O83 F. Osmo
B737 M. M. Borri
O Educação das Virtudes através dos Mitos Gregos:
Ajude nossas crianças e jovens a realizarem seu potencial
racional / F. Osmo, M. M. Borri – Salvador, BA: Escola das
Virtudes, 1ªed., 2021
ISBN 978-65-00-32712-0
CDD 370
21-86086 CDU
37.01/.09
1. Educação 370
Autores
F. Osmo, é mestre em
Psicologia (UFBA), filósofo
autodidata e autor de artigo
internacional citado por
pesquisadores de renomadas
universidades (University of
California, por exemplo). Há
mais de sete anos vem se
dedicando a compreender o ser
humano em seus aspectos
universais com base na psicologia evolutiva e na filosofia
Aristotélica. Cofundador da recém lançada Escola das
Virtudes, empreendimento que visa oferecer cursos e
livros que preparam para a vida.
Da parte de F. Osmo
INTRODUÇÃO 17
UMA ANGÚSTIA MILENAR 17
A VERDADEIRA EDUCAÇÃO 19
COMO OS MITOS GREGOS PODEM AJUDAR
NO DESENVOLVIMENTO DAS VIRTUDES? 21
CONCLUSÃO 325
Outra página em branco: use de rascunho :P
INTRODUÇÃO
1
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (cartas 88 e 106).
[17]
são educados para as virtudes, e com isso, para a vida2 3
4.
2
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes & L.
M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 34-37,46).
3
Ver Seligman, M. E. P. (2011). Flourish: A visionary new
understanding of happiness and well-being. Australia: William
Heinemann (p. 80)
4
Ver Machura, P. (2018). Flourishing vs.market: Towards the
Aristotelian concept of education. Filozofia, 73(2). Aqui o autor sugere
duas razões para que a educação tenha tomado essa direção.
Primeiro, e mais fundamentalmente, que o ser humano deixou de ser
entendido como tendo um potencial para se tornar racional (o qual,
para ser realizado depende de uma educação apropriada), para, de
uma maneira geral, já ser considerado racional (e com isso uma
educação em prol da racionalidade seria dispensável). Segundo, que
a política deixou de ser entendida como uma ciência que visa o
florescimento do potencial racional humano para se tornar uma que
visa tornar um Estado forte e rico; e como a educação faz parte da
política ela passou então a servir esse novo objetivo.
5
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and practice
in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p. 67).
6
Ver MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 93).
[18]
A VERDADEIRA EDUCAÇÃO
[19]
Não nascemos virtuosos, mas com uma natureza
preparada para receber as virtudes, nos ensina
Aristóteles7. Mas as recebemos de quem? Bom, até pode
ser de nós mesmos. Por tentativa e erro, é possível
descobrir que saber mais sobre o mundo, e ter o hábito de
agir com base no saber, traz coisas boas. Mas assim é
como se cada pessoa, sozinha, tivesse que inventar a
roda. Infelizmente, é por onde a educação atual nos
empurra.
Como somos capazes de aprender com o outro,
entendemos que as virtudes devem ser ensinadas, que
seria a verdadeira educação, segundo Platão8. Por que
seria? Pois é com base nessa educação que a pessoa se
torna hábil em agir da maneira que só o ser humano é
capaz (agir racionalmente) e interessada em estar sempre
ampliando seu nível de sabedoria, o que, em conjunto,
proporciona um aumento substancial nas chances de ela
ter sucesso na vida de uma maneira geral.
7
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1103a24-28).
8
Platão (2010). As Leis (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro (653b-c).
[20]
COMO OS MITOS GREGOS PODEM AJUDAR NO
DESENVOLVIMENTO DAS VIRTUDES?
9
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1150a20-25).
10
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 28).
[21]
O ponto é que a maioria de nós não é masoquista;
a gente não quer sentir uma dor novamente. E um
caminho para isso é ampliarmos nosso saber, e
aprendermos a lidar bem com nossas emoções para
fazermos escolhas com base nesse saber. Esse é o
caminho que leva ao desenvolvimento das virtudes
intelectuais (como sabedoria) e morais (como coragem e
moderação). Mas qual a importância dos mitos gregos
para o desenvolvimento das virtudes? Bom, o que não
falta nas narrativas míticas são personagens escolhendo
mal, pagando o preço disso, e, muitas vezes, se
arrependendo. O humano Pigmaleão se apaixonou pela
deusa Afrodite, “tomou um fora” dela, e decidiu não ter
mais contato com mulheres. Midas, tomado pela ânsia,
pediu para o deus Dionísio o poder de transformar em
ouro tudo o que tocasse; mas aí, quando repousou a mão
em sua mulher11...
Os mitos são então fonte rica para debates sobre o
que faltou de virtudes nos personagens para que eles
tivessem feito melhores escolhas: “será que faltou a
11
Bini, E. (2010). Sabedoria da mitologia para o seu dia a dia. São
Paulo: Edipro (pp. 17-23).
[22]
Pigmaleão coragem para tentar de novo, e a sabedoria de
que evitar a dor do “fora” faz com que se abra mão da
chance de conhecer alguém especial?”; “será que faltou a
Midas moderação para escolher um outro meio de ter o
ouro que tanto desejava?”. E a partir da reflexão sobre as
escolhas dos personagens, os mitos servem para que
reflitamos também sobre as nossas, e o que nos falta de
virtudes: “será que meus relacionamentos não dão certo
porque me falta coragem para me entregar de corpo e
alma?”.
As narrativas tornam evidentes consequências
ruins que a falta de sabedoria e o mau raciocínio podem
trazer. Isso, muitas vezes, por meio de um certo exagero
didático, por assim dizer, já que retratam deuses pouco
tolerantes com as “burradas” humanas, e que não
tardavam em puni-las impiedosamente, mesmo que por
diversão (como é o caso de Dionísio, no “Toque de
Midas12”).
Vemos então que os mitos gregos podem servir à
função de levar as crianças e jovens a valorizarem a
12
Bini, E. (2010). Sabedoria da mitologia para o seu dia a dia. São
Paulo: Edipro (p. 18).
[23]
sabedoria e o bom raciocínio (ou seja, as virtudes em
geral); precisamente, por meio da reflexão sobre escolhas
ruins dos personagens (e sobre quais virtudes eles
deixaram de praticar para que tivessem feito melhores
escolhas), e da reflexão sobre as escolhas das crianças e
jovens em situações correlatas (e também, sobre quais
virtudes eles deixaram de praticar para que tivessem feito
melhores escolhas). Mas não só isso. Vamos ser justos
com os personagens, eles não só fazem “burradas”.
Alguns se arrependem e fazem uma nova escolha, agora
racional, e aí são premiados com a vivência de algo bom.
Isso ocorre com Midas, por exemplo, que depois de ver a
“merda” acontecendo, pede para Dionísio que as coisas
voltem a ser como antes (o que implica em ele abrir mão
do desejo por riqueza quase que infinita). Dionísio, então,
concede tal desejo, deixando Midas aliviado. Vemos isso
ocorrer também com Pigmaleão quando este decide ter
contato com uma cliente que lhe pediu algo que lhe fez
tremer: uma estátua de sua amada Afrodite. Ele decide
encarar o desafio. E por ter escolhido abrir mão do
isolamento e enfrentar o medo de ter que mexer com
coisas de seu passado, a mesma Afrodite fez a linda
estátua que Pigmaleão construiu ganhar vida e esposar o,
[24]
até então, sofrido personagem13. Foi um belo prémio para
um bom raciocínio.
Neste sentido, vemos que os mitos servem à
função de levar as crianças e jovens a valorizarem a
sabedoria e o bom raciocínio também por meio da reflexão
sobre boas escolhas dos personagens (e sobre quais
virtudes eles praticaram quando fizeram boas escolhas),
e da reflexão sobre as escolhas das crianças e jovens em
situações correlatas (e também, sobre quais virtudes
praticaram quando eles fizeram boas escolhas).
A partir das noções acima podemos concluir então
que os mitos podem ajudar no desenvolvimento das
virtudes pois eles são “um prato cheio” para abordar as
virtudes em si, uma vez que evidenciam os males que a
prática delas ajuda a evitar e os bens que podem trazer14.
Isso não só nos contextos vivenciados pelos
personagens, mas principalmente em situações correlatas
da vida das crianças e dos jovens, para que assim eles se
vejam estimulados a saber mais sobre a realidade e a
13
Bini, E. (2010). Sabedoria da mitologia para o seu dia a dia. São
Paulo: Edipro (pp. 17-23).
14
Ver Sailors, C. L. (2007). The Function of Mythology and Religion
in Ancient Greek Society. Electronic Theses and Dissertations. Paper
2110. Retrieved from http://dc.etsu.edu/etd/2110.
[25]
fazer escolhas com base no que sabem até então;
escolhas virtuosas (isto é, escolhas racionais). Contudo,
para que possamos aproveitar bem o potencial que os
mitos oferecem no que diz respeito ao desenvolvimento
das virtudes, precisamos não só elaborar uma prática,
mas, acima de tudo, uma teoria que fundamente tal
prática. E foi o que fizemos, contando com especial ajuda
da filosofia Aristotélica e da ciência evolucionária. Vamos
então aos fundamentos...
[26]
TEORIA QUE FUNDAMENTA A PRÁTICA EDUCAÇÃO
DAS VIRTUDES ATRAVÉS DOS MITOS GREGOS
[27]
benéfico e maléfico15. Informação é poder, como dizem,
mas em termos fundamentais, é poder sobreviver.
Acontece que energia é um recurso escasso; e
identificar novos padrões do ambiente é algo que
demanda esforço, demanda energia cognitiva. Assim,
alguma solução teria que surgir de modo a proporcionar o
máximo de identificação de padrões com o mínimo de
gasto cognitivo. E o que surgiu foi a prática do
pensamento categórico16. Essa prática mostrou-se tão
vantajosa que acabou selecionada para se tornar a
estratégia padrão, adotada por todos os seres vivos
capazes de percepção, para obter conhecimento sobre
realidade, até mesmo insetos e peixes17. Portanto, é
razoável dizer que conhecer a realidade é o mesmo que
categorizá-la18.
15
Bates, M. J. (2005). Information and knowledge: An evolutionary
framework for information science. Information Research: An
international electronic journal, 10(4).
16
Rosch, E., & Lloyd, B. B. (1978). Principles of categorization. In E.
Rosch & B. B. Lloyd (Eds.), Cognition and categorization (pp. 27-49).
Hillsdale, NJ: Erlbaum.
17
Herrnstein, R. J. (1990). Levels of stimulus control. Cognition, 37,
133-166.
18
Zentall, T. R. (1999). Animal cognition: The bridge between animal
learning and human cognition. Psychological Science, 10(3), 206-208.
[28]
A primeira etapa do ato de pensar categoricamente
consiste em, ao perceber padrões ao longo do tempo,
elaborar uma categoria que represente aquele padrão.
Essa é a etapa mais cognitivamente custosa. Já a
segunda, consiste em encaixar algo que estamos
percebendo no aqui e agora dentro das categorias
disponíveis, pelo fato deste algo apresentar
características que fundamentaram a elaboração da
categoria19 20. É o que acontece, por exemplo, quando
depois de termos visto alguns animais com juba
elaborarmos a categoria “leão”, e ao vermos um animal
com juba na nossa frente, pensarmos: “esse animal é um
leão”.
Uma solução concorrente a do pensamento
categórico seria ver a realidade em termos absolutos de
maneira contínua; de modo a ver, de uma só vez, o todo
e as mínimas partes que o integram. Seria como
conseguir perceber todo o espectro de comprimento de
ondas que vai do violeta ao vermelho, compreendendo
19
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.). São
Paulo: Companhia das Letras (pp.114-119).
20
Pearce, J. M. (1994). Discrimination and categorization. In N. J.
Mackintosh (Ed.), Animal learning and cognition (pp. 109–134).
London: Academic Press.
[29]
cada uma delas sem precisar separá-las em categorias,
de modo a manter sempre em mente a noção do todo21.
Seria algo como ilustra o filme “Lucy”22, em que a
personagem tem o poder de conhecer instantaneamente
tudo sobre algo. Contudo, infelizmente, ver o mundo
dessa forma é inviável, uma vez os recursos aqui serem
limitados a tal ponto de os seres vivos terem que competir
por eles.
Assim, não tem para onde correr, a forma que
conhecemos o mundo é tentar colocá-lo em “caixinhas”.
No entanto, isso não significa que estamos condenados a
ver tudo “preto no branco”. É possível ver o mundo em
categorias de cinza. Com isso queremos dizer que é
possível considerarmos mais variáveis na hora de avaliar
algo ou alguém, e, a partir disso, realizar uma
categorização mais precisa23. Somos capazes, por
exemplo, de enxergar em uma pessoa fraquezas e forças,
vícios e virtudes; ao invés de só enxergar coisas negativas
nela. Com efeito, a partir de uma análise mais apurada,
21
Sapolsky, R. M. (2017). Behave: The biology of humans at our best
and worst. New York, NY: Penguin.
22 Besson, L. (Director). (2014). Lucy [Film]. France: EuropaCorp.
23
Ver Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes
& L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 137).
[30]
podemos chegar até a mudar a forma como enxergamos
esta pessoa, caso percebamos que ela tem um pouco
mais de virtudes do que de vícios.
A ideia de “preto no branco” representa então
conclusões simplistas e, com isso, muitas vezes errôneas
a respeito de algo. Mas deve ter ficado claro que ver o
mundo em escalas de cinza não significa não classificar
uma coisa em uma categoria. No exemplo que acabamos
de dar, se vemos a pessoa com sendo portadora de um
pouco mais de virtudes do que de vícios, é justo classificá-
la como uma pessoa minimamente boa, o que é uma
categoria.
24
Osmo, F. (2021). Basic evaluation process and some associated
phenomena, such as emotions and reactive defense of
beliefs. Integrative Psychological and Behavioral Science, 1-30.
25
Tooby, J., & Cosmides, L. (1992). The psychological foundations of
culture. In J. Barkow, L. Cosmides, & J. Tooby (Eds.), The adapted
mind: Evolutionary psychology and the generation of culture (pp. 19–
136). Oxford, England: Oxford University Press Os autores aqui
recomendam que a proposição de uma heurística cognitiva deve
passar por avaliar qual problema adaptativo ela resolveu. Nossa linha
argumentativa sobre as categorizações básicas (que ocorrem por
conta da atuação de heurísticas) reflete tal recomendação.
[32]
Tabela 1: Caminhos básicos de categorizações
Quarta
Segunda Terceira Razão evolutiva
Tipos de Primeira categorização:
categorização Categorização: para o
caminhos categorização: “houve sucesso
“que fim “por quais surgimento do
básicos “o que algo é?" na realização
buscar?” meios?” caminho
do fim?"
Identificar
Houve ou não
Caminho 1: Buscar o fim de novos padrões
sucesso em
identificação de Algo é uma identificação de Por meios de no ambiente,
identificar
padrões na novidade padrões na investigação em especial se
padrões na
novidade novidade é uma ameaça
novidade
ou um benefício
Usufruir de
Houve ou não
Caminho 2: Buscar o fim de Por meios de “ir coisas
Algo é um sucesso em
aquisição de aquisição do pegar o benéficas,
benefício adquirir um
benefício benefício benefício” como alimento
benefício
e abrigo.
Aquisição ou
manutenção do
benefício da
reciprocidade26.
Algo é um Este é então
Houve ou não
Caminho 4: aliado ou aliado Buscar o fim de um caminho
Por meios de sucesso em
promoção do em potencial promoção do apêndice do
“ajuda” promover o
bem do outro em situação de bem do outro caminho 2”,
bem do outro
dificuldade pois ele existe
em função da
aquisição de
um benefício
específico
26
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.). São
Paulo: Companhia das Letras (p. 358). Aqui, o autor (em linha com o
que estamos propondo) defende a hipótese de que o interesse de
[33]
Com essa tabela queremos introduzir a ideia de
que não só o pensamento categórico parece ser algo
compartilhado por humanos e outros animais como
também, certos tipos de categorização (“o que algo é?”;
“que fim buscar?”, “por quais meios?”, e “houve sucesso
na realização do fim?”), os quais parecem se alinhar numa
espécie de esteira de categorizações, que constituem o
que chamamos de processo avaliativo básico27 28.
Vale notar que a razão evolutiva para a seleção de
cada caminho de categorizações tem ligação direta com a
realização de um fim básico. Com isso queremos dizer
que os caminhos básicos de categorizações se
estabeleceram, cada um, em função da realização de um
determinado fim básico, uma vez que é apenas com a
[34]
realização de um fim desse tipo que se pode entrar em
contato com consequências ligadas a continuar
sobrevivendo em condições hostis. Isso implica que, em
essência, todos os tipos de categorizações básicas foram
selecionados por conta de proporcionarem um aumento
nas chances de realização de fins básicos.
A tabela mostra que existem cinco opções de
caminhos de categorizações básicas: “identificação de
padrões na novidade”; “aquisição de benefícios”,
“promoção do bem do outro”; “eliminação de ameaça”; e
“escape de ameaça”. Assim, o processo avaliativo básico
seguiria um determinado caminho a depender do tipo de
categorização “o que algo é” realizada (“é uma novidade”,
“é um benefício”, “é um aliado em dificuldade”, “é uma
ameaça que pode ser eliminada”, ou “é uma ameaça que
não pode ser eliminada”). Vamos a um exemplo: imagine
um coelho que acaba de se deparar com uma cobra.
Certamente ele fugirá para bem longe dela. Contudo,
dando um zoom na mente dele, e um slow motion,
diríamos que ele agiu assim pois, no momento em que
percebeu a cobra, a avaliou como “uma ameaça que não
é capaz de eliminar”; avaliou que “escapar dela é o melhor
objetivo a alcançar”; “sair correndo por tais e tais
[35]
caminhos e desviar de obstáculos”, os melhores meios; e,
por fim, quando para de fugir, avaliou que a ameaça não
está mais por perto, isto é, que “houve sucesso no que ele
objetivou fazer, que era escapar da ameaça”.
Observe que há uma "bifurcação” de caminhos em
"3", em que um objetivo primário é alcançado (evitar um
dano) ao se alcançar um dos dois fins secundários
(escape da ameaça ou eliminação da ameaça), em que
cada um dos quais, para ser alcançado, depende do uso
de um determinado tipo de meios. Essa bifurcação
existiria, a nosso ver, porque a evolução “ensinou” que
quando se é confrontado com algo avaliado como uma
ameaça, e que no fim das contas se deseja evitar o dano
que este ameaça pode infligir, há duas opções do que
fazer, ou seja, duas opções de fim a perseguir e meios
para empregar. No entanto, um leva ao fracasso e o outro
ao sucesso, dependendo da ameaça em questão. Assim,
a “escolha” da opção certa quanto a qual fim secundário
buscar para alcançar o fim primário depende de uma
noção um pouco mais precisa da ameaça, como, por
exemplo, se a ameaça em questão é um indivíduo forte
ou fraco. Concomitante com a aquisição da capacidade de
ter esse tipo de noção, então as duas subcategorias de
[36]
tipos de ameaça teriam se consolidado: a ameaça que
pode e a que não pode ser eliminada, bem como as duas
subcategorias de tipos de meios, “por meios de ataque”
ou “por meios de fuga”.
Não podemos deixar de mencionar que algo pode
ser avaliado como uma ameaça e, logo em seguida, como
“não ameaça”, ou seja como “neutro”. Isso pode ser o
caso, por exemplo, de quando se avista um animal
perigoso, mas logo depois nota-se que ele está
gravemente ferido. O “neutro” então seria a desativação
de algum caminho, a partir da percepção de um novo
input, o qual denota um erro na avaliação; seria, em
essência, tirar o estímulo da categoria que o tínhamos
inserido; seria então desclassificá-lo, digamos assim.
Com isso queremos dizer que nossa perspectiva é a de
que não existe uma avaliação de algo como neutro em si.
Isso faz sentido em termos evolutivos, pois como existem
muitas coisas no ambiente que não oferecem risco ou
vantagem para a sobrevivência, categorizá-las a todo
instante como neutro implicaria em um gasto de energia
gigantesco.
Mas então, qual seria a utilidade da perspectiva
que trouxemos até aqui? Bom, se partimos da ideia de que
[37]
a arquitetura mental dos humanos é composta por
estruturas ancestrais que levam à ativação de caminhos
básicos de categorizações, é então possível localizar tais
caminhos como estando na raiz de inúmeros fenômenos
subjetivos da nossa espécie (como o fenômeno das
emoções, que abordaremos a seguir), e, com isso, melhor
compreendê-los.
29
Osmo, F. (2021). Basic evaluation process and some associated
phenomena, such as emotions and reactive defense of
beliefs. Integrative Psychological and Behavioral Science, 1-30.
[39]
A ideia central é que na raiz de toda emoção existe
um pensamento avaliativo30 31 32, e que: (1) os
pensamentos avaliativos que estão por detrás das
emoções de trajetória são categorizações relativas a “que
fim buscar?”; e (2) os da emoção de resultado são as
categorizações relativas a “houve sucesso na realização
do fim?”. Assim, vemos que na raiz das emoções básicas
estão as categorizações presentes no processo avaliativo
básico. A curiosidade (que seria uma emoção de
trajetória), por exemplo, viria da categorização de que
“devemos buscar o fim de identificação de padrões em
uma novidade”, e a alegria (que seria uma emoção de
resultado) viria da categorização de que houve sucesso
na realização desse fim.
30
Oatley, K., & Johnson-Laird, P. N. (2014). Cognitive approaches to
emotions. Trends in Cognitive Sciences, 18(3), 134-140.
31
Lazarus, R. S. (1982). Thoughts on the relations between emotion
and cognition. American Psychologist, 37(9), 1019.
32
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and practice
in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p. 369).
Aqui, a autora explica que existe um consenso entre Platão,
Aristóteles e Epicuro de que existe um importante elemento cognitivo
nas emoções, o qual incorpora formas de avaliar o mundo (pp. 369-
370).
[40]
Na nossa perspectiva nós teríamos então dois tipos
de emoção: as de trajetória e as de resultado33 34 35. No
caso das emoções de trajetória, podemos defini-las, mais
especificamente, como reações psicofisiológicas
selecionadas ao longo da evolução pelo fato de
aumentarem as chances de realização de fins
fundamentais para a sobrevivência. Na raiz das emoções
de trajetória, como falamos, está a categorização
presente nos caminhos básicos de que “devemos buscar
tal fim”. Sendo assim, e considerando a existência de
cinco caminhos básicos de categorizações diferentes,
podemos então chegar à conclusão de que existem cinco
emoções básicas de trajetória:
33
Osmo, F. (2021). Basic evaluation process and some associated
phenomena, such as emotions and reactive defense of
beliefs. Integrative Psychological and Behavioral Science, 1-30.
34
Ver Aquino, T. (2014). Onze lições sobre a virtude: comentário ao
segundo livro da ética de Aristóteles (E. Tondinelli, Trans.). Campinas:
Ecclesiae (pp. 54-55). Aqui, o autor explica que existem emoções que
se relacionam com o movimento e outras com o fim do movimento
35
Comparar com Gopnik, A. (2000). Explanation as orgasm and the
drive for causal knowledge: The function, evolution, and
phenomenology of the theory formation system. In F. C. Keil and R.
A. Wilson (Eds.), Explanation and Cognition. Cambridge: MIT Press
(p. 312). Aqui, a autora diferencia entre a emoção relacionada a
“hmm” ligada a curiosidade e a relacionada ao “aha”, de quando se
descobre algo, que ela entende ser um tipo de alegria. Notadamente
ela está tocando na diferenciação entre emoção de trajetória e de
resultado.
[41]
▪ Curiosidade: emoção que surge em resposta à
categorização de que devemos buscar o fim de
identificação de padrões em uma novidade, e que
é capaz de proporcionar um aumento nas chances
de realizar esse fim.
[42]
Mas de que forma as emoções de trajetória ajudam
na realização de um fim básico? Vamos compreender isso
tomando como exemplo a emoção que chamamos de
anseio. A perspectiva que estamos trazendo é que essa
emoção surge com a categorização “de que se deve
buscar o objetivo de alcançar um benefício”. Esta
categorização geraria uma descarga de dopamina capaz
de proporcionar uma forte intensificação da antecipação
de um benefício percebido, de modo a aumentar o foco
sobre ele, assim como a motivação de alcançá-lo36 37 38;
36
Nieoullon, A., & Coquerel, A. (2003). Dopamine: a key regulator to
adapt action, emotion, motivation and cognition. Current Opinion in
Neurology, 16, S3-S9.
37
Dugatkin, L.A. (2013). Principles of animal behavior (3rd ed.). New
York: W. W. Norton & Company (p. 531).
38
Berridge, K. C. (1996). Food reward: brain substrates of wanting
and liking. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 20(1), 1-25.
[43]
do que epinefrina (adrenalina) (no medo ocorre o oposto),
alteração nos níveis de testosterona, um significativo
aumento da pressão sanguínea, e contração muscular, o
que gera uma experiência de um senso de força e
autoconfiança39; respostas que, em conjunto, possibilitam
um aumento significativo nas chances de se alcançar o
fim de eliminação da ameaça.
Vamos agora falar das emoções de resultado?
Então, de novo sendo mais específicos, podemos defini-
las como reações psicofisiológicas selecionadas pela
evolução pelo fato de proporcionar duas vantagens
adaptativas:
39
Novaco, R. W. (2000); Anger. In A. E. Kazdin (Ed.), Encyclopedia
of psychology. Washington, D.C.: American Psychological
Association and Oxford University Press, pp. 170-174
40
Comparar com Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T.
Motta, Trans.). São Paulo: Companhia das Letras (p. 442). Aqui, o
[44]
que, por sua vez, também aumenta as chances de
realizar um fim).
[45]
Mas então: de que forma a emoção da alegria
incentiva o emprego dos mesmos meios, e a tristeza de
outros? A emoção da alegria, de acordo com a
perspectiva que estamos oferecendo, surge da
categorização de que um dado fim almejado foi
alcançado, a qual, gera a ativação de áreas do cérebro
associadas à recompensa, o que por sua vez, faz com que
uma sensação prazerosa sinalizadora de sucesso seja
vivenciada41. Se conseguimos fazer um gol chutando a
bola de uma determinada maneira, por exemplo, a alegria
vai servir para que utilizemos essa mesma maneira de
chutar no futuro, em uma situação parecida. Já a tristeza,
dentro desta concepção, surge da categorização de que
um fim almejado não foi alcançado; categorização esta
que faz com que haja a ativação de áreas do cérebro
ligadas a dor (por exemplo, o centro da dor do córtex
cingulado anterior), o que, por sua vez, proporciona a
vivência de uma sensação de dor sinalizadora de
fracasso42. Neste sentido, a tristeza, ao sinalizar fracasso,
41
Ver Dugatkin, L.A. (2013). Principles of animal behavior (3rd ed.).
New York: W. W. Norton & Company (p. 323).
42
Cikara, M., Botvinick, M. M., & Fiske, S. T. (2011). Us versus them:
Social identity shapes neural responses to intergroup competition and
harm. Psychological Science, 22(3), 306-313.
[46]
acaba nos incitando então a buscar outras formas de
realizar o objetivo que queríamos realizar, mas que não
conseguimos43. Por exemplo, se “damos uma cantada”
em alguém, e ela não funciona, ficamos tristes naquele
momento, e provavelmente não vamos mais usar esta
“cantada” no futuro; vamos ter que pensar em uma outra.
43
Cf. Pinker (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.). São
Paulo: Companhia das Letras (p. 442).
44
Comparar com Gopnik, A. (2000). Explanation as orgasm and the
drive for causal knowledge: The function, evolution, and
phenomenology of the theory formation system. In F. C. Keil and R.
A. Wilson (Eds.), Explanation and Cognition. Cambridge: MIT Press
(p. 312). Neste trabalho, a autora diferencia surpresa da curiosidade,
e assim toca na ideia de que existe uma emoção específica relativa a
“o que algo é?” (no caso, que algo é uma novidade).
[47]
avaliar algo como uma novidade); empolgação (no caso
de avaliar algo como um benefício); apreensão (no caso
de avaliar algo como uma ameaça - antes de avaliar se
ela pode ou não ser eliminada); e preocupação empática
(no caso de avaliar algo como um aliado, ou um potencial
aliado, em situação de dificuldade).
É importante notar que tais respostas emocionais
servem para atingir o fim para o qual a emoção de
trajetória aponta. Tomemos como exemplo a emoção da
apreensão. De acordo com nossa perspectiva, a
apreensão surgiria, especificamente, da categorização de
algo como uma ameaça. Esta categorização é que seria
responsável, então, por gerar uma descarga de
adrenalina e norepinefrina, que produzem um rápido
aumento na quantidade de açúcar e oxigênio disponível
no sangue, que são então levados para áreas do corpo
como o cérebro, músculos esqueléticos e coração; e que
por estarem, agora, “bem alimentados”, aumentam o
poder de "ataque" ou “fuga” do indivíduo45. Isso, por sua
vez, faz com que as chances de realização do fim de
45
Dugatkin, L.A. (2013). Principles of animal behavior (3rd ed.). New
York: W. W. Norton & Company (p. 485).
[48]
eliminar a ameaça ou do fim de escapar da ameaça (e o
fim primário de evitar o dano) se tornem bem maiores.
Contudo, embora as emoções “o que algo é”
tenham um papel em nos ajudar na realização de um
objetivo, elas não são as que, de fato, nos movem e nos
acompanham na atividade que leva a realização desse
objetivo46; e assim vemos que elas não possuem uma
importância central no que diz respeito ao
desenvolvimento das virtudes. Com isso queremos dizer
que não é fundamental estarmos atentos às emoções de
surpresa ou apreensão, por exemplo, uma vez que elas
atuam em nós de maneira muito rápida e pontual, dando
lugar às emoções de curiosidade, e medo ou raiva; as
quais, estas sim, atuam em nós por mais tempo nos
impulsionando em uma direção, a qual precisamos
verificar se realmente é uma direção que vale a pena
seguirmos.
Uma ressalva: aqui estamos dizendo que as
emoções que surgem da categorização “o que algo é?”
não tem importância central, e não as categorizações “o
46
Comparar com Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire:
Theory and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton
University Press (p. 83).
[49]
que algo é?”, as quais, podemos dizer, determinam a
categorização “que fim buscar?” (por exemplo, a
categorização “isto é uma ameaça que não pode ser
eliminada” determina a categorização “devemos buscar o
fim de escape da ameaça), que, como vimos, é o tipo de
categorização responsável por fazer surgir em nós uma
emoção de trajetória. Então, é pelo fato de entendermos
que a categorização “o que algo é?” determina a
categorização responsável por nos mover, é que a
consideramos como sendo algo importante a se prestar
atenção no que diz respeito ao desenvolvimento das
virtudes. O que queremos dizer é que não entendemos
ser de fundamental importância notar a emoção de
apreensão em si, por ela ser de curtíssima duração, mas
que é importante sabermos que tendemos a avaliar algo
como uma ameaça.
Vimos então que existem emoções que surgem
das categorizações “o que algo é?” e das “que fim
buscar?”. Contudo, entendemos que não existem
emoções que surgem das categorizações “por quais
meios?”. Isso provavelmente porque as emoções relativas
a “que fim buscar?” (as emoções de trajetória) exerceriam
um papel adicional, que seria proporcionar um aumento
[50]
nas chances de que as categorizações a respeito de quais
meios empregar sejam as que proporcionem as maiores
chances de realização do fim almejado. Neste sentido
acreditamos que o fim estabelecido, e emoção de
trajetória que dele surge, tem o poder de afunilar os tipos
de meios que serão empregados47, para que estes
tenham chances de serem bons meios (que tendem a
proporcionar a realização do fim estabelecido);
afunilamento que também gera economia de energia
cognitiva e uma maior rapidez no processo decisório. Um
macaco que vê uma fruta no topo de uma árvore, por
exemplo, não considerará maneiras de escapar da
ameaça, apenas maneiras de alcançar o fim de adquirir o
benefício “fruto” que já anseia. Assim, vemos que não
houve então pressão adaptativa para o surgimento de
emoções relativas à meios, pois as emoções de trajetória
têm o poder, em sua atuação, de contribuir para que
ocorra a escolha dos melhores meios.
47
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes & L.
M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 97).
[51]
Como as noções de emoções de trajetória e de
resultado podem ajudar no agir racional?
