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ABORDAGEM DO ESPAÇO
LITERÁRIO
O POEMA — a literatura — parece vinculado a uma fala que
não pode interromper-se porque ela não fala, ela é. O poema
não é essa fala, é começo, e ela própria jamais começa mas
diz sempre de novo e sempre recomeça. Entretanto, o poeta é
aquele que ouviu essa fala, que se fez dela o intérprete, o me
diador, que lhe impôs o silêncio pronunciando-a. Nela, o poema
está próximo da origem, pois tudo o que é original é à prova
dessa pura impotência do recomeço, dessa prolixidade estéril, a
superabundância do que nada pode, do que jamais é a obra,
arruina a obra e nela restaura a ociosidade sem fim. Talvez seja
a fonte, mas fonte que, de uma certa maneira, deve ser exaurida
para tornar-se recurso. Jamais o poeta, aquele que escreve, o
“criador”, podería exprimir a obra a partir da ociosidade es
sencial; jamais, por si só, do que está na origem, ele pode
fazer brotar a pura palavra do começo. É por isso que a obra
somente é obra quando ela se converte na intimidade aberta de
alguém que a escreveu e de alguém que a leu, o espaço vio
lentamente desvendado pela contestação mútua do poder de
dizer e do poder de ouvir. E aquele que escreve é igualmente
aquele que “ouviu” o interminável e o incessante, que o ouviu
como fala, ingressou no seu entendimento, manteve-se na sua
exigência, perdeu-se nela e, entretanto, por tê-la sustentado
corretamente, fê-la cessar, tomou-a compreensível nessa inter-
mitência, proferiu-a relacionando-a firmemente com esse limite,
dominou-a ao medi-la.
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A EXPERIÊNCIA DE MALLARMÉ
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Palavra bruta, palavra essencial
32
Á
“incluir no papel sutil ... a madeira intrínseca e densa das
árvores”. Mas nada de mais estranho para a árvore do que a
palavra árvore, tal como a utiliza, não obstante, a linguagem
cotidiana. Uma palavra que não denomina nada, que não re
presenta nada, que em nada sobrevive, uma palavra que nem
mesmo é uma palavra e que desaparece maravilhosamente, por
inteiro e de imediato, em seu uso. O que pode ser mais digno
do essencial e mais próximo do silêncio? A palavra é verda
deira, ela “serve”. Aparentemente, toda a diferença está aí: ela
é usada, usual, útil; por ela, estamos no mundo, somos devolvi
dos à vida do mundo, aí falam os objetivos, as metas finais,
e impõe-se a preocupação de sua realização. Um puro nada,
certamente, o próprio não-ser, mas em ação, o que age, traba
lha, constrói o puro silêncio do negativo que culmina na rui
dosa febre das tarefas.
A fala essencial é, nesse aspecto, o oposto. Por si mesma,
ela é imponente, ela impõe-se, mas nada impõe. Muito longe
também de todo o pensamento, desse pensamento que repele
sempre a obscuridade elementar, pois o verso “atrai não menos
que afasta”, “aviva todos os jazimentos esparsos, ignorados e
flutuantes”: nele as palavras voltam a ser “elementos”, e a pa
lavra noite, apesar de sua claridade, ganha intimidade com a
noite.1
Na fala bruta ou imediata, a linguagem cala-se como lin
guagem mas nela os seres falam e, em conseqüência do uso que
é o seu destino, porque serve, em primeiro lugar, para nos rela
cionarmos com os objetos, porque é uma ferramenta num mun
do de ferramentas onde o que fala é a utilidade, o valor de uso,
nela os seres falam como valores, assumem a aparência estável
de objetos existentes um por um e que se atribuem a certeza do
imutável.
A fala em estado bruto não é bruta nem imediata. Mas dá
a ilusão de que o é. Extremamente refletida, está impregnada1
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da história. Mas, a maioria das vezes, e como se não fôssemos
capazes, no curso normal da vida, de nos sabermos o órgão do
tempo, os guardiões do devir, a fala parece o lugar de uma re
velação imediatamente dada, parece o sinal de que a verdade é
imediata, sempre a mesma e sempre disponível. A fala imediata
talvez seja, com efeito, relação com o mundo imediato, com
aquele que nos é imediatamente próximo e nosso vizinho, mas
esse imediato que nos comunica a fala comum não passa do lon
gínquo velado, o absolutamente estranho que se faz passar por
habitual, o insólito que tomamos por rotineiro graças a esse véu
que é a linguagem e a esse hábito da ilusão das palavras. A fala
tem nela o momento que a dissimula; ela tem em si mesma, por
esse poder de dissimulação, a potência pela qual a mediação
(o que, portanto, destrói o imediato) parece ter a espontaneida
de, o frescor, a inocência da origem. E, além disso, ela tem esse
poder, comunicando-nos a ilusão do imediato, quando o que
nos dá é somente o habitual, faz-nos crer que o imediato nos é
familiar, de modo que a essência deste nos aparece, não como o
mais terrível, o que deveria perturbar-nos, que é o erro da soli
dão essencial, mas como a felicidade tranqüilizadora das har
monias naturais ou a familiaridade do lugar natal.
Na linguagem do mundo, a linguagem cala-se como ser da
linguagem e como linguagem do ser, silêncio graças ao qual os
seres falam, no qual encontram também esquecimento e repou
so. Quando Mallarmé fala da linguagem essencial, logo a opõe
somente à linguagem ordinária que nos dá a ilusão, a seguran
ça do imediato, o qual, contudo, nada é senão o rotineiro — e
depois retoma, por conta da literatura, a fala do pensamento,
esse movimento silencioso que afirma, no homem, a sua decisão
de não ser, de se separar do ser e, ao tornar real essa separação,
de fazer o mundo, silêncio que é o trabalho e a fala da própria
significação. Mas essa fala do pensamento é também, de qual
quer modo, a fala “corrente”: ela devolve-nos sempre ao mun
do, ora como o infinito de uma tarefa e o risco de um trabalho,
ora como uma posição firme onde nos é lícito acreditar que es
tamos em lugar seguro.
A fala poética não se opõe somente, portanto, à linguagem
ordinária mas também à linguagem do pensamento. Nessa fala,
já não somos devolvidos ao mundo, nem ao mundo como abri
go, nem ao mundo como metas. Nela, o mundo recua e as metas
cessaram; nela, o mundo cala-se; os seres em suas preocupa
ções, seus desígnios, suas atividades, não são, finalmente, quem
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fala. Na fala poética exprime-se esse fato de que os seres se ca
lam. Mas como é que isso acontece? Os seres calam-se, mas é
então o ser que tende a voltar a ser fala, e a palavra quer ser.
A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém
fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fa
la ‘’se fala”. A linguagem assume então toda a sua importância;
torna-se o essencial; a linguagem fala como o essencial e é por
isso que a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala
essencial. Isso significa, em primeiro lugar, que as palavras,
tendo a iniciativa, não devem servir para designar alguma coisa
nem para dar voz a ninguém, mas têm em si mesmas seus fins.
Doravante, não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que
se fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem.
Sob essa perspectiva, reencontramos a poesia como um po
tente universo de palavras cujas relações, a composição, os po
deres, afirmam-se, pelo som, pela figura, pela mobilidade rítmi
ca, num espaço unificado e soberanamente autônomo. Assim, o
poeta faz obra de pura linguagem e a linguagem nessa obra é
retomo à sua essência. Ele cria um objeto de linguagem, tal co
mo o pintor não reproduz com as cores o que é mas busca o
ponto onde as suas cores dão o ser. Ou ainda, como tentou Ril
ke na época do expressionismo, ou talvez hoje Ponge, ele quer
criar “o poema-coisa” que seja como a linguagem do ser mudo,
fazer do poema o que será por ele mesmo forma existência e
ser: obra.
Entretanto, essa poderosa construção da linguagem, esse
conjunto calculado para excluir dele o acaso, que subsiste por
si só e repousa sobre si mesmo, chamamos-lhe obra e chama
mos-lhe ser mas, sob essa perspectiva, não é uma coisa nem
outra. Obra, pois que é construída, composta, calculada, mas,
neste sentido, obra como toda a obra, como todo o objeto forma
do pelo entendimento de um ofício e a habilidade de um espe
cialista. Não obra de arte, obra que tem a arte por origem, pela
qual a arte, da ausência de tempo onde nada se conclui, é ele
vada à afirmação única, fulminante, do começo. E, do mesmo
modo, o poema entendido como um objeto independente, auto-
suficiente, um objeto de linguagem criado para si só, mônada de
palavras onde só se refletiría a natureza das palavras e nada
mais, talvez seja então uma realidade, um ser particular, de
uma dignidade, de uma importância excepcional, mas um ser
e, por isso mesmo, de forma nenhuma mais próximo do ser, do
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que escapa a toda a determinação e a toda a forma de exis
tência.
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que pertence à essência da linguagem, visto que, precisamente,
nada está trabalhando nas palavras. As palavras, como sabe
mos, têm o poder de fazer desaparecer as coisas, de as fazer
aparecer enquanto desaparecidas, aparência que nada mais é
senão a de um desaparecimento, presença que, por sua vez, re
toma à ausência pelo movimento de erosão e de usura que é a
alma e a vida das palavras, que extrai delas luz pelo fato de
que se extinguem, a claridade através da escuridão. Mas, tendo
esse poder de fazer as coisas “erguerem-se” no seio de sua au
sência, senhoras dessa ausência, as palavras também têm o po
der de se dissiparem a si mesmas, de se tornarem maravilhosa
mente ausentes no seio de tudo o que realizam, de tudo o que
proclamam anulando-se, do que etemamente executam destru
indo-se, ato de autodestruição sem fim, em tudo semelhante ao
tão estranho evento do suicídio, o qual confere precisamente
toda a sua verdade ao instante supremo do Igitur.3
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O ponto central
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de termos que não terminam nada e a realização total desse mo
vimento, a linguagem convertida no todo da linguagem, aí onde
se concretiza, como todo, o poder de rejeitar e de retornar ao
nada que se afirma em cada palavra e se aniquila em todas,
“ritmo total”, “com o quê o silêncio”.
No poema, a linguagem nunca é real em nenhum dos mo
mentos por onde passa, porquanto no poema a linguagem afir
ma-se como todo e sua essência, não tendo realidade senão nes
se todo. Mas, nesse todo em que ela é a sua própria essência,
em que é essencial, é também soberanamente irreal, é a realiza
ção total dessa irrealidade, ficção absoluta que diz o ser, quan
do, tendo “usado”, “roído” todas as coisas existentes, suspen
dido todos os seres possíveis, colide com esse resíduo ineliminá-
vel, irredutível. O que resta? “Apenas essa palavra: é”. Palavra
que sustenta todas as palavras, que as sustenta deixando-se dis
simular por elas, que, dissimulada, é a presença delas, a reserva
delas, mas que, quando cessam, se apresenta (“o instante em
que brilham e morrem numa flor rápida sobre alguma transpa
rência como de éter’’), “momento de raio”, “relâmpago fulgu
rante”.
