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II

ABORDAGEM DO ESPAÇO
LITERÁRIO
O POEMA — a literatura — parece vinculado a uma fala que
não pode interromper-se porque ela não fala, ela é. O poema
não é essa fala, é começo, e ela própria jamais começa mas
diz sempre de novo e sempre recomeça. Entretanto, o poeta é
aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o me­
diador, que lhe impôs o silêncio pronunciando-a. Nela, o poema
está próximo da origem, pois tudo o que é original é à prova
dessa pura impotência do recomeço, dessa prolixidade estéril, a
superabundância do que nada pode, do que jamais é a obra,
arruina a obra e nela restaura a ociosidade sem fim. Talvez seja
a fonte, mas fonte que, de uma certa maneira, deve ser exaurida
para tornar-se recurso. Jamais o poeta, aquele que escreve, o
“criador”, podería exprimir a obra a partir da ociosidade es­
sencial; jamais, por si só, do que está na origem, ele pode
fazer brotar a pura palavra do começo. É por isso que a obra
somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de
alguém que a escreveu e de alguém que a leu, o espaço vio­
lentamente desvendado pela contestação mútua do poder de
dizer e do poder de ouvir. E aquele que escreve é igualmente
aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu
como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua
exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado
corretamente, fê-la cessar, tomou-a compreensível nessa inter-
mitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite,
dominou-a ao medi-la.

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A EXPERIÊNCIA DE MALLARMÉ

CUMPRE recordar aqui as alusões, hoje muito conhecidas, que


permitem pressentir a que transformação Mallarmé foi exposto,
desde que se empenhou a fundo em escrever. Essas alusões
não têm, em absoluto, um caráter anedótico. Quando ele afir­
ma: “Senti sintomas deveras inquietantes causados pelo ato só
de escrever”, o que importa são essas últimas palavras: por
elas é esclarecida uma situação essencial; algo de extremo é
apreendido, que tem por campo e substância “o ato só de escre­
ver”. Escrever apresenta-se como uma situação extrema que
supõe uma reviravolta radical, à qual Mallarmé fez breve alusão
quando disse: “Ao sondar o verso a esse ponto, encontrei, la­
mentavelmente, dois abismos que me desesperam. Um deles é
o Nada...” (a ausência de Deus, o outro é a sua própria mor­
te). Também nesse comentário do poeta o que é rico de senti­
do é a expressão sem envergadura que, da maneira mais singela,
parece remeter-nos para um simples trabalho de artesão. “Ao
sondar o verso”, o poeta entra nesse tempo de desamparo que
é o da ausência dos deuses. Fala surpreendente. Quem sonda
o verso escapa ao ser como certeza, reencontra os deuses au­
sentes, vive na intimidade dessa ausência, toma-se responsável
dela, assume-lhe o risco e sustenta-Lhe o favor. Quem sonda o
verso deve renunciar a todo e qualquer ídolo, tem que romper
com tudo, não ter a verdade por horizonte nem o futuro por
morada, porquanto não tem direito algum à esperança, deve,
pelo contrário, desesperar. Quem sonda o verso morre, reencon­
tra a sua morte como abismo.

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Palavra bruta, palavra essencial

Se ele procura exprimir a linguagem tal como lhe foi des­


coberta pelo “o ato só de escrever”, Mallarmé reconhece “um
duplo estado da fala, bruto ou imediato aqui, essencial acolá”.
Essa distinção é, em si mesma, brutal, logo difícil de apreender,
pois ao que ele distingue tão absolutamente confere Mallarmé
a mesma situação, encontra, para defini-la, a mesma palavra,
que é o silêncio. Silêncio puro, a fala em estado bruto: “. ..
talvez bastasse a cada um, a fim de permutar a fala humana,
tomar ou pôr na mão de outrem, uma moeda...” Silenciosa,
portanto, porque nula, pura ausência de palavras, permuta pura
em que nada se troca, onde nada existe de real a não ser o
movimento de permuta, que nada é. Mas o mesmo pode ser
dito a respeito da fala confiada à pesquisa do poeta, essa lin­
guagem cuja força reside toda em não ser, toda a glória em
evocar, na sua própria ausência, a ausência do todo: linguagem
do irreal, fictícia, e que nos entrega à ficção, ela provém do
silêncio e ao silêncio retoma.
A fala em estado bruto “relaciona-se com a realidade das
coisas”. “Narrar, ensinar, até descrever”, dá-nos as coisas na
própria presença delas, “representa-as”. A fala essencial distan-
cia-as, fá-las desaparecer; ela é sempre alusiva, sugestiva, evo­
cativa. Mas o que significará então tomar ausente “um fato da
natureza”, apreendê-lo por essa ausência, “transpô-lo em seu
quase desaparecimento vibratório?” Significa essencialmente
falar, mas também pensar. O pensamento é fala pura. Tem que
se reconhecer nele a língua suprema, aquela cuja extrema va­
riedade de línguas apenas nos permite reavaliar a deficiência:
“Sendo pensar escrever sem acessórios, nem murmúrios, mas
a fala imortal ainda tácita, a diversidade, na terra dos idiomas
impede que se profiram palavras que, caso contrário, graças
a uma única matriz, seriam a própria concretização material da
verdade.” (O que constitui o ideal de Crátilo mas é também a
definição da escrita automática.) Somos tentados a dizer, por­
tanto, que a linguagem do pensamento é, por excelência, a lin­
guagem poética, e que o sentido, a noção pura, a idéia, devem
tornar-se a preocupação do poeta, sendo isso somente o que
nos liberta do peso das coisas, da informe plenitude natural.
“A Poesia, perto a idéia.”
Entretanto, a fala em estado bruto nada tem de brutal.
O que ela representa não está presente. Mallarmé não quer

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Á
“incluir no papel sutil ... a madeira intrínseca e densa das
árvores”. Mas nada de mais estranho para a árvore do que a
palavra árvore, tal como a utiliza, não obstante, a linguagem
cotidiana. Uma palavra que não denomina nada, que não re­
presenta nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem
mesmo é uma palavra e que desaparece maravilhosamente, por
inteiro e de imediato, em seu uso. O que pode ser mais digno
do essencial e mais próximo do silêncio? A palavra é verda­
deira, ela “serve”. Aparentemente, toda a diferença está aí: ela
é usada, usual, útil; por ela, estamos no mundo, somos devolvi­
dos à vida do mundo, aí falam os objetivos, as metas finais,
e impõe-se a preocupação de sua realização. Um puro nada,
certamente, o próprio não-ser, mas em ação, o que age, traba­
lha, constrói o puro silêncio do negativo que culmina na rui­
dosa febre das tarefas.
A fala essencial é, nesse aspecto, o oposto. Por si mesma,
ela é imponente, ela impõe-se, mas nada impõe. Muito longe
também de todo o pensamento, desse pensamento que repele
sempre a obscuridade elementar, pois o verso “atrai não menos
que afasta”, “aviva todos os jazimentos esparsos, ignorados e
flutuantes”: nele as palavras voltam a ser “elementos”, e a pa­
lavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a
noite.1
Na fala bruta ou imediata, a linguagem cala-se como lin­
guagem mas nela os seres falam e, em conseqüência do uso que
é o seu destino, porque serve, em primeiro lugar, para nos rela­
cionarmos com os objetos, porque é uma ferramenta num mun­
do de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso,
nela os seres falam como valores, assumem a aparência estável
de objetos existentes um por um e que se atribuem a certeza do
imutável.
A fala em estado bruto não é bruta nem imediata. Mas dá
a ilusão de que o é. Extremamente refletida, está impregnada1

1 Depois de ter lamentado que as palavras não sejam “materialmente


a verdade”, que jour (dia), por seu timbre, seja sombrio, e nuit (noite)
brilhante, Mallarmé encontra nesse defeito das línguas o que justifica
a poesia; o verso é delas o “complemento superior”, “filosoficamente,
o verso recompensa o defeito das línguas”. O que é esse defeito? As
línguas não têm a realidade que exprimem, sendo estranhas à realidade
das coisas, à obscura profundidade natural, pertinente a essa realidade
fictícia que é o mundo humano, divorciado do ser e ferramenta para
todos os seres.

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da história. Mas, a maioria das vezes, e como se não fôssemos
capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do
tempo, os guardiões do devir, a fala parece o lugar de uma re­
velação imediatamente dada, parece o sinal de que a verdade é
imediata, sempre a mesma e sempre disponível. A fala imediata
talvez seja, com efeito, relação com o mundo imediato, com
aquele que nos é imediatamente próximo e nosso vizinho, mas
esse imediato que nos comunica a fala comum não passa do lon­
gínquo velado, o absolutamente estranho que se faz passar por
habitual, o insólito que tomamos por rotineiro graças a esse véu
que é a linguagem e a esse hábito da ilusão das palavras. A fala
tem nela o momento que a dissimula; ela tem em si mesma, por
esse poder de dissimulação, a potência pela qual a mediação
(o que, portanto, destrói o imediato) parece ter a espontaneida­
de, o frescor, a inocência da origem. E, além disso, ela tem esse
poder, comunicando-nos a ilusão do imediato, quando o que
nos dá é somente o habitual, faz-nos crer que o imediato nos é
familiar, de modo que a essência deste nos aparece, não como o
mais terrível, o que deveria perturbar-nos, que é o erro da soli­
dão essencial, mas como a felicidade tranqüilizadora das har­
monias naturais ou a familiaridade do lugar natal.
Na linguagem do mundo, a linguagem cala-se como ser da
linguagem e como linguagem do ser, silêncio graças ao qual os
seres falam, no qual encontram também esquecimento e repou­
so. Quando Mallarmé fala da linguagem essencial, logo a opõe
somente à linguagem ordinária que nos dá a ilusão, a seguran­
ça do imediato, o qual, contudo, nada é senão o rotineiro — e
depois retoma, por conta da literatura, a fala do pensamento,
esse movimento silencioso que afirma, no homem, a sua decisão
de não ser, de se separar do ser e, ao tornar real essa separação,
de fazer o mundo, silêncio que é o trabalho e a fala da própria
significação. Mas essa fala do pensamento é também, de qual­
quer modo, a fala “corrente”: ela devolve-nos sempre ao mun­
do, ora como o infinito de uma tarefa e o risco de um trabalho,
ora como uma posição firme onde nos é lícito acreditar que es­
tamos em lugar seguro.
A fala poética não se opõe somente, portanto, à linguagem
ordinária mas também à linguagem do pensamento. Nessa fala,
já não somos devolvidos ao mundo, nem ao mundo como abri­
go, nem ao mundo como metas. Nela, o mundo recua e as metas
cessaram; nela, o mundo cala-se; os seres em suas preocupa­
ções, seus desígnios, suas atividades, não são, finalmente, quem

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fala. Na fala poética exprime-se esse fato de que os seres se ca­
lam. Mas como é que isso acontece? Os seres calam-se, mas é
então o ser que tende a voltar a ser fala, e a palavra quer ser.
A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém
fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fa­
la ‘’se fala”. A linguagem assume então toda a sua importância;
torna-se o essencial; a linguagem fala como o essencial e é por
isso que a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala
essencial. Isso significa, em primeiro lugar, que as palavras,
tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa
nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins.
Doravante, não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que
se fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem.
Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um po­
tente universo de palavras cujas relações, a composição, os po­
deres, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmi­
ca, num espaço unificado e soberanamente autônomo. Assim, o
poeta faz obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é
retomo à sua essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal co­
mo o pintor não reproduz com as cores o que é mas busca o
ponto onde as suas cores dão o ser. Ou ainda, como tentou Ril­
ke na época do expressionismo, ou talvez hoje Ponge, ele quer
criar “o poema-coisa” que seja como a linguagem do ser mudo,
fazer do poema o que será por ele mesmo forma existência e
ser: obra.
Entretanto, essa poderosa construção da linguagem, esse
conjunto calculado para excluir dele o acaso, que subsiste por
si só e repousa sobre si mesmo, chamamos-lhe obra e chama­
mos-lhe ser mas, sob essa perspectiva, não é uma coisa nem
outra. Obra, pois que é construída, composta, calculada, mas,
neste sentido, obra como toda a obra, como todo o objeto forma­
do pelo entendimento de um ofício e a habilidade de um espe­
cialista. Não obra de arte, obra que tem a arte por origem, pela
qual a arte, da ausência de tempo onde nada se conclui, é ele­
vada à afirmação única, fulminante, do começo. E, do mesmo
modo, o poema entendido como um objeto independente, auto-
suficiente, um objeto de linguagem criado para si só, mônada de
palavras onde só se refletiría a natureza das palavras e nada
mais, talvez seja então uma realidade, um ser particular, de
uma dignidade, de uma importância excepcional, mas um ser
e, por isso mesmo, de forma nenhuma mais próximo do ser, do

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que escapa a toda a determinação e a toda a forma de exis­
tência.

A experiência própria de Mallarmé

Parece que a experiência pessoal de Mallarmé começa no mo­


mento em que ele passa da consideração da obra feita, aquela
que é sempre um tal ou tal poema em particular, um tal ou tal
quadro, para uma preocupação mediante a qual a obra passa a
ser a busca de sua origem e quer identificar-se com a sua ori­
gem, “visão horrível de uma obra pura”. Aí está sua profundi­
dade, aí a preocupação que envolve, para ele, “o ato só de es­
crever”. O que é a obra? O que é a linguagem na obra? Quando
Mallarmé se pergunta: “Existe alguma coisa como as Letras?”,
essa indagação constituí a própria literatura, a literatura quan­
do esta se converte em preocupação com a sua própria essência.
Tal indagação não pode ser relegada. O que é que acontece em
decorrência do fato de que temos a literatura? Qual o paradei­
ro do ser, se dizemos que “existe alguma coisa como Letras”?
Mallarmé teve sobre a própria natureza da criação literá­
ria um sentimento profundamente atormentado. A obra de arte
reduz-se ao ser. Aí está a sua tarefa, ser, tornar presente “essa
palavra; é”. . . “todo o mistério está aí”.2 Mas, ao mesmo tem­
po, não se pode dizer que a obra pertence ao ser, que ela existe.
Pelo contrário, o que se deve dizer é que ela jamais existe à ma­
neira de uma coisa ou de um ser em geral. O que cumpre dizer,
em resposta à nossa questão, é que a literatura não existe ou
então que, se acontece, é como alguma coisa “que não aconte­
ce como qualquer objeto que existe”. Certamente, a linguagem
está presente, é “posta em evidência”, afirma-se com mais auto­
ridade do que nenhuma outra forma de atividade humana, mas
realiza-se totalmente, o que quer dizer que tampouco tem outra
realidade senão a do todo: ela é tudo — e nada mais, sempre
disposta a passar do tudo ao nada. Passagem que é essencial,

2 Carta a Vielé-Griffin, 8 de agosto de 1891: “...Nada que eu não


me diga a mim mesmo, menos bem, no murmurar esparso de minha
solidão, mas onde vós sois o adivinho, é, sim, relativamente a essa pa­
lavra mesma: é, notas que tenho sob a mão, e que reina no derradeiro
lugar do meu espírito. Todo o mistério está aí: estabelecer as identi­
dades secretas por um dois a dois que rói e gasta os objetos, em nome
de uma pureza central.”

