pensamentos do eu se pautem pelo amor que
sofre, é mais forte na personagem Leandro do que na voz poética de Amor e Melancolia. Enquanto no livro de
1828 o autor abandona qualquer questão social para se dedicar apenas ao sofrimento amoroso do sujeito que
vaga solitário por ter um amor que não pode se concretizar pela ausência física do ser amado, no manuscrito
do poema mitológico o leitor acompanha os esforços de Leandro para vencer todos os obstáculos e o
sofrimento de Hero por saber que ama sem poder amar. Assim, Hero e Leandro ou a sacerdotisa de Vénus,
mesmo não tendo sido publicado, ajuda-nos a compreender as transições poéticas e políticas de António
Feliciano de Castilho num momento em que nem o liberalismo nem a estética romântica se tinham ainda
afirmado em Portugal.
Duas cartas do poema:
Carta XVI – Leandro a Hero

Hero em pranto desfeita, Hero prostrada!


Hero, o meu tudo a suplicar-me a vida?
Que entusiasmo de amor me levaria
A beijar essas lágrimas, a erguê-la.
A apertá-la ao meu seio a confundi-los
Estes dois corações que se encontraram!
A apaixonada voz de amor extremo
Que força que energia a razão dera!
Verias num momento aniquilados
Vãos prejuízos, frívolos terrores!
Da pueril timidez que te comprime
Rias, coraras, libertada fores.
Se eu pudesse falar-te... a mão não basta
Do pensamento à rápida corrente,

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

Para exprimir-te das razões o fogo


O papel é gelado, as letras mudas.
Sim, crimes e perfídia a terra infestam,
Mas virtudes e fé se lhe misturam,
Quais entre esquiva sarça amenas flores.
Tem-te enganado, e enganam-te os perversos.
Para amares grilhões que te escravizam.
Ah! Mísera inocente! ah! pobre virgem!
É só na solidão, na ociosidade
Que habita a paz e o bem? Porque nos dirão
Instinto social eternos Deuses?
Olho os bosques; as aves se procuram,
Para cantar de amor, viver unidas.
Ver pelos vales flutuar rebanhos
Por entre as ondas, em cardume os peixes
Entre flores iguais medrar as flores
Da própria espécie as arvores cercar-se
Só para nós a sociedade é crime
Só para nós é mal; vis impostores
Vós ultrajais o céu, e a natureza.
Hero, os Numes benéficos, poderosos
Formaram para nós este Universo
Aprazem-se de amá-lo, enriquecê-lo
De origens de prazer vem cada dia
Trazer-nos a manhã risonha Deusa.
Febo nos doira os Céus, anima os campos,
Alegra os corações, matiza o mundo.
Diana amiga nos aclara a noite.
Flora nos alcatifa oiteiro e vale
Pomona, as verdes arvores nos troca
Em miras de festim; Baco folgando
Nas pampíneas encostas nos convida
Rubro copo na mão, riso nos lábios:
Protege Pales, os rebanhos nossos
Cada colina, ou límpido regato
Tem Nume tutelar; Vénus inspira
Nosso fogo de amor, desejos vivos.
Recíproca atração, terna impaciência,
Feliz instinto, que propaga os entes!
É pois dever sagrado o culto aos Deuses.
Mas culto lhe serão tormentos nossos?
Flora me oferece a rosa, impune a colho
Pode Vénus punir amor que acende?
Corro ao templo a adorar a mãe das graças,
Vejo-te, ardo por ti, falo-te, venço,
Inspiramos paixão, gozamos dela,

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Hero e Leandro

Que há nisto, ó Hero, em sacrilégio a Cípria?


