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136 • O que resta dc Auschwitz A vergonha, ou do sujeito e 137

do, refere-se ao mu ç ulmano ( ou à zona cinzenta ) e significa , ent ão, mem pode sobreviver ao homem é o que resta depois da destrui çã o
a inumana capacidade de sobreviver ao homem. No segundo, refe- do homem , n ão porque haja em algum lugar uma essê ncia humana
re-se ao sobrevivente , e indica a capacidade do homem de sobreviver a destruir ou a salvar, mas porque o lugar do humano está cindido,
ao muç ulmano, ao n ão- homem. Mas, observando melhor, os dois : porque o homem tem lugar na fratura entre o ser que vive e o ser
sentidos convergem em um ponto, que constitui , por assim dizer, o .
que fala , entre o n ão-humano e o humano Ou seja: o homem tem
seu mais í ntimo n ú cleo semâ ntico , no qual os dois significados por lugar no não-lugar do homem, na frustrada articulação entre o ser que
um momento parecem coincidir. Nesse ponto está o mu ç ulmano ; e, vive e o logos. O homem é o ser que falta a si mesmo e consiste uni-
m
-
nele, liberta se o terceiro senciclo da tese
— —
mais verdadeiro e, ao
mesmo tempo, mais ambíguo que Levi proclama ao escrever: “são I
camente neste faltar-se e na errâ ncia que isso abre. Quando Grete
Salus escrevia que “o homem nunca deveria ter de suportar tudo que
eles, os ‘muçulmanos’, os afogados, as testemunhas integrais”: o ho- pode suportar, nem chegar a ver como este sofrer levado à potência
extrema tião tem mais nada de humano” , ela queria dizer tamb m
mem é o nâo-homem; verdadeiramente humano é aquele cuja humani- é
dade foi integralmente destruída. isso: que n ão existe uma ess ê ncia humana ; que o homem é um ser
O paradoxo reside, neste caso, no fato de que se real mente der mr de potê ncia e , no ponto em que ao captar a sua infinita indestruti-
testemunho do humano só aquele cuja humanidade foi destru ída , I b í lidade, acredita escar apreendendo a sua essência, o que se vê, en -
isso significa que a identidade entre homem e n ã o homem nunca é - tã o , é que “ já n ã o tem nada de humano” .
perfeita , e que n ã o é possível destruir integralmente o humano , que O homem est á sempre , portanto, para aqu é m ou para al é m do
algo sempre resta. À testemunha é esse resto. WÈ humano; é o umbral central pelo qual transitam sem cessar as cor-
:
íí : rentes do humano e do inumano , da subjetivação e da dessubjetiva-
3.24. A propósito do livro de Antelme, Blanchot escreveu certa çã o , do tornar-se falante por parte do ser vivo , e do tornar -se vivo
vez que “o homem é o indestrutível que pode ser infinitamente por parte do logos. Tais correntes coexistem , mas n ão são coinciden -
destru ído”'’2. Nesse caso, indestrutível n ão significa algo essê ncia
ou rela çã o humana

que resiste infinitamente à pró pria infinita
— li tes, e a sua n ão-coincid ê ncia, a sutil íssima divisó ria que as separa
o lugar do testemunho.

destrui ção , e Blanchot interpreta mal as suas pró prias palavras quan -
do v ê emergir, na destrui ção infinita , uma “ relação humana na sua
m
primordialidade” enquanto relaçã o com o outro63. O indestrutível
n ão existe , nem como essê ncia, nem como relação; e a frase deve ser
lida noutro sentido , ao mesmo tempo mais complicado e mais sim -
ples. “ O homem é o indestrut ível que pode ser infinitamente des-
tru ído” e “o homem é aquele que pode sobreviver ao homem” n ão
são definições que, como toda boa definição lógica, identificam uma
ess ê ncia humana , atribuindo-lhe uma diferen ça específica. O ho-
11
02
M . Blanchot, Ventretien infini ( Paris. Gallimard , 1969) , p. 200 [ed. bras : .
A conversa infinita 1: a palavra plural (palavra de escrita ), Sã o Paulo, Escuta,
2001 , c A conversa infinita 2: a experiê ncia-limite , São Paulo, Escuta , 2007] .
63 Ibideni, p. 199.
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O ARQUIVO E O TESTEMUN HO


m

4 . 1 . Em Paris, em noite de 1969, Ém í ie Benveniste, docente de


lingu ística no Collège de France, foi acometido por um mal-estar em
ns plena rua. Não tendo consigo documentos, n ão foi reconhecido;
sH quando foi identificado, já estava tomado por uma afasia total e incu-
% rá vel que nunca inais lhe permitiu desenvolver tarefa de qualquer tipo
até à morte, ocorrida em 1972. No mesmo ano , apareceu em Haia, na
revista “Semió tica” , o estudo sobre a Semiologia da língua, em cuja
conclusão ele delineia um programa de pesquisa que vai alé m da lin-
guística saussuriana, mas que devia ficar descumprido para sempre .
Não causa surpresa que a teoria da enunciação, talvez a criação mais
genial de Benveniste, apareça como fundamento desse programa . A

supera ção da lingu ística de Saussure afirma ele far-se-á por dois—

caminhos: o primeiro perfeitamente compreensível é o de uma
semâ ntica do discurso, distinta da teoria da significação, fundada no


paradigma do signo; o segundo que aqui nos interessa - consistirá,
por sua vez, “na an álise translingiiística dos textos e das obras, por
H meio da elaboração de urna mera-sem â ntica , que se construir á a partir
gu da sem â ntica da enuncia çã o” 1 .
Convé m que nos detenhamos por algum momento na aporia
impl ícita nessa formulaçã o. Se a enuncia ção n ã o se refere, conforme
sabemos, ao texto do enunciado, mas ao fato de ele ter lugar, se ela
n ã o é sen ã o o puro auto- referir -se da linguagem à instâ ncia de dis-
a curso em ato , em que sentido se poder á falar de uma “ sem â ntica” da

É. Benveniste, Problè mes de linguistique géri émle* cit . » v. 2, p. 65.


-
5
-
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enunciação ? Certamente, o isolamento da esfera da enunciaçã o per- um â mbito compará vel ao demarcado pelos saberes disciplinares.
mite distinguir pela primeira vez, em um enunciado , o que é dito do Na medida em que a enunciaçã o n ã o se refere a um texto, e sim a
fato de ele ter lugar; mas n ã o é, precisamente por isso , que a enun - u m puro acontecimento de linguagem ( na terminologia dos estoi -
ciação representará a identificaçã o, na linguagem , de uma dimensão cos; n ão ao dito, mas ao dizível que permanece nã o dito) , o seu ter -
não sem â ntica? Sem d úvida é possível definir algo similar a um sig- rit ó rio nunca poderá coincidir com um n ível definido da an á lise
nificado dos indicadores eu , tu , agora , aqui ( por exemplo, “eu signi - lingu ística ( a frase, a proposi ção, os atos ilocucioná rios etc.) , nem
fica aquele que enuncia a presente instâ ncia de discurso que cont é m com os â mbitos específicos configurados pelas ciências, mas repre-
-
eu ' ') , contudo, isso é algo completamente diferente do significado
lexical que compete aos outros signos da linguagem . Eu n ã o é nem
senta muito mais uma fun çã o que pode gravitar sobre cada
mesmos. Com uma l ú cida consci ê ncia das implica çõ es
um dos
ontol ógicas
uma noçã o, nem uma substâ ncia, e, no discurso, a enuncia ção co- de seu mé todo , Foucault escreve : “ O enunciado n ã o é uma estrutu -
ra [ ...} mas uma fun ção de existê ncia” . Por outras palavras
lhe n ã o o que se diz, mas o puro fato de que se est á dizendo isso , 2 , o

— —
o acontecimento evanescente, por definiçã o da linguagem co-
mo tal. Assim como o ser dos fil ósofos , a enuncia çã o é o que h á de
enunciado n ã o é algo dotado de propriedades reais definidas mas

pura existê ncia , a saber, o fato de que certo ente a linguagem te-
,


mais ú nico e de mais concreto , por se referir à instâ ncia de discur - nha lugar. Perante o sistema das ciê ncias e a multiplicidade dos sa-
so em ato , absolutamente singular e irrepetível e , ao mesmo tem - beres que definem , no interior da linguagem , frases, proposições
po , é o que h á de mais vazio e gen é rico , por se repetir toda vez sem dotadas de sentido e discursos mais ou menos bem formados, a ar -
que jamais seja possível fixar a sua realidade lexical . queologia reivindica como território pró prio o puro fato de tais pro-
,
O que pode significar, nessa perspectiva, uma metassem â ntica posi ções e cais discursos terem lugar, ou melhor, o fora da linguagem
fundada na semâ ntica da enunciaçã o? O que Benveniste havia en- o fato bruto da sua existê ncia .
trevisto antes de cair na afasia? Dessa forma , a arqueologia realizava pontualmente o programa
benvenistiano de uma “ metassem â ntica constru ída a partir de uma
4.2. No mesmo ano, 1969, Michel Foucault publicava A arqtieo
logia do saber, que formula o mé todo e o programa de suas investiga-
-
— —
sem â ntica da enunciação”: após ter isolado gra ças a uma semâ nti
ca da enuncia ção a esfera dos enunciados em rela ção à das propo-
,
-
ções, por meio da fundação de uma teoria dos enunciados. Embora o sições , Foucault recorre a ela para alcan çar um novo ponto de vista
nome de Benveniste n ão apareça no livro , e apesar do fato de Foucault
eventualmente n ão ter conhecido os últimos artigos dele , um fio secre-
to une o programa foucaultiano à quele delineado pelo linguista. É
mm
k
.
a partir do qual pode indagar os saberes e as disciplinas
torna poss ível reinvestir, por meio de uma “metassem â ntica
queologia
— o campo dos discursos discipli nares .
, um fora

