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ENSINO DE HISTÓRIA E IDENTIDADE NACIONAL:

DESMONTANDO O SÉCULO DEZENOVE'

Jaime Francisco P. Cordeiro"

Resumo: Este artigo aborda as maneiras pelas quais se apresenta a


idéia da unidade nacional no ensino de História do Brasil e propõe
outras formas de se estudar a história política do século dezenove que
ofereçam aos alunos a oportunidade de discutir a pertinência daquela
suposta unidade.
Unitermos: nação, identidade, independência

o século dezenove é um período essencial no ensino de


História do Brasil efetivado nas escolas de primeiro e segundo graus.
A temática da construção da unidade nacional, que se expressa no
ensino mediante a articulação entre momentos históricos tidos como
decisivos (independência, abolição, república), acaba construindo
uma referência de identidade para a "nossa História" ensinada: é
como se o Brasil - todo indivisível e eterno - encontrasse, ali, a
sua verdadeira expressão, a sua completude.
Este artigo pretende discutir as maneiras pelas quais se
apresenta na escola essa visão de identidade nacional fundada no
século dezenove e sugerir maneiras alternativas de trabalhar com essa
mesma temática no ensino de História do Brasil, numa perspectiva
que leve ao questionamento da suposta unidade/identidade da nação.
Para tanto, é necessário repensar a periodização e os próprios eventos
a serem abordados.
Parte-se da caracterização das imagens de unidade,
formuladas no século passado pela historiografia e pelos escritores
românticos: a independência do Brasil, a obra unificadora da
monarquia e a formação do homem brasileiro e da idéia de Brasil.
Em seguida, propõe-se outro eixo de reflexão, que incide sobre
momentos históricos mediante os quais se pode contestar aquela
pretensa unidade: as revoltas do final do século dezoito (Inconfidência

, Trabalho apresentado no XVIII Simpósio Nacional de História. Recife, UFPE, julho,


1995.
"" Professor da FCUUNESP/Araraquara.

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Mineira, Conjuração Baiana), a Confederação do Equador e a revolta
de Canudos.
Nesse sentido, é estratégico começar por um texto fundador
da idéia de unidade nacional: Francisco Adolfo de Varnhagen, na
sua História da Independência do Brasil, diz sobre esse
acontecimento:

Não era mais possível contemporizar. E, inspirado pelo gênio da


glória, que anos depois, no próprio Portugal, lhe havia de ser
outras vezes tão propício, não tardou [o príncipe D. Pedro) nem
mais um instante: e passou a lançar, dessa mesma província
que depois conceituava de 'agradável e encantadora', dali mesmo,
de meio daquelas virgens campinas, vizinhas da primitiva
Piratininga de João Ramalho, o brado resoluto de 'Independência
ou Morte!'.
Com esta resolução, acabava de salvar o Brasil, propondo-se a
formar de todo ele unido uma só nação americana. Nem podia
mais duvidar da união de todas as províncias, quando já haviam
manifestado oficialmente os seus sentimentos as da Bahia,
Pernambuco e outras, e era reconhecido que as demais o não
faziam pela pressão exercida pelas tropas que as ocupavam; e
para estas, pelo conhecimento pessoal que possuía, não só dos
fluminenses, como dos mineiros, e agora dos paulistas, não tinha
a menor dúvida de que encontraria entre eles milhares de peitos
valentes e patrióticos para vencer e debelar.
Estava, de fato, proclamado o Império, não já o luso-brasileiro,
formado por D. João VI, e que então findava, mas o brasileiro
puro.f...] (VARNHAGEN, 1981 ,p.138-9)

Ressalta do texto a íntima associação entre o ato do príncipe


- entendido como independência do Brasif- e a formação imediata
da nação, na sua completa unidade ("formar de todo ele unido uma só
nação americana'). A unidade nacional está garantida ali, no gesto do
príncipe e o Brasil, como um todo, encontra-se presente naquele mesmo
gesto. Aliás, mais do que isso, nota-se a afirmação de uma presença
latente da nação: o ato do príncipe apenas concretiza o que já existia
enquanto potencialidade. Essa imagem da unidade projeta-se além
do tempo da produção do texto e insere-se, principalmente mediante
o ensino da História do Brasil, no imaginário popular. A literatura didática
é pródiga de exemplos dessa associação entre independência - grito
do Ipiranga - unidade nacional. No entanto, o texto fundador parece
ser mesmo o de Varnhagen, representante do interesse das camadas