[52]
entendemos ser a que deveríamos sentir48. No caso do
amigo, por exemplo, poderíamos deixar de querer eliminar
uma ameaça, para querer compreender melhor o que ele
está falando, o que nos levaria a sentir curiosidade.
Vemos que quem adquire o hábito de fazer isso, “está
liberado(a)” para conversar sobre política, religião, futebol,
ou qualquer outro tema polêmico.
No que diz respeito às emoções de resultado,
compreender que quando sentimos uma emoção desse
tipo estamos categorizando que fracassamos ou tivemos
sucesso em realizar um objetivo, nos ajuda a analisar
também se o que estamos sentindo se aplica mesmo ao
contexto, e com isso, nos ajuda a realizar aceites ou
revisões nas conclusões de fracasso ou sucesso que
foram estabelecidas em nossa mente.
Vamos a um exemplo: se vemos uma pessoa
pedindo ajuda, mas já sabemos que ela tem uma baixa
autoconfiança, e que a “cura” para isso é ela “se virar
sozinha com as coisas que tem capacidade de lidar” (para
que assim ela comece a se perceber como competente),
48
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory
and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University
Press (p. 392).
[53]
podemos avaliar que o certo a se buscar é mesmo
“promover o seu bem”, o que nos leva a sentir compaixão,
mas por meios de uma “omissão” (que nesse caso se trata
de uma ajuda), para deixar ela se virar sozinha49.
Contudo, se essa pessoa, logo em seguida, começar a
chorar, podemos avaliar erroneamente que houve
fracasso em promover o seu bem. Daí, torna-se
necessária a revisão desta primeira avaliação, com base
na noção que já temos, de que o sofrimento dela faz parte
do processo que culmina com o aprendizado de novas
habilidades, e com ganho de autoconfiança”. Tal revisão
evita que a gente sinta tristeza à toa, pois até então não
houve fracasso em realizar o objetivo de promover o bem
da pessoa. Por sinal, vemos que quem adquire o hábito
de fazer isso “está liberado(a)” para sentir mais alegrias
ao longo da vida, ou, pelo menos, não sentir tristezas além
da conta.
49
Ver Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press.
Nesta obra, a autora relata justamente a possibilidade que estamos
aludindo, de empregar um meio, que objetivamente pode ser visto
como punição, mas que está a serviço do bem do outro (p. 249).
[54]
As emoções na imaginação
50
de Waal, F. (2019). Mama's last hug: Animal emotions and what
they tell us about ourselves. New York: W. W. Norton & Company (p.
240).
[55]
imaginação. Sabemos, por exemplo, que a mera
imaginação de que na próxima semana haverá um teste
para avaliar o nosso aprendizado sobre um determinado
tópico, pode nos fazer sentir medo. Isso indica que
realizamos, em relação ao objeto imaginado, as
categorizações de que o teste é uma ameaça que não
pode ser eliminada, bem como que a coisa certa para se
fazer é escapar da ameaça (fim) “fugindo” dela (meios)
(ativação do caminho de escape da ameaça). Assim, a
tendência é que manifestemos alguma categoria de
comportamento subordinado à categoria "fugir", que pode
ser, por exemplo, estudar o assunto em detalhes (não com
base na curiosidade, mas no medo), ou então, preparar
uma estratégia para trapacear.
[57]
vez que somos seres que, ao longo da evolução,
dependemos de estar em grupo para poder sobreviver).51
Com a ideia de “interesse latente por fim” queremos
dizer que se um fim já foi internalizado como sendo bom
(isto é, se tornou um valor), haverá então um interesse
latente por ele; de modo que não será necessário
intencionalmente buscá-lo para que seja possível sentir
alegria ou tristeza com a percepção de sucesso ou
insucesso em alcançá-lo. Isso porque a busca por tal fim
já existiria em um estado de latência, isto é, haveria um
interesse “natural” pelo fim; de modo que a simples
percepção de que ele foi ou não alcançado proporcionaria
a experiência de alegria ou tristeza52. Isso se aplicaria,
principalmente, aos fins estabelecidos como bons a partir
da vivência de consequências vantajosas ao longo do
curso da evolução, como o de aquisição do benefício de
dominação (um tipo de status), e eliminação da ameaça
de subordinação, por exemplo. Por sinal, vemos que cada
51
Comparar com Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics:
Human sociality and the emergence of ethical mindedness. London:
Palgrave Macmillan (pp. 228, 246, 256).
52
Osmo, F. (2021). Basic evaluation process and some associated
phenomena, such as emotions and reactive defense of
beliefs. Integrative Psychological and Behavioral Science, 1-30.
[58]
emoção foi sendo selecionada justamente por
aumentarem as chances de realizar fins de um mesmo
domínio de atuação, como é o caso do medo que funciona
bem no sentido de nos impulsionar para escapar das
ameaças de dano físico, de perda de relação de
reciprocidade, de perda de status, de perda de parceiro
sexual, entre outros. Com isso queremos sugerir que cada
emoção “cresceu” (e o fim básico relacionado a ela se
estabeleceu) com a prática de realizar fins específicos,
fundamentais para a sobrevivência de um mesmo domínio
de atuação; o que, em paralelo, fez com que também
“crescesse” o interesse por eles.
A seguir oferecemos uma lista de fins que
entendemos serem latentemente almejados por todos
nós, os quais podemos chamar de desejos ancestrais,
que são desejos que temos em comum com outros
animais, e que vemos estarem na raiz de todos os nossos
desejos, inclusive os “humanos”, como o desejo por ter
dinheiro, por exemplo (que podemos entender como
derivado do desejo de aquisição de recursos para a
[59]
sobrevivência)53 54. Vale frisar que nosso esforço aqui não
está em oferecer uma lista canônica, mas em tornar
evidente certos fins, que na nossa visão, são
frequentemente categorizados por nós como alcançados
ou não, e que, por isso, são, não raro, fontes cotidianas
de tristezas e alegrias.
Dimensão "identificação de
Dimensão "benefícios" Dimensão "malefícios"
padrões”
Identificação de padrões na
Aquisição de alimento Evitação da perda de alimento
novidade
53
Ver Trigg, R. (2001). Understanding social science: A
philosophical introduction to the social sciences (2nd edition).
Malden: Blackwell Publishing (p. 157).
54
Ver Frankl, V. E. (1987). Em busca de sentido: Um psicólogo no
campo de concentração (W. O. Schlupp & C. C. Aveline, Trans). São
Leopoldo: Sinodal (p. 139).
[60]
Evitação da perda de grupo
Aquisição de grupo
(exclusão grupal)
55
Status de dominação se refere ao reconhecimento do outro de que
somos superiores em algo, como força (que geralmente se dá por
meio de sucesso em brigas). Já o status de prestígio se refere a ter o
reconhecimento do outro de que somos superiores em
conhecimentos ou habilidades.
56
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (pp. 285, 286, 289, 300, 314).
[61]
em cooperar significa a realização do fim de "aquisição de
reciprocidade”.
A existência de desejos ancestrais vai além da
questão de nos fazer sentir alegrias ou tristezas, sem que
para isso seja necessário que estivéssemos ativamente
buscando por um objetivo. Tais desejos, por se tratarem
de valorização de fins, são capazes de influenciar muitas
das nossas escolhas do cotidiano, em especial se não
tivermos a mínima noção da existência deles ou se,
mesmo tendo essa noção, falharmos em agir com base
nela (o que implica em dar vazão cegamente a um desejo
ancestral). Isso, de ter as escolhas quase que
determinadas por desejos ancestrais, gera implicações
sérias para o desenvolvimento das virtudes em geral, em
especial a sabedoria, como iremos abordar a seguir.
Um desejo ancestral que se faz muito presente em
nosso cotidiano, e que tem o poder de prejudicar o
desenvolvimento das virtudes é o de evitar a perda de
recursos em geral57, o que, em especial, nos leva a ter
57
Aqui estamos advogando em favor da existência de um desejo
geral de aversão à perda de recursos, que, ao nosso ver, cresceu e
se estabeleceu por conta do estabelecimento de desejos de evitar
perdas de recursos específicos, como a de evitar perder alimento,
território, e ferramenta.
[62]
apego às nossas crenças. Aqui, o que parece ocorrer é
que quando chegamos a uma conclusão sobre algo,
passamos a considerar essa conclusão como sendo um
recurso valioso; como se fosse um alimento em tempos
de escassez, o que nos leva a querer defender esse ponto
de vista a todo custo. E se formos parar para pensar, as
crenças são mesmo um recurso, pois é com base nelas
que tomamos decisões, algumas acertadas. Assim,
perder uma crença seria então perder um recurso que
embasa algumas boas decisões.
Com base na noção acima, podemos compreender
que, no momento em que estamos, impulsivamente,
defendendo nosso ponto de vista, muitas vezes estamos,
em essência, tentando eliminar a ameaça de perder um
recurso. Isso implica que quando percebemos que alguém
está tentando nos convencer de algo que vai contra
nossas crenças podemos interpretar que estamos diante
da ameaça da tentativa de roubo de um recurso que
acreditamos possuir, a qual podemos, e que esta é uma
ameaça que podemos eliminar. Esta interpretação pode
fazer com que a gente rejeite ideias contrárias às nossas
[63]
crenças sem que, nem mesmo, tentemos compreendê-
las, o que, de fato, faz com que a gente tenha sucesso em
proteger nossa visão de mundo de conhecimentos que
podem ser capazes de fazê-la desaparecer. Mas isso tem
um preço: a estagnação do nosso saber, que representa
o não desenvolvimento da virtude da sabedoria (mas
também o da coragem, que envolve não dar ouvidos ao
medo se vermos que, no contexto, não existe, de fato uma
ameaça que precisamos escapar, no caso a ameaça de
perder uma crença).
É possível que a rejeição quase que automática à
ideias do outro, e com isso estagnação da sabedoria,
também ocorra por conta de estarmos dando vazão cega
ao desejo ancestral de dominar o outro; mais
especificamente, quando queremos impor nossas ideias
ao outro devido ao fato de enxergá-lo (ainda que
inconscientemente) como um subordinado em potencial,
como uma força de trabalho para nossos projetos
pessoais. Neste caso, não só a sabedoria não é
desenvolvida, como também a moderação, pois aqui a
pessoa estaria se deixando levar pelo anseio de realizar o
status de dominação sem parar para pensar se vale
mesmo a pena alcançar este objetivo.
[64]
Vale notar que a rejeição quase automática das
ideias do outro também pode ocorrer ainda pelo fato de
considerarmos certas expressões como um sinal de
tentativa de dominação (de evitar perda de status), o que
ativa o desejo ancestral por evitar que isso aconteça. Isso
parece ocorrer principalmente quando alguém fala em um
tom impositivo com a gente, como: "você deve fazer tal
coisa" e acabamos sentindo raiva, o que em essência,
pode significar que, naquele momento, vimos o outro
como um rival na luta por status (ainda que ele seja um
amigo ou familiar). Já sabemos que tal atitude também
pode gerar estagnação do nosso saber; nesse caso, por
nos levar descartar acriticamente o conselho do outro;
mas também pode representar o não desenvolvimento da
brandura, que tem a ver com “não darmos ouvidos” à raiva
se vermos que não existe, de fato, uma “ameaça que
precisa ser eliminada” no contexto.
O desejo ancestral de evitar a perda de status
também permeia contextos que evocam a assunção de
algum erro e eventual pedido de desculpas. Todos temos
um receio natural de ter nossa reputação manchada em
alguma medida, e os erros são mesmo capazes fazer isso.
Quando estamos em posição de liderança, por exemplo,
[65]
errar pode denotar falta da habilidade que o grupo valoriza
em nós, a qual pode ter nos levado a condição de líder, o
que implica que nosso erro pode levar os outros a verem
que não merecemos continuar a ocupar uma posição de
liderança. Neste tipo de contexto, um outro interesse pode
se fazer presente: o de evitar a perda do grupo. Assumir
um erro pode indicar que somos um peso para o grupo,
que a gente mais atrapalha do que ajuda, e com isso, que
é melhor para o grupo continuar sem nós, o que significa
nossa expulsão. Perder status é ruim, pois deixamos de
receber ajuda diferenciada dos outros para lidar com
desafios do mundo58. Pior ainda é quando somos
expulsos do grupo. Pois aí não podemos contar mais com
ajuda de ninguém; e como não somos bons em, sozinhos,
conseguir alimento de boa qualidade e nos proteger de
predadores, ser expulso do grupo, no passado ancestral,
era como receber uma sentença de morte59.
58
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (pp. 153, 286).
59
Ver também Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human
sociality and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (p. 216).
[66]
Felizmente, ou não, nossos ancestrais descobriram
que colocar a culpa em algo externo, ao invés de assumir
o erro, é uma estratégia que funciona para evitar os males
gerados pela perda da reputação. O preço de tanto uso é
ela ter se estabelecido tão bem na mente dos humanos
que, mesmo que a gente condene essa estratégia
ancestral, a primeira opção que vem na nossa mente,
quando enfrentamos a ameaça de sermos culpados por
algo ruim, é culpar o externo, inclusive uma outra pessoa.
Por sinal, essa é uma estratégia que se utilizada para a
realização do fim de evitar a ameaça de perda de status
pode vir a prejudicar o desenvolvimento das virtudes em
geral, pois pode evitar que nos arrependamos de ter
falhado em agir racionalmente, ou então, por não ter ainda
o saber necessário para agirmos melhor (arrependimento
de não ter a virtude da sabedoria mais desenvolvida).
A pouco introduzimos a noção da existência de
estratégias ancestrais selecionadas no curso da evolução
por terem se mostrado eficientes no que diz respeito à
realização de desejos ancestrais. É importante tratar
delas para compreender que, às vezes, a estratégia em si
é o que mais prejudica o desenvolvimento das virtudes,
como parece ser o caso da estratégia de culpar o outro
[67]
por erros que sabemos ter cometido, como falamos. Esta,
contudo, não é a única estratégia ancestral capaz disso,
como veremos agora.
Duas estratégias ancestrais capazes de
comprometer o desenvolvimento das virtudes parecem ter
sido selecionadas como bons meios no que diz respeito a
aumentar as chances da realização do fim de identificação
de padrões na novidade (que se refere à aquisição de
conhecimento): (1) aprovação social (que se refere a
utilização de uma regra mental do tipo “se é a ação ou
opinião da maioria, então é verdade”); e (2) autoridade
(que se refere a utilização de uma regra mental do tipo “se
é ação ou opinião de uma autoridade, um líder, então é
verdade)60 61 62. Embora a utilização de tais estratégias
possa, de fato, resultar em aquisição de conhecimentos
60
Ver Cialdini, R. (2009). As armas da persuasão: Como influenciar e
não se deixar influenciar. Rio de Janeiro: Sextante (pp. 90, 152-168).
61
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (pp. 152,153, 204).
62
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 33). Aqui,
Sêneca oferece uma “bela de uma bronca”, que serve para que
evitemos cair no viés de autoridade: "Zenão diz assim. – E tu, que
dizes? Cleantes afirma ... E tu, que afirmas? Até quando andarás sob
as ordens de outro? Dá tu as ordens, diz algo digno de memória,
afirma alguma coisa por tua conta!”.
[68]
que refletem a realidade razoavelmente bem, vemos que
não se trata do tipo de conhecimento que podemos
chamar de sabedoria. Isso porque, como nos ensina
Aristóteles, saber de uma coisa significa entender
“porquês” relativos à ela63(pois só assim conseguiremos
aplicar, corretamente, esse saber em diferentes situações
da vida); algo que depende de uma avaliação do que um
líder (ou a multidão) faz ou opina, com base no nosso
próprio universo de “porquês” (ao invés de, acriticamente,
aceitar como verdade uma informação), o que inclusive
pode nos levar a querer pesquisar sobre o tema em
questão, para além do que já sabemos sobre ele (em caso
de vermos que nosso próprio universo de porquês não nos
oferece base suficiente para avaliar se uma informação é
ou não verdadeira).
Sabemos que uma avaliação crítica do que o outro
diz não é garantia de sabedoria, que se refere à posse de
explicações que refletem razoavelmente bem a realidade,
pois a pessoa pode chegar a uma conclusão de que uma
explicação verdadeira é falsa por não ter sido capaz de
63
Ver Aristóteles (2012). Metafísica (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (A1, 981a5-30).
[69]
ver lógica nela (por falta de sabedoria ou por realizar um
raciocínio falho) ou não ter sido capaz de “batê-la” com os
fatos que já observou ao longo de sua vida (por realizar
um raciocínio falho). Contudo, se esta pessoa resolve
adotar tal postura, a de avaliar o que o outro diz com base
no seu saber, as chances de que, aos poucos, ela de fato
vá adquirindo explicações que refletem razoavelmente
bem a realidade (o que implica em desenvolver a
sabedoria) é bem maior. A grande questão aqui é que no
desenvolvimento das virtudes, o que se quer é que a
pessoa exercite o raciocínio com base no seu saber
corrente, pois só assim é que ela conseguirá tomar boas
decisões em situações particulares distintas. Isso, não é
possível, contudo, se ela simplesmente aceita uma lista
de respostas prontas de autoridades ou da multidão e
toma decisões somente com base nelas64.
Duas outras estratégias ancestrais que, se
empregadas sem critério, prejudicam o desenvolvimento
das virtudes, são as que parecem ter sido selecionadas
para proporcionar a realização do desejo ancestral de
64
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory
and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University
Press (p. 136).
[70]
evitar a perda de uma relação de reciprocidade. Uma
delas é “ajude de volta quem lhe ajudou”, a qual, se
empregamos irrefletidamente, nos torna presa fácil para
exploradores, que arranjam uma forma de forjar uma
ajuda para nos criar uma obrigação de retribuição; de
modo que se valem da nossa inclinação de empregar esse
meio ancestral para, assim, nos fazer de “gato e sapato”,
ou seja, para nos explorar/dominar. Isso ocorrendo
deixamos de praticar a virtude do amor/autoamor, e
caímos no extremo da abnegação, que significa praticar o
vício de “coração mole”. A outra estratégia é “retalie quem
não cooperou” (que pode envolver simplesmente se negar
a cooperar), a qual, se seguida irrefletidamente, nos
impede de praticar a virtude da brandura, que tem a ver
com não se deixar levar pela raiva, sem considerar os
particulares da situação, ou seja, sem compreender
melhor as razões da pessoa ter frustrado nossa
expectativa de retribuição para então ver se é mesmo
adequado escolher não ajudá-la65.
65
Ver também Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human
sociality and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (pp. 57, 170, 171, 177, 205).
[71]
Vale a pena falar ainda de uma outra estratégia
ancestral, a qual se empregada irrefletidamente, tem o
poder de nos impedir de praticar a virtude da coragem. É
a de “cumpra com as expectativas que o outro tem da
gente” (estratégia de compromisso/coerência), a qual
parece ter sido selecionada para proporcionar a
realização do objetivo de evitar a perda de status de
prestígio. A utilização sem critério dessa estratégia pode
nos fazer querer ser fiel a nossas escolhas do passado
(que nos levaram a adotar uma linha de ação), mesmo
que elas, se pararmos para pensar, não façam mais
sentido para nós; pois, seguir uma outra linha de ação
significaria mostrar para os outros que fizemos escolhas
ruins, o que, por sua vez, pode fazer com que eles
reconheçam que não somos bons em tomar decisões (e
por isso que não merecemos status de prestígio). O
emprego acrítico desse meio ancestral pode fazer
também com que ajamos, quase que sem pensar, na
direção de salvaguardar alguma “qualidade” que o outro
disse que nós temos; de modo a assim evitarmos quebrar
a expectativa positiva que ele tem sobre nós, o que
[72]
poderia nos levar a perder o status que ele nos conferiu66
67. Em ambos os casos, o que ocorre é mesmo escolhas
baseadas no medo da perda de status, e com isso a
prática do vício da covardia (o que implica na não prática
da virtude da coragem).
Além de desejos e estratégias ancestrais, também
possuímos bem estabelecidos em nossa mente
mecanismos ancestrais de avaliação “o que algo é?” e
“houve sucesso na realização de um fim?”, os quais
podem, também, afetar o desenvolvimento de virtudes.
O primeiro, por conta de atuar determinando a
categorização “que fim buscar?”, a qual, como falamos, é
responsável por nos mover na direção de um objetivo, e
por afunilar as escolhas dos meios. E aí, se a primeira
categorização não for apropriada ao contexto (de acordo
com nosso saber mais atual), ela acaba nos colocando no
caminho de agir de maneira inadequada; de modo que, se
aceitamos a sua avaliação irrefletidamente acabamos
66
Ver Cialdini, R. (2009). As armas da persuasão: Como influenciar e
não se deixar influenciar. Rio de Janeiro: Sextante (p. 50).
67
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory
and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University
Press (p. 181).
[73]
praticando um vício. Já o segundo mecanismo, pode
prejudicar, especificamente, a aquisição de sabedoria no
que diz respeito ao conhecimento de meios. Isso porque
se, irrefletidamente, aceitamos conclusões equivocadas
(sem levar em conta nosso saber atual) sobre se houve
ou não sucesso na realização de um fim, vamos continuar
acreditando que meios objetivamente ruins eram bons (e
assim não vamos nos lançar na investigação de novos
meios), ou que meios objetivamente bons eram ruins (e
assim vamos descartar conhecimento verdadeiro sobre
meios que já tínhamos).
No que diz respeito à mecanismos ancestrais de
avaliação “o que algo é?” podemos citar o “se o outro se
nega a cooperar após ter recebido ajuda no passado (ou
então retribuiu com um benefício abaixo do que
esperávamos) então ele é uma ameaça que pode ser
eliminada (ameaça de exploração/dominação)68”, o que,
dentro do processo avaliativo básico, nos leva a desejar o
fim de eliminar a ameaça de exploração/dominação, em
geral, pelos meios de “retalie quem não cooperou”. Um
68
Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality and
the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave Macmillan
(pp. 174-177).
[74]
outro mecanismo ancestral de avaliação “o que algo é?”
se refere a “se alguém que te ajudou está em dificuldades
então ele é um aliado que precisa de ajuda”. Tal
mecanismo deve nos levar a manifestar o desejo
ancestral pelo objetivo “aquisição de aliado por meio de
“ajude de volta quem lhe ajudou”, que se traduzido em
ação de ajuda pode representar o primeiro passo para o
estabelecimento de uma relação de reciprocidade.
Ainda no que diz respeito à questão da
reciprocidade parece existir o mecanismo de avaliação “o
que algo é?” do tipo “se um membro do grupo está em
dificuldades então ele é um potencial aliado que precisa
de ajuda”. Note que essa avaliação existe em função da
realização do fim de aquisição da relação de
reciprocidade, a qual necessita de que um indivíduo
ofereça ajuda a um outro, sem que antes tenha sido
ajudado por ele; mas um outro que provavelmente irá
retribuir a ajuda no futuro69. Um indivíduo do mesmo grupo
se encaixa nisso por conta de existir grandes chances de
69
Ver também Carter, G. G., & Wilkinson, G. S. (2013). Food sharing
in vampire bats: reciprocal help predicts donations more than
relatedness or harassment. Proceedings of the Royal Society B:
Biological Sciences, 280(1753), 20122573.
[75]
ele se manter próximo em termos espaciais, condição
necessária para que a retribuição da ajuda possa
acontecer. Por sinal, esse cálculo inconsciente parece
estar na raiz da tendência que temos de gostar de quem
aparenta, em algum aspecto, ser semelhante a nós, como
ter opiniões ou aparência física similares70. A semelhança
é um forte indicativo de pertencimento a um mesmo grupo,
o que ativa em nós uma disposição de querer o bem da
pessoa, pois nossa mente ancestral nos faz acreditar que
ela irá retribuir no caso de precisarmos de sua ajuda,
como já falamos. O lado negro disso é que tendemos a
ver o dessemelhante como sendo de outro grupo, o que
pode nos levar a sentir indiferença, ou até mesmo alegria
ao vê-lo passar por uma situação de sofrimento (que
nesse caso implica perceber o outro como uma ameaça a
qual foi “eliminada”)71.
Aqui já entramos na questão dos mecanismos
ancestrais de avaliação “houve sucesso na realização de
70
Cialdini, R. (2009). As armas da persuasão: Como influenciar e não
se deixar influenciar. Rio de Janeiro: Sextante (p. 130).
71
Comparar com Leach, C. W., Spears, R., Branscombe, N. R., &
Doosje, B. (2003). Malicious pleasure: Schadenfreude at the suffering
of another group. Journal of Personality and Social Psychology, 84,
932–943.
[76]
um fim?”. O que acabamos de citar pode ser caracterizado
como: “se um dessemelhante está em dificuldades, então
houve sucesso em eliminar uma ameaça”. Essa
categorização pode ocorrer, por exemplo, quando vemos
o “craque” do outro time sofrer uma falta dura, e sair
contundido de campo; o que pode nos levar a sentir
alegria, que significa o termos percebido como uma
ameaça “eliminada”. Além deste, vale a pena citar um
outro mecanismo relativo a “houve sucesso na realização
de um fim?”: o de “se o outro me ignora, então houve falha
em evitar a perda de uma relação de reciprocidade”,
percepção que nos leva a sentir tristeza72. É possível
notar a atuação deste mecanismo ao observar uma mãe
se recusando a interagir com seu bebê, fazendo “cara de
paisagem”, digamos assim; reação que geralmente leva o
bebê a chorar73. Já enquanto adultos podemos facilmente
perceber a atuação deste mesmo mecanismo quando,
num contexto de paquera, percebemos que a pessoa está
demorando muito para responder nossas mensagens.
72
Comparar com Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics:
Human sociality and the emergence of ethical mindedness. London:
Palgrave Macmillan (p. 217).
73
Adamson, L. B., & Frick, J. E. (2003). The still face: A history of a
shared experimental paradigm. Infancy, 4(4), 451-473.
[77]
Neste ponto da discussão já deve ter dado para
perceber que existem mecanismos ancestrais de
avaliações (que podemos chamar também de atalhos
mentais ancestrais; ou regras de categorização
ancestrais; ou ainda heurística ancestrais) responsáveis
por realizar categorizações específicas (mas que
“desembocam” nas básicas 74) relativas à “o que algo é?”,
“que fim buscar?” (que chamamos de desejos ancestrais),
“por quais meios?” (que chamamos de estratégias
ancestrais), e “houve sucesso na realização do fim?” sem
que para tal, seja necessário “beber” da nossa rede
porquês. É aí que reside o problema das heurísticas
ancestrais. Mas antes de abordar o problema,
gostaríamos de fazer a ressalva de que não estamos
defendendo que os desejos, ou melhor, as heurísticas
74
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, trans). São
Paulo: Companhia das Letras (p. 140, 141). Aqui, o autor defende que
nossa mente funciona com base em sistemas de regras (e não com
base apenas em associações). Nossa perspectiva segue exatamente
esta linha, em que existe uma cadeia de subordinação de heurísticas
estando as mais específicas subordinadas as mais básicas.
[78]
ancestrais como um todo são ruins em si75 76. Como diz
Aristóteles, a natureza não faz nada em vão77. Em termos
objetivos, aqueles que alcançam status de prestígio, por
exemplo, passam a ser vistos como uma referência de
saber ou de habilidades pelos outros, o que facilita a
propagação de informações potencialmente úteis para os
membros do grupo78. A gente não conseguiria escrever
esse livro, por exemplo, se, devido a alguma espécie de
“demonização” do status, não soubéssemos quem eram
as referências no campo da ética das virtudes. É fato que
perderíamos muito tempo lendo um monte de obras de
qualidade duvidosa na tentativa de achar alguma que
merecesse um exame detalhado.
Então, qual o problema das heurísticas ancestrais?
O ruim, no que diz respeito a todas as heurísticas
ancestrais não são elas em si, mas o dar vazão a elas sem
75
Ver Fowers B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (p. 26).
76
Ver Maslow, A. H. (1954). Motivation and personality. New York:
Harper & Row (pp. 35-58).
77
Aristóteles (2009). Política (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro
(1253a9-10)
78
Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality and
the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave Macmillan
(pp. 152, 153, 204).
[79]
o crivo da razão, que, em essência, tem a ver com “bater”
o resultado das suas categorizações com outras, as que
“bebem” de nossa rede de “porquês”. Isso, aos poucos,
deve fazer com que tais heurísticas recebam uma espécie
de upgrade, por assim, dizer, isto é, se tornem atalhos
mentais que se conectam a explicações, ou seja, se
tornem heurísticas racionais79 80. E assim, com a atuação
de heurísticas racionais conseguiremos ter uma noção,
sem precisar de muito esforço cognitivo, de porquê vale a
pena buscar status num dado instante, por exemplo (ao
invés de nos lançarmos a realização desse objetivo sem
qualquer noção da razão de estarmos fazendo isso); e
ainda de porquê devemos buscar status por certos meios
(escolhendo, por exemplo, demonstrar habilidades, ao
invés de vangloriar-se; no caso de já sabermos que
vangloriar-se pode fazer o outro achar que estamos
tentando dominá-lo, o que deve fazer com que ele nos
veja como uma ameaça, o que, por sua vez, pode
79
Ver também Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta,
Trans.). São Paulo: Companhia das Letras (p. 73).
80
Vemos então que as heurísticas irracionais, isto é, as herdadas
filogenéticas não seriam então descartadas, e sim refinadas, ou seja,
imbuídas de um “porquê”, para que assim possam se tornar mais
apropriadas aos contextos.
[80]
representar falha na realização do fim de aquisição de
status).
Falamos de muitas heurísticas ancestrais no
decorrer deste tópico. Nada mais justo do que oferecer
então uma visão geral delas em uma tabela, que
apresentamos a seguir. Vale ter em mente que o
conhecimento de tais heurísticas torna mais fácil saber
quando elas estão atuando em nós, o que, por sua vez,
torna mais fácil saber quando devemos aceitar suas
conclusões, que, como falamos, depende de enxergar
que tais conclusões estão embasadas em nossa rede de
porquês.
Aquisição de relação de
“Por quais meios?” Ajude de volta quem lhe ajudou
reciprocidade
Evitação de
“Por quais meios?” Retalie quem não cooperou
subordinação/exploração
[81]
Cumpra com as expectativas que Evitação da perda de status de
“Por quais meios?”
o outro tem da gente prestígio
Se um dessemelhante está em
“Houve sucesso na realização do Evitação de extinção do grupo (e
dificuldades então houve sucesso
fim?” dano físico direto)
em eliminar uma ameaça
[82]
evitação da ameaça de subordinação (o que ocorre no
caso de governos ditatoriais81).
Vemos então que uma das razões para nosso
comportamento ser mais flexível que o dos outros animais
é porque temos mais “instintos” do que eles (e não
menos), como sugeriu William James82. Contudo, vemos
que nossa flexibilidade comportamental se dá por dois
motivos (e não apenas um). O primeiro é este que já
falamos: por termos desejos por coisas mais específicas
(como ter milhares de seguidores na rede social, sair na
capa de uma revista, e por aí vai), ainda que estes sejam,
em sua essência, desejos que outros animais também
possuem, ainda que a raiz ancestral deles seja a mesma
(no caso, desejo por status), podemos contabilizá-los
como “instintos” adicionais. Assim, seriam instintos
“galhos” de um instinto “tronco”, por assim dizer. O outro
motivo é um pouco mais complexo. Ele tem a ver com o
fato de termos o galho de desejar identificar padrões
causais na novidade para além da província da percepção
[83]
(que vem do tronco “desejo de identificação de padrões
na novidade”); ou seja, tem a ver com instinto que temos
para apreender explicações sobre a realidade83 84 85 (o
que, fatalmente, nos levou a adquirir a noção de que
somos, nós mesmos, a causa de muitas coisas).
Isso, em nossa visão, teria sido responsável pela
emergência do nível de conscientização apenas visto em
humano: a consciência de que agimos em virtude do
alcance de fins através de meios86, ou seja, a consciência
de que somos agentes no mundo. O alcance deste ponto,
ou estágio evolutivo, coincidiria com o surgimento de uma
nova maneira de agir na natureza, a maneira “racional”,
que, de uma maneira geral pode ser caracterizada pela
83
Gopnik, A., Sobel, D. M., Schulz, L. E., & Glymour, C. (2001).
Causal learning mechanisms in very young children: two-, three-, and
four-year-olds infer causal relations from patterns of variation and
covariation. Developmental psychology, 37(5), 620.
84
Ver Aristóteles (2012). Metafísica (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (A 1, 980a1-30).