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que pertence à essência da linguagem, visto que, precisamente,
nada está trabalhando nas palavras. As palavras, como sabe­
mos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer
aparecer enquanto desaparecidas, aparência que nada mais é
senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, re­
toma à ausência pelo movimento de erosão e de usura que é a
alma e a vida das palavras, que extrai delas luz pelo fato de
que se extinguem, a claridade através da escuridão. Mas, tendo
esse poder de fazer as coisas “erguerem-se” no seio de sua au­
sência, senhoras dessa ausência, as palavras também têm o po­
der de se dissiparem a si mesmas, de se tornarem maravilhosa­
mente ausentes no seio de tudo o que realizam, de tudo o que
proclamam anulando-se, do que etemamente executam destru­
indo-se, ato de autodestruição sem fim, em tudo semelhante ao
tão estranho evento do suicídio, o qual confere precisamente
toda a sua verdade ao instante supremo do Igitur.3

3 Remetemos o leitor a uma outra seção deste livro, “A Obra e o Es­


paço da Morte”, que é o estudo apropriado da experiência de Igitur,
experiência que só pode ser interrogada se se tiver alcançado um ponto
mais central do espaço literário. Em seu ensaio tão importante, La
Distance Interieure, Georges Poulet mostra-nos que Igitur é “um exem­
plo perfeito do suicídio filosófico”. Sugere, desse modo, que o poema,
para Mallarmé, depende de uma relação profunda com a morte, só é
possível se a morte for possível, se, pelo sacrifício e a tensão a que o
poeta se expõe, ela se converter no poeta em poder, possibilidade, se
ela for um ato, o ato por excelência. “A morte é o único ato possível.
Acossados que estamos entre um mundo material verdadeiro cujas
combinações fortuitas produzem-se em nós sem nós, a um mundo ideal
falso cuja mentira nos paralisa e nos enfeitiça, só dispomos de um meio
para nunca mais sermos entregues ao nada nem ao acaso. Esse meio
único, esse ato único, é a morte. A morte voluntária. Por ela nos abo­
limos mas por ela também nos fundamos... Foi esse ato de morte vo­
luntária que Mallarmé cometeu. Cometeu-o no Igitur.”
Faz-se necessário, porém, prolongar esse comentário de Georges
Poulet: Igitur é um relato abandonado que testemunha uma certeza a
que o poeta não pôde ater-se. Pois não é certo que a morte seja um
ato, já que poderia ocorrer a impossibilidade de suicídio. Posso dar-me
a morte? Tenho o poder de morrer? Un coup de dés jamais n’abolira
le hazard [Um lance de dados jamais abolirá o acaso, título do poema
de Mallarmé considerado o precursor da poesia concreta em seu projeto
do livro “absoluto”. N. do T.J é como que a resposta em que essa
pergunta se detém. E a “resposta” deixa-nos pressentir que o movi­
mento que, na obra, é experiência, abordagem e uso da morte, não é
o da possibilidade — ainda que fosse a possibilidade do nada — mas
a abordagem daquele ponto em que a obra está à prova de impossibi­
lidade.

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O ponto central

Tal é o ponto central, a que Mallarmé volta sempre como à inti­


midade do risco a que nos expõe a experiência literária. Esse
ponto é aquele em que a realização da linguagem coincide com
o seu desaparecimento, em que tudo se fala (como ele disse,
“nada subsistirá sem ser proferido’’), tudo é fala, mas em que
a fala já não é mais do que a aparência do que desapareceu, é
o imaginário, o incessante e o interminável.
Esse ponto é a própria ambiguidade.
De um lado, na obra, ele é o que a obra realiza, é aquilo
em que ela se afirma, onde é preciso que ela “não admita outra
evidência luminosa senão a de existir”. Nesse sentido, esse pon­
to é presença da obra e somente a obra o toma presente. Mas,
ao mesmo tempo, é “presença da Meia-Noite”, o aquém, aquilo
a partir do qual nada jamais começa, a profundidade vazia da
ociosidade do ser, essa região sem saída e sem reserva na qual
a obra, por meio do artista, torna-se a preocupação, a busca
sem fim de sua origem.
Sim, centro, concentração da ambigüidade. É bem verdade
que só a obra, se caminhamos para esse ponto pelo movimento
e o poder da obra, só a plena realização da obra o torna possí­
vel, em última instância. Atentemos de novo para o poema: o
que de mais real, de mais evidente e a própria linguagem é nele
“evidência luminosa”. Essa evidência, entretanto, nada mostra,
em nada assenta, é o inapreensível em movimento. Não é ter­
mos nem momentos. Onde acreditamos ter palavras, traspassa-
nos uma “virtual rajada de fogos”, uma prontidão, uma exal­
tação cintilante, reciprocidade por onde o que não é se elucida
nessa passagem, reflete-se nessa pura agilidade de reflexos onde
nada se reflete. Então, “tudo fica em suspenso, disposição frag­
mentária com alternância e face a face”. Então, ao mesmo tem­
po que brilha para extinguir-se o frêmito do irreal convertido
em linguagem, afirma-se a presença insólita das coisas reais
convertidas em pura ficção, em pura ausência, lugar de glória
onde resplandecem “festas à vontade e solitárias”. Gostar-se-ia
de dizer que o poema, como o pêndulo que marca o ritmo, pelo
tempo, da abolição do tempo em Igitur, oscila maravilhosa­
mente entre a sua presença como linguagem e a ausência das
coisas do mundo, mas essa mesma presença é, por seu turno,
perpetuidade oscilante, oscilação entre a irrealidade sucessiva

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de termos que não terminam nada e a realização total desse mo­
vimento, a linguagem convertida no todo da linguagem, aí onde
se concretiza, como todo, o poder de rejeitar e de retornar ao
nada que se afirma em cada palavra e se aniquila em todas,
“ritmo total”, “com o quê o silêncio”.
No poema, a linguagem nunca é real em nenhum dos mo­
mentos por onde passa, porquanto no poema a linguagem afir­
ma-se como todo e sua essência, não tendo realidade senão nes­
se todo. Mas, nesse todo em que ela é a sua própria essência,
em que é essencial, é também soberanamente irreal, é a realiza­
ção total dessa irrealidade, ficção absoluta que diz o ser, quan­
do, tendo “usado”, “roído” todas as coisas existentes, suspen­
dido todos os seres possíveis, colide com esse resíduo ineliminá-
vel, irredutível. O que resta? “Apenas essa palavra: é”. Palavra
que sustenta todas as palavras, que as sustenta deixando-se dis­
simular por elas, que, dissimulada, é a presença delas, a reserva
delas, mas que, quando cessam, se apresenta (“o instante em
que brilham e morrem numa flor rápida sobre alguma transpa­
rência como de éter’’), “momento de raio”, “relâmpago fulgu­
rante”.
Esse momento de raio jorra da obra como o impetuoso jor­
ro da obra, sua presença total, sua “visão simultânea”. Esse mo­
mento é, ao mesmo tempo, aquele em que a obra, a fim de dar
ser e existência a esse “engodo” de que “a literatura existe”,
pronuncia a exclusão de tudo mas, por esse meio, exclui-se a si
mesma, de sorte que esse momento em que “toda a realidade
se dissolve” pela força do poema é também aquele em que o
poema se dissolve e, instantaneamente feito, instantaneamente
se desfaz. Isso, sem dúvida, já é ambíguo ao extremo. Mas a
ambiguidade toca no mais essencial. Pois esse momento, que é
como a obra da obra, que, à margem de toda a significação, de
toda a afirmação estética e histórica, exprime que a obra é, esse
momento só será tal se a obra, nele, enfrentar a experiência do
que sempre arruina de antemão a obra e sempre restaura nela a
superabundância vã de ociosidade.

A profundidade da ociosidade

Eis o momento mais escondido da experiência. Que a obra deva


ser a claridade única do que se extingue e pela qual tudo se ex­
tingue, que ela se apresente tão-só onde o extremo da afirmação

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é verificado pelo extremo da negação, ainda compreendemos
tais exigências, embora sejam contrárias à nossa necessidade de
paz, de simplicidade, de sono; compreendemo-las intimamente,
como a intimidade dessa decisão que somos nós próprios e que
nos dá o ser, somente quando, correndo os nossos riscos e peri­
gos, rejeitamos, pelo fogo, pelo ferro, pela recusa silenciosa, sua
permanência e favor. Sim, compreendemos que a obra, nesse
aspecto, seja puro começo, o momento primeiro e último em
que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz ex­
cluí-lo soberanamente, sem incluí-lo ainda, porém, na aparência
dos seres. Mas essa exigência que faz da obra o que declara o
ser no momento único da ruptura, “essa mesma palavra: é”,
esse ponto que ela faz brilhar enquanto recebe o clarão relam-
pejante que a consome, devemos também compreender e sentir
que toma a obra impossível, porquanto é o que jamais permite
que aconteça à obra, o aquém onde, do ser, nada é feito, nada
se realiza, a profundidade da ociosidade, da inação do ser.
Parece, pois, que o ponto onde a obra nos conduz não é
somente aquele onde ela se realiza na apoteose de seu desapare­
cimento, onde ela diz o começo, dizendo o ser na liberdade que
o exclui — mas é também o ponto onde ela jamais poderá con-
duzir-nos, porque já é sempre aquele a partir do qual nunca
existe obra.
Talvez estejamos tornando as coisas fáceis demais quando,
ao reconstituir o movimento que é o de nossa vida ativa, ao con-
tentarmo-nos em invertê-lo, acreditamos dominar assim o movi­
mento do que chamamos arte. É a mesma facilidade que nos
faz encontrar a imagem ao falar do objeto, que nos faz dizer:
em primeiro lugar, temos o objeto, depois vem a imagem,
como se a imagem fosse apenas o distanciamento, a recusa, a
transposição do objeto. Do mesmo modo, gostamos de dizer que
a arte não reproduz as coisas do mundo, não imita o “real”, e
que a arte se encontra onde, a partir do mundo comum, o artis­
ta afastou pouco a pouco o que é utilizável, imitável, o que in­
teressa à vida ativa. A arte parece então o silêncio do mundo, o
silêncio ou a neutralização do que há de usual e de atual no
mundo, tal como a imagem é a ausência do objeto.
Assim descrito, esse movimento concedernos as facilidades
da análise comum. Essas facilidades permitem-nos crer que do­
minamos a arte, porque nos fornecem um meio de nos represen­
tarmos o ponto de partida do trabalho artístico. Representação
que, aliás, não responde à psicologia da criação. Jamais um ar­

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tista será capaz de elevar-se, através do uso que faz de um obje­
to no mundo, ao nível do quadro onde esse objeto tornou-se pin­
tura, jamais poderá bastar-lhe colocar esse uso entre parênte­
ses, neutralizar o objeto para entrar na liberdade do quadro.
Pelo contrário, é porque, por uma inversão radical, ele já per­
tence à exigência da obra que, ao olhar tal objeto, ele não se
contenta, em absoluto, em vê-lo tal como poderia ser se estives­
se fora de uso, mas faz do objeto o ponto por onde passa a exi­
gência da obra e, por conseguinte, o momento em que o possível
atenua-se, as noções de valor, de utilidade, se apagam, e o mun­
do “dissolve-se”. É porque o artista pertence já a um outro tem­
po, o outro do tempo, e saiu do trabalho do tempo, para expor-
se à experiência da solidão essencial, onde o fascínio ameaça, é
porque se aproximou desse “ponto”, que, respondendo à exi­
gência da obra, nessa pertença original, ele parece olhar de ma­
neira diferente os objetos do mundo usual, neutralizar neles o
uso, torná-los puros, elevá-los por uma estilização sucessiva ao
equilíbrio instantâneo onde se convertem em quadro. Por ou­
tras palavras, nunca ocorre uma elevação do “mundo” para a
arte, nem mesmo pelo movimento de recusa que descrevemos,
mas vai-se sempre da arte para o que parece serem as aparên­
cias neutralizadas do mundo •— e que, na realidade, só se apre­
sentam como tais sob o olhar domesticado que é geralmente o
nosso, esse olhar do espectador insuficiente, pregado ao mundo
dos fins e capaz, no máximo, de ir do mundo ao quadro.
Quem não pertence à obra como origem, quem não perten­
ce a esse outro tempo em que a obra se preocupa com sua es­
sência, jamais fará obra. Mas quem pertence a esse outro tempo,
pertence também à profundidade vazia da ociosidade onde do
ser ele nunca logrou fazer nada.
Para exprimirmos ainda de outra maneira: quando uma
fala conhecida demais parece reconhecer ao poeta o poder de
“dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, isso quer di­
zer que o poeta é aquele que, por um dom ou por um savoir-faire
criador, contentar-se-ia em fazer passar a linguagem “bruta ou
imediata” para a linguagem essencial, elevaria a nuhdade silen­
ciosa da fala corrente para o silêncio consumado do poema onde,
pela apoteose do desaparecimento, tudo está presente na ausên­
cia de tudo? Isso não poderia ser. Teria tanto sentido quanto
imaginar que escrever consiste somente em utilizar as palavras
usuais com mais mestria, uma memória mais rica ou um enten­
dimento mais harmonioso de seus recursos musicais. Escrever

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jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em tomá-
la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abor­
dar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dis­
simulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala,
linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, lingua­
gem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém
fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso
impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir.
Quando contemplamos as esculturas de Giacometti, há
um determinado ponto onde elas deixam de estar submetidas
às flutuações da aparência ou ao movimento da perspectiva.
Vemo-las de um modo absoluto. Já não reduzidas mas subtraí­
das à redução, irredutíveis e, no espaço, senhoras do espaço pe­
lo poder que têm de substituí-lo pela profundidade não mane-
jável, não viva, a do imaginário. Esse ponto, donde as vemos
irredutíveis, coloca-nos no infinito, é o ponto onde o infinito
coincide com lugar nenhum. Escrever é encontrar esse ponto.
Ninguém escreve se não produzir a linguagem apropriada para
manter ou suscitar o contato com esse ponto.