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dominantes, no século dezenove, de afirmar e impor a idéia de unidade
sobre uma sociedade profundamente desigual e fragmentada, tanto
social quanto geograficamente.
É nessa linha o comentário de Jaime Pinsky a respeito do papel
exercido porVarnhagen:

Varnhagen representa esses interesses todos - e suas


contradições - e sua obra procura passar a idéia de uma nação
já constituída, não mais em construção como de fato ocorria.
Assim, a edição de sua História Geral do Brasil é o momento
decisivo do surgimento da nação brasileira ... no papel. (PINSKY,
1988, p.14)

No século dezenove constitui-se, portanto, um modelo


explicativo/interpretativo da História do Brasil enquanto história da
nação, isto é, enquanto continuum espaço-temporal que se define
pelos limites do Estado nacional, cuja "biografia" passa a ser
composta pelos historiadores e pelos artistas. ' Conforme mostram
Carlos Alberto Vesentini e Rogério Forastieri da Silva, essa história­
biografia é remontada ao período colonial, tendo o seu ponto de
partida no momento mesmo do chamado "descobrimento".2 Diz
Vesentini que essa história se expressa mediante a:

[. ..] reprodução de certos temas, tomados como fatos, persistindo


apesar da variação das interpretações. Se seu conjunto forma o
passado mítico da nação, esses temas resistem à crítica e
continuam a reproduzir-se. Organizam-se como pequenos 'nós',
pontos centrais, em tomo dos quais todo um conjunto de outros
temas passa a ser referido. (VESENTINI, 1984, p.76)

No plano da literatura brasileira, é possível tomar boa parte


das obras dos românticos como tentativas de construir e reforçar a
"mitologia" da unidade nacional. O caso mais evidente é o de José
de Alencar que, ao longo de sua vasta obra, procurou, conforme ele

1 Paul Veyne mostra que a História se constitui, desde Tucídides e Xenofonte (que ao
"continuar" Tucídides institui uma tradição), numa narrativa dos acontecimentos de
uma nação, de um povo, numa continuidade temporal. Tal tradição é encarada pelo
autor como "convenções que mutilam a história". Cf. VEYNE, 1983, p.1 06-7, p.334-6.
2 Cf. VESENTINI, 1984. Cf. também: SILVA, 1981.

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mesmo reconhece, compor um quadro da História do Brasil e da
formação da nacionalidade. Na apresentação de um de seus últimos
trabalhos, Sonhos d'Ouro, de 1872, José de Alencar expôs um quadro
da sua produção literária:

o período orgânico desta literatura conta já três fases.


A primitiva, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos
da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram
a infância do povo, e ele escutava como o filho a que a mãe
acalenta no berço com as canções da pátria, que o abandonou.
Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e
enlevo, para aqueles que venceram na terra da pátria a mãe
fecunda - [. ..] e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.
O segundo período é histórico: representa o consórcio do povo
invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe
retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações
de um solo esplêndido.
É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe
lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de
seu progenitor. Esse período colonial terminou com a
Independência.
A ele pertencem O Guarani e As Minas de Prata. Há aí muita e
boa messe a colher para o nosso romance histórico [...].
A terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a
independência política, ainda não terminou; espera escritores
que lhe dêem os últimos traços e formem o verdadeiro gosto
nacional, fazendo calar as pretensões, hoje tão acesas, de nos
recolonizarem pela alma e pelo coração, já que não o podem
pelo braço. [. ..] (In: BOSI, 1989, p.150-1)3

A advertência final do trecho citado é bastante reveladora


das preocupações de então: a idéia de uma suposta ameaça de
recolonização está sempre presente, embora, neste momento, já se
trate de uma pretensa recolonização cultural/ideológica. Todo o
esforço de Alencar (e de outros românticos) será no sentido de
constituir as bases de uma cultura genuinamente nacional, livre das
influências do colonizador. Continuador das "gloriosas tradições de

3 Bosi aponta que a questão de saber se Alencar possuía previamente esse esquema de
interpretação de sua obra, ou se o compôs a posteriori é irrelevante, visto que sua
própria explicitação pelo autor, mesmo que tardia, já vale como confirmação da
"consciência histórica de Alencar em face da sua obra". (Bosi, 1989)