85
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory
and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University
Press (p. 123).
86
Comparar com Barkley, R. A. (2012). Executive functions: What
they are, how they work, and why they evolved. New York: Guilford
(p. 81). Em linha com o que aqui defende Barkley, nós partimos da
noção de que nosso nível de autoconsciência emergiu de um
direcionamento da atenção para nós mesmos no que diz respeito a
nos vermos como agentes causadores de coisas.
[84]
ciência de que se está agindo, assim como do porquê se
está agindo87 88. Com isso queremos dizer que o instinto
de adquirir explicações sobre a realidade forjou uma nova
forma de agir, a qual permite refletirmos sobre o que
estamos desejando no momento (e sobre os meios que
vamos empregar), para que assim possamos decidir, com
base em nossos porquês, se é “uma boa” mesmo seguir
uma certa linha de ação (o que, certamente, nos permite
alcançar um nível de flexibilidade "absurda" nos nossos
comportamentos). Esta flexibilidade, contudo, não se
refere a passar a ter desejos que não guardam qualquer
relação com desejos ancestrais; mas em conseguir
mediar nossos “instintos” (ancestrais, ou que deles
derivam) com base em porquês; de modo a analisarmos
se o que veio à tona se faz pertinente de dar vazão em um
dado contexto. Por sinal, parece que este é o limite de
nosso livre arbítrio: raciocinar sobre nossas inclinações89
87
Boyle, M. (2012). Essentially rational animals. In G. Abel and J.
Conant (Eds.), Rethinking Epistemology. Berlin: de Gruyter.
88
Ver também MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why
human beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 54).
89
Payot, J. (2018). A educação da Vontade. Campinas: CEDET (p.
46).
[85]
90. Até mesmo porque entendemos que não somos
capazes de “matar” inclinações, apenas dar vazão, em
cada momento, a que vemos fazer sentido, como falamos.
Por exemplo, a decisão de se afastar de uma pessoa que
não corresponde nosso interesse por relacionamento
serve para não dar vazão à inclinação de desejá-la como
companheira, por vermos que isso não faz sentido para o
momento (por vermos que seguir tal inclinação seria “dar
murro em ponta de faca”). Deste modo vemos que o
estoicismo está errado quando defende que devemos
ignorar, ou até mesmo extirpar nossos desejos91. Não
sugerimos isso pois é uma luta desleal bater de frente com
uma inclinação que foi construída ao longo de milhões de
anos de evolução (tendo apenas como arma uma teoria
que construímos recentemente); faz mais sentido usar as
inclinações que já temos a nosso favor.
Por fim, queremos sugerir que, com o
estabelecimento do interesse pelos porquês, um desejo
ancestral também se estabeleceu em nossa mentalidade,
90
Frankl, V. E. (1987). Em busca de sentido: Um psicólogo no campo
de concentração (W. O. Schlupp & C. C. Aveline, Trans.). São
Leopoldo: Sinodal (p. 128).
91
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and practice
in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p. 456).
[86]
que é o de agir com base nos porquês que já possuímos.
Com isso passamos a naturalmente valorizar esta forma
de agir, tanto em nós quanto nos outros. Não é à toa que
cobramos do outro explicações lógicas para suas ações
(o que inclui suas intenções); não é à toa que aplaudimos
atos bem sucedidos de coragem92 (mas não aplaudimos
se vemos que o bom resultado foi gerado sem intenção,
ou seja, sem um bom raciocinar93 94 95 96); e sobretudo,
92
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1101b11-16).
93
Nussbaum, M. C. (2011). Creating capabilities: The human
development approach. Cambridge: The Belknap Press of Harvard
University Press (p. 125).
94
Um exemplo disso é um jogador fazer um gol quase sem ângulo,
deixando todos impressionados, e na entrevista assumir que o intuito
dele era fazer um cruzamento.
95
Antich, P. (2021). Can There Be an Existentialist Virtue Ethics?. The
Journal of Value Inquiry, 1-20. Aqui, o autor traz um exemplo útil: que
não consideramos alguém como corajoso se ele faz algo arriscado
com o foco em evitar ser malvisto pelo grupo. Afinal, esta pessoa pode
estar sob controle do medo de rejeição, e o ato de enfrentar um risco
apenas aparenta um raciocínio e atitude de uma pessoa corajosa,
mas não o é na realidade se ele simplesmente agiu cegamente com
base neste medo. Por sinal, este é um exemplo pertinente no que diz
respeito ao comportamento de jovens e crianças, uma vez que, não
raro, eles se encontram na busca por aceitação grupal (o que não
seria algo ruim em si; o ruim é dar vazão cegamente a este objetivo,
o que pode levá-los a agir impulsivamente e correr riscos
desnecessários).
96
Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1228a10-24). Aqui, Aristóteles reconhece que, muitas vezes,
não temos como saber se o ato foi realmente virtuoso. De acordo com
[87]
não é à toa que, mesmo que ainda não tenhamos
adquirido o hábito de agir de acordo com nossa natureza
peculiar, ficamos orgulhosos de um bom resultado gerado
por escolhas pensadas que fizemos.
nossa perspectiva, isso porque, muitas vezes, não temos como saber
se a pessoa raciocinou com base no saber que tinha até então.
[88]
“eliminar uma ameaça”, o que nos faz sentir raiva); e
categorizações de que o objetivo foi ou não alcançado
(que, em caso de percebermos que conseguimos eliminar
uma ameaça, nos leva a sentir alegria).
Realizar avaliações destes tipos significa praticar o
pensamento categórico, ou seja, raciocinar em alguma
medida. Com isso queremos dizer que os outros animais
também raciocinam. A ideia de achar que eles são seres
autômatos é um erro97. Se um chimpanzé macho vê uma
fêmea no cio, e está “necessitado”, ele deve categorizar
que o certo a se fazer é buscar o benefício da cópula, o
que o leva, naquele momento, a sentir anseio por “dar uns
pega” nela. Mas isso não significa que ele vai seguir esse
impulso cegamente. Se ele ver que o “ciumento” macho
alfa está perto dela, ele pode classificar que está diante
de uma ameaça que não pode ser eliminada, e com isso
que o certo a fazer é escapar dessa ameaça (o que faz
com que ele sinta medo). Nosso chimpanzé está então
enfrentando um dilema, e para resolvê-lo ele deve
exercitar algum nível de autocontrole, fazer uma rápida
97
de Waal, F. (2019). Mama's last hug: Animal emotions and what
they tell us about ourselves. New York: W. W. Norton & Company (p.
275).
[89]
ponderação (rudimentar, é verdade), e assim fazer uma
escolha. Não sabemos dizer qual será, depende muito da
sua história de vida, e da sua genética. Com este exemplo
podemos notar que a ponderação não é algo exclusivo
dos humanos. Aristóteles sabia disso, em uma passagem,
ele reconhece existir uma espécie de prudência nos
animais não humanos98 99. Então dizemos, para a
surpresa de muitos, que realizar escolhas ponderadas
não significa ainda ser racional, pois outros animais
também são capazes de fazer isso.
Mas se outros animais são capazes de ponderar, o
que é que só nós somos capazes de fazer? Isso,
Aristóteles também conseguiu perceber. Ele viu que é
peculiar do ser humano querer saber o porquê das
coisas100. De fato, experimentos com crianças, ainda em
fase pré-verbal, mostram que elas se interessam em
98
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 5-6).
99
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1141a25-30).
100
Aristóteles (2012). Metafísica (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro
(A1, 980a22-982a11).
[90]
buscar explicações sobre as coisas101, ao passo que
chimpanzés adultos “não estão nem aí para isso”102. Isso
implica que uma diferença básica entre nós e os outros
animais é que conseguimos entrar no nível da abstração,
enquanto eles só conseguem raciocinar com base no que
percebem103. Isso significa que a gente pode avaliar as
coisas, não apenas com base no que a gente percebe,
mas também, com base em nossas teorias. Mas qual a
implicação prática disso? Na prática podemos, ao
categorizar algo, "bater" essa categorização com nossas
teorias, de modo a ver se ela está de acordo ou não com
o que a gente acredita. E aí, se não estiver, categorizar
este algo de uma outra forma.
Vamos a um exemplo comparativo. Um animal, se
ver um alimento, e não tiver nenhum outro estímulo que
concorre com este; e ainda estiver com fome, ele vai sentir
101
Sobel, D. M., & Kirkham, N. Z. (2006). Blickets and babies: the
development of causal reasoning in toddlers and infants.
Developmental Psychology, 42(6), 1103.
102
Povinelli, D. J., & Dunphy-Lelii, S. (2001). Do chimpanzees seek
explanations? Preliminary comparative investigations. Canadian
Journal of Experimental Psychology/Revue Canadienne de
Psychologie Expérimentale, 55(2), 185-193.
103
Ver também MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals:
Why human beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 36).
[91]
anseio e ir atrás do alimento. A gente pode, mesmo com
fome, mesmo sem uma outra coisa que nos chame
atenção, decidir não pegar um alimento que ansiamos
comer, pelo fato de estarmos seguindo alguma regra
própria, como “preciso fazer jejum”, pois acreditamos que
o jejum vai trazer boas consequências. Este exemplo
serve para mostrar que somos capazes de, com base em
nossas teorias, em especial vislumbre de consequências
teóricas, reinterpretar as coisas para nos comportarmos
de outra maneira. Isso só nós somos capazes de fazer104.
Então, podemos dizer que ser racional é
supervisionar a linha de ação que estamos prestes a
seguir e tomar uma decisão consciente de aceitá-la ou
104
Penn, D. C., Holyoak, K. J., & Povinelli, D. J. (2008). Darwin's
mistake: Explaining the discontinuity between human and nonhuman
minds. Behavioral and Brain Sciences, 31(2), 109-130. Neste
trabalho, os autores defendem a ideia que chamam de “hipótese de
reinterpretação“, de que “Embora haja uma profunda semelhança
entre as habilidades dos animais humanos e não humanos de
aprender e agir sobre as relações perceptivas entre eventos,
propriedades e objetos no mundo, apenas os humanos parecem
capazes de reinterpretar a relação de ordem superior entre essas
relações perceptivas em um modo estruturalmente sistemático e
inferencialmente produtivo”. Nossa perspectiva, em boa medida,
reflete tal ideia.
[92]
revisá-la105 106. Isso, com base em uma ponderação das
consequências que bebe da nossa rede de teorias; algo
que implica em, ainda que rapidamente, checar se se
existe um porquê (uma consequência que a gente veja
que vale a pena produzir) na linha de ação que estamos
prestes a seguir107 108 109. Em outras palavras, checar
105
Ver Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1135a1-4; 1150b29). A noção de supervisionar as
primeiras linhas de ação para aceitá-las ou revisá-las correlaciona-se
com o conceito de prévia escolha, presente na filosofia de Aristóteles.
Em algumas passagens, o filósofo dá a entender que tal conceito se
refere à primeira avaliação feita, que no caso de pessoas virtuosas,
tende a ser uma avaliação informada pela razão. Ele oferece ainda a
compreensão de que a ação justa é aquela que contraria a prévia
escolha quando esta se encontra equivocada, ou a que a aceita
quando ela se mostra correta.
106
Ver também MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals:
Why human beings need the virtues. Chicago: Open Court (pp. 54,
69).
107
Ver Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes
& L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 136).
108
Ver Foot, P. (2001). Natural goodness. Oxford, England: Oxford
University Press (p. 25). Aqui, a autora defende, contra a visão de
não-cognitivistas (como Hume), que uma pessoa, quando realiza uma
ação racional, não está agindo simplesmente com base em uma
emoção, ou em conformidade com uma disposição que já possui
estabelecida em sua personalidade, mas em conformidade com fatos
e conceitos [o que inclui, “porquês”].
109
Ver MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 106). Para
Aristóteles, a análise das consequências está no cerne do agir
racional. A polêmica passagem que ele afirma que não deliberamos
a respeito dos fins (mas apenas dos meios) alude justamente a isso.
Nesta, ele está sugerindo que, no momento em que estamos
[93]
(com base no nosso saber) se o objetivo que estamos
inclinados a realizar, vai mesmo gerar algo bom, e se os
meios que estamos prestes a empregar são mesmo bons
meios, em termos de serem capazes de realizar esse
objetivo. Isso, certamente nos demanda uma boa dose de
energia cognitiva se a situação é inteiramente nova para
a gente, pois precisamos elaborar novos atalhos em
nossa mente, que “bebem” do nosso universo de
“porquês”. Contudo, quando a situação já é do tipo que
costumamos lidar bem, pelo fato deste atalho mental já
estar constituído, só precisamos colocá-lo em prática, o
que nos demanda bem menos esforço110 111 112.
É possível notar que, dentro da perspectiva que
estamos trazendo, consideramos que uma pessoa age
racionalmente quando ela age com base no que, no fundo,
acredita ser o certo, mesmo que esse “certo” esteja errado
[94]
em termos objetivos. Neste sentido, vemos que age
racionalmente quem age de acordo com seu saber,
mesmo que seja um saber falso113 (que não reflete a
realidade razoavelmente bem). Contudo, vale notar que,
se uma pessoa adquirir a concepção de que tem muitas
coisas que ela não sabe (o que inclui saber que o que ela
sabe pode estar errado), haverá situações em que ela vai
entender que é preciso ampliar seu nível de sabedoria
antes de tomar uma decisão, o que significa que, nesse
tipo de situação, ela age racionalmente se agir com base
no saber de que não sobre muitas coisas, o que a leva a
escolher o objetivo de conhecer melhor a realidade114.
A definição que estamos trazendo do que é agir
racionalmente faz cair por terra pelo menos quatro mitos
sobre o que é ser racional. Primeiro que é ser tipo um
robô, sem emoções, ou que nossas emoções são nossas
113
Comparar com Galvão, P. (2005). Introdução. In. J. S. Mill,
Utilitarismo (P. Galvão, Trans.). Porto: Porto Editora (p. 24). É
possível perceber que nossa visão se alinha à visão do utilitarismo
subjetivo, a qual identifica o melhor ato como sendo o que atende à
perspectiva epistémica do agente.
114
Ver Anscombe, G. E. M (2005). Must one obey one´s conscience?.
In: M. Geach & L. Gormally (Eds.), Human life, action and ethics:
Essays by G. E. M. Anscombe. Exeter: Imprint Academic (pp. 243-
247).
[95]
inimigas115. Conscientemente aceitar a linha de ação que
estamos prestes a seguir, significa, simplesmente, aceitar
o objetivo que a emoção nos impulsiona a buscar, o qual
ela, inclusive, nos ajuda a realizar. A emoção neste caso
é uma “baita” amiga. E nos outros, quando a emoção não
aponta para a direção que acreditamos ser a certa,
podemos achar que ela mais atrapalha do que ajuda. Mas
lembra daquela frase “quem avisa amigo é”? Então, neste
caso podemos também ver as emoções como amigas,
pois elas revelam que estamos sentindo interesse por
algo que vai contra o que a gente acredita ser o certo no
momento, ou seja, que ainda estamos valorizando demais
coisas que achamos que não deveríamos mais valorizar
tanto116 117.
Não podemos esquecer que, para fins práticos, as
emoções são de especial ajuda para o agir racional pois
sinalizam o objetivo estabelecido na nossa mente em um
115
Ver Damasio, A. R. (1994). Descartes´s error: Emotion, reason
and the human brain. New York: Avon Books (p. 52).
116
Sherman, N. (1999). Character development and Aristotelian
virtue. In D. Carr & J. Steutel (Eds.), Virtue ethics and moral education.
London/New York: Routledge (p. 46).
117
Ver Sherman, N. (1997). Making a necessity of virtue: Aristotle and
Kant on virtue. Cambridge: Cambridge University Press (p. 254)
[96]
dado momento; de modo que se analisarmos se o que
estamos sentindo nesse momento é adequado ou não,
por tabela, analisamos, se faz sentido perseguir este
objetivo ou não. Assim, agir racionalmente implica vigiar
nossas emoções de trajetória (e não ignorá-las) para que
consigamos ver quando elas estão ou não adequadas
para o contexto (de acordo com nosso saber); de modo
que se estiverem, basta darmos um “aceite” nelas; mas se
não, precisamos ajustar o objetivo que se estabeleceu na
nossa mente, de modo a simplesmente recusá-lo (o que
nos leva a ver as coisas como neutras e a não sentir
emoção alguma) ou revisá-lo para focarmos em um outro,
o que nos leva à vivência de uma emoção adequada para
o contexto (adequada no sentido de estar em linha com a
que acreditamos que é a que deve ser manifestada).
O segundo mito é que toda a escolha racional é
realmente boa118 119. Não é, simplesmente, porque o
saber da pessoa pode não refletir bem a realidade, e aí a
seems scarce, why it matters. New York, NY: Viking (pp. 44, 177).
[97]
escolha com base no saber que possui, e assim racional
para o momento, pode acabar não lhe trazendo boas
coisas de fato. Contudo, na medida em que o saber da
pessoa for evoluindo, no sentido de ir refletindo melhor a
realidade, aí sim suas escolhas racionais vão se tornando
escolhas realmente boas.
O terceiro mito é que quem age racionalmente, age
sempre visando exclusivamente o seu bem120 121 122 123
120
Ver Trigg, R. (2001). Understanding social science: A
philosophical introduction to the social sciences (2nd edition).
Malden: Blackwell Publishing (pp. 135-136).
121
Ver Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press
(p. 268).
122
Ver MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why
human beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 60).
123
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (p. 21).
124 Ver Foot, P. (2001). Natural goodness. Oxford, England: Oxford
[98]
extremo oposto disso, o de uma pessoa acreditar que o
bem dela é totalmente dependente do bem do outro (o que
também é um equívoco, em termos objetivos, como
também veremos). E aí teremos uma pessoa que age
racionalmente quando abre mão, cem por cento, do que é
bom para ela em prol do bem dos outros.
O quarto mito é que quem é inteligente age
racionalmente. Ser inteligente e racional são coisas
diferentes, embora conectadas. Inteligência parece ter a
ver com ser bom em encontrar e empregar meios para
realizar um objetivo, isto é, em ser bom em, com base em
sua rede de teorias, discernir a respeito de possíveis
meios, escolhendo quais deles valem a pena empregar
por serem os que oferece mais chances de produzir a
consequência de realizar um dado objetivo125. Isso implica
que ser inteligente é condição necessária, mas não
suficiente para ser racional; pois no agir racional ocorre
também a avaliação de se vale a pena buscar um objetivo
125
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (p. 73).
[99]
tendo em vista as consequências que serão produzidas
com a sua realização126 127.
Uma “palavrinha” antes de prosseguirmos: é bem
comum na filosofia antiga a orientação do tipo “não deixe
que sua interpretação das coisas seja dominada pela
sensação de dor ou prazer”. Tal orientação nasce do fato
de tais filosofias valorizarem a racionalidade, que como
falamos, tem a ver com tomar decisões, não só com base
no que a gente percebe (e aí entram as sensações de dor
e prazer), mas também com base em nossas teorias. Por
sinal, aquele termo “retidão” ou “vida reta”, a nosso ver, se
refere justamente a isso: a tomar decisões sempre em
linha com o que a gente acha ser o certo128.
126
Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1144a20-30).
127
Stichter, M. (2016). The role of motivation and wisdom in virtues as
skills. In J. Annas, D. Narvaez , & N. E. Snow (Eds.), Developing the
virtues:integrating perspectives (pp. 204-223). Oxford University
Press, New York.
128
Ver Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1144a5-9).
[100]
O QUE É A VONTADE?
129
Aristóteles (2011). Da Alma (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro
(432b5-b8).
130
Sherman, N. (1989). The Fabric of Character: Aristotle’s Theory of
Virtue. New York: Oxford University Press (p. 61).
131
Ver Aristóteles (2011). Da Alma (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro
(433a21-25).
[102]
132. Assim, tal desejo se trata apenas do desejo de
chancelar, com base no nosso saber, desejos ancestrais
(ou que deles derivam), os quais são os que nos fazem
sentir uma emoção impulsionadora. Isso implica que
quando a gente se dá conta de que um objetivo é o melhor
para o momento, devemos sentir uma emoção de
trajetória em medida suficiente para nos impulsionar para
a realização dele (que vem do desejo de realizá-lo), ainda
que em uma intensidade inferior a uma outra que
podemos ter acabado de sentir (que vem de um desejo
que não reflete o melhor do nosso saber), e que podemos,
volta e meia, estar sentindo (isto é, sentindo de maneira
intercalada com a emoção que vem do desejo racional).
Vamos a um exemplo para clarear as coisas. Teve
uma vez que eu (F. Osmo) estava deitado no sofá, depois
de um dia exaustivo, olhando coisas aleatórias no meu
celular, para relaxar. Estava sentindo a emoção da
curiosidade, que me impulsionava a continuar olhando
coisas aleatórias. Mas aí me lembrei que esqueci de
salvar um arquivo no computador; e aí, fiquei com medo
132
Ver Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1139a35-1139b8)
[103]
de perdê-lo. Quando me lembrei disso, minha razão
“mandou” eu me levantar do sofá e salvar este arquivo
(meta-desejo de agir racionalmente + desejo de evitar a
ameaça de perder o arquivo). Mas então, olhei de novo
para o celular, e o desejo por ver novidades aleatórias veio
à tona novamente, impulsionado pela emoção da
curiosidade (que era mais forte do que o medo de perder
o arquivo). Vivi então um conflito entre minha vontade (o
desejo chancelado pela razão, o de evitar a ameaça de
perder o arquivo) e o desejo de ficar identificando padrões
em coisas que via como novidade (algo bem prazeroso,
por sinal, e nada de errado com isso, mas que não refletia
o que eu achava ser o certo a se fazer naquele momento).
Analisando as coisas nesse grau de profundidade
vemos que, no conflito entre razão e emoção, na verdade,
existe um conflito entre dois desejos impulsionados por
duas emoções distintas; um com base no saber que temos
no momento, e outro não. Agir racionalmente significa
então fazer valer nossa vontade, isto é, dar vazão ao
desejo racional (desejo chancelado pela razão) ao invés
de seguir um que não se baseia no melhor do nosso
saber. Mas como sugerimos no tópico “o que são as
emoções?”, nem sempre vai haver conflito de desejos e
[104]
emoções. Se a emoção que estamos sentindo nos soa
adequada para o contexto, a gente só precisa dar o aceite
consciente nela, o que significa verificar se é mesmo da
nossa vontade ir atrás do objetivo para onde essa emoção
aponta, pelo fato de entendermos que realizá-lo vai gerar
boas consequências.
[105]
Felizmente, Aristóteles se dedicou a estudar as
virtudes minuciosamente, e assim, seus escritos nos
direcionam rumo a uma boa compreensão delas. Ele
notou que na raiz do agir racional existe a atuação de dois
tipos de virtudes: as intelectuais e as morais133. As
virtudes morais seriam uma espécie de princípio, de regra
que, quando colocada em prática teria como função
chamar a atuação das virtudes intelectuais, para que
assim possamos escolher o melhor objetivo para a
situação que se apresenta134 135 136 137.
Aristóteles notou também que, para cada emoção
que nos impulsiona na direção de algo, deveria existir uma
virtude moral específica, responsável por nos ajudar a
escolher o melhor objetivo quando estivermos sob
133
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1103a14-15; 1138a34-35).
134
Ver Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1106b36-1107a3; 1145a5-8).
135
Ver Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1249a21-1249b9).
136
Ver Annas, J. (2011). Intelligent Virtue. New York: Oxford
University Press (p. 39).
137
Ver também Annas, J. (2016) Learning virtue rules: the issue of
thick concepts. In J. Annas, D. Narvaez , & N. E. Snow (Eds.),
Developing the virtues:integrating perspectives (pp. 224-334). Oxford
University Press, New York.
[106]
impulso de uma emoção138. Assim, no caso do medo
teríamos então uma virtude moral específica, que
conhecemos pelo nome de coragem, a qual seria
basicamente uma regra que se seguirmos nos ajudaria a
raciocinar a respeito de qual seria o melhor objetivo para
o momento a despeito de estarmos ou não sentindo medo.
A nosso ver, ela poderia ser uma regra do tipo “preciso
escolher o melhor objetivo na presença ou ausência do
medo”, que pode ser ou não o objetivo para onde o medo
aponta: o de escapar da ameaça.
Note que a virtude moral da coragem, sozinha, não
faz milagre, ela apenas nos leva a raciocinar, ou seja,
chama a atuação das virtudes intelectuais. Essas sim,
seriam as principais responsáveis pelo processo que leva
a manifestação do agir racional. Mas como seria esse
processo? Inicialmente o que ocorre, a nosso ver, é que a
virtude moral, ao chamar nosso raciocínio, nos estimula a
avaliar melhor as coisas. No exemplo do medo nos
estimula a avaliar “estou mesmo diante de um perigo que
não consigo enfrentar, e que vai me gerar um mal de
138
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1105b25-29, 1106b15-25).
[107]
fato?”. Se entendermos que é o caso, “beleza”, vamos
buscar mesmo o objetivo de escapar da ameaça, e pelos
meios que entendermos serem os melhores. Isso
representa aceitar a orientação oferecida pela emoção do
medo, significa aceitar as primeiras avaliações que
fizemos de algo, mas de maneira consciente. Mas se
nosso raciocínio nos levar a uma reavaliação do tipo “opa,
essa ameaça eu consigo enfrentar, e vencê-la vai me
trazer algum bem”, podemos escolher então buscar um
outro objetivo, o de eliminar a ameaça (e não o de escapar
dela). Isso, por sua vez, representa a revisão da
orientação oferecida pelo medo para uma outra, a de
eliminar a ameaça, o que nos leva a sentir raiva em
alguma medida; significa revisar nossas primeiras
avaliações.
A nosso ver, para conseguirmos aceitar ou revisar
conscientemente nossas primeiras avaliações precisamos
colocar em prática duas virtudes intelectuais: o
discernimento e a sabedoria. Como nos ensina Aristóteles
o discernimento é, em si, responsável pela boa avaliação
das coisas; e o discernimento só consegue fazer isso
acessando nossa base de informação mais atual, a
[108]
sabedoria que temos até o momento139. Deste modo,
praticamos o discernimento e a sabedoria, por exemplo,
quando, ao sentirmos medo, refletimos, ainda que
rapidamente, se aquilo que nos assusta é mesmo uma
ameaça que não podemos enfrentar, e assim se o objetivo
“escapar” é mesmo uma boa opção tendo em vista as
consequências que realizá-lo vai trazer para nós. Feito
isso, o discernimento, também acessando nossa
sabedoria, identifica os melhores meios para realizar o
objetivo que ele estabeleceu ser o melhor para o
momento. Por fim, e não menos importante está a atuação
da virtude intelectual da prudência, também conhecida
como sabedoria prática, que na visão de Aristóteles, é
responsável pela decisão em si, pela escolha do objetivo
e meios estabelecidos pelo discernimento140. Sobre isso,
vale uma reflexão: quantas vezes a gente, no fundo,
consegue identificar o que é melhor a se fazer, mas não
fazemos, ou então fazemos mal feito, e no fim nos
arrependemos pois sabíamos que poderíamos ter agido
139
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1140b32-35; 1141a15-19; 1143a5-10).
140
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1140b5-10; 1143a5-10).
[109]
diferente? Isso pode denotar uma prudência precisando
ainda de mais desenvolvimento.
Agora a gente já consegue compreender que uma
pessoa corajosa tem então a habilidade de agir
racionalmente em situações que nela evocam ou
deveriam evocar medo. Isso porque ela tem a virtude
moral da coragem, ou seja, tem o hábito (ou habilidade
bem desenvolvida) de seguir uma regra que ela
estabeleceu para si (uma autorregra) que a leva a
raciocinar melhor quando sente ou deveria sentir medo; e
ainda porque ela consegue discernir, com base no que
sabe até então, qual o melhor objetivo e meios para a
situação; e por fim, por conseguir tomar a decisão
prudente de seguir tudo aquilo que seu discernimento
manda. Note que existe uma diferença entre atuar com
coragem, ela já sendo corajosa, e atuar com coragem sem
ainda ser corajosa. No primeiro caso a pessoa já tem o
hábito (ou habilidade bem desenvolvida) de seguir uma
autorregra que a faz raciocinar melhor em uma situação
do domínio do medo. Já no segundo, ela ainda não tem o
hábito (habilidade bem desenvolvida) de seguir esse tipo
de autorregra, mas se esforça para fazê-lo, o que lhe
possibilita agir bem nesse tipo de situação (mas
[110]
provavelmente não tão bem quanto quem já possui a
coragem)141.
Com base no que apresentamos até então
podemos chegar às seguintes conclusões:
Virtudes em geral
[111]
Virtudes morais
[112]
1) Coragem142 (para lidar com medo ou falta de
medo).
142
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1107b1-5).
143
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1117b24-29).
144
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1125b31-1126a1).
145
Aristóteles não propõe uma virtude moral para lidar com a
curiosidade, uma lacuna na sua filosofia, ao nosso ver. Demos o
nome de “curiosidade útil” para refletir a noção de que sua função é
nos ajudar a evitar perder tempo investigando coisas que acreditamos
não ter importância (curiosidade inadequada para um contexto), ou
deixar de investigar coisas que acreditamos serem relevantes (falta
de curiosidade).
146
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1119b20-25).
[113]
É importante mencionar que pode ser necessário
praticar a virtude moral mais de uma vez no curso de uma
linha de ação, mesmo após ela já ter nos ajudado a
exercitar as virtudes intelectuais para escolhermos o que
acreditamos ser o melhor fim e meios. Isso ocorre quando
uma avaliação já revisada voltar a ser a primeira avaliação
em um momento posterior. E aí temos que novamente
revisá-la, o que significa renovar a escolha que já fizemos.
Abaixo, eu (F. Osmo), ofereço um pequeno relato
de uma situação que passei, que mostra a necessidade
da prática da virtude moral da coragem mais de uma vez,
antes de realizar o desejo racional de chegar em casa pelo
caminho mais curto:
[115]
Sobre cada virtude moral básica
Curiosidade útil
147
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1176b30-1177a2). Aqui, Aristóteles defende a ideia de
Anacarse da Cítia, de que é preciso entreter-se para que se possa
trabalhar, argumentando que “o entretenimento é uma forma de
repouso, do qual precisamos porque não somos capazes de trabalhar
continuamente”.
[117]
situação. E aí, podemos chegar à conclusão de que é uma
boa hora para “investigar” as piadas que estão ocorrendo
na reunião de trabalho, o que representa passar a
categorizar as piadas como algo que vale a pena ser
investigado (o que nos leva a sentir curiosidade por elas).
Coragem
[119]
fim iremos sentir um outro tipo de emoção148, que não o
medo (ainda que em uma intensidade inferior se
comparada com o medo que vivenciamos). É o caso, por
exemplo, de quando, em uma reunião de trabalho, nosso
chefe demonstra estar equivocado em relação a algo, o
que pode prejudicar em alguma medida, os resultados da
equipe. Podemos achar que o certo a se fazer não é algo
relacionado “fugir”, como ficar em silêncio ou fingir
concordar, mas achar que o melhor objetivo é o de
promover o bem dele e do grupo (o que nos levaria a sentir
compaixão) e com isso decidir expor nosso ponto de vista
discordante.
Brandura
148
A menos que tenhamos avaliado que, no contexto, existe uma
outra ameaça que não pode ser eliminada, e que devemos buscar o
fim de escapar desta ameaça. Aqui, a revisão do fim ocorre com o
estabelecimento de um fim da mesma dimensão, mas que diz respeito
a uma outra ameaça. Sendo assim, o medo será de novo a emoção
vivenciada. Este mesmo raciocínio vale para as outras revisões, que
se dão com a prática de outras virtudes morais.
[120]
que o melhor fim é mesmo “eliminar a ameaça”, o que nos
faz ver sentido em continuar sentindo raiva, e proceder
com a realização de tal fim. Sendo essa uma escolha
consciente, ela então embasa um ato de brandura, que
pode ser o caso, por exemplo, de quando uma pessoa faz
brincadeiras o tempo todo numa reunião, prejudicando o
resultado do trabalho, e decidimos intervir chamando a
atenção dela.
A brandura é praticada também quando estamos
“de boas”, sem sentir emoção alguma, mas vemos que a
raiva é a emoção adequada a ser sentida no momento.