que
” a ar -

o fato de ter tomado explicitamente como objeto n ã o as frases nem E possível que, desse modo, Foucault só quisesse revestir a velha
as proposi ções , e sim , precisamente, os enunciados , nã o o texto do
W: ontologia , que se tornou inapresent á vel , com a roupagem moderna
discurso, e, sim , o fato de ele ter lugar, que constitui a novidade in- de uma nova metadisciplina histórica , voltando a propor, com con-
compará vel da Arqueologia. Foucault foi , assim , o primeiro a com- , , , co-
sequente ironia , a filosofia primeira n ão como um saber e sim
preender a dimensão inaudita que a teoria benvenistiana da m o “a arqueologia” de todo saber. Isso, porém , significa desconhecer
enuncia ção havia revelado ao pensamento, transformando-o conse- Wm que a novidade do seu mé todo , que confere à investigação uma in-
q ú entemente no objeto de uma nova investigação. Ele realmente
dava-se conta de que tal objeto era , em certo sentido, indefin ível , de m - M. Foucault , Varchéologie du savoir ( Paris, Gallimard , 1969 ) , p. 1 1 5 [ed . bras
.:
que a arqueologia n ão delimitava, de modo algum , na linguagem , .
A arqueologia do saber , 4 . ed . Rio de Janeiro , Forense Universitá ria 1995
, ].
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comparável eficácia, consiste em n ão ter procurado apreender co-


mo tradição dominante na cultura moderna
— —
o ter lugar da
porque houve, de fato, um dia, alguém que os tenha proferido ou tenha
deixado em algum lugar sua marca provisó ria; mas sim porque, com eles,
pode ser estabelecida a posição do sujeito. Descrever uma formulação co-
linguagem através de um Eu ou de uma consciência transcendental
o u então, pior ainda, através de um eu psicossom á tico n ão menos
— mo enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que é
mitológico mas em ter colocado decididamente a pergunta: se al- dito (ou se quis dizer, ou se disse sem querer) , mas em determinar qual a
posição que pode e deve ocupar um indivíduo para ser o seu sujeito.
4
go como um sujeito ou um eu, ou então uma consciê ncia, ainda
pode encontrar alguma correspondência com os enunciados, com o Coerente com tais premissas, Foucault inicia no mesmo ano a sua
puro fato de ter lugar da linguagem . crítica da noção de autor, não tanto para assinalar seu eclipse ou para
Enquanto as ciências humanas eram definidas mediante a intro- certificar a sua morte, mas sim para a definir como simples especifica-
dução, na linguagem, de um corte correspondente a um determinado ção da função-sujeito , cuja necessidade de modo algum pode dar-se por
nível do discurso significante e da an álise linguística (a frase, a propo- descontada.
siçã o, o ato ilocucionario etc.), o sujeito delas era ingenuamente iden-
tificado com o indivíduo psicossomá tico que supostamente proferia o Pode-se imaginar uma cultura na qual os discursos circulariam e seriam rece-
discurso. Por outro lado, também a filosofia moderna, que havia des- bidos sem que nunca aparecesse a função-autor. Todos os discursos, qualquer
nudado o sujeito transcendental dos seus atributos antropológicos e que fosse seu estatuto, sua forma, seu valor e ou seu tratamento a que fossem
submetidos, se desenvolveriam no anonimato de um murmú rio.’
-
psicológicos, reduzindo o ao puro eu falo, não se tinha dado conta,
perfeitamente, da transformação da experiência da linguagem que is -
so comportava, do seu deslocamento para um plano assem ântico, que 4.3. Compreensivelmente preocupado em definir o territ ó rio da
já não podia ser o das proposições. Tomar realmente a sério o enun - arqueologia com relação aos campos dos saberes e das disciplinas,
ciado eu falo signi fica deixar de pensar a linguagem como comunica-
ção de um sentido ou de uma verdade por parte de um sujeito que é

Foucault parece ter omitido pelo menos até certo ponto interro- —
gar-se a respeito das implicações é ticas da teoria dos enunciados. Preo-
seu titular e seu responsável; significa, sim , passar a considerar o dis- cupado em cancelar e em despsicologizar o autor, em identificar, já na
curso no seu puro fato de ter lugar e o sujeito como “a inexistê ncia em neutralização da pergunta “quem fala? ” , algo semelhante a uma ética
cujo vazio se persegue sem trégua a difusão indefinida da linguagem”3. imanente à escritura, só mais tarde ele começou a medir todas as
A enunciação assinala, na linguagem , o limiar entre um dentro e um consequ ê ncias que a dessubjetivação e a decomposição do autor po-
fora, o fato de ter lugar como exterioridade pura; e a partir do mo- diam trazer para o próprio sujeito. Usando os termos de Benveniste,
mento em que os enunciados se tornam referência principal da inves- poder-se-ia afirmar que a metassem â ntica dos discursos discipli nares
tigação, o sujeito fica dissolvido de qualquer implicação substancial e acabou ocultando a semâ ntica da enunciação que a havia tornado
se torna pura função ou pura posição. possível; que a constituição do sistema dos enunciados em uma po-
sitividade e em um a priori histórico fez com que se esquecesse o
O (sujeito) é um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamen-
cancelamento do sujeito que era o seu pressuposto. Desse modo, a
te ocupado por diferentes indivíduos... Se uma proposição, uma frase,
justa preocupação em descartar o falso problema “quem fala?”, im-
um conjunto de signos podem ser chamados de “enunciados” , n ão é
4 Idem, Varchéologie du savoir, cic., p. 126.
1
Idem, Scritti letterari (Milano, Fekrinelli, 1996), p. 112. 5 Idem, Scritti letterari, cit ., p. 21.
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pediu que se formulasse a pergunta totalmente diferente e inevitável:
o que acontece no indivíduo vivente quando ele ocupa o “lugar vazio”

gostaria a ê nfase paté tica de certa histó ria oral os eventos biográ fi-
cos de uma histó ria pessoal , mas o rastro luminoso de outra hist ó ria;
do sujeito, no momento em que, ao entrar em um processo de enuncia- n ão a mem ó ria de uma exist ê ncia oprimida , e sina a ardê ncia muda
ção, descobre que “a nossa razão nada mais é que a diferença dos discur- de um ethos imemorável ; nã o a figura de um sujeito, e sim a desco -
sos, que a nossa história nada mais é que a diferença dos tempos, e que nexão entre o ser vivo e o ser que fala , que assinala o seu lugar vazio.
o nosso eu nada mais é que a diferen ça das m áscaras”6 ? Dado que, nesse caso, há uma vida que somente subsiste na inf â mia
Uma vez mais: o que significa ser sujeito de uma dessubjetiva- na qual foi jogada, e um nome que vive unicamente no opróbrio
çã o? Como um sujeito pode dar conta do seu pró prio desconcerto ? que a cobriu, algo , nesse opró brio, dá testemunho deles para além
— —
Fal omissão caso se tratar de omissão n ão corresponde obvia
mente a um esquecimento ou a uma incapacidade por parte de Foucault,
- de qualquer biografia.

mas a uma dificuldade impl ícita no próprio conceito de uma se- 4.4. Foucault denomina “arquivo” a dimensão positiva que cor-
m â ntica da enunciação. Enquanto tem a ver n ão com o texto do responde ao plano da enunciação, ao “sistema geral da formaçã o e
enunciado, mas com o fato de ter lugar, n ão com um dito, mas com da transforma ção dos enunciados”7. De que forma devemos con -
um puro dizer, ela, por sua vez , n ão pode constituir nem um texto ceber tal dimensão, se ela nã o corresponde ao arquivo em sentido
-
nem sequer uma disciplina; pelo fato de n ã o se sustentar sobre um
conte údo de significado, mas sobre um acontecimento de lingua-
restrito - ou seja, ao depósito que cataloga os traços do já dito para
os consignar à mem ó ria futura — nem à babélica. biblioteca que aco-
gem , o sujeito da enunciaçã o, cuja dispersã o funda a possibilidade lhe o p ó dos enunciados a fim de permitir a sua ressurrei ção sob o
de uma metassemântica dos saberes e constitui os enunciados em
um sistema positivo , n ão pode tomar a si mesmo como objeto, n ã o sm olhar do historiador ?
Como conjunto das regras que definem os eventos de discurso,
pode enunciar-se. Por isso, n ão pode haver arqueologia do sujeito -
o arquivo situa se entre a langue, como sistema de constru ção das
da mesma forma como h á arqueologia dos saberes .
Porventura isso significa que aquele que ocupa o lugar vazio do
— —
frases poss íveis ou seja , das possibilidades de dizer e o corpus que
re ú ne o conjunto do j á dito das palavras efetivamente pronunciadas
sujeito está destinado a ficar para sempre na sombra , que o autor deve OU escritas. O arquivo é , pois, a massa do não-semâ ntico , inscrita
perder-se integralmente e naufragar no murm ú rio an ónimo do “o m em cada discurso significante como fun ção da sua enunciaçã o, a
que importa quem fala ? ” . Talvez haja um ú nico texto, na obra de margem obscura que circunda e limita toda concreta tomada de pa-
'

Foucault , em que esta dificuldade aflora tematicamente à consciê n - lavra. Entre a mem ó ria obsessiva da tradi ção, que conhece apenas o
cia e no qual a obscuridade do sujeito emerge por um instante com já dito , e a demasiada desenvoltura do esquecimento , que se entrega
todo o seu esplendor. Trata-se de A vida dos homens infames-, conce-
wÊ unicamente ao nunca dito, o arquivo é o nã o-dito ou o diz ível ins -
bido originalmente como prefá cio de uma antologia de documentos
de arquivo , registros de internamento ou lettres de cachet, em que o
m crito em cada dito, pelo fato de ter sido enunciado , o fragmento de
mem ó ria que se esquece toda vez no ato de dizer eu. É nesse aa prio-
encontro com o poder, no mesmo momento em que as marca com ri histó rico” , suspenso entre a langue e a parole, que Foucault instala
infâ mia, arranca da noite e do sil ê ncio existências humanas que, do o seu canteiro e funda a arqueologia como “ tema geral de uma des-
contrá rio , n ão teriam deixado nenhum sinal de si . O que por um criçáo que interroga o ja dito no plano da sua exist ê ncia”
8

ou seja ,


instante brilha através desses lacónicos enunciados n ão são como
Ibidem , p. 1 / 1 .
0
Idem » IJã rchéologie dn savoir, cit . , p. 1 / 2 s. 9
Ibidem , p. i 73.