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seu progenitor", o povo brasileiro, surgido do "consórcio do povo invasor
com a terra americana", estaria apenas saindo da infância e, portanto,
estaria ainda muito sujeito a influências estrangeiras. Daí a tarefa
assumida por Alencar de constituir esse panorama da "infância do
povo"que serviria como um dos fundamentos dessa cultura nascente. 4
Incidindo sobre esse eixo interpretativo, mas sem tematizá-Io
enquanto tal (isto é, enquanto interpretação e não enquanto
expressão da verdade), o ensino de História normalmente praticado
nas escolas de 1° e 2° graus acaba por reproduzir a construção
ideológica da unidade nacional, elegendo como objeto de exposição
sempre o mesmo conjunto de eventos, encadeados numa linha
progressiva de causas e efeitos na qual se destacam alguns marcos
significativos, sendo o principal deles "independência do Brasil" (isto
é, "grito do Ipiranga''l''gesto heróico do príncipe"-"nação'). Seria até
mesmo enfadonho repetir citações de manuais didáticos a respeito
do tema para perceber o quanto eles estão marcados por ess~ mesmo
viés ideológico. E, como mostra Vesentini, mesmo aqueles manuais
que propõem outras interpretações tomam como objeto o mesmo
conjunto de acontecimentos, tomados no sentido de 'fatos históricos"
e, portanto, expressões da verdade. (VESENTINI, 1984)
Ora, o que se pretende aqui é justamente, ao propor que a
reflexão histórica sobre o período incida sobre outro conjunto de
acontecimentos, questionar e decompor a construção da idéia da
unidade que se dá em torno da afirmação da identidade entre
independência, grito do Ipiranga, ato heróico de D. Pedro: pensar
sobre aquilo que não pode estar incluído na construção independência
do Brasil, mas que, mediante os procedimentos de projeção da
memória histórica posterior sobre o passado e sobre o futuro, acaba
sendo incluído na construção dominante. Esse conjunto de
acontecimentos pode ser composto, a título de exemplo, por duas
revoltas do final do século dezoito (Inconfidência Mineira e
Conjuração Baiana), pela Confederação do Equador (1824) e pela
revolta de Canudos (final do século dezenove). Deve-se advertir, desde
logo, que não se pretende realizar, aqui, uma análise historiográfica

4 Nessesentido, seria bastante pertinente, no âmbito de um curso de História que trabalhe


com a temática ora proposta, o estudo de um dos romances de Alencar, particularmente
O Guarani, para discutiro significado dessa constituição da ideologia/mitologia nacional:
a conjunção entre aborígines, colonos e natureza, a força do herói, a construção da
nacionalidade por meio do par romântico Peri - Ceci etc.

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desses acontecimentos, mas simplesmente selecionar temas e
trechos possíveis de serem trabalhados em sala de aula, no nível do
ensino de 10 e 2° graus, no sentido de questionar essa idéia da unidade/
identidade nacional.

Outra História do Brasil: a Confederação


do Equador e a Conjuração Baiana

A Confederação do Equador pode ser um momento estratégico


para a análise em sala de aula, no sentido de desmontar os
mecanismos de constituição do dispositivo ideológico da unidade/
identidade nacional que se articula em torno do fato independência
do Brasil - no sentido acima apontado. Trata-se de tema que,
embora presente nos livros didáticos, raramente é estudado nas
escolas, pelo menos com a profundidade com que poderia ser.
Como evento muito próximo, temporalmente, da
independência, normalmente tende a ser absorvido por aquela,
reduzindo-se a mera "conseqüência" do "fato maior", aparecendo
quase como um "desvio" do rumo correto delineado no 7 de setembro.
Desse modo, o evento perde sua historicidade própria e não é mais
tematizado, sendo mostrado, de maneira superficial, como mera
revolta, rapidamente dominada em benefício da manutenção da
unidade territorial da nação.
Propor, logo após o estudo da independência na sua versão
mais tradicional, o exame da Confederação do Equador, deve levar à
abordagem, pelo menos, de dois aspectos do movimento: de um lado,
o protesto de boa parte dos grupos dominantes de Pernambuco (talvez,
do Nordeste) contra as pretensões hegemônicas dos latifundiários do
Centro-Sul; de outro, a intensa participação popular, que traz à cena
outras reivindicações, não evidentes na independência.
No primeiro caso, abala-se a idéia da independência enquanto
afirmação de uma unidade nacional existente a priori e cuja mera
confirmação se daria no gesto heróico do príncipe. A proposição,
pelos setores dominantes do Nordeste, de um novo Estado, federativo
e separado do Brasil, permite questionar não apenas a suposta
unidade, mas também a própria construção independência do Brasil,
mediante a desmontagem dos dois termos da expressão. Não se trata
de independência, pois o que está em questão é a disputa do poder