Esse momento de raio jorra da obra como o impetuoso jor
ro da obra, sua presença total, sua “visão simultânea”. Esse mo
mento é, ao mesmo tempo, aquele em que a obra, a fim de dar
ser e existência a esse “engodo” de que “a literatura existe”,
pronuncia a exclusão de tudo mas, por esse meio, exclui-se a si
mesma, de sorte que esse momento em que “toda a realidade
se dissolve” pela força do poema é também aquele em que o
poema se dissolve e, instantaneamente feito, instantaneamente
se desfaz. Isso, sem dúvida, já é ambíguo ao extremo. Mas a
ambiguidade toca no mais essencial. Pois esse momento, que é
como a obra da obra, que, à margem de toda a significação, de
toda a afirmação estética e histórica, exprime que a obra é, esse
momento só será tal se a obra, nele, enfrentar a experiência do
que sempre arruina de antemão a obra e sempre restaura nela a
superabundância vã de ociosidade.
A profundidade da ociosidade
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é verificado pelo extremo da negação, ainda compreendemos
tais exigências, embora sejam contrárias à nossa necessidade de
paz, de simplicidade, de sono; compreendemo-las intimamente,
como a intimidade dessa decisão que somos nós próprios e que
nos dá o ser, somente quando, correndo os nossos riscos e peri
gos, rejeitamos, pelo fogo, pelo ferro, pela recusa silenciosa, sua
permanência e favor. Sim, compreendemos que a obra, nesse
aspecto, seja puro começo, o momento primeiro e último em
que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz ex
cluí-lo soberanamente, sem incluí-lo ainda, porém, na aparência
dos seres. Mas essa exigência que faz da obra o que declara o
ser no momento único da ruptura, “essa mesma palavra: é”,
esse ponto que ela faz brilhar enquanto recebe o clarão relam-
pejante que a consome, devemos também compreender e sentir
que toma a obra impossível, porquanto é o que jamais permite
que aconteça à obra, o aquém onde, do ser, nada é feito, nada
se realiza, a profundidade da ociosidade, da inação do ser.
Parece, pois, que o ponto onde a obra nos conduz não é
somente aquele onde ela se realiza na apoteose de seu desapare
cimento, onde ela diz o começo, dizendo o ser na liberdade que
o exclui — mas é também o ponto onde ela jamais poderá con-
duzir-nos, porque já é sempre aquele a partir do qual nunca
existe obra.
Talvez estejamos tornando as coisas fáceis demais quando,
ao reconstituir o movimento que é o de nossa vida ativa, ao con-
tentarmo-nos em invertê-lo, acreditamos dominar assim o movi
mento do que chamamos arte. É a mesma facilidade que nos
faz encontrar a imagem ao falar do objeto, que nos faz dizer:
em primeiro lugar, temos o objeto, depois vem a imagem,
como se a imagem fosse apenas o distanciamento, a recusa, a
transposição do objeto. Do mesmo modo, gostamos de dizer que
a arte não reproduz as coisas do mundo, não imita o “real”, e
que a arte se encontra onde, a partir do mundo comum, o artis
ta afastou pouco a pouco o que é utilizável, imitável, o que in
teressa à vida ativa. A arte parece então o silêncio do mundo, o
silêncio ou a neutralização do que há de usual e de atual no
mundo, tal como a imagem é a ausência do objeto.
Assim descrito, esse movimento concedernos as facilidades
da análise comum. Essas facilidades permitem-nos crer que do
minamos a arte, porque nos fornecem um meio de nos represen
tarmos o ponto de partida do trabalho artístico. Representação
que, aliás, não responde à psicologia da criação. Jamais um ar
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tista será capaz de elevar-se, através do uso que faz de um obje
to no mundo, ao nível do quadro onde esse objeto tornou-se pin
tura, jamais poderá bastar-lhe colocar esse uso entre parênte
ses, neutralizar o objeto para entrar na liberdade do quadro.
Pelo contrário, é porque, por uma inversão radical, ele já per
tence à exigência da obra que, ao olhar tal objeto, ele não se
contenta, em absoluto, em vê-lo tal como poderia ser se estives
se fora de uso, mas faz do objeto o ponto por onde passa a exi
gência da obra e, por conseguinte, o momento em que o possível
atenua-se, as noções de valor, de utilidade, se apagam, e o mun
do “dissolve-se”. É porque o artista pertence já a um outro tem
po, o outro do tempo, e saiu do trabalho do tempo, para expor-
se à experiência da solidão essencial, onde o fascínio ameaça, é
porque se aproximou desse “ponto”, que, respondendo à exi
gência da obra, nessa pertença original, ele parece olhar de ma
neira diferente os objetos do mundo usual, neutralizar neles o
uso, torná-los puros, elevá-los por uma estilização sucessiva ao
equilíbrio instantâneo onde se convertem em quadro. Por ou
tras palavras, nunca ocorre uma elevação do “mundo” para a
arte, nem mesmo pelo movimento de recusa que descrevemos,
mas vai-se sempre da arte para o que parece serem as aparên
cias neutralizadas do mundo •— e que, na realidade, só se apre
sentam como tais sob o olhar domesticado que é geralmente o
nosso, esse olhar do espectador insuficiente, pregado ao mundo
dos fins e capaz, no máximo, de ir do mundo ao quadro.
Quem não pertence à obra como origem, quem não perten
ce a esse outro tempo em que a obra se preocupa com sua es
sência, jamais fará obra. Mas quem pertence a esse outro tempo,
pertence também à profundidade vazia da ociosidade onde do
ser ele nunca logrou fazer nada.
Para exprimirmos ainda de outra maneira: quando uma
fala conhecida demais parece reconhecer ao poeta o poder de
“dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, isso quer di
zer que o poeta é aquele que, por um dom ou por um savoir-faire
criador, contentar-se-ia em fazer passar a linguagem “bruta ou
imediata” para a linguagem essencial, elevaria a nuhdade silen
ciosa da fala corrente para o silêncio consumado do poema onde,
pela apoteose do desaparecimento, tudo está presente na ausên
cia de tudo? Isso não poderia ser. Teria tanto sentido quanto
imaginar que escrever consiste somente em utilizar as palavras
usuais com mais mestria, uma memória mais rica ou um enten
dimento mais harmonioso de seus recursos musicais. Escrever
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jamais consiste em aperfeiçoar a linguagem corrente, em tomá-
la mais pura. Escrever somente começa quando escrever é abor
dar aquele ponto em que nada se revela, em que, no seio da dis
simulação, falar ainda não é mais do que a sombra da fala,
linguagem que ainda não é mais do que a sua imagem, lingua
gem imaginária e linguagem do imaginário, aquela que ninguém
fala, murmúrio do incessante e do interminável a que é preciso
impor silêncio, se se quiser, enfim, que se faça ouvir.
Quando contemplamos as esculturas de Giacometti, há
um determinado ponto onde elas deixam de estar submetidas
às flutuações da aparência ou ao movimento da perspectiva.
Vemo-las de um modo absoluto. Já não reduzidas mas subtraí
das à redução, irredutíveis e, no espaço, senhoras do espaço pe
lo poder que têm de substituí-lo pela profundidade não mane-
jável, não viva, a do imaginário. Esse ponto, donde as vemos
irredutíveis, coloca-nos no infinito, é o ponto onde o infinito
coincide com lugar nenhum. Escrever é encontrar esse ponto.
Ninguém escreve se não produzir a linguagem apropriada para
manter ou suscitar o contato com esse ponto.
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Ill
O ESPAÇO
E
A EXIGÊNCIA DA OBRA
A OBRA E A FALA ERRANTE
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rado mas confunde-se com a imensidade sussurrante, é o silên
cio convertido no espaço repercutente, o lado de fora de toda a
fala. Só que, aqui, o lado de fora está vazio, e o eco repete ante
cipadamente, “profético na ausência de tempo”.
A necessidade de escrever
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sem renunciar, porém, ao conforto do mundo nem às facilidades
aparentes de um trabalho fora do tempo. O artista dá, com
frequência, a impressão de um ser frágil que se enrosca as
sustado na esfera fechada de sua obra, onde, falando com
sobranceria e agindo sem entraves, pode vingar-se de seus
fracassos na sociedade. Até mesmo Stendhal e Balzac fazem
surgir essa dúvida, e com muito mais razões Kafka ou Hõl-
derlin — e Homero é cego. Mas esse ponto de vista exprime
apenas um aspecto da situação. O outro aspecto é que o
artista que se oferece aos riscos da experiência que é a dele,
não se sente livre do mundo, mas privado do mundo, não
senhor de si mesmo mas ausente de si mesmo, e exposto a uma
exigência que, ao repeli-lo para fora da vida e de toda a vida,
torna-o vulnerável a esse momento em que nada pode fazer e
já não é ele próprio. Ê então que Rimbaud foge para o deserto
das responsabilidades da decisão poética. Enterra sua imagina
ção e sua glória. Diz “adeus” ao “impossível” da mesma manei
ra que Leonardo da Vinci e quase nos mesmos termos. Não re
torna ao mundo, refugia-se nele e, pouco a pouco, seus dias
condenados doravante à aridez do ouro estendem sobre sua ca
beça a proteção do esquecimento. Se é verdade que, segundo
testemunhos duvidosos, ele já não sofria nos últimos anos quan
do se fazia alusão à sua obra ou se repetia, a seu propósito:
“Absurdo, ridículo, repugnante”, a violência de sua retratação,
a recusa em lembrar-se de si mesmo, mostra o terror que ainda
sente e a força do abalo que não pôde suportar até o fim. De
serção, abdicação que se lhe censura, mas a censura é muito
fácil para quem não correu risco.
Na obra, o artista não se protege somente do mundo mas
da exigência que o atrai para fora do mundo. A obra doma e
submete momentaneamente esse “lado de fora”, restituindo-lhe
uma intimidade, ela impõe silêncio, confere uma intimidade de
silêncio a esse lado de fora sem intimidade e sem repouso que
é a fala da experiência original. Mas o que ela encerra é tam
bém o que abre sem cessar, e a obra em curso expõe-se ou a re
nunciar à sua origem, esconjurando-a mediante prestígios fáceis,
ou a reverter cada vez para mais perto dela, renunciando à sua
plena realização final. O terceiro risco é que o autor queira
conservar o contato com o mundo, consigo mesmo, com a fala
em que ele pode dizer “Eu”: quer porque, se se perder, a
obra também se perde, mas se permanece muito cautelosamen
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te ele mesmo, a obra é sua obra, exprime-o, seus dons, mas não
a exigência extrema da obra, a arte como origem.