ÉS11
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146 ° O que resta de Auschwitz ú O arquivo e o restem unho ° 147

como sistema das relações entre o n ão-dito e o dito em cada ato de


palavra, entre a fun ção enunciativa e o discurso sobre o qual se pro- I feí
recido com um enunciado no plano da língua ? De que maneira
pode ser atestada, como tal, uma possibilidade de dizer ? ” Precisa -
jeta, entre o fora e o dentro da linguagem . mente porque o testemunho é a relação entre uma possibilidade de
Imaginemos agora repetir a operação de Foucault , fazendo com dizer e o fato de ter lugar, ele só pode acontecer por meio da rela ção
que deslize na direção da l í ngua, que se desloque para o plano da com urna impossibilidade de dizer, ou seja, unicamente como con -
l í ngua o canteiro que ele havia criado entre a langue e o conjunto tingencia, como um poder n ão-ser. Tal contingência, tal acontecer
'
:
dos atos de palavra, ou melhor, entre a língua e o arquivo. Dizen- da l íngua em um sujeito, é outra coisa que o seu efetivo proferir ou
do-o melhor ainda, n ã o tanto entre um discurso e o fato de este ter n ão proferir um discurso em ato , o seu falar ou silenciar, o produ -
lugar, entre o dito e a enuncia ção que aí acontece, mas sim entre a
I: -
zir-se ou não produzir se de um enunciado. No sujeito , ela tem a
langue e o seu ter lugar, entre uma pura possibilidade de dizer e sua ver com o seu cer ou n ã o rer l íngua. O sujeito é , pois , a possibilida -
existê ncia como tal . Se, de algum modo, a enunciaçã o fica suspen-
sa entre a langue e a parole, tratar-se-á ent ão de tentar considerar

de de que a l í ngua n ã o exista, n ão tenha lugar ou melhor, de que
esta só tenha lugar pela sua possibilidade de n ã o existir, da sua con -
os enunciados n ão do ponto de vista do discurso em ato , mas da - tingê ncia. O homem é o falante, o vivente que tem a linguagem
qucle da l í ngua, olhando a partir do piano da enunciaçã o n ão em porque pode não ter l í ngua , pode a sua in -fâ ncia. A contingê ncia
direçã o ao ato de palavra , mas na direção da langue como tal . Ou , n ão é uma modalidade entre tantas, ao lado do possível , do impos -
dito de outra forma , trata-se de articular um dentro e um fora n ã o s ível e do necessá rio: é o dar-se efetivo de uma possibilidade, o mo -
só no plano da linguagem e do discurso em ato, mas também no do no qual uma potência existe como tal. Ela é acontecimento
da l í ngua como potê ncia de dizer. (icontingit) , considerado do ponto de vista da potência , o dar se de-
Em oposi çã o ao arquivo , que designa o sistema das rela ções en- uma cisão entre um poder ser e um poder n ã o ser. Este dar -se en-
tre o n ão-dito e o dito, denominamos testemunho o sistema das contra, na l íngua, a forma de uma subjetividade. A contingê ncia é
relações entre o dentro e o fora da langue, entre o diz ível e o n ão - o poss ível posto à prova em um sujeito.

dizivei em toda l í ngua ou seja , entre uma potê ncia de dizer e a sua
existência , entre uma possibilidade e uma impossibilidade de dizer.
Se, na relação entre o dito e o seu rer lugar, o sujeito do enunciado
podia, realmente, ser colocado entre parênteses, porque o aro de cornar
Pensar uma potê ncia em ato enquanto potência, ou seja , pensar a -
a palavra já havia ocorrido, a relação entre a l í ngua e sua existê ncia, en
enuncia ção no plano da langue equivale a inscrever na possibilidade tre a langue e o arquivo, exige, por sua vez, uma subjetividade como
uma cisã o que a divide em uma possibilidade e uma impossibilida- aquilo que atesta, na própria possibilidade de falar, uma impossibilidade
de, em uma potê ncia e uma impotência , e, nessa cisã o, situar um de palavra. Por tal motivo, ela se apresenta como testemunha, pode falar
.
sujeito Enquanto a constitui ção do arquivo pressupunha deixar por quem não pode falar. O testemunho é uma potência que adquire
fora do jogo o sujeito, reduzido a simples fun ção ou a uma posi ção
vazia, e o seu desaparecimento no rumor an ónimo dos enuncia -
dos, no testemunho a questão decisiva se torna o lugar vazio do
sujeito. N ã o se trata, naturalmente, de voltar ao velho problema ,
que Foucault havia procurado liquidar: “ Como pode a liberdade
*
mm
realidade mediante uma impotê ncia de dizer e uma impossibilidade
que adquire existência mediante uma possibilidade de falar. Os dois
movimentos n ão podem nem identificar-se em um sujeito ou em uma
consciência, nem sequer separar-se em duas substâ ncias incomunicá-
veis. Esta indivisível intimidade é o testemunho.

de um sujeito inserir-se nas regras de uma língua ? ” mas sim de
situar o sujeito na separaçã o entre uma possibilidade e uma im - 4.5. Chegou o momento para tentar redefinir as categorias da mo-
possibilidade de dizer, perguntando: “ Como pode dar-se algo pa- dalidade na perspectiva que aqui nos interessa. As categorias modais —
m
148 • O cpie resta de Auschwitz O arquivo e o testemunho ” 149

possibilidade, impossibilidade, contingê ncia, necessidade náo são —


categorias lógicas ou gnosiológicas inócuas, que têm a ver com a estru-
ricamente determinadas da potência e da impotência, do poder n ão
ser e do náo poder n ão ser.
tura das proposições ou com a relação de algo com a nossa faculdade de Auschwitz representa , em tal perspectiva, um ponto de derroca -
conhecer. Elas são operadores ontológicos, isto é, as armas devastado- da histó rica desses processos, a experiência devastadora na qual se
ras com que se combate a gigantomaquia biopolí tica pelo ser, e se de- faz com que o impossível seja introduzido à força no real E a exis. -
cide, de cada vez, sobre o humano e sobre o inumano, sobre um “fazer tência do impossível, a negação mais radical da contingência - por-
viver” ou um “deixar morrer”. O campo da luta é a subjetividade. tanto, a necessidade mais absoluta. O muçulmano, produzido por
Que o ser se dá em modalidades significa que “viver é, para aqueles Auschwitz, é a catástrofe do sujeito que daí resulta, sua anulaçã o co-
que vivem, o seu pró prio ser” { tò de zên toiszõsi tò einai estird ) , que ele mo lugar da contingê ncia e sua manuten ção como existência do im-
implica um sujeito vivente. As categorias da modalidade náo se fun-
— —
damentam segundo a tese kantiana no sujeito, nem derivam dele; tornar possível o que parece impossível” —

possível. A definição de Goebbels a respeito da política “a arte de
adquire aqui todo o seu
o sujeito é, sim , o que se põe em jogo nos processos em que elas inte- peso. Ela define um experimento biopolítico sobre os operadores do
ragem. Elas cindem e separam em um sujeito o que ele pode do que ser, que transforma e desarticula o sujeito até a um ponto-limite no
ele não pode, o ser vivo em relação ao ser que fala, o muçulmano em qual o nexo entre subjetivação e dessubjetivação parece romper-se.

relação à testemunha e, desse modo, decidem sobre ele.
Possibilidade (poder ser ) e contingência ( poder não ser ) são os 4.6. O significado moderno do termo “autor ” aparece relaciva-
operadores da subjetivação, do ponto em que um possível chega à mente tarde. Em latim , auctor significa originariamente quem inter-
existência , se dá por meio da relação com uma impossibilidade. A vém no ato de um menor (ou de quem , por algum motivo, n ão tem
impossibilidade, como negação da possibilidade [n ã o ( poder ser)], e a capacidade de realizar um ato juridicamente válido ), para lhe con-
a necessidade, como nega ção da contingê ncia [não ( poder n ão ser)] , .
ferir o complemento de validade de que necessita Assim, o tutor, ao
são os operadores da dessubjetivação, da destruição e da destitui ção pronunciar a fórmula auctor fio, proporciona ao pupilo a “autorida -
do sujeito, ou seja, dos processos que nele estabelecem a divisão en - de” que lhe falta (diz se assim que o pupilo age tutore auctore). Da
-
tre potê ncia e impotência , entre possível e impossível. As duas pri-
meiras constituem o ser na sua subjetividade, ou melhor, em última
mesma maneira, a auctoritas patrum é a ratificação que os senadores

chamados por isso patres auctores trazem para uma resolução po
—-
an á lise, como um mundo que é sempre meu mundo, pois nele a pular a fim de a tomar válida e obrigató ria para todos os efeitos.
possibilidade existe, toca ( contingit) o real . Necessidade e impossibi- Entre as acepções mais antigas do termo, aparecem também as de
lidade definem, por sua vez, o ser na sua integridade e compacidade, “vendedor” em um ato de transferência de propriedade, de “quem acon-
pura substancialidade sem sujeito - ou seja , em ú ltima instâ ncia, selha ou persuade” e, por fim, de “testemunha”. De que modo um termo
um mundo que nunca é meu mundo, pois nele a possibilidade não que expressava a idéia da integração de um ato imperfeito pode significar

existe. As categorias modais como operadores do ser nunca es~

tão, poré m , frente ao sujeito como algo que ele poderia escolher ou
também o vendedor, o conselho e o testemunho ? Qual é o cará ter co
mum que está na raiz desses significados aparentemente heterogéneos?
-

recusar, nem como tarefa que ele poderia decidir ou n ão assumir
em um momento privilegiado. O sujeito é, sobretudo, o campo de
— A respeito dos significados de “vendedor” e de “conselheiro” ,
basta um exame rá pido para verificar a sua substancial pertin ê ncia
forças sempre já atravessado pelas correntes incandescentes e histo- ao significado fundamental. O vendedor é denominado auctor, pois
-
a sua vontade, integrando se com a do comprador, convalida e legi -
9 Aristó teles, Dean, 415b 13 [ Da alma* Lisboa, Edições 70, 2007, p. 60]. tima a propriedade. A transferência de propriedade aparece, no ca-
150 • O que resta de Auschwitz 1 O arquivo e o testemunho ° 151

