Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
do, refere-se ao mu ç ulmano ( ou à zona cinzenta ) e significa , ent ão, mem pode sobreviver ao homem é o que resta depois da destrui çã o
a inumana capacidade de sobreviver ao homem. No segundo, refe- do homem , n ão porque haja em algum lugar uma essê ncia humana
re-se ao sobrevivente , e indica a capacidade do homem de sobreviver a destruir ou a salvar, mas porque o lugar do humano está cindido,
ao muç ulmano, ao n ão- homem. Mas, observando melhor, os dois : porque o homem tem lugar na fratura entre o ser que vive e o ser
sentidos convergem em um ponto, que constitui , por assim dizer, o .
que fala , entre o n ão-humano e o humano Ou seja: o homem tem
seu mais í ntimo n ú cleo semâ ntico , no qual os dois significados por lugar no não-lugar do homem, na frustrada articulação entre o ser que
um momento parecem coincidir. Nesse ponto está o mu ç ulmano ; e, vive e o logos. O homem é o ser que falta a si mesmo e consiste uni-
m
-
nele, liberta se o terceiro senciclo da tese
— —
mais verdadeiro e, ao
mesmo tempo, mais ambíguo que Levi proclama ao escrever: “são I
camente neste faltar-se e na errâ ncia que isso abre. Quando Grete
Salus escrevia que “o homem nunca deveria ter de suportar tudo que
eles, os ‘muçulmanos’, os afogados, as testemunhas integrais”: o ho- pode suportar, nem chegar a ver como este sofrer levado à potência
extrema tião tem mais nada de humano” , ela queria dizer tamb m
mem é o nâo-homem; verdadeiramente humano é aquele cuja humani- é
dade foi integralmente destruída. isso: que n ão existe uma ess ê ncia humana ; que o homem é um ser
O paradoxo reside, neste caso, no fato de que se real mente der mr de potê ncia e , no ponto em que ao captar a sua infinita indestruti-
testemunho do humano só aquele cuja humanidade foi destru ída , I b í lidade, acredita escar apreendendo a sua essência, o que se vê, en -
isso significa que a identidade entre homem e n ã o homem nunca é - tã o , é que “ já n ã o tem nada de humano” .
perfeita , e que n ã o é possível destruir integralmente o humano , que O homem est á sempre , portanto, para aqu é m ou para al é m do
algo sempre resta. À testemunha é esse resto. WÈ humano; é o umbral central pelo qual transitam sem cessar as cor-
:
íí : rentes do humano e do inumano , da subjetivação e da dessubjetiva-
3.24. A propósito do livro de Antelme, Blanchot escreveu certa çã o , do tornar-se falante por parte do ser vivo , e do tornar -se vivo
vez que “o homem é o indestrutível que pode ser infinitamente por parte do logos. Tais correntes coexistem , mas n ão são coinciden -
destru ído”'’2. Nesse caso, indestrutível n ão significa algo essê ncia
ou rela çã o humana
—
que resiste infinitamente à pró pria infinita
— li tes, e a sua n ão-coincid ê ncia, a sutil íssima divisó ria que as separa
o lugar do testemunho.
,é
destrui ção , e Blanchot interpreta mal as suas pró prias palavras quan -
do v ê emergir, na destrui ção infinita , uma “ relação humana na sua
m
primordialidade” enquanto relaçã o com o outro63. O indestrutível
n ão existe , nem como essê ncia, nem como relação; e a frase deve ser
lida noutro sentido , ao mesmo tempo mais complicado e mais sim -
ples. “ O homem é o indestrut ível que pode ser infinitamente des-
tru ído” e “o homem é aquele que pode sobreviver ao homem” n ão
são definições que, como toda boa definição lógica, identificam uma
ess ê ncia humana , atribuindo-lhe uma diferen ça específica. O ho-
11
02
M . Blanchot, Ventretien infini ( Paris. Gallimard , 1969) , p. 200 [ed. bras : .
A conversa infinita 1: a palavra plural (palavra de escrita ), Sã o Paulo, Escuta,
2001 , c A conversa infinita 2: a experiê ncia-limite , São Paulo, Escuta , 2007] .
63 Ibideni, p. 199.
St
mI
ms
11®
ik.