42
Ill

O ESPAÇO
E
A EXIGÊNCIA DA OBRA
A OBRA E A FALA ERRANTE

EM que consiste esse ponto?


Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos tra­
ços que a abordagem do espaço literário permitiu-nos reconhe­
cer. Aí, a linguagem não é um poder, não é o poder de dizer.
Não está disponível, não é o poder de dizer. Não está disponí­
vel, de nada dispomos nela. Nunca é a linguagem que eu falo.
Nela, jamais falo, jamais me dirijo a ti e jamais te interpelo.
Todos esses traços são de forma negativa. Mas essa negação so­
mente mascara o fato mais essencial de que, nessa linguagem,
tudo retoma à afirmação, que o que nega nela afirma-se. É que
ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa,
persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio
fala-se nela. O próprio da fala habitual é que ouvi-la faz parte
da sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a lingua­
gem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é
aquele que ouve uma linguagem sem entendimento.
Isso fala, mas sem começo. Isso diz, mas isso não remete
a algo a dizer, a algo de silencioso que o garantiría como seu
sentido. Quando a neutralidade fala, somente aquele que lhe
impõe silêncio prepara as condições do entendimento e, no en­
tanto, o que há para entender é essa fala neutra, o que sempre
já foi dito, não pode deixar de se dizer e não pode ser ouvido,
entendido.
Essa fala é essencialmente errante, estando sempre fora de
si mesma. Ela designa o de fora infinitamente distendido que
substitui a intimidade da fala. Assemelha-se ao eco, quando o
eco não diz apenas em voz alta o que é primeiramente murmu-

45
rado mas confunde-se com a imensidade sussurrante, é o silên­
cio convertido no espaço repercutente, o lado de fora de toda a
fala. Só que, aqui, o lado de fora está vazio, e o eco repete ante­
cipadamente, “profético na ausência de tempo”.

A necessidade de escrever

A necessidade de escrever está ligada à abordagem desse ponto


onde nada pode ser feito das palavras, donde se projeta a ilusão
de que, se for mantido o contato com esse momento, mas vol­
tando ao mundo da possibilidade, “tudo” poderá ser feito,
“tudo” poderá ser dito. Essa necessidade deve ser reprimida e
contida. Se não o for, torna-se tão ampla que não há mais lugar
nem espaço para que se realize. Só se começa a escrever quan­
do, momentaneamente, por um ardil, por um salto feliz ou pela
distração da vida, consegue-se driblar esse impulso que a con­
duta ulterior da obra deve despertar e apaziguar de modo inces­
sante, abrigar e afastar, dominar e sofrer sua força indomável,
movimento tão difícil e tão perigoso que todo escritor e todo
artista se surpreende, de cada vez, por tê-lo realizado sem
naufragar. E que muitos soçobram silenciosamente, ninguém
que tenha encarado o risco de frente pode duvidar disso. Não
são os recursos criativos que falam, se bem que, de todas as
maneiras, sejam insuficientes, mas é o mundo que, sob esse
impulso, se furta: o tempo perde então o seu poder de decisão;
nada mais pode realmente começar.
A obra é o círculo puro onde, enquanto escreve, o autor
expõe-se perigosamente à pressão que exige que ele escreva,
mas também se protege dela. Daí resulta ■—■ pelo menos em par­
te — o júbilo prodigioso, imenso, que é o de uma libertação,
como diz Goethe, de um confronto face a face com a onipotên­
cia solitária do fascínio, diante do qual se permanece de pé,
sem o trair e sem fugir dele, mas tampouco sem renunciar ao
seu domínio. Libertação que, é verdade, terá consistido em en-
cerrar-se fora de si.
Na maioria das vezes, diz-se do artista que este encontra
em seu trabalho um meio cômodo de viver subtraindo-se à se­
riedade da vida. Ele proteger-se-ia do mundo onde agir é difícil,
estabelecendo-se num mundo irreal sobre o qual reina sobera­
namente. É esse, com efeito, um dos riscos da atividade artísti­
ca: exilar-se das dificuldades do tempo e do trabalho no tempo

46
sem renunciar, porém, ao conforto do mundo nem às facilidades
aparentes de um trabalho fora do tempo. O artista dá, com
frequência, a impressão de um ser frágil que se enrosca as­
sustado na esfera fechada de sua obra, onde, falando com
sobranceria e agindo sem entraves, pode vingar-se de seus
fracassos na sociedade. Até mesmo Stendhal e Balzac fazem
surgir essa dúvida, e com muito mais razões Kafka ou Hõl-
derlin — e Homero é cego. Mas esse ponto de vista exprime
apenas um aspecto da situação. O outro aspecto é que o
artista que se oferece aos riscos da experiência que é a dele,
não se sente livre do mundo, mas privado do mundo, não
senhor de si mesmo mas ausente de si mesmo, e exposto a uma
exigência que, ao repeli-lo para fora da vida e de toda a vida,
torna-o vulnerável a esse momento em que nada pode fazer e
já não é ele próprio. Ê então que Rimbaud foge para o deserto
das responsabilidades da decisão poética. Enterra sua imagina­
ção e sua glória. Diz “adeus” ao “impossível” da mesma manei­
ra que Leonardo da Vinci e quase nos mesmos termos. Não re­
torna ao mundo, refugia-se nele e, pouco a pouco, seus dias
condenados doravante à aridez do ouro estendem sobre sua ca­
beça a proteção do esquecimento. Se é verdade que, segundo
testemunhos duvidosos, ele já não sofria nos últimos anos quan­
do se fazia alusão à sua obra ou se repetia, a seu propósito:
“Absurdo, ridículo, repugnante”, a violência de sua retratação,
a recusa em lembrar-se de si mesmo, mostra o terror que ainda
sente e a força do abalo que não pôde suportar até o fim. De­
serção, abdicação que se lhe censura, mas a censura é muito
fácil para quem não correu risco.
Na obra, o artista não se protege somente do mundo mas
da exigência que o atrai para fora do mundo. A obra doma e
submete momentaneamente esse “lado de fora”, restituindo-lhe
uma intimidade, ela impõe silêncio, confere uma intimidade de
silêncio a esse lado de fora sem intimidade e sem repouso que
é a fala da experiência original. Mas o que ela encerra é tam­
bém o que abre sem cessar, e a obra em curso expõe-se ou a re­
nunciar à sua origem, esconjurando-a mediante prestígios fáceis,
ou a reverter cada vez para mais perto dela, renunciando à sua
plena realização final. O terceiro risco é que o autor queira
conservar o contato com o mundo, consigo mesmo, com a fala
em que ele pode dizer “Eu”: quer porque, se se perder, a
obra também se perde, mas se permanece muito cautelosamen­

47
te ele mesmo, a obra é sua obra, exprime-o, seus dons, mas não
a exigência extrema da obra, a arte como origem.
Todo escritor, todo artista conhece o momento em que
é rejeitado e como que excluído pela obra em curso. Ela man-
tém-no à margem, está fechado o círculo em que ele não tem
mais acesso a si mesmo, onde ele, entretanto, está encerrado,
porque a obra, inacabada, não o solta. As forças não lhe faltam,
não se trata de um momento de esterilidade ou de fadiga, ou
então a fadiga nada mais é do que a forma assumida por essa
exclusão. Momento de surpreendente provação. O que o autor
vê é uma imobilidade fria da qual não pode desviar-se mas jun­
to à qual não pode permanecer, que é como um enclave, uma
reserva no interior do espaço, sem ar nem luz, onde uma parte
de si mesmo e, ainda mais, a sua verdade, sua verdade solitária,
sufocam numa separação incompreensível. E não pode deixar de
errar em tomo dessa separação, quando muito pode comprimir-
se fortemente contra a superfície para além da qual apenas dis­
tingue um tormento vazio, irreal e eterno, até o instante em
que, por uma manobra inexplicável, uma distração, ou pelo ex­
cesso de sua expectativa, reencontra-se de súbito no interior do
círculo, une-se-lhe e reconcilia-se com a sua lei secreta.
Uma obra está concluída, não quando o é, mas quando
aquele que nela trabalha do lado de dentro pode igualmente
terminá-la do lado de fora, já não é retido interiormente pela
obra, aí é retido por uma parte de si mesmo da qual se sente
livre e da qual a obra contribuiu para libertá-lo. Esse desfecho
ideal nem sempre, entretanto, está plenamente justificado. Mui­
tas obras nos comovem porque ainda vemos nelas a marca do
autor, que se afastou dela apressadamente demais, na impaci­
ência de terminá-la, no temor de, se não a concluísse, não poder
voltar à luz do dia. Nessas obras, excessivamente grandes, maio­
res do que aquele que as assina, sempre se deixa entrever o
momento supremo, o ponto quase central onde se sabe que se
o autor aí se mantiver, morrerá debruçado sobre a tarefa. É a
partir desse ponto mortal que se vê os grandes criadores viris
afastarem-se, mas lentamente, quase discretamente, a voltarem
num passo uniforme à superfície que o traçado regular e firme
do sulco permite em seguida arredondar segundo as perfeições
da esfera. Mas quantos outros, pela atração irresistível do cen­
tro, só podem desprender-se com uma violência sem harmonia,
quantos deixam em sua esteira cicatrizes de feridas mal fecha­

48
das, os traços de suas sucessivas fugas, de seus regressos incon-
solados, de seu vaivém aberrante. Os mais sinceros deixam ao
abandono o que eles próprios abandonaram. Outros escondem
as ruínas e essa dissimulação torna-se a única verdade de seus
livros.
O ponto central da obra como origem, aquele que não se
pode atingir, o único, porém, que vale a pena atingir.
Esse ponto é a exigência soberana, do qual não se pode
aproximar a não ser pela realização da obra mas do qual, tam­
bém, é sua abordagem que faz a obra. Quem se preocupa tão-
somente com brilhantes êxitos está, no entanto, em busca desse
ponto onde nada pode ser coroado de êxito. E quem escreve
com a preocupação exclusiva da verdade já ingressou na zona
de atração desse ponto donde o verdadeiro é excluído. Certo,
por não se sabe que sorte ou que falta de sorte, sofre-se-lhe a
pressão sob uma forma quase pura: eles aproximaram-se como
que por acaso desse instante e, onde quer que vão, o que
quer que façam, ele os retém. Exigência imperiosa e vazia, a
qual se exerce o tempo todo e os atrai para fora do tempo. Es­
crever, eles não o desejam, a glória é-lhes vã, a imortalidade das
obras desagrada-lhes, as obrigações do dever são-lhes estranhas.
Viver na paixão feliz dos seres, eis o que eles preferem — mas
de suas preferências ele não se dá conta, e são postos à margem,
impelidos para a solidão essencial de que só se desprendem es­
crevendo um pouco.
Conhece-se a história daquele pintor a quem o seu mece­
nas tinha que encerrar para impedir que ele dissipasse lá fora
seus dons e, mesmo assim, lograva escapar por uma janela. Mas
o artista possui também em seu íntimo o seu “mecenas”, que o
encerra onde ele não pode permanecer, e desta vez sem qual­
quer saída, que além disso não o alimenta mas o esfomeia, es­
craviza-o sem honra, quebra-o sem razão, faz dele um ser débil
e miserável sem outro sustento senão o seu próprio e incompre­
ensível tormento, e por quê? em vista de uma obra grandiosa?
em vista de uma obra nula? ele próprio nada sabe e ninguém o
sabe.
É verdade que muitos criadores parecem mais fracos do
que os outros homens, menos capazes de viver e, por conseguin­
te, mais suscetíveis de se espantar com a vida. Talvez isso assim
seja com frequência. Mas conviría acrescentar que eles são for­
tes no que têm de fraco, que para eles surge uma força nova

49
nesse mesmo ponto em que se desfazem na extremidade de sua
fraqueza. E cumpre dizer mais ainda: quando eles metem mãos
à obra na despreocupação de seus dons, muitos são seres nor­
mais, amáveis, de bem com a vida, e é somente à obra, à exigên­
cia que está na obra, que eles devem esse acréscimo que só se
mede pela maior fraqueza, uma anomalia, a perda do mundo e
de si mesmos. Assim Goya, assim Nerval.
A obra exige do escritor que ele perca toda a “natureza”,
todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros
e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, converta-se no lu­
gar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal. Exigência
que não é uma, porquanto nada exige, é desprovida de conteú­
do, não obriga, é tão-só o ar que se deve respirar, o vazio sobre
o qual se paira, a usura do dia onde se tomam invisíveis os ros­
tos que se prefere. Como os homens mais corajosos só enfren­
tam o risco sob o manto de um subterfúgio, muitos pensam que
responder a esse apelo é responder a um apelo de verdade: eles
têm algo a dizer, um mundo dentro deles a libertar, um manda­
to a assumir, suas vidas injustificáveis a justificar. E é verdade
que se o artista não se entregasse à experiência original que o
coloca à margem, que esse distanciamento o despoja de si mes­
mo, se ele não se abandonasse ao descomedimento do erro e à
migração do recomeço infinito, a palavra recomeço perder-se-ia.
Mas essa justificação não se apresenta ao artista, não é dada na
experiência, pelo contrário, é excluída desta — e o artista pode
muito bem sabê-lo “em geral”, do mesmo modo que crê na arte
em geral, mas sua obra não o sabe e sua busca ignora-o, e pros­
segue na preocupação dessa ignorância.

