Você está na página 1de 12

O JOVEM COMO SUJEITO E A CIDADE QUE SE ENSINA

CLARICE CASSAB1

Resumo:
O trabalho pretende apresentar alguns elementos em torno do debate sobre a relação jovem e
espaço a partir das espacialidades dos jovens na cidade. O movimento dos jovens pelas ruas das
cidades expressam suas distintas espacialidades e impulsionam a vivência, experiência e
coexistência desses sujeitos aqueles que também produzem e disputam a cidade. Tal processo
contribui para que os jovens constituam novos olhares e resignificações e desvenda tanto os
processos que produzem a cidade como as desigualdades, contradições, dificuldades e tensões
existentes. É assim que pelos cotidianos de jovens, especialmente aqueles residentes nas periferias,
que tentamos entender a cidade como constitutiva da condição juvenil e os jovens como sujeitos
produtores do urbano. Tratada como espaço público, lugar de trocas e contatos, a cidade estimula a
promoção de relações concretas e simbólicas e, nesse sentido, ganha dimensão política para seus
habitantes. Ser jovem de periferia pressupõe uma particular posição nas relações de poder que é
aberta e mutável, em permanente construção e reconstrução, dada a multiplicidade de tempos,
ações, sujeitos e intencionalidades presentes no espaço. Isso porque ao considerar o espaço – e logo
a própria cidade - como produto social, resultado de múltiplas trajetórias, produto de encontros
permanentes com “outros”, podemos considerar os jovens como parte dessa teia de relações
políticas que define o espaço. Desse modo, ser um jovem da periferia é também o resultado de uma
relação social marcada pela desigualdade territorial, econômica, etária e racial. Mas também é o
efeito de formas inventivas de vida e existência e definindo-se apenas, e somente apenas, no bojo de
uma imbricada teia de relações que se modificam no tempo-espaço e que, consequentemente,
alteram a própria condição juvenil desses sujeitos. Os jovens, habitantes dos espaços opacos,
homens lentos, são também sujeitos que dão forma a multiplicidade do espaço e cujas práticas
sublinham a existência de resistências e de outras territorialidades, linguagens, significados, modos
de ser, viver e habitar a cidade. Suas espacialidades produzem uma outra cidade aberta a
experiência da contrarracionalidade e da adaptação criativa e criadora às suas realidades (SANTOS,
1996). Eles tensionam os espaços luminosos e revelam os dissensos e as diferenças. Ao fazerem
isso, suas espacialidades, enquanto prática sócio-espacial, reafirmam a dimensão pública, e portanto
política, da cidade. São essas alguns dos elementos que se pretende trazer a tona no bojo do
trabalho. Aspectos que contribuem para compreender a juventude em sua dimensão territorial e os
jovens como sujeitos produtores do espaço.

Palavras chave: jovem, cidade, política, espaço público.

Abstract:
The work intends to presente some elements a round the debate about the relation between Young
people and space starting with the spatialities of Young people at the city. The movement of the
Young a round the streets of the city express distinguished spatialities and propel the living,
experience and coexistence of these subjects those who also produce and dispute the city. Such
process contributes for that young people constitute new looks and significations and unveils such the
processes that produces the city as the inequalities, contradictions, difficulties and tensions existed.
That is how through young’s routine, especially from those who live in the peripheries, that we try to

1 Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFJF. Email de contato:


clarice.torres@ufjf.edu.br
understand the city as constitutive of the juvenile condition and young people as urban producers.
Treated as public space, place of exchanges and contacts, the city stimulates the promotion of
concrete and symbolical relations and, in this sense, gets political dimension for its habitants. Being a
periphery young presupposes a particular position on the relations of power, which is open and
mutable, in permanent construction and reconstruction, given to the multiplicity of times, actions,
subjects and intencionalities presents at space. Because considering space – and so the city itself –
as social product, result of multiples trajectories, product of permanent meetings with “others”, we can
consider young as part of this political relations web that defines space. In this way, being a periphery
young person is also the result of social relation marked by economical, racial and aged territory
inequality. But it also is the effect of inventive ways of life and existence and defining itself only, and
just only, in the bosom of an imbricated web of relationships that change in time-space and,
consequently, alter the very youthful condition of these subjects. The young, habitants of opaque
spaces, slow men, are also subjects who give form to the multiplicity of the space and whose practices
underline the existence of resistances and other territorialities, languages, meanings, ways of being,
living and habitating the city. Their specialities produce another city open to experience of the counter-
nationality and creativity adaptation and creator of its own realities (SANTOS, 1996). They tension
bright spaces and reveal the dissences and differences. By doing that, their specialities, while social
spatial practice, reassure the public dimension, and therefore political, of the city. Those are some of
the elements which are intended to be bringed up on the bosom of the work. Aspects that contributes
to understand youth and its territorial dimension and young people as producers subjects of the space.

Palavras chave: youth, city, public space

1- Introdução
O texto tem o objetivo de apresentar uma reflexão sobre como a ação dos
jovens das periferias urbanas produzem a cidade pari passu em que ela molda e
condiciona a existência deles como sujeitos sociais. Desse esforço pretende-se
compreender a relação jovem-cidade a partir do imbricado movimento de
autodeterminação dos pares. A dialética do espaço faz da juventude um feixe de
relações vividas pelos sujeitos jovens e a cidade um espaço político a ser
apropriado. É assim que pelos seus cotidianos tentamos entender a cidade como
espaço constitutivo de sua condição juvenil e os jovens como sujeitos produtores do
urbano. Tratada como espaço público, lugar de trocas e contatos, a cidade tem o
potencial de promover relações concretas e simbólicas. O movimento pelas ruas,
bairros e praças, olhando, vivendo, experimentando as múltiplas formas de relações
que produzem, e coexistindo com os muitos sujeitos que produzem e disputam a
cidade, possibilita a esses jovens a constituição de novos olhares e resignificações,
revelando não só os processos que produzem esse espaço mas também iluminando
as desigualdades, contradições, dificuldades e tensões existentes. O trabalho se
assenta em pesquisas desenvolvidas e que tiveram como centro investigativo as
espacialidades dos jovens na cidade, suas formas de estar e ser no urbano e como
a cidade condiciona a sua própria juventude. O que se busca é sintetizar algumas
dessas contribuições resultantes desse acúmulo.