Todo escritor, todo artista conhece o momento em que
é rejeitado e como que excluído pela obra em curso. Ela man-
tém-no à margem, está fechado o círculo em que ele não tem
mais acesso a si mesmo, onde ele, entretanto, está encerrado,
porque a obra, inacabada, não o solta. As forças não lhe faltam,
não se trata de um momento de esterilidade ou de fadiga, ou
então a fadiga nada mais é do que a forma assumida por essa
exclusão. Momento de surpreendente provação. O que o autor
vê é uma imobilidade fria da qual não pode desviar-se mas jun
to à qual não pode permanecer, que é como um enclave, uma
reserva no interior do espaço, sem ar nem luz, onde uma parte
de si mesmo e, ainda mais, a sua verdade, sua verdade solitária,
sufocam numa separação incompreensível. E não pode deixar de
errar em tomo dessa separação, quando muito pode comprimir-
se fortemente contra a superfície para além da qual apenas dis
tingue um tormento vazio, irreal e eterno, até o instante em
que, por uma manobra inexplicável, uma distração, ou pelo ex
cesso de sua expectativa, reencontra-se de súbito no interior do
círculo, une-se-lhe e reconcilia-se com a sua lei secreta.
Uma obra está concluída, não quando o é, mas quando
aquele que nela trabalha do lado de dentro pode igualmente
terminá-la do lado de fora, já não é retido interiormente pela
obra, aí é retido por uma parte de si mesmo da qual se sente
livre e da qual a obra contribuiu para libertá-lo. Esse desfecho
ideal nem sempre, entretanto, está plenamente justificado. Mui
tas obras nos comovem porque ainda vemos nelas a marca do
autor, que se afastou dela apressadamente demais, na impaci
ência de terminá-la, no temor de, se não a concluísse, não poder
voltar à luz do dia. Nessas obras, excessivamente grandes, maio
res do que aquele que as assina, sempre se deixa entrever o
momento supremo, o ponto quase central onde se sabe que se
o autor aí se mantiver, morrerá debruçado sobre a tarefa. É a
partir desse ponto mortal que se vê os grandes criadores viris
afastarem-se, mas lentamente, quase discretamente, a voltarem
num passo uniforme à superfície que o traçado regular e firme
do sulco permite em seguida arredondar segundo as perfeições
da esfera. Mas quantos outros, pela atração irresistível do cen
tro, só podem desprender-se com uma violência sem harmonia,
quantos deixam em sua esteira cicatrizes de feridas mal fecha
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das, os traços de suas sucessivas fugas, de seus regressos incon-
solados, de seu vaivém aberrante. Os mais sinceros deixam ao
abandono o que eles próprios abandonaram. Outros escondem
as ruínas e essa dissimulação torna-se a única verdade de seus
livros.
O ponto central da obra como origem, aquele que não se
pode atingir, o único, porém, que vale a pena atingir.
Esse ponto é a exigência soberana, do qual não se pode
aproximar a não ser pela realização da obra mas do qual, tam
bém, é sua abordagem que faz a obra. Quem se preocupa tão-
somente com brilhantes êxitos está, no entanto, em busca desse
ponto onde nada pode ser coroado de êxito. E quem escreve
com a preocupação exclusiva da verdade já ingressou na zona
de atração desse ponto donde o verdadeiro é excluído. Certo,
por não se sabe que sorte ou que falta de sorte, sofre-se-lhe a
pressão sob uma forma quase pura: eles aproximaram-se como
que por acaso desse instante e, onde quer que vão, o que
quer que façam, ele os retém. Exigência imperiosa e vazia, a
qual se exerce o tempo todo e os atrai para fora do tempo. Es
crever, eles não o desejam, a glória é-lhes vã, a imortalidade das
obras desagrada-lhes, as obrigações do dever são-lhes estranhas.
Viver na paixão feliz dos seres, eis o que eles preferem — mas
de suas preferências ele não se dá conta, e são postos à margem,
impelidos para a solidão essencial de que só se desprendem es
crevendo um pouco.
Conhece-se a história daquele pintor a quem o seu mece
nas tinha que encerrar para impedir que ele dissipasse lá fora
seus dons e, mesmo assim, lograva escapar por uma janela. Mas
o artista possui também em seu íntimo o seu “mecenas”, que o
encerra onde ele não pode permanecer, e desta vez sem qual
quer saída, que além disso não o alimenta mas o esfomeia, es
craviza-o sem honra, quebra-o sem razão, faz dele um ser débil
e miserável sem outro sustento senão o seu próprio e incompre
ensível tormento, e por quê? em vista de uma obra grandiosa?
em vista de uma obra nula? ele próprio nada sabe e ninguém o
sabe.
É verdade que muitos criadores parecem mais fracos do
que os outros homens, menos capazes de viver e, por conseguin
te, mais suscetíveis de se espantar com a vida. Talvez isso assim
seja com frequência. Mas conviría acrescentar que eles são for
tes no que têm de fraco, que para eles surge uma força nova
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nesse mesmo ponto em que se desfazem na extremidade de sua
fraqueza. E cumpre dizer mais ainda: quando eles metem mãos
à obra na despreocupação de seus dons, muitos são seres nor
mais, amáveis, de bem com a vida, e é somente à obra, à exigên
cia que está na obra, que eles devem esse acréscimo que só se
mede pela maior fraqueza, uma anomalia, a perda do mundo e
de si mesmos. Assim Goya, assim Nerval.
A obra exige do escritor que ele perca toda a “natureza”,
todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros
e consigo mesmo pela decisão que o faz “eu”, converta-se no lu
gar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal. Exigência
que não é uma, porquanto nada exige, é desprovida de conteú
do, não obriga, é tão-só o ar que se deve respirar, o vazio sobre
o qual se paira, a usura do dia onde se tomam invisíveis os ros
tos que se prefere. Como os homens mais corajosos só enfren
tam o risco sob o manto de um subterfúgio, muitos pensam que
responder a esse apelo é responder a um apelo de verdade: eles
têm algo a dizer, um mundo dentro deles a libertar, um manda
to a assumir, suas vidas injustificáveis a justificar. E é verdade
que se o artista não se entregasse à experiência original que o
coloca à margem, que esse distanciamento o despoja de si mes
mo, se ele não se abandonasse ao descomedimento do erro e à
migração do recomeço infinito, a palavra recomeço perder-se-ia.
Mas essa justificação não se apresenta ao artista, não é dada na
experiência, pelo contrário, é excluída desta — e o artista pode
muito bem sabê-lo “em geral”, do mesmo modo que crê na arte
em geral, mas sua obra não o sabe e sua busca ignora-o, e pros
segue na preocupação dessa ignorância.
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ro, aquele que a nada convida e desvia de tudo e, em primeiro
lugar, retira a quem escreve sua caneta. Isso significa que os
dois movimentos nada têm de comum a não ser sua própria in-
determinação, portanto, que só têm de comum o modo interro
gativo, o único em que é possível apreendê-los. Ninguém pode
dizer a si mesmo, “Eu estou desesperado”, mas “Tu estás deses
perado?”, e ninguém pode afirmar, “Eu escrevo”, mas somente
“Tu escreves? Sim? Escreverás?”
O caso de Kafka é confuso e complexo.1 A paixão de
Hõlderlin é pura paixão, ela atrai-o para fora de si mesmo por
uma exigência que não tem outro nome. A paixão de Kafka
também é puramente literária mas nem sempre e nem o tempo
todo. A preocupação de salvação é nele imensa, tanto mais
forte porquanto é desesperada, tanto mais desesperada porque
1 Quase todos os textos citados nas páginas que se seguem são extraí
dos da edição completa do Diário de Kafka, a qual reproduz os 13 ca
dernos in quarto em que, de 1910 a 1923, Kafka escreveu tudo o que
lhe importava, acontecimentos de sua vida pessoal, meditação sobre
esses acontecimentos, descrição de pessoas e lugares, descrição de seus
sonhos, relatos iniciados, interrompidos, recomeçados. Portanto, não
é apenas um “Diário” como se entende hoje em dia, mas o próprio
movimento da experiência de escrever, o mais próximo de seu começo
e no sentido essencial que Kafka foi levado a dar a essa palavra. É
sob essa perspectiva que o Diário deve ser lido e interrogado.
Max Brod afirma que fez apenas algumas supressões insignifican
tes; não há razões para duvidar disso. Em contrapartida, ele está con
vencido de que Kafka, em vários momentos decisivos destruiu grande
parte de suas notas. E, depois de 1923, o Diário falta por completo.
Ignoramos se os manuscritos destruídos a seu pedido por Dora Dymant
compreendiam a continuação de seus cadernos: é muito provável. Cum
pre dizer, pois, que depois de 1923 Kafka toma-se-nos desconhecido,
pois sabemos que aqueles que melhor o conheciam julgavam-no de um
modo muito diferente do que ele se imaginava ser para si mesmo.
O Diário (que os cadernos de viagem completam) quase nada nos
revela de suas opiniões sobre os grandes temas que poderiam interessar-
lhe. O Diário fala-nos de Kafka nessa fase anterior em que ele ainda
não tem opiniões e em que mal se vislumbra um Kafka. Tal é o seu
valor essencial. O livro de G. Janouch (Conversations avec Kajka,
trad, na França com o título Kafka m’a dif) permite-nos, pelo contrário,
ouvir Kafka ao sabor de conversações mais cotidianas, em que fala
tanto do futuro do mundo quanto do problema judaico, do sionismo,
das formas religiosas e, por vezes, de seus livros. Janouch conheceu
Kafka em 1920, em Praga. Começou quase de imediato tomando nota
das conversas que descreve e Brod confirmou a fidelidade de tal eco.
Mas, para não haver enganos sobre o alcance desses depoimentos, cum
pre lembrar que eles foram feitos a um jovem de 17 anos, cuja juven
51
é sem compromisso. Essa preocupação passa, sem dúvida, com
uma surpreendente constância pela literatura e confunde-se com
ela por largo tempo, depois passa de novo por ela mas já não
se perde nela, tende a servir-se dela e, como a literatura jamais
aceita converter-se num meio e Kafka sabe-o, daí resultam con
flitos obscuros, mesmo para ele, ainda mais para nós, e uma
evolução difícil de esclarecer mas que, no entanto, nos elucida.