:ã
-t
O ARQUIVO E O TESTEMUN HO
mÈ
m
enunciação ? Certamente, o isolamento da esfera da enunciaçã o per- um â mbito compará vel ao demarcado pelos saberes disciplinares.
mite distinguir pela primeira vez, em um enunciado , o que é dito do Na medida em que a enunciaçã o n ã o se refere a um texto, e sim a
fato de ele ter lugar; mas n ã o é, precisamente por isso , que a enun - u m puro acontecimento de linguagem ( na terminologia dos estoi -
ciação representará a identificaçã o, na linguagem , de uma dimensão cos; n ão ao dito, mas ao dizível que permanece nã o dito) , o seu ter -
não sem â ntica? Sem d úvida é possível definir algo similar a um sig- rit ó rio nunca poderá coincidir com um n ível definido da an á lise
nificado dos indicadores eu , tu , agora , aqui ( por exemplo, “eu signi - lingu ística ( a frase, a proposi ção, os atos ilocucioná rios etc.) , nem
fica aquele que enuncia a presente instâ ncia de discurso que cont é m com os â mbitos específicos configurados pelas ciências, mas repre-
-
eu ' ') , contudo, isso é algo completamente diferente do significado
lexical que compete aos outros signos da linguagem . Eu n ã o é nem
senta muito mais uma fun çã o que pode gravitar sobre cada
mesmos. Com uma l ú cida consci ê ncia das implica çõ es
um dos
ontol ógicas
uma noçã o, nem uma substâ ncia, e, no discurso, a enuncia ção co- de seu mé todo , Foucault escreve : “ O enunciado n ã o é uma estrutu -
ra [ ...} mas uma fun ção de existê ncia” . Por outras palavras
lhe n ã o o que se diz, mas o puro fato de que se est á dizendo isso , 2 , o
— —
o acontecimento evanescente, por definiçã o da linguagem co-
mo tal. Assim como o ser dos fil ósofos , a enuncia çã o é o que h á de
enunciado n ã o é algo dotado de propriedades reais definidas mas
—
pura existê ncia , a saber, o fato de que certo ente a linguagem te-
,
—
mais ú nico e de mais concreto , por se referir à instâ ncia de discur - nha lugar. Perante o sistema das ciê ncias e a multiplicidade dos sa-
so em ato , absolutamente singular e irrepetível e , ao mesmo tem - beres que definem , no interior da linguagem , frases, proposições
po , é o que h á de mais vazio e gen é rico , por se repetir toda vez sem dotadas de sentido e discursos mais ou menos bem formados, a ar -
que jamais seja possível fixar a sua realidade lexical . queologia reivindica como território pró prio o puro fato de tais pro-
,
O que pode significar, nessa perspectiva, uma metassem â ntica posi ções e cais discursos terem lugar, ou melhor, o fora da linguagem
fundada na semâ ntica da enunciaçã o? O que Benveniste havia en- o fato bruto da sua existê ncia .
trevisto antes de cair na afasia? Dessa forma , a arqueologia realizava pontualmente o programa
benvenistiano de uma “ metassem â ntica constru ída a partir de uma
4.2. No mesmo ano, 1969, Michel Foucault publicava A arqtieo
logia do saber, que formula o mé todo e o programa de suas investiga-
-
— —
sem â ntica da enunciação”: após ter isolado gra ças a uma semâ nti
ca da enuncia ção a esfera dos enunciados em rela ção à das propo-
,
-
ções, por meio da fundação de uma teoria dos enunciados. Embora o sições , Foucault recorre a ela para alcan çar um novo ponto de vista
nome de Benveniste n ão apareça no livro , e apesar do fato de Foucault
eventualmente n ão ter conhecido os últimos artigos dele , um fio secre-
to une o programa foucaultiano à quele delineado pelo linguista. É
mm
k
.
a partir do qual pode indagar os saberes e as disciplinas
torna poss ível reinvestir, por meio de uma “metassem â ntica
queologia
— o campo dos discursos discipli nares .
, um fora
—
que
” a ar -
o fato de ter tomado explicitamente como objeto n ã o as frases nem E possível que, desse modo, Foucault só quisesse revestir a velha
as proposi ções , e sim , precisamente, os enunciados , nã o o texto do
W: ontologia , que se tornou inapresent á vel , com a roupagem moderna
discurso, e, sim , o fato de ele ter lugar, que constitui a novidade in- de uma nova metadisciplina histórica , voltando a propor, com con-
compará vel da Arqueologia. Foucault foi , assim , o primeiro a com- , , , co-
sequente ironia , a filosofia primeira n ão como um saber e sim
preender a dimensão inaudita que a teoria benvenistiana da m o “a arqueologia” de todo saber. Isso, porém , significa desconhecer
enuncia ção havia revelado ao pensamento, transformando-o conse- Wm que a novidade do seu mé todo , que confere à investigação uma in-
q ú entemente no objeto de uma nova investigação. Ele realmente
dava-se conta de que tal objeto era , em certo sentido, indefin ível , de m - M. Foucault , Varchéologie du savoir ( Paris, Gallimard , 1969 ) , p. 1 1 5 [ed . bras
.:
que a arqueologia n ão delimitava, de modo algum , na linguagem , .