Podemos, por exemplo, talvez por desatenção, não
sentirmos raiva de alguém que está cometendo abuso
psicológico a um amigo nosso. E aí, quando paramos para
notar o fato, avaliamos conscientemente que o certo a se
fazer é eliminar a ameaça (ameaça de dano a um membro
do grupo), o que nos leva a sair de um estado de
neutralidade emocional para vivenciar raiva, e agir no
sentido de fazer cessar tal abuso.
A brandura tem a ver também com a reavaliação
de que algo não é uma ameaça que pode ser eliminada,
mas uma outra coisa. Talvez, que não há qualquer
ameaça, o que nos leva a ver o contexto como neutro; ou
[121]
então, avaliar que existe uma outra coisa a se fazer no
contexto. É o caso, por exemplo, quando avaliamos uma
opinião contrária como não sendo mesmo uma ameaça;
mas algo neutro; ou, talvez, algo que vale a pena ser
investigado, uma vez que pode contribuir para melhorar o
nosso conhecimento sobre a realidade (o que nos faria
sentir curiosidade).
Moderação
[123]
Generosidade ou amor (e autogenerosidade ou autoamor)
[124]
então, em seguida, notamos que o melhor a fazer é
mesmo ajudá-lo.
Contudo, existem contextos em que podemos
avaliar, com base no nosso saber, que o correto não é
promover o bem de alguém, como quando alguém nos
pede algo que é capaz de resolver sozinho. Neste caso,
podemos sentir compaixão em um primeiro momento,
mas se pararmos para compreender melhor a situação,
sob a luz do nosso saber, podemos avaliar que a pessoa
está tentando se aproveitar de nossa mão de obra, o que
pode nos levar a avaliar que precisamos escolher buscar
um outro objetivo, que vemos ser mais adequado para o
momento (ao invés do objetivo de promover o bem dela);
de repente, o de eliminar a ameaça de subjugação, o que
nos levaria a sentir raiva em alguma medida. Sendo
assim, vemos que a revisão de uma compaixão
inadequada está dentro do escopo de atuação da virtude
moral do amor.
Um pouco mais difícil do que sentir compaixão pelo
outro, e com isso voltar esforços para promover o seu
bem, é sentir autocompaixão de fato, e se dedicar a cuidar
de si para além do básico. Isso porque, para sentir
autocompaixão é preciso que nos vejamos em
[125]
perspectiva149, em terceira pessoa, por assim dizer, o que
exige uma boa dose de gasto cognitivo. A questão da
autocompaixão se faz especialmente necessária em
contextos que, por falta de atenção, não notamos que
estamos precisando cuidar da gente; como quando
estamos envolvidos em uma rotina desgastante, focados
na realização de algo que vemos propósito, por exemplo,
mas não notamos que nosso corpo emite sinais de
sobrecarga, e que precisamos tirar um tempo para
descansar.
149
Neff, K. D. (2016). The self-compassion scale is a valid and
theoretically coherent measure of self-compassion. Mindfulness, 7(1),
264-274.
[126]
gente acaba precisando da força de algo mais concreto
para conseguir lidar bem com cada tipo de situação que a
vida oferece.
A gente pode estabelecer para nós mesmos a
autorregra de “não iludir pessoas que se apaixonam por
nós”, a qual nos direciona a sermos sinceros tendo em
vista o bem delas. Assim, se o tipo de situação “pessoa
apaixonada se declarando para a gente, sendo que não
queremos nada com ela” surgir, essa autorregra pode vir
como um “pop up” na nossa mente nos apontando um
caminho a seguir; o caminho de, por exemplo, falar: “não
vai rolar, e acho melhor ser sincero...falo isso de coração,
pois sinto que a vida passa rápido demais, e a última coisa
que quero é que você perca tempo comigo”.
Uma outra situação, é a de tomarmos um “fora” da
pessoa pela qual estamos apaixonados. Podemos adotar
para nós uma autorregra que nos ajude a lidar bem esse
tipo de situação, que pode ser uma do tipo “preciso
respeitar a escolha do outro de não querer nada comigo”,
o que também é uma autorregra que tem em vista o bem
da pessoa, pois atua na questão de respeitar o direito da
pessoa de escolher o que acha que é melhor para ela.
[127]
Note que, agir com base nos tipos de autorregras
que acabamos de apresentar se refere a lidar bem com a
compaixão para realizar escolhas fundamentadas no
melhor do nosso saber, mas em situações específicas. A
partir dessa noção, podemos concluir o seguinte:
150
Comparar com Kristjánsson, K. (2013). Virtues and vices in
positive psychology. Cambridge University Press (p. 199).
151
Mais precisamente, vemos este processo como sendo do tipo
bottom-up / top-down, ou seja, que as virtudes específicas fazem
[128]
Figura 1: relação entre virtudes morais básicas e específicas
[129]
[130]
Virtudes intelectuais
[131]
1) Sabedoria: conjunto de teorias que um indivíduo
possui, e que refletem a realidade razoavelmente
bem152 153;
152
Comparar com Aristóteles (2012). Metafísica (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (A1, 982a5-15).
153
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1140b32-35, 1141a8-19).
154
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1143a1-10).
155
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1140b5-20, 1143a5-10).
156
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1140b32-35, 1141a15-17).
[132]
5) Entendimento: habilidade de identificar, com base
na sabedoria, o que de fato é relevante levar em
consideração em um contexto particular157 158.
157
O entendimento pode considerar relevante tanto coisas concretas
como uma lata de feijão, ou abstratas, como a aparente intenção de
um dos envolvidos na situação.
158
Comparar com Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.).
São Paulo: Edipro (1143a35-1143b1).
[133]
especial em caso de percepções de sucesso ou fracasso
inesperados, as quais nos incitam a investigar o porquê
das coisas terem dado certo ou errado; o que se refere à
tentativa de apreensão de novos universais, novas
teorias. Fica claro aqui a importância do arrependimento
(tristeza que surge com a percepção de que escolhemos
mal) no processo que leva a ampliação da sabedoria.
No que diz respeito à sabedoria vale a pena a gente
ter em mente que todo mundo tem essa virtude em algum
nível, mas que só podemos chamar de sábio quem
alcança um patamar razoável de conhecimentos sobre
universais. A respeito disso, vale mencionar: quem chega
nesse patamar, e ainda tem o hábito de tomar decisões
com base no que realmente acha ser o certo (a habilidade
de seguir autorregras que ajudam a lidar com emoções,
ou falta delas, para raciocinar melhor) consegue tomar
decisões realmente boas com uma elevada frequência, e
com isso, consegue ser bem sucedido na vida de uma
maneira geral.
Uma “palavrinha” antes de prosseguirmos: é
comum afirmarem que todas as virtudes são habilidades,
mas não concordamos com esta posição por existir a
virtude da sabedoria, que, como falamos, não se refere a
[134]
uma habilidade em si, mas a um acúmulo de
conhecimentos sobre universais; que como você já sabe,
são fundamentais no sentido de servir de base para que
as demais virtudes, que seriam habilidades, atuarem de
modo a tornar possível a produção de consequências
realmente boas. Além disso, vale mencionar que existe
um grande debate a respeito da existência ou não de uma
unidade das virtudes, ou seja, de existir uma virtude que
serve à função de gerar uma espécie de união das
virtudes. Em nossa visão existe tal virtude unificadora; ela
seria a sabedoria, uma vez que, como falamos,
fundamenta a atuação de todas as demais virtudes159.
159
Ver Stichter, M. (2016). The role of motivation and wisdom in
virtues as skills. In J. Annas, D. Narvaez, & N. E. Snow (Eds.),
Developing the virtues:integrating perspectives (pp. 204-223). Oxford
University Press, New York.
[135]
para o desenvolvimento das virtudes. Com isso, vemos
que não podemos deixar de oferecer as noções de que:
[136]
pois nos incita a priorizar atividades que fazem
sentido no que diz respeito a objetivos que
queremos realizar, não só no curto, como também
no longo prazo.
160
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (pp. 47-48).
[137]
De uma maneira geral podemos dizer então que as
coisas do mundo da dimensão da percepção possuem
validade de face, ou seja, além de fazerem sentido pelo
fato de estarmos detectando um padrão, elas são
próximas da verdade. Isso, graças ao desenvolvimento de
um bom aparato cognitivo ao longo de milhões de anos de
evolução. Contudo, essa regalia, a da validade de face,
não temos no mundo da abstração.
Vemos que o surgimento dos humanos, algo que é
bem recente em termos do tempo evolutivo, coincide com
o surgimento da capacidade de elaborar “porquês” das
coisas, de elaborar teorias sobre a realidade, como
falamos. Esta é uma capacidade que só nós temos.
Nenhum outro animal consegue ter qualquer noção
teórica, abstrata, do conceito de gravidade, por exemplo,
mesmo que esta força influencie, o tempo todo, sua
interação com o meio. A capacidade de teorizar nos
colocou então na condição de vantagem na luta por
sobrevivência pelo fato de nos permitir alcançar
informações verdadeiras sobre a realidade, ou melhor,
próxima da verdade, para além da província da
percepção. Adquirimos a capacidade de adentrar na
dimensão dos porquês, e com isso ter informação
[138]
privilegiada sobre padrões da realidade. O resultado disso
já sabemos. O ser humano se tornou a espécie dominante
do planeta.
Acontece que esta dominação se deu por termos
conseguido adquirir algumas noções teóricas que refletem
bem a realidade, noções próximas da verdade, como
falamos. Há também uma pressão adaptativa para tal161.
Contudo, com a nossa capacidade de adentrar na
dimensão dos porquês, veio também a capacidade de
“viajar na maionese”; de elaborar associações teóricas
que podem fazer sentido na nossa cabeça (que podemos
ver lógica), mas que na verdade não refletem a realidade
razoavelmente bem. Isso acontece, talvez, pelo fato de a
capacidade de compreender os porquês seja ainda muito
recente, e, por isso, ainda não estar lapidada o suficiente
pela evolução. Além disso, vale ressaltar que a seleção
natural, muitas vezes, não nos pune no processo de
criação de teorias espúrias da realidade. Ela não nos pune
quando criamos uma teoria que não prejudica nossa
adaptabilidade, como a de que sacrificar um carneiro vai
161
Pinker, S. (2018). O Novo Iluminismo: em defesa da razão, da
ciência e do humanismo. Editora Companhia das Letras (p. 455).
[139]
agradar uma divindade e, com isso, nos trazer boa sorte;
e, além disso, ela não nos pune, quando criamos uma
teoria errada mas que tangencia elementos de verdade
aproximada e que são úteis para a nossa sobrevivência.
Um exemplo disso, relativamente recente até, foi o
advento do costume dos médicos de lavarem as mãos
entre manipular um corpo morto, em decomposição, e um
vivo. Acreditava-se que a lavagem removia “partículas
cadavéricas” das mãos dos médicos, diminuindo assim a
mortalidade dos pacientes. O ato é útil, pois ele evita a
contaminação, mas pelos motivos errados. Assim, a teoria
que fez sentido na cabeça dos médicos, apesar de
funcionar, estava errada pois não capturava a causa, não
explicava, o que, de fato, estava por detrás do fenômeno
da contaminação e das mortes.
Essa fraqueza que temos, a de acreditar, logo de
cara, em algo que faz sentido na nossa cabeça
possivelmente tem a ver com nossa herança animal. Em
um experimento, um psicólogo demonstrou que se
pombos fossem alimentados em intervalos regulares, eles
passavam a acreditar que um comportamento que fizeram
por acaso estava associado à chegada do alimento. Neste
experimento, um pombo, por exemplo, acabou adotando
[140]
o costume de ficar girando em sentido anti-horário162. Vale
ressaltar, contudo, a artificialidade do experimento. No
mundo real, fenômenos de curto prazo da dimensão da
percepção não ocorrem de maneira tão regular, e assim
dificilmente vamos ver pombos com “tique nervoso” por aí.
Assim, acreditamos que a maioria das associações que
os animais percebem são de fato próximas da verdade, e
por isso adaptativas. Assim, evolutivamente compensa e
muito acreditar em associações na dimensão da
percepção, pois a maioria delas seria próxima da verdade
(e, com isso, de grande ajuda para a sobrevivência). É por
isso, então (porque as acreditar em conclusões ao longo
do tempo evolutivo aumentava as chances de
sobrevivência uma vez serem a maioria delas próximas da
verdade), que, ao nosso ver, seríamos inclinados a
acreditar em qualquer associação que faz sentido em
nossa cabeça, inclusive as teóricas. O fato é que,
diferentemente do que ocorre com as coisas da dimensão
da percepção, as coisas da dimensão dos porquês não
possuem validade de face, e assim as chances de
162
Skinner, B. F. (1948). Superstition in the pigeon. Journal of
Experimental Psychology, 38, 168–172.
[141]
associações percebidas serem próximas da verdade
reduzem consideravelmente. Elas podem fazer sentido na
nossa cabeça, assim como faz sentido o mundo de Harry
Potter ou de Senhor dos Anéis, mas não explicar de fato
o que ocorre no mundo real. A natureza dessa diferença
deriva do fato de que as crenças da dimensão da
percepção são constantemente testadas frente à
realidade. A hipótese de que um desconhecido está
dentro da sua casa é rapidamente desconfirmada quando
você percebe que era só o chapéu no cabide, por
exemplo. Entender tal diferença é crucial para se ter uma
relação saudável com suas crenças da dimensão dos
porquês.
E o que devemos fazer para ter tal relação
saudável? Na prática, precisamos simular, no âmbito dos
porquês o que acontece de maneira fluida no âmbito da
percepção. Precisamos nos manter então com os pés na
realidade, nos esforçando para testar e validar nossas
teorias, ou melhor nossas hipóteses teóricas. Mas de que
forma? Nos esforçando para confrontar nossas teorias
com fatos que observamos. Não tem para onde correr.
Não tem como tomarmos como garantido que as coisas
que fazem sentido na nossa cabeça são verdadeiras. Isso
[142]
implica entender que somos falíveis na elaboração de
teorias a respeito da realidade, e com isso que possuímos
muitos “não saberes”, que não só dizem respeito a coisas
que a gente sabe que não sabe, ou as que gente nem
sabe que não sabe; mas também as coisas que a gente
acha que sabe163.
Lembre-se que o que observamos tem validade de
face, mas não nossas teorias. Mas se as teorias refletem
as coisas que observamos, a validade de face destas
últimas pode ser transportada para nossas teorias, por
assim dizer, pelo menos até não termos um fato contrário
a elas. A gente pode teorizar que todos os cisnes do
planeta são brancos, mas se virmos um preto, temos que
estar dispostos a rever nossa visão de mundo. Contudo,
o apego às nossas próprias crenças não é algo fácil de
lidar, e assim não raro podemos tentar classificar o cisne
preto não como um cisne de verdade.
163
Vemos que esse tipo de noção ajuda a manter a forte curiosidade
que as crianças demonstram ter nos estágios iniciais da infância, a
qual vai “minguando” conforme vão ficando mais velhas. Vemos que
esta redução está ligada a falsa noção de que já se possui um elevado
nível de conhecimento sobre a realidade.
[143]
Nosso bem depende, em boa medida, do bem dos outros,
e vice-versa
164
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
268).
[144]
influi no bem dos outros, pois isso faz com que o indivíduo
se mantenha apto a ajudar os outros. Por outro lado, se
esse indivíduo, por algum motivo (talvez por
irrefletidamente dar aceites ao objetivo de promover o
bem do outro) decida, corriqueiramente, abrir mão do seu
próprio bem, este não só pode ter sua aptidão em ajudar
comprometida, como também pode se tornar um peso
para o grupo, uma vez que é provável que seja ele que
acabe precisando de ajuda dos outros.
O ponto é que somos seres muito vulneráveis aos
perigos da realidade, se comparados com outros animais
(em especial nos nossos primeiros anos de vida), e assim,
dependemos de ajuda mútua para podermos sobreviver.
Isso em termos fundamentais, mas não podemos
esquecer que também dependemos uns dos outros para
realizar uma série de objetivos que consideramos
importantes, mas que dependem da ajuda mútua para
serem realizados, ainda que a ajuda chegue de maneira
indireta. Este livro, por exemplo, só pôde se tornar
realidade porque outros resolveram compartilhar seus
saberes (mas também, porque outros proporcionaram um
ambiente político relativamente pacífico, e outros criaram
a rede de internet, e por aí vai).
[145]
Nossa visão então é que a separação egoísmo e
altruísmo é uma ilusão quando uma ação é realizada com
base em um saber que reflete a realidade razoavelmente
bem165 166 167 168 . Com esta afirmação, queremos dizer
que não existe isso de que o coletivo é superior ao
indivíduo ou vice versa, em termos objetivos169; apenas a
aparência disso, pois em um dado contexto, a decisão
com base em um saber que reflete a realidade
razoavelmente bem, pode se tratar de um cuidar de si,
mas que indiretamente gera benefícios para o grupo
(como no caso de decidir cuidar da nossa saúde, o que
faz com que se tornem baixas as chances de precisarmos
utilizar e gerar custos para o sistema público de saúde,
165
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 160)
166
Ver Foot, P. (2001). Natural goodness. Oxford, England: Oxford
University Press (p. 16).
167
Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality and
the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave Macmillan
(p. 21).
168
Ver também Machura, P. (2018). Flourishing vs.market: Towards
the Aristotelian concept of education. Filozofia, 73(2). Aqui o autor
ilustra que essa inseparabilidade está presente na perspectiva
Aristotélica, a qual considera que a atividade política é uma atividade
do dia a dia, e que o sistema político é um ambiente construído para
estimular o florescimento do potencial racional humano.
169
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 109).
[146]
por exemplo). Da mesma forma, uma decisão em prol do
coletivo, com base em um saber que reflete a realidade
razoavelmente bem, gera benefícios para o indivíduo,
como (puxando sardinha para nosso lado) implementar
nas escolas uma educação voltada para o
desenvolvimento das virtudes, o que pode fazer com que
o indivíduo tenha uma maiores chances de ter sucesso na
vida, uma vez que lhe será ensinado como lidar com suas
próprias emoções para tomar decisões mais conscientes
e a importância de ir adquirindo mais e mais saberes
sobre a realidade. Por sinal, vemos que os maiores bens
que podemos fazer a alguém é lhe oferecer
conhecimentos úteis que refletem a realidade
razoavelmente bem, e ajudá-lo a desenvolver o hábito de
agir com base no seu saber do momento. Assim
contribuímos para que ele se torne mais capaz de realizar
escolhas objetivamente boas, o que aumenta as chances
de ele ter sucessos na vida. Não é a toa que Aristóteles
defende que o Estado deve ter como foco primordial o
desenvolvimento das virtudes dos cidadãos170.
170
Aristóteles (2009). Política (E. Bini, Trans.). São Paulo: Edipro
(1285b5-b10).
[147]
Note que o oposto também se aplica na relação
bem de si e bem dos outros (e vice-versa) com base em
um saber falso. Um indivíduo que vem roubando, achando
que é certo fazer isso (um saber falso) gera um mal para
o coletivo, mas também um mal para si, pois mesmo que
ele venha tendo alguns sucessos a chance de ele ser
descoberto representa um risco para si desproporcional
em termos do bem que pode obter, uma vez que caso seja
descoberto ele não só pode perder a confiança dos outros
(e a disposição dos outros em ajudá-lo171), mas também
ser retaliado a ponto de ser expulso do grupo (que no caso
de sociedades mais organizadas representa ser preso)
ou, até mesmo, ser morto. Por sua vez, um governo que
acha que o melhor para o coletivo é doutrinar as crianças
(um saber falso), ao invés de ensiná-las a raciocinar por
elas mesmas, tomar decisões com base no que sabem,
e a se interessarem por adquirir mais e mais
conhecimento, faz um mal para o indivíduo, mas também
para o coletivo, pois indivíduos que não conseguem fazer
escolhas objetivamente boas são em si humanos que
171
Ver Fowers B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (p. 25).
[148]
estão aquém da realização do seu potencial racional, são
humanos fracos, e como tais, se tornam pesos para o
coletivo em diversos instâncias, sobrecarregando o
sistema prisional, judiciário, e o da saúde, por exemplo; e
acima de tudo, escolhendo mal os gestores do coletivo172
e ainda, no caso de democracias verdadeiras (as que o
povo de fato tem poder de decisão), não conseguindo
contribuir com decisões refletidas a respeito de questões
complexas que a sociedade da qual fazem parte está
enfrentando173.
172
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 77-79)
173
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 131, 139). Nestas
passagens, o autor destaca a importância de cidadãos habituados a
refletir e tomar decisões racionais para o bom funcionamento da
democracia. Concordamos plenamente com isso.
[149]
rede de teorias; ou ainda fazer o mesmo no que diz
respeito a revisar ou aceitar a inação. Bom, sabemos que
as consequências são coisas que estão no futuro, que
pode ser um futuro daqui a um segundo, um minuto, dez
anos...e ainda, que tais consequências podem perdurar
por um segundo, um minuto, dez anos, enfim. O tempo,
então, é uma variável que levamos em consideração
quando fazemos escolhas com base no que, no fundo, a
gente acredita ser o certo; de modo que, desconsiderar tal
variável significa abrir mão de agir racionalmente, uma vez
que significa deixar de olhar para onde estão
consequências, que é no futuro (e deixar de, por meio de
uma análise ainda que rápida, trazê-las descontadas174 no
tempo para o valor delas no presente, como se diz em
finanças, de modo a assim conseguir avaliar qual delas
vale mais a pena produzir).
Um exemplo emblemático disso é um estudo
conhecido como experimento do marshmallow. Neste, o
174
Esse “desconto” se trata essencialmente do cálculo referente à
ponderação sobre as consequências, o qual pode chegar a
contemplar a variável “chances de sucesso em produzi-las”. Tal
cálculo, se dá, claro, com base no saber da pessoa, o que inclui seus
valores; de modo que se este saber não reflete a realidade
razoavelmente bem, o resultado de seu cálculo pode levá-la a tomar
uma decisão objetivamente ruim.
[150]
pesquisador, de imediato, dava um marshmallow para a
criança e falava que ela tinha a opção de comê-lo agora
ou esperar um pouco; e que, se esperasse (algo que
durava em torno de quinze minutos), ele iria dar-lhe mais
um marshmallow, e então ela poderia comer dois. As
possibilidades, isto é, os dois futuros foram deixados bem
claros para as crianças do experimento, contudo, algumas
falharam em considerar a variável tempo (que, por sinal,
no experimento era colocada em evidência), e com isso
logo comiam o marshmallow, o que sugere ceder a ânsia
por saboreá-lo sem olhar para o futuro, ponderando se
valia ou não a pena esperar pelo retorno do pesquisador
para poder comer dois marshmallows175.
Um outro exemplo, agora do mundo adulto, se
refere a recusarmos de participar de um jogo de futebol
entre amigos, que vai nos garantir duas horas de diversão,
mas que por sabermos que geralmente se trata de um
jogo “pegado”, calculamos que participar dele nos faz
incorrer em um risco substancial de ter alguma lesão; e,
talvez, ter que ir ao médico, fazer fisioterapia, entre outros
175
Mischel, W., Ebbesen, E. B., & Raskoff Zeiss, A. (1972). Cognitive
and attentional mechanisms in delay of gratification. Journal of
Personality and Social Psychology, 21(2), 204–218.
[151]
inconvenientes (saberes que já possuíamos para
proceder com tal análise). Com base nestes saberes e
cálculos, podemos concluir que o tempo de duas horas de
diversão não compensa o tempo de incômodo e
contratempos, o que pode nos levar a optar por ficar “de
boas” em casa.
Vale notar que a variável “tempo” “grita” de
importância para nós especialmente quando estamos
interessados em realizar algo que depende de muita
dedicação por um longo período de tempo. Neste caso, se
escolhermos, de fato, proceder com a realização deste
projeto, vamos escolher priorizar atividades que
trabalham em função de tal realização; evitando ao
máximo, perder tempo com atividades que em nada, ou
quase nada, contribuem para isso. Isso era o que Darwin
fazia. Há relatos de que ele quase nunca deixava de
considerar a variável tempo, tendo muito respeito por ela,
por assim dizer; de modo que costumava “economizar os
minutos”, não só fazendo suas atividades o mais rápido
que podia, mas também evitando perder tempo com
coisas que ele não via propósito (o que, por sinal, denota
uma constância na prática da virtude moral da
moderação, mais especificamente, da virtude moral da
[152]
disciplina). Inclusive, dizem que ele se proibia de qualquer
leitura que não tivesse relação com o assunto de suas
investigações176 (e aqui podemos ver que Darwin era,
também, um exímio praticante da virtude moral da
curiosidade útil).
Existe uma lição relativa ao que acabamos de falar,
a qual nos foi legada por Silverstein. Ele sugere que
devemos considerar nossas vidas como tendo uma
estrutura quadridimensional (ao invés de tridimensional),
tratando o tempo como agora tratamos o espaço, e
concluindo que eventos temporalmente distantes podem
fazer uma diferença para a bondade de nossa vida como
um todo (assim como elementos espacialmente distantes
fazem, uma vez que afetam a forma como enxergamos
um todo). Em suma, ele sugere que adquiramos as
habilidades ligadas a ver a vida como um todo temporal e
de realizar avaliações comparativas entre um “todo” de
176
Payot, J. (2018). A educação da vontade. Campinas: CEDET (pp.
36, 138).
[153]
nossa vida com possibilidades alternativas de outros
“todos” de vida177 178.
177
Silverstein, H. (1980). The evil of death." Journal of Philosophy 77:
401-17.
178
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire:
Theory and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton
University Press (p. 211).
[154]
delas) e fazer escolhas com base no que sabemos, no que
diz respeito à situação que se apresenta para nós. Não
praticar uma virtude moral deve nos fazer então falhar em
agir racionalmente, em especial, se estamos sob
influência de uma emoção, ou seja, nos faz cair em algum
vício. Assim, para cada emoção deve existir algum vício.
Na verdade, Aristóteles diz que existem dois tipos de vício
relativos a uma emoção, o do excesso e da falta179.
Vamos falar primeiro do excesso, que é mais fácil.
Ele ocorre, por exemplo, quando alguém critica uma
crença que temos e, quase que sem pensar, sob o império
da raiva, partimos para o ataque. Em essência, o que
ocorreu, a nosso ver, foi que interpretamos a crítica como
uma ameaça que pode ser eliminada, talvez uma ameaça
de subordinação, o que fez com que se estabelecesse na
nossa mente que devemos buscar o objetivo de eliminar
essa ameaça. E aí, quase que sem pensar, nos lançamos
em tentar realizá-lo. Não buscamos então revisar esse
objetivo com base no nosso saber, que poderia ter
ocorrido se tivéssemos seguido uma regra do tipo “preciso
179
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1107a1-6).
[155]
escolher o melhor objetivo na presença ou ausência de
raiva”, se tivéssemos praticado então a virtude moral da
brandura (nem que fosse para confirmar que era
adequado sentir raiva no contexto, o que nos leva a
confirmar que o melhor a fazer era mesmo “eliminar” a
crítica).
Pessoas que costumam resolver as coisas de
maneira impulsiva, seguindo cegamente uma emoção,
demonstram possuir um vício relativo ao excesso. No
caso da raiva, o vício da irascibilidade, que nada mais é
do que a pessoa deixar fluir uma inclinação ancestral que
está bem estabelecida em sua personalidade: a inclinação
que a direciona rumo a eliminação de ameaças. Existem
cães raivosos e cães medrosos, sabemos. A pessoa do
exemplo se comporta quase como um cão raivoso, e não
da maneira peculiar dos humanos: a racional. Note que no
caso da raiva não ser a emoção que acreditamos ser a
adequada para o contexto, a “emoção nada a ver” que
vivenciamos (a raiva) foi do tipo “emoção de trajetória”, e
que erroneamente dar o “aceite” neste tipo de emoção
significa agir em uma direção equivocada. Aqui, a pessoa
“peca” então por ação (e não por omissão).
[156]
No caso do vício da falta, vemos que isso pode se
dar de duas maneiras. Uma, é a pessoa sentir uma
emoção de resultado “nada a ver” com a que ela acha que
deveria sentir, como, por exemplo, sentir alegria ao saber
que seu melhor amigo perdeu dinheiro na bolsa de
valores. Neste caso, a pessoa pode achar que o certo era
sentir compaixão, mas ao invés disso, sentiu alegria; o
que pode denotar ela nutrir algum nível de competição por
status com o amigo, de modo que ver a queda dele,
significou perceber sucesso em ser melhor que ele, o que
levou essa pessoa a sentir alegria. Note que, como a
emoção vivida aqui foi alegria, uma emoção de resultado,
que não gera impulso, a pessoa não caiu no erro de ir para
uma direção inadequada, mas no erro de não agir; “pecou”
então por omissão.
Um outro caso, que também faz com que a pessoa
caia no erro da omissão, é ela não sentir emoção alguma,
quando entende que deveria sentir. Trazendo à baila o
mesmo exemplo, a pessoa pode simplesmente “não estar
nem aí” para o amigo ter perdido dinheiro na bolsa. Isso
denota ela ter percebido o ocorrido como algo neutro, e
assim não ter realizado uma avaliação capaz de fazê-la
sentir uma emoção. Se ela realmente acredita que “tudo
[157]
bem”, faz parte da vida perder dinheiro na bolsa, e que
serve até de aprendizado, tudo bem então ela perceber o
ocorrido como neutro, e não sentir emoção alguma. Mas
se ela acredita que, naquele instante, o certo a se fazer
era oferecer algumas palavras de consolo ao amigo, por
exemplo, aí ela deve achar que o certo era sentir
compaixão.
Em ambos os casos, de excesso e falta, não
vivenciar a emoção adequada ao contexto pode
representar não seguir uma autorregra capaz de chamar
o raciocínio, que no caso poderia ser “preciso escolher o
melhor objetivo na presença ou ausência de compaixão”;
pode significar não colocar em pratica a virtude moral do
amor. Lembrando que, geralmente, dá tempo de corrigir
a primeira avaliação (que pode gerar a vivência de uma
emoção de resultado ou de trajetória) ou a ausência de
avaliação (que nos leva a não sentir emoção), com base
no que achamos ser o certo. Isto é, dá tempo de
praticarmos as virtudes, e assim de agirmos
racionalmente, o que aumenta as chances de
colecionarmos sucessos na vida (como já falamos). Mas
não fazendo isso, perdemos a oportunidade de nos
comportar da maneira peculiar dos humanos, e nos
[158]
comportamos quase que à maneira do nosso bicho de
estimação; ou seja, agimos, quase que exclusivamente,
com base no que percebemos, sem considerar
conhecimentos que já temos sobre a realidade. Aí, as
chances de sucesso passam a ser bem menores.
Com base no que apresentamos até então
podemos chegar às seguintes conclusões:
Vícios em geral
[159]
Vícios de falta e excesso, para cada emoção
180
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1116a1-4).
181
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1115b25-34).
[160]
Vícios relativos à raiva
182
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1125b30-31).
183
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1126a2-6)
184
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1117b30-35).
[161]
anseio, a qual, de acordo com seu saber, seria a
que deveria sentir (rigidez185).
185
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1119a6-13).
186
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1119b30-31).
187
Comparar com Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini,
Trans.). São Paulo: Edipro (1119b26-29).
[162]
Vícios relativos à curiosidade
[163]
Sobre a relação entre traços básicos de personalidade
e vícios
188
Dugatkin, L.A. (2013). Principles of animal behavior (3rd ed.). New
York: W. W. Norton & Company (Capítulo XVII).
[164]
A tendência individual de preferência por um fim
básico deve ocorrer por conta do indivíduo (e seus
ancestrais, no caso da preferência se dar também por
herança genética) tê-lo realizado com mais frequência ao
longo de sua história189, fazendo com que as
consequências reforçadoras relativas a este fim se
encontrem num estado de mais “vividez” em sua mente,
por assim dizer190. Sendo assim, se um indivíduo
189
Ver também Osmo, F., Duran, V., Wenzel, A., de Oliveira, I. R.,
Nepomuceno, S., Madeira, M., & Menezes, I. (2018). The negative
core beliefs inventory: Development and psychometric properties.
Journal of Cognitive Psychotherapy, 32(1), 67-84. Este estudo indica
a relação entre experiências negativas na infância (em especial com
os pais) e tendências de enxergar as pessoas e o mundo como
ameaçadores (o que implica na preferência pela ativação dos
caminhos de categorizações relacionados com o medo e a raiva). É
de se esperar que ocorra o desenvolvimento de tais tendências por
conta da internalização da crença do tipo “temos que nos virar
sozinho” (o que implica que temos que prestar mais atenção nas
ameaças do mundo) a partir da percepção de que os cuidadores não
parecem dispostos a cuidar da gente, isto é, a nos ajudar a lidar com
os perigos do mundo (isso, quando não são eles mesmos a fonte de
ameaça).