O jovem Kafka
Kafka não foi sempre o mesmo. Até 1912, seu desejo de escre
ver é enorme, dá lugar a obras que não o persuadem de seus
dotes, e ainda menos o persuadem de que possua uma cons
ciência direta deles: forças selvagens, de uma plenitude devas
tadora, que ele quase não explora, por falta de tempo, mas
também porque nada pode fazer delas, porque “teme esses
momentos de exaltação, tanto quanto os deseja”. Sob muitos
aspectos, Kafka assemelha-se então a todo jovem em que
desperta o gosto de escrever, que reconhece estar aí a sua vo
cação, que reconhece as exigências nela implícitas e não tem
qualquer prova de que esteja à altura de satisfazê-las. O indí
cio mais claro de que ele é, em certa medida, um jovem escri
tor como os outros, é esse romance que começa a escrever
em colaboração com Brod. Tal partilha de sua solidão mostra
que Kafka ainda vagueia em tomo dela. Apercebe-se muito
rapidamente disso, como indica esta nota do Diário: “Max e
eu profundamente diferentes. Ora admiro seus escritos quando
estão diante de mim como um todo inacessível ao meu alcance
e a todo o alcance. . ora cada frase que ele escreve para
Ricardo e Samuel me parece ligada, de minha parte, a uma
concessão que me repugna e que experimento dolorosamente
até ao fundo de meu ser. Pelo menos hoje” (novembro de
1911).
52
Até 1912, se não se consagra por inteiro à literatura, dá-se
esta desculpa: “Nada posso arriscar enquanto não tiver reali
zado um trabalho maior, capaz de me satisfazer plenamente.”
Essa prova é-lhe proporcionada na noite de 22 de setembro de
1912, a noite em que ele escreve de uma penada A Sentença e
que o avizinha de maneira decisiva daquele ponto em que
lhe parece que “tudo pode exprimir-se, que para tudo, para
as idéias mais estranhas, está pronto um grande fogo no qual
elas perecem e desaparecem”. Pouco depois, lê esse conto aos
seus amigos, leitura que o confirma: “Tinha lágrimas nos olhos.
O caráter indubitável da história confirmava-se.” (Essa necessi
dade de ler aos amigos, frequentemente às irmãs dele, até ao
pai, o que acabara de escrever, pertence também à região mé
dia. Nunca a renunciará por completo. Não é vaidade literá
ria — embora ele próprio a denuncie — mas uma necessidade
de embate físico com sua obra, de se deixar empolgar, impelir
por ela, fazendo-a revelar-se no espaço vocal que seus grandes
dotes de leitor lhe conferem o poder de suscitar.)
Kafka sabe agora que pode escrever. Mas esse saber não é
simples, esse poder não é o dele. Com raras exceções, nunca
encontra no que escreve a prova de que escreve verdadeira
mente. É quando muito um prelúdio, um trabalho de aproxi
mação, de reconhecimento. Sobre A Metamorfose, diz ele:
“Acho-o ruim; talvez eu esteja definitivamente perdido”, ou,
mais tarde: “Grande aversão por A Metamorfose. Final ilegí
vel. Quase radicalmente imperfeito. Teria sido muito melhor,
se eu não tivesse sido perturbado pela viagem de negócios”
(19 de janeiro de 1914).
O conflito
53
melhor organização das coisas”. Mais tarde, quando a doença
lhe propicia o ócio, o conflito subsiste, agrava-se, muda de for
ma. Não há circunstâncias favoráveis. Mesmo que dê “todo o
seu tempo” à exigência da obra, “todo” ainda não é bastante,
pois não se trata de consagrar o tempo ao trabalho, de passar
o tempo escrevendo, mas de passar para um outro tempo onde
não existe mais trabalho, de se aproximar desse ponto em que
o tempo está perdido, onde se ingressa no fascínio e na solidão
da ausência de tempo. Quando se tem o tempo todo, não se tem
mais tempo, e as circunstâncias exteriores “amistosas” conver
teram-se — inamistosas — na inexistência de circunstâncias.
Kafka não pode ou não aceita escrever “em pequenas
quantidades” no inacabamento de momentos separados. É o
que lhe foi revelado na noite de 22 de setembro quando, tendo
escrito de uma assentada, recuperou em sua plenitude o movi
mento ilimitado que o leva a escrever: “Só assim é possível
escrever, com uma tal continuidade, uma abertura tão comple
ta do corpo e da alma.” E mais tarde (8 de dezembro de 1914):
“Vejo de novo que tudo o que é escrito por fragmentos, e não
de enfiada no decorrer da maior parte da noite, ou da noite
inteira, tem menos valor, e que estou condenado pelo meu
gênero de vida a esse menor valor.” Aí temos uma primeira
explicação para tantos relatos abandonados sobre os quais o
Diário, em seu estado atual, nos revela destroços impressio
nantes. Com muita frequência, “a história” não vai além de
algumas linhas, ora atinge rapidamente coerência e densidade e,
no entanto, ao fim de uma página, detém-se, ora desenvolve-se
ao longo de várias páginas, afirma-se, estende-se — e, no en
tanto, pára. Há para isso muitas razões mas, em primeiro lu
gar, Kafka não encontra no tempo de que dispõe a extensão
que permitiría à história desenvolver-se, segundo ela quer, em
todas as direções: a história nunca é mais do que um fragmen
to, depois outro fragmento. “Como, a partir de pedaços, posso
fundir uma história capaz de ganhar impulso e desenvolver-se?”
De modo que, não tendo sido dominada, não tendo suscitado o
espaço adequado onde a necessidade de escrever é simultanea
mente reprimida e exprimida, a história desencadeia-se, extravia-
se, junta-se à noite donde saiu e aí retém dolorosamente aquele
que não soube dar-lhe a luz do dia.
Kafka precisava de mais tempo mas necessitava também
de menos mundo. O mundo é, em primeiro lugar, sua famí
lia, cujas coerções ele dificilmente suporta, sem que consiga
jamais libertar-se delas, é, em seguida, sua noiva, seu desejo
essencial de cumprir a lei que manda o homem realizar o seu
destino no mundo, tenha uma família, filhos, pertença à comu
nidade. Aí, o conflito assume uma aparência nova, entra numa
contradição que a situação religiosa de Kafka torna especial
mente forte. Quando, em torno de seu noivado anunciado, des
feito, renovado com F.B., ele examina infatigavelmente, com
uma tensão cada vez maior, “tudo o que é pró ou contra o
meu casamento”, esbarra sempre com esta exigência: “A minha
única aspiração e a minha única vocação.. . é a literatura. • .
Tudo o que eu fiz nada mais é do que um resultado da soli
dão. .. ao passo que nunca mais estaria então só. Isso não,
isso não.” Durante seu noivado em Berlim: “Estava manietado
como um criminoso; se me tivessem jogado para um canto com
grilhões de verdade, os gendarmes à minha frente. . . isso não
teria sido pior. E era o meu noivado, e todos se esforçavam
por me conduzir à vida e, não o conseguindo, por me suportar
como eu era.” Pouco depois desfaz-se o noivado, mas a aspira
ção subsiste, o desejo de uma vida “normal”, em que o tormen
to por ter ferido alguém que lhe é próximo se impregna de uma
força dilacerante. Comparou-se, e o próprio Kafka o fez, a sua
história com a do noivado de Kierkegaard. Mas o conflito é
diferente. Kierkegaard pôde renunciar a Regine, pôde renunciar
ao estágio ético: o acesso ao estágio religioso não foi compro
metido, pelo contrário, foi facilitado. Mas Kafka, se abandona
a felicidade terrena de uma vida normal, abandona também a
firmeza de uma vida justa, coloca-se fora da lei, priva-se do
solo e da base sólida de que necessita para ser e, numa certa
medida, priva-se da lei. é o eterno dilema de Abraão. O que é
exigido a Abraão não é somente que sacrifique seu filho mas o
próprio Deus: o filho é o futuro de Deus na terra, porquanto
é o tempo que, na verdade, é a Terra Prometida, a verdadeira,
a única morada do povo eleito e de Deus em seu povo. Ora,
Abraão, ao sacrificar seu filho único, deve sacrificar o tempo, e
o tempo sacrificado não lhe será dado, por certo, na eternidade
do além: no além nada mais existe senão o futuro, o futuro de
Deus no tempo. O além é Isaac.
A prova, para Kafka, é mais pesada do que tudo o que lhe
toma leve (o que seria a prova de Abraão se, não tendo filho,
lhe fosse exigido, porém, o sacrifício desse filho? Não poderia
ser levado a sério, só se poderia rir disso, riso que é a forma
da dor de Kafka). Assim, o problema é tal que se esquiva àque-
55
le que, em sua indecisão, procura sustentá-lo. Outros escritores
conheceram conflitos semelhantes: Hõlderlin luta contra a mãe
que queria vê-lo tornar-se pastor, não pode ligar-se a uma tare
fa determinada, não pode ligar-se àquela que o ama e ama
precisamente aquela a quem não pode ligar-se, conflitos que
sente em toda a sua força e que, em parte, o dilaceram mas
jamais inculpam a exigência absoluta da fala poética, fora da
qual, pelo menos a partir de 1800, ele já não possui existência.
Para Kafka, tudo é mais confuso, porque ele procura confun
dir a exigência da obra e a exigência que poderia trazer o nome
de sua salvação. Se escrever o condena à solidão, faz de sua
existência a existência de um celibatário, sem amor e sem vín
culos, se, entretanto, escrever parece-lhe ser — pelo menos
com freqüência e durante largo tempo — a única atividade que
poderia justificá-lo, é porque, de todos os modos, a solidão amea
ça nele e fora dele, é porque a comunidade não passa de um
fantasma e a lei que ainda fala nela nem mesmo é a lei esque
cida mas a dissimulação do esquecimento da lei. Escrever con
verte-se, então, no seio do desamparo e da fraqueza de que esse
movimento é inseparável, numa possibilidade de plenitude,
num caminho sem objetivo capaz de corresponder, talvez, a esse
objetivo sem caminho que é o único que cumpre atingir.
Quando não escreve, Kafka está não somente só, “só como
Franz Kafka”, dirá ele a G. Janouch, mas numa solidão estéril,
fria, de uma frialdade petrificante a que chama hebetude e
que parece ter sido a grande ameaça por ele temida. O pró
prio Brod, tão cioso de fazer de Kafka um homem sem anoma
lias, reconhece que ele está, por vezes, como que ausente e
como que morto. Muito semelhante, uma vez mais, a Hõlder
lin, ao ponto de ambos, para se queixarem de si mesmos, em
pregarem as mesmas palavras; Jdõlderlin: “Estou entorpecido,
sou de pedra”, e Kafka: “Minha incapacidade para pensar,
observar, constatar, para me recordar, para falar e participar
da vida dos outros, toma-se cada vez maior; viro pedra...
Se não me salvo pelo trabalho, estou perdido” (28 de julho
de 1914).