A arqueologia do saber , 4 . ed . Rio de Janeiro , Forense Universitá ria 1995
, ].
142 • O que resta de Auschwitz O arquivo e o testemunho • 143
—
pediu que se formulasse a pergunta totalmente diferente e inevitável:
o que acontece no indivíduo vivente quando ele ocupa o “lugar vazio”
—
gostaria a ê nfase paté tica de certa histó ria oral os eventos biográ fi-
cos de uma histó ria pessoal , mas o rastro luminoso de outra hist ó ria;
do sujeito, no momento em que, ao entrar em um processo de enuncia- n ão a mem ó ria de uma exist ê ncia oprimida , e sina a ardê ncia muda
ção, descobre que “a nossa razão nada mais é que a diferença dos discur- de um ethos imemorável ; nã o a figura de um sujeito, e sim a desco -
sos, que a nossa história nada mais é que a diferença dos tempos, e que nexão entre o ser vivo e o ser que fala , que assinala o seu lugar vazio.
o nosso eu nada mais é que a diferen ça das m áscaras”6 ? Dado que, nesse caso, há uma vida que somente subsiste na inf â mia
Uma vez mais: o que significa ser sujeito de uma dessubjetiva- na qual foi jogada, e um nome que vive unicamente no opróbrio
çã o? Como um sujeito pode dar conta do seu pró prio desconcerto ? que a cobriu, algo , nesse opró brio, dá testemunho deles para além
— —
Fal omissão caso se tratar de omissão n ão corresponde obvia
mente a um esquecimento ou a uma incapacidade por parte de Foucault,
- de qualquer biografia.
mas a uma dificuldade impl ícita no próprio conceito de uma se- 4.4. Foucault denomina “arquivo” a dimensão positiva que cor-
m â ntica da enunciação. Enquanto tem a ver n ão com o texto do responde ao plano da enunciação, ao “sistema geral da formaçã o e
enunciado, mas com o fato de ter lugar, n ão com um dito, mas com da transforma ção dos enunciados”7. De que forma devemos con -
um puro dizer, ela, por sua vez , n ão pode constituir nem um texto ceber tal dimensão, se ela nã o corresponde ao arquivo em sentido
-
nem sequer uma disciplina; pelo fato de n ã o se sustentar sobre um
conte údo de significado, mas sobre um acontecimento de lingua-
restrito - ou seja, ao depósito que cataloga os traços do já dito para
os consignar à mem ó ria futura — nem à babélica. biblioteca que aco-
gem , o sujeito da enunciaçã o, cuja dispersã o funda a possibilidade lhe o p ó dos enunciados a fim de permitir a sua ressurrei ção sob o
de uma metassemântica dos saberes e constitui os enunciados em
um sistema positivo , n ão pode tomar a si mesmo como objeto, n ã o sm olhar do historiador ?
Como conjunto das regras que definem os eventos de discurso,
pode enunciar-se. Por isso, n ão pode haver arqueologia do sujeito -
o arquivo situa se entre a langue, como sistema de constru ção das
da mesma forma como h á arqueologia dos saberes .
Porventura isso significa que aquele que ocupa o lugar vazio do
— —
frases poss íveis ou seja , das possibilidades de dizer e o corpus que
re ú ne o conjunto do j á dito das palavras efetivamente pronunciadas
sujeito está destinado a ficar para sempre na sombra , que o autor deve OU escritas. O arquivo é , pois, a massa do não-semâ ntico , inscrita
perder-se integralmente e naufragar no murm ú rio an ónimo do “o m em cada discurso significante como fun ção da sua enunciaçã o, a
que importa quem fala ? ” . Talvez haja um ú nico texto, na obra de margem obscura que circunda e limita toda concreta tomada de pa-
'
Foucault , em que esta dificuldade aflora tematicamente à consciê n - lavra. Entre a mem ó ria obsessiva da tradi ção, que conhece apenas o
cia e no qual a obscuridade do sujeito emerge por um instante com já dito , e a demasiada desenvoltura do esquecimento , que se entrega
todo o seu esplendor. Trata-se de A vida dos homens infames-, conce-
wÊ unicamente ao nunca dito, o arquivo é o nã o-dito ou o diz ível ins -
bido originalmente como prefá cio de uma antologia de documentos
de arquivo , registros de internamento ou lettres de cachet, em que o
m crito em cada dito, pelo fato de ter sido enunciado , o fragmento de
mem ó ria que se esquece toda vez no ato de dizer eu. É nesse aa prio-
encontro com o poder, no mesmo momento em que as marca com ri histó rico” , suspenso entre a langue e a parole, que Foucault instala
infâ mia, arranca da noite e do sil ê ncio existências humanas que, do o seu canteiro e funda a arqueologia como “ tema geral de uma des-
contrá rio , n ão teriam deixado nenhum sinal de si . O que por um criçáo que interroga o ja dito no plano da sua exist ê ncia”
8
—
ou seja ,
—
instante brilha através desses lacónicos enunciados n ão são como
Ibidem , p. 1 / 1 .