so, como a convergê ncia de, pelo menos, duas partes em processo de ca como o significado originá rio dc augere. Como se sabe, o mundo
1i
'

transla ção, no qual o bom direito do comprador se funda sempre clássico não conhece a criaçã o ex nihilo [a partir do nada] , e, por isso,
sobre o do vendedor, que se torna, assim , o seu auctor. Quando le- todo ato de criação sempre implica algo, matéria informe ou ser in -
mos no Digesto ( 50, 17, 175, 7 ) non debeo melioris condicioni esse,
1 com pleto, que se trata de aperfeiçoar ou “fazer crescer” . Todo criador
quarn auctor meus, a quo ius in me transit, isso significa simpl esmen - I é sempre co-criador, todo autor, co-autor. E assim como o ato do auctor
-
te: o meu t í tulo dc propriedade funda se , de maneira necessá ria e V completa o do incapaz, dá força de prova ao que, em si, falta, e vida
suficiente , no do vendedor que o “autoriza”. Em todo caso, é essen - ao que por si só n ão poderia viver, pode-se afirmar, ao contrá rio, que
ciai a ideia de uma relação entre dois sujeitos, na qual um faz o papel é o ato imperfeito ou a incapacidade que o precedem e que ele vem a
de auctor do outro: auctor meus é, para o proprietá rio atual, o ven- 11 -
integrar que d á sentido ao ato ou à palavra do auctor testem unha. Um
dedor, no qual se funda a propriedade legítima. -
ato de autor que tivesse a pretensão de valer por si é um sem sentido
,
També m o significado de “quem d á conselho ou persuade” pressu-
põe uma idéia an á loga. A vontade incerta ou hesitante de um sujeito
m
m assim como o testemunho do sobrevivente verdadeiro
é e tem raz ão

v de ser unicamente se vier a integrar o de quem não pode dar testemu-
recebe, de fato, do auctor o impulso ou o complemento que lhe permi
te passar ao ato. Quando lemos , no Miles de Plauto, quid nunc mi es
- m nho. Assim como o tutor e o incapaz, o criador e a sua matéria, tam-
bé m o sobrevivente e o mu çulmano sã o insepar á veis , e s ó a
auctor?ut fadam?, isso n ão significa simplesmente “o que me aconselhas unidade diferen ça entre eles constitui o testemunho.
-
, .•

fazer?”, mas: a que me “autorizas” , de que modo integras a minha von- ;v


-
tade para a tornar capaz de decidir se por uma determinada ação? 4.7. Veja-se o paradoxo de Levi : “ O muç ulmano é a testemunha
Nessa perspectiva , também o significado de “testemunha” tor-
na -se transparente , e os três termos que em latim expressam a id éia
It integral” . Isso implica duas proposições contraditórias:
1) “ O muç ulmano é o n ão-homem , aquele que em nenhum caso
do testemunho adquirem , cada um deles, a sua fisionomia pró - 1 poderia testemunhar.”
pria. Se testis indica a testemunha enquanto intervé m como tercei
ro na disputa entre dois sujeitos , e superstes é quem viveu até o
- 2 ) “Aquele que n ã o pode testemunhar é a verdadeira testemu-
nha, a testemunha absoluta.”
fundo uma experi ê ncia , sobreviveu à mesma e pode, portanto , re- Sentido e sem -sentido deste paradoxo, nessa altura, tornam-se
-
feri la aos outros, auctor indica a testemunha enquanto o seu tes- transparentes. O que neles se expressa n ão é sen ão a estrutura í nti -

temunho pressupõe sempre algo fato, coisa ou palavra que lhe —
preexiste, e cuja realidade e força devem ser convalidadas ou certi -
ma dual do testemunho como ato de um auctor, como diferen ça e
integração de uma impossibilidade e de uma possibilidade de dizer,
ficadas. Neste sentido, auctor contrapõe-se a res ( auctor magis... de um n ão- homem e de um homem , de um ser vivo e de um ser
.
quam res. . movit: a testemunha tem mais autoridade do que o fato que fala. O sujeito do testemunho é constitutivamente cindido , só

testemunhado Liv., 2, 37, 8) ou a vox ( voces... nullo auctore emissae.

palavras cuja verdade nenhuma testemunha garante Cá c., Coei
30 ) . O testemunho sempre é, pois, um ato de “autor ” , implicando
-
.
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Ip
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7A

tendo consistê ncia na desconexão e na separa çã o n ão sendo, con -
tudo, redut ível às mesmas. Isso significa “ser sujeito de uma des-
s
-W ;;1
subjetivação”; por isso , a testemunha, o sujeito é tico, é o sujeito
sempre uma dualidade essencial, em que sã o integradas e passam a que dá testemunho de uma dessubjetivaçá o. O fato de nã o ser pos-
valer uma insufici ê ncia ou uma incapacidade. s ível atribuir o testemunho \l'inassegnabilità delia testintonianza]
Desse modo, explicam-se também o sentido de “fundador de uma V n ão é mais que o pre ço desta cisã o , dessa inquebrantável intimida-
estirpe ou de uma cidade” que o termo auctor tem nos poetas, e o sig-
nificado geral de “pôr em ser, dar existência” , que Benveniste identifi-
m
;SÍt :
de do mu ç ulmano e da testemunha , de uma impotência e de uma
potê ncia de dizer.
152 0
O que resta de Ausch witz O arquivo e o testemunho * i 53

Iã mbém o segundo paradoxo de Levi, que reza “ O homem é aque- multiplicação da morte em Bichat, o fato de se tornar morte aos
le que pode sobreviver ao homem” encontra aqui seu sentido. Muçul- poucos ou por partes, e sua divisão em uma sé rie de mortes parciais:
mano e testemunha, humano e inumano, são coextensivos e, contudo, morte do cé rebro, do fígado, do coração... O que Bichat, poré m ,
n ão coincidentes, divididos e, apesar disso, inseparáveis. Essa indivisível n ão consegue aceitar, o que continua a apresentar -se a ele como
partiçã o , essa vida cindida e, mesmo assim , indissol ú vel , expressa-se enigma irredut ível, n ão é tanto essa multiplicaçã o da morte, quanto
por uma dupla sobrevivência: o n ão-homem é quern pode sobreviver a sobrevivê ncia da vida orgâ nica em relaçã o à vida animal , a incon-
ao homem, e o homem é quern pode sobreviver ao não homem. Só - cebível permanência do “animal de dentro” , mesmo que o “animal
porque, no homem, foi possível isolar o muç ulmano, só porque a vida de fora” tenha deixado de existir. Se a preced ê ncia da vida orgâ nica
humana é essencialmente destrutível e divisível , a testemunha pode em relação à vida animal pode ser, de fato, explicada como processo
sobreviver-lhes . A sobrevivê ncia da testemunha no confronto com o de desenvolvimento na direçã o de formas cada vez mais elevadas e
inumano c fun ção da sobrevivência do muçulmano no confronto complexas, como dar conta , por sua vez, da insensata sobrevivê ncia
com o humano. O que pode ser infinitamente destruído é o que pode do animal de dentro ?
sobreviver infinitamente a si mesmo. As páginas em que Bichat descreve a extinção gradual e inexorá -
vel da vida animal na sobrevivê ncia indiferente das fun ções orgâ ni-
48. A tese central da fisiologia de Bichat consiste em que a vida
pode sobreviver a si mesma , e, aliás, em que ela é constirutivamence
cas est ão entre as mais intensas das Recberches. -
A morte natural tem isso de notável, ou seja, de que ela põe fim , qua -

cindida cm uma pluralidade de vidas e, portanto, cie mortes. To-
das as suas Recberchesphysiologiques sur la vie et sur la mort [ investi-
asas?
m se compíetamente, à vida animal, bem antes que acabe a vida orgânica.

ga ções fisiol ógicas sobre a vida e sobre a morte] são fundadas na


constataçã o de uma cisão fundamental da vida, que ele apresenta
m

Olhem para o homem que se apaga ao final de urna longa velhice: morre
por partes; as suas fun ções exteriores cessam uma depois de outra; todos
os seus sentidos cerram-se sucessivamente; as causas habituais da sensação
como a convivê ncia, em todo organismo, de dois “animais”: o ani-
passam por eles sem os afetar. A vista se obscurece, se turva, e ao final dei-