2. Ser jovem
Viver a juventude implica um conjunto de relações sócio-históricas que se
distinguem no tempo e no espaço e que são condicionadas pelas diferentes
experiências sociais que os sujeitos estabelecem ao longo de sua biografia e que
forjam a maneira de ser jovem. Tratar as juventudes hoje exige, portanto,
compreender as formas contemporâneas de (re)produção da vida. Apenas
assumindo que elas são diferentes e desiguais socioespacialmente é que podemos
pensar a juventude como categorial plural.
Dessa ideia deriva um outro aspecto importante: a afirmação do jovem como
sujeito social. Ao examiná-los como sujeitos sociais compreendemo que a
construção humana é fabricada nas experiências coletivas em que, concomitante a
sua própria criação, o sujeito também constrói sua presença e participação no
mundo. Essa interação necessariamente implica a relação com os outros e com o
mundo.
Esse sujeito é condutor de desejos e projetos, e capaz de interpelar o mundo
partilhando-o com outros de forma ativa na medida em que o estar nele e com
outros exige sua necessária apropriação, transformando e edificando a si, ao outro e
o próprio mundo. Nesse aspecto, atribuir ao jovem a dimensão de sujeito reforça seu
papel ativo na produção de si e do mundo, conferindo direito à ação e ao projeto,
dando-lhe intencionalidade em suas práticas no/pelo/sobre o mundo. É a partir do
social, dos grupos de convivência e de sua história pessoal que jovem se faz e
nessa construção, ele interage com múltiplos sistemas sociais que fazem com que
suas ações incidam nas relações sociais e no espaço.
A juventude, sob esse prisma, se desenha como um feixe de relações
estabelecidas pelos sujeitos jovens em seus diferentes espaços e tempos, num
determinado e particular momento de sua vida, que os colocam de maneira mais
intensa no público e, consequentemente, na relação com o outro. Ela também
aparece como uma posição nas relações de poder e adquire especial importância
por ser um período mais acentuado de socialização do sujeito em que ele constitui,
pela primeira vez, sua sociabilidade de maneira mais intensa e fora do âmbito
privado e familiar.
O modo de ser jovem será atravessado por um conjunto de mediações que
condicionam a forma como o sujeito produz e se apropria de suas experiências e
pertenças e que darão sentido ao mundo e às relações que mantém com ele e com
os outros. O que nos força a considerar as muitas mediações que atravessam a sua
vida e que são condicionadas pelas posições ocupadas na estrutura social, as
situações particulares que experimenta nos múltiplos grupos sociais a que pertence
e as condições nas quais desenrolam sua vida (MARTIN CRIADO, 1998). E
acrescentaria: a forma como participa da produção e da apropriação do espaço e,
em particular, da cidade.
O espaço é dimensão fundamental da vida, não sendo simplesmente
organizado pelos sujeitos, mas produzido pela sociedade por meio do trabalho. Isso
implica a afirmação da indissociabilidade ontológica entre sociedade-espaço, em
que a sociedade é o verdadeiro sujeito da produção do espaço. A sociedade ao se
produzir também produz o espaço que lhe é próprio. São os sujeitos, em suas
diferentes relações, que produzem o espaço em um movimento sempre conflitante e