190
Comparar com Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire:
Theory and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton
University Press (p. 385). Aqui, a autora, assim como nós, trata da
relação entre uma tendência de avaliação de algo com relação a
“vividez” (“freshness”) desse algo na mente (no caso da diminuição
na tendência de ficar lamentando a perda de uma pessoa amada na
medida em que o tempo vai passando). A nosso ver, isso pode se dar
por conta da consequência ruim recorrentemente antecipada, a de
que não vamos conseguir sobreviver sem nosso aliado (que nos leva
[165]
historicamente veio optando por eliminar ameaças, como
a ameaça de subordinação e, em geral, foi bem-sucedido
em tais empreitadas, ele pode passar a nutrir um interesse
especial pela realização deste fim. Isso porque as
consequências boas, relativas à realização desse fim se
encontram “mais vivas” na sua memória do que uma
outra, como por exemplo, as relativas à realização do fim
de escapar da ameaça.
Mas por que vale a pena a gente saber disso? Bom,
identificar os caminhos básicos de categorização que são
mais fáceis de serem ativados em nós e nos outros, nos
ajuda a conhecer a respeito dos nossos vieses e dos
outros; de modo a assim, termos uma noção de quais
tipos de situação nós temos mais dificuldade de agir
racionalmente, assim como quais tipos de situação os
outros apresentam tal dificuldade. Aquele que tem o
caminho de escapar da ameaça (o do medo) mais fácil de
ser ativado, tende, por exemplo, a irrefletidamente
interpretar que “ir sozinho para um lugar que nunca foi,
mas que sabe que não é violento, é algo muito arriscado”.
[166]
Este é um exemplo de temperamento, ou traço básico de
personalidade do tipo “medroso”. Contudo, uma pessoa
com este traço não necessariamente vai praticar o vício
da covardia. Isso porque, como já falamos, não somos
escravos de nossas primeiras interpretações, podemos
ser racionais de modo a revisá-las com base em nossas
teorias. No caso, analisar, por exemplo, que o local que
estamos considerando ir não é violento, e, por isso, que
não há razão para ter medo; o que pode nos levar a decidir
ir até lá, apesar de ter sentido medo de início (o que
representa então a prática do vício da coragem, e não do
vício covardia). Entretanto, para quem ainda não tem o
hábito de fazer escolhas com base no que sabe ser o
certo, seus traços de personalidade básicos acabarão
sendo mesmo a raiz dos seus principais vícios, os que ela
costuma mais praticar. A pessoa do exemplo acima, que
tem o temperamento medroso, mas que não costuma
reinterpretar suas primeiras interpretações certamente é
uma praticante do vício da covardia.
É importante então sabermos quais os caminhos
de categorizações básicas que são preferencialmente
ativados em nós para que, assim, possamos nos dedicar
a prestar uma atenção especial nas emoções de trajetória
[167]
a eles relacionados, de modo a evitar que tais
preferências, que fazem parte da nossa personalidade, se
traduzam na prática de vícios. E é importante saber quais
caminhos básicos são preferencialmente ativados nos
outros para que, assim, possamos ser cuidadosos no trato
com eles nas situações que possuem dificuldade de lidar,
para que possamos evitar nos tornarmos gatilho para um
agir impulsivo por parte do outro, e ao mesmo tempo,
contribuir para que ele consiga agir racionalmente.
O QUE É O AUTOCONTROLE?
191
Por exemplo, Peterson & Seligman (2004). Character strengths
and virtues: A handbook and classification. New York: Oxford
University Press (p. 442).
[168]
informação192, seja essa informação proveniente do
mundo das percepções, ou das teorias (ou de ambas).
Assim, vemos que é uma faculdade que não só nós
possuímos, mas também outros animais193. Trazendo à
tona aquele exemplo do chimpanzé macho “necessitado”,
se esse chimpanzé vê uma fêmea no cio, tal percepção
deve fazê-lo inclinar-se na direção de tentar copular, mas,
se logo em seguida, ele vê que o “ciumento” macho alfa
está do lado dela, isso deve fazer ele inclinar-se a evitar a
ameaça de “tomar uma surra” desse macho. E aí, com a
chegada desta nova informação, a da presença do macho
alfa, ele exercita então autocontrole, em alguma medida,
para assim conseguir ponderar o que mais vale a pena
para a situação194.
No caso dos humanos, também entramos em
conflito e exercitamos o autocontrole para resolvê-lo com
192
Rachlin, H. (1974). Self-control. Behaviorism, 2(1), 94-107.
193
MacLean, E. L., Hare, B., Nunn, C. L., Addessi, E., Amici, F.,
Anderson, R. C., Aureli, F., Baker, J. M., Bania, A. E., Barnard, A.
M.,and Boogert, N. J. (2014). The evolution of self-control.
Proceedings of the National Academy of Sciences, 111(20), E2140–
E2148.
194
Ver de Waal, F. (2019). Mama's last hug: Animal emotions and
what they tell us about ourselves. New York: W. W. Norton &
Company (p. 275).
[169]
a chegada de uma informação extra do mundo da
percepção. Contudo, uma informação resgatada da nossa
visão de mundo é suficiente para nos fazer ponderar.
Podemos perceber uma mulher atraente “dando mole”, e
aí até termos vontade de abordá-la; mas então, logo
depois, pode vir a nossa mente que “isso é errado, por
sermos casados e, principalmente, por acreditarmos na
importância da reciprocidade”. Essa nova informação nos
leva então a exercitar o autocontrole para que, assim,
possamos ponderar a respeito do que é o melhor a fazer
(que objetivo buscar e quais meios empregar) nessa
situação. Ajuda nesta ponderação, a prática da virtude
moral da moderação, que tem a ver com seguir uma regra
do tipo “preciso escolher o melhor objetivo na presença ou
ausência de anseio”. Neste caso, se a pessoa realmente
acredita no valor da reciprocidade, ela então age
racionalmente se faz valer seu desejo racional, a vontade,
que pode ser o desejo de escapar da ameaça de perder
sua relação amorosa; e aí, tende escolher evitar abordar
a mulher que “está dando mole”, escolhendo uma maneira
de fugir, que pode ser o comportamento de “evitar encará-
la”, por exemplo.
.
[170]
SOBRE MORAL RACIONAL E MORAL CEGA
195
Ver Burkart, J. M., Brügger, R. K., & Van Schaik, C. P. (2018).
Evolutionary origins of morality: Insights from non-human primates.
Frontiers in Sociology, 3, 17
196
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (p. 192).
197
Ver de Waal, F. (2013). The bonobo and the atheist: In search of
humanism among the primates. New York: W. W. Norton (p. 204).
[171]
são, precisamente, nossos interesses latentes por fins,
nossos desejos ancestrais, como "aquisição de uma
relação de reciprocidade" e "eliminação da ameaça de
subordinação", por exemplo. Nesse sentido, entendemos
que as regras morais universais se estabeleceram nas
comunidades humanas justamente para restringir ou
estimular desejos ancestrais, a fim de, como já falamos,
coibir a violência e promover a reciprocidade dentro do
grupo. Vamos a dois exemplos “clássicos”. “Não roubar”
ajuda a evitar com que ocorram contextos nos quais as
pessoas deem vazão ao desejo de evitar a ameaça de
exploração/subordinação, e com isso se proponham a
retaliar violentamente o ladrão (ação que, em geral, deve
ocorrer para “ensiná-lo” a cooperar). Já “ajudar os outros”,
estimula o “dar vazão” ao desejo de promover o bem do
outro, responsável por dar início ou por realizar a
manutenção de uma relação de reciprocidade; uma
relação de cooperação.
Não estamos sugerindo, contudo, que devemos
seguir inadvertidamente regras morais, as quais
estimulam o fluxo de desejos “nobres” e restringem o fluxo
de desejos “vis”. Como mencionamos anteriormente, o ser
humano é o único ser capaz de entender porque vale mais
[172]
a pena perseguir um fim em uma situação particular. Isso
implica que o ser humano é o único ser capaz de analisar
se realmente vale a pena dar vazão a um desejo
ancestral, ou seja, analisar se a realização de um objetivo
desejado, de acordo com sua rede de teorias,
provavelmente vai gerar as melhores consequências.
Portanto, entendemos que existem dois tipos de
comportamento moral: 1) o "cego", que se refere a seguir
preceitos morais universais sem qualquer nível de
reflexão (ou seja, sem supervisão, e aceitação ou revisão
dos desejos que surgem na mente); e 2) o racional, que
se refere à escolha de seguir ou não uma norma moral (ou
seja, com a supervisão, e aceitação ou revisão dos
desejos que surgem na mente), com base na rede de
teorias que se possui até o momento. A moral racional se
refere então a avaliar qual é, de fato, o desejo ancestral
que vale a pena darmos vazão em um contexto, que
inclusive pode ser um desejo “impopular”, visto como “vil”.
Em linhas gerais, vemos então que a moral cega
se refere a irrefletidamente dar vazão à inclinações tidas
como “nobres”, assim como, também irrefletidamente
evitar dar vazão às inclinações tidas como “vis”. Isso
porque, na maioria das vezes, na média, tais atitudes,
[173]
mesmo que “cegas”, proporcionam a produção de
consequências objetivamente. Já a racional, vemos como
uma moral que pode nos levar a ir além da média; isto é,
que pode nos levar a produzir consequências
objetivamente boas na grande maioria das situações.
Isso, por conta desta não se fundamentar na
"demonização" e “sacralização” dos desejos, o que
implica em não impor limites no raciocinar no que diz
respeito à análise de qual fim buscar em uma situação
particular.
O QUE É FELICIDADE?
198
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1099b34-1100a5).
199
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1097a29-1097b1).
[174]
felicidade é preciso usar a razão200 201 (e as virtudes), e
que felicidade é uma espécie de prazer202.
Bom, qual é o prazer que só os seres humanos
podem sentir? Deve ser um que dependa da consciência
de que somos agentes no mundo, isto é, da noção de que
nossas ações, em si, causam coisas. Com isso,
descartamos então os prazeres do sexo, bebida, comida,
entre outros. Esses são o que Aristóteles chama de
prazeres dos sentidos203, que são os que dependem
apenas do contato sensorial com algo para serem
experienciados. Este tipo de prazer, outros animais
também são capazes de sentir. E descartamos também o
prazer da alegria mais rudimentar, que surge quando
percebemos sucesso em alcançar um objetivo, que pode
ser desde conseguir pegar uma fruta na árvore, até
conquistar status, recursos, e identificar padrões em algo
que vemos como novidade no ambiente, por exemplo.
200
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1098b30-1099a8).
201
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1100b6-13).
202
Aristóteles (2015). Ética a Eudemo (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1114a5-9).
203
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1176a1-4)
[175]
Este tipo de prazer, que chamamos de alegria, os outros
animais também sentem204; o que muda, entre nós e eles,
é que somos capazes de estabelecer objetivos mais
específicos, e com isso, sentir alegria com coisas mais
específicas, como a que vem de percebermos que
conquistamos dinheiro.
Já sabemos um pouco sobre o que não é
felicidade, mas o que queremos é saber o que ela é
exatamente. A chave para isso é a afirmação de
Aristóteles de que para senti-la é necessário o emprego
da racionalidade, ou seja, que ela é um prêmio para o uso
da razão. Com base nessa noção, e utilizando a
abordagem evolutiva, podemos dizer que felicidade é
então um prazer selecionado pela evolução por nos
estimular a agir racionalmente, que é a forma de agir que
nos coloca em vantagem na luta por sobrevivência em
relação aos demais animais (e em relação a outros
humanos também).
Mas então, o que é felicidade? Só conseguimos
pensar em um tipo de prazer que atende todos esses
204
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (pp. 26, 27)
[176]
requisitos: que seria justamente o prazer que surge
quando sentimos orgulho do resultado de nossas ações
racionais205, que é quando olhamos para um passado
recente, ou distante, e sentimos orgulho das
consequências que realizamos por meio de escolhas
pensadas; pode ser uma coisa simples, como sentir
orgulho de ter conseguido consertar um chuveiro, ou mais
complexa, como escrever um best seller. Um outro
exemplo pertinente é o de sentir orgulho de ter chegado a
uma conclusão por meio da ação “raciocínio”, como se
orgulhar de um “eureca!”, em si (na verdade, isso tem a
ver com sentir orgulho de qualquer conclusão em si, que
percebemos ter sido fruto de um bom raciocínio).
Felicidade seria então um tipo específico de
alegria, que surge quando percebemos o resultado de
uma ação racional como sendo bom, quando percebemos
205
Ver também Hutchinson, D. S. (2009). Ética. In J. Barnes (Org.),
Aristóteles (R.H.P. Machado, Trans.). Aparecida: Ideias & Letras
(p.276).
[177]
que realizamos boas obras da razão206 207 208. Veja que a
gente não sente esse prazer quando vemos o resultado
como ruim, mesmo que tenhamos consciência de que
demos o nosso melhor. Por exemplo, um jogador de
futebol que mira o ângulo do gol, faz o movimento do jeito
que treinou, mas vê a bola passando rente a trave,
dificilmente vai sentir orgulho da sua ação (ele teria que
fazer um esforço mental para sentir isso). Certamente, tal
tipo de prazer, os outros animais não conseguem sentir.
E, de fato, para que o sintamos, precisamos mesmo
empregar a razão. Só sentimos orgulho de um resultado
206
Marco Aurélio (2019). Meditações (A. Pires Vieira, Trans.). São
Paulo: Montecristo Editora. Marco Aurélio captura essa ideia ao dizer
que não existe nada melhor do que a “autossatisfação de sua própria
mente nas coisas que ela lhe permite fazer de acordo com a razão”
(3.6).
207
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1167b16-1168a19). Aristóteles toca nessa definição ao dizer
que o “benfeitor experimenta prazer com o objeto de sua ação”,
fazendo a relação com a ideia de que todo artista “ama” sua própria
obra. Além disso, ele fala: “a memória das coisas nobres é agradável”.
Na nossa perspectiva, o artista ama a obra quando a vê como uma
boa consequência, sentindo orgulho de tê-la produzido (podendo
sentir este orgulho também se faz tempo que ele realizou as ações
responsáveis pela produção desta obra).
208
Ver Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
399). Aqui, a autora trata faz referência a uma espécie de alegria
relacionada com a manifestação de um desejo racional, a qual ela
denomina de “rational uplift”.
[178]
se percebemos que ele foi fruto de escolhas que fizemos
com base no saber que tínhamos até o momento, ou seja,
decisões racionais. Um pintor que se orgulha do resultado
de sua obra, só sente isso pois percebe que ela foi fruto
de boas decisões a respeito de quais combinações de
cores utilizar, por exemplo; um saber que ele já tinha, e
fez uso para embasar suas escolhas a respeito de como
pintar o quadro.
Existe, contudo, um pequeno inconveniente com
relação à felicidade: embora ela deva ser o prazer que
todos nós buscamos em última instância, não
conseguimos vivenciá-la se buscarmos por ela
diretamente. Isso porque, se no momento em que
fizermos uma escolha racional, estivermos focados não
no objetivo imediato em questão, mas no prazer que
vamos obter ao realizá-lo, a gente não vai se engajar na
ação a ponto de conseguir produzir um resultado
esperado209. Um jogador de futebol que, no momento de
chutar ao gol, ao invés de estar focando em acertar o
ângulo, está focando na felicidade que vai sentir se acertá-
209
Ver Jimenez, M. (2015). Aristotle on “Steering the Young by
Pleasure and Pain”. The Journal of Speculative Philosophy, 29(2),
137-164.
[179]
lo, não vai conseguir produzir o resultado esperado, e
assim não vai sentir felicidade (a menos que dê uma p***
sorte de, sem focar no objetivo, ainda assim consiga
realizá-lo. No entanto, isso seria uma exceção, e o que
queremos é a vivência frequente de felicidade. Isso
implica que embora a felicidade provavelmente esteja, por
natureza, fixada no topo da hierarquia de valores de todo
ser humano, é importante colocar logo abaixo dela o valor
de agir racionalmente, uma vez que é por meio da
realização desse objetivo que é possível vivenciá-la.
Deste modo, para fins práticos, vale considerar o objetivo
de agir racionalmente como sendo nossa meta maior, e a
felicidade como sendo o prêmio que vem sempre que a
realização desta meta traz bons resultados210 (bons
resultados na nossa perspectiva).
Vale notar que ter o agir racional como nossa meta
maior implica em vivenciar a tristeza do arrependimento
sempre que falharmos em realizar este objetivo. Contudo,
como falamos, a emoção da tristeza é uma dor que serve
à função de nos estimular a agir diferentemente no futuro
210
Ver também Sherman, N. (1989). The fabric of character:
Aristotle’s theory of virtue. New York: Oxford University Press (p. 191).
[180]
(para evitarmos vivenciá-la de novo). Deste modo, como
não nascemos com o hábito de agir com base no nosso
saber do momento, a dor do arrependimento de ter
falhado em agir racionalmente serve à função de nos
colocar na direção da aquisição desse hábito211. Contudo,
vale notar também que definir “agir racionalmente” como
nossa meta, conseguir realizá-la pode proporcionar uma
redução na intensidade das dores de arrependimentos.
Isso porque somos levados a concluir que, apesar de
termos gerado um resultado ruim, agimos com base no
nosso saber do momento, ou seja, fizemos o melhor que
podíamos. Nesse caso, o arrependimento não deixaria de
existir, mas ele atua direcionando nossa percepção para
o que realmente importa: o fato do nosso saber ter sido
insuficiente para a promoção de um resultado melhor; e
assim, atua nos estimulando a ampliar nosso nível de
sabedoria.
Fica claro então que o arrependimento, apesar de
ser de natureza oposta à da felicidade, anda de mãos
dadas com ela. Isso porque, ele é responsável por duas
211
Ver Jimenez, M. (2015). Aristotle on “steering the young by
pleasure and pain”. The Journal of Speculative Philosophy, 29(2),
137-164.
[181]
coisas que aumentam as chances de sentirmos felicidade.
Primeiro, o arrependimento pode nos fazer perceber que
precisamos ampliar nosso conhecimento sobre algo, para,
assim, evitarmos cometer, de novo, o resultado ruim, o
qual percebemos ter sido causado por ignorância; e
segundo, o arrependimento nos ajuda a perceber que
falhamos em agir com base no que já sabíamos, ou seja,
que nosso hábito de agir racionalmente não está bem
consolidado (especialmente em algum tipo de situação da
vida). Com efeito, ele nos alerta para o fato de que
devemos praticar mais esse hábito.
É importante frisar que colocar o prazer da
felicidade no topo de nossa hierarquia de valores não
significa dizer que nenhum outro prazer serve para nós.
Isso porque agir racionalmente também nos leva a
vivenciar outros tipos de prazeres. Afinal, podemos
entender, com base no nosso saber, que o melhor para
uma situação é mesmo comer uma torta de chocolate que
nos despertou o apetite, como é o caso de decidirmos
comer esta torta porque notamos que precisamos
[182]
relaxar212. Mas note que existe um “porquê” embasando
tal decisão, ou seja, de fato supervisionamos a linha de
ação que estávamos prestes a seguir e tomamos uma
decisão consciente de aceitá-la, com base em uma
ponderação das consequências que bebe da nossa rede
de teorias. Foi então uma escolha racional. E note ainda
que, sendo uma escolha racional, ela pode nos levar a
sentir orgulho do resultado desta escolha, no caso de
percebermos que comer a torta realmente gerou o
relaxamento que queríamos. Ou seja, colocar o prazer da
felicidade no topo não exclui a possibilidade de
vivenciarmos outros tipos de prazeres; na verdade,
possibilita vivenciá-los seguidos da vivência da felicidade.
É importante lembrar que não vemos como ruins os
desejos ancestrais, aqueles que compartilhamos com
outros animais (ou que deles derivam), que se refere a
objetivos que a evolução “nos ensinou” serem bons, por
conta de aumentarem as chances de sobrevivência; como
os objetivos de conquistar status no grupo, e recursos de
uma maneira geral (que nos dias de hoje tem a ver com
212
Ver também MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals:
Why human beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 88)
[183]
ter dinheiro). Até mesmo porque, se os víssemos como
ruins teríamos que colocar a felicidade nesse “bolo”.
Afinal, não podemos deixar de notar que o interesse pela
felicidade é, em si, um desejo derivado de um desejo
ancestral, uma vez que tal interesse vem com a
consciência de que a realização do desejo ancestral de
agir racionalmente oferece, como prêmio, a experiência
de um prazer específico. A questão é que se o objetivo
maior for a felicidade, é preciso evitar dar vazão
cegamente a desejos ancestrais, o que significa chancelar
ou revisar um desejo ancestral com base no que sabemos
ser o certo, o que implica em, ainda que rapidamente, ver
que um desejo ancestral , se realizado, proporcionará a
produção de um resultado que a gente vê que vale a pena
produzir. Deste modo, nada impede de entendermos que,
em uma dada situação o certo é realmente tentar
conquistar dinheiro, tendo em vista um porquê para isso,
que pode ser um porquê já internalizado a partir de uma
reflexão prévia (que significa atuação de heurísticas
racionais já consolidadas na nossa mente); e aí, nada
impede de que a conquista de dinheiro nos gere
felicidade, desde que tal conquista tenha se dado a partir
de escolhas racionais (o que inclui, não só, com base em
[184]
“porquês”, escolher conquistar o dinheiro, mas também
com base em “porquês” escolher os melhores meios para
realizar esse objetivo).
Não podemos deixar de notar que nossa
capacidade de sentir orgulho do resultado de ações do
passado nos capacita a sentir este orgulho também no
que se refere a um conjunto macro de resultados e ações,
como por exemplo, de, no fim da vida, sentirmos orgulho
do conjunto de escolhas fizemos e dos resultados que
produzimos213 214. Por fim, vale ainda notar que a
definição que estamos trazendo do que é felicidade faz
cair por terra um mito presente no senso comum: o de que
os ignorantes são mais felizes. Os ignorantes não podem
ser mais felizes simplesmente porque o pouco
conhecimento que possuem os tornam menos capazes de
213
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1100a10-19). Nesta passagem, Aristóteles traz à tona o
argumento de Sólon, sem discordar dele, de que só podemos afirmar
que uma pessoa alcançou a felicidade [como um todo] depois de
morrer. Vemos que isso faz sentido, pois uma pessoa pode, perto do
fim da vida, cometer um ato que a deixe arrependida a tal ponto de
fazê-la se arrepender do conjunto de escolhas que fez ao longo de
sua vida.
214
Comparar com Frankl, V. E. (1987). Em busca de sentido: Um
psicólogo no campo de concentração (W. O. Schlupp & C. C. Aveline,
Trans.). São Leopoldo: Sinodal (p. 122).
[185]
produzir resultados objetivamente bons com suas
escolhas racionais, e com isso, a tendência é que sintam
orgulho destas escolhas em uma frequência muito menor
em comparação com pessoas que possuem um bom nível
de conhecimentos sobre a realidade. Contudo,
precisamos notar um detalhe que talvez seja o que o
senso comum captura. Menos conhecimento significa
uma menor chance de se arrepender de agir com base no
que se sabe, uma vez que é pouco o que se sabe. É o
caso de ignorantes racionais, sofrendo menos do que os
sábios que não possuem o hábito de agir racionalmente.
Ainda assim, não é que os ignorantes sejam mais felizes,
apenas menos tristes em comparação com aqueles que
sabem muito, mas que não colocam em prática o seu
saber.
215
Ver Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality
and the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave
Macmillan (pp. 30-37).
216
Ver MacIntyre, A. (2001). Depois da virtude: Um estudo em teoria
moral. Bauru: EDUSC (pp. 99, 100).
217
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos ,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 34). Sêneca
menciona este prazer mais intenso no trecho: “Se o prazer que o
agricultor sente pela árvore, culmina quando ela dá fruto, se a alegria
do pastor lhe vem das crias do seu rebanho, se qualquer homem
sente no filho que criou como que a própria adolescência, nós,
educadores espirituais, que pensas tu que sentiremos ao ver
subitamente adultos os espíritos de que tomámos conta ainda
débeis?”.
[187]
(isto é, para que existimos, qual o propósito de estarmos
aqui). Dizer que estamos aqui para cumprir com nossa
responsabilidade natural de agir racionalmente não nos
basta como resposta218, pois queremos saber não apenas
o porquê de a espécie humana existir, mas também o
porquê de nós, enquanto indivíduos, existirmos. Isto é,
queremos saber qual é a nossa função específica, nossa
responsabilidade individual, no todo que acreditamos
estar inseridos219 220 221 (e aqui não importa o tamanho
desse todo, pode ser um microgrupo por exemplo, você e
seu filho ou até mesmo o planeta terra).
A partir do momento que encontramos uma
resposta para essa pergunta (não importando tanto se ela
é, em termos objetivos, verdadeira), que geralmente
passa por compreender nossos próprios interesses e
habilidades específicas (o que inclui compreender nossas
218
Kristjánsson, K. (2016). Flourishing as the aim of education:
Towards an extended, “enchanted” Aristotelian account. Oxford
Review of Education, 42(6), 707-720.
219
Ver Maslow, A. H. (1954). Motivation and personality. New York:
Harper & Row (pp. 46,198).
220
Ver Damon, W. (2008). The path to purpose: How young people
find their calling in life. London: Free Press (p. 91).
221
Ver também Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire:
Theory and practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton
University Press (p. 237).
[188]
virtudes morais específicas), passamos então a
reconhecer qual seria nossa responsabilidade, nossa
função específica no todo que acreditamos estar
inseridos. Com efeito, adquirimos a noção de que temos
algo a fazer nesse mundo que ninguém mais é capaz de
fazer, isto é, que temos uma missão (que, vale ressaltar,
pode variar de “tamanho”; podendo ela ser, desde cuidar
de um filho, até elaborar um tratado sobre a natureza
humana222 223). E a partir daí, quando tomamos posse de
uma missão específica, passamos a sentir o prazer que o
escritor do nosso exemplo vivenciou, um orgulho mais
intenso do resultado de escolhas racionais; mais intenso,
pois é um resultado que indica estarmos cumprindo, em
alguma medida, nossa missão; significa que estamos
conseguindo cumprir o “porquê” da nossa existência
individual.
Por fim, vale notar que, como temos a capacidade
de sentir orgulho também no que se refere a um conjunto
222
Frankl, V. E. (1987). Em busca de sentido: Um psicólogo no campo
de concentração (W. O. Schlupp & C. C. Aveline, Trans.). São
Leopoldo: Sinodal (pp. 88, 89).
223
Vemos que a missão de vida pode ter prazo de duração, como a
de educar os filhos. Isso implica que podemos compreender termos
missões distintas para cada parte de nossa vida.
[189]
macro de resultados e ações, podemos também sentir um
orgulho do tipo mais intenso se vemos que esse conjunto
de resultados e ações representa a realização bem-
sucedida de nosso propósito de vida. Trazendo
novamente à baila o exemplo do escritor, ele sentirá uma
felicidade do tipo mais intensa quando, após publicar suas
obras, olhar para elas em conjunto e avaliar que sua
missão específica, ou boa parte dela, foi cumprida.
224
Csikszentmihalyi, M. (1999). If we are so rich, why aren't we
happy?. American psychologist, 54(10), 821.
[190]
de que “houve sucesso na realização do meta-objetivo de
agir racionalmente” (um desejo ancestral compartilhado
por todos os seres humanos, como falamos) e de um
outro, mais específico, relativo a sucessos na realização
da atividade em si, o que implicaria em percepções
frequentes de “micro bons resultados” frutos de “micro
ações racionais”, que embora “micros” seriam suficientes,
no nosso entendimento, para produzir, “respingos” de
felicidade.
Quando isso ocorre, o prazer do orgulho seria
vivenciado então de maneira intermitente, mas com alta
frequência, o que faz com que a pessoa fique envolvida
na atividade. Isso porque a pessoa passa a ansiar por este
prazer novamente, que foi a pouco vivenciado225, e que
assim, está bem “vivo” em sua mente. Pode-se dizer,
então, que a atividade que gera envolvimento é aquela
permeada então por “micro orgulhos de resultados de
ações racionais”. Seria o caso, por exemplo, do escritor
que fica feliz com cada pequena ideia (conclusões de
raciocínio com base em porquês) que têm pouco antes de
225
Ver Skinner, B. F. (2003). Ciência e comportamento humano. São
Paulo: Martins Fontes (pp. 109-118).
[191]
materializá-las por meio da escrita; o que faz com ele
passe a ansiar pela sua próxima conclusão (o que o torna
motivado a continuar na atividade de escrita, ou seja,
engajado em tal atividade226).
Tal noção, nos ajuda a perceber o quão impreciso
é o dizer: “a felicidade está no processo (ou na jornada,
de acordo com o senso comum) e não nos resultados”,
uma vez que nos leva a ver que a felicidade está sim nos
resultados, ainda que sejam “micro resultados” que
permeiam o processo227.
226
Ver também Sherman, N. (1989). The Fabric of Character:
Aristotle’s Theory of Virtue. New York: Oxford University Press (p.
184).
227
Ver também Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.).
São Paulo: Edipro (1173a30-1173b4). Aqui Aristóteles menciona que
“prazer não é movimento”, que “é possível mudar para um estado
prazeroso, rápida ou lentamente, mas não estar ativo nesse estado,
quer dizer, estar em regojizo”.
[192]
capacidade de sentir arrependimento; e 2) que o
arrependimento pode nos direcionar para a ampliação do
saber e para o cultivo do hábito de agir com base no que
sabemos até o momento.
Como falamos: 1) o arrependimento é um tipo de
tristeza que vem da percepção autoconsciente de que
nossas escolhas, em si, são causa de um resultado que
entendemos ser ruim; e 2) que podemos sentir
arrependimento quando vemos que nos faltou
conhecimento para agirmos melhor, ou quando vemos
que falhamos em agir com base no que já sabíamos (o
que muitas vezes tem a ver com seguir cegamente um
impulso de uma emoção). Assim, se à primeira vista
podemos achar que o arrependimento é algo ruim, por
conta de ser uma emoção desconfortável, quando
conhecemos um pouco mais sobre esta emoção
conseguimos chegar a conclusão que ela está apenas
fazendo um “trabalho sujo que alguém tem que fazer”; que
ela contribui para aumentar as chances de termos mais
momentos de felicidade no futuro. Uma coisa que
precisamos ter em mente, contudo, é que não precisamos
sentir arrependimento além da conta, ou seja, “ficar nos
martirizando”; mas na medida em que esta emoção nos
[193]
leva ou a ver que precisamos estudar mais ou consolidar
o hábito de agir com base no que já sabemos.
Contudo, e talvez para nosso desespero, o
arrependimento não é a única emoção desagradável que
depende de consciência de agência. A nossa natureza
também nos permite sentir autoculpa e vergonha. O ato
de culpar o outro (quando realmente entendemos que ele
é culpado, e não quando sabemos que ele não é de fato,
mas estamos querendo botar a culpa nele para nos safar),
em essência, significa tentar puni-lo por não ter cumprido
com alguma expectativa de cooperação que tínhamos em
relação a ele. Isso, por sua vez, significa que
interpretamos esse outro, ainda que por um breve
momento, como uma ameaça que deve ser eliminada (um
explorador/dominador, provavelmente), o que nos leva a
sentir raiva e querer puni-lo (que é uma forma de ataque)
228 229. Com base nesta noção podemos compreender
que, quando sentimos autoculpa, significa que, em
228
Ver também Herdt, J. A. (2016). Guilt and shame in the
development of virtue. In J. Annas, D. Narvaez , & N. E. Snow (Eds.),
Developing the virtues:integrating perspectives (pp. 224-234). Oxford
University Press, New York.
229
Ver também Kuppens, P., & Van Mechelen, I. (2007). Interactional
appraisal models for the anger appraisals of threatened self-esteem,
other-blame, and frustration. Cognition and Emotion, 21(1), 56-77.
[194]
essência, estamos vendo nosso “eu” do passado como
uma ameaça por ele ter agido de uma maneira que
achamos errada, e que precisa então ser punido230.