“Se não me salvo pelo trabalho. . .” Mas por que esse trabalho
poderia salvá-lo? Parece que Kafka teria precisamente reconhe-
56
cido nesse terrível estado de autodissolução, onde está perdido
para os outros e para si mesmo, o centro de gravidade da exi-
i gência de escrever. Onde ele se sente destruído até ao fundo
nasce a profundidade que substitui a destruição pela possibili
dade da criação suprema. Maravilhosa reviravolta, esperança
sempre igual ao maior desespero, e como se compreende que,
dessa experiência, ele extrai um movimento de confiança que
não questionará de bom grado. O trabalho toma-se então, so
bretudo em seus anos de juventude, como que um meio de
salvação psicológica (ainda não espiritual), o esforço de uma
criação que “possa estar vinculada, palavra por palavra, à sua
vida, que ele atrai a si para que ela o retire de si mesmo”, o
, que ele exprime do modo mais cândido e mais forte nestes ter-
| [ mos: “Tenho hoje um grande desejo de pôr para fora de mim,
I escrevendo, todo o meu estado ansioso e, tal como chega das
i profundezas do meu íntimo, introduzi-lo na profundidade do
I papel, de tal sorte que possa introduzir inteiramente em mim
a coisa escrita” (8 de dezembro de 1911).2 Por mais sombria
que possa vir a ser, essa esperança jamais será totalmente des
mentida, e encontraremos sempre no seu Diário, em todas as
épocas, apontamentos deste gênero: “A firmeza que me pro
porciona a menor coisa escrita é indubitável e maravilhosa. O
olhar com que ontem, durante o passeio, abraçava tudo num só
golpe de vista!” (27 de novembro de 1913). Escrever não é
nesse momento, um apelo, a expectativa de uma graça ou um
obscuro cumprimento profético, mas algo mais simples e pre
mente, de um modo mais imediato: a esperança de não su
cumbir ou, mais exatamente, de soçobrar mais depressa do que
ele próprio e, assim, recuperar-se no último momento. Dever
mais premente, portanto, do que todos os outros, e que o leva
a escrever em 31 de julho de 1914 estas palavras extraordiná
rias: “Não tenho tempo. É a mobilização geral. K. e P. são
convocados. Agora recebo o salário da solidão. É, apesar de
tudo, um salário minguado. A solidão só traz punições. Não
importa, sou pouco afetado por toda essa miséria e mais deci
dido do que nunca... Escreverei a despeito de tudo, a todo o
custo: é o meu combate pela sobrevivência.”
57
Mudança de perspectiva
58
Seria despropositado extrair de notas passageiras as afir
mações absolutas que elas contêm, e ainda que ele mesmo o
esqueça aqui, não se pode esquecer que Kafka nunca deixou
de escrever, que escreverá até o fim. Mas entre o jovem que
dizia àquele a quem considerava como seu futuro, “Eu nada
_mais__sou_^enão literatura, e não posso nem quero .ser..outra
coisa”, e o homem maduro que, dez anos depois, colocava a
literatura no mesmo plano de seus pequenos ensaios de jardi
nagem, a diferença é grande, mesmo que exteríormente a força
de escritor permaneça a mesma, parecendo até mais rigorosa e
mais precisa perto do fim, aquela a que devemos O Castelo.
Donde provém essa diferença? Dizê-lo seria assenhorear-
mo-nos da vida interior de um homem infinitamente reservado,
secreto até para seus amigos e, aliás, pouco acessível a ele mes
mo. Ninguém pode pretender reduzir a um certo número de
afirmações precisas o que não podia atingir, para ele, a trans
parência de uma fala compreensível. Seria necessário, além
disso, uma comunidade de intenções que é impossível. Pelo
menos, não se cometerão, sem dúvida, erros exteriores ao dizer
que, embora a confiança dele nos poderes da arte tenha, com
freqüência, continuado grande, sua confiança nos próprios po
deres, postos sempre e cada vez mais à prova, esclarece-o sobre
essa prova, sobre a sua exigência, esclarece-o, sobretudo, sobre
o que ele próprio exige da arte: não mais dar à sua pessoa rea
lidade e coerência, isto é, salvá-lo da loucura, mas salvá-lo da
perdição, e quando Kafka pressentir que, banido deste mundo
real, ele talvez já seja cidadão de um outro mundo onde tem
que lutar não somente por si mesmo mas também por esse outro
mundo, então escrever apresentar-se-lhe-á apenas como um meio
de luta, ora decepcionante, ora maravilhoso, que ele pode per
der sem tudo perder.
Comparem-se estas duas notas. A primeira é de janeiro de
1912: “É preciso reconhecer em mim uma concentração muito
boa na atividade literária. Quando o meu organismo se deu
conta de que escrever era a direção mais fecunda do meu ser,
tudo para aí se dirigiu e foram abandonadas todas as outras
capacidades, aquelas que têm por objetivo os prazeres do sexo,
da bebida, da comida, da meditação filosófica e, sobretudo, da
música. Emagrecí em todas as direções. Era necessário, porque
as minhas forças, mesmo reunidas, eram tão escassas que só
podiam alcançar pela metade o objetivo de escrever... A
compensação de tudo isso é clara. Bastar-me-á rejeitar o tra
59
balho de escritório — estando concluído o meu desenvolvimen
to e não tendo eu próprio mais nada a sacrificar, até onde me
é possível enxergar — para começar a minha vida real, na qual
o meu rosto poderá, enfim, envelhecer de maneira natural, se
gundo os progressos do meu trabalho.” A leveza da ironia não
deve, sem dúvida, enganar-nos, mas essa leveza, essa despreo
cupação, no entanto sensíveis, esclarecem por contraste a tensão
desta outra nota, cujo sentido é aparentemente o mesmo (datada
de 6 de agosto de 1914): “Do ponto de vista da literatura, o
meu destino é muito simples. O sentido que me leva a repre
sentar os devaneios da minha vida interior repeliu tudo o mais
para a esfera do acessório, e tudo isso definhou terrivelmente,
não pára de definhar. Nenhuma outra coisa poderá jamais sa
tisfazer-me. Mas, agora, a minha força de representação escapa
a todos os cálculos; talvez tenha desaparecido para sempre;
talvez ainda retorne um dia; as circunstâncias de minha vida
não lhe são naturalmente favoráveis. Assim é que vacilo, que
arremeto incessantemente para o cume da montanha, onde mal
posso manter-me um instante sequer. Outros também vacilam
mas em regiões mais baixas, com forças bem maiores; se amea
çam despencar, há sempre um familiar, o pai, a mãe, que os
amparam e que, com esse intuito, caminham junto deles. Mas,
eu, é lá no alto que vacilo; infelizmente não é a morte mas
os tormentos eternos do Morrer.”
Cruzam-se aqui três movimentos. Uma afirmação: “Ne
nhuma outra coisa (senão a literatura) poderá jamais satisfa
zer-me.” Uma dúvida sobre si, ligada à essência inexoravelmente
incerta de seus dons, a qual “frustra todos os cálculos”. O senti
mento de que essa incerteza — o fato de que escrever nunca
é um poder de que se disponha — pertence ao que existe de
mais extremo na obra, exigência central, mortal, que “infeliz
mente não é a morte”, que é a morte mas mantida a distância,
os “tormentos eternos do Morrer”.
Pode-se dizer que esses três movimentos constituem, por
suas vicissitudes, a provação que esgota em Kafka a fidelidade
à sua vocapão única”, a nual, coincidente com as preocupações
religiosas, leva-o a ler nessa exigência única uma coisa diferente
do que ela é, uma outra exigência que tende a subordiná-la ou,
pelo menos, a transformá-la. Quanto mais Kafka escreve, menos
seguro ele está de escrever. Por vezes, tenta readquirir segu
rança pensando que, “uma vez recebido o conhecimento da arte
de escrever, isso não poderá mais faltar nem soçobrar, mas
60
também, embora raramente, surge alguma coisa que excede a
medida”. Consolação sem força: quanto mais ele escreve, mais
se aproxima desse ponto extremo para o qual a obra tende como
para a sua origem, mas que aquele que a apresenta só pode
ver como a profundidade vazia do indefinido. “Não posso mais
continuar a escrever. Estou no limite definitivo, diante do qual
talvez deva permanecer de novo durante anos, antes de poder
recomeçar uma nova história que, uma vez mais, ficará inaca
bada. Esse destino me persegue” (30 de novembro de 1914).
Parece que em 1915-1916, por fútil que seja querer datar
um movimento que escapa ao tempo, cumpre-se a mudança de
perspectiva. Kafka reatou com sua antiga noiva. Essas relações,
que culminaram em 1917 em noivado, de novo, e logo em se
guida terminaram com a doença que então se declara, lançam-
no em tormentos que não pode superar. Descobre sempre, cada
vez com maior acuidade, que não sabe viver sozinho e que não
pode viver com outros. O que há de culpável na sua situação,
em sua existência entregue ao que ele chama os vícios buro
cráticos, mesquinhez, indecisão, espírito calculista, domina-o
e obceca-o. É preciso escapar, custe o que custe, a essa buro
cracia, e para isso já não pode contar com a literatura, pois esse
trabalho esquiva-se-lhe, pois esse trabalho tem sua participação
na impostura da irresponsabilidade, pois o trabalho exige a so
lidão mas é também aniquilado por ela. Daí resulta a decisão:
“Fazer-se soldado”. Ao mesmo tempo aparecem no Diário
alusões ao Antigo Testamento, fazem-se ouvir os gritos de um
homem perdido: “Toma-me em teus braços, é o abismo, acolhe-
me no abismo; se recusas agora, então mais tarde.” “Toma-me,
toma-me, a mim, que nada mais sou do que um entrelaçamento
de loucura e dor.” “Tende piedade de mim, sou um pecador
em todos os recessos do meu ser. . . Não me rejeites entre os
perdidos.”
Traduziram-se outrora em edições francesas alguns desses
textos acrescentando-lhes a palavra Deus. Ela não figura aí. A
palavra Deus quase nunca aparece no Diário e nunca de um
modo significativo. Isso não significa que essas invocações, em
sua incerteza, não tenham uma direção religiosa, mas que cum
pre conservar a força dessa incerteza e não privar Kafka do
espírito de reserva de que ele sempre deu prova a respeito do
que lhe era mais importante. Essas palavras de desamparo, de
impotência, são de julho de 1916 e correspondem a uma estada
em Marienbad com F. B. Estada no início pouco feliz mas que,
61
finalmente, os aproximará intimamente. Um ano mais tarde,
está noivo de novo; um mês depois, cospe sangue; em setem
bro, deixa Praga, mas a doença ainda é moderada e só se tor
nará ameaçadora (parece) a partir de 1922. Ainda em 1917
escreve os “Aforismos”, único texto em que a afirmação espiri
tual (sob uma forma geral que não o preocupa em particular)
escapa, por vezes, à experiência de uma transcendência negativa.