KAFKA E A EXIGÊNCIA DA OBRA

Alguém põe-se a escrever, determinado pelo desespero. Mas o


desespero nada pode determinar, “ele sempre e de imediato su­
plantou o seu objetivo” (Kafka, Diário, 1910). E, do mesmo mo­
do, escrever só poderia ter sua origem no “verdadeiro” desespe­

50
ro, aquele que a nada convida e desvia de tudo e, em primeiro
lugar, retira a quem escreve sua caneta. Isso significa que os
dois movimentos nada têm de comum a não ser sua própria in-
determinação, portanto, que só têm de comum o modo interro­
gativo, o único em que é possível apreendê-los. Ninguém pode
dizer a si mesmo, “Eu estou desesperado”, mas “Tu estás deses­
perado?”, e ninguém pode afirmar, “Eu escrevo”, mas somente
“Tu escreves? Sim? Escreverás?”
O caso de Kafka é confuso e complexo.1 A paixão de
Hõlderlin é pura paixão, ela atrai-o para fora de si mesmo por
uma exigência que não tem outro nome. A paixão de Kafka
também é puramente literária mas nem sempre e nem o tempo
todo. A preocupação de salvação é nele imensa, tanto mais
forte porquanto é desesperada, tanto mais desesperada porque

1 Quase todos os textos citados nas páginas que se seguem são extraí­
dos da edição completa do Diário de Kafka, a qual reproduz os 13 ca­
dernos in quarto em que, de 1910 a 1923, Kafka escreveu tudo o que
lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre
esses acontecimentos, descrição de pessoas e lugares, descrição de seus
sonhos, relatos iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não
é apenas um “Diário” como se entende hoje em dia, mas o próprio
movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo
e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra. É
sob essa perspectiva que o Diário deve ser lido e interrogado.
Max Brod afirma que fez apenas algumas supressões insignifican­
tes; não há razões para duvidar disso. Em contrapartida, ele está con­
vencido de que Kafka, em vários momentos decisivos destruiu grande
parte de suas notas. E, depois de 1923, o Diário falta por completo.
Ignoramos se os manuscritos destruídos a seu pedido por Dora Dymant
compreendiam a continuação de seus cadernos: é muito provável. Cum­
pre dizer, pois, que depois de 1923 Kafka toma-se-nos desconhecido,
pois sabemos que aqueles que melhor o conheciam julgavam-no de um
modo muito diferente do que ele se imaginava ser para si mesmo.
O Diário (que os cadernos de viagem completam) quase nada nos
revela de suas opiniões sobre os grandes temas que poderiam interessar-
lhe. O Diário fala-nos de Kafka nessa fase anterior em que ele ainda
não tem opiniões e em que mal se vislumbra um Kafka. Tal é o seu
valor essencial. O livro de G. Janouch (Conversations avec Kajka,
trad, na França com o título Kafka m’a dif) permite-nos, pelo contrário,
ouvir Kafka ao sabor de conversações mais cotidianas, em que fala
tanto do futuro do mundo quanto do problema judaico, do sionismo,
das formas religiosas e, por vezes, de seus livros. Janouch conheceu
Kafka em 1920, em Praga. Começou quase de imediato tomando nota
das conversas que descreve e Brod confirmou a fidelidade de tal eco.
Mas, para não haver enganos sobre o alcance desses depoimentos, cum­
pre lembrar que eles foram feitos a um jovem de 17 anos, cuja juven­

51
é sem compromisso. Essa preocupação passa, sem dúvida, com
uma surpreendente constância pela literatura e confunde-se com
ela por largo tempo, depois passa de novo por ela mas já não
se perde nela, tende a servir-se dela e, como a literatura jamais
aceita converter-se num meio e Kafka sabe-o, daí resultam con­
flitos obscuros, mesmo para ele, ainda mais para nós, e uma
evolução difícil de esclarecer mas que, no entanto, nos elucida.

O jovem Kafka

Kafka não foi sempre o mesmo. Até 1912, seu desejo de escre­
ver é enorme, dá lugar a obras que não o persuadem de seus
dotes, e ainda menos o persuadem de que possua uma cons­
ciência direta deles: forças selvagens, de uma plenitude devas­
tadora, que ele quase não explora, por falta de tempo, mas
também porque nada pode fazer delas, porque “teme esses
momentos de exaltação, tanto quanto os deseja”. Sob muitos
aspectos, Kafka assemelha-se então a todo jovem em que
desperta o gosto de escrever, que reconhece estar aí a sua vo­
cação, que reconhece as exigências nela implícitas e não tem
qualquer prova de que esteja à altura de satisfazê-las. O indí­
cio mais claro de que ele é, em certa medida, um jovem escri­
tor como os outros, é esse romance que começa a escrever
em colaboração com Brod. Tal partilha de sua solidão mostra
que Kafka ainda vagueia em tomo dela. Apercebe-se muito
rapidamente disso, como indica esta nota do Diário: “Max e
eu profundamente diferentes. Ora admiro seus escritos quando
estão diante de mim como um todo inacessível ao meu alcance
e a todo o alcance. . ora cada frase que ele escreve para
Ricardo e Samuel me parece ligada, de minha parte, a uma
concessão que me repugna e que experimento dolorosamente
até ao fundo de meu ser. Pelo menos hoje” (novembro de
1911).

tude, inocência e espontaneidade confiante comoveram Kafka mas


também o levaram, sem dúvida, a suavizar seus pensamentos, a fim
de não os tomar perigosos para uma alma tão jovem. Kafka, amigo
escrupuloso, receou frequentemente perturbar seus amigos com a ex­
pressão de uma verdade que só era desesperadora para ele. Isso não
significa que ele não diga o que pensa, mas que diz, por vezes, o que
não pensa profundamente.

52
Até 1912, se não se consagra por inteiro à literatura, dá-se
esta desculpa: “Nada posso arriscar enquanto não tiver reali­
zado um trabalho maior, capaz de me satisfazer plenamente.”
Essa prova é-lhe proporcionada na noite de 22 de setembro de
1912, a noite em que ele escreve de uma penada A Sentença e
que o avizinha de maneira decisiva daquele ponto em que
lhe parece que “tudo pode exprimir-se, que para tudo, para
as idéias mais estranhas, está pronto um grande fogo no qual
elas perecem e desaparecem”. Pouco depois, lê esse conto aos
seus amigos, leitura que o confirma: “Tinha lágrimas nos olhos.
O caráter indubitável da história confirmava-se.” (Essa necessi­
dade de ler aos amigos, frequentemente às irmãs dele, até ao
pai, o que acabara de escrever, pertence também à região mé­
dia. Nunca a renunciará por completo. Não é vaidade literá­
ria — embora ele próprio a denuncie — mas uma necessidade
de embate físico com sua obra, de se deixar empolgar, impelir
por ela, fazendo-a revelar-se no espaço vocal que seus grandes
dotes de leitor lhe conferem o poder de suscitar.)
Kafka sabe agora que pode escrever. Mas esse saber não é
simples, esse poder não é o dele. Com raras exceções, nunca
encontra no que escreve a prova de que escreve verdadeira­
mente. É quando muito um prelúdio, um trabalho de aproxi­
mação, de reconhecimento. Sobre A Metamorfose, diz ele:
“Acho-o ruim; talvez eu esteja definitivamente perdido”, ou,
mais tarde: “Grande aversão por A Metamorfose. Final ilegí­
vel. Quase radicalmente imperfeito. Teria sido muito melhor,
se eu não tivesse sido perturbado pela viagem de negócios”
(19 de janeiro de 1914).

O conflito

Esta última passagem alude ao conflito com que Kafka se choca


e se divide. Ele tem uma profissão, uma família. Pertence ao
mundo e deve pertencer-lhe. O mundo dá o tempo mas faz dele
V ’•jU’-'l, n+a 1O1^
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de comentários desesperados, onde se repetem os pensamentos
suicidas, porque lhe falta o tempo: o tempo, as forças físicas,
a solidão, o silêncio. Sem dúvida, as circunstâncias exteriores
não lhe são favoráveis, deve trabalhar pela tarde ou à noite,
o sono perturba-o, a inquietação esgota-o, mas seria ocioso acre­
ditar que o conflito teria podido desaparecer mediante “uma

53
melhor organização das coisas”. Mais tarde, quando a doença
lhe propicia o ócio, o conflito subsiste, agrava-se, muda de for­
ma. Não há circunstâncias favoráveis. Mesmo que dê “todo o
seu tempo” à exigência da obra, “todo” ainda não é bastante,
pois não se trata de consagrar o tempo ao trabalho, de passar
o tempo escrevendo, mas de passar para um outro tempo onde
não existe mais trabalho, de se aproximar desse ponto em que
o tempo está perdido, onde se ingressa no fascínio e na solidão
da ausência de tempo. Quando se tem o tempo todo, não se tem
mais tempo, e as circunstâncias exteriores “amistosas” conver­
teram-se — inamistosas — na inexistência de circunstâncias.
Kafka não pode ou não aceita escrever “em pequenas
quantidades” no inacabamento de momentos separados. É o
que lhe foi revelado na noite de 22 de setembro quando, tendo
escrito de uma assentada, recuperou em sua plenitude o movi­
mento ilimitado que o leva a escrever: “Só assim é possível
escrever, com uma tal continuidade, uma abertura tão comple­
ta do corpo e da alma.” E mais tarde (8 de dezembro de 1914):
“Vejo de novo que tudo o que é escrito por fragmentos, e não
de enfiada no decorrer da maior parte da noite, ou da noite
inteira, tem menos valor, e que estou condenado pelo meu
gênero de vida a esse menor valor.” Aí temos uma primeira
explicação para tantos relatos abandonados sobre os quais o
Diário, em seu estado atual, nos revela destroços impressio­
nantes. Com muita frequência, “a história” não vai além de
algumas linhas, ora atinge rapidamente coerência e densidade e,
no entanto, ao fim de uma página, detém-se, ora desenvolve-se
ao longo de várias páginas, afirma-se, estende-se — e, no en­
tanto, pára. Há para isso muitas razões mas, em primeiro lu­
gar, Kafka não encontra no tempo de que dispõe a extensão
que permitiría à história desenvolver-se, segundo ela quer, em
todas as direções: a história nunca é mais do que um fragmen­
to, depois outro fragmento. “Como, a partir de pedaços, posso
fundir uma história capaz de ganhar impulso e desenvolver-se?”
De modo que, não tendo sido dominada, não tendo suscitado o
espaço adequado onde a necessidade de escrever é simultanea­
mente reprimida e exprimida, a história desencadeia-se, extravia-
se, junta-se à noite donde saiu e aí retém dolorosamente aquele
que não soube dar-lhe a luz do dia.
Kafka precisava de mais tempo mas necessitava também
de menos mundo. O mundo é, em primeiro lugar, sua famí­
lia, cujas coerções ele dificilmente suporta, sem que consiga
jamais libertar-se delas, é, em seguida, sua noiva, seu desejo
essencial de cumprir a lei que manda o homem realizar o seu
destino no mundo, tenha uma família, filhos, pertença à comu­
nidade. Aí, o conflito assume uma aparência nova, entra numa
contradição que a situação religiosa de Kafka torna especial­
mente forte. Quando, em torno de seu noivado anunciado, des­
feito, renovado com F.B., ele examina infatigavelmente, com
uma tensão cada vez maior, “tudo o que é pró ou contra o
meu casamento”, esbarra sempre com esta exigência: “A minha
única aspiração e a minha única vocação.. . é a literatura. • .
Tudo o que eu fiz nada mais é do que um resultado da soli­
dão. .. ao passo que nunca mais estaria então só. Isso não,
isso não.” Durante seu noivado em Berlim: “Estava manietado
como um criminoso; se me tivessem jogado para um canto com
grilhões de verdade, os gendarmes à minha frente. . . isso não
teria sido pior. E era o meu noivado, e todos se esforçavam
por me conduzir à vida e, não o conseguindo, por me suportar
como eu era.” Pouco depois desfaz-se o noivado, mas a aspira­
ção subsiste, o desejo de uma vida “normal”, em que o tormen­
to por ter ferido alguém que lhe é próximo se impregna de uma
força dilacerante. Comparou-se, e o próprio Kafka o fez, a sua
história com a do noivado de Kierkegaard. Mas o conflito é
diferente. Kierkegaard pôde renunciar a Regine, pôde renunciar
ao estágio ético: o acesso ao estágio religioso não foi compro­
metido, pelo contrário, foi facilitado. Mas Kafka, se abandona
a felicidade terrena de uma vida normal, abandona também a
firmeza de uma vida justa, coloca-se fora da lei, priva-se do
solo e da base sólida de que necessita para ser e, numa certa
medida, priva-se da lei. é o eterno dilema de Abraão. O que é
exigido a Abraão não é somente que sacrifique seu filho mas o
próprio Deus: o filho é o futuro de Deus na terra, porquanto
é o tempo que, na verdade, é a Terra Prometida, a verdadeira,
a única morada do povo eleito e de Deus em seu povo. Ora,
Abraão, ao sacrificar seu filho único, deve sacrificar o tempo, e
o tempo sacrificado não lhe será dado, por certo, na eternidade
do além: no além nada mais existe senão o futuro, o futuro de
Deus no tempo. O além é Isaac.
A prova, para Kafka, é mais pesada do que tudo o que lhe
toma leve (o que seria a prova de Abraão se, não tendo filho,
lhe fosse exigido, porém, o sacrifício desse filho? Não poderia
ser levado a sério, só se poderia rir disso, riso que é a forma
da dor de Kafka). Assim, o problema é tal que se esquiva àque-

55
le que, em sua indecisão, procura sustentá-lo. Outros escritores
conheceram conflitos semelhantes: Hõlderlin luta contra a mãe
que queria vê-lo tornar-se pastor, não pode ligar-se a uma tare­
fa determinada, não pode ligar-se àquela que o ama e ama
precisamente aquela a quem não pode ligar-se, conflitos que
sente em toda a sua força e que, em parte, o dilaceram mas
jamais inculpam a exigência absoluta da fala poética, fora da
qual, pelo menos a partir de 1800, ele já não possui existência.
Para Kafka, tudo é mais confuso, porque ele procura confun­
dir a exigência da obra e a exigência que poderia trazer o nome
de sua salvação. Se escrever o condena à solidão, faz de sua
existência a existência de um celibatário, sem amor e sem vín­
culos, se, entretanto, escrever parece-lhe ser — pelo menos
com freqüência e durante largo tempo — a única atividade que
poderia justificá-lo, é porque, de todos os modos, a solidão amea­
ça nele e fora dele, é porque a comunidade não passa de um
fantasma e a lei que ainda fala nela nem mesmo é a lei esque­
cida mas a dissimulação do esquecimento da lei. Escrever con­
verte-se, então, no seio do desamparo e da fraqueza de que esse
movimento é inseparável, numa possibilidade de plenitude,
num caminho sem objetivo capaz de corresponder, talvez, a esse
objetivo sem caminho que é o único que cumpre atingir.
Quando não escreve, Kafka está não somente só, “só como
Franz Kafka”, dirá ele a G. Janouch, mas numa solidão estéril,
fria, de uma frialdade petrificante a que chama hebetude e
que parece ter sido a grande ameaça por ele temida. O pró­
prio Brod, tão cioso de fazer de Kafka um homem sem anoma­
lias, reconhece que ele está, por vezes, como que ausente e
como que morto. Muito semelhante, uma vez mais, a Hõlder­
lin, ao ponto de ambos, para se queixarem de si mesmos, em­
pregarem as mesmas palavras; Jdõlderlin: “Estou entorpecido,
sou de pedra”, e Kafka: “Minha incapacidade para pensar,
observar, constatar, para me recordar, para falar e participar
da vida dos outros, toma-se cada vez maior; viro pedra...
Se não me salvo pelo trabalho, estou perdido” (28 de julho
de 1914).