Certamente, se existisse uma máquina do tempo, o índice
de agressão e assassinatos contra “eus” do passado,
cometido por pessoas com tendência a sentir autoculpa
seria preocupante (tendo em vista a autoculpa ser um tipo
de raiva, emoção que nos impulsiona para a realização do
objetivo de eliminar uma ameaça por meios de ataque).
A vergonha, por sua vez, não é uma emoção
derivada da raiva como a autoculpa, mas do medo. Uma
pessoa quando sente vergonha está preocupada com
uma avaliação negativa que o outro pode estar fazendo
dela por causa de algo que ela disse ou fez231, o que, em
essência, significa que ela está interpretando que sua
atitude a colocou diante de uma ameaça que não é capaz
de eliminar, talvez a de perda de status, de relação de
reciprocidade, ou até mesmo de expulsão do grupo (o que
230
Ver Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
297).
231
Ver Tangney, J. P., Miller, R. S., Flicker, L., & Barlow, D. H. (1996).
Are shame, guilt, and embarrassment distinct emotions?. Journal of
personality and social psychology, 70(6), 1256.
[195]
no passado ancestral era algo equivalente a uma
sentença de morte, como falamos). E aí, como ela está
interpretando que está diante de uma ameaça que não
pode eliminar, a emoção que sente é mesmo o medo.
No que diz respeito ao desenvolvimento das
virtudes, vemos que, diferentemente do arrependimento,
a autoculpa e a vergonha não são de grande utilidade232.
Isso porque, o que queremos com a vivência de uma
emoção negativa que dependa de consciência de agência
não é que ela nos leve a atacar o “eu” do passado (como
é o caso da autoculpa) ou fugir de uma avaliação negativa
que o outro pode estar fazendo da gente (como é o caso
da vergonha); mas que ela nos leve, especialmente, à
lamentação; a nos arrepender de não ter agido com base
no que sabíamos, ou de não ter tido o saber necessário
232
Comparar com Miller, C. B. (2013). Moral character: An empirical
theory. Oxford: Oxford University Press (pp. 30-33, 45). Aqui, o autor
defende que em uma situação que pede a realização do objetivo de
promoção do bem outro, a pessoa que sente culpa ou vergonha não
está, de fato, focada na realização deste objetivo. Concordamos com
essa ideia, pois neste caso,esta pessoa, quando ajuda, ou está
focada em evitar uma avaliação negativa do outro (e aí sente medo
no ato de ajudar), ou então em evitar a ameaça de sofrer uma punição
dela mesma. Em ambos os casos ela não sente a emoção adequada
ao contexto, que seria compaixão, a qual, como vimos serve a função
de aumentar as chances de conseguirmos promover o bem do outro.
[196]
para ter agido melhor (para que, assim, possamos nos
tornar mais sábios e mais hábeis em agir racionalmente,
de modo a poder fazer melhor em uma situação similar no
futuro).
[198]
ação, ela demonstrar cumprir bem a finalidade de cortar,
que é o que esperamos dela233.
No caso do ser humano, o chamamos de sábio e
racional (em um sentido absoluto) quando o vemos
demonstrar um conjunto razoável de saberes que refletem
a realidade razoavelmente bem, assim como demonstrar
habilidades de agir com base nesse saber. Isso, ao invés
de agir de maneira impulsiva, ou sem prestar atenção à
detalhes da situação, numa “pegada” meio “banda voou”.
Assim, nossa expectativa para o ser humano é que ele
faça escolhas que geram resultados objetivamente bons
em quaisquer situações234 (ou, como falamos, pelo menos
em 90% das situações). Não nos interessa se “há, ele
tinha uma boa intenção!” (já considerando aqui que é uma
intenção com base em porquês, e não uma “cega”, como
a de promover o bem do outro impulsivamente). A gente
quer ver intenção somada a um resultado objetivamente
bom para considerarmos alguém como sendo um bom ser
humano. E para isso é necessário possuir um nível
233
Fowers, B. J. (2015). The Evolution of ethics: Human sociality and
the emergence of ethical mindedness. London: Palgrave Macmillan
(p. 7).
234
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1101a1-5).
[199]
razoável de sabedoria e ter habilidades para, na hora do
“vamos ver”, conseguir colocá-las em ato, ou seja,
conseguir agir sabiamente. Por exemplo, não vamos
aplaudir uma pessoa que se jogou em um rio com a
intenção de salvar uma criança, mas que, no fim das
contas, foi levada pela correnteza e fracassou na tentativa
de salvamento. Contudo, se esta pessoa, que decidiu
salvar a criança, com base em “porquês” sabe que vale a
pena salvá-la e ainda como fazê-lo (como: andar um
pouco mais pra frente, pela margem, antes se jogar de rio,
de modo levar em consideração a força da correnteza e
se valer dela para chegar mais perto da criança), aí sim,
ela cumpre com nossa expectativa de ser que possui uma
boa dose de saber, e que age de acordo com o que
sabe235. Uma pessoa que cumpre com tal expectativa em
uma elevada frequência, esta sim deveria ser top model,
capa de revista. Talvez uma revista chamada “O
magnânimo”, que foi o nome que Aristóteles deu para seu
235
Ver Stichter, M. (2016). The role of motivation and wisdom in
virtues as skills. In J. Annas, D. Narvaez, & N. E. Snow (Eds.),
Developing the virtues:integrating perspectives (pp. 204-223). Oxford
University Press, New York.
[200]
modelo de ser humano236. Mas infelizmente ainda
vivemos em uma cultura que não valoriza as virtudes.
236
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1123a32-1123b31).
237
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
488). Aqui, a autora destaca que é perfeitamente possível acomodar
[201]
discussão meio que já montamos tal estrutura, só ainda
não a apresentamos visualmente. Como falamos, o
desejo pelo prazer da felicidade é algo que deve estar
fixado no topo da nossa hierarquia de desejos, por conta
de provavelmente ser o prazer que todos nós buscamos
em última instância. Com efeito, ainda que a maioria de
nós não tenha noção do que é felicidade de fato, de como
alcançá-la, e nem mesmo de que ela figura no topo dos
nossa hierarquia de desejos, a nossa natureza racional
meio que nos “empurra” na direção da vivência dela.
Contudo, proativamente buscar a felicidade nos soa como
uma ideia melhor, se compararmos com a opção de
sermos empurrados na direção dela.
No entanto, já sabemos que, embora a felicidade
deva ser o prazer que todos nós buscamos em última
instância, não conseguimos vivenciá-la se buscarmos por
ela diretamente. Isso porque, como falamos, se no
momento em que fizermos uma escolha racional,
estivermos focados, não no objetivo imediato em questão,
[202]
mas no prazer que vamos obter ao realizá-lo, a gente não
vai conseguir se engajar na ação para conseguir produzir
o resultado esperado. Deste modo, precisamos
considerar que logo abaixo dela está, na nossa estrutura,
o desejo de agir racionalmente, uma vez que é por meio
da realização desse que é possível vivenciá-la; e ainda
considerar que, para fins práticos, o desejo de agir
racionalmente é o mais importante de todos (o nosso
maior valor).
Você talvez tenha se perguntado: “e sobre as
virtudes, o desejo de possuí-las, de que desejo ancestral
tal desejo deriva?”. A nosso ver, o desejo de possuir
sabedoria deriva do desejo de identificação de padrões,
que no caso seriam padrões de explicação, e as demais
virtudes (que se tratam essencialmente de habilidade,
como falamos) do desejo de adquirir ferramenta238. No fim
das contas, isso é o que as demais virtudes são:
ferramentas que, “bebendo do nosso saber”, possibilitam
a realização do desejo de agir racionalmente (que é um
meta-desejo, como falamos), o que por sua vez,
238
Por sinal, vemos que qualquer desejo que se refere à aquisição de
habilidades, como a habilidade de driblar no futebol, por exemplo,
deriva do desejo de adquirir ferramenta.
[203]
possibilita um aumento nas chances de realizarmos
desejos em geral e, com isso, obras que podem nos fazer
sentir orgulho de termos conseguido produzi-las239.
Já sabemos também que todos os outros desejos
ancestrais (ou que deles derivam) não são ruins em si; o
que é ruim é dar vazão a eles sem o crivo da razão, que
em essência se refere a não checar, com base em nossa
rede de teorias, se o objetivo que estamos inclinados a
buscar vai gerar uma boa consequência se realizado. Isso
implica que os outros desejos ancestrais (ou que deles
derivam) estão não só abaixo do desejo de agir
racionalmente, como este último precisa influir, em
alguma medida, na manifestação dos primeiros (em uma
elevada medida, se ainda não temos heurísticas racionais
para lidar com uma situação; ou, em pouca medida se já
possuímos tais heurísticas estabelecidas em nossa
mente240). Tal influência se dá, justamente com a prática
239
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 85). Aqui,
Sêneca demonstra justamente entender virtudes como meio: “a
virtude é o único meio necessário e suficiente para se atingir a
felicidade na vida”.
240
Vale lembrar que,ao nosso ver, tais heurísticas são construídas
com a prática das virtudes, pois é por meio da prática delas que
conseguimos avaliar as coisas com base em nosso saber mais atual.
[204]
das virtudes morais e intelectuais, que se afiguram então
não como desejos, mas como meios para a realização de
desejos.
Vale notar que o desejo de agir racionalmente, em
si, não gera um resultado que podemos nos orgulhar, pois
ele, em si, não leva a produção de obra alguma; de modo
que precisamos da manifestação de um outro desejo, que
nos direcione a realizar uma ação específica, para que
assim consigamos, gerar algo de fato; um resultado que
nos leve a sentir orgulho de ter produzido por meio de
escolhas racionais. Isso implica que o prazer da felicidade
só pode ser vivenciado quando damos vazão a um outro
desejo ancestral (ou que dele deriva) que não o de agir
racionalmente, mas moderado por este. Com isso
estamos defendendo a ideia Aristotélica de que os
desejos que todos nós temos, a exemplo dos desejos por
dinheiro, reconhecimento e amigos (que os filósofos
antigos chamam de bens externos), possuem um papel
fundamental na vivência da felicidade241 242.
241
Ver Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São
Paulo: Edipro (1153b15-19).
242
Ver Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
502).
[205]
Com base no que discutimos aqui, a estrutura de
desejo que estamos sugerindo possui a seguinte forma:
243
Maslow, A. H. (1954). Motivation and personality. New York:
Harper & Row (pp.35-58).
[206]
ser indesejável já estabelecer, a priori, sem uma análise
apurada dos contextos, quais desejos devemos nos
dedicar a satisfazer. Segundo, porque vemos que todos
temos a capacidade de deixar de buscar algo mais
básico, como satisfazer uma necessidade fisiológica, para
buscar um outro objetivo, menos básico, mas que
entendemos ser mais adequado para o momento, como
reconhecimento (claro, desde que não estejamos em um
ponto que não satisfazer uma necessidade mais básica
nos impeça de realizar qualquer outra coisa, como quando
estamos quase morrendo de fome).
Não podemos deixar de notar que, a depender do
que mais queremos em uma fase de nossa vida (“mais
querer” que pode, inclusive, vir do entendimento de que
temos um propósito de vida tal), acabamos “fixando” os
“outros desejos ancestrais” de modo a tomarem a forma
de uma hierarquia que reflete esse “mais querer”. Tal
hierarquização, na prática, passa então a funcionar como
um projeto voltado para a realização do que mais
queremos, que, com efeito, passa a influir nas nossas
escolhas do cotidiano. Vale ressaltar que tal hierarquia é
construída pela própria pessoa, de maneira
conscientemente com base em “porquês”. Com isso,
[207]
queremos frisar que não necessariamente vai haver uma
“fixação” de “outros desejos ancestrais”, ditos mais
básicos em termos objetivos, em uma fase de vida, pois é
a pessoa, no fim das contas que deve definir suas
prioridades para seu momento atual com base no que
acredita ser o melhor. Ela pode, por exemplo, achar que é
melhor buscar prioritariamente reconhecimento (status),
do que dinheiro, por entender que se tornar uma
referência em algo vai fazer com que ela “naturalmente”
ganhe dinheiro.
Mas não vamos ficar aqui só criticando
Maslow...vemos que ele de fato está certo na questão de
existirem, em termos objetivos, desejos mais básicos que
outros. Vemos que, se a gente foca em um objetivo menos
básico sem ainda ter realizado, em boa medida, um mais
básico, este último fica “gritando” para que a gente corra
atrás de satisfazê-lo244. A este respeito vale mencionar
que é provável que um desejo seja mais básico que o
outro por conta de estar diretamente mais ligado às
programações básicas de todo o ser vivo:
244
Trigg, R. (2001). Understanding social science: A philosophical
introduction to the social sciences (2nd edition). Malden: Blackwell
Publishing (p. 166).
[208]
autopreservação e replicação (que não podemos chamar
de desejos por serem programações que existiam bem
antes da capacidade da percepção, e que por isso, não
depende dela245), as quais estariam na base de formação
de todos os desejos. A partir dessa noção podemos
entender que intimidade sexual, por exemplo, é mais
básico que status, pois está diretamente ligada à
replicação, e ainda sem deixar de servir a
autopreservação (já que com tal intimidade uma relação
de reciprocidade, de ajuda mútua, se estabelece). Por
sinal, vale frisar que aquela ideia de que devemos
aprender a ficar totalmente satisfeitos sozinhos nos
parece uma ficção, pois vemos que todos nós, por
natureza, temos o desejo de ter amizade e parceria
romântica. E aí esses desejos devem ficar “gritando”
enquanto não satisfeitos. A este respeito, vale destacar
que os “gritos” de desejos mais básicos não satisfeitos
geralmente não ocorrem a todo instante, em geral devem
ser pontuais. Se não temos uma relação de intimidade
satisfeita, por exemplo, não devemos ficar nos sentindo
245
Ver também Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T.
Motta, Trans.). São Paulo: Companhia das Letras (p. 41).
[209]
sozinhos o tempo todo; sentindo que precisamos estar
com uma companhia romântica (devemos ficar “de boas”,
na maior parte do tempo, especialmente se estivermos
focados em realizar o que acreditamos ser nossa missão
de vida).
Deste modo, entendemos que existem mesmo
desejos mais básicos que vão ficar “gritando” enquanto
não satisfeitos, mas que temos o poder de escolher ouvi-
los ou ignorá-los, enquanto estamos priorizando um
menos básico. Isso implica que se escolhermos status
como prioridade de um momento de vida, e não temos
ainda satisfeitos o desejo de ter uma parceria romântica
(intimidade sexual), este desejo vai ficar “gritando”;
cabendo a nós escolher entre decidir agora priorizá-lo,
ignorá-lo, ou então colocá-lo, a grosso modo, no mesmo
patamar de importância que status.
Ainda sobre Maslow, percebemos que ele deixou
de notar uma coisa que entendemos ser real e relevante
de se compreender: a realização de um desejo superior
na hierarquia de necessidades tem o poder de tornar mais
fácil a realização de desejos mais básicos em relação a
ele. Um exemplo disso é o status de prestígio, que Maslow
coloca como sendo superior às necessidades fisiológica
[210]
(dentre elas, o sexo), relações de amizade, e de
intimidade sexual. Note que a conquista do status de
prestígio, de fato, torna mais fácil a realização de todas
essas outras necessidades. Uma pessoa que se encontra
em posição de status superior por demonstrar sabedoria
ou habilidades acaba ganhando a atenção de outros que
querem aprender o que ela tem a ensinar, ganhando
assim a disposição desses outros em estabelecer uma
relação de amizade (o que faria com que esses outros
tivessem mais contato com a pessoa de status superior, e
com isso mais chance de aprender coisas com ela). Tal
disposição torna mais fácil para a pessoa que possui
status de prestígio conseguir coisas básicas relacionadas
a alimento e abrigo, uma vez que ela pode pedir doações
em dinheiro, por exemplo; pedido que certamente será
atendido por muitos (provavelmente na esperança de que
essa ajuda signifique o primeiro passo para o
estabelecimento de uma amizade). Além disso, figurar em
uma posição de status superior facilita a obtenção de sexo
e também de uma relação de intimidade sexual,
especialmente no caso dos homens, mas não
exclusivamente (ver nota 232). Como explica Pinker, as
fêmeas mamíferas ao longo do tempo evolutivo tiveram
[211]
que aprender a selecionar o melhor parceiro, que seria o
que provavelmente seria mais capaz de oferecer recursos
e proteção, não só para ela como também para os seus
filhos. Afinal, o preço que uma fêmea paga com uma
escolha ruim é altíssimo, especialmente no caso dos
humanos. Se a mulher escolhe um homem inepto ou
indisposto a cooperar, ela (desde quando grávida) e a
prole ficam mais vulneráveis à fome, deficiência de
nutrientes, predadores, estupradores, raptores e
assassinos. Uma solução teria então que surgir para que
as fêmeas conseguissem lidar com esse “pepino”, e a
solução que surgiu para elas terem mais chances de
acertar na escolha com o menor gasto cognitivo foi
assumir que os machos de hierarquia superior são bons
parceiros246.
246
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (pp. 504-507). O autor explica que
os homens não ligam para status e riqueza nas mulheres, apenas
para beleza jovial (o que indica maior potencial para gerar filhos
saudáveis ao longo do tempo). As mulheres, por sua vez, ligam mais
para status e riqueza, por conta de serem indicativos de que o homem
é capaz de cuidar dela e dos filhos adequadamente (mas liga também
para beleza, embora não necessariamente jovial, por conta de ser um
indicativo de saúde). Contudo não podemos negar o fato que
mulheres ricas e famosas tem mais facilidade de ter relações sexuais
e ter um parceiro romântico do seu agrado. Supomos que em muitos
[212]
A noção que acabamos de apresentar, a de que a
realização de um desejo superior na hierarquia de
necessidades tem o poder de tornar mais fácil a realização
de desejos mais básicos, é especialmente relevante para
o momento em que pensamos em elaborar um projeto de
vida feliz247, pois nos ajuda a decidir melhor sobre o que
devemos priorizar no nosso dia a dia. Às vezes podemos
achar melhor “mirar nas estrelas”, ao invés de mirar em
metas de longo prazo de caráter secundário, de modo a
assim concentrar nossos esforços para alcançar a meta
casos isso deve se dar por conta do homem, inicialmente, ver essa
mulher como uma ponte para alcançar status e riqueza.
247
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (cartas 22 e 71).
Sobre essa questão de ter um projeto de vida, Séneca constata:
“Raros são os homens que conseguem ordenar refletidamente a sua
vida. Os outros, à maneira de destroços arrastados por um rio, em
vez de caminharem deixam-se levar à deriva. Se a corrente é fraca
ficam parados na água quase estagnada, se é forte, são arrastados
com violência; a uns, deixa-os a corrente em seco ao abrandar junto
à margem, a outros, um fluxo impetuoso acaba por lançá-los no mar.
Por isso mesmo é que nós devemos fixar de uma vez por todas o que
queremos e manter-nos firmes nesse propósito”. Em outra passagem,
o filósofo nos adverte: “é um erro toda a gente deliberar sobre os
episódios da sua vida e ninguém sobre ela na sua totalidade. O
arqueiro, ao disparar uma flecha, deve conhecer o alvo que pretende
atingir para poder apontar e regular a força do disparo. As nossas
deliberações serão vãs desde que não tenham um alvo preciso a
atingir”.
[213]
“estrelas”, tendo em vista que as secundárias vão acabar
sendo realizadas com mais facilidade, quase que como
consequências de ter “alcançado as estrelas”.
A partir do que estamos discutindo deve ter ficado
claro que entendemos que, no âmbito dos “outros desejos
ancestrais”, não vai existir uma hierarquia fixa, nem em
termos objetivos, nem subjetivos, uma vez que cada
momento de vida pede uma dada organização, a qual será
elaborada com base nos porquês que a pessoa possui até
o momento (o que implica que mesmo que duas pessoas
estejam passando pelo mesmo momento de vida, e
tenham os mesmos interesses específicos, por elas terem
visões distintas da realidade, suas estruturas hierárquica
de “outros desejos ancestrais” provavelmente
apresentarão organizações distintas). Vale frisar que,
como o estabelecimento da hierarquia “outros desejos
ancestrais” se dá com base no que a pessoa conhece até
o momento, tal estabelecimento pode, a depender do
nível do seu saber, ser boa ou ruim em termos objetivos.
No mais, você pôde observar que a estruturação
que apresentamos é ampla. Nosso intuito com isso foi: 1)
estabelecer uma hierarquia de desejos que reflete a
natureza humana em seus aspectos gerais, nela
[214]
atribuindo mais valor aos desejos que só nós podemos ter
(felicidade e o desejo de agir racionalmente); e 2) nos ater
a oferecer apenas um molde que sirva para que cada
pessoa possa acomodar seus objetivos específicos no
hall “outros desejos ancestrais”, de modo que tal
organização reflita os interesses individuais para seu
momento de vida. Não podemos deixar de frisar que,
antes de uma pessoa se valer desse molde para
estabelecer seu projeto de vida feliz, é fundamental que
ela, de fato, veja sentido lógico nele (ao invés de adotá-lo
cegamente).
Agora vou ilustrar como está a estruturação do meu
projeto (F. Osmo) de vida feliz no momento em que
escrevo essa obra, para que assim você possa ter uma
noção de como pode se dar a elaboração de tal projeto (o
qual, vale ressaltar, se baseia em “porquês” que tenho até
o momento; de modo que pode sofrer revisões ao longo
do tempo248). Não deixe de notar que todos os porquês
apresentados aqui são conclusões que cheguei a partir
248
Tal revisão se refere a organizar os “outros desejos ancestrais” em
uma nova hierarquia de importância, por conta de ou já ter havido
uma significativa realização de um (ou alguns) ou por se ter chegado
ao entendimento de que a hierarquia estabelecida estava
inadequada.
[215]
de uma ponderação de consequências que “bebe” da
minha rede de teorias, para que assim eu consiga produzir
as melhores consequências possíveis (as melhores que
posso produzir tendo em vista o saber que tenho até o
momento).
Nível de
Desejo Porquê
prioridade
Agir
1 Porque é o meio para poder vivenciar felicidade
racionalmente
Porque acredito que produzir obras ligadas a promoção das virtudes (tanto
Produção de
3 escritas como empreendimentos) está ligado à minha missão de vida, de
obras249
modo que as produzir pode me fazer vivenciar felicidades mais intensas
nossa perspectiva.
[216]
Saúde251 4 Porque saúde é fundamental para a realização de desejos em geral
Porque fica mais fácil enfrentar os desafios da vida quando você tem uma
Parceira
4 relação íntima e de parceria, além claro dessa relação em si proporcionar
romântica252
contextos para a prática de virtudes e a satisfaço da necessidade do sexo.
[217]
membros a cursarem psicologia, mesmo que
“tardiamente”. Mas não o fiz “logo de cara”, não sou de
seguir tradições impensadamente. Mas aí, num belo dia
acordei com uma vontade genuína de cursar psicologia.
Não sei explicar bem o porquê de ter acordado com tal
vontade. Comecei então a cursar a graduação de
psicologia. Porém, como sou muito focado nas coisas que
me proponho a fazer, decidi cursar o mestrado de
psicologia praticamente ao mesmo tempo.
No mestrado eu adquiri muitas habilidades de
pesquisa, e notei que minhas principais qualidades
estavam relacionadas à pesquisa mesmo, ao mundo de
investigações e descobertas. Acontecimentos na minha
vida foram validando esse entendimento. Minha
dissertação de mestrado (a construção e validação de um
instrumento para medir crenças centrais negativas) virou
um artigo (meu primeiro), o qual foi publicado em um
periódico internacional, sendo citado por pesquisadores
de renomadas universidades e, além disso, incorporado
como ferramenta nas práticas clínicas de uma abordagem
da psicologia. Eu tinha então indicativos externos, de que
o caminho de construir saber seria promissor. Tais
indicativos me ajudaram a identificar e referendar a posse
[218]
de virtudes morais específicas que estariam por trás da
tarefa “produtor de saber”, como foco em estudar (foco
investigativo) e coragem para questionar o senso comum,
assim como autoridades da área (autenticidade). A noção
de tais qualidades me ajudou no sentido de me fazer
perceber que eu tinha capacidade de executar tal tarefa;
me fez ter autoconfiança, e, além disso, me serviu de
indicativo que produzir conhecimentos poderia ser minha
missão (uma vez que, é condição necessária para atuar
numa missão, possuir habilidades para cumpri-la).
Mas isso não é tudo: eu já tinha uma noção das
minhas qualidades e possível missão, mas ainda me
faltava adquirir a noção de que tipo de conhecimentos
produzir; de quais temas abordar. Isso veio aos poucos,
começou com fortes incômodos. Ao longo da faculdade
(e, não raro, no mestrado também) fui ficando muito
incomodado com o fato da psicologia do momento estar
permeada (se não dominada) por ideias que me soavam
equivocadas ou muito incompletas. Alguns incômodos
que tive dizem respeito a tais coisas:
[219]
A incompletude da teoria cognitiva por não se
debruçar sobre as virtudes254.
254
Ver também Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T.
Motta, Trans.). São Paulo: Companhia das Letras (p. 335).
255
Vale notar que a perspectiva que estamos oferecendo, a de que
temos desejos ancestrais subordinados a cinco desejos básicos,
ajuda a evitar que caiamos em no reducionismo psicológico de
defender que existe um desejo essencial na raiz de qualquer ação
humana. Sim, entendemos que, no fim das contas todos nós
desejamos felicidade, mas, como falamos, este desejo só é realizado
com a realização de outros desejos, mais básicos que esse.
256
Ver também Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T.
Motta, Trans.). São Paulo: Companhia das Letras (p. 479). Aqui, o
autor expõe uma inconsistência lógica grave na psicanálise (é
possível esperar inconsistências graves em teorias ficcionais) que
deriva justamente da defesa de que na base de nossas inclinações
está o desejo pela cópula (inconsciente, na maioria das vezes, de
acordo com tal abordagem). Ele critica o argumento da psicanálise de
que a repulsa que sentimos por fazer sexo com um irmão ou irmã
denota um desejo insconsciente por fazer sexo com ele ou ela (Pinker
escancara...diz que, por essa lógica, todos temos então um desejo
inconsciente de comer fezes de cachorro e enfiar agulhas nos olhos).
257
Foot, P. (2001). Natural goodness. Oxford: Oxford University Press
(p. 112). Aqui, a autora critica a filosofia de Nietzsche justamente por
[220]
instrumento de poder, logo é algo, em si, ruim258 259
260.
[221]
conta de essa tentar defender, a todo custo, a
inexistência da mente261.
261
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (pp. 73, 89, 349).
262
Antich, P. (2021). Can There Be an Existentialist Virtue Ethics?.
The Journal of Value Inquiry, 1-20. Neste artigo, o autor menciona que
diversos autores consideram o existencialismo como incompatível
com a ética das virtudes, uma vez que o existencialismo é contra o
estabelecimento de valores universais, ainda que se argumente que
são valores que “brotam” de nossa natureza. Contudo, ainda ciente
disso ele se esforça para oferecer uma ética das virtudes
existencialista, colocando apenas o valor da liberdade como algo que
todos devemos almejar. Isso nos soa inconsistente, pois vemos que
estabelecer que devemos buscar a liberdade já afeta o ideal de
liberdade existencialista. Mas deixando isso de lado, vemos que esta
ética é incompleta por não refletir o nosso interesse pela felicidade,
nos incitando apenas a lidar com nossas emoções para fazer
escolhas, mas não necessariamente escolhas das quais podemos
nos orgulhar por conta do resultado que elas produziram. Ou seja, tal
ética nos incita apenas a escolher e assumir as consequências, mas
não a produzir boas consequências Discordamos do que o autor
propôe então, principalmente porque não vemos a liberdade como o
bem maior, mas como uma condição necessária para se fazer
escolhas racionais, produzir boas consequências e sentir felicidade.
263
Fowers, B. J. (2012). An Aristotelian framework for the human
good. Journal of Theoretical and Philosophical Psychology, 32, 10-23.
[222]
O provável equívoco de entender que tudo é
subjetivo, socialmente construído, e com isso que
não existem conhecimentos que refletem melhor a
realidade (visão que parte da ideia que “todas as
afirmações estão presas numa teia de
autorreferência e acabam em paradoxo”264).
264
Pinker, S. (2018). O novo iluminismo: em defesa da razão, da
ciência e do humanismo. Editora Companhia das Letras. (pp. 452,
453). Aqui o autor ainda explica que a própria afirmação “tudo é
subjetivo” não faz sentido lógico, tendo em vista que ela mesma deve
ser subjetiva ou objetiva. Não pode, contudo, ser objetiva, pois então
seria falsa se fosse verdade; e não pode ser subjetiva, uma vez que
assim não excluiria nenhuma alegação objetiva, inclusive a alegação
de que é objetivamente falsa.
[223]
funciona também). Tive contato com esta perspectiva
apenas porque resolvi estudar “por fora”, já que ela era
ainda deixada de fora do que é essencial de ser ensinado
na psicologia265. Isso já foi pra mim o primeiro mega
incômodo. O segundo mega incômodo foi quando tive
contato com a filosofia Aristotélica. Ao estudá-la a fundo,
vi que a psicologia não conseguiu incorporar e executar
ideias importantes de sua filosofia266 267, e com isso era
responsável por deixar os outros campos, que dependem
do entendimento do indivíduo, “capengas”; que é o que
ocorre com o campo da política, do qual faz parte o campo
da educação268. E aí cheguei à conclusão que temos
265
Ver Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (pp. 33, 57).
266
Kristjánsson, K. (2013). Virtues and vices in positive psychology.
Cambridge University Press (pp. 151-159).
267
Por sinal, achamos decepcionante a Psicologia não ter nascido
enquanto ciência como fruto direto das ideias do pai de várias
ciências. Ainda que surgisse a partir de refutações a tudo que
Aristóteles disse, mas que houvesse o debate. Isso não ocorreu.
Deste modo, a filosofia Aristotélica foi em grande medida ignorada
pela ciência psicológica desde o seu surgimento. Com isso, pode-se
dizer, que a Psicologia nasceu órfã de pai e dos conhecimentos que
ele podia oferecer (os quais ela resolveu tentar descobrir sozinha).
268
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1102a15-20). Aqui, Aristóteles destaca a importância do
entendimento do indivíduo para o campo da política: “caberá ao
estadista adquirir conhecimento da psicologia”.
[224]
então uma educação que não nos ajuda a colocar em ato
nosso potencial racional e nos manter interessados pela
aquisição de sabedoria.
Em posse de todas essas noções, estabeleci para
mim que minha missão era então relacionada aos
incômodos269, em especial os “mega”. E sabendo que eu
possuía as virtudes específicas necessárias para ajudar a
resolvê-los, decidi então produzir conhecimento relativos
à compreensão da nossa natureza peculiar, assim como,
em como tornar possível realizá-la; não me furtando de
ser, em razoável medida, ativista no que diz respeito a
realizar as metas de ajudar as pessoas a se tornarem
mais racionais (e interessadas pela aquisição de mais e
mais saberes), e a de ajudar a estabelecer uma cultura
estimuladora da racionalidade. Afinal, estes são os
269
Seligman, M. E. P. (2011). Flourish: A visionary new understanding
of happiness and well-being. Australia: William Heinemann (p. 77).
Aqui, autor oferece boas dicas para a tarefa de reconhecimento da
nossa missão (para além da questão de identificação de incômodos,
que eu sugeri): a missão teria a ver com algo que aceitaríamos fazer
mesmo que de graça; e que nos faria adotar uma atitude de
enfrentamento frente a qualquer tentativa de nos impedir de realizar
este algo (que nos faria adotar um mindset do tipo “tente me
impedir!”). Acrescentaríamos que a missão também tem a ver com
ser uma tarefa que nos leva a colocar em prática nossas principais
qualidades, assim como ser algo que o mundo está precisando, ou
seja, algo que pode, em alguma medida, tornar o mundo melhor.
[225]
propósitos que desejo realizar com a produção de minhas
obras (será que cursar administração a contragosto teve
como propósito me tornar apto em gerir empreendimentos
ligados a promoção das virtudes?).
Vale notar que existiu uma encruzilhada: eu tive
que escolher entre me dedicar mais a produzir
conhecimentos úteis para o grupo, ou a diretamente
promover o bem do grupo. Uma perspectiva que me
ajudou a ver esta encruzilhada, para poder fazer uma
escolha consciente foi a que Aristóteles oferece a respeito
da existência de dois grandes tipos de “vida boa” para
humanos: uma, em que há uma preponderância de
dedicação à produção de conhecimento, e outra, em que
há uma preponderância de dedicação à prosperidade de
um grupo, as quais ele chama, respectivamente, de vida
contemplativa e vida política270 (embora eu seja ativista, o
“grosso” do meu dia é dedicado à produção de saberes).