Faminto à sombra de cheirosos pomos
Sequioso à beira de correntes águas
Tantália pena sofrerei sem culpa?
E tu porque de incenso aos ares mandas
Ante ela cada dia espessa nuvem
Tu porque em doces cânticos a louvas,
Os bens que outorga aos mais negar-te deve?
Cípria não, não é bárbara: se o fosse
Objetos só de cólera ver-te-ia
Dos que mantêm distante em nome dela.
Alma do mundo, gérmen da existência
Dos gritos mãe, da Mociedade sócia
Da Natureza a protetora amiga
Violaria as leis da Natureza?
Planta humilde a murchar sem flor, sem fruto
Mais que árvore louçã lhe será cara,
Que os frutos vergam, que matizam flores?
Um raio abrase a urna, e extinga os netos
Do primeiro impostor que aos pés das aras
Agrilhoou sem dó crescente virgem.
Que ousou dizer-lhe = para o mundo és morta
Quando secreta voz lhe repetia
Que tempo de gozar, que amável mundo!
Que viu futuro pranto encher-lhe os olhos
Olhos fadados a vencer sem fruto.
A fria palidez murchar-lhe as faces
Onde o beijo de amor se tornou crime,
E aos sufocados lânguidos suspiros
Lindo o seio ondular debalde lindo.
Com punhal nos altares afiado
Ele cortou sacrílego de um golpe
Longa cadeia de futuros entes.
Ao homicídio à dor chamou virtudes
Aos ais um culto, à Natureza um crime
De ti para ti mesma apelo agora
Que vezes o teu leito, a noite; o bosque
A ave que voa, a frouxa luz da tarde
O concurso do povo, essas estátuas,
Esses quadros de amor que o templo vestem
O zéfiro cheiroso, a flor dos vales
O distante rumor de um bosque ao longe
O som da tua lira, as formas leves,
Dos sonhos da manhã, que vezes, Hero
Que vezes te dirão – nós somos pouco
Nós falamos do bem e o bem não somos.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

Há para ti mistérios no universo


Mas tu não és feliz, alguém te ilude;
Aspiras à ventura e não a encontras
O ermo votos produz que não preenche
Disseram-te que o mundo era terrível.
Mas tu que vês do mundo? ora uma esposa
Que alegre sobe ao templo, ora uma virgem
Que vem pedir a Deusa o seu amante
Para gozar com ele a vida inteira,
Ora fagueira mãe que abraça um filho
Dá-lhe seu próprio leite, e rindo o beija.
Então, que solitários pensamentos
Te não hão de assaltar, que eternas horas
De não dormidas, inquietas noites,
Que frios melancólicos passeios.
Que ais baldados, que lágrimas estéreis
Que horror, que escuridão, que atrocidade!
Mas do cárcere odioso onde esmoreces
Inda podes salvar-te, Amor é Nume
Confia-te de amor, de Cípria é filho
Não temas sua mãe, Amor só pode
Por sobre rosas conduzir-te à vida.
Às sagradas irmãs que te educaram
Nenhum dever te prende, almas de ferro
Quiseram-te no abismo onde gemiam.
Os dias teus em sua flor salvaram
Para os encher depois de fel, de angústias
É crime a gratidão que paga crimes.
Foge delas, despreza os seus afagos
Não temas seu furor, eis os meus braços
Prontos a receber-te, irei contigo
Procurar outros Céus e homens diversos
Onde em laços de amor vivamos juntos.
Qual seria na terra o teu refúgio
Deus – teu lugar entre os Elíseos coros?
Qualquer sítio, um palácio, uma caverna
São belos, são iguais de amor aos olhos.
Se nos faltasse asilo entre os humanos
Um côncavo rochedo achar podemos
Seja embora entre aspérrima espessura
Penda escarpado sobre o mar profundo
Nós ali, nós e Amor, nós e a ventura
Será o nascer do sol ao sol poente
Desde o Héspero à luz que a Aurora espalha
Sentiremos nas asas da ternura
Correr, no ar as fugitivas horas