parando-a com a de um vegetal


——
mal existanten dedans, cuja vida que ele denomina orgâ nica , com -
n ão é senão uma “sucessão
xa de transmitir a imagem dos objetos: é a cegueira senil . Os sons inicial
mente ferem o ouvido de modo confuso, e logo em seguida ele se torna
-
habitual de assimila ção e excreção”, e o animal existam au -dehors,
m com pletamence insensível. O invólucro cutâ neo , encalecido, endurecido,
— —
cuja vida a ú nica que merece o nome de animal é definida pela
relação com o mundo exterior. A cisã o entre o orgâ nico e o animal
parcialmente privado de vasos, já desativados, nesta altura é apenas sede
de um tato obscuro e indistinto: de resto, o há bito de sentir embotou sua
atravessa a vida inteira do indiv íduo, ficando marcada pela oposição sensibilidade. Todos os ó rgãos que dependem da pele enfraqueceram se e -
entre a continuidade das fun ções orgâ nicas (circulação do sangue , morrem; os cabelos e a barba encaneceram . Sem os sucos que os nutriam,
respiração, assimilação, excreçã o etc.) e a intermitê ncia cias fun ções os pêlos caem . Os odores j á deixam no nariz apenas uma impressão le~
animais (a mais evidente entre elas é a do sono-vigília) , entre a assi - ve... Isolado no meio da natureza, privado parcialmente das funções dos
metria da vida orgâ nica ( um só estô mago , um fígado , um coração) órgãos sensitivos, o velho sente que também as do cérebro se apagam bem
e a simetria da vida animal (um cérebro simétrico, dois olhos, duas rapidamente. Quase já não há nele percepção, pois, nos sentidos, nada ou
orelhas , dois braços etc.) , e , por ú ltimo, na não-coincidência entre o quase nada ativa seu exercício; a imaginação fica embotada e anulada. A
seu in ício e o seu fim . Assim como, de fato , a vida orgâ nica começa, memória das coisas presentes se destró i; o velho esquece em um segundo
no feto, antes do que a vida animal , assim també m, no envelheci- o que acaba de lhe ser dito, pois seus sentidos exteriores, enfraquecidos e
mento e na agonia , sobrevive à morte desta . Foucault observou a já, por assim dizer, mortos, não conseguem confirmar- lhe aquilo que o
154 • O que resta de Auschwitz
O arquivo c o testemunho • 155
lhe ensina. As ideias lhe escapam , quando as imagens traçadas
seu es p írito
1
à vida de relação , dc um não-homem infinitamente separá vel do ho-
pelos Sentidos n ão conservam sua impressão.10
3 mem . Mas, como se um obscuro pren ú ncio desse pesadelo lhe atra -
A este decl ínio dos sentidos exteriores corresponde um intimo vessasse improvisamente a mente, de então imagina o sonho sim étrico
estranhamento em relação ao mundo, que lembra de perro as des- de uma morte invertida , que deixa sobreviver no homem as funções
cri ções da apatia do mu ç ulmano nos campos: animais e destró i totalmenre as da vida orgânica:

Os movimentos do velho são raros e lentos; custa fadiga sair da atitude Se fosse poss í vel supor um homem em quem a morte destru ísse apenas
em que se encontra. Sexrtado ao lado do fogo que o esquenta, transcorre todas as funções internas, como a circulação, a digestã o, as secreções
suas jornadas concentrado em si mesmo, alheio ao que acontece à sua : etc. , deixando subsistir o conjunto das funções da vida animal, tal ho -
volta , sem desejos, sem paixões, sem sensações; quase não fala , pois nada mem veria então aproximar-se o fim da sua vida orgânica com olhos
o leva a romper o silê ncio, satisfeito por sentir que ainda existe, quando indiferentes, pois sentiria que o bem da sua existência n ão depende de-
qualquer outro sentimento já desvaneceu... É fácil verificar, a partir do las e que ele assim seria capaz, mesmo depois desta esp écie de morte , de
que dissemos, de que no velho as funções exteriores se apagam aos pou- sentir e provar tudo aquilo que até então constituía a sua felicidade.11
cos, de que a vida animal já cessou quase inteiramente quando a orgâ ni-
ca ainda está ativa. Sob esse ponto dc vista , a condi çã o do ser vivo Em todo caso, seja que sobreviva o homem ou o n ão- homem , o
que a
animal ou o orgâ nico , se pocleria dizer que a vida traz em si mesma
morte natural est á para anular é semelhante àquela em que se encontrava
no seio materno, ou então ao estado do vegetal, que não vive sen ã o no
interior, e para o qual toda a natureza está em silêncio. 11
m
3» ;
— —
o sonho ou o pesadelo da sobrevivê ncia.

A descri çã o culmina , ao final, com uma pergunta que é, ao mes- — —


4.9. Foucault como vimos define a diferença entre o biopo
der moderno e o poder soberano do velho Estado territorial me
-
-
mo tempo , uma amarga confissão de impotê ncia frente ao enigma: if§ diante o cruzamento de duas fórmulas sim é tricas . Fazer morrer e
Mas por que, quando deixamos de existir fora, vivemos ainda dentro, . deixar viver resume a marca do velho poder soberano, que se exerce,
dado que os sentidos, a locomoçã o etc., estão destinados, sobretudo a m§ sobretudo, como direito de matar; fazer viver e deixar morrer é a
colocar - nos em relaçã o com os corpos que nos devem nutrir? Por que *m marca do biopoder, transformando a estatização do biol ógico e do
cuidado com a vida no próprio objetivo primá rio.
tais fun ções ficam debilitadas ern proporçã o maior do que as internas?
À luz das considerações precedentes, entre as duas fó rmulas insi -
Por que n ão h á uma relação exata na sua cessaçã o ? Não consigo resolver
m
inteiramente tal enigma... 12

Bichat n ão podia prever que um dia as tecnologias m édicas de rea -


m
m
nua-se uma terceira , que define o caráter mais específico da biopolí
tica do século XX.: j á n ão fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer
sobreviver. Nem a vida nem a morte, mas a produ ção de uma sobre-
-
nimaçã o, por um lado, e as biopolíticas, por outro , iriam trabalhar vivê ncia modul ável e virtualmente infinita constitui a tarefa decisiva
precisamente nessa desconexão entre o orgânico e o animal, realizan- do biopoder em nosso tempo.Trata-se, no homem , de separar cada
do o pesadelo de urna vida vegetativa que sobrevive indefinidamente
*
ÉÉ
pui
-
vez a vida orgâ nica da vida animai, o não humano do humano, o
mu ç ulmano da testemunha, a vida vegetal mantida em funciona -
10
X. Bichat , Recherches phyúologiques sur la vie et la mort ( Paris , F í ammarion , mento mediante as t écnicas de reanima ção da vida consciente, até
--
1994), p. 200 ss.
- -

n Ibidem , p. 202 ss .
íH -
alcan çar um ponto limite que, assim como as fronteiras da geopoíí-
12
Ibicícm , p. 203 ss. Vm
m J v Ibidem , p. 205 ss .

1881
»
É
156 a O cjtie resca de Auschwitz. O arquivo e o testemunho ° 157

tica , é essencial mente móvel e se desloca segundo o progresso das 1; lidade absolutamente separada da linguagem , se cancelarem , no
tecnologias científicas e políticas. A ambição suprema do biopoder muçulmano, a relação entre impossibilidade e possibilidade de dizer,
consiste em produzir em um corpo humano a separação absoluta que constitui o testemunho, então eles estarã o repetindo incons-
entre o ser vivo c o ser que fala, entre a zoe e o b/ os , o n ão-homem e
1 cientemente o gesto dos nazistas , e se mostrarão secretamente soli-
o homem: a sobrevivê ncia. d ários com o arcanum imperii. O seu silê ncio traz consigo o risco de
Por isso, o muç ulmano no campo - assim como, hoje em dia , o repetir a advertência zombeteira das SS aos habitantes do campo e
corpo do ultracomatoso e do neomort das salas de reanimação n ão
manifesta apenas a eficácia do biopoder, mas apresenta, por assim — que Levi transcreve no início de Os afogados e os sobreviventes'.
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês n ós ganhamos;
dizer, a sua cifra secreta , exibe o seu arcanum. No seu De arcanis re-
rum publicarum ( 1605), Clapmar distinguia, na estrutura do poder, ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape,
uma face vis ível (o jus imperii ) e uma face oculta (o arcanum , que ele o mundo lhe dar á crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investiga-
ções de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as
deriva de arca, cofre , caixa de ferro) . Na biopol í tica contemporâ nea ,
provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva
a sobrevivê ncia é o ponto em que as duas faces coincidem , é o vir à
algué m , as pessoas dirão que os fatos narrados são táo monstruosos que
luz do arcanum imperii como tal. Por tal motivo, de permanece, por
não merecem confian ça Nós é que ditaremos a histó ria dos Lager.14
assirrf dizer, invisível na sua própria exposiçã o, ficando tanto mais
recô ndito quanto mais exposto ao olhar. No mu çulmano, o biopo- 4.10. É precisamente tal isolamento da sobrevivê ncia em relação
der pretendeu produzir o seu ú ltimo arcano, uma sobrevivê ncia se - à vida o que o testemunho refuta com cada uma de suas palavras.
parada de qualquer possibilidade de testemunho, uma espécie de -
Ele diz que é precisamente porque o não humano e o humano, o ser
subst â ncia biopol í tica absoluta que, no seu isolamento, permite que vivo e o ser que fala, o mu çulmano e o sobrevivente coincidem , pre-
se confira qualquer identidade demográfica, étnica, nacional e políti- mi
lÉfe; cisamente por haver, entre eles, uma divisão insuperável, é que pode
ca. Se algu é m participasse, de algum modo, da “solução final ” , era, no haver testemunho. Precisamente enquanto ele é inerente à l íngua
jargã o da burocracia nazista, um Geheimnistràger, um depositá rio de m
m como tal, precisamente porque atesta o fato de que só através de
segredos, e o muçulmano é o segredo absolutamente n ão cestemunhá- m uma impot ê ncia tem lugar uma pot ê ncia de dizer, a sua autoridade
.
vel , a arca n ão desvel ável do biopoder Não desvelável porque vazia,
m
y
n ão depende de uma verdade fatual , da conformidade entre o dito e
porque n ão é mais que o volkloser Raum, o espaço vazio de povo no os fatos, entre a mem ória e o acontecido, mas, sim , depende da rela-
centro do campo, que, ao separar toda vida de si mesma, marca a pas- ção imemorável entre o indizível e o dizível, entre o fora e o dentro da
sagem do cidadão para o Staatsangehôrige de ascendência n ão ariana, do língua. A autoridade da testemunha reside no fato de poder falar unica-
n ão ariano para o judeu, do judeu para o deportado e, finaimente, m mente em nome de um não poder disser, ou seja, no seu ser sujeito. O tes-
do judeu deportado para além de si mesmo, para o muç ulmano, ou temunho não garante a verdade fatual do enunciado conservado no
seja, para uma vida nua n ã o atribu ível e não testemunhável . .
-
arquivo, mas a sua n ão arquivabilidade, a sua exterioridade com res-
Por isso, os que reivindicam atualmente a indizibilidade de Auschwitz 771 peito ao arquivo; ou melhor, da sua necessá ria subtração enquanto —
deveriam ser mais cautelosos nas suas afirmações. Se quiserem dizer
que Auschwitz foi um acontecimento ú nico, frente ao qual a tesce-
— —
existência de uma língua tanto perante a mem ória quanto perante o
esquecimento. Por isso mesmo por ser possível dar testemunho só
munha deve, de algum modo, submeter toda sua palavra à prova de onde há a possibilidade de dizer e só haver testemunha onde houver
uma impossibilidade de dizer, ent ão eles têm razão. Se, poré m , con-
jugando unicidade e indizibilidade , fizerem de Auschwitz uma rea- •’ P. Levi, Os afogados e os sobreviventes , cit., p. 1.
158 O que resta de Auschwitz O a rq uivo e o zcs te m u n ho 51
159