A salvação pela literatura

“Se não me salvo pelo trabalho. . .” Mas por que esse trabalho
poderia salvá-lo? Parece que Kafka teria precisamente reconhe-

56
cido nesse terrível estado de autodissolução, onde está perdido
para os outros e para si mesmo, o centro de gravidade da exi-
i gência de escrever. Onde ele se sente destruído até ao fundo
nasce a profundidade que substitui a destruição pela possibili­
dade da criação suprema. Maravilhosa reviravolta, esperança
sempre igual ao maior desespero, e como se compreende que,
dessa experiência, ele extrai um movimento de confiança que
não questionará de bom grado. O trabalho toma-se então, so­
bretudo em seus anos de juventude, como que um meio de
salvação psicológica (ainda não espiritual), o esforço de uma
criação que “possa estar vinculada, palavra por palavra, à sua
vida, que ele atrai a si para que ela o retire de si mesmo”, o
, que ele exprime do modo mais cândido e mais forte nestes ter-
| [ mos: “Tenho hoje um grande desejo de pôr para fora de mim,
I escrevendo, todo o meu estado ansioso e, tal como chega das
i profundezas do meu íntimo, introduzi-lo na profundidade do
I papel, de tal sorte que possa introduzir inteiramente em mim
a coisa escrita” (8 de dezembro de 1911).2 Por mais sombria
que possa vir a ser, essa esperança jamais será totalmente des­
mentida, e encontraremos sempre no seu Diário, em todas as
épocas, apontamentos deste gênero: “A firmeza que me pro­
porciona a menor coisa escrita é indubitável e maravilhosa. O
olhar com que ontem, durante o passeio, abraçava tudo num só
golpe de vista!” (27 de novembro de 1913). Escrever não é
nesse momento, um apelo, a expectativa de uma graça ou um
obscuro cumprimento profético, mas algo mais simples e pre­
mente, de um modo mais imediato: a esperança de não su­
cumbir ou, mais exatamente, de soçobrar mais depressa do que
ele próprio e, assim, recuperar-se no último momento. Dever
mais premente, portanto, do que todos os outros, e que o leva
a escrever em 31 de julho de 1914 estas palavras extraordiná­
rias: “Não tenho tempo. É a mobilização geral. K. e P. são
convocados. Agora recebo o salário da solidão. É, apesar de
tudo, um salário minguado. A solidão só traz punições. Não
importa, sou pouco afetado por toda essa miséria e mais deci­
dido do que nunca... Escreverei a despeito de tudo, a todo o
custo: é o meu combate pela sobrevivência.”

2 Kafka acrescenta: “Não é um desejo artístico.”

57
Mudança de perspectiva

Entretanto, é o abalo da guerra, mas ainda mais a crise aberta


por seu noivado, o movimento e o aprofundamento do ato de
escrever, as dificuldades com que se defronta, é a sua situação
infeliz em geral, que vão pouco a pouco elucidar de maneira
diferente a existência do escritor que existe nele. Essa mu­
dança é afirmada, não culmina numa decisão, é apenas uma
perspectiva pouco nítida, mas existem, no entanto, certos indí­
cios: em 1914, por exemplo, ele ainda está apaixonadamente,
desesperadamente voltado para esse único objetivo, encontrar
alguns instantes para escrever, conseguir quinze dias de li­
cença que serão empregados apenas em escrever, subordinar
tudo a essa única, a essa suprema exigência; escrever. Mas em
1916, se volta a pedir uma licença, é para alistar-se. “O dever
imediato e sem condições: tomar-me soldado”, projeto que não
terá seguimento mas não importa, o desejo que estava no seu
centro mostra como Kafka já estava longe do “Escreverei a
despeito de tudo” do dia 31 de julho de 1914. Mais tarde,
pensará seriamente em juntar-se aos pioneiros do sionismo e
ir para a Palestina. Di-lo a Janouch: “Sonhava em partir para
a Palestina como operário ou trabalhador agrícola.”
“Você abandonaria tudo aqui?”
“Tudo, para encontrar uma vida repleta de sentido, na
segurança e na beleza.”
Mas Kafka, estando já doente, o sonho não passa de um
sonho, e nunca saberemos se ele teria podido, como um outro
Rimbaud, renunciar à sua única vocação pelo amor de um de­
serto onde teria encontrado a segurança de uma vida justificada
— nem se a teria aí encontrado. De todas as tentativas a que
se dedica a fim de orientar sua vida de um modo diferente, ele
mesmo dirá que são apenas tentativas frustradas, outros tantos
raios que eriçam de pontas o centro desse círculo inacabado
que é sua vida. Em 1922, ele enumera todos os seus projetos
onde só vê outros tantos fracassos: piano, violino, línguas, estu­
dos germânicos, anti-sionismo, sionismo, estudos hebraicos, jar­
dinagem, marcenaria, literatura, tentativas de casamento, resi­
dência independente, e acrescenta; “Quando me aconteceu
impelir o meu raio de ação um pouco mais longe do que o
habitual, estudos de direito ou noivado, tudo era pior quando
mais representava meu esforço para ir mais longe” (13 de ja­
neiro de 1922).

58
Seria despropositado extrair de notas passageiras as afir­
mações absolutas que elas contêm, e ainda que ele mesmo o
esqueça aqui, não se pode esquecer que Kafka nunca deixou
de escrever, que escreverá até o fim. Mas entre o jovem que
dizia àquele a quem considerava como seu futuro, “Eu nada
_mais__sou_^enão literatura, e não posso nem quero .ser..outra
coisa”, e o homem maduro que, dez anos depois, colocava a
literatura no mesmo plano de seus pequenos ensaios de jardi­
nagem, a diferença é grande, mesmo que exteríormente a força
de escritor permaneça a mesma, parecendo até mais rigorosa e
mais precisa perto do fim, aquela a que devemos O Castelo.
Donde provém essa diferença? Dizê-lo seria assenhorear-
mo-nos da vida interior de um homem infinitamente reservado,
secreto até para seus amigos e, aliás, pouco acessível a ele mes­
mo. Ninguém pode pretender reduzir a um certo número de
afirmações precisas o que não podia atingir, para ele, a trans­
parência de uma fala compreensível. Seria necessário, além
disso, uma comunidade de intenções que é impossível. Pelo
menos, não se cometerão, sem dúvida, erros exteriores ao dizer
que, embora a confiança dele nos poderes da arte tenha, com
freqüência, continuado grande, sua confiança nos próprios po­
deres, postos sempre e cada vez mais à prova, esclarece-o sobre
essa prova, sobre a sua exigência, esclarece-o, sobretudo, sobre
o que ele próprio exige da arte: não mais dar à sua pessoa rea­
lidade e coerência, isto é, salvá-lo da loucura, mas salvá-lo da
perdição, e quando Kafka pressentir que, banido deste mundo
real, ele talvez já seja cidadão de um outro mundo onde tem
que lutar não somente por si mesmo mas também por esse outro
mundo, então escrever apresentar-se-lhe-á apenas como um meio
de luta, ora decepcionante, ora maravilhoso, que ele pode per­
der sem tudo perder.
Comparem-se estas duas notas. A primeira é de janeiro de
1912: “É preciso reconhecer em mim uma concentração muito
boa na atividade literária. Quando o meu organismo se deu
conta de que escrever era a direção mais fecunda do meu ser,
tudo para aí se dirigiu e foram abandonadas todas as outras
capacidades, aquelas que têm por objetivo os prazeres do sexo,
da bebida, da comida, da meditação filosófica e, sobretudo, da
música. Emagrecí em todas as direções. Era necessário, porque
as minhas forças, mesmo reunidas, eram tão escassas que só
podiam alcançar pela metade o objetivo de escrever... A
compensação de tudo isso é clara. Bastar-me-á rejeitar o tra­

59
balho de escritório — estando concluído o meu desenvolvimen­
to e não tendo eu próprio mais nada a sacrificar, até onde me
é possível enxergar — para começar a minha vida real, na qual
o meu rosto poderá, enfim, envelhecer de maneira natural, se­
gundo os progressos do meu trabalho.” A leveza da ironia não
deve, sem dúvida, enganar-nos, mas essa leveza, essa despreo­
cupação, no entanto sensíveis, esclarecem por contraste a tensão
desta outra nota, cujo sentido é aparentemente o mesmo (datada
de 6 de agosto de 1914): “Do ponto de vista da literatura, o
meu destino é muito simples. O sentido que me leva a repre­
sentar os devaneios da minha vida interior repeliu tudo o mais
para a esfera do acessório, e tudo isso definhou terrivelmente,
não pára de definhar. Nenhuma outra coisa poderá jamais sa­
tisfazer-me. Mas, agora, a minha força de representação escapa
a todos os cálculos; talvez tenha desaparecido para sempre;
talvez ainda retorne um dia; as circunstâncias de minha vida
não lhe são naturalmente favoráveis. Assim é que vacilo, que
arremeto incessantemente para o cume da montanha, onde mal
posso manter-me um instante sequer. Outros também vacilam
mas em regiões mais baixas, com forças bem maiores; se amea­
çam despencar, há sempre um familiar, o pai, a mãe, que os
amparam e que, com esse intuito, caminham junto deles. Mas,
eu, é lá no alto que vacilo; infelizmente não é a morte mas
os tormentos eternos do Morrer.”
Cruzam-se aqui três movimentos. Uma afirmação: “Ne­
nhuma outra coisa (senão a literatura) poderá jamais satisfa­
zer-me.” Uma dúvida sobre si, ligada à essência inexoravelmente
incerta de seus dons, a qual “frustra todos os cálculos”. O senti­
mento de que essa incerteza — o fato de que escrever nunca
é um poder de que se disponha — pertence ao que existe de
mais extremo na obra, exigência central, mortal, que “infeliz­
mente não é a morte”, que é a morte mas mantida a distância,
os “tormentos eternos do Morrer”.
Pode-se dizer que esses três movimentos constituem, por
suas vicissitudes, a provação que esgota em Kafka a fidelidade
à sua vocapão única”, a nual, coincidente com as preocupações
religiosas, leva-o a ler nessa exigência única uma coisa diferente
do que ela é, uma outra exigência que tende a subordiná-la ou,
pelo menos, a transformá-la. Quanto mais Kafka escreve, menos
seguro ele está de escrever. Por vezes, tenta readquirir segu­
rança pensando que, “uma vez recebido o conhecimento da arte
de escrever, isso não poderá mais faltar nem soçobrar, mas

60
também, embora raramente, surge alguma coisa que excede a
medida”. Consolação sem força: quanto mais ele escreve, mais
se aproxima desse ponto extremo para o qual a obra tende como
para a sua origem, mas que aquele que a apresenta só pode
ver como a profundidade vazia do indefinido. “Não posso mais
continuar a escrever. Estou no limite definitivo, diante do qual
talvez deva permanecer de novo durante anos, antes de poder
recomeçar uma nova história que, uma vez mais, ficará inaca­
bada. Esse destino me persegue” (30 de novembro de 1914).
Parece que em 1915-1916, por fútil que seja querer datar
um movimento que escapa ao tempo, cumpre-se a mudança de
perspectiva. Kafka reatou com sua antiga noiva. Essas relações,
que culminaram em 1917 em noivado, de novo, e logo em se­
guida terminaram com a doença que então se declara, lançam-
no em tormentos que não pode superar. Descobre sempre, cada
vez com maior acuidade, que não sabe viver sozinho e que não
pode viver com outros. O que há de culpável na sua situação,
em sua existência entregue ao que ele chama os vícios buro­
cráticos, mesquinhez, indecisão, espírito calculista, domina-o
e obceca-o. É preciso escapar, custe o que custe, a essa buro­
cracia, e para isso já não pode contar com a literatura, pois esse
trabalho esquiva-se-lhe, pois esse trabalho tem sua participação
na impostura da irresponsabilidade, pois o trabalho exige a so­
lidão mas é também aniquilado por ela. Daí resulta a decisão:
“Fazer-se soldado”. Ao mesmo tempo aparecem no Diário
alusões ao Antigo Testamento, fazem-se ouvir os gritos de um
homem perdido: “Toma-me em teus braços, é o abismo, acolhe-
me no abismo; se recusas agora, então mais tarde.” “Toma-me,
toma-me, a mim, que nada mais sou do que um entrelaçamento
de loucura e dor.” “Tende piedade de mim, sou um pecador
em todos os recessos do meu ser. . . Não me rejeites entre os
perdidos.”
Traduziram-se outrora em edições francesas alguns desses
textos acrescentando-lhes a palavra Deus. Ela não figura aí. A
palavra Deus quase nunca aparece no Diário e nunca de um
modo significativo. Isso não significa que essas invocações, em
sua incerteza, não tenham uma direção religiosa, mas que cum­
pre conservar a força dessa incerteza e não privar Kafka do
espírito de reserva de que ele sempre deu prova a respeito do
que lhe era mais importante. Essas palavras de desamparo, de
impotência, são de julho de 1916 e correspondem a uma estada
em Marienbad com F. B. Estada no início pouco feliz mas que,