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Hero e Leandro

E quando a morte nos levar de um golpe


Inda minha, inda tu, de amor não fartos
Iremos outra vez amar no Elísio.
É lá que as ilusões entrar não ousam,
Não ousa entrar a dor, o fingimento
O temor, os grilhões, os cultos ímpios.
Lá tem a primavera eternos vales
Amor eterno fogo: as Belas amam
Sem corar de o dizer, sem medo á fama
A taça da ternura é franca a todos
Se as nossas propensões, costumes nossos
Nos seguem como é fama além da Estige
Até à Estige amemo-nos, ó Hero,
Gozemos da ventura, e nesses campos
Eternamente ficaremos juntos
Entre as almas dos ternos amadores.
Se eu pudesse mostrar-te os pensamentos
Que agora me vão n’alma, oh! com que impulso,
Trocaras solidão por fados d’oiro!
Não podes entender quanto eu te adoro,
Quão fundo anda no peito a imagem tua.
Quanto eu dera... e tu bárbara pudeste
Pensar que igual paixão se apagaria
Nas trevas que o teu berço rodearam?
Julgas tu que sem títulos estranhos
Teus dons, o teu pudor, tua beleza
Força não têm para vencer minha alma?
Que importam de teus pais dureza o crime?
Mais int'ressante aos olhos meus te fazem
Além de bela e pura és desvalida.
Mas sabes tu se de uma Ninfa és prole,
Se és prole de uma Deusa? a própria Vénus
Não tem mil vezes amorosos frutos?
Sim, sim meu coração mo tinha dito.
Hero não é mortal, os meus extremos
São justa adoração devida a Hero.
Hero é filha gentil da mãe das graças.
Ela a trouxe de noite ao pé do templo
Deixou-a junto a si, compraz-se ao vê-la
Sem conhecer que o é fingir-se filha
Aceita mais gostosa incensos de Hero;
Bem que sua rival tem-na consigo.
Tem glória tem prazer nos seus triunfos.
É crime o duvidá-lo, ó doce encanto!
Graças aos Numes, parabéns, és livre.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

Carta XVIII
Hero a Leandro
Confissão

Que mais, homem cruel, já sou perjura,


Já de insensato amor que me profana
Leio expressões que a tua mão repete.
Em vez de te fugir, de aborrecer-te
De tua ímpia ousadia audácia nutro.
Meus tão puros tão ledos pensamentos
O meu prazer tão caro à minha Deusa
Murcharam como a flor ao vir do Estio.
Raro por minhas mãos o incenso fumo,
Ouso apenas entrar no templo santo,
Das minhas sócias a amizade antiga
Sinto não merecê-la, é-me pesada;
Se louvam meu pudor, coro e emudeço.
Se falam na imortal, confusa choro
E ao nome votos desfaleço e morro.
Deste santo lugar tornei-me indigna,
Acho pesado o glorioso jugo,
Já do retiro a paz me não namora,
E o mundo sedutor, dos vícios pátria,
Em vez das aras, me povoa os sonhos.
Que mais queres, cruel, são crimes poucos?
Eu deixá-las, fugir, cumprir teu gosto?
Entrar nesse universo, e... não, Leandro
Não, não, jamais, debalde o presumiste.
Ah! se tão fácil de evitar como este
Me fosse o crime encantador de amar-te
Vivera sempre livre, alegre e pura.
Ah! se o meu coração tivesse força
Para fugir daqui, para esquecer-te,
De afagos maternais, de irmãs, de amigas
Nunca houvera cedido aos teus encantos.
Leandro, se este amor que é meu destino
Apraz ao teu amor, não mais repitas
Da sedução a pérfida linguagem,
Ou desta infâmia curarás minh’alma!
Se tu sentes como eu, se é quem te julgo,
Ama-me sempre, adora-me se o podes
Mas deixa-me a virtude. Amor sem ela
É flor sem cheiro que se apanha e calca.
Concordes em desejos em pensamentos
Bem que acerbo dever nos tolha unir-nos
Tenham fiel consórcio as mentes nossas;

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Hero e Leandro

Soframos ambos, sofreremos pouco.