conflituoso, em que ao se produzirem, realizam também o espaço como elemento
condicionante à sua (re)produção.
Nesse sentido, os jovens, mediante suas práticas e vivências, vão
cotidianamente produzindo e (re)organizando o espaço e a si mesmos. Ou seja: pari
passu a produção espacial, eles vão se constituindo como sujeitos e vivendo sua
juventude também como condicionante espacial. A produção do espaço – como
relação social – é, simultaneamente, a produção do próprio sujeito jovem e de sua
forma de viver a juventude. Essa experiência espacial implica a presença efetiva do
sujeito no espaço e que, em primeiro lugar, é uma vivência corpórea.
A prática espacial é o espaço percebido em referência ao corpo e suas
sensações somáticas. Ao mover-se no espaço, nosso corpo vai percebendo e
apropriando-se dele. Pelos sentidos sensoriais vamos notando e nos apropriando do
espaço pelo seu uso. O corpo é ativo e participa na constituição do espaço, em uma
determinação recíproca, de forma que o espaço é produzido no comprometimento
perceptivo do corpo. Sua percepção a partir do corpo reúne os lugares que são
vivenciados e apropriados cotidianamente pelos sujeitos pois as intencionalidades e
projeções de nosso corpo delineiam o espaço (VELLOSO, 2016).
O corpo dos jovens, suas expressões e manifestações produzem também o
espaço. O movimento, o modo de falar e de vestir-se, o caminhar ruidoso e
apressado, suas expressões corporais produzem formas particulares (e
eminentemente juvenis) de práticas espaciais. Contudo, em nossa sociedade, a
prática espacial é fortemente marcada por uma política sobre o corpo dos sujeitos
centrada no controle, diretamente aplicado sobre os corpos e, mais ainda, sobre os
corpos dos jovens pobres das periferias urbanas.
O controle sobre seus corpos implica a vigilância sobre suas experiências
espaciais e ações produtoras do espaço e resultará na expectativa quanto a forma
pela qual o jovem deve de se portar no espaço, se relacionar com o outro, se
movimentar e habitar. Nesse processo, são determinados os lugares onde são ou
não tolerados. Quais das suas práticas são aceitáveis e quais serão reprimidas.
Como devem se comportar. A definição de um conjunto de valores morais que
disciplinará e controlará o corpo juvenil estipulando e redefinindo incessantemente o
lugar e o significado do jovem no mundo público.
Para os jovens negros e de periferia são maiores as restrições. Seus corpos
mais que controlados são supliciados na cidade. Sua errância, o movimento de seus
corpos ou mesmo sua simples presença e existência são permeadas por constante
controle que se expressa na forma de repressão e constrangimentos. Seus corpos, e
as marcas identitárias provenientes dele, são frequentemente estetizados de forma
discriminatória e perversa, fazendo com que suas práticas socioespaciais sejam
condenadas como violentas e/ou vulgares (SIMÃO, 2013). Essa experiência é
também atravessada pelas questões raciais, de gênero e de classe. Mediações sem
as quais torna-se praticamente inviável a compreensão das restrições que são
impostas à presença dos jovens de periferia na cidade. Nessa situação, são
identificados como “perigosos” a partir de sua cor, da sua posição de classe, de seu
gênero e da ocupação e uso que fazem do espaço.