Nos anos que se seguem, o Diário é praticamente omisso.
Nem uma palavra em 1918. Algumas linhas em 1919, quando
fica noivo de uma jovem a cujo respeito quase nada sabemos.
Em 1920 conhece Milena Jesenska, uma jovem tcheca sensível,
inteligente, capaz de uma grande liberdade de espírito e de
paixão, com quem durante dois anos se liga por um sentimento
violento, no início repleto de esperança e felicidade, mais tarde
condenado à frustração e ao desespero. O Diário toma-se de
novo mais importante em 1921 e, sobretudo, em 1922, onde as
vicissitudes dessa amizade, enquanto a enfermidade se agrava,
levam-no a um ponto de tensão em que seu espírito parece
oscilar entre a loucura e a decisão de salvação. Cumpre, neste
ponto, fazer duas longas citações. O primeiro texto é datado
de 28 de janeiro de 1922:
“Um pouco inconsciente, cansado de patinar. Ainda exis
tem armas, tão raramente empregadas, e abro caminho com
tanta dificuldade até elas, porque não conheço a alegria de me
servir delas, porque, criança, não aprendi. Não o aprendi, não
somente ‘pela culpa do pai’ mas também porque quis destruir
‘o repouso’, perturbar o equilíbrio e, por conseguinte, não tinha
o direito de deixar renascer alguém que, por outro lado, me
esforçava por enterrar. É verdade, reverto aí à ‘culpa’, já que
por que razão queria sair do mundo? Porque ‘ele’ não me
deixava viver no mundo, em seu mundo. Naturalmente, hoje,
não posso já julgá-lo tão claramente, pois agora já sou cidadão
nesse outro mundo que tem com o mundo habitual a mesma
relação do deserto com as terras cultivadas (durante quarenta
anos vaguei fora de Canaã), e é como um estrangeiro que
olho para trás; sem dúvida, nesse outro mundo, não sou eu
também o menor e o mais ansioso (levei isso comigo,
é a herança paterna), e se aí sou capaz de viver é apenas em
virtude da organização apropriada aí existente e segundo a qual,
até para os mais íntimos de todos, existem elevações fulminantes,
também esmagamentos, naturalmente, que duram milhares de
anos e como que sob o peso do mar todo. Apesar de tudo, não
62
deverei ser grato? Não me teria sido imprescindível encontrar
o caminho para chegar até aqui? Não teria podido acontecer-
me que o ‘banimento’ no outro mundo, somado à exclusão
deste, me esmagasse contra a fronteira entre os dois? E não
é graças à força do meu pai que a expulsão foi suficiente
mente forte para que nada lhe pudesse resistir (a ela, não
a mim)? É verdade, é como a viagem no deserto às avessas,
com as proximidades contínuas do deserto e as esperanças in
fantis (em especial no que se refere às mulheres): ‘Será que eu
não estaria ainda em Canaã?’, e, no entanto, já estou há muito
tempo no deserto e tudo são apenas visões de desespero, sobre
tudo nestes tempos em que, também ali, sou o mais miserável
de todos e onde é preciso que Canaã se ofereça como a única
Terra Prometida, porquanto não existe uma terceira terra para
os homens.”
O segundo texto é datado do dia seguinte:
“Ataques no caminho, à tarde, na neve. Sempre a mistura
de representações, mais ou menos assim: neste mundo a situa
ção seria assustadora — aqui, só em Spindlemühle, ademais
num caminho abandonado onde a todo o instante se dão passos
em falso na escuridão, na neve; além disso, um caminho priva
do de sentido, sem objetivo terrestre (leva à ponte? por que lá
embaixo? aliás, nem sequer o alcancei); ademais, neste lugar,
eu também abandonado (não posso considerar o médico uma
ajuda pessoal, não a obtive por meus méritos, no fundo só
tenho com ele relações de honorários), incapaz de ser conheci
do de alguém, incapaz de suportar um conhecimento, no fundo
cheio de um infinito espanto diante de uma sociedade alegre ou
diante de pais com seus filhos (no hotel, naturalmente, não há
muita alegria, não chegarei ao ponto de dizer que a causa sou
eu, na minha qualidade de ‘homem de sombra imensa’, mas,
efetivamente, a minha sombra é grande demais, e com um re
novado espanto constato a força de resistência, a obstinação de
certos seres em quererem viver ‘apesar de tudo* nessa sombra,
justamente nela; mas aqui junta-se ainda outra coisa de que
falta falar); além disso, abandonado não só aqui mas em geral,
até em Praga, a minha ‘terra natal’, e não abandonado dos ho
mens, isso não seria o pior, enquanto viver poderia ir no encalço
deles, mas abandonado de mim em relação aos seres, de minha
força em relação aos seres; estou grato àqueles que amam, mas
não posso amar, estou longe demais, estou excluído; sem dúvida,
que sou, contudo, um ser humano e as raízes querem alimento,
63
tenho lá ‘embaixo’ (ou em cima) os meus representantes, come
diantes lamentáveis e insuficientes, que me bastam (é verdade,
não me bastam de maneira nenhuma e é por isso que estou
tão abandonado), que me bastam pela única razão de que o meu
alimento principal provém de outras raízes num outro ar, raízes
essas que também são lamentáveis mas, entretanto, mais ca
pazes de vida. Isso me conduz à mistura das representações. Se
tudo fosse assim como se apresenta no caminho na neve, seria
assustador, eu estaria perdido, não entendido como uma amea
ça mas como uma execução imediata. Mas estou em outra parte.
Acontece que a força de atração do mundo dos homens é mons
truosa, num instante pode fazer esquecer tudo. Mas grande é
também a força de atração do meu mundo, os que me amam
me amam, porque estou ‘abandonado’ e não, talvez, como o
vácuo de Weiss, mas porque sentem que, em tempos felizes,
num outro plano, tenho a liberdade de movimento que me falta
completamente aqui.”
A experiência positiva
64
desse erro o princípio, a origem de uma liberdade nova. Luta
sem saída e sem certeza, onde o que tem de conquistar é a
sua própria perda, a verdade do exílio e o retorno ao próprio
seio da dispersão. Luta que se aproximará das profundas espe
culações judaicas, quando, sobretudo em resultado da expulsão
da Espanha, os espíritos religiosos tentam superar o exflio le
vando-o ao seu termo extremo.4 Kafka fez claramente alusão a
“toda essa literatura” (a dele) como a “uma nova Cabala”, uma
“nova doutrina secreta” que “teria podido desenvolver-se” se
“o sionismo não tivesse, nesse meio tempo, ocorrido” (16 de
janeiro de 1922). E compreende-se melhor por que ele é, si
multaneamente, sionista e anti-sionista. O sionismo é a cura do
exílio, a afirmação de que é possível permanecer na terra, de
que o povo judeu não tem apenas por morada um livro, a Bí
blia, mas a terra e não mais a dispersão no tempo. Kafka quer
profundamente essa reconciliação, ele a quer mesmo que seja
65
dela excluído, pois a grandeza dessa consciência justa foi sem
pre esperar para os outros mais do que para ele e não fazer
de sua desgraça pessoal a medida do infortúnio comum: “Mag
nífico, tudo isso, exceto para mim e com razão.” Mas ele não
pertence a essa verdade e é por isso que tem de ser anti-sionista
para si mesmo, sob pena de ser condenado à execução imediata
e a desesperança da impiedade absoluta. Ele já pertence à outra
margem, e sua migração não consiste em aproximar-se de Ca
naã mas em acercar-se do deserto, da verdade do deserto, de
ir sempre mais longe do lado de lá, mesmo quando, desgraçado
também nesse outro mundo e tentado ainda pelas alegrias do
mundo real (“em especial no que se refere às mulheres”: isso
é uma alusão clara a Milena), tenta persuadir-se de que per
manece ainda em Canaã. Se ele não fosse anti-sionista para si
mesmo (isso é dito apenas, naturalmente, como uma figura), se
existisse somente este mundo, então “a situação seria assustado
ra”, então ele estaria imediatamente perdido. Mas ele está
“alhures”, e se a força de atração do mundo humano continua
sendo bastante grande para levá-lo até às fronteiras e aí o man
ter como que esmagado, não menor é a força de atração do seu
próprio mundo, aquele onde ele é livre, liberdade de que fala
com um frêmito, com uma ênfase de autoridade profética que
contrasta com a sua habitual modéstia.
Que esse outro mundo tenha algo a ver com a atividade
literária não sofre dúvida e a prova disso é que Kafka, se fala
da “nova Cabala”, refere-se-lhe precisamente a propósito de
“toda essa literatura”. Mas também se pode pressentir que a
exigência, a verdade desse outro mundo supera, doravante, a
seus olhos, a exigência da obra, não é esgotada por ela e só
se cumpre imperfeitamente nela. Quando escrever converte-se
“em forma de prece”, é porque existem, sem dúvida, outras for
mas e mesmo que, em consequência deste mundo desditoso, não
existisse mais nenhuma, escrever, nessa perspectiva, deixa de
ser a abordagem da obra para tomar-se a expectativa desse úni
co momento de graça de que Kafka se reconhece o espia e em
que já não será preciso escrever mais. A Janouch, que lhe per
gunta: “A poesia tende, pois, para a religião?”, ele responde:
"Eu não diria isso, mas tende certamente para a prece” e, opon
do literatura e poesia, acrescenta: “A literatura esforça-se por
colocar as coisas sob uma luz agradável; o poeta é obrigado a
elevá-las ao reino da verdade, da pureza e da permanência.”
Resposta significativa, porquanto corresponde a uma nota do
66
Diário em que Kafka se pergunta que alegria poderá ainda
reservar-lhe a literatura: “Posso ainda extrair uma satisfação
momentânea de obras como O Médico Militar, na suposição de
que possa ainda realizar algo semelhante (o que é muito pouco
verossímil). Mas, felicidade somente no caso em que eu pudes
se elevar o mundo no puro, no verdadeiro e no inalterável” (25
de setembro de 1917). A exigência “idealista” ou “espiritual”
toma-se aqui categórica. Escrever, sim, escrever sempre, mas
somente para “elevar na vida infinita o que é perecível e isola
do, no domínio da lei o que pertence ao acaso”, como diz ainda
a Janouch. Mas logo se põe a questão: será então possível? será
certo que escrever não pertence ao mal? e a consolação de
escrever não seria uma ilusão, uma ilusão perigosa, que cum
pre recusar? “É inegavelmente uma certa felicidade poder es
crever de modo aprazível: Sufocar é terrível para além de todo
o pensamento. É verdade, para além de todo o pensamento, de
sorte que é de novo como se não existisse nada escrito” (20 de
dezembro de 1921). E a mais humilde realidade do mundo não
possui uma consistência que falta à obra mais forte? “Falta de
independência do ato de escrever: ele depende da criada que
acende o fogo, do gato que se aquece junto à lareira, até desse
pobre velhote que se aquece. Tudo são realizações autônomas
que possuem suas leis próprias; somente escrever está privado
de todo o socorro, não é auto-suficiente, é chiste e desespero”
(6 de dezembro de 1921). Esgar, esgar do rosto que recua diam-
te da luz, “uma defesa do nada, uma precaução do nada, um
sopro de alegria emprestado ao nada”, eis a arte.
