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A nossa disciplina tem uma íntima relação com o tema da memória, pois ao

falarmos de metodologia falamos também, direta ou indiretamente, de memória. Uma


das finalidades de um método é o acesso aos conhecimentos que apreendemos e que
ficam retidos na memória, e que na falta de uma organização, um método, ficam quase
inacessíveis à nossa consciência. Quando acompanhamos um discurso, seja assistindo
uma aula ou lendo um texto, ao chegarmos ao final fica aquela questão no ar: ¨Será que
eu absorvi tudo isso?¨. Mesmo que a nossa atenção seja completa, fica a impressão de
que não retemos tudo aquilo que o palestrante ou o autor quis apresentar. Na realidade,
ao que parece, fica tudo retido na memória, pois observamos que quando arrumamos
um meio para despertar aquela lembrança, ela vem quase inteiramente à tona. É
justamente para isso que precisamos do método. Para que possamos ter acesso àqueles
conhecimentos que adquirimos e que parecem ficar escondidos na nossa memória. O
método seria então uma maneira de organização dos conhecimentos de modo que
possamos acessá-los na hora em que precisarmos. Para isso nos valemos de todo um
arsenal de técnicas, como pudemos ver no decorrer da disciplina, para essa organização,
como fichários, pastas, anotações em textos, para que não percamos de vista
importantes descobertas apreendidas no decorrer da pesquisa.
É indiscutível a importância básica do método para a pesquisa científica, mas
quando se fala em método para a criação artística a questão já levanta algumas
polêmicas. Isso porque a criação artística é livre, e não se costuma cobrar nenhum rigor
ou coerência de uma obra de arte, mesmo porque ela é vista principalmente como
produzida a partir da imaginação, que não tem, por sua natureza, tanta linearidade e
coerência. Mas é também indiscutível a necessidade de um método para a criação
artística, mesmo que esse método seja apenas de tal artista e completamente confuso
para outros. Pudemos ver nitidamente com a palestra da artista Regina Silveira como
um método de criação artística pode ser importante para o resultado da obra. No
momento da criação, é a memória do artista a faculdade que exerce a atividade mais
intensa para o desenvolvimento da obra, visto que ele trabalha muitíssimo sobre as
impressões e experiências vividas, que ficam retidas em sua memória. Outro exemplo
de artista com bastante consciência da importância de um bom método é o escritor
Guimarães Rosa, que compunha extensos fichários, com detalhes riquíssimos sobre
vários assuntos que poderiam contribuir na obra, como por exemplo, os vários nomes de
aves de determinada região, palavras comuns a determinados dialetos sertanejos, etc.
Isso tudo para mostrar a grande relevância da memória e do método tanto para a criação
científica ou filosófica quanto para a criação artística.
A memória como objeto da arte e da filosofia

Diversos foram os filósofos e artistas que trataram do tema da memória em seus


trabalhos. A memória sempre foi um tema muito instigante para os filósofos, e de
tempos pra cá principalmente passou a interessar também a artistas das mais diversas
áreas. Platão, com sua teoria da reminiscência, já tratada aqui pela professora, foi um
dos primeiros filósofos a falar da memória em seus escritos. Depois dele, muitos outros
trataram a memória como tema principal de seus estudos. Vale lembrar aqui o já citado
Henri Bergson que em seu Matéria e Memória compôs um importante estudo sobre o
tema na passagem do século XIX para o XX. Entre os artistas, no século XX
principalmente, apareceram excelentes trabalhos tendo a memória como tema primário
das obras. A memória passou a ser, além de faculdade principal para a composição,
objeto da arte. Esse tratamento da memória como objeto da arte alcançou na
modernidade seu momento mais marcante. Num período em que os problemas inerentes
à arte passaram a ser os principais temas tratados por ela, a memória, que é a faculdade
motivadora para a produção artística, não poderia escapar. Vamos usar apenas alguns
exemplos para mostrar algumas maneiras como a memória foi tratada pelas artes.
Nosso colega German, com sua exposição sobre a artista Tracey Emy, já nos
trouxe um excelente exemplo da arte usando-se da memória. No caso dessa artista, cuja
produção tem um caráter confessional, podemos ver como a memória é ao mesmo
tempo motivadora do trabalho e objeto do mesmo.
O compositor Caetano Veloso possui diversas composições em que trata do tema
da memória. No seu disco Araçá Azul, por exemplo, Caetano se utiliza, através de
colagens, de várias alusões à sua infância no interior da Bahia, justapondo cantigas de
roda de sua terra a motivos extremamente trabalhados, já por uma consciência criativa
bastante cultivada. É bastante nítido nesse disco o trabalho com as reminiscências de
Caetano, como ele mesmo chegou a declarar algumas vezes.
Outro compositor, nesse caso da música erudita, o húngaro Bela Bàrtok, compôs
várias músicas baseadas no folclore húngaro desenvolvidos e adaptados por seus
conhecimentos de técnicas de música de sua época. O brasileiro Villa Lobos também
fez um trabalho parecido, no caso de uma memória nacional, ao buscar, adaptar e
registrar várias cantigas populares de diversos lugares do interior do Brasil.
O já citado Guimarães Rosa, que escrevia com o auxílio de detalhadíssimos
fichários, e cuja obra mais conhecida ,Grande Sertão: Veredas, é narrado em primeira
pessoa por um personagem, que conta as suas lembranças a um interlocutor forasteiro.
E, também na literatura, a obra clássica de Marcel Proust, Em busca do Tempo
Perdido, tem um dos mais celébres momentos da literatura sobre o tema da memória,
que é o momento em que o personagem principal e narrador, na primeira parte do livro
No Caminho De Swann, ao tomar um gole de chá traz à tona uma série de lembranças,
inclusive de natureza física, de sua infância, quando costumava tomar aquele mesmo
chá na casa de sua vó. Esse momento já mereceu uma série de estudos de várias
vertentes, e nos leva àquilo que dissemos na primeira parte do trabalho, onde tratamos
do método para acessarmos as nossas lembranças adormecidas em nossa memória.

Com tudo isso vimos algumas das infinitas relações que a memória exerce com a
arte e com o conhecimento, e chegamos mesmo a concluir que a memória está
indissoluvelmente misturado com o conhecimento e com a arte em todos os seus
momentos, seja o da concepção, o da produção ou o da apreciação.

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