3- Ser jovem na cidade que educa?


Pensar os jovens como sujeitos sociais que produzem o espaço e tem nele
um condicionante na elaboração de suas experiências juvenis nos direciona a
pensá-los na relação com a cidade, pois compreendemos que é ela a primeira
experiência de vida pública mais consistente que esses jovens vivenciam. Lugar do
encontro e do conflito, ela potencializa as experiências dos sujeitos no espaço e o
reconhecimento de si próprio como sujeito social, sendo terreno de tensões entre as
diferenças e as possibilidades de vida em comum. Espaço público por excelência,
seu poder está na capacidade de produzir relações mediante o permanente conflito
de diferentes interesses e intencionalidades (PECHMAN, 2014). Nela a diferença e a
coexistência obrigam a comunicação entre sujeitos de forma a estabelecerem
códigos comuns de civilidade.
A cidade reúne sujeitos de interesses, valores e projetos distintos, cuja
convivência implica o necessário estabelecimento de regras que regulam e limitam
tais interesses, de forma a parcialmente atendê-los. Essa reunião pressupõe
também o encontro físico. Ou seja, realiza-se num espaço que também é alvo de
normas e regras e que são expressas na sua organização material e simbólica.
O arranjo dos objetos na cidade interfere na realização das ações dos muitos
sujeitos que a habitam (GOMES, 2006). Mas ela é também mais do que apenas um
conjunto e objetos fixos, edifícios e ruas. Ela própria é relação social, uma vez que é
produto da ação integrada de sujeitos com variadas intencionalidades onde estão
materializadas e expressas na diversidade de formas-conteúdos presentes nas
cidades. A distribuição e disposição dos objetos na cidade, por exemplo, manifestam
os interesses desses sujeitos e nos apontam para a multiplicidade de trajetórias
produtoras do espaço. Na cidade, os sujeitos são colocados em permanente relação
– muitas vezes mais conflituosas do que consensuais, sendo obrigados a
coexistirem com a pluralidade. a diferença e a desigualdade.
Composta por objetos materiais e também por um conjunto de normas,
modelos e códigos que se materializam em suas ruas, praças, prédios e avenidas,
na cidade estão manifestos os valores, condutas e ideias que possibilitam a vida em
comum. O que a torna também um conjunto de códigos e signos que organizam a
vida social e o corpo dos sujeitos. Um espaço aberto e em constante (re)produção. É
o lugar do valor de troca, mas também do uso. O lugar das festas, dos encontros, da
praça e da rua, da vida coletiva. É, nessa medida, um sistema aberto e pulsante de
signos e significações da vida cotidiana, do habitar, dos usos, das relações de
poder, da cultura, do mercado etc (LEFEBVRE, 2001). Reconhecer, portanto, esses
códigos e signos que ordenam a cidade, percebê-los na forma pela qual os objetos
geográficos estão dispostos e organizados, ou como as ações ocorrem, é
fundamental para que a cidade realize sua função educadora como espaço público,
abrigo das diferenças e expressão da própria política.
Para Massey (2009), a diferença é o espaço da multiplicidade e o lugar da
coetaneidade o que exige a postura de reconhecimento, respeito e envolvimento
entre trajetórias que contemplam certo grau de autonomia entre si. Dessa noção
deriva a possibilidade de tratar o espaço como esfera da multiplicidade,
essencialmente aberto e em contínuo desenvolvimento e, portanto, ele “não pode
nunca ser fechado, sempre haverá resultados não previstos, relações além,
elementos potenciais de acaso” (MASSEY, 2009, p. 144).
Ao se contrapor a uma visão que considera o espaço quase que
exclusivamente como produto das dinâmicas do capital e dos grandes sujeitos
decididores, a obra de Massey (2009) traz à tona outros sujeitos. Da mesma forma
olhamos a juventude como uma condição particular que condiciona o processo de
produção, a compreensão e a vivência do espaço por parte do jovem.Ao produzir
sua vida, o jovem, habitante da cidade, também produz a própria cidade, imprimindo
nela as marcas de sua presença (ou de sua ausência) a partir de uma lógica
centrada em sua condição juvenil.
Trazer à cena essa condição implica reconhecer que, apesar das forças de
dominação e controle adultas que atravessam e mesmo condicionam as ações dos
jovens, a produção do espaço por esses sujeitos é orientada pela sua condição de
ser jovem. Logo, suas trajetórias – suas histórias, seus projetos, suas experiências,
suas ações – cruzam-se e se entrecruzam com as muitas outras que compõem a
cidade.
Na cidade, a vida dos jovens se desenrola e se produz. Nela eles moldam
suas relações com os outros e com o espaço, determinando territorialidades,
elaborando vínculos de pertencimentos socioterritoriais e tecendo as redes de