61
finalmente, os aproximará intimamente. Um ano mais tarde,
está noivo de novo; um mês depois, cospe sangue; em setem­
bro, deixa Praga, mas a doença ainda é moderada e só se tor­
nará ameaçadora (parece) a partir de 1922. Ainda em 1917
escreve os “Aforismos”, único texto em que a afirmação espiri­
tual (sob uma forma geral que não o preocupa em particular)
escapa, por vezes, à experiência de uma transcendência negativa.
Nos anos que se seguem, o Diário é praticamente omisso.
Nem uma palavra em 1918. Algumas linhas em 1919, quando
fica noivo de uma jovem a cujo respeito quase nada sabemos.
Em 1920 conhece Milena Jesenska, uma jovem tcheca sensível,
inteligente, capaz de uma grande liberdade de espírito e de
paixão, com quem durante dois anos se liga por um sentimento
violento, no início repleto de esperança e felicidade, mais tarde
condenado à frustração e ao desespero. O Diário toma-se de
novo mais importante em 1921 e, sobretudo, em 1922, onde as
vicissitudes dessa amizade, enquanto a enfermidade se agrava,
levam-no a um ponto de tensão em que seu espírito parece
oscilar entre a loucura e a decisão de salvação. Cumpre, neste
ponto, fazer duas longas citações. O primeiro texto é datado
de 28 de janeiro de 1922:
“Um pouco inconsciente, cansado de patinar. Ainda exis­
tem armas, tão raramente empregadas, e abro caminho com
tanta dificuldade até elas, porque não conheço a alegria de me
servir delas, porque, criança, não aprendi. Não o aprendi, não
somente ‘pela culpa do pai’ mas também porque quis destruir
‘o repouso’, perturbar o equilíbrio e, por conseguinte, não tinha
o direito de deixar renascer alguém que, por outro lado, me
esforçava por enterrar. É verdade, reverto aí à ‘culpa’, já que
por que razão queria sair do mundo? Porque ‘ele’ não me
deixava viver no mundo, em seu mundo. Naturalmente, hoje,
não posso já julgá-lo tão claramente, pois agora já sou cidadão
nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma
relação do deserto com as terras cultivadas (durante quarenta
anos vaguei fora de Canaã), e é como um estrangeiro que
olho para trás; sem dúvida, nesse outro mundo, não sou eu
também o menor e o mais ansioso (levei isso comigo,
é a herança paterna), e se aí sou capaz de viver é apenas em
virtude da organização apropriada aí existente e segundo a qual,
até para os mais íntimos de todos, existem elevações fulminantes,
também esmagamentos, naturalmente, que duram milhares de
anos e como que sob o peso do mar todo. Apesar de tudo, não

62
deverei ser grato? Não me teria sido imprescindível encontrar
o caminho para chegar até aqui? Não teria podido acontecer-
me que o ‘banimento’ no outro mundo, somado à exclusão
deste, me esmagasse contra a fronteira entre os dois? E não
é graças à força do meu pai que a expulsão foi suficiente­
mente forte para que nada lhe pudesse resistir (a ela, não
a mim)? É verdade, é como a viagem no deserto às avessas,
com as proximidades contínuas do deserto e as esperanças in­
fantis (em especial no que se refere às mulheres): ‘Será que eu
não estaria ainda em Canaã?’, e, no entanto, já estou há muito
tempo no deserto e tudo são apenas visões de desespero, sobre­
tudo nestes tempos em que, também ali, sou o mais miserável
de todos e onde é preciso que Canaã se ofereça como a única
Terra Prometida, porquanto não existe uma terceira terra para
os homens.”
O segundo texto é datado do dia seguinte:
“Ataques no caminho, à tarde, na neve. Sempre a mistura
de representações, mais ou menos assim: neste mundo a situa­
ção seria assustadora — aqui, só em Spindlemühle, ademais
num caminho abandonado onde a todo o instante se dão passos
em falso na escuridão, na neve; além disso, um caminho priva­
do de sentido, sem objetivo terrestre (leva à ponte? por que lá
embaixo? aliás, nem sequer o alcancei); ademais, neste lugar,
eu também abandonado (não posso considerar o médico uma
ajuda pessoal, não a obtive por meus méritos, no fundo só
tenho com ele relações de honorários), incapaz de ser conheci­
do de alguém, incapaz de suportar um conhecimento, no fundo
cheio de um infinito espanto diante de uma sociedade alegre ou
diante de pais com seus filhos (no hotel, naturalmente, não há
muita alegria, não chegarei ao ponto de dizer que a causa sou
eu, na minha qualidade de ‘homem de sombra imensa’, mas,
efetivamente, a minha sombra é grande demais, e com um re­
novado espanto constato a força de resistência, a obstinação de
certos seres em quererem viver ‘apesar de tudo* nessa sombra,
justamente nela; mas aqui junta-se ainda outra coisa de que
falta falar); além disso, abandonado não só aqui mas em geral,
até em Praga, a minha ‘terra natal’, e não abandonado dos ho­
mens, isso não seria o pior, enquanto viver poderia ir no encalço
deles, mas abandonado de mim em relação aos seres, de minha
força em relação aos seres; estou grato àqueles que amam, mas
não posso amar, estou longe demais, estou excluído; sem dúvida,
que sou, contudo, um ser humano e as raízes querem alimento,

63
tenho lá ‘embaixo’ (ou em cima) os meus representantes, come­
diantes lamentáveis e insuficientes, que me bastam (é verdade,
não me bastam de maneira nenhuma e é por isso que estou
tão abandonado), que me bastam pela única razão de que o meu
alimento principal provém de outras raízes num outro ar, raízes
essas que também são lamentáveis mas, entretanto, mais ca­
pazes de vida. Isso me conduz à mistura das representações. Se
tudo fosse assim como se apresenta no caminho na neve, seria
assustador, eu estaria perdido, não entendido como uma amea­
ça mas como uma execução imediata. Mas estou em outra parte.
Acontece que a força de atração do mundo dos homens é mons­
truosa, num instante pode fazer esquecer tudo. Mas grande é
também a força de atração do meu mundo, os que me amam
me amam, porque estou ‘abandonado’ e não, talvez, como o
vácuo de Weiss, mas porque sentem que, em tempos felizes,
num outro plano, tenho a liberdade de movimento que me falta
completamente aqui.”

A experiência positiva

Comentar essas páginas parece-me supérfluo. Cumpre assinalar,


entretanto, como, nessa data, a privação do mundo se inverte
numa experiência positiva,3 a de um outro mundo, do qual ele
já é cidadão, onde é apenas, por certo, o menor e o
mais ansioso, mas onde conhece também elevações fulminantes,
onde dispõe de uma liberdade cujo valor os homens pressentem
e a cujo prestígio se submetem. Contudo, para não alterar o
sentido de tais imagens, é necessário lê-las, não segundo a pers­
pectiva cristã comum (de acordo com a qual existe este mundo
aqui e o mundo de além, o único que teria valor, realidade e
glória), mas sempre na perspectiva de “Abraão”, visto que, de
todas as maneiras, para Kafka, ser excluído do mundo quer
dizer excluído de Canaã, errar no deserto, e é essa situação que
torna sua luta patética e desesperada, como se, jogado para
fora do mundo, no erro da migração infinita, tivesse que lutar
incessantemente para fazer desse lá fora um outro mundo e

3 Certas cartas a Milena aludem também ao que há para ele mesmo


de desconhecido nesse movimento terrível (ver os estudos publicados
na Nouvelle N.R.F.: Kajka et Brod e L’échec de Milena, outubro e
novembro de 1954).

64
desse erro o princípio, a origem de uma liberdade nova. Luta
sem saída e sem certeza, onde o que tem de conquistar é a
sua própria perda, a verdade do exílio e o retorno ao próprio
seio da dispersão. Luta que se aproximará das profundas espe­
culações judaicas, quando, sobretudo em resultado da expulsão
da Espanha, os espíritos religiosos tentam superar o exflio le­
vando-o ao seu termo extremo.4 Kafka fez claramente alusão a
“toda essa literatura” (a dele) como a “uma nova Cabala”, uma
“nova doutrina secreta” que “teria podido desenvolver-se” se
“o sionismo não tivesse, nesse meio tempo, ocorrido” (16 de
janeiro de 1922). E compreende-se melhor por que ele é, si­
multaneamente, sionista e anti-sionista. O sionismo é a cura do
exílio, a afirmação de que é possível permanecer na terra, de
que o povo judeu não tem apenas por morada um livro, a Bí­
blia, mas a terra e não mais a dispersão no tempo. Kafka quer
profundamente essa reconciliação, ele a quer mesmo que seja

4 A este respeito, remetemos o leitor para o livro de G. G. Scholem,


Les Grands Courants de la Mystique Juive: “Os horrores do Exílio in­
fluenciaram a doutrina cabalística da metempsicose, a qual adquire então
uma popularidade imensa ao insistir sobre as diversas etapas do exflio
da alma. O mais terrível destino que pode recair sobre a alma, muito
mais terrível do que os tormentos do inferno, é ser ‘rejeitada’ ou
‘posta a nu’, estado excludente ou a revivescência ou mesmo a ad­
missão no inferno... A privação absoluta de um lar foi o símbolo
sinistro de uma impiedade absoluta, de uma degradação moral e espi­
ritual extrema. A união com Deus ou o banimento absoluto tomaram-se
os dois pólos entre os quais se elaborou um sistema que oferece aos
judeus a possibilidade de viver sob a denominação de um regime que
procura destruir as forças do Exílio.” E ainda mais: “Havia um ardente
desejo de superar o Exílio agravando-lhe seus tormentos, saboreando-lhe
ao extremo seu azedume (até à própria noite da Chekhiná)...” (p. 267).
Que o tema de A Metamorfose (assim como as obcecantes ficções da
animalidade) seja uma reminiscência, uma alusão à tradição da me­
tempsicose cabalística, é o que se pode imaginar, embora não seja
seguro que “Samsa” é uma evocação de “samsara” (Kafka e Samsa
são nomes aparentados, mas Kafka recusa essa aproximação). Por
vezes, Kafka afirma que ainda não nasceu: “A hesitação em face do
nascimento: Se existe uma transmigração das almas, então não estou
ainda no mais baixo grau; a minha vida é a hesitação em face do nas­
cimento.” (24 de janeiro de 1922.) Recordemos que, em Hochzeitsvor-
bereitungen auf dem Lande, Raban, o herói dessa história da juventude,
exprime, jocosamente, o desejo de tomar-se um inseto (Kdfer) que pode­
ria ficar indolentemente na cama e escapar aos deveres desagradáveis
da comunidade. A “carapaça” da solidão parece assim a imagem que
seria animada no tema impressionante de A Metamorfose.

65
dela excluído, pois a grandeza dessa consciência justa foi sem­
pre esperar para os outros mais do que para ele e não fazer
de sua desgraça pessoal a medida do infortúnio comum: “Mag­
nífico, tudo isso, exceto para mim e com razão.” Mas ele não
pertence a essa verdade e é por isso que tem de ser anti-sionista
para si mesmo, sob pena de ser condenado à execução imediata
e a desesperança da impiedade absoluta. Ele já pertence à outra
margem, e sua migração não consiste em aproximar-se de Ca­
naã mas em acercar-se do deserto, da verdade do deserto, de
ir sempre mais longe do lado de lá, mesmo quando, desgraçado
também nesse outro mundo e tentado ainda pelas alegrias do
mundo real (“em especial no que se refere às mulheres”: isso
é uma alusão clara a Milena), tenta persuadir-se de que per­
manece ainda em Canaã. Se ele não fosse anti-sionista para si
mesmo (isso é dito apenas, naturalmente, como uma figura), se
existisse somente este mundo, então “a situação seria assustado­
ra”, então ele estaria imediatamente perdido. Mas ele está
“alhures”, e se a força de atração do mundo humano continua
sendo bastante grande para levá-lo até às fronteiras e aí o man­
ter como que esmagado, não menor é a força de atração do seu
próprio mundo, aquele onde ele é livre, liberdade de que fala
com um frêmito, com uma ênfase de autoridade profética que
contrasta com a sua habitual modéstia.
Que esse outro mundo tenha algo a ver com a atividade
literária não sofre dúvida e a prova disso é que Kafka, se fala
da “nova Cabala”, refere-se-lhe precisamente a propósito de
“toda essa literatura”. Mas também se pode pressentir que a
exigência, a verdade desse outro mundo supera, doravante, a
seus olhos, a exigência da obra, não é esgotada por ela e só
se cumpre imperfeitamente nela. Quando escrever converte-se
“em forma de prece”, é porque existem, sem dúvida, outras for­
mas e mesmo que, em consequência deste mundo desditoso, não
existisse mais nenhuma, escrever, nessa perspectiva, deixa de
ser a abordagem da obra para tomar-se a expectativa desse úni­
co momento de graça de que Kafka se reconhece o espia e em
que já não será preciso escrever mais. A Janouch, que lhe per­
gunta: “A poesia tende, pois, para a religião?”, ele responde:
"Eu não diria isso, mas tende certamente para a prece” e, opon­
do literatura e poesia, acrescenta: “A literatura esforça-se por
colocar as coisas sob uma luz agradável; o poeta é obrigado a
elevá-las ao reino da verdade, da pureza e da permanência.”
Resposta significativa, porquanto corresponde a uma nota do

66
Diário em que Kafka se pergunta que alegria poderá ainda
reservar-lhe a literatura: “Posso ainda extrair uma satisfação
momentânea de obras como O Médico Militar, na suposição de
que possa ainda realizar algo semelhante (o que é muito pouco
verossímil). Mas, felicidade somente no caso em que eu pudes­
se elevar o mundo no puro, no verdadeiro e no inalterável” (25
de setembro de 1917). A exigência “idealista” ou “espiritual”
toma-se aqui categórica. Escrever, sim, escrever sempre, mas
somente para “elevar na vida infinita o que é perecível e isola­
do, no domínio da lei o que pertence ao acaso”, como diz ainda
a Janouch. Mas logo se põe a questão: será então possível? será
certo que escrever não pertence ao mal? e a consolação de
escrever não seria uma ilusão, uma ilusão perigosa, que cum­
pre recusar? “É inegavelmente uma certa felicidade poder es­
crever de modo aprazível: Sufocar é terrível para além de todo
o pensamento. É verdade, para além de todo o pensamento, de
sorte que é de novo como se não existisse nada escrito” (20 de
dezembro de 1921). E a mais humilde realidade do mundo não
possui uma consistência que falta à obra mais forte? “Falta de
independência do ato de escrever: ele depende da criada que
acende o fogo, do gato que se aquece junto à lareira, até desse
pobre velhote que se aquece. Tudo são realizações autônomas
que possuem suas leis próprias; somente escrever está privado
de todo o socorro, não é auto-suficiente, é chiste e desespero”
(6 de dezembro de 1921). Esgar, esgar do rosto que recua diam-
te da luz, “uma defesa do nada, uma precaução do nada, um
sopro de alegria emprestado ao nada”, eis a arte.
Entretanto, se a confiança de seus anos de juventude dá
lugar a uma visão mais rigorosa, subsiste o fato de que, em
seus momentos mais difíceis, quando ele parece ameaçado até
em sua integridade, quando sofre por parte do desconhecido
ataques quase sensíveis (“Como isso me espia: por exemplo,
no caminho para ir ao médico, lá adiante, constantemente”),
mesmo então, ele continua vendo no seu trabalho, não o que
o ameaça mas o que pode ajudá-lo, abrir-lhe a decisão da sal­
vação: “A consolação de escrever, extraordinária, misteriosa,
pode ser perigosa, pode ser salvadora: é saltar fora da fila dos
homicidas, observação que é ato [Tat-Beobachtung, a observa­
ção que se converteu em ato]. Há observação-ato na medida em
que é criada uma espécie mais elevada de observação, mais
elevada, não mais aguda, e quanto mais elevada é, inacessível
à ‘fileira’ [dos homicidas], menos dependente é, mais obedece

67
às leis próprias do seu movimento, mais o seu caminho ascende,
alegremente, escapando a todos os cálculos” (27 de janeiro de
1922). Aqui, a literatura anuncia-se como o poder que emanci­
pa, a força que afasta a opressão do mundo, esse mundo “onde
todas as coisas sentem a garganta apertada”, é a passagem li­
bertadora do “Eu” ao “Ele”, da auto-observação que foi o
tormento de Kafka para uma observação mais alta, elevando-se
acima de uma realidade mortal, na direção do outro mundo, o
da liberdade.