Sejam trevas ou luz os dias voam.
Riso ou dor tudo passa, a vida é nada
Mas a existência eterna, e amor sem penas
São nos Elísios da virtude o prêmio.
Enquanto for do mundo, eu serei sempre
Virgem fiel ao meu dever e às aras.
Meus votos se é preciso, eis tos renovo
Ante os olhos d’amor, suprema Vénus.
Não temas que a infeliz sacerdotisa
Te abandone jamais, ou que lhe esqueça
Que tu lhe deste asilo, irmãs e berço.
Tu serás sempre o seu primeiro Nume
Segundo o filho teu, depois Leandro.
Ó Leandro, ó meu terno pensamento
Se pudesses saber quanto eu te quero
Para seres feliz mais não pediras.
Ah, deve ser tão doce o ser amado
Co’a força com que eu amo o meu Leandro!
Que espantosos trovões a tempestade
Ao passo que te escrevo documenta em fúria:
Do vingativo céu são isto as vozes?
Não ouso escrever mais, Leandro, foge
Vais-te abrigar n’alguma gruta ao menos,
Ah! não desças ao mar entre as procelas.

REFERÊNCIAS

BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa – V – O Romantismo. Mem Martins: Publicações Europa-
América, [19--].
CASTILHO, António Feliciano de. Epicedio na sentida morte da augustissima senhora D. Maria I, rainha
fidelissima, offerecido a seu augustissimo filho D. João VI, nosso senhor. Jornal de Coimbra. N. 50, Parte II, p.
73-97, 1817.
______. A Faustissima Exaltação de Sua Magestade Fidelissima o Senhor D. João VI ao throno. Lisboa:
Impressão Régia, 1818.
______. A Primavera: collecção de poemetos. Lisboa: Typographia de M. P. de Lacerda, 1822.
______. Excavações Poéticas. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1846.
______. Camões: estudo historico-poetico; liberrimamente fundado sobre um drama francez dos senhores
Victor Perrot e Armand du Mesnil. Ponta Delgada: Typographia da rua das Artes 68, 1849.
______. Amor e melancolia ou A novíssima Heloísa: nova edição correta e acrescentada. Lisboa: Tipografia da
Sociedade Tipográfica franco-portuguesa, 1862.

IDIOMA, Rio de Janeiro, nº. 26, p. 72-91, 1º. Sem.: 2014


Eduardo da Cruz

CASTILHO, António Feliciano de. Camões: estudo historico-poetico; liberrimamente fundado sobre um drama
francez dos senhores Victor Perrot e Armand du Mesnil. 2. ed. copiosamente accrescentada nas notas. Lisboa:
Typ. da Sociedade Typographica Franco-Portugueza, 1863. 3 v.
______. Cartas de Ecco e Narciso. 5. ed. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, 1903.
______. Novas Excavações Poeticas. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, 1905a. 3 v.
______. O Presbyterio da Montanha. Lisboa: Empreza da Historia de Portugal, 1905b. 2 v.
______. Hero e Leandro ou a sacerdotisa de Vénus: poema em cartas. Manuscrito. Portugal – ANTT –
Colecção Castilho – Cx. 49, Ms. 3, n. 2, [1800-1875].
CASTILHO, José Feliciano. A grinalda ovidiana: appendice á paraphrase dos amores. Rio de Janeiro: Casa do
Editor Bernardo Xavier Pinto de Sousa, 1858.
CRUZ, Eduardo da. A Recepção de Eurico, o Presbítero no Liberalismo. In: Revista todas as letras
(MACKENZIE. Online), v. 12, p. 17-23, 2010.
FRANÇA, José-Augusto. O Romantismo em Portugal: estudo de factos socioculturais. 2. ed. Lisboa: Livros
Horizonte, 1993.
LÖWY, Michael. Charge explosive. Europe, ano 82, n. 900 – Le Romantisme Révolutionnaire. abr., 2004.
MARTINS, J. Cândido de Oliveira. Recepção do mito de Leandro e Hero (da sensibilidade pré-romântica ao
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Publicações da Faculdade de Filosofia, Universidade Católica Portuguesa, 2012. p. 479-502.
MOURÃO-FERREIRA, David. Ao encontro de Castilho. In: SobreViventes. Lisboa: Edições Dom
Quixote, 1976.

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Data de submissão: maio/2014.
Data de aprovação: jun./2014.

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