relações que constituem sua vida social e a eles mesmos como sujeitos sociais.
Para o educador espanhol Jaume Bonafé, há uma prática cultural que gera
significados, maneiras de subjetivação e formas de entender o mundo e de
compreender-se nele que têm a ver com as experiências vividas na cidade. Nesse
sentido, a cidade seria formadora de práticas, experiências, relações e
materialidades que articulam uma forma de entender a cultura e de se entender
como parte dela, constituindo-se como um verdadeiro currículo composto de
saberes e práticas.
Ela é, portanto, experiência educativa carregada de aprendizagens. As
vivências nos bairros e o deslocamento pela cidade significam e dão forma as
biografias dos jovens, compondo a sociabilidade e condicionando a sua
subjetividade. Isso por que eles dão sentido e significados ao espaço, re-criando
espaços de referência identitária, de pertencimento, onde se realizam as
experiências social, política e cultural.
Em nossa trajetória, temos pensado a cidade como espaço formativo da
juventude dos jovens e, em particular, os jovens residentes de suas periferias.
Olhamos os jovens pelas ruas da cidade em sua busca por lazer. Observamos eles
inseridos em políticas públicas. Compreendemos os vínculos com seu território e os
desafios de se redefinirem diante de processos de des-territorialização. Buscamos
entender como o viver em cidades médias condiciona seus projetos de vida. Pelos
seus cotidianos tentamos entender a cidade como espaço determinante de sua
condição juvenil e os jovens como sujeitos produtores do urbano, pois, como já
explicitado, ao se apropriar da cidade, esse espaço também age sobre os jovens e
seus corpos.
Contudo, também sabemos que somos os produtores de uma sociedade e de
um espaço desiguais, em que diferenciação transmuta-se em desigualdade e
promove diferentes hierarquizações que distinguem a nós daqueles que são
considerados desiguais ou inadequados. Se por um lado a cidade é local de prática
e experiência, contemplando um conjunto de saberes que exige a necessária
aceitação das múltiplas vivências, culturas e processos de sociabilidade que
configuram a vida dos jovens. Por outro, as verticalidades hegemônicas – ações dos
sujeitos decididores – contribuem para a reprodução das desigualdades, isolando os
jovens pobres em seus territórios, negando-lhes o direito de uso da cidade, inclusive
pela eliminação de seus corpos.
E nessa dinâmica o corpo dos jovens na cidade ainda é notado como
estranho na medida em que o espaço urbano se configura a partir do ponto de vista
do adulto, e suas normas estão configuradas pelo olhar adultocêntrico, alcançando a
vida cotidiana dos jovens, especialmente, quando se trata de um morador de área
periférica. Para eles, seu corpo é invisibilizado e/ou contido muito mais
intensamente, “é um corpo estranho que se tenta anular do cenário urbano, que se
pretende não estar no espaço da cidade” (SIMÕES, 2013, p. 135).
A tentativa de inviabilizar esses sujeitos impede que eles acessem,
apropriem-se e ressignifiquem os códigos dispostos na cidade e que organizam a
vida e condicionam as formas de produção e reprodução socioespacial. Esses
jovens enfrentam um conjunto maior de dificuldades para efetivamente se
apropriarem e produzirem a cidade-currículo como território educativo e
transformador.
Para Bonafé (2010), o currículo da cidade é definido pela pedagogia do
capitalismo que estabelece conteúdos que evidenciam a violência institucional de
um sistema que polariza e radicaliza a desigualdade e que coloca em risco a
presença na cidade como prática educativa. Estreita-se, com isso, a possibilidade do
reconhecimento das diferenças e das desigualdades, socioespaciais, do sentido do
encontro com o outro, e, portanto, como parte do processo de constituição das
sociabilidades juvenis e consequente construção de sua vida social.
Ser jovem pobre da periferia da cidade remete à relação com a cidade, e com
os outros, fortemente limitada pela sua condição territorial, resultando numa
particular posição nas relações de poder. Posição que é, no entanto, aberta e
mutável, em permanente construção e reconstrução, dadas as multiplicidades de
tempos, ações, sujeitos e intencionalidades. Nesse aspecto, supera-se as
representações fixas e autônomas, permitindo conceber esses jovens como o
produto de um conjunto de relações sociais e territoriais que desenham sua
existência e a forma como sua condição de sujeito social é determinada. Definindo-
se, dessa forma apenas, e somente apenas, no bojo de uma imbricada teia de
relações que se modificam no tempo-espaço. E, consequentemente, que alteram a
própria condição juvenil desses sujeitos.