uma dessubjetivação o muçulmano é realrnence a testemunha integrai,
e por isso n ão é poss ível separar o mu çulmano do sobrevivente. 4.11. Em entrevista de 1964 à televisão alem ã, Hannah Arendt
É oportuno refletir sobre o estatuto particular que, sob tal pers - respondeu ao entrevistador que perguntava sobre o que restava, para
íva, compete ao sujeito. Que o sujeito do testemunho ou me
pect

lhor, que inclusive toda subjetividade, enquanto sersujeito e testemunhar
-
v
-
ela , da Europa do per íodo pré-hitlerista em que havia vivido: “ O
que resta ? Resta a l í ngua materna” ( Was bleibt? Es bleibt die Mntter -

são, em ú ltima an álise, uma ú nica realidade seja resto, isso não de - i sprache ) . O que é uma l í ngua como resto ? Como é possível uma l ín -

ficados do termo grego bypóstasis



verá ser entendido como se o sujeito fosse segundo um dos signi
— algo similar a um substrato, um
- i
gua sobreviver aos sujeitos e, até mesmo, ao povo que a falava ? E o
que significa falar em uma língua que resta ?
depósito ou um sedimento que os processos histó ricos de subjetiva- O caso de uma l í ngua morta oferece aqui um paradigma instru-
ção e dessubjetivação , de humanização e de desumanização deixam ' tivo. Toda língua pode ser considerada um campo percorrido por
para trás como uma espécie de fundo, ou de fundamenta , do seu
devir. Semelhante concepção repetiria , mais uma vez, a dialé tica do M
I duas tensões opostas, uma que vai para a inovação e a transforma-
çã o , e outra que caminha para a invariâ ncia e a conservação. A pri -

fundamento, em que algo em nosso caso, a vida nua deve ser — meira corresponde, na l íngua, a uma zona dc anomia, a segunda, à
separado e alcançar o fundo , para que uma vida humana possa vir a
ser atribu ída como pró pria a sujeicos ( nesse sentido, o mu ç ulmano
é o modo pelo qual a vida judaica alcan ça o fundo, para que algo
1
w
norma gramatical . O ponto de intersecção entre as duas correntes
opostas é o sujeito falante, como o auctor no qual se decide, de cada
vez, o que se pode dizer e o que n ã o se pode dizer, o diz ívei e o n ão
corno uma vida ariana possa ser produzida) . O fundamento, no ca-
so, é fun ção de um telos, que consiste em alcan çar ou fundar o ho-
m-T
dizível de uma lí ngua. Quando, no sujeito falante, a relação entre
norma e anomia, entre o dizível e o n ão diz ível se rompe, tem-se a
mem , do vir-a-ser humano por parte do inumano. É tal perspecriva morte da l í ngua e o surgimento na consci ência de uma nova identi -
que se trata de pô r em questão sem reservas . Devemos deixar de dade lingu ística. Uma l íngua morta é, pois, aquela na qual n ã o se
olhar para os processos de subjetivaçã o e de dessubjetivação, para o pode opor norma e anomia, inovação e conservação. De tal l íngua
- —
vir-a ser falante do ser vivo, e para vir-a-ser vivente do ser que fala ou , diz-se com razã o que n ã o é mais falada , ou seja, que nela é impossí vel

de modo mais geral , para os processos hist ó ricos como se eles ti
vessem um te/,os, apocal í ptico ou profano, no qual ser vivo e ser que fala,
- assinalar a posição de sujeito. O j á-dito forma no caso um todo fecha -
do e sem exterioridade, que só pode ser transmitido mediante um

——
não-homem e homem ou sejam quais forem , em geral, os termos de HÉ corpus ou ent ão evocado de novo em um arquivo. Para o latim , isso
um processo histórico acabem se unindo em uma alcançada e consu - C
:
aconteceu no momento em que é rompida a tensão entre sermo
mada humanidade, se compondo em uma identidade realizada. Isso n ão urbanus[discurso urbano] e sermo rustieus [ discurso rural] , que aflora
significa que, sendo privados de um fim, venham a set condenados à in - à consci ê ncia dos falantes já na era republicana. Enquanto a oposi-
sensatez ou à vaidade de um desencanto e de urn andar à deriva infinitos. ção era percebida como tensão polar interna, o latim se manteve como
-
Eles n ão têm um fim, mas um resto, não h á, dentro deles ou debaixo de- l íngua viva, e o sujeito percebia que falava em uma ú nica l íngua; quan-
les, um fundamento, mas, entre eles, em seu meio, há uma separação M do ela se rompe, a parte normatizada separa-se como l íngua morta
irredutível, na qual cada termo pode pôr-se em posição de resto, pode m» (ou como aquela que Dante chama grammatica ) e a parte an ô mica
W&
testem unhar. Realmente histórico é aquilo que cumpre o tempo n ão na
direção do futuro, nem simplesmente na direção do passado, mas no aro
1
Si!
d á vida aos romances vulgares.
Lembremos o caso de Giovanni Pascoli, poeta em língua latina
mm
de exceder Um meio. O Reino messiânico não é nem futuro (o milénio), m entre os séculos XIX e XX , ou seja, quando o latim h á séculos já era
nem passado (a idade de ouro): é um tempo restante. língua morta. O que então acontece é que o indivíduo consegue as-
160 O que resta de Auschwkz O arquivo e o testemunho * 161

sumir a posição de sujeito em urna lí ngua morta, isto é, consegue


restaurar nela a possibilidade de opor o diz ível e o não diz ível , ino- m
7
A respeito de que tal lí ngua dá testemunho? Porventura de algo
fato ou evento, mem ó ria ou esperan ça, alegria ou agonia que po- — —
vação e conservação, o que, por defini ção, j á n ão é possível. À pri- A -
deria ser registrado no corpus do j á dito? Ou da enuncia ção, que
meira vista , poder-se- ia dizer que um poeta desse tipo, em uma H ,

atesta no a rquivo a irredutib ílidade do dizer ao dito ? Não é


nem de
l í ngua morta, enquanto volta a se instalar nela como sujeito, efetua
uma verdadeira ressurreição da língua. É o que acontece, dc resto,
nos casos em que o exemplo do anctor isolado vem a ser seguido por
I
H
uma nem de outra coisa
na qual o autor consegue
, l
falar. Nela uma nguaí
.
que
N ã
dar
o enunci
testemunho
sobrevive
á vel

aos
, n ã
da
o

sujeitos
linguagem
arquiv
sua
que
. É
ável

a
a
é
incapacidade
falam

a língua

coin
obs
de
-
-
outros, conforme aconteceu , entre 1910 e 1918, com a fala piemon - ÍÍ
V cide com um falante que fica aqu é m da
nas de Celan como
treva
um “ ru ído
tesa de Forno, no Vai di Piu, quando o último ancião que a falava par- cura” que Levi sentia crescer nas p á g í
tilhou-a com um grupo de jovens, que começaram a falá-la também; ou de fundo”; é a não-língua de Hurbinek (mass-klo, matisklo), que irão
-
no caso do neo hebraico, em que toda uma comunidade se pôs conto m
m ..
encontra lugar nas bibliotecas do dito , nem no arquivo dos
enuncia-
respian-
sujeito com respeito a uma l íngua j á puramente cultual. Observando
.

m .
dos Assim como no , cé u estrelado visto à noite , as estrelas
ão dos
melhor, a situação é, porem , mais complexa. Na medida em que o decem circundadas por uma densa treva , o que , na opini
exemplo do poeta em língua morta aparece conscientemente isolado, e
ele mesmo continua falando e escrevendo em outra língua materna, po-
m cosmólogos, nada mais
,
ainda não brilhavam assim
é que
tamb
o testemunho
é m a palavra
do
da
tempo
testemunha
no qual
d á
elas
tes -
de-se afirmar que ele, de algum modo, faz conr que a língua sobreviva temunho do tempo em que eia ainda n ã o era humana . Ou ent ão,
aos sujeitos que a falavam, e que ele a produz como um meio indecidível conforme hipótese análoga , assim como , no universo em expans ão , as
— ——
ou um testemunho entre uma língua viva e uma língua morta. Dito

de outra maneira, que ele em uma espécie de nekyia filol ógica ofere-
galáxias mais remotas se
da sua luz, que n ão consegue
afastam
alcan
de
ç
n
ar
ó
-
s
nos
a uma
, de
velocidade
modo que a
superior
escurid ã
à
o


ce sua voz e seu sangue à sonrbra da l íngua morta para qLie ela volte co-

mo tal à palavra. Trata-se de um curioso anctor, que autoriza e convoca
que vemos nos céus nada mais seja que a invisibilidade daquela luz
assim também segundo o
, paradoxo de Levi , testemunha integral é
,