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entre as classes sociais, com suas várias facções, dentro da qual a
I idéia de separação de Portugal é utilizada com finalidades estratégicas
por este ou por aquele grupo. Por outro lado, não se pode aceitar

l ingenuamente a idéia de Brasil como algo dado e realizado naquele


momento: era justamente isto que era posto em causa pelos
confederados, que se recusavam a fazer parte de Brasil, desnudando
a artificial idade da idéia da unidade nacional.
No segundo caso, a participação popular traz para a discussão
uma perspectiva sempre descartada pelo dispositivo independência
- grito do Ipiranga - ato heróico: onde estavam localizadas as
possibilidades de formulação de projetos por parte das classes
populares nesse período? A radicalização do movimento, ao provocar
o parcial reagrupamento dos interesses momentaneamente divididos
dos setores dominantes, no sentido de consolidar a repressão dos
revoltosos, mostra a candência das reivindicações populares e as
maneiras possíveis de sua expressão política. Naquele momento, a
dominação social está intimamente associada à questão racial e a
possibilidade de um novo haitianismoé um argumento decisivo para a
retomada dos laços de união da classe dominante, provisoriamente
suspensos no início do conflito. Isso fica bastante claro na análise
empreendida por Glacyra Leite:

[...] A tensão social que perpassava a sociedade justificava a


presença na Rebelião, mesmo sendo espontânea, dos diversos
setores constitutivos dessa sociedade. À medida que eram
solicitados e estimulados pelas lideranças, seu engajamento se
tornava mais ativo. O envolvimento geral era vital para o
fortalecimento da luta. Entretanto, a resposta positiva dos setores
não proprietários era bem vista até quando parecia haver
identificação de interesses, isto é, uma contraposição às diretrizes
do governo do Rio de Janeiro. No momento em que alguns
conceitos propagados - como o de liberdade e despotismo ­
eram absorvidos e reelaborados em função de interesses
específicos de cada um dos grupos envolvidos, surgia o empenho,
porparte das lideranças, de readquirir o controle sobre o conjunto
da população. Nesse particular, reencontravam-se as lideranças
pernambucanas como um todo.
Os não proprietários não se constituíam em um conjunto
socialmente homogêneo. Não se pode dizer que tivessem
proposições amplas, mas, dadas as condições surgidas em
I determinados momentos, havia freqüentes tomadas de posição
a partir de questões imediatas. Em outras palavras, no decorrer

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do movimento rebelde, o envolvimento de setores menos


privilegiados da sociedade tomou um caráter de luta social,
como aconteceu nos episódios comandados pelo Capitão
Pedroso e pelo Major Mundurucu. (LEITE, 1989, p.142)

Após esse redimensionamento da discussão da idéia da unidade


nacional permitido pelo estudo da Confederação do Equador, o tema
já estará mais matizado: independência, nação, unidade, identidade
não aparecem mais como dados naturais, imanentes à História do
Brasil. A própria idéia de Brasil já estará posta em causa e passará a
ser tema de discussão e, não mais, fato estabelecido.
O recuo no tempo até fins do século dezoito permite apanhar
outro momento de possível tematização das construções dominantes
em torno de independência e unidade nacional. É particularmente
sugestivo, para tanto, o exame da Conjuração Baiana de 1798. Evento
desprestigiado no ensino de História e nos manuais didáticos frente a
seu "similar e concorrente"- a Inconfidência/Conjuração Mineira - o
seu estudo permite introduzir os alunos numa relação de estranhamento
frente à História do Brasil: por que determinados eventos são considerados
mais importantes, sendo repetidos e divulgados com insistência, enquanto
outros são praticamente silenciados? A imagem do passado brasileiro
retém, mediante a reiteração praticada no ensino de História nas séries
iniciais, certas personagens: D. Pedro, Tiradentes, o "traidor" Joaquim
Silvério; quem se lembra dos quatro homens do povo executados na
Bahia em 1798?
Para além disso, no entanto, ambas as revoltas - a mineira e a
baiana - são apresentadas, nos manuais e no ensino, como "precursoras
da independência': sendo absorvidas pela memória (posterior) do marco
cronológico mais "forte". Além disso, costumam ser agrupadas, junto
com outras rebeliões do período colonial, sob o rótulo do nativismo.
Quanto a isto, comenta Rogério Forastieri da Silva:

Ao que parece os autores que apresentam tais movimentos


como expressão de nativismo - "precursores da independência"
- partem da independência tomada como fato inexorável, e a
partir daí reconstituem a "história" do período colonial.
Buscando 'evidências' de que a emancipação política teria de
necessariamente resultar no que resultou, constroem um "tecido"
onde estão presentes "heróis", "precursores", conffitos, e dá-se
muitas vezes uma dimensão fora de propósito a determinados
eventos com a finalidade de justificar proposições de caráter
teleológico. (SILVA, 1981, p.112)

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Procedendo dessa maneira, a historiografia e a literatura didática
acabam fazendo perder de vista a historicidade própria dessas
manifestações de protesto, que só são dotadas de inteligibilidade com
o apelo a um futuro ainda não realizado e que não podia existir nem
mesmo enquanto cogitação, visto que os projetos delineados, tanto
em Minas, quanto na Bahia, nesse período, em nada se aproximam
do projeto de independência que se tornou vitorioso desde 1822.
Para se contrapor a isso, o estudo desses movimentos do final
do século dezoito deve-se preocupar com a recuperação da sua
historicidade própria, desvinculando-os do dispositivo ideológico
independência - unidade nacional. Isso se torna possível ao se
examinarem os objetivos propostos e as características assumidas
pelos movimentos.
No caso da Conjuração Baiana, é interessante examinar as
maneiras diversas de apropriação das chamadas "idéias francesas",
de acordo com a posição social de cada um dos participantes. É
nítida a diferença de perspectiva existente, nesse aspecto, entre os
Cavaleiros da Luz, sociedade secreta composta por elementos das
elites econômicas e da classe média baiana, e as lideranças
populares do movimento, provenientes basicamente dos escalões
inferiores do Exército ou do setor artesanal urbano e, quase todos,
mulatos ou negros libertos.
O proselitismo das idéias revolucionárias francesas encontrava
terreno fértil entre as camadas mais pobres da sociedade baiana que,
premidas pela opressão e por uma situação econômica absolutamente
precária, reinterpretavam de maneira radical aquele ideário:

As "idéias francesas" apenas vieram permitir a expressão de uma


revolta latente e surda, curtida nos porões e senzalas, que em
vários momentos explodia em manifestações caóticas. Era a
própria estrutura da sociedade colonial que estava em jogo, para
os dominados pelo jugo branco. (MENDES JR., 1983, p.69)

O exame da participação popular no movimento baiano permite


romper o dispositivo independência - unidade nacional: em nenhum
momento a chamada "Revolta dos Alfaiates" se põe como objetivo a
independência do Brasil. Trata-se de resolver os problemas concretos
da vida da população pobre, causados antes por uma brutal dominação
de classe do que por um etéreo e abstrato "sistema colonial", que só
é posto em causa subsidiariamente. O radicalismo dessa participação

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popular, ademais, impede ou dificulta a integração posterior do
movimento nos quadros da memória nacional dominante.
Não é casual, portanto, o quase abandono do estudo da
Conjuração Baiana pelo ensino de História frente à insistência da
reiteração do estudo e da narrativa da Inconfidência Mineira. Isso
torna evidente as vantagens, do ponto de vista da proposta de ensino
que aqui se delineia, do exame e do confronto dos dois movimentos,
no sentido de recuperar suas diferentes propostas e as diferentes
maneiras pelas quais a memória da unidade nacional vai recuperá­
los, integrando perfeitamente o movimento mineiro, moderado e elitista,
a ponto de poder instituir um herói (Tiradentes) cujas dimensões são
comparáveis, do ponto de vista da projeção dessa memória, às do
"criador da nação" (O. Pedro). A propósito, este seria o momento
mais adequado, no curso para examinar os mecanismos da criação
dos heróis nacionais, retomando os textos de Varnhagen (O. Pedro)
e Alencar (Peri) em confronto com o estudo da Inconfidência Mineira
e da sagração de Tiradentes como herói pelos republicanos em 1889.
Sugestivo, como contraponto, seria o estudo de certos trechos do
"Romanceiro da Inconfidência" de Cecília Meireles e do samba
"Exaltação a Tiradentes", de Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira.