4- Considerações finais
O que se pretendeu nesse trabalho foi pensar o jovem como produtor da
cidade no embricamento que conduz a tratar a cidade como condicionante na
constituição do jovem como sujeito social e da juventude como relação social. O que
exige considerarmos a produção de práticas libertadoras que conduzam a
mobilidade, a visibilidade e a permanência dos jovens na cidade, mesmo eles sendo
vítimas do aparato de controle e repressão que subjulga seus corpos.
Assim, se ser um jovem da periferia é o produto de uma relação social
marcada pela desigualdade territorial, de gênero, econômica, etária e racial,
expressas em seus corpos, é, da mesma forma, o efeito de práticas inventivas de
vida e existência. E os jovens de nossas periferias têm anunciado muitas dessas
práticas. Suas experiências na/pela cidade têm apontado, não apenas para as
dificuldades e restrições que vivenciam, como também para a centralidade que a
cidade adquire em suas vidas. Em seus bairros, em seu movimento pela cidade,
eles vão afirmando sua presença como sujeitos produtores do urbano. Na mesma
proporção em que as restrições e as potências presentes na cidade forjam sua
juventude e sua existência social.
Assim, é certo que a experiência da escassez e da pobreza atravessam suas
vidas e seus territórios e muito os condicionam. Mas, se as verticalidades acionadas
pelos decididores pretendem hegemonizar e anular as demais trajetórias que
compõem a multiplicidade do espaço, a insistência desses jovens de se fazerem
presentes na cidade aponta para sua força como sujeitos sociais. No cotidiano de
suas vidas e dos espaços opacos que habitam, vida, criatividade, solidariedade e
resistência pulsam.
Se os espaços opacos assim o são, porque sobre eles não é lançada a luz da
técnica e da modernização, não interessando aos atores hegemônicos da economia,
da cultura e da política, também deles emanam outras práticas espaciais, outros
discursos sobre a cidade, outra racionalidade (SANTOS, 1996).
Em seus “espaços opacos” seus modos de vida podem vir a ser potência.
Outros espaços-tempo se abrem a esses sujeitos pela força do lugar e pelo papel da
proximidade. Ocupam o estacionamento de uma grande rede de mercado.
Promovem rolezinhos em shopping centers. Ocupam as escolas públicas. Realizam
slams de poesia e batalhas de passinho pelas ruas e praças. Organizam e
engrossam manifestações de rua. Refrescam-se no lago da universidade pública ou
na fonte de um hospital privado. Resistem aos muitos processos de invisibilização
de seu corpo e de sua existência na cidade produzindo práticas de não submissão.
Os jovens, habitantes dos espaços opacos, homens lentos, são também
sujeitos que dão forma à multiplicidade do espaço e cujas práticas sublinham a
existência de outras linguagens, outros significados, outros modos de ser, viver e
habitar a cidade. Suas espacialidades produzem uma outra cidade aberta à
experiência da contrarracionalidade e da adaptação criativa e criadora às suas
realidades (SANTOS, 1996). Elas tensionam os espaços luminosos, revelando os
dissensos e as diferenças e reafirmam a dimensão pública, e portanto política, da
cidade.
É nessa medida que a luta pela cidade, empreendida cotidianamente por
esses jovens, transfigura-se também na luta pela sua existência como sujeitos
portadores de ações, intencionalidades, desejos e projetos. A cidade, como espaço
público e, portanto, verdadeiramente educativa, adquire um sentido real, e a luta
pelo direito de habitá-la converte-se, ela mesma, num processo educativo.
5- Referências bibliográficas:
BERTANINI, Tonino. O “espaço do corpo” e os territórios da vida cotidiana. Seleção
de textos, n. 10, p. 111-141, 1985.
BONAFÉ, Jaume. La ciudad en el curriculum y el curriculum en la ciudad. GIMENO,
J. (org). Saberes e incertidumbres sobre el curriculum. Madri: Morata, 2010.
GOMES, Paulo César da Costa. A condição urbana: ensaios de geopolítica da
cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
GOMES, Paulo Cesar da Costa. Espaço público, espaços públicos. Revista
Geographia. Niterói, v.20, n. 44, set./dez, 2018.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
MARTIN CRIADO, Enrique. Producir la juventud. Madri: Istmo, 1998.
MASSEY, Doreen. Space, place and gender. Minnesota: University Of Minnesota
Press, 1994.
MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
PECHMAN, Robert Moses. Quando Hannah Arendt vai à cidade e encontra Rubem
Fonseca: ou da cidade, da violência e da política. In: PECHMAN, Robert Moses;
KUSTER, Eliana. O chamado da cidade: ensaios sobre urbanidade. Belo Horizonte
Ed.UFMG, 2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São
Paulo: HUCITEC, 1996.
SIMÃO, Mario Pires. Cartografias de jovens como sujeitos políticos: dos
espaços de identidade aos espaços de visibilidade (Tese de Doutorado de Mário
Pires Simão). Universidade Federal Fluminense - Niterói: [s.n.], 2013.
VELLOSO, Rita. Apropriação, ou o urbano-experiência. Arquitextos, São Paulo,
a.16, n. 189.05, fev. 2016.

Você também pode gostar