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O Dilúvio

O projecto da salvaguarda tem os seus adversários: aqueles que pronunciam decretos contra o
passado e o presente, que exercem o seu poder de negação, que se erguem contra a sua
herança. O niilismo, que se encontra em parte no mundo actual, exprime-se através de três
tipos de personagens: o homem destruidor, o homem negligente e o homem modernizador.

O homem destruidor

Eis em primeiro lugar o homem destruidor, silhueta familiar. Torna a cidade feia com actos de
vandalismo, degrada os monumentos e os lugares públicos, faz reinar a insegurança, de tal
forma que o crescimento de zonas não abrangidas pelo direito delineia, na geografia urbana,
determinadas áreas nas quais o passeante receia os encontros desagradáveis. Ironia da
história! A vocação primordial da cidade não será a protecção do homem? Até ao século XVII,
esta servia de refúgio contra os perigos provenientes do exterior, as hordas de invasores. Lugar
de troca e de cooperação, a cidade permitia que os homens se aproximassem fraternalmente.
Tratava-se de um mundo comum onde o homem falava ao homem e onde a civitas deu à luz
esta magnífica criação chamada civilidade. Os monumentos, os lugares de culto, os jardins, o
comércio, o artesanato, as escolas, as universidades eram os instrumentos do «processo de
civilização», segundo a expressão do sociólogo alemão Norbert Elias. Formavam a matriz do
homem civilizado. Protegíamos a cidade porque esta protegia o homem. Por intermédio de
que reviravolta trágica é que ela se tornou, agora, território da incivilidade, onde a força se
sobrepõe ao direito, onde o homem se torna de novo um lobo para o homem?

Enquanto o cidadão pacífico se sente cada vez mais desapossado da sua cidade, o estudante e
o colegial não estarão a ser desapossados da sua escola? Também aqui tem lugar um processo
de destruição sob o efeito conjugado da incivilidade, do roubo, da violência física ou
psicológica e dos comportamentos de desprezo e hostilidade em relação à palavra professoral,
isto é, a autoridade e a cultura.

O homem negligente

Depois do homem destruidor vem uma segunda personagem que, contrariamente à primeira,
não deseja fazer o mal. Contudo, prejudica o mundo, uma vez que exerce o poder da
indiferença e do esquecimento. Deixa os monumentos ao abandono. Não se preocupa com o
ambiente. Capitulando perante a entropia, não se comporta como um guardião atento do
mundo. É o homem negligente.
A negligência não é simplesmente o esquecimento da assistência material, mas também a não-
observação de deveres de outra ordem: na realidade, existe uma forma de lesar o mundo que
consiste no facto de não estarmos presentes através da emoção ou do pensamento. Podemos
prejudicar tanto por falta de devoção como por falta de dedicação. As riquezas da cultura e da
natureza poderiam continuar a existir sem o apoio que as sustém uma certa piedade? Não
necessitarão de cuidados materiais, bem como do afecto que o nosso coração nutre por elas?
Na verdade, a admiração e o fervor são uma seiva que as mantêm vivas. As coisas nas quais
deixamos de pensar perdem, a pouco e pouco, a sua substância. O esquecimento equivale à
morte.

O homem modernizador

O terceiro inimigo da salvaguarda surge com a melhor das intenções. Contrariamente aos dois
primeiros, declara que pretende o bem dos seus semelhantes. Para isso, utiliza uma lâmina
afiada para atingir o ponto essencial do passado e do presente, do mundo físico e do mundo
moral. Esta arma é a modernização. O credo do homem modernizador diz que nada deve
permanecer idêntico a si mesmo, que nada deve ser permanente, que tudo deve participar na
alegre festa da novidade e deixar-se fecundar pela mudança, que a modernização conduz
necessariamente ao bem.

Vivemos numa ditadura da modernização que, desviando em seu proveito a ideia fundamental
do século das Luzes, impôs uma equação falaciosa segundo a qual a novidade equivale ao
progresso. Protegido pelo brasão do progresso, o homem modernizador avança de um modo
imperturbável. Ser moderno torna-se a ultima ratio dos seus empreendimentos. Qualquer
mudança é tida como desejável pelo simples facto de ser possível. Satisfará esta mudança as
necessidades profundas do homem? Será que constituirá um autêntico progresso para ele?
Qual é a sua verdadeira utilidade? Estas questões são cuidadosamente evitadas. A mudança
tornou-se uma máquina infernal que ninguém controla e que não tem de prestar contas, por
ter a virtude de se auto-legitimar. Arrastados numa vertiginosa fuga para a frente, os homens
actuais são os agentes de um processo de desenvolvimento que já não é senão uma paródia
do progresso.

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