A Nação contra a Nação: a Revolta de Canudos

Por fim, outro momento estratégico nesse esforço de


desmontagem do dispositivo que constrói e reafirma, no ensino de
História, a idéia da unidade/identidade nacional, seria o exame do
movimento de Canudos. Trata-se, de novo, de movimento praticamente
abandonado pelo ensino costumeiro de História. Tomado no contexto
do curso ora proposto, Canudos pode ser apanhado como mais um
questionamento radical da presumida unidade da nação brasileira,
mesmo que se passe ao largo da extensa polêmica a respeito do
caráter do anti-republicanismo do Conselheiro. Para o exame aqui
proposto, a referência inicial obrigatória é Euclides da Cunha, que
afirma:

Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um


refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurreta
e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma
sociedade morta, galvanizada por um doido. Não a

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conhecemos. Não podíamos conhecê-Ia. [...]
Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam
reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança
inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados
na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular
em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. [. ..]
Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto
da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério,
estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as
instituições nascentes. [...] (CUNHA, 1954, p.181-2)

No trecho acima, Euclides caracteriza a revolta de Canudos


como o resultado da manutenção, "no âmago do país", de uma
"sociedade velha", que correspondia a "um terço da nossa gente".
Mesmo que se considere de maneira cautelosa essa afirmação, na
medida em que expressa a concepção dualista do autor sobre a história
brasileira, é possível extrair dela a característica central do movimento:
trata-se do questionamento do esforço do Estado brasileiro e dos grupos
dominantes no país, desde a independência, de afirmar e impor a todo
custo uma unidade nacional. Essa imposição da unidade se deu, quase
sempre, passando por cima dos interesses das camadas populares,
que nunca se adequaram perfeitamente às arbitrárias fronteiras
definidas pela idéia de nação. Nesse sentido, ao questionarem as
condições concretas mediante as quais se expressa a dominação no
Brasil e, particularmente, no contexto rural, os movimentos populares
acabam sempre pondo em questão essa unidade, que é vista apenas
enquanto imposição e força.
A questão nacional pouco ou nenhum significado possuía para
aquela gente que se juntou ao Conselheiro em Belo Monte,
interessada que estava em conseguir alternativas de vida menos
cruéis e opressivas do que aquelas até então vividas. Vara Dulce
Bandeira de Ataíde, em artigo publicado em 1994, estuda as origens
da população do arraial de Canudos e conclui que:

[...] pode-se afirmar que, a partir do conjunto de dados obtidos


na pesquisa e da análise da proposta de vida acenada por
Antônio Conselheiro, o sertanejo que se sentiu atraído pelo seu
chamamento e permaneceu em 8elo Monte procedia das áreas
rurais ou pequenas vilas, e pertencia aos segmentos sociais mais
carente, cujos problemas políticos, sociais e econômicos nas suas
regiões de origem justificavam a migração.[...]

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[. ..] Esses segmentos sociais, sentindo-se marginalizados, sem
perspectivas e vítimas de uma cruel exploração, viam em 8elo
Monte um reduto de promoção e resistência. Como quase nada
possuíam em seus locais de origem, facilmente encontravam
em Canudos liberdade, integração, motivações religiosas e sociais
suficientes para retê-los e estimulá-los a resistir e lutar contra
qualquer tipo de dominação externa. (ATAíDE, 1993-1994, p.95)