A respeito disso, podemos considerar que até mesmo a
produção de saberes considerados não científicos se
inclui no tipo de vida contemplativa (afinal o saber pode
270
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1095b14-19, 1177b1178a1).
[226]
vir de outras fontes que não a ciência271 272), e cuidar da
família, mesmo que seja uma família de duas pessoas, se
inclui no tipo de vida política (afinal, temos aqui uma
“micropolítica”273).
Por fim, gostaria de oferecer a seguinte noção:
fazendo um paralelo entre esses dois tipos de vidas e
nossa missão específica, tendo em vista um macro
organismo, podemos dizer que ao escolher uma vida
política, escolhemos contribuir para que este macro
organismo aja racionalmente, isto é, de acordo com o
saber que o grupo humano tem no momento (o que
envolve, por exemplo, ter instituições racionais274, que são
271
Maslow, A. H. (1954). Motivation and personality. New York:
Harper & Row (p. 14).
272
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 148). Aqui, o autor
nos lembra que “Os primeiros filósofos - os pré-socráticos - eram
filósofos-poetas”.
273
Freitas, M. L. S. (2013). Afrontamento e superação de crises:
Contribuições da logoterapia. Ribeirão Preto, SP: IECVF (pp. 59-64).
Aqui, a autora discorre sobre as três possibilidades de sentido de vida,
de acordo com a visão de Viktor Frankl: valor criativo, experiencial, e
atitudinal. Fazendo um paralelo entre essas ideias e as de Aristóteles,
diríamos que a vida contemplativa se refere a uma vida em que há o
predomínio do valor criativo, e uma vida política, na qual há um
predomínio do valor experiencial.
274
Ver Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes
& L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 35-36, 79)
[227]
instituições que funcionam de acordo com o
conhecimento que o grupo humano tem até o momento);
e, ao escolhermos uma vida contemplativa, de produção
de conhecimentos, escolhemos contribuir com a evolução
do agir racional deste macro organismo.
275
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 12). Aqui,
Sêneca nos orienta: “Organizemos, portanto, cada dia como se fosse
o final da batalha, como se fosse o limite, o termo da nossa vida”.
[228]
projeto fundamentado em nosso universo de teorias, em
nossos “porquês”. Isso implica que a rotina elaborada
para a realização de um projeto de vida feliz deve,
necessariamente, ser elaborada, também, com base em
nossos “porquês”, o que faz dela uma rotina racional.
Neste sentido, concordamos com os estoicos quando
dizem que se uma rotina não for racional ela é inútil276 (ou
quase inútil, diríamos). Concordamos com essa ideia por
dois motivos. Primeiro, e mais fundamentalmente, porque
vemos que, se uma rotina não for delineada com base no
melhor do nosso saber, não tem como nosso dia a dia ser
permeado pela vivência do prazer de sentir orgulho do
resultado de ações racionais, ou seja, não tem como
nosso dia a dia ser parte de um todo que representa uma
vida feliz. E segundo, pois uma rotina que não foi
construída com base no nosso saber tendo em vista a
realização do nosso projeto de vida feliz, é uma rotina que:
1) ou não nos aproxima da realização deste projeto
(podendo até nos distanciar de sua realização) ou 2) se
nos aproxima da realização deste projeto, o faz tão
276
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
353).
[229]
lentamente que, tendo em vista o fato de nossa vida ser
finita, faz com que as chances de realizá-lo se tornem
próximas a zero.
Já sabemos, contudo, que não é suficiente agir
com base em porquês para que se possa sentir orgulho
do resultados de ações racionais; é preciso ainda que o
saber que embasa tais ações reflita a realidade
razoavelmente bem para que os resultados produzidos
sejam bons de fato, o que aumenta as chances de vermos
eles de maneira positiva. Já sabemos então que a
qualidade do saber influi na qualidade das ações em geral,
o que inclui, como vimos, a ação de elaborar um projeto
de vida feliz. O mesmo se aplica às ações que são tema
deste tópico: as de elaborar e executar uma rotina
racional. No caso de estabelecer o desejo ancestral por
evitar danos físicos como uns dos prioritários, por
exemplo, precisamos elaborar uma rotina que proporcione
a realização diária deste desejo, que envolve cuidar da
saúde; e quanto melhor for o conhecimento que temos a
respeito de nossa biologia, e de como cuidar para que ela
se mantenha em bom funcionamento, mais bem sucedido
seremos em evitar que um dano físico aconteça. O
mesmo vale para qualquer outro desejo ancestral. No
[230]
caso de estarmos buscando por status de prestígio, saber
que isso acontece por meio da demonstração de que se
possui conhecimentos ou habilidades valorizadas pelos
outros, nos ajuda a estabelecer rotinas que envolvam
aquisição e demonstração de conhecimentos ou
habilidades.
A pouco ilustrei como está o meu (F. Osmo) projeto
de vida feliz no momento. Agora, vou ilustrar como está a
minha rotina racional tendo em vista a realização desse
projeto, para que, assim, você possa ter uma noção de
como pode se dar a elaboração de tal tipo de rotina (a
qual, vale frisar, se baseou no nível de saber que tenho
até o momento). Novamente, não deixe de notar que
todos os porquês apresentados aqui são conclusões que
cheguei a partir de uma ponderação de consequências
que “bebe” da minha rede de teorias, para que assim eu
consiga produzir as melhores consequências possíveis
(as melhores que posso produzir tendo em vista o saber
que tenho até o momento).
[231]
de meu interesse (objetivos de saúde, produção de obras,
e aquisição de sabedoria)
277
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 89). Aqui,
Sêneca destaca a importância da escrita para aquisição de um saber
mais profundo sobre o tema em questão: “Estuda, em suma, não para
saberes mais, mas para saberes melhor!”
278
Payot, J. (2018). A educação da vontade. Campinas: CEDET (p.
204). Aqui, o autor sugere: “Basta com efeito algumas horas por dia
quando se toma o cuidado de utilizar para o estudo o período em que
o espírito possui todo seu vigor, todos os seus recursos. Se a essas
horas de atenção vigorosa acrescenta- -se, para o trabalho de
anotações, de cópia, de organização dos materiais, a utilização dos
momentos que de hábito se perde tolamente, não há carreira que não
permita ao mesmo tempo o mais amplo desenvolvimento do espírito”.
Sigo a orientação do autor, escolhendo as atividades conforme o nível
de gasto cognitivo que ela me exige.
[232]
melhora na cognição279. Por sinal, existe uma razão
evolutiva para o jejum gerar este efeito positivo: é
preciso estar a “todo vapor” cognitivamente
enquanto estamos em jejum, pois estar em jejum
significa que estamos precisando ficar
mentalmente “acesos” para conseguir encontrar
alimento280. Nosso corpo não deve medir esforços
para isto.
279
de Cabo, R., & Mattson, M. P. (2019). Effects of intermittent fasting
on health, aging, and disease. New England Journal of Medicine,
381(26), 2541-2551.
280
Mattson, M. P. (2019). An evolutionary perspective on why food
overconsumption impairs cognition. Trends in cognitive sciences,
23(3), 200-212.
281
de Cabo, R., & Mattson, M. P. (2019). Effects of intermittent fasting
on health, aging, and disease. New England Journal of Medicine,
381(26), 2541-2551.
282 Pham, N. M., Nanri, A., Kurotani, K., Kuwahara, K., Kume, A.,
Sato, M., ... & Mizoue, T. (2014). Green tea and coffee consumption
is inversely associated with depressive symptoms in a Japanese
working population. Public health nutrition, 17(3), 625-633.
[233]
11:00 às 12:00: Quebra do jejum de calorias e início do
jejum metabólico (que permite a ingestão de calorias),
com o consumo de chocolate quente a base de nata e
cacau em pó puro. Continuação com a tarefa de escrita
(objetivos de saúde, produção de obras, e aquisição de
sabedoria).
[234]
vale a pena se dedicar a alcançar e manter um
porte atlético284.
[235]
parar”), hormônio o qual parece proporcionar
efeitos positivos na longevidade 288.
288
Ver Besson, A., Salemi, S., Gallati, S., Jenal, A., Horn, R., Mullis,
P. S., & Mullis, P. E. (2003). Reduced longevity in untreated patients
with isolated growth hormone deficiency. The Journal of Clinical
Endocrinology & Metabolism, 88(8), 3664-3667.
289
Almeida, G. (2019). Saúde além do tempo. São Paulo: Pandorga
(pp. 151-159).
[236]
Porque tais alimentos, em conjunto290 (de acordo
com um programa que utilizei291), me proporcionam
a ingestão de praticamente todos os nutrientes que
meu corpo precisa.
290
Tais alimentos somados com os alimentos e quantidades que
ingiro à tarde e à noite.
291
https://cronometer.com/
292
Sobre a razão Omega3/Omega6, notei que meu ouvido entope
quando consumo Ômega 6 em excesso. Antigamente eu tinha que ir
ao otorrinolaringologista pelo menos uma vez por ano, para tirar cera
do ouvido. Hoje em dia não preciso mais fazer isso. Por sinal, achava
suspeito, e grupos de indivíduos como me afirmou um médico, terem
uma genética que proporciona o acúmulo de cera no ouvido, pois não
faz sentido uma característica de ouvir pior ter sido selecionada pela
evolução.
293
Mercola, J. (2019). Ketofast: rejuvenate your health with a step-by-
step guide to timing your ketogenic meals. Carlsbad: Hay House (p.
xiii). Aqui, o autor recomenda sair da dieta cetogênica algumas vezes
na semana, consumindo uma quantidade significativa de carboidratos
(e reduzindo o consumo de gordura), para que assim possamos
manter nossa flexibilidade metabólica (de conseguir usar gordura ou
carboidrato como fonte de energia), e também para proporcionar a
ingestão de fibras não digestíveis, geralmente encontradas em frutas
e vegetais, que seriam importantes para a saúde do nosso
microbioma intestinal. Eu sigo tal recomendação.
[237]
proporciona uma cognição mais afiada294 (que
ajuda então na realização dos objetivos do estudo
e produção de obras), entre outros benefícios
(como o de reduzir o nível de inflamação no
corpo295).
294
Hernandez, A. R., Hernandez, C. M., Campos, K., Truckenbrod,
L., Federico, Q., Moon, B., ... & Burke, S. N. (2018). A ketogenic diet
improves cognition and has biochemical effects in prefrontal cortex
that are dissociable from hippocampus. Frontiers in aging
neuroscience, 10, 391.
295
Pinto, A., Bonucci, A., Maggi, E., Corsi, M., & Businaro, R. (2018).
Anti-oxidant and anti-inflammatory activity of ketogenic diet: new
perspectives for neuroprotection in Alzheimer’s disease. Antioxidants,
7(5), 63.
296 Ha, E., & Zemel, M. B. (2003). Functional properties of whey,
[238]
Porque a ingestão de ubiquinol apresenta efeitos
de aumento de performance em atividades
físicas298 e de antienvelhecimento299.
298 Asserin, J., Lati, E., Shioya, T., & Prawitt, J. (2015). The effect of
oral collagen peptide supplementation on skin moisture and the
dermal collagen network: evidence from an ex vivo model and
randomized, placebo‐controlled clinical trials. Journal of cosmetic
dermatology, 14(4), 291-301.
299 Marcheggiani, F., Kordes, S., Cirilli, I., Orlando, P., Silvestri, S.,
[239]
Porque a gestão dos empreendimentos
proporciona o manter e melhorar minha condição
financeira atual
[240]
20:00 Refeição igual à do almoço, pelos motivos já
apresentados com acréscimo de ovos caipira (objetivo de
saúde).
[241]
fazendo anotações300) podem contribuir, ainda que
de maneira difusa (como diria Victor), para a
ampliação do meu conhecimento.
[242]
exemplo, conscientemente abdicar de uma atividade
programada pois “não estamos com cabeça” para ela, ou
escolher viajar e dar uma pausa na rotina racional como
um todo, vendo sentido em fazer tal viagem). E por fim,
vale lembrar também que excesso de rigor em seguir uma
rotina representa a prática do vício da rigidez; denota falha
em refletir com base no que se sabe a respeito das
consequências que uma outra linha de ação pode
proporcionar (por exemplo, uma que tenha a ver com
relaxamento, que pode nos ajudar a “recuperar o fôlego”
para voltarmos com mais força para a rotina estabelecida).
301
Séneca, L. A. (1991) Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Aqui, Sêneca
defende que “uma vida feliz é produto de uma sabedoria totalmente
realizada” (carta 16).
302
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1124a1-5).
[245]
do magnânimo, a saber, um andar vagaroso, uma voz
grave [no caso dos homens, né?], e uma expressão firme
no discurso”303. Vemos que a serenidade do magnânimo
se deve por dois motivos. Primeiro, por conta de ele ver
muitas das coisas do mundo, como ofensas e tentativas
de dominação, por exemplo, como sendo neutras, que é
o que de fato elas são quando não representam uma
ameaça real contra nós (o mesmo vale para as coisas
ligadas à aparentes oportunidades, quando de fato não
são). Deste modo, o ser humano magnânimo não sente
emoções que, objetivamente, não são adequadas de
serem sentidas no contexto. Daí o estado de neutralidade
emocional acaba sendo a tônica de sua manifestação, o
que implica a posse de um nível de sabedoria tal que
possibilita enxergar as coisas de maneira muito próxima
do que elas realmente são. O segundo motivo para a
condição de serenidade do magnânimo é que, uma vez
que possui um elevado nível de sabedoria, e ainda o
303
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1125a12-14).
[246]
hábito de agir racionalmente, ele raramente vai sentir
arrependimento304.
Contudo, o magnânimo não é sempre sereno (o
que tem a ver com se manter neutro em termos de
emoções, como falamos). Ele deve sentir emoções,
inclusive raiva e medo, mas quando é oportuno senti-las,
e ainda, na medida certa305. Por sinal, as ideias de que
existe momento e intensidade para a vivência de cada
emoção, e que é possível alcançar uma harmonia
psíquica entre razão e emoção306, são pilares da visão de
Aristóteles307. Mas uma coisa que não podemos deixar de
notar: o estado de neutralidade do magnânimo deve sofrer
“perturbações” frequentes ocasionadas pela vivência de
uma emoção específica: o tipo de alegria que chamamos
de felicidade308.
304
Marco Aurélio (2019). Meditações (A. Pires Vieira, Trans.). São
Paulo: Montecristo Editora. Marco Aurélio captura essa ideia ao dizer
que quando agimos justamente asseguramos nossa serenidade
(7.28).
305
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1106b15-25, 1126a10-b9).
306
Comparar com Ver Kahneman, D. (2012). Rápido e devagar: Duas
formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva (p. 458).
307
Sherman, N. (1997). Making a necessity of virtue: Aristotle and
Kant on virtue. Cambridge: Cambridge University Press (p. 137)
308
Essa noção pode nos levar a compreender como contraditória a
orientação estóica de que é preciso extirpar todas as paixões (o que
[247]
Indo mais a fundo nas explicações, vemos que é
possível uma pessoa sentir as emoções certas e na
medida certa quando ela alcançou um nível de sabedoria
elevado, mas, acima de tudo, a colocou em prática em
diversas situações ao longo do tempo (o que significa ter
um nível de vivência elevado309 310). Isso é o que
possibilita que atalhos mentais que “bebem de um saber
objetivamente correto” se fixem na mente da pessoa (se
tornem sua segunda natureza), o que por sua vez,
possibilita que suas primeiras avaliações (e as emoções
[248]
que delas emergem) sejam realmente adequadas aos
contextos311. Isso tem a ver com procedimento
psicoterapêutico conhecido como dessensibilização
sistemática312, o qual entendemos não ser só capaz de
proporcionar um deixar de sentir emoções inadequadas
(em termos objetivos), como sentir medo de baratas,
como também deixar de sentir uma emoção em uma
intensidade excessiva, ainda que ela seja adequada para
o tipo de contexto que se apresenta (por exemplo: é
razoável, em termos objetivos, uma pessoa ter medo de
andar sozinha por um bairro considerado não muito
seguro, mas não é razoável ela sentir pavor313).
Ainda a respeito da questão de sentir uma emoção
na medida certa vale citar um exemplo relativo a perda. O
magnânimo certamente fica triste caso seu
relacionamento amoroso fracasse, mas não avalia o fato
311
Ver também Stichter, M. (2016). The role of motivation and wisdom
in virtues as skills. In: J. Annas, D. Narvaez , & N. E. Snow (Eds.)
Developing the virtues:integrating perspectives. Oxford University
Press, New York (pp. 204–223).
312
Ver Davison, G. C. (1968). Systematic desensitization as a
counterconditioning process. Journal of Abnormal Psychology, 73(2),
91–99.
313
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (115b10-14). Aqui, Aristóteles nos ensina que o ser humano
corajoso é “imperturbável no limite do humano”.
[249]
como sendo o fim do mundo. Isso, talvez, porque já possui
vivência de relacionamentos que deram errado no
passado. A respeito da perda, o magnânimo segue então
o conselho de Sêneca, o de que devemos sentir dor
apenas o quanto a nossa natureza pede314 (e como somos
seres sociais, sentimos de fato a dor da perda de uma
pessoa próxima, que nossa mente classifica como sendo
um aliado. Não tem para onde correr...).
Por fim, gostaríamos de frisar que o magnânimo
deve ter o objetivo “agir racionalmente” no topo de sua
hierarquia de valores315 (para fins práticos, já que a
felicidade seria o bem maior, como falamos). Isso porque
já está claro para ele as vantagens de agir de uma
maneira alinhada com suas teorias. Assim, ele se vê
“obrigado” a se submeter à razão, ou seja, a tomar
decisões com base no que realmente acredita ser o certo
em termos de fins e meios. Por sinal, vemos que tal
submissão é a raiz da grandeza do Magnânimo (termo
314
Séneca, L. A. (2012). Da tranquilidade da alma; Da vida retirada;
Da Felicidade (L. S. Rebello & E. I. N. Vranas, Trans.). Porto Alegre:
L&PM (p. 53).
315
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (1144a16-120). Aristóteles denomina objetivo maior de agir
racionalmente como a meta de “ser bom”, que de acordo com sua
filosofia significa ser sábio e racional.
[250]
que significa grandeza de alma), pois como diz Sêneca,
quem se submete à razão não precisa se submeter a nada
mais316.
Ah, só mais uma coisa. Para quem acha que é uma
utopia almejar viver na condição de magnanimidade, o
que temos a dizer é que “tentar viver de acordo com
padrões utópicos não é uma utopia”317.
316
Séneca, L. A. (1991). Cartas a Lucílio (J. A. Segurado e Campos,
Trans.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (carta 37).
317
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 145)
[251]
SOBRE A PRÁTICA EDUCAÇÃO DAS VIRTUDES
ATRAVÉS DOS MITOS GREGOS
318
Ver Hart, P., Oliveira, G., & Pike, M. (2020). Teaching virtues
through literature: learning from the ‘Narnian Virtues’ character
education research. Journal of Beliefs & Values, 41(4), (pp. 474-488).
[252]
genuinamente, querer praticá-las e desenvolvê-las
(dentre elas, a sabedoria)319.
Como já falamos, a prática das virtudes morais
envolve aprender a lidar bem lidar bem com emoções, de
modo a sair do subjugo delas, para então colocar em
prática as virtudes intelectuais, o que envolve realizar
avaliações e “bater o martelo” em escolhas, tendo em
vista prováveis consequências. Tudo isso com base no
conjunto de explicações que se possui sobre a realidade
até o momento320. Sendo assim, vemos que é
fundamental ensinar às crianças e jovens a
compreenderem aspectos relevantes da situação, em
especial, se, de acordo com o que eles conhecem sobre
as coisas, existe uma real ameaça ou oportunidade na
situação; e, além disso, se a situação pede a prática de
319
Aristóteles (2018). Ética a Nicômaco (E. Bini, Trans.). São Paulo:
Edipro (11145a25-29). Aqui, Aristóteles critica Sócrates por ele
sustentar que não é possível alguém conhecer o que é bom e agir na
direção contrária. Contudo, o argumento de Sócrates ganha força se
considerarmos que “conhecer” que algo é bom envolve ter um forte
histórico de contatos com as consequências reforçadoras que esse
algo tende a proporcionar.
320
Ver também MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals:
Why human beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 92).
[253]
uma virtude moral para que, assim, consigam perseguir321
o objetivo que, no fundo, entendem ser o que vai trazer as
melhores consequências se realizado, escolhendo
empregar os meios que entendem serem os que vão levar
à realização desse objetivo322.
Contudo, no nosso entendimento, o ensino sobre
tais coisas deve partir do ensino de algo mais simples: o
refletir a respeito de qual emoção de trajetória acreditam
que deveria sentir em uma dada situação. As emoções,
como vimos, nos ajudam a ver como avaliamos algo, e
com isso, que objetivo se estabeleceu na nossa mente.
Sendo assim, decidimos que tal prática, a de analisar
“qual a emoção seria a certa numa situação”, por conta de
estimular uma análise geral a respeito das avaliações
feitas, deve ser algo recorrente na Educação das Virtudes
através dos Mitos Gregos. Vemos que tal exercício
prepara terreno para que se possa ensinar as crianças e
jovens realizar as análises mais aprofundadas: 1) do
321
Conseguir “ir atrás” aqui representa a ideia de que pode ser
necessária a prática da virtude moral ao longo do trajeto para que
assim seja “renovada” a escolha pelo objetivo estabelecido pela razão
(Ver o tópico “O que são as virtudes?”)
322
Ver MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 93).
[254]
porquê algo ser uma ameaça ou oportunidade; 2) do
porquê é preciso realizar um objetivo; e 3) do porquê vale
a pena empregar tais meios. Note que todas essas
análises envolvem um olhar para as consequências. A
primeira, se refere a uma justificação (avaliar as razões)
para algo ser visto como uma ameaça ou oportunidade, a
partir da análise de que algo de bom ou ruim pode
acontecer num dado momento se, respectivamente,
aproveitarmos a oportunidade ou não evitarmos a
ameaça. A segunda, se refere a justificar o melhor
objetivo para buscar na situação, a partir da verificação
das consequências que a realização desse objetivo pode
trazer. E a terceira, se refere a analisar se os meios que
estamos prestes a empregar são mesmo os que
possibilitam a realização da consequência “alcançar o
objetivo”.
Deste modo, vemos que, para crianças e jovens se
tornarem agentes racionais, eles precisam desenvolver o
hábito de justificar as linhas de ação que estão prestes a
seguir, com base em uma ponderação das consequências
[255]
que bebe do seu universo de teorias323, algo que depende
de colocar em prática autorregras inerentes às virtudes
morais (como “preciso escolher o melhor objetivo apesar
de estar ou não sentindo uma emoção de trajetória tal”)
para que assim consigam colocar as virtudes intelectuais
em ação. A elaboração e prática de autorregras (ainda
que de maneira implícita) são então coisas que precisa
permear uma prática que visa o desenvolvimento da
racionalidade, e por isso, estão presentes na Educação
das Virtudes através dos Mitos Gregos.
Ainda sobre a questão da justificação de linhas de
ações, vemos que também é necessário o
desenvolvimento do hábito de avaliar as razões das linhas
de ação dos outros. Isso por dois motivos. Primeiro, que
muito do que conhecemos sobre nós mesmos provém de
reflexões a respeito de coisas que observamos nos
outros, de modo que entender as razões dos outros pode
nos ajudar a entender as nossas próprias. E segundo,
entendemos que adquirir o hábito de avaliar as razões do
outro pode proporcionar uma melhoria na habilidade de
323
Ver MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (pp. 69, 70).
[256]
identificar suas intenções, o que possibilita realizar
melhores avaliações a respeito de se o outro (ou a
interação com ele), num dado momento, representa uma
ameaça ou oportunidade.
A prática de justificar as linhas de ação com base
em uma ponderação das consequências que bebe de sua
rede de teorias (que se refere a prática de virtudes)
proporciona às crianças e jovens irem elaborando novos
atalhos em sua mente, que “bebem” dos seus “porquês”
para cada tipo de situação que se apresenta para eles.
Colocar tais atalhos em prática, nas devidas situações, faz
com que, aos poucos, estes sejam internalizados, de
modo a se tornarem “uma segunda natureza”; o que
proporciona às crianças e jovens que suas primeiras
avaliações já estejam em linha com o que, no fundo,
acreditam ser o certo. Deste modo, na medida em que as
crianças e jovens vão se expondo a certos tipos de
situação, e nelas praticando virtudes, eles vão se
tornando cada vez mais hábeis em lidar com distintos
tipos de desafios que a realidade lhes impõe , fazendo
escolhas com base no que, no fundo, acreditam ser o
certo. Isso implica em eles irem alcançando uma harmonia
psíquica entre razão e emoção, ou seja; em passarem a
[257]
sentir, de primeira, uma emoção que já aponta para o
objetivo que sua razão entende ser o melhor a ser
perseguido para o momento (como você já sabe, o
objetivo que eles acreditam ser o que mais vale a pena
tentar realizar, tendo em vista as consequências que
podem ser produzidas com a sua realização324).
O desenvolvimento do hábito de elaborar e utilizar
atalhos que bebem de porquês, significa desenvolver o
hábito de agir racionalmente, o que, por sua vez, significa
uma evolução quantitativa nesta forma de agir, ou seja,
agir desta maneira com cada vez mais frequência no
cotidiano. Mas isso não é suficiente para alcançar a
condição de magnanimidade que almejamos para nossas
crianças e jovens. Claro, é muito bom eles desenvolverem
o hábito de tomar decisões com base no que já sabem (ao
invés de agir por impulso ou com falta de atenção), mas
se o saber deles ainda é muito elementar, ou não reflete
a realidade razoavelmente bem, suas decisões
dificilmente vão promover consequências realmente boas.
Sendo assim, vemos que devemos não só incentivar as
324
Ver também Kristjánsson, K. (2013). Virtues and vices in positive
psychology. Cambridge University Press (p. 202).
[258]
crianças e jovens a agirem conforme o que, no fundo,
sabem que é o certo, mas também a ampliarem cada vez
mais seu nível de conhecimento (desenvolvimento da
virtude da sabedoria), em especial sobre: 1) a natureza
humana325 326 327 (o que inclui conhecer o que são, e como
atuam as virtudes e vícios); e 2) e sobre elas mesmas, em
especial no que diz respeito à seus vícios e virtudes (que
entendemos ser o que há de mais essencial em nossa
personalidade328).
325
Morin, E. (2000). Os sete saberes necessários à educação do
futuro (C. E. F. da Silva & J. Sawaya, Trans.). São Paulo: Cortez
Editora (p. 47).
326
Payot, J. (2018). A educação da vontade. Campinas: CEDET (pp.
43, 44). Aqui, o autor discorre sobre a importância de conhecermos
nossa psicologia para que assim possamos exercer nosso poder de
escolha: “Entrar na arena sem conhecer as leis da psicologia, ou sem
seguir os conselhos de quem as conhece, é querer vencer no xadrez
um adversário experiente sem conhecer o movimento das peças”; “A
única garantia de nossa liberdade são as leis da psicologia, que são
também o único instrumento possível de nossa libertação. Só há
liberdade para nós no seio do determinismo [determinismo relativo às
inclinações que já possuímos]”.
327
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 84). Aqui, Lipman
destaca que: “se eles [os jovens] têm de aprender a fazer melhores
juízos de valor, onde deveriam começar seus estudos, se não nos
modos em que as pessoas já fazem juízos de valor?”.
328
Ver Fowers, B. J. (2005). Virtue and psychology: Pursuing
excellence in ordinary practices. Washington, DC: American
Psychological Association (p. 16). Aqui o autor sugere que somos
quem somos por conta da nossa combinação única de vícios e
virtudes. Vamos que a singularidade dessa combinação reside não só
[259]
A respeito da ampliação do saber sobre si, vale
notar que, muitas vezes, ele se dá por meio de
confirmações e objeções do outro sobre a nossa pessoa,
as quais podem nos ajudar a alcançar uma visão mais
acurada a respeito de nós mesmos329. Se a gente se
percebe como indisciplinado, por exemplo, mas os outros
demonstram ver que a gente consegue manter o foco nas
coisas que nos propomos a realizar, talvez não sejamos
indisciplinados.
Vale frisar que a própria maneira como a prática
Educação das Virtudes através dos Mitos Gregos está
estruturada pode ajudar na ampliação da sabedoria
(incluindo o saber sobre si). Isso porque:
[260]
b) A prática se baseia em extrair lições para a vida
cotidiana a partir da leitura dos mitos, o que pode
proporcionar a valorização da leitura em si, e o
desenvolvimento do hábito de ler (algo
fundamental para que a pessoa consiga ampliar
seu nível de sabedoria para além do senso
comum);
330
Utilizamos a palavra “tutor” no masculino por questão de
praticidade, mas considere que estamos nos referindo a responsáveis
de ambos os gêneros.
331
Lipman, M., Sharp, A. M., & Oscanyan, F. (2001). A filosofia na
sala de aula (A. L. F. Marcondes, Trans.). São Paulo: Nova
Alexandria.
[261]
em suas teorias e fatos que observaram, para,
assim, tentarem encontrar explicações razoáveis
para as problema levantados332;
e) O tutor assume um papel ativo no que diz respeito
a oferecer conhecimentos úteis333 334
, isto é,
capazes de, em boa medida, auxiliar as crianças e
jovens a fazerem escolhas que tendem a gerar
332
Comparar com Dinis, C. (2011). O que é a filosofia para crianças:
Programa de Matthew Lipman. Dissertação de mestrado,
Universidade da Beira Interior Artes e Letras, Covilhã.
333
Curren, R. (1999). Cultivating the Intellectual and Moral Virtues. In
D. Carr and J. Steutel (Eds.), Virtue ethics and moral education (pp.
67-81). London: Routledge. Aqui, o autor sugere que a noção da
falibilidade humana em conhecer a realidade serve para ativar o
senso crítico das pessoas, e com isso evitar que ocorra o que se
chama de doutrinação. Esse é um dos motivos de oferecermos, com
a devida ênfase, a noção de que “não sabemos de muita coisa”. Com
isso, esperamos que as crianças e jovens adquiram uma atitude
investigativa a respeito dos saberes que lhes forem oferecidos,
mitigando assim o risco de que o papel ativo do tutor em oferecer
conhecimentos úteis se traduza em um processo de doutrinação. Vale
notar que a “cura” para doutrinação não é evitar que o tutor ofereça
uma perspectiva, mas em estimular as crianças e jovens a questionar
essa perspectiva com base no que sabem até então, e o que forem
sabendo no decorrer do debate com o tutor e colegas.
334
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 20, 69). Nestas
passagens, o autor sugere que “a alternativa para não doutrinar os
estudantes está em ajudá-los a refletir sobre os valores que
constantemente são impostos a ele” (perspectiva que, inclusive,
reflete a ideia que expressamos na nota acima). Até mesmo, porque,
explica Lipman: quem quer que ensine, propositalmente ou não,
ensina valores.
[262]
consequências objetivamente boas. Alguns dos
conhecimentos úteis que são oferecidos na prática
são:
335
Ver Jimenez, M. (2015). Aristotle on “steering the young by
pleasure and pain”. The Journal of Speculative Philosophy, 29(2),
137-164.
336
Ver Jimenez, M. (2015). Aristotle on “steering the young by
pleasure and pain”. The Journal of Speculative Philosophy, 29(2),
137-164.
[263]
▪ A noção da existência de que todos nós temos
desejos ancestrais, como os de ter recursos e de
ser reconhecido pelo grupo, mas que eles não são,
em si, ruins; que o ruim é dar vazão a esses
desejos irrefletidamente (saber que ajuda a
enxergar como esses desejos podem se encaixar
em um projeto de vida que vise o propósito de ser
feliz, ou seja, ajuda na construção consciente de
uma hierarquia de valores que tem a felicidade
como o bem maior);
[264]
consequências de curto e longo prazo, com base
no saber que temos no momento).