Por que a arte é, não é justificada

Por que essa confiança? Pode-se perguntar. E pode-se respon­


der pensando que Kafka pertence a uma tradição em que o
que existe de mais elevado se exprime num livro que é escritura
por excelência,5 tradição em que experiências de êxtase foram
conduzidas a partir da combinação e manipulação de letras,
em que se diz que o mundo das letras, as do alfabeto, é o ver­
dadeiro mundo da beatitude.6 Escrever é conjurar os espíritos,
é talvez libertá-los contra nós, mas esse perigo pertence à pró­
pria essência do poder que liberta.7
Entretanto Kafka não era um espírito “supersticioso”, ha­
via nele uma lucidez fria que o fazia dizer a Brod, ao sair de
celebrações hassídicas: “Na verdade, é mais ou menos como

5 Kafka disse a Janouch que “a tarefa do poeta é uma tarefa profé­


tica: a palavra justa conduz; a palavra que não é justa seduz; não é
por acaso que a Bíblia se chama Escritura”.
6 Daí também a condenação implacável (que o atinge também a ele)
por Kafka dos escritores judeus que se servem da língua alemã.
7 “Mas em que consiste o próprio fato de ser poeta? Esse ato de es­
crever é um dom, um dom silencioso e misterioso. Mas o seu preço?
À noite, a resposta refulge sempre a meus olhos com uma nitidez ofus­
cante: é o salário recebido das potências diabólicas a que se serviu.
Esse abandono às forças obscuras, esse desencadear de potências habi­
tualmente mantidas sob controle, essas ligações opressivas e impuras, e
tudo o mais que se passa nas profundezas, saber-se-á ainda algo a seu
respeito, no alto, quando se escrevem histórias em plena luz, em pleno
sol?... A superfície conservará disso algum vestígio? Talvez exista
ainda uma outra maneira de escrever? Quanto a mim, só conheço esta,
nessas noites em que a angústia me atormenta à beira do sono.” (Citado
por Brod.)

68
uma tribo negra, uma porção de superstições grosseiras.”8 Por­
tanto, não se deveria esperar meras explicações, talvez corre­
tas, mas que, pelo menos, não nos deixam compreender por que,
tão sensível ao extravio que cada uma de suas iniciativas cons­
titui, Kafka abandona-se com tanta fé a esse erro essencial que
é a literatura. Sobre esse ponto, não seria suficiente recordar
que, desde sua adolescência, sofreu a influência extraordinária
de artistas como Goethe e Flaubert, que ele freqüentemente se
dispunha a colocar acima de todos, porque ambos colocavam
sua arte acima de tudo. Dessa concepção, Kafka, sem dúvida,
nunca se separou interiormente de todo, mas se a paixão da
arte foi desde o começo tão forte e pareceu-lhe por tanto tem­
po salutar, foi porque, desde o começo e por “culpa do pai”,
ele viu-se jogado fora do mundo, condenado a uma solidão da
qual, portanto, não tinha que responsabilizar a literatura mas,
antes, estar-lhe grato por ter iluminado essa solidão, por tê-la
fecundado e propiciado uma abertura para um outro mundo.
Pode-se dizer que o seu debate com o pai voltou a lançar
na sombra, para ele, a face negativa da experiência literária.
Mesmo quando vê que o seu trabalho exige que ele se consuma,
mesmo quando, mais gravemente, vê a oposição entre seu traba­
lho e seu casamento, Kafka não conclui, em absoluto, que exis­
te no trabalho uma potência mortal, uma fala que pronuncia o
“banimento” e condena ao deserto. Não o conclui porque, des­
de o início, o mundo perdeu-se para ele, a existência real foi-lhe
retirada, ou nunca lhe foi dada, e quando fala de novo do seu
exílio, da impossibilidade de se lhe furtar, dirá: “Tenho a im­
pressão de não ter vindo aqui mas já, criança pequena, ter
sido empurrado e depois preso com correntes lá embaixo” (24
de janeiro de 1922). A arte não lhe deu esse infortúnio, nem
mesmo ajudou a isso mas, pelo contrário, esclareceu-o, foi “a
consciência da infelicidade”, a sua nova dimensão.
A arte é, em primeiro lugar, a consciência da infelicida­
de, não a sua compensação. O rigor de Kafka, sua fidelidade à
exigência da obra, sua fidelidade à exigência do infortúnio,
pouparam-lhe esse paraíso das ficções onde se comprazem tan­
tos artistas fracos a quem a vida decepcionou. A arte não tem

8 Mas, subseqüentemente, Kafka parece ter-se tornado cada vez mais


atento a essa forma de devoção. Dora Dymant pertencia a “uma família
judia hassídica respeitada”. E Martin Buber talvez o tenha influenciado.

69
por objeto os devaneios nem as “construções”. Mas ele tampou­
co descreve a verdade: a verdade não tem que ser conhecida
nem descrita, ela não pode sequer conhecer-se a si mesma, do
mesmo modo que a salvação terrena exige ser cumprida, não
interrogada nem figurada. Nesse sentido, não existe lugar algum
para a arte: o monismo rigoroso exclui todos os ídolos. Mas,
nesse mesmo sentido, se a arte não está justificada em geral,
pelo menos está para Kafka, porquanto a arte está vinculada,
precisamente como Kafka, ao que se situa “fora” do mundo
e exprime a profundidade desse “fora” sem intimidade e sem
repouso, o que surge quando, mesmo conosco, mesmo com a
nossa morte, deixamos de ter quaisquer relações de possibilida­
de. A arte é a consciência de “esse infortúnio”. Descreve a
situação daquele que se perdeu, que já não pode dizer “eu”,
que no mesmo movimento perdeu o mundo, a verdade do mun­
do, que pertence ao exílio, a esse tempo de desamparo em que,
como disse Hõlderlin, os deuses já partiram ou ainda não che­
garam. Isso não significa que a arte afirma um outro mundo,
embora seja verdade que ela tem sua origem, não num outro
mundo mas no outro de todo o mundo (é sobre este ponto que
vemos — mais nas notas que traduzem sua experiência religio­
sa do que em sua obra — Kafka executar ou estar prestes a
executar o salto que a arte não autoriza).9
Kafka oscila pateticamente. Ora parece disposto a fazer
tudo para se criar uma permanência entre os homens, “cujo
poder de atração é monstruoso”. Procura noivar, fazer jardina­
gem, exercitar-se em trabalhos manuais, pensa na Palestina,
busca alojamento em Praga a fim de conquistar não só a solidão
mas a independência de um homem maduro e vivo. Nesse plano,
o debate com o pai é essencial e todas as notas novas do Diário
o confirmam, mostram que Kafka nada dissimula do que a
psicanálise poderia desvendar-lhe. A dependência dele em rela­
ção à família não só o tornou fraco, estranho às tarefas viris
(como ele afirmaria), mas como essa dependência lhe causa
horror, torna-lhe também insuportável todas as formas de de­
pendência — e, para começar, o casamento, que lhe recorda

9 Kafka não deixa de denunciar o que há de tentador, de facilidade


tentadora, na distinção excessivamente determinada desses dois mundos:
“De ordinário, a divisão (desses dois mundos) parece-me excessivamente
determinada, perigosa em sua determinação, triste e dominadora demais.”
(30 de janeiro de 1922.)

70
com repugnância o de seus pais,J£> a vida de família de que ele
queria desligar-se mas na qual desejava também envolver-se,
pois aí está o cumprimento da lei, a verdade, a do pai, que tanto
o atrai quanto o repele, de sorte que “realmente mantenho-me
de pé diante da minha família e, em seu círculo, ergo incessan­
temente facas para feri-la ao mesmo tempo que para defendê-
la.” “Isso por uma parte.”
Mas, por outra parte, ele vê sempre mais, e a doença,
naturalmente, ajuda-o a ver que pertence à outra margem, que,
banido, não deve usar de astúcias com esse banimento nem per­
manecer passivo, como que esmagado contra as suas fronteiras,
de olhos voltados para uma realidade de que se sente excluído
e onde nem mesmo jamais se situou, porquanto ainda não
nasceu. Essa nova perspectiva poderia ser somente a do deses­
pero absoluto, a do niilismo que se lhe atribui com excessiva
facilidade. Que o infortúnio irremediável seja o seu elemento,
como negá-lo? É sua morada e seu “tempo”. Mas esse infor­
túnio nunca é sem esperança; essa esperança é apenas, com fre­
quência, o tormento do desamparo, não o que dá a esperança
mas o que impede que não se sacie no próprio desespero, o que
faz com que, “condenado a acabar nele, esteja também conde­
nado a defender-se dele até ao fim” e, talvez, então, com a
promessa de inverter a condenação em liberdade. Nessa nova
perspectiva, a do desamparo, o essencial é não se voltar na di­
reção de Canaã. A migração tem por objetivo o deserto e é
a aproximação do deserto que constitui agora a verdadeira Ter­
ra Prometida. “É para lá que me conduzes?” Sim, é para lá. Mas

10 Cumpre citar, pelo menos, esta passagem de um rascunho de carta


para a sua noiva, onde ele define com extrema lucidez suas relações
com a família: “Mas eu provenho de meus pais, estou ligado a eles,
assim como às minhas irmãs, pelo sangue; na vida corrente e porque
me devoto aos meus próprios objetivos, não o sinto; mas, no fundo,
isso tem para mim mais valor do que lhe atribuo. Ora persigo isso
também com o meu ódio: a vista do leito conjugal, das roupas de
cama que serviram, das camisas de noite cuidadosamente estendidas, dão-
me vontade de vomitar, reviram as minhas entranhas; é como se eu
não tivesse nascido definitivamente, como se viesse uma e outra vez
ao mundo fora desta vida obscura neste quarto escuro, como se pre­
cisasse sempre de buscar de novo a confirmação de mim próprio, como
se estivesse, pelo menos numa certa medida, indissoluvelmente ligado
a. essas coisas repugnantes; isso entrava ainda os meus pés que gosta­
riam de correr, estes ainda estão metidos no informe caldo original.”
(18 de outubro de 1916.)

71
onde é lá? Nunca está à vista, o deserto é ainda menos seguro
que o mundo, nunca passa de ser tão-só a aproximação do de­
serto e, nesta terra de erro, nunca se está “aqui”, mas sempre
“longe daqui”. Entretanto, nessa região onde faltam as condi­
ções para uma verdadeira permanência, onde tem que se viver
numa separação incompreensível, numa exclusão da qual, de
alguma forma, se está excluído como se está excluído de si
mesmo, nessa região que é a do erro porque nada mais se faz
senão errar sem fim, subsiste uma tensão, a própria possibilida­
de de errar, de ir até ao fim do erro, de se aproximar do seu
limite, de transformar o que é um caminho sem objetivo na
certeza de um objetivo sem caminho.

A postura fora do verdadeiro: o topógrafo

Sabemos que, dessa postura, a história do topógrafo representa-


nos a imagem mais impressionante. Desde o começo, esse herói
da obstinação inflexível é descrito como tendo renunciado para
sempre ao seu mundo, à sua terra natal, à vida onde tem mu­
lher e filhos. Desde o começo, ele está, portanto, fora do al­
cance da salvação, pertence ao exílio, esse lugar onde não só
não está em sua casa mas está fora de si, no lado de fora que
é uma região totalmente privada de intimidade, onde os seres
parecem ausentes, onde tudo o que se crê aprender se esquiva
à apreensão. A dificuldade trágica da iniciativa é que, nesse
mundo da exclusão e da separação radical, tudo é falso e inau-
têntico desde que aí se pare, tudo falta desde que aí se busque
apoio mas que, entretanto, o fundo dessa ausência é sempre
dado de novo como uma presença indubitável, absoluta, e a
palavra absoluta está aqui em seu lugar, que significa separado,
como se a separação, experimentada em todo o seu rigor, pu­
desse inverter-se no absolutamente separado, o absolutamente
absoluto.
Cumpre ser preciso: Kafka, espírito sempre justo e nada
satisfeito com o dilema do tudo ou nada que ele, no entanto,
concebe com maior intransigência do que qualquer outro, deixa
pressentir que, nessa postura fora do verdadeiro, existem certas
regras, talvez contraditórias e insustentáveis, mas que autori­
zam ainda uma espécie de possibilidade. A primeira é dada no
próprio erro: é preciso errar e não ser negligente, como Joseph
K. de O Processo, que imagina que as coisas vão continuar e

72
que ele ainda está no mundo, quando, desde a primeira frase,
foi repelido dele. A culpa de Joseph, como aquela que, sem
dúvida, Kafka se recriminava na época em que escrevia esse
livro, consiste em querer ganhar o seu processo no próprio
mundo, ao qual ainda acreditava pertencer, mas onde seu co­
ração frio, vazio, sua existência de celibatário e de burocrata,
sua indiferença pela família — tudo traços de caráter que
Kafka reencontra em si mesmo — já o impedem de manter-se.
É certo que sua indiferença cede pouco a pouco, mas é o fruto
do processo, do mesmo modo que a beleza que ilumina os acusa­
dos e os torna agradáveis às mulheres é o reflexo de sua pró­
pria dissolução, da morte que avança neles, como uma luz mais
verdadeira.
O processo, o banimento, é sem dúvida um grande infor­
túnio, talvez seja uma injustiça incompreensível ou uma puni­
ção inexorável, mas também é — somente numa certa medida,
é verdade, eis a desculpa do herói, a armadilha onde se deixa
prender — também é um dado que não basta recusar invocan­
do nos discursos ocos uma justiça mais alta, do qual se deve,
pelo contrário, tirar partido, segundo a regra que Kafka fizera
sua: “Cumpre limitarmo-nos ao que ainda se possui.” O Pro­
cesso tem, pelo menos, essa vantagem, a de fazer saber a K. o
que ele realmente é, de dissipar a ilusão, as consolações enga­
nadoras que, por ter um bom emprego e alguns prazeres
indiferentes, o levam a crer em sua existência, em sua existência
de homem do mundo. Mas o processo nem por isso é a verda­
de, é, pelo contrário, um processo de erro, como tudo o que
está ligado ao lado de fora, a essas trevas “exteriores” onde se é
lançado pela força do banimento, processo em que, se resta
uma esperança, é aquela que avança, não em contracorrente,
por uma oposição estéril, mas no mesmo sentido do erro.