à palavra uma absoluta impossibilidade de falar. •


B
aquele que não podemos ver —o muçulmano.
Se voltamos agora ao testemunho, podemos dizer que dar teste -
munho significa pôr-se na própria língua na posição dos que a per- 4.12. Resto é um conceito teológico- messiâ nico. Nos livros pro-
-
deram , situar se em uma l í ngua viva como se fosse morta, ou em féticos do Antigo Testamento, o que nos salva n ã o é todo o povo de

uma língua morta como se fosse viva em todo caso, tanto fora do
-
arquivo, quanto fora do corpus do já dito. Não causa surpresa que
tal gesto testemunhal seja també m o do poeta , do auctor por exce-
. —
Israel , mas um resto indicado como se’ ar Jismcl , o resto de Israel ,
no livro de Isa ías, ou como se erit Josep, resto de José, no de Amós .
O paradoxo consiste aqui no fato de que os profetas se dirigem a
lê ncia. A tese de Hõlderin, segundo a qual “o que resta, fundam-no todo Israel para que se converta ao bem , mas, ao mesmo tempo, lhe
os poetas” ( Vi/as bleibt, stiften die Dichter ) não deve ser compreendi- anunciam que só um resto será salvo (assim se escreve em Am. 5, 15:
da no sentido trivial , de acordo com que a obra dos poetas é algo “Aborrecei o mal e amai o bem , e observai a justiça à porta ; talvez o
que perdura e permanece no tempo. Significa, sim, que a palavra Senhor, o Deus dos Exé rcitos, se compadeça do resto de José”; e em
poética é aquela que se situa , de cada vez, na posi ção de resto, e po- Is. 10, 22: “ Mesmo que o teu povo , ó Israel, seja como a areia do

de, dessa maneira, dar testemunho. Os poetas as testemunhas
fundam a língua como o que resta, o que sobrevive em ato à
— mar, só o resto se salvará”) .
O que devemos entender aqui como “resto” ? Conforme insistiram
— —
possibilidade ou à impossibilidade de falar. em dizer os teólogos, é decisivo que o resto não parece remeter simples
-
162 • O que resta de Auschwitz O arquivo e o testemunho “ 163

mente a uma porção numérica de Israel , resto é a consistência que Israel


4.13. Por definir o testemunho unicamente por meio do muçul-
assume no ponto em que é posto em relação imediata com o éschaton, com
mano , o paradoxo de Levi traz a ú nica refuta ção possível de qual-
o evento messiânico ou com a eleição. Na sua relação com a salvaçã ,
o o quer argumento negacionista.
todo (o povo) põe-se, portanto, necessariamente como testo.
Que Auschwitz seja aquilo de que não é possível dar testemunho
Isso é evidente, sobretudo, e m Paulo. Na Epístola aos Roma
nos , mediante uma densa rede de cita ções b í blicas , ele pensa o
- e que, ao mesmo tempo, o muç ulmano seja a absoluta impossibilidade
de dar testemunho. Se a testemunha d á testemunho pelo muçulma-
evento messiânico como sé rie de cisões que dividem o povo de Is
rael e, ao mesmo tempo, os gentios, constituindo-os sempre em
- —
no, se ele consegue trazer à palavra a impossibilidade de íalar se
dito de outro modo, o muçulmano é constitu ído como testemunha
.
posição de resto: “Assim també m no tempo atual (en tõ nyn cairo,
expressã o t écnica para o tempo messi â nico ) constituiu - se um resto —
integral ent ã o o negacionismo é refutado no seu pró prio funda-
mento. No mu ç ulmano, a impossibilidade de dar testemunho já
( leimma) segundo a eleição da graça” ( Rm . 11 , ). A
5 cisão n ão di
vide , poré m , só a parte em rela çã o ao todo ( Rm . 9 , 6 8: “porque
- -
nao é, realmente, uma simples privaçã o , mas tornou se real , existe

nem todos os de Israel sã o de fato israelitas; nem por serem semen -


- como tal. Se o sobrevivente dá testemunho n ão da câ mara a gás ou
de Auschwitz, mas pelo muçulmano; se ele fala apenas a partir de
te de Abraão s ã o todos seus filhos, mas: ‘Em Isaac ser
á chamada a uma impossibilidade de falar, então seu testemunho n ão pode ser
ti uipa semente’. Isto é, n ão sã o os filhos segundo a carne
també m filhos de Deus , mas os filhos da promessa é que serã o
que sã o —
negado. Auschwitz de que não é possível dar testemunho fica
provado de modo absoluto e irrefut á vel .

contados como semente” ) , al é m disso, divide o povo em relação ao
Isso significa que as teses “eu dou testemunho pelo muçulmano”
não- povo ( Rm. 9, 24: “Assim como diz o livro de Oséias: ‘chamarei
e o mu ç ulmano é a testemunha integral” n ão são nem ju ízos cons-
povo meu um n ã o- povo , e amada uma (gente) n ão amada; e lá on
de havia dito não povo meu , eles serão chamados filhos do Deus
- tatativos, nem atos ilocucioná rios, nem sequer enunciados no sentido
foucaultiano; elas, acima de tudo, articulam urna possibilidade de
-
vivo’”)*. No final , o resto apresenta se como uma máquina soterio
- m palavra só por uma impossibilidade e , desta forma , assinalam o ter
l ógica que permite a salvação daquele todo, cuja divisã o e cuja perda
lugar de uma l í ngua como evento de uma subjetividade .
havia assinalado ( Rm . 1 1 , 26: “ Todo o Israel será salvo”) .
No conceito de resto, a aporia do testemunho coincide com a mes
siâ nica. Assim como o resto de Israel n ão é todo o povo, nem uma par
- 4.14. Em 1987 , um ano após a morte de Primo Levi, Z. Ryn e
te dele, mas significa precisamente a impossibilidade, para o
-
todo e para
a parte, de coincidir consigo mesmos e entre eles; e assim como o
tempo
as
ipl
S Klodzinski publicaram, nos Auschwitz- Hefte , o primeiro estudo
.

dedicado ao muç ulmano . O artigo que tem o significativo título
“An der Grenzen zwischen Leben und Tod : Eine Studie tiber die
messiâ nico n ão é nem o tempo histórico , nem a eternidade, mas a sepa
-
'

I* Erscheinung des ‘Muselmanns’ im Konzentrationslager ” [ Na fron-


ração que os divide; assim também o resto de Auschwitz as testemu

nhas não são nem os mortos, nem os sobreviventes, nem os submersos,
nem os salvos, mas o que resta entre eles.
— -
g
7Í ;;
teira entre a vida e a morte: um estudo do fenômeno do muçulmano no

campo de concentração] apresenta 89 testemunhos, quase todos de
38 ex-deportados de Auschwitz, aos quais havia sido submetido um
question ário sobre a origem do termo, sobre as características físicas
e psíquicas dos muçulmanos, sobre as circunstâncias que causavam
o processo de “mu ç ulmanização” , sobre o comportamento dos ou-
Também aqui, em vez de se recorrer a trsduções bíblicas existentes em
português,
preferimos traduzir as citações bíblicas a partir do texto apresentado em italiano
pelo autor, para manter a terminologia presente em sua an á lise. ( N .T.)
m tros prisioneiros e dos funcion á rios com relação a eles, sobre a sua
mo r te e sobre as suas possibilidades de sobrevivê ncia . Os testem li-


164 ° O que resta de Auschwitz 1
ir O arquivo e o testemunho ° 165

nhos recolhidos n ão acrescentam nada de essencial mente novo ao


m
Os dias, nos quais eu era muçulmano, não os posso esquecer. Estava fraco,
que já sabíamos, a não ser a respeito de um ponto, que nos interessa de exausto, cansado até à morte. Para onde quer que olhasse, via algo para comer.
modo especial, porque parece pô r em questão, n ã o o testemunho : % Sonhava com pão e sopa, mas logo que acordava sentia uma fome insuportável.
de Levi, e sim um dos seus pressupostos fundamentais. Uma seção da m A porção dc pão, 50 gramas de margarina, 50 gramas de marmelada, quatr o
monografia 15 intitula-se “ Ich war ein Muselmann” , eu era um mu-
çulmano. Ela traz dez testemunhos de homens que sobreviveram à
1
Ifp
'
.
batatas cozidas com toda a casca, qpe havia recebido na noite anterior, já fa-
ziam parte do passado. O chefe do barracão e os outr os internados que tinham
condi ção de muç ulmano e tentam agora descrev ê-la.
Na expressão Eu era um muçulmano, o paradoxo de Levi alcança
a sua formulaçã o mais extrema . O muçulmano n ã o é só a testem u-
im algum cargo jogavam fora as cascas das batatas e às vezes até uma batata in
-
-
teira; eu os espiava e procurava as cascas no lixo para comê las. Passava nelas a
.
marmelada; eram realmente boas Um porco não as teria comido, mas eu sim,
nha integral , mas ele agora fala e dá testemunho em primeira pessoa . mastigava até que sentisse a areia nos dentes...
Já deveria estar claro em que sentido esta formulação extrema Eu,
alguém que fala, era um muçulmano, oti seja, alguém que, em nenhum
— 1 |
Í: É LUCJAN SOBIF.RAJ
-

caso, pode falar n ão só não contradiz o paradoxo, mas sim , pontual- í
liSf
Eu, pessoalmente, jui muçulmano por pouco tempo. Lembro que, após o trans
porte para o barracão, fiquei prostrado completamente do ponto de vista psí -

manos a ter a ú ltima palavra. —
mente, o verifica. Permitamos, portanto, que sejam eles os mu ç ul -
í
mI-
2
quico. A prostração manifestou-se da seguinte maneira: fui tomado por uma
apatia geral, nada me interessava, não reagia mais nem aos estímulos externos,
nem aos internos; já não me lavava, e não só por falta de água, mas também
quando tinha a oportunidade de o fazer; nem sequer sentia fome.
FELIICSA PIEKARSKA

Sou um muçulmano. Procurava proteger-me do risco de pegar uma pneu-


monia, assim como os outros companheiros, com a característica posição
encurvada, estirando quanto possível as omoplatas, e movendo paciente e
ritmicamente as mãos sobre o esterno. Assim cu me esquentava quando os
alemães não olhavam.
m Daquele momento em diante, volto ao Lager carregado às costas pelos cole -
gas. Mas os muçulmanos somos cada vez mais...
EDWARD SOKò L

Também eu fiti um muçulmano, do início de 1942 até o início de 1943.