Entretanto, se a confiança de seus anos de juventude dá
lugar a uma visão mais rigorosa, subsiste o fato de que, em
seus momentos mais difíceis, quando ele parece ameaçado até
em sua integridade, quando sofre por parte do desconhecido
ataques quase sensíveis (“Como isso me espia: por exemplo,
no caminho para ir ao médico, lá adiante, constantemente”),
mesmo então, ele continua vendo no seu trabalho, não o que
o ameaça mas o que pode ajudá-lo, abrir-lhe a decisão da sal
vação: “A consolação de escrever, extraordinária, misteriosa,
pode ser perigosa, pode ser salvadora: é saltar fora da fila dos
homicidas, observação que é ato [Tat-Beobachtung, a observa
ção que se converteu em ato]. Há observação-ato na medida em
que é criada uma espécie mais elevada de observação, mais
elevada, não mais aguda, e quanto mais elevada é, inacessível
à ‘fileira’ [dos homicidas], menos dependente é, mais obedece
67
às leis próprias do seu movimento, mais o seu caminho ascende,
alegremente, escapando a todos os cálculos” (27 de janeiro de
1922). Aqui, a literatura anuncia-se como o poder que emanci
pa, a força que afasta a opressão do mundo, esse mundo “onde
todas as coisas sentem a garganta apertada”, é a passagem li
bertadora do “Eu” ao “Ele”, da auto-observação que foi o
tormento de Kafka para uma observação mais alta, elevando-se
acima de uma realidade mortal, na direção do outro mundo, o
da liberdade.
68
uma tribo negra, uma porção de superstições grosseiras.”8 Por
tanto, não se deveria esperar meras explicações, talvez corre
tas, mas que, pelo menos, não nos deixam compreender por que,
tão sensível ao extravio que cada uma de suas iniciativas cons
titui, Kafka abandona-se com tanta fé a esse erro essencial que
é a literatura. Sobre esse ponto, não seria suficiente recordar
que, desde sua adolescência, sofreu a influência extraordinária
de artistas como Goethe e Flaubert, que ele freqüentemente se
dispunha a colocar acima de todos, porque ambos colocavam
sua arte acima de tudo. Dessa concepção, Kafka, sem dúvida,
nunca se separou interiormente de todo, mas se a paixão da
arte foi desde o começo tão forte e pareceu-lhe por tanto tem
po salutar, foi porque, desde o começo e por “culpa do pai”,
ele viu-se jogado fora do mundo, condenado a uma solidão da
qual, portanto, não tinha que responsabilizar a literatura mas,
antes, estar-lhe grato por ter iluminado essa solidão, por tê-la
fecundado e propiciado uma abertura para um outro mundo.
Pode-se dizer que o seu debate com o pai voltou a lançar
na sombra, para ele, a face negativa da experiência literária.
Mesmo quando vê que o seu trabalho exige que ele se consuma,
mesmo quando, mais gravemente, vê a oposição entre seu traba
lho e seu casamento, Kafka não conclui, em absoluto, que exis
te no trabalho uma potência mortal, uma fala que pronuncia o
“banimento” e condena ao deserto. Não o conclui porque, des
de o início, o mundo perdeu-se para ele, a existência real foi-lhe
retirada, ou nunca lhe foi dada, e quando fala de novo do seu
exílio, da impossibilidade de se lhe furtar, dirá: “Tenho a im
pressão de não ter vindo aqui mas já, criança pequena, ter
sido empurrado e depois preso com correntes lá embaixo” (24
de janeiro de 1922). A arte não lhe deu esse infortúnio, nem
mesmo ajudou a isso mas, pelo contrário, esclareceu-o, foi “a
consciência da infelicidade”, a sua nova dimensão.
A arte é, em primeiro lugar, a consciência da infelicida
de, não a sua compensação. O rigor de Kafka, sua fidelidade à
exigência da obra, sua fidelidade à exigência do infortúnio,
pouparam-lhe esse paraíso das ficções onde se comprazem tan
tos artistas fracos a quem a vida decepcionou. A arte não tem
69
por objeto os devaneios nem as “construções”. Mas ele tampou
co descreve a verdade: a verdade não tem que ser conhecida
nem descrita, ela não pode sequer conhecer-se a si mesma, do
mesmo modo que a salvação terrena exige ser cumprida, não
interrogada nem figurada. Nesse sentido, não existe lugar algum
para a arte: o monismo rigoroso exclui todos os ídolos. Mas,
nesse mesmo sentido, se a arte não está justificada em geral,
pelo menos está para Kafka, porquanto a arte está vinculada,
precisamente como Kafka, ao que se situa “fora” do mundo
e exprime a profundidade desse “fora” sem intimidade e sem
repouso, o que surge quando, mesmo conosco, mesmo com a
nossa morte, deixamos de ter quaisquer relações de possibilida
de. A arte é a consciência de “esse infortúnio”. Descreve a
situação daquele que se perdeu, que já não pode dizer “eu”,
que no mesmo movimento perdeu o mundo, a verdade do mun
do, que pertence ao exílio, a esse tempo de desamparo em que,
como disse Hõlderlin, os deuses já partiram ou ainda não che
garam. Isso não significa que a arte afirma um outro mundo,
embora seja verdade que ela tem sua origem, não num outro
mundo mas no outro de todo o mundo (é sobre este ponto que
vemos — mais nas notas que traduzem sua experiência religio
sa do que em sua obra — Kafka executar ou estar prestes a
executar o salto que a arte não autoriza).9
Kafka oscila pateticamente. Ora parece disposto a fazer
tudo para se criar uma permanência entre os homens, “cujo
poder de atração é monstruoso”. Procura noivar, fazer jardina
gem, exercitar-se em trabalhos manuais, pensa na Palestina,
busca alojamento em Praga a fim de conquistar não só a solidão
mas a independência de um homem maduro e vivo. Nesse plano,
o debate com o pai é essencial e todas as notas novas do Diário
o confirmam, mostram que Kafka nada dissimula do que a
psicanálise poderia desvendar-lhe. A dependência dele em rela
ção à família não só o tornou fraco, estranho às tarefas viris
(como ele afirmaria), mas como essa dependência lhe causa
horror, torna-lhe também insuportável todas as formas de de
pendência — e, para começar, o casamento, que lhe recorda
70
com repugnância o de seus pais,J£> a vida de família de que ele
queria desligar-se mas na qual desejava também envolver-se,
pois aí está o cumprimento da lei, a verdade, a do pai, que tanto
o atrai quanto o repele, de sorte que “realmente mantenho-me
de pé diante da minha família e, em seu círculo, ergo incessan
temente facas para feri-la ao mesmo tempo que para defendê-
la.” “Isso por uma parte.”
Mas, por outra parte, ele vê sempre mais, e a doença,
naturalmente, ajuda-o a ver que pertence à outra margem, que,
banido, não deve usar de astúcias com esse banimento nem per
manecer passivo, como que esmagado contra as suas fronteiras,
de olhos voltados para uma realidade de que se sente excluído
e onde nem mesmo jamais se situou, porquanto ainda não
nasceu. Essa nova perspectiva poderia ser somente a do deses
pero absoluto, a do niilismo que se lhe atribui com excessiva
facilidade. Que o infortúnio irremediável seja o seu elemento,
como negá-lo? É sua morada e seu “tempo”. Mas esse infor
túnio nunca é sem esperança; essa esperança é apenas, com fre
quência, o tormento do desamparo, não o que dá a esperança
mas o que impede que não se sacie no próprio desespero, o que
faz com que, “condenado a acabar nele, esteja também conde
nado a defender-se dele até ao fim” e, talvez, então, com a
promessa de inverter a condenação em liberdade. Nessa nova
perspectiva, a do desamparo, o essencial é não se voltar na di
reção de Canaã. A migração tem por objetivo o deserto e é
a aproximação do deserto que constitui agora a verdadeira Ter
ra Prometida. “É para lá que me conduzes?” Sim, é para lá. Mas
71
onde é lá? Nunca está à vista, o deserto é ainda menos seguro
que o mundo, nunca passa de ser tão-só a aproximação do de
serto e, nesta terra de erro, nunca se está “aqui”, mas sempre
“longe daqui”. Entretanto, nessa região onde faltam as condi
ções para uma verdadeira permanência, onde tem que se viver
numa separação incompreensível, numa exclusão da qual, de
alguma forma, se está excluído como se está excluído de si
mesmo, nessa região que é a do erro porque nada mais se faz
senão errar sem fim, subsiste uma tensão, a própria possibilida
de de errar, de ir até ao fim do erro, de se aproximar do seu
limite, de transformar o que é um caminho sem objetivo na
certeza de um objetivo sem caminho.
72
que ele ainda está no mundo, quando, desde a primeira frase,
foi repelido dele. A culpa de Joseph, como aquela que, sem
dúvida, Kafka se recriminava na época em que escrevia esse
livro, consiste em querer ganhar o seu processo no próprio
mundo, ao qual ainda acreditava pertencer, mas onde seu co
ração frio, vazio, sua existência de celibatário e de burocrata,
sua indiferença pela família — tudo traços de caráter que
Kafka reencontra em si mesmo — já o impedem de manter-se.
É certo que sua indiferença cede pouco a pouco, mas é o fruto
do processo, do mesmo modo que a beleza que ilumina os acusa
dos e os torna agradáveis às mulheres é o reflexo de sua pró
pria dissolução, da morte que avança neles, como uma luz mais
verdadeira.
O processo, o banimento, é sem dúvida um grande infor
túnio, talvez seja uma injustiça incompreensível ou uma puni
ção inexorável, mas também é — somente numa certa medida,
é verdade, eis a desculpa do herói, a armadilha onde se deixa
prender — também é um dado que não basta recusar invocan
do nos discursos ocos uma justiça mais alta, do qual se deve,
pelo contrário, tirar partido, segundo a regra que Kafka fizera
sua: “Cumpre limitarmo-nos ao que ainda se possui.” O Pro
cesso tem, pelo menos, essa vantagem, a de fazer saber a K. o
que ele realmente é, de dissipar a ilusão, as consolações enga
nadoras que, por ter um bom emprego e alguns prazeres
indiferentes, o levam a crer em sua existência, em sua existência
de homem do mundo. Mas o processo nem por isso é a verda
de, é, pelo contrário, um processo de erro, como tudo o que
está ligado ao lado de fora, a essas trevas “exteriores” onde se é
lançado pela força do banimento, processo em que, se resta
uma esperança, é aquela que avança, não em contracorrente,
por uma oposição estéril, mas no mesmo sentido do erro.