A. culpa essencial

O topógrafo está quase inteiramente desligado dos defeitos de


Joseph K. Não procura retornar à terra natal: a vida perdida
em Canaã; apagada a verdade deste mundo; mal se recorda
dela em breves instantes patéticos. Não é mais negligente mas
está sempre em movimento, nunca se detendo, quase nunca se
desencorajando, indo de fracasso em fracasso, por um movi­
mento incansável que evoca a inquietação fria do tempo sem

73
repouso. Sim, ele caminha sempre, com uma obstinação inflexí­
vel, no sentido do erro extremo, desdenhando a aldeia que
ainda possui alguma realidade, mas querendo o Castelo que
talvez inexista, desligando-se de Frieda, que tem alguns reflexos
vivos, a fim de voltar-se para Olga, irmã de Amélie, e dupla­
mente excluída, a rejeitada, mais ainda, aquela que voluntaria­
mente, mediante uma decisão assustadora, decidiu sê-lo. Tudo
deveria, portanto, correr pelo melhor. Mas não é o que aconte­
ce, porque o topógrafo comete incessantemente a falta que
Kafka aponta como a mais grave de todas, a da impaciência.11
A impaciência no seio do erro é a culpa essencial, porque des­
conhece a própria verdade do erro que impõe, como uma lei,
jamais acreditar que o objetivo está próximo, nem que haja
a mínima possibilidade de acercar-se dele: cumpre jamais ter­
minar com o indefinido; cumpre jamais apreender como o ime­
diato, como o já presente, a profundidade da ausência inson-
dável.
Certo, isso é inevitável e está aí o caráter desolador de tal
busca. Quem não é impaciente é negligente. Quem se entrega
à inquietação do erro perde a despreocupação que o tempo
esgotaria. Mal chegado, nada compreendendo dessa experiên­
cia de exclusão em que se vê envolvido, K. põe-se imediata­
mente a caminho para chegar depressa ao fim. Negligencia as
etapas intermédias e, sem dúvida, isso é um mérito, a força da
tensão voltada para o absoluto, mas que apenas serve para res­
saltar melhor a sua aberração, a qual consiste em tomar pelo
final o que não passa de uma etapa intermediária, uma repre­
sentação segundo os seus “meios”.
O engano é o mesmo do topógrafo, quando crê reconhe­
cer na fantasmagoria burocrática o símbolo justo de um mundo
superior. Essa figuração é somente a medida da impaciência,
a forma sensível do erro, pela qual, para o olhar impaciente, o
absoluto é incessantemente substituído pela força inexorável do
mau infinito. K. quer sempre alcançar a meta antes de a ter
atingido. Essa exigência de um desfecho prematuro é o prin-11

11 “Existem dois pecados capitais humanos dos quais decorrem todos


os outros: a impaciência e a negligência. Por causa de sua impaciência,
eles foram expulsos do Paraíso. Por causa de sua negligência, nunca
mais retomarão a ele. Talvez exista apenas um pecado capital, a impa­
ciência. Por causa da impaciência foram expulsos, por causa da im­
paciência não voltarão.” (Aforismos)

74
cípio da figuração: ela engendra a imagem ou, se se quiser, o
ídolo, a maldição que se lhe associa é a que está ligada à ido­
latria. O homem quer a unidade imediatamente, ele a quer na
própria separação, representa-a para si, e essa representação,
imagem da unidade, reconstitui logo o elemento da dispersão
onde ele se perde cada vez mais, visto que a imagem, enquanto
imagem, jamais pode ser atingida; além disso, subtrai-lhe a
unidade de que ela é a imagem, tomando-a inacessível ao sepa-
rar-se dela e tornando-se ela mesma inacessível.
Klamm não é invisível, em absoluto; o topógrafo quer
vê-lo e ele o vê. O Castelo, objetivo supremo, não está fora do
alcance da vista. Enquanto imagem, está sempre à disposição
dele. Naturalmente, olhando-as bem, essas figuras decepcionam,
o Castelo nada mais é do que um amontoado de casebres de al­
deia, Klamm um homenzarrão sentado diante de uma escriva­
ninha. Tudo ordinário e feio. Está aí também a chance do
topógrafo, é a verdade, a honestidade enganadora dessas ima­
gens: elas não são sedutoras em si mesmas, nada têm que jus­
tifique o interesse fascinado que se lhes dedica, recordam as­
sim que não constituem o verdadeiro objetivo. Mas, ao mesmo
tempo, nessa insignificância deixa-se esquecer a outra verdade,
a saber, que são de toda forma imagens desse objetivo, que
participam de sua irradiação, de seu valor inefável, e que não
se vincular a elas já significa desviar-se do essencial.
Situação que se pode resumir assim: é a impaciência que
torna o objetivo final inacessível, substituindo-o pela proximi­
dade de uma figura intermediária. É a impaciência que destrói
a abordagem do objetivo final, ao impedir que se reconheça no
intermediário a figura do imediato.
Cumpre limitarmo-nos aqui a algumas indicações. A fan-
tasmagoria burocrática, essa ociosidade afobada que a caracteri­
za, esses seres dúplices que são os seus executantes, guardiões,
ajudantes, mensageiros, que andam sempre dois a dois, como
para mostrar bem que apenas são os reflexos um do outro e o
reflexo de um todo invisível, toda essa cadeia de metamorfoses,
esse crescimento metódico da distância que nunca é dado como
infinito mas aprofunda-se indefinidamente de maneira neces­
sária pela transformação da meta em obstáculos, mas também
dos obstáculos em etapas intermédias que conduzem à meta
final, todas essas poderosas imagens não descrevem figurativa-
mente a verdade do mundo superior, nem mesmo a sua trans­
cendência, elas representam antes a felicidade e a infelicidade

75
da figuração, dessa exigência pela qual o homem do exílio é
obrigado a fazer do erro um meio de verdade, e daquilo que o
engana indefinidamente a possibilidade última de apreender o
infinito.

O espaço da obra

Em que medida Kafka teve consciência da analogia dessa pos­


tura com o movimento pelo qual a obra tende para a sua ori­
gem, esse centro onde somente ela poderá realizar-se, na busca
do qual ela se realiza e que, atingido, toma-a impossível? Em
que medida ele aproximou a experiência de seus heróis da
maneira como ele próprio, através da arte, tentava abrir um
caminho para a obra e, pela obra, para algo verdadeiro? Pen­
saria ele frequentemente na sentença de Goethe, “Ê postulando
o impossível que o artista alcança todo o possível”? Pelo menos,
essa evidência é impressionante: a culpa que ele pune em K. é
também aquela que o artista se recrimina em si. A impaciência
é a culpada. Ela é que gostaria de precipitar a história para o
seu desfecho, antes de que esta tenha se desenvolvido em todas
as direções, tenha esgotado a medida do tempo que está nela,
tenha elevado o indefinido a uma verdadeira totalidade em que
cada movimento inautêntico, cada imagem parcialmente falsa,
poderá transfigurar-se numa certeza inabalável. Tarefa impos­
sível, tarefa que, se se cumprisse até ao fim, destruiría essa
verdade para a qual tende, tal como se danifica a obra se toca
o ponto que é sua origem. Muitas razões impedem Kafka de
concluir a maioria de suas “histórias”, levam-no, mal come­
çou qualquer uma delas, a abandoná-la para tentar apasiguar-
se numa outra. Ele mesmo diz conhecer, com frequência, o tor­
mento do artista exilado de sua obra, no momento em que esta
se afirma e se fecha sobre si mesma. Também diz que abandona
algumas vezes a história, na angústia de, não a abandonasse,
não poder retomar ao mundo; mas não está certo de que essa
preocupação tenha sido nele a mais forte. Que a abandone
amiúde, porque todo o desenlace contém a felicidade de uma
verdade definitiva que ele não tem o direito de aceitar, à qual
a sua existência ainda não corresponde, essa razão parece ter
desempenhado também um grande papel, mas todos esses mo­
vimentos equivalem ao seguinte: Kafka, talvez sem o saber,
sentiu que escrever é entregar-se ao incessante e, por angústia,

76
angústia da impaciência, preocupação escrupulosa da exigência
de escrever, ele recusou-se na maioria das vezes a consumar
esse salto que só a plena realização permite, essa confiança
despreocupada e feliz pela qual (momentaneamente) um termo
se insere no interminável.
O que se chamou tão impropriamente o seu realismo trai
essa mesma busca instintiva para esconjurar nela a impaciência.
Kafka mostrou com frequência que era um gênio dotado de
extrema agilidade, capaz em alguns traços de atingir o essencial.
Mas impôs-se cada vez mais uma minúcia, uma lentidão de
abordagem, uma precisão detalhada (mesmo na descrição de
seus próprios sonhos), sem as quais, exilado na realidade, o
homem está rapidamente condenado ao desvario da confusão
e às incursões do imaginário. Quanto mais se está perdido no
lado de fora, na estranheza e insegurança dessa perda, mais se
deve recorrer ao espírito de rigor, de escrúpulo, de exatidão,
estar presente na ausência pela multiplicidade das imagens, por
sua aparência determinada, modesta (divorciada da fascinação)
e por sua coerência energicamente mantida. Quem pertence à
realidade não tem necessidade de tantos detalhes que, como
sabemos, não correspondem, em absoluto, à forma de uma visão
real. Mas quem pertence à profundidade do ilimitado e do lon­
gínquo, ao infortúnio da imoderação, sim, esse está condenado
ao excesso da medida e à busca de uma continuidade sem fa­
lhas, sem lacunas, sem disparidades. E condenado é a palavra
certa, porquanto, se a paciência, a exatidão, o domínio frio,
são as qualidades indispensáveis para evitar perder-se quando
nada mais subsiste a que se possa apegar, paciência, exatidão,
domínio frio, também são defeitos que, dividindo as dificulda­
des e estendendo-as indefinidamente, retardam talvez o nau­
frágio, mas retardam certamente a libertação, transformam sem
cessar o infinito em indefinido, assim como é também a medida
que, na obra, impede que o ilimitado jamais se cumpra.

A arte e a idolatria

“‘Não farás imagem talhada nem figura nenhuma do que está no


alto no céu ou do que está embaixo na terra ou do que está
nas águas sob a terra/1 Félix Weltsch, o amigo de Kafka, que
falou muito bem da luta deste contra a impaciência, pensa que
ele levou a sério o mandamento bíblico. Se assim é, que se

77
represente um homem sobre quem pesa essa interdição essencial,
que, sob pena de morte, deve excluir-se das imagens e que, de
súbito, se descobre exilado no imaginário, sem outra morada
nem subsistência senão as imagens e o espaço das imagens. Ei-lo,
pois, obrigado a viver de sua morte e prisão, em seu desespero
e, para escapar a esse desespero — a execução imediata —
coagido a fazer de sua condenação a única via de salvação. Foi
Kafka, conscientemente, esse homem? Não sabería dizê-lo. Tem-
se por vezes o sentimento de que a interdição essencial, quan­
to mais ele se esforça por lembrar-se dela (pois ela é, de toda
maneira, esquecida, uma vez que a comunidade onde ela era
viva está quase destruída), quanto mais ele procura, portanto,
recordar-se do sentido religioso que vive escondido nessa inter­
dição, e isso com um rigor cada vez maior, gerando o vazio nele
e em torno dele, a fim de que os ídolos aí não sejam acolhidos,
mais, em contrapartida, Kafka parece disposto a esquecer que
essa interdição deveria aplicar-se também à sua arte. Daí re­
sulta um equilíbrio muito instável. Esse equilíbrio, na solidão
ilegítima que é a dele, permite-lhe ser fiel a um monismo espi­
ritual cada vez mais rigoroso, mas abandonando-se a uma certa
idolatria artística, depois impele-o a purificar essa idolatria atra­
vés de todos os rigores de uma ascese que condena as realidades
literárias (inacabamento das obras, repugnância por toda pu­
blicação, recusa em crer-se um escritor, etc.), que, além disso,
o que é mais grave, querería subordinar a arte à sua condição
espiritual. A arte não é religião, “nem mesmo conduz à reli­
gião”, mas, no tempo de desgraça que é o nosso, este tempo em
que faltam os deuses, tempo de ausência e de exílio, a arte
está justificada, porque é a intimidade dessa desgraça, é o
esforço para tornar manifesto, pela imagem, o erro do ima­
ginário e, em última instância, a verdade inalcançável, esque­
cida, que se dissimula por trás desse erro.
Que tenha havido primeiramente em Kafka uma tendên­
cia para substituir a exigência religiosa pela exigência literária,
depois, sobretudo, mais perto do fim, uma propensão para
substituir a sua experiência literária pela sua experiência reli­
giosa, para confundi-las de maneira bastante turva ao passar do
deserto da fé para a fé num mundo que já não é o deserto mas
um outro mundo onde a liberdade lhe será concedida, é o que
as anotações do diário nos fazem pressentir. “Será que habito
agora no outro mundo? Ousarei dizê-lo?” (30 de janeiro de
1922). Na página que citamos, Kafka recorda que os homens,

78
segundo ele, não têm outra escolha senão esta: ou buscar a
Terra Prometida do lado de Canaã ou buscá-la do lado deste
outro mundo que é o deserto, “porquanto, acrescenta ele, não
existe um terceiro mundo para os homens”. Não existe,
por certo, mas talvez falte dizer mais, talvez deva dizer-
se que o artista, esse homem que Kafka também queria ser, em
desvelo por sua arte e em busca de sua origem, o “poeta” é
aquele para quem não existe sequer um único mundo, porque
para ele só existe o lado de fora, o fluxo do eterno exterior.

79

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