Não tinha consciência de sê-lo. Acredito que muitos muçulmanos não se da-
vam conta de pertencer a tal categoria. Mas durante a divisão dos internados
fui colocado no grupo dos muçulmanos. Em muitos casos, era o aspecto dos
internados que decidia sobre a suã inscrição nesse grupo.
JERZY MOSTOWSKI
Quem não tiver sido muçulmano por algum tempo não poderá imaginar
15 “An der Grenzen zwischen Leben und Tod. Eine Studie iiber die Erscheinung quão profundas sã o as transformações psíquicas sofridas por um homem! A
des ‘Mtiselnmiins’ im Konzentrarionslager”, cie., p. 121-4. própria sorte tornava-se tão indiferente que já não se queria mais nada e
166 * O que testa de Auschwicz O arquivo e o testemunho * 167

em paz se esperava a morte. Não se tinham mais nem a força nem a von- Nesse período, começou a muçulmanidade (das Muselmanentum ) e se espa -
tade dc lutar pela sobrevivência cotidiana; nos bastava o hoje, a gente se lhou por todos os esquadrões que trabalhavam, ao ar livre. O muçulmano e des -
contentava com a ração ou com o que encontrasse no lixo... prezado por todos, até pelos companheiros... Os seus sentidos ficam embotados,
KAROI, TALIK
% e quem está à volta se torna completamente indiferente para ele. Não pocle mais
falar de nada e nem sequer rezar, já não acreditando nem no céu nem no infer-
-
hm geral, pode se dizer que entre os muçulmanos havia exatamente as mes- m no. Já não pensa na sua casa, na família, nos companheiros no campo.
mas difirmças que entre homens que vivem em condições normais; quero -
Qttase todos os muçulmanos morreram no campo; só um pequeno percen
dizer, diferenças físicas ou psíquicas. As condições do Lager é que tornavam tual conseguiu sair daquela situação. A boa sorte ou a providência fizeram
,

tais diferenças mais evidentes c í -o? n frequência éramos testemunhas de uma


com que alguns pudessem ser libertados. Por isso, é possí vel descrever como
inversão de papel entre os fatores físicos e os psíquicos.
-
consegui livrar me dessa condição.
,

ADOI.F GAWAI.EWICZ [ ...] A cada passo viam-se muçulmanos, figuras sem carne e imundos, com
$
Já havia provado um pressentimento deste estado. Na cela, havia conhecido - a pele e o rosto enegrecidos, o olhar perdido, os olhos fimdos, as roupas des-
u sensação da vida que se ia: todas as coisas cerrenas não tinham mais im- m -
gastadas, encharcadas e fedidas. Moviam se a passos lentos c titubeantes,
portância. As junções corpóreas definhavam. Até a fome me atormentava inadequados ao ritmo da marcha... Falavam apenas das suas lembranças e de
,

11 comida: quantos pedaços de batata havia ontem na sopa, quantas fatias de car-
menos. Sentia urna estmnha doçura, porém não tinha mais a força dc me
levantar do colchão de palha e, se o conseguia fazer, para ir à latrina, tinha
que me apoiar nas paredes... |
m
jf
ne, se o caldo era denso ou apenas água... As cartas que chegavam de casa não
traziam conforto> pois não se iludiam de voltar. Um pacote era esperado com
ansiedade para que se pudessem saciar pelo menos uma vez. Sonhávamos em
WLODZIMIERZ BORKOWSKI
d A revolver os restos da cozinha para encontrar restos depáo ou borra de café.
Vivi em meu próprio corpo a forma de vida mais atroz do Lager, o horror O muçulmano trabalhava por inércia, ou melhor, fazia de conta que tra -
da condição muçulmana. Fui um dos primeiros muçulmanos; vagava pelo
% .
bulhava Um exemplo: durante o trabalho na serraria, procurávamos as
campo como cão vagabundo; tudo me era indiferente, contanto que pudesse serras menos afiadas, que podiam ser usadas sem dificuldade, não impor-
viver mais um dia. Cheguei ao Lager em 14 de julho de 1940, com o pri-
tando se cortavam ou não. Muitas vezes fazíamos de conta que trabalha -
SÍ® vamos um dia inteiro, sem. cortar nem sequer uma cepa. Se tivéssemos que
meiro comboio, vindo da prisão de jarnow. . . 8§
S| endireitar os pregos, martelávamos sem parar sobre a bigorna. Mas sempre
Após algumas dificuldades iniciais, fui colocado no Kommando Agiicul -
tura, onde trabalhei até o outono daquele ano na colheita das batatas e do
:: devíamos ficar atentos para que ninguém nos visse, e também isso cansa -
va. O muçulmano não tinha um objetivo, fazia seu trabalho sem pensar;
feno e na trilbadura. De repente ocorreu um acidente no Kommando. Ha-
viam descoberto que civis de fora nos davam de comer. Acabei na compa- -
movia se sem pensar, sonhava apenas em ter na fida um lugar em que
nhia disciplinar e lã começou a tragédia da minha vida no campo. Perco as pudesse receber mais sopa e mais densa. Os muçulmanos seguiam aten -
tamente os gestos dos chefes de cozinha para ver se, ao porem a colher na
forças e a saúde. Após alguns dias de trabalho duro, o Kapo do Kom man -
.
panela, pegavam a sopa de baixo ou de cima Forniam apressados e não
-
do precedente transferiu me da companhia disciplinar para o Kommando
Serraria. O trabalho era menos duro, mas se precisava estar ao ar livre o
pensavam senão em obter uma segunda porção, mas isso nunca acontecia:
dia inteiro, e naquela: ano o inverno em muito frio, sempre com chuva mis- -
uma segunda porção, recebiam na os que trabalhavam mais e melhor, e
eram mais considerados pelo chefe de cozinha...
,

turada com neve; as geadas já começavam e nós vestidos com tecidos leves,
13 Os outros internados evitavam os muçulmanos: não Ijavia, com eles, nenhum
roupas de baixo e camisa, chinelos de madeira sem meias e, na cabeça, um
,

gorro de tecido. Nesta situação, sem alimento suficiente, encharcados c ge- - tema comum de conversa, pois os muçulmanos divagavam e falavam só de co -
mida.Os muçulmanos não gostavam dos prisioneiros “melhores a não ser que
"

lados todo dia, a morte não nos dava tréguas... : .

sts
mm
168 * O que resta de Auschwitz O arquivo e o testemunho * 169

pudessem obter deles algo de comer. Preferiam a companhia de iguais a eles,


,
chefe do barracão gostava de mim e me indicava como exemplo para os outros
porque assim podiam trocar facilmente pão, queijo ou salsicha por um cigar-
ro ou outro alimento. Tinham medo de ir à enfermaria, nunca se declaravam
.
detidos [... ] Em seguida, fui transferido para o Kommando Agricultura, no
estábulo das vacas. Também aqui conquistei a confiança dos companheiros e
doentes e, em geral desmaiavam dc repente durante o trabalho.
comida suplementar, pedaços de beterraba, açúcar escuro, sopa destituída aos
Vejo ainda perfeitamente os esquadrões que voltam do trabalho em filas de porcos, leite em quantidade e, além disso, o calor do estábulo. Isso fez com que
cinco: as primeiras filas marchavam ao passo seguindo o ritmo da orquestra,
me recuperasse e me salvasse da muçulmariidade f...J
enquanto os cinco logo atrás já não conseguiam manter o passo; aqueles ainda
mais atrás, apoiavam-se uns nos outros; nas líltimas fitas, os quatro maisfortes
1 O tempo em que fui muçulmano marcou profundamente a minha memõ-
ria: lembro perfeitamente o incidente no Kommando Serraria no outono
entregavam pelos braços e pelas pernas o quinto que estava morrendo...
de 1940; ainda vejo a serra, os troncos dc madeira amontoados desordena-
Conforme já afirmei, em 1940 eu vagava pelo Lager como um cão vagabundo, damente, os barracões, os muçulmanos que se esquentam mtttuamente, os
sonhando em conseguir pela menos alguma casca de batata. Procurei enfiar- m seus gestos [. . . ]. Os ú ltimos momentos dos muçulmanos eram verdadeira -
me em buracos perto da serraria, onde se procurava cozinhar as batatas que mente assim como se diz nesta canção do campo:
serviam de ração para os porcos e os outros animais. Os companheiros comiam
pedaços de batatas cruas untadas de sacarina, que lembravam o gosto das pé- O que é pior que o muçulmano?
nis. Todo dia a minha condição piorava: apareceram- me úlceras nas pernas e
Porventura tem direito de viver?
fá não esperava conseguir sobreviver. Esperava apenas por um milagre, embora Nã o est á a í para que o pisoteiem , o empurrem e batam nele ?
não tivesse a força de me concentrar e de rezar com fé...
Perambula pelo campo como uni cão vagabundo.
Estava nesta situação, quando uma comissão, acredito, de médicos das Todos o expulsam , mas o seu resgate é o cremató rio.
SS , que entraram no barracão depois da última chamada, tomou nota de A ambulância o tira de circulação!
mim. Eram três ou quatro e se interessavam especialmente pelos muçul-
manos. Além das bolhas nas pernas, tinha urn inchamento no tornozelo B RON1SI.AW Gosci NSKI
do tamanho de um ovo. Por esse motivo, prescreveram-me uma cirurgia e
transferiram -me com os outros para o barracão 9 (o ex-barracão 11 ). Rece
bíamos a mesma refeição dos outros, mas não íamos trabalhar e podíamos
-
repousar todo o dia. Fomos visitados pelos médicos do campo; fui operado

as cicatrizes desta operação notam-se ainda hoje e me recuperei. Não pre-
— ( ,Resí dua clesiderantur )
cisávamos apresentar-nos à chamada; fazia calor e se estava bem, até que
urn dia chegaram as SS responsáveis pelo barracão. Disseram que o ar era
sufocante e pediram para abrir todas as janelas; era dezembro de 1940...
Após poucos minutos, todos tremíamos de frio e nos fizeram correr pela sala
até que todos estivéssemos cobertos de suor. Depois disseram: “sentados", e
ninguém mais se moveu. Até que nossos corpos se resfriavam e de novo ficás-
semos com frio. Depois, mais uma corrida , e assim por todo o dia.
Tendo em vista a situação, decidi ir embora e, durante a visita de controle, de-
clarei que estava curado, que estava bem e queria trabalhar. E assim aconteceu.
-
Fui traitsferido para o barracão 10 (agora número 8). Colocaram me em urn
-
quarto em que estavam apenas os recém chegados [...]. Como velho detido, o

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