Esse tipo de análise permite pôr em questão, mais uma vez,


o dispositivo constru ído em torno da unidade/identidade nacional. A
própria guerra de destruição empreendida pelo governo central traz
implícito o risco representado pelo movimento para a manutenção
da ideologia da unidade: era preciso destruir Canudos sem deixar
vestígios que pudessem abalar a memória dominante a respeito de
uma História do Brasil comandada por um único interesse comum.
Nesse sentido, para encerrar o curso aqui delineado, poderia
ser sugerida a leitura de uma obra de ficção, A casca da serpente,
de José J. Veiga. 5 Esse autor se caracteriza por romances e contos
que costumam transcorrer em lugares fictícios e em tempo incerto,
mas onde se nota marcada influência do ambiente político vivida na
época da ditadura militar no Brasil. A casca da serpente, no entanto,
tendo sido publicada em 1989, representa uma espécie de inflexão
na obra do autor, passando o Brasil a ser mais explicitamente a sua
fonte de reflexão.
A obra trata de uma espécie de continuação da luta de Antonio
Conselheiro e dos derrotados no Arraial de Canudos. Veiga imagina
o que teria acontecido se o Conselheiro não tivesse morrido e pudesse
ter fugido do Arraial antes da sua destruição, junto com um pequeno
grupo de simpatizantes. Rumando para o norte, esse bando de
retirantes (que vai recebendo alguns agregados), encontra um local
para se fixar e recriar uma nova Canudos, sem os erros da antiga. O
Conselheiro, aos poucos, vai abandonando a sua postura de beato e o
seu autoritarismo, procurando instituir relações democráticas na nova
cidade que se vai construindo, nomeada Itatimundé. Recebendo o
auxflio e a visita de personagens fictícias e de pessoas que realmente
viveram na época dos acontecimentos (como Chiquinha Gonzaga,
Orville Derby, e, até mesmo, o anarquista Kropotkine, que não

5 Aanálise exposta a seguir já foi objeto de comunicação anteriormente apresentada.


Cf. Cordeiro, 1993.

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aparecem exatamente com seus nomes reais), Itatimundé vai-se
constituindo como verdadeira utopia de uma sociedade anarquista,
em que todas as normas são decididas pelos seus próprios habitantes,
e onde existe a liberdade mais ampla possível. Trazendo-nos, no
entanto, para a realidade, Veiga inventa um final trágico para a nova
Canudos: ela teria sido destruída em 1965 (observe-se a data!) e
hoje o seu território se teria transformado num depósito de lixo
atômico de uma empresa multinacional.
Dentro da temática aqui examinada, das relações entre nação
e poder, é possível estabelecer amplas discussões sobre as
perspectivas delineadas pela obra de Veiga. As questões mais
importantes são a das relações entre história e ficção e a da
temporalidade. Veiga trabalha com vários planos temporais: o da
Canudos real (fim do século XIX), o da ditadura militar que destrói a
nova Canudos (1965) e o do presente (relativo à época da produção
da obra e relembrado pela menção da modernidade, caracterizada
no "lixo atômico'). A nova Canudos, no entanto, é atemporal, ou
melhor, projeta-se na direção do futuro.
Misturando deliberadamente realidade e ficção, José J. Veiga
aposta nas possibilidades de construção de futuro(s) e, portanto, na
possibilidade de sonhar. A história e o passado são tomados como
fonte de reflexão. O autor enfrenta a memória dominante do tema
(Canudos) e reflete não sobre o que ele foi (como normalmente faz
o historiador), mas sobre o que ele poderia ter sido: o passado não é
fonte de exemplos, mas de temas para reflexão.
Nesse sentido, ele consegue propor a desconstrução da
memória dominante do tema, constituída a partir e depois de Euclides
da Cunha. Itatimundé (a nova Canudos) nunca esteve em lugar
nenhum e sempre esteve (como possibilidade, como sonho). O autor
aponta a necessidade de voltarmos a sonhar e de tomarmos a história
como nossa, no sentido de fonte temática para a construção de
projetos de futuro e não a deixarmos jazer, intocável, nos livros e
nas aulas de História.
A história pode ser pensada e discutida em planos diversos,
muito além da homogeneização imposta pela memória histórica
nacional (dominante). José J. Veiga nos convida a isso e foi o que
se pretendeu propor aqui: uma reflexão, possível no ensino de
História, que consiga romper os limites dessa memória e sugerir
alternativas de trabalho e de estudo para professores e alunos.

Hist. Ensino, Londrina, v.3, p.7-21, abro 1997 19


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