[265]
outros, fazem sentido com base em sua visão de mundo),
e ainda contra-argumentar; atividades que dependem de
raciocinarem com base no que sabem também para
avaliar se as ideias que o outro traz são melhores que as
suas (ou se as complementam), com isso, se vale a pena
“aprendê-las” (o que significa perceberem um “não saber”,
para aceitar ideias do outro de modo que estas se tornem
parte constituinte de sua nova visão de mundo,
provavelmente, mais ampliada). Um cuidado que temos
em relação a isso é evitar que eles se deixem levar pelo
viés da autoridade. Isto é, que as crianças e jovens
absorvam, acriticamente, os pontos de vista e
conhecimentos oferecidos pelo tutor, isto é, sem
analisarem se tais informações fazem sentido com base
no saber que possuem até o momento (ou seja, sem
analisar se existe lógica no que foi dito, assim como se os
fatos que observaram na vida oferece suporte ao que foi
dito). Para que tenhamos sucesso em evitar o viés de
autoridade, incentivamos o tutor a usar de sua autoridade
“natural” para combater o próprio viés da autoridade,
frisando que ele próprio não é “dono do saber”, que não
só é possível, como provável, existir equívocos ou
incompletudes nas informações que ele oferece, e que por
[266]
isso, tais informações devem sempre ser analisadas (em
termos de lógica e de fatos observados); e ainda, que tais
análises podem ser compartilhadas no encontro. Claro, o
tutor também deve analisar os contra-argumentos que as
crianças e jovens trouxerem frente ao que ele expôs,
assim como compartilhar suas análises com eles, o que
pode envolver evidenciar (assertivamente, claro)
possíveis falhas de raciocínio ou de expressão do
raciocínio deles338.
Um ponto que vale a pena mencionar sobre a
prática é que incentivamos a extrapolação do círculo de
debate em que se dá a prática (que se trata de um
ambiente controlado); de modo que estimulamos as
crianças e jovens, já empoderadas com os argumentos
elaborados nos encontros, a debaterem com outras
pessoas (familiares, por exemplo) a respeito das coisas
que foram discutidas. Isso para que eles sejam desafiados
a praticar virtudes úteis para situações de debate de ideias
338
Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de B. Prestes &
L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 117). Aqui, Lipman
sugere que o professor deve renunciar ao papel de autoridade de
informação sem renunciar ao papel de autoridade de instrução (o que
inclui apontar possíveis “buracos” nas lógicas que os alunos
oferecem, para que assim eles reflitam sobre eles). Acatamos, tal
sugestão.
[267]
no seu “habitat natural”339, como a virtude moral da
curiosidade útil (em especial no que diz respeito a
entender o ponto de vista do outro).
A importância que damos a virtude moral da
curiosidade útil é tal que a Educação das Virtudes através
dos Mitos Gregos foi pensada com um olhar fixo na
estimulação da prática dessa virtude; numa tônica em que
as criança e jovens são estimulados a, não só investigar
a utilidade de um saber que foi apresentado, como
falamos, mas também a imergir no processo investigativo
que leva a esse saber; descobrindo por si mesmos as
respostas; porém, não desamparados, mas guiados pelo
tutor através de um espiral de questionamentos por ele
339
Ver também Sinnott-Armstrong, W. (2018). Think again: How to
reason and argue. London: Penguin (p. 11). Aqui, o autor toca no
tema da importância das virtudes ao mencionar que “argumentos
não são tudo o que precisamos. Argumentos fazem pouco bem
quando o público não é receptivo, então também precisamos
aprender habilidades e hábitos sociais para encorajar nosso público
a ser receptivo às razões. Precisamos aprender modéstia (ou não
alegar possuir toda a verdade), graciosidade (incluindo aceitar bons
argumentos dos oponentes), paciência (esperar que o público pense
em nossos argumentos) e perdão (quando um oponente se recusa a
aceitar bons argumentos)”.
[268]
promovido340 341 342. Note que, em essência, cada
questionamento deve ser percebido como uma “novidade
que precisa ser investigada”, o que faz com que cada
340
Nussbaum, M. C. (1994). The therapy of desire: Theory and
practice in Hellenistic ethics. Princeton: Princeton University Press (p.
129). Aqui, a autora explica que a ética Aristotélica dá mais valor à
qualidade dos raciocínios do que as conclusões em si; pois é,
sobretudo, a habilidade de realizar bons raciocínios que torna a
pessoa mais capaz de fazer boas escolhas em distintas situações.
Seguimos então essa linha, a de priorizar o raciocínio das crianças e
jovens no processo que leva a conhecimentos sobre a realidade.
341
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (p. 362). Aqui, o autor explica que
um ensino construtivista se mostra incapaz no que diz respeito à
transferência de saberes mais avançados, fruto do acúmulo de
descobertas realizadas ao longo da história da humanidade. Pinker
explica que apenas o oferecimento do meio social e materiais não é
suficiente para que as crianças “construam práticas matemáticas que
demoraram milhares de anos para evoluir”. Por isso entendemos ser
importante a atuação ativa do tutor no sentido de oferecer saberes
úteis para as crianças e jovens.
342
Tomasello, M. (2000). Two hypotheses about primate cognition. In
C. M. Heyes & L. Huber (Eds.), The evolution of cognition (pp 163-
183). Aqui, o autor sugere que a evolução cultural é um fenômeno
distintamente humano, o qual se dá a partir da transmissão do
conhecimento das práticas vigentes, para que, assim, não só seja
evitada a perda do saber acumulado, mas para que os avanços nesse
saber se dê a partir de um ponto já alcançado. Ele chama esse efeito
de “chave catraca”; é como se fosse um “checkpoint” de jogo de
videogame. A partir dessa noção podemos dizer que, se um tipo de
ensino falha no quesito de transmissão do saber atual (como parece
ser o caso do ensino estritamente construtivista), ele acaba
contribuindo para a estagnação cultural, e com isso para que um
grupo humano se manifeste de maneira subótima; sem conseguir
realizar seu potencial enquanto grupo de conseguir produzir evolução
de sua cultura.
[269]
questionamento tenha o poder de fazer emergir a emoção
da curiosidade. Isso, por sua vez, deve fazer com que uma
sequência de questionamentos gere a vivência de uma
série de curiosidades, e com isso a manutenção do
interesse pelo tema em questão. Por sinal, acreditamos
que se essa fosse a tônica do ensino regular, as crianças
e jovens dificilmente veriam a escola como um fardo 343.
Um outro aspecto que gostaríamos de mencionar
sobre a prática, é que nos preocupamos em nela inserir
elementos que favorecessem o estabelecimento de uma
pequena comunidade que valoriza as virtudes344.
Sabemos que uma forma de uma comunidade valorizar
algo é quando as pessoas que a compõem (em especial,
os líderes) dão importância a conhecimentos e
habilidades relativas a esse algo; o que as leva a
reconhecerem como superiores aqueles que demonstram
343
Ver também Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E. de
B. Prestes & L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (pp. 38-
41).
344
MacIntyre, A. (1999). Dependent rational animals: Why human
beings need the virtues. Chicago: Open Court (p. 142). Aqui, o autor
explica que, se uma sociedade já não valoriza as virtudes é
fundamental, na hora de criar uma comunidade, que nela já se
procure estabelecer o interesse pelas virtudes, pois caso contrário, tal
comunidade será apenas uma versão menor da sociedade.
[270]
possuir tais conhecimentos e habilidades. Com isso em
mente, decidimos, então, utilizar o desejo de status, que
todos nós temos, como meio para a valorização grupal da
prática das virtudes, de modo a ressaltar que ela é digna
de estima345. Com base nessa ideia, o tutor é então
instruído a: 1) compartilhar experiências pessoais nas
quais praticou ou deixou de praticar virtudes, fazendo um
paralelo com as consequências que acabou produzindo
com sua ação ou inação (isso demonstra que o líder
valoriza as virtudes, o que ajuda as pessoas em geral a
valorizarem também346); 2) solicitar às crianças e jovens
que tentem praticar, ao longo da próxima semana, uma
virtude, que tenha relação com o mito discutido no
encontro; e, 3) no encontro seguinte, ao perguntar se
alguém tem alguma experiência para compartilhar ligada
à prática da virtude ao longo da semana, elogiar em suas
especificidades (e com sinceridade, claro), os
comportamentos de cada um que praticou a “virtude da
semana”, em especial quando tais comportamentos
345
Comparar com Lipman, M. (1990). A filosofia vai à escola (M. E.
de B. Prestes & L. M. S. Kremer, Trans.). São Paulo: Summus (p. 74).
346
Isso ajuda também a estabelecer um melhor rapport com as
crianças e jovens, uma vez que o tutor “abre” o seu cotidiano
mostrando, inclusive, que também falha em agir racionalmente.
[271]
resultaram em boas consequências. Vale notar que essa
atividade não só serve ao propósito de estabelecer uma
pequena comunidade que valoriza as virtudes, como
também incentiva, mais diretamente, a prática das
virtudes no cotidiano ao longo da semana.
Por fim, mas não menos importante entendemos
que a Educação das Virtudes através dos Mitos Gregos
deve: 1) estimular as crianças e jovens a refletirem sobre
seus interesses, habilidades específicas, o que o mundo
precisa, e sua missão individual; 2) ensiná-los a elaborar,
a partir das conclusões provenientes de tais reflexões, seu
projeto de vida feliz e uma rotina racional capaz de colocá-
los cada vez mais perto da realização deste projeto; e 3)
estimulá-los a executar esta rotina. O nosso intuito com
tudo isso é conduzi-los na direção de vivenciar felicidades
mais intensas ao longo da vida.
Com base no que apresentamos até aqui é
possível compreendermos que a prática Educação das
Virtudes através dos Mitos Gregos visa alcançar os
seguintes objetivos:
[272]
▪ Ensinar sobre o que é felicidade, incluindo a
felicidade mais intensa, que vem com a noção de
propósito de vida.
[273]
▪ Ensinar sobre: “nossos desejos ancestrais (e
outros mecanismos ancestrais de avaliação)”; e
sobre “o que são as emoções”; ”o que é a vontade”;
e “o que é o autocontrole”.
[274]
possível função específica (missão) nesse
mundo;
o Estimular o estudo sobre assuntos que se
perceba utilidade (inclusive, utilidade no que
diz respeito a ajudar a realizar a missão que
se crê ter).
347
Este objetivo pode soar como sendo o mesmo de "ensinar sobre
a importância de cultivar o hábito de agir racionalmente”. Em essência
é o mesmo. Contudo, estamos agora abordando as virtudes
propriamente ditas, e com isso, ensinando, especificamente, sobre a
importância de praticá-las.
[275]
experiências pessoais com a
prática delas (ou falha em
praticá-las).
[276]
outro, em especial sobre suas
intenções (verificando, por
exemplo, se elas apresentam
uma natureza de ameaça ou
oportunidade).
○ Estimular a reflexão a respeito
de qual virtude moral deveria
ser praticada no contexto; qual
objetivo se deveria buscar; e
quais os melhores meios a
empregar para a realização do
objetivo.
○ Estimular a análise da
utilidade de um conhecimento
que o tutor acabou de
apresentar (estímulo à análise
que fundamenta a prática da
virtude moral da curiosidade
útil).
[277]
na noção de que o que sabemos (e o
que o outro sabe) pode estar errado.
[278]
recorrência nas realizações de objetivos, isto é, que os
objetivos sejam trabalhados ao longo de toda a prática (e
não apenas em um único encontro). Isso exige que a
prática perdure por um horizonte de tempo razoável; em
nossa visão, por volta de seis meses, e com encontros
semanais348. No mais, com base em nossa experiência,
que envolve turmas de 25 alunos, vemos a necessidade
de que cada encontro tenha em torno de duas horas de
duração.
348
Pike, M (2020) Teaching virtues through literature: learning from
the ‘Narnian Virtues’ character education research. Journal of Beliefs
& Values, 41 (4). p. 474-488. Esse artigo aponta indícios de que uma
prática que se propõe a estimular o desenvolvimento das virtudes com
duração de apenas seis semanas não consegue alcançar resultados
esperados em termos de mudança de atitude dos estudantes.
Embora a prática que estamos propondo seja completamente
diferente da que foi estudada, tal indício serve de suporte para a ideia
de que é necessário um período mais extenso de tempo (por volta de
seis meses, é o que estamos propondo) para que se consiga
promover mudanças significativas na atitude das crianças e jovens.
No mais o artigo sugere a inovação de solicitar “atividades de casa”
para os estudantes de modo a assim estimular ainda mais a prática
das virtudes no cotidiano. Acatamos tal sugestão.
[279]
A PRÁTICA NA PRÁTICA: DOIS ESTUDOS DE CASO
349
Lewin, K. (1951). Field theory in social science: Selected
theoretical papers. D. Cartwright (Ed.). New York: Harper (p. 169).
350
Comparar com Dinis, C. (2011). O que é a filosofia para crianças:
Programa de Matthew Lipman. Dissertação de mestrado,
Universidade da Beira Interior Artes e Letras, Covilhã. Aqui, o autor
explica que o programa filosófico de Lipman é composto por três
etapas: a leitura, o questionar e a discussão reflexiva. Mantivemos
tais etapas na prática que estamos propondo.
[280]
encontro, e sobre como foi a prática da “virtude da
semana”, ou sobre outra “atividade de casa”351;
2) Leitura do mito;
351
Obviamente essa etapa não se aplica no primeiro encontro.
352
Bini, E. (2010). Sabedoria da mitologia para o seu dia a dia. São
Paulo: Edipro
[281]
práticas realizadas e descritas a seguir foram conduzidas
por M. M. Borri353. Neste sentido, tenha em mente que
todos os “eu” presentes nos textos a seguir se referem a
pessoa dela.
353
Os estudos de caso apresentados a seguir são relativos ao
trabalho elaborado e realizado pela autora dentro do projeto Sentido
do Servir, um projeto oficializado e chancelado pela Universidade
Católica do Salvador - UCSAL, na cidade de Salvador, Bahia, Brasil.
O trabalho consistia numa atividade extraclasse de duas horas de
duração com uma turma de, em média, 25 alunos, e contava com
jovens entre o 6º e 9º ano (faixa etária de 11 a 14 anos) da Escola
Municipal de Periperi.
[282]
A FERIDA DE QUÍRON
354
No encontro anterior foram passadas duas “atividades de casa”:
1) observar se nas atividades que forem exercendo durante semana
se ficam mais focados no reconhecimento alheio ou na execução
correta e bem feita das coisas; e 2) pensando nessa função individual
e singular que deram para si mesmos, procurem exercê-la durante a
semana, e observem o que aconteceu depois e como se sentiram
sobre isso.
[283]
(incluindo no que diz respeito aos personagens
dos mitos).
[284]
O: Ensinar sobre o que é felicidade, incluindo a
felicidade mais intensa que vem com a noção de
propósito de vida.
[285]
A primeira etapa de perguntas, assim como nas
demais atividades, é sobre a estória em si, e nas primeiras
três perguntas focamos na temática 1:
[288]
que seria algo estipulado a cada momento, mudando a
cada nova escolha. Além disso, por mais que no início
houvesse alguns discordantes no grupo, finalizamos com
a ideia, também em consenso, de que, por mais opostos
que soem, destino e liberdade podem, sim, coexistir:
355
Frankl, V. E. (2017). A vontade de sentido: Fundamentos e
aplicações da logoterapia (I. S. Pereira, Trans.). São Paulo: Editora
Paulus (p. 16).
[290]
esperança de interceder pela paz entre as tribos
de centauros. Se no fundo ele tinha uma
motivação nobre, por que acham que ele se
arrependeu de estar lá com eles? Acham que seu
arrependimento está mais ligado a uma sensação
de falta de conhecimento/informação ou falta de
prudência ao decidir o que fazer?
[291]
ajudar. Ou seja, coletar informação e
prudência da decisão. Imagina se você nem
procura saber porque brigaram e só chega
perto e diz algo como: ‘Calma galera, somos
todos amigos aqui! Pra quê brigar!?
Esquece o que aconteceu! Quem quer um
abraço triplo!? [carinha feliz] Acham mesmo
que uma abordagem dessa iria funcionar?
Ou que tal uma abordagem mais “sutil”
como: ‘Calma José, João é assim mesmo!
Mas temos que aceitar como ele é, assim
como a gente aceita você com todos seus
defeitos, e como vocês me aceitam com os
meus! Que tal os dois pedirem desculpas?
Abraço triplo!? [carinha feliz]’ Será que essa
abordagem daria certo? Eu particularmente
diria que não. Então vejam que só com as
informações do mito não temos como saber,
de fato, onde o problema de Quíron
começou, mas uma coisa é certa, como
viram no exemplo que dei: conhecer o
contexto, vulgo coletar informações, e
pensar com cuidado antes de agir, vulgo ter
[292]
prudência, são essenciais para tomada de
qualquer tipo de decisão na vida.”
[293]
reflete na realidade deles. Seguindo a ordem, começamos
com a temática 1:
[294]
quando mais cedo a gente aprender essas
coisas melhor.”
[295]
P: E quais coisas vocês acham que VOCÊS
precisam estudar para poder cumprir a missão
que acreditam ter? Por que?
[296]
jogador ou não, mas importa que abriu sua cabeça para o
fato de que há coisas importantes que precisam ser
aprendidas, feitas e conquistadas para que esse sonho
final se concretize, independente do que seja. Em outras
palavras, o intuito era:
[297]
importa muito, mas o fato é que, quando questionados,
demonstraram perceber, de forma bastante reflexiva, a
diferença que mais informação, ou mais prudência,
poderia ter feito naquele dia, e é isso que importa para
mim enquanto educadora, e no papel de tutora, deste
projeto: que notem a sutil, mas poderosa, influência
causal entre suas escolhas de hoje e as consequências
de amanhã. Com tudo isso, almejo:
[298]
foi falta de conhecimento ou se foi falta de
prudência, ou seja, não fez escolhas com base no
que, no fundo, sabiam que era o certo.
[299]
O JAVALI DA CALEDÔNIA
[301]
Este mito, repleto de momentos de ira e
derramamento de sangue, conta, basicamente, a história
de Meleagro, o príncipe da Caledônia, que, apesar de
nobre de coração, foi consumido, e cegado, ao se atrair
por uma mulher, mesmo já sendo casado. Se antes era
um hábil e respeitado guerreiro com título de herói, agora
sua paixão o tornou inconsequente, e suas ações
desmedidas passaram a desencadear a ira de camaradas
e familiares ao ponto de, inclusive, causar-lhe a própria
morte.
Ao decorrer da trama pudemos extrair, em linhas
gerais, três temáticas principais para serem debatidas ao
longo das perguntas: 1) como se definir, logicamente, o
que é justo e injusto; 2) a tendência de cedermos às
nossas inclinações ancestrais de forma irrefletida; e 3)
nossa inclinação ancestral de avaliarmos todos os
indivíduos enquanto aliados ou ameaças.
Começando devagar, pergunto o que acharam do
mito; não há respostas certas ou erradas, quero apenas
opiniões e pontos de vista. Pelo meu breve resumo acima
pode não parecer, mas este mito é relativamente longo, o
que exigiu mais da concentração e da “memória de
peixinho” deles. Assim, tivemos que ir devagar,
[302]
caminhando pedaço por pedaço, através das perguntas
costumeiramente pré-elaboradas.
Assim como nos encontros anteriores, elas foram
divididas em duas etapas, perguntas sobre a estória e
perguntas que trazem a temática do mito para a realidade
deles, mas devido ao volume de acontecimentos durante
esta trama mitológica o número de perguntas sobre a
estória tornou-se mais extenso, mas ainda assim fui
“puxando” para o “e o que você faria se tivesse sido com
você?” sempre que possível.
Na primeira pergunta sobre a estória refletimos
sobre as temáticas 1 e 2:
[303]
camada mais profunda que há em cada deliberação,
nossa e dos demais. Portanto, aqui procuramos:
[304]
Com essa reflexão queremos que eles percebam o
quanto que o senso de justiça de cada indivíduo está a
mercê de seus pressupostos e que, portanto, se estes
mostram-se, por algum motivo, frágeis ou ilógicos, o
mesmo se refletirá na manifestação de “justiça” que se
seguirá. Trazendo para a realidade deles:
[305]
Como qualquer coisa que envolve futebol no Brasil,
esse exemplo gerou bastante discussão! Uns defendiam
que sim, era justo: namorada em primeiro lugar! Já outros
concordaram por conta do seu “instinto de
autopreservação”: “tenho que ficar do lado dela, vai que
ela briga comigo depois!”. E alguns outros buscaram o
caminho do meio e tentaram pensar em estratégias para
conciliar os dois lados, como “intercalar partidas com e
sem ela” ou até mesmo “mostrar as habilidades dela para
os amigos se convencessem a deixá-la jogar”.
Ao trazer a questão para mais perto da realidade
deles, eles puderam começar a perceber que o
estabelecimento do que é “justo” não é uma tarefa tão fácil
assim. Pode até parecer quando nos colocamos distantes,
alheios à história e seus personagens, mas e se fosse
conosco, e se estivéssemos lá, como seria?
Continuaríamos pensando da mesma forma, seguindo
para o mesmo lado?
Ainda falando sobre a temática 1, justiça, mas
agora apresentando um contraponto positivo, seguimos
para a pergunta três; e logo em seguida a quatro, que
decorre da mesma lógica:
[306]
P: Numa expedição anterior, Argos negou a
participação de Atalanta por considerar que sua
presença, a de uma mulher bonita, em meio de
tantos homens, perturbaria o foco da missão.
Acham que Argos tomou a decisão certa?
[307]
arruinar tudo. Então, por melhor guerreira que Atalanta
fosse, essa não era uma briga que Argos sentiu que
valeria a pena “comprar”.
Depois de fazermos juntos todas essas
pontuações, a concordância com Argos foi unânime.
Agora, e no caso de Meleagro, cuja expedição não
seria no confinamento de um navio, mas sim no amplo
espaço aberto de uma floresta? Será que a densidade
demográfica faz alguma diferença? Bem, de acordo com
os dois centauros abatidos por ousarem tentar violentar a
brava Atalanta, aparentemente não. Então, o que seria
mais justo no caso de Meleagro?
Em ambas as perguntas buscamos, basicamente,
a mesma coisa:
[308]
pude ver pequenas "fumacinhas" saindo da cabeça deles.
Pra variar, eles estavam preocupados demais em “achar
a resposta certa” e esquecendo de um “pequeno” detalhe:
a vida real é dinâmica demais para se ter uma única
resposta certa para tudo. Em outras palavras: depende.
O argumento e posicionamento de Argos são sim
válidos e, claro, possivelmente replicáveis em outros
contextos minimamente semelhantes. Entretanto, antes
de Meleagro, ou qualquer um de nós, sair marcando no
gabarito da vida a mesma resposta só porque a pergunta
é parecida, é necessário analisar se ela, de fato, cabe no
seu contexto específico. Como já dizia Heráclito, “não se
pode descer duas vezes no mesmo rio”356.
Então por mais que ambas as situações, de Argos
e Meleagro, tratem sobre o pedido de participação de uma
mesma jovem em uma expedição militar: os tempos já
eram outros; o local de expedição era outro; os
companheiros de expedição eram outros; a missão era
outra; e o líder era outro. Ainda que Meleagro
concordasse ipsis litteris com o argumento e decisão de
356
Reale, G., & Antíseri, D. (2003). História da filosofia: Vol. 1:
Filosofia pagã antiga (I. Storniolo, Trans.). São Paulo. Editora Paulus
(p. 23).
[309]
Argos, ele continuava com total liberdade de decidir como
proceder em sua expedição. Isso, é claro, se não
estivesse cego de amores...e foi assim que tudo começou
a desandar!
Continuando a trama novelesca do mito, agora
estamos no ponto em que a caçada ao javali já terminou:
[310]
Claro que Meleagro, enquanto vencedor, tinha total
poder de decisão sobre o que fazer com seu troféu; mas
ainda assim, já que ele não queria ficar, e sim dá-lo à
alguém, qual seria a forma mais justa de escolher tal
pessoa? Para ilustrar esse dilema, trouxe, mais uma vez,
para a realidade deles:
[312]
P: Depois de anunciar que daria seu prémio à
caçadora Atalanta, os tios de Meleagro
protestaram, alegando que não seria justo, seja
porque ela não é da nobreza da Caledônia, seja
porque de fato não foi a primeira a sangrar o
animal, como alegou Meleagro.
a) Por que acham que os tios de Meleagro
ficaram irritados com a decisão do sobrinho?
b) Acham que esse foi um protesto justo?
c) Quem vocês acham que merecia mais
receber essa premiação?
[313]
O: Estimular a avaliação lógica do próprio
pensamento e dos outros com base na noção de
que o que sabemos, e o que o outro sabe, pode
estar errado.
[314]
principalmente, ao seu status social. Por isso tamanha
irritação e indignação com a decisão do sobrinho.
Mas agora, trazendo para eles essa “batata
quente”, o que supostamente seria o mais justo naquela
situação? Depois de Meleagro, o vencedor, quem seria o
mais merecedor? Ele deveria dar uma parte do prêmio
para todos que acertaram o javali? Ou deveria reafirmar
que o prêmio era dele por direito e com isso poderia dá-lo
para quem bem entendesse? Por que?
Conforme disse outras vezes: depende. Cada
contexto é único e trará consigo suas respectivas
particularidades e desafios. Mais uma vez, o foco não é
dar respostas prontas aos alunos, mas intrigá-los para
que se interessem, por si mesmos, em discutir e ponderar
antes de decidir, almejando que, aos poucos, esse
movimento se torne uma segunda natureza para eles.
Prosseguindo, mas ainda na cena pós-caçada, em
que Meleagro e os tios discutem sobre o repasse do
troféu, o príncipe, apesar de todos os argumentos e
protestos, bateu pé firme que a premiação seria da moça,
nos levando à sequência de quatro perguntas a seguir:
[315]
P: Indignados com a decisão de Meleagro, os tios
tomaram a premiação das mãos de Atalanta.
Como acham que Meleagro deveria ter agido?
[316]
O: Estimular a reflexão a respeito de qual emoção
seria mais adequada ao contexto, incluindo no que
diz respeito aos personagens dos mitos;
[317]
inimigo é”, e assim seu próprio filho tornou-se uma
ameaça. Como uma cadeia de dominós: Meleagro se
entrega à paixão e comete assassinatos (temática 2), sua
mãe se indigna com sua atitude e seu amor materno
torna-se ódio (temática 2), e agora ela não o vê mais como
filho (vulgo aliado), mas sim uma ameaça (temática 3).
Mas mãe ou não, sua raiva tinha razão de ser?
[318]
“treinar a si mesmos” na direção do que gostariam de
sentir, ao invés de condenarem-se a uma vida de
subjugação emocional. Mais uma vez, falar das temáticas
2 e 3 é:
[319]
A tristeza de um luto, refere-se, essencialmente, a
interpretação de que perdemos um “aliado”, o que, em
termos evolutivos, é um prenúncio de que um grande mal
pode acontecer conosco (ou com o restante do nosso
grupo, o que implicaria na perda de mais aliados), já que
uma pessoa que sempre esteve disposta a nos ajudar
com os perigos do mundo não estará mais ao nosso lado.
Já o arrependimento, foi por ter percebido que não agiu
da melhor forma possível, que seria de acordo com o
melhor do seu saber, mas sim impulsivamente, gerando
uma dor tão forte que ela, não suportando, buscou fugir
através do suicídio. Através desse novo olhar buscamos,
novamente:
[320]
O: Ensinar sobre o que são as virtudes e vícios, e
suas relações com o agir racional;
[321]
fazia ou não sentido dar vazão a eles conforme as
intercorrências de cada contexto.
Agora, depois de tantas reflexões enquanto meros
leitores, chegamos, finalmente, na análise mais intimista,
na segunda etapa de perguntas, em que trazemos a
estória para a realidade dos alunos; e partindo deste mito
focamos, principalmente, na análise e ponderação de dois
aspectos, ou devo dizer, vícios, que se repetiram ao longo
da estória como um dos cernes de toda essa celeuma:
[322]
drogas, álcool e cigarros; é não sequer raciocinar e
simplesmente ir atrás do que se quer.
Já o segundo vício, da irascibilidade, igualmente
mencionado acima, também é relativo a um
direcionamento cego, mas agora em prol da evitação de
algo possivelmente danoso, uma ameaça, e por isso a
necessidade da raiva quanto “energia” impulsionadora de
luta.
Através destes dois questionamentos ligeiramente
diferentes, buscamos:
[323]
atuar conforme o oposto positivo:
Moderação para os Anseios, e Brandura
para a Raiva.
[324]
CONCLUSÃO
357
Sailors, C. L. (2007). The Function of Mythology and Religion in
Ancient Greek Society. Electronic Theses and Dissertations. Paper
2110. Retrieved from http://dc.etsu.edu/etd/2110
[325]
seus superpoderes para provocar dores e prazeres, dos
mais intensos, nos personagens, em resposta às suas
escolhas e ações.
Os mitos gregos são mesmo um prato cheio para
abordar as virtudes, pois, como falamos, eles mostram os
males que a prática delas ajuda a evitar, assim como os
bens que ela pode trazer. Isso, não só nos contextos
vivenciados pelos personagens, mas principalmente em
situações correlatas da vida da criança e do jovem, para
que assim eles possam se sentir estimulados a saber mais
sobre a realidade, e a fazer escolhas com base no que
sabem até o momento. Com isso em mente, e movidos
pela angústia de vermos que crianças e jovens não são
educados para a vida, decidimos então nos dedicar, de
corpo e alma, à elaboração da teoria e prática que
apresentamos neste livro.
Não foi uma caminhada fácil. Ela exigiu de nós
muita atenção para evitarmos que nossas ideias
entrassem em um espiral de abstrações dando origem a
uma perspectiva repleta de arbitrariedades; um tipo de
armadilha que muitos teóricos da psicologia e filosofia
caem, em especial quando entram no terreno das
virtudes. Quando uma pessoa cai nesta armadilha suas
[326]
ideias são mandadas pelos ares, ou seja, ela "viaja na
maionese”, o que faz com que sua visão de mundo não
consiga refletir a realidade razoavelmente bem.
A estratégia que utilizamos para evitar que
"viajássemos na maionese” foi ancorar nossas ideias na
premissa de que a mente humana é produto da
evolução358 359. Deste modo, oferecemos uma perspectiva
assentada na teoria da seleção natural, que, queira ou
não, é a que melhor explica “como os animais funcionam”;
e (como já argumentamos), se não caímos de paraquedas
neste planeta, certamente é a que melhor explica como a
gente funciona também (e como devemos funcionar tendo
em vista nossa natureza peculiar360).
A presente obra é uma entre as poucas sementes
que vêm sendo depositadas no solo da cultura humana
ultimamente 361. No âmbito cultural, infelizmente, os
358
Pinker, S. (2001). Como a mente funciona (L. T. Motta, Trans.).
São Paulo: Companhia das Letras (p. 34).
359
Cosmides, L., & Tooby, J. (1997). Evolutionary psychology: A
primer. Center for Evolutionary Psychology, University of California,
Santa Barbara. http://cogweb.ucla. edu/EP/EP-primer.html.
360
Ver Foot, P. (2001). Natural goodness. Oxford, England: Oxford
University Press (pp. 15,16, 24, 32).
361
Por exemplo: Pike, M. A., Lickona, T., & Nesfield, V. (2015).
Narnian virtues: C.S. Lewis as character educator. Journal of
Character Education, 11, 71-86.
[327]
valores associados às virtudes meio que se perderam no
tempo, isto é, passam por um longo período de desuso
362. Felizmente, contudo, por ser da natureza humana
valorizar a sabedoria e o bom raciocínio, tal desuso não
extinguiu a importância que, individualmente, damos às
virtudes (mesmo que não estejamos conscientes disso).
Como falamos, não é à toa que cobramos do outro
explicações lógicas para suas ações; não é à toa que
aplaudimos atos de coragem alheios; e sobretudo, não é
à toa que, mesmo que não tenhamos cultivado o hábito
de agir em linha com nossa natureza peculiar, ficamos
orgulhosos de nós mesmos (felizes) quando percebemos
que, agindo assim, conseguimos gerar um bom resultado.
Com isso queremos dizer que, embora as virtudes não
estejam dentre as coisas que nossa cultura mais valoriza,
nossa natureza mantém o terreno fértil para que suas
sementes, se devidamente plantadas, possam florescer.
Nosso convite é para que você se una a nós nessa árdua
tarefa de plantio.
362
MacIntyre, A. (2001). Depois da virtude: Um estudo em teoria
moral. Bauru: EDUSC (pp. 15, 28).
[328]