A. culpa essencial
73
repouso. Sim, ele caminha sempre, com uma obstinação inflexí
vel, no sentido do erro extremo, desdenhando a aldeia que
ainda possui alguma realidade, mas querendo o Castelo que
talvez inexista, desligando-se de Frieda, que tem alguns reflexos
vivos, a fim de voltar-se para Olga, irmã de Amélie, e dupla
mente excluída, a rejeitada, mais ainda, aquela que voluntaria
mente, mediante uma decisão assustadora, decidiu sê-lo. Tudo
deveria, portanto, correr pelo melhor. Mas não é o que aconte
ce, porque o topógrafo comete incessantemente a falta que
Kafka aponta como a mais grave de todas, a da impaciência.11
A impaciência no seio do erro é a culpa essencial, porque des
conhece a própria verdade do erro que impõe, como uma lei,
jamais acreditar que o objetivo está próximo, nem que haja
a mínima possibilidade de acercar-se dele: cumpre jamais ter
minar com o indefinido; cumpre jamais apreender como o ime
diato, como o já presente, a profundidade da ausência inson-
dável.
Certo, isso é inevitável e está aí o caráter desolador de tal
busca. Quem não é impaciente é negligente. Quem se entrega
à inquietação do erro perde a despreocupação que o tempo
esgotaria. Mal chegado, nada compreendendo dessa experiên
cia de exclusão em que se vê envolvido, K. põe-se imediata
mente a caminho para chegar depressa ao fim. Negligencia as
etapas intermédias e, sem dúvida, isso é um mérito, a força da
tensão voltada para o absoluto, mas que apenas serve para res
saltar melhor a sua aberração, a qual consiste em tomar pelo
final o que não passa de uma etapa intermediária, uma repre
sentação segundo os seus “meios”.
O engano é o mesmo do topógrafo, quando crê reconhe
cer na fantasmagoria burocrática o símbolo justo de um mundo
superior. Essa figuração é somente a medida da impaciência,
a forma sensível do erro, pela qual, para o olhar impaciente, o
absoluto é incessantemente substituído pela força inexorável do
mau infinito. K. quer sempre alcançar a meta antes de a ter
atingido. Essa exigência de um desfecho prematuro é o prin-11
74
cípio da figuração: ela engendra a imagem ou, se se quiser, o
ídolo, a maldição que se lhe associa é a que está ligada à ido
latria. O homem quer a unidade imediatamente, ele a quer na
própria separação, representa-a para si, e essa representação,
imagem da unidade, reconstitui logo o elemento da dispersão
onde ele se perde cada vez mais, visto que a imagem, enquanto
imagem, jamais pode ser atingida; além disso, subtrai-lhe a
unidade de que ela é a imagem, tomando-a inacessível ao sepa-
rar-se dela e tornando-se ela mesma inacessível.
Klamm não é invisível, em absoluto; o topógrafo quer
vê-lo e ele o vê. O Castelo, objetivo supremo, não está fora do
alcance da vista. Enquanto imagem, está sempre à disposição
dele. Naturalmente, olhando-as bem, essas figuras decepcionam,
o Castelo nada mais é do que um amontoado de casebres de al
deia, Klamm um homenzarrão sentado diante de uma escriva
ninha. Tudo ordinário e feio. Está aí também a chance do
topógrafo, é a verdade, a honestidade enganadora dessas ima
gens: elas não são sedutoras em si mesmas, nada têm que jus
tifique o interesse fascinado que se lhes dedica, recordam as
sim que não constituem o verdadeiro objetivo. Mas, ao mesmo
tempo, nessa insignificância deixa-se esquecer a outra verdade,
a saber, que são de toda forma imagens desse objetivo, que
participam de sua irradiação, de seu valor inefável, e que não
se vincular a elas já significa desviar-se do essencial.
Situação que se pode resumir assim: é a impaciência que
torna o objetivo final inacessível, substituindo-o pela proximi
dade de uma figura intermediária. É a impaciência que destrói
a abordagem do objetivo final, ao impedir que se reconheça no
intermediário a figura do imediato.
Cumpre limitarmo-nos aqui a algumas indicações. A fan-
tasmagoria burocrática, essa ociosidade afobada que a caracteri
za, esses seres dúplices que são os seus executantes, guardiões,
ajudantes, mensageiros, que andam sempre dois a dois, como
para mostrar bem que apenas são os reflexos um do outro e o
reflexo de um todo invisível, toda essa cadeia de metamorfoses,
esse crescimento metódico da distância que nunca é dado como
infinito mas aprofunda-se indefinidamente de maneira neces
sária pela transformação da meta em obstáculos, mas também
dos obstáculos em etapas intermédias que conduzem à meta
final, todas essas poderosas imagens não descrevem figurativa-
mente a verdade do mundo superior, nem mesmo a sua trans
cendência, elas representam antes a felicidade e a infelicidade
75
da figuração, dessa exigência pela qual o homem do exílio é
obrigado a fazer do erro um meio de verdade, e daquilo que o
engana indefinidamente a possibilidade última de apreender o
infinito.
O espaço da obra
76
angústia da impaciência, preocupação escrupulosa da exigência
de escrever, ele recusou-se na maioria das vezes a consumar
esse salto que só a plena realização permite, essa confiança
despreocupada e feliz pela qual (momentaneamente) um termo
se insere no interminável.
O que se chamou tão impropriamente o seu realismo trai
essa mesma busca instintiva para esconjurar nela a impaciência.
Kafka mostrou com frequência que era um gênio dotado de
extrema agilidade, capaz em alguns traços de atingir o essencial.
Mas impôs-se cada vez mais uma minúcia, uma lentidão de
abordagem, uma precisão detalhada (mesmo na descrição de
seus próprios sonhos), sem as quais, exilado na realidade, o
homem está rapidamente condenado ao desvario da confusão
e às incursões do imaginário. Quanto mais se está perdido no
lado de fora, na estranheza e insegurança dessa perda, mais se
deve recorrer ao espírito de rigor, de escrúpulo, de exatidão,
estar presente na ausência pela multiplicidade das imagens, por
sua aparência determinada, modesta (divorciada da fascinação)
e por sua coerência energicamente mantida. Quem pertence à
realidade não tem necessidade de tantos detalhes que, como
sabemos, não correspondem, em absoluto, à forma de uma visão
real. Mas quem pertence à profundidade do ilimitado e do lon
gínquo, ao infortúnio da imoderação, sim, esse está condenado
ao excesso da medida e à busca de uma continuidade sem fa
lhas, sem lacunas, sem disparidades. E condenado é a palavra
certa, porquanto, se a paciência, a exatidão, o domínio frio,
são as qualidades indispensáveis para evitar perder-se quando
nada mais subsiste a que se possa apegar, paciência, exatidão,
domínio frio, também são defeitos que, dividindo as dificulda
des e estendendo-as indefinidamente, retardam talvez o nau
frágio, mas retardam certamente a libertação, transformam sem
cessar o infinito em indefinido, assim como é também a medida
que, na obra, impede que o ilimitado jamais se cumpra.
A arte e a idolatria
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represente um homem sobre quem pesa essa interdição essencial,
que, sob pena de morte, deve excluir-se das imagens e que, de
súbito, se descobre exilado no imaginário, sem outra morada
nem subsistência senão as imagens e o espaço das imagens. Ei-lo,
pois, obrigado a viver de sua morte e prisão, em seu desespero
e, para escapar a esse desespero — a execução imediata —
coagido a fazer de sua condenação a única via de salvação. Foi
Kafka, conscientemente, esse homem? Não sabería dizê-lo. Tem-
se por vezes o sentimento de que a interdição essencial, quan
to mais ele se esforça por lembrar-se dela (pois ela é, de toda
maneira, esquecida, uma vez que a comunidade onde ela era
viva está quase destruída), quanto mais ele procura, portanto,
recordar-se do sentido religioso que vive escondido nessa inter
dição, e isso com um rigor cada vez maior, gerando o vazio nele
e em torno dele, a fim de que os ídolos aí não sejam acolhidos,
mais, em contrapartida, Kafka parece disposto a esquecer que
essa interdição deveria aplicar-se também à sua arte. Daí re
sulta um equilíbrio muito instável. Esse equilíbrio, na solidão
ilegítima que é a dele, permite-lhe ser fiel a um monismo espi
ritual cada vez mais rigoroso, mas abandonando-se a uma certa
idolatria artística, depois impele-o a purificar essa idolatria atra
vés de todos os rigores de uma ascese que condena as realidades
literárias (inacabamento das obras, repugnância por toda pu
blicação, recusa em crer-se um escritor, etc.), que, além disso,
o que é mais grave, querería subordinar a arte à sua condição
espiritual. A arte não é religião, “nem mesmo conduz à reli
gião”, mas, no tempo de desgraça que é o nosso, este tempo em
que faltam os deuses, tempo de ausência e de exílio, a arte
está justificada, porque é a intimidade dessa desgraça, é o
esforço para tornar manifesto, pela imagem, o erro do ima
ginário e, em última instância, a verdade inalcançável, esque
cida, que se dissimula por trás desse erro.
Que tenha havido primeiramente em Kafka uma tendên
cia para substituir a exigência religiosa pela exigência literária,
depois, sobretudo, mais perto do fim, uma propensão para
substituir a sua experiência literária pela sua experiência reli
giosa, para confundi-las de maneira bastante turva ao passar do
deserto da fé para a fé num mundo que já não é o deserto mas
um outro mundo onde a liberdade lhe será concedida, é o que
as anotações do diário nos fazem pressentir. “Será que habito
agora no outro mundo? Ousarei dizê-lo?” (30 de janeiro de
1922). Na página que citamos, Kafka recorda que os homens,
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segundo ele, não têm outra escolha senão esta: ou buscar a
Terra Prometida do lado de Canaã ou buscá-la do lado deste
outro mundo que é o deserto, “porquanto, acrescenta ele, não
existe um terceiro mundo para os homens”. Não existe,
por certo, mas talvez falte dizer mais, talvez deva dizer-
se que o artista, esse homem que Kafka também queria ser, em
desvelo por sua arte e em busca de sua origem, o “poeta” é
aquele para quem não existe sequer um único mundo, porque
para ele só existe o lado de fora, o fluxo do eterno exterior.
79