0
Idem » IJã rchéologie dn savoir, cit . , p. 1 / 2 s. 9
Ibidem , p. i 73.
ÉS11
i!
Ef
146 ° O que resta de Auschwitz ú O arquivo e o restem unho ° 147
so, como a convergê ncia de, pelo menos, duas partes em processo de ca como o significado originá rio dc augere. Como se sabe, o mundo
1i
'
transla ção, no qual o bom direito do comprador se funda sempre clássico não conhece a criaçã o ex nihilo [a partir do nada] , e, por isso,
sobre o do vendedor, que se torna, assim , o seu auctor. Quando le- todo ato de criação sempre implica algo, matéria informe ou ser in -
mos no Digesto ( 50, 17, 175, 7 ) non debeo melioris condicioni esse,
1 com pleto, que se trata de aperfeiçoar ou “fazer crescer” . Todo criador
quarn auctor meus, a quo ius in me transit, isso significa simpl esmen - I é sempre co-criador, todo autor, co-autor. E assim como o ato do auctor
-
te: o meu t í tulo dc propriedade funda se , de maneira necessá ria e V completa o do incapaz, dá força de prova ao que, em si, falta, e vida
suficiente , no do vendedor que o “autoriza”. Em todo caso, é essen - ao que por si só n ão poderia viver, pode-se afirmar, ao contrá rio, que
ciai a ideia de uma relação entre dois sujeitos, na qual um faz o papel é o ato imperfeito ou a incapacidade que o precedem e que ele vem a
de auctor do outro: auctor meus é, para o proprietá rio atual, o ven- 11 -
integrar que d á sentido ao ato ou à palavra do auctor testem unha. Um
dedor, no qual se funda a propriedade legítima. -
ato de autor que tivesse a pretensão de valer por si é um sem sentido
,
També m o significado de “quem d á conselho ou persuade” pressu-
põe uma idéia an á loga. A vontade incerta ou hesitante de um sujeito
m
m assim como o testemunho do sobrevivente verdadeiro
é e tem raz ão
•
v de ser unicamente se vier a integrar o de quem não pode dar testemu-
recebe, de fato, do auctor o impulso ou o complemento que lhe permi
te passar ao ato. Quando lemos , no Miles de Plauto, quid nunc mi es
- m nho. Assim como o tutor e o incapaz, o criador e a sua matéria, tam-
bé m o sobrevivente e o mu çulmano sã o insepar á veis , e s ó a
auctor?ut fadam?, isso n ão significa simplesmente “o que me aconselhas unidade diferen ça entre eles constitui o testemunho.
-
, .•
-
tade para a tornar capaz de decidir se por uma determinada ação? 4.7. Veja-se o paradoxo de Levi : “ O muç ulmano é a testemunha
Nessa perspectiva , também o significado de “testemunha” tor-
na -se transparente , e os três termos que em latim expressam a id éia
It integral” . Isso implica duas proposições contraditórias:
1) “ O muç ulmano é o n ão-homem , aquele que em nenhum caso
do testemunho adquirem , cada um deles, a sua fisionomia pró - 1 poderia testemunhar.”
pria. Se testis indica a testemunha enquanto intervé m como tercei
ro na disputa entre dois sujeitos , e superstes é quem viveu até o
- 2 ) “Aquele que n ã o pode testemunhar é a verdadeira testemu-
nha, a testemunha absoluta.”
fundo uma experi ê ncia , sobreviveu à mesma e pode, portanto , re- Sentido e sem -sentido deste paradoxo, nessa altura, tornam-se
-
feri la aos outros, auctor indica a testemunha enquanto o seu tes- transparentes. O que neles se expressa n ão é sen ão a estrutura í nti -
—
temunho pressupõe sempre algo fato, coisa ou palavra que lhe —
preexiste, e cuja realidade e força devem ser convalidadas ou certi -
ma dual do testemunho como ato de um auctor, como diferen ça e
integração de uma impossibilidade e de uma possibilidade de dizer,
ficadas. Neste sentido, auctor contrapõe-se a res ( auctor magis... de um n ão- homem e de um homem , de um ser vivo e de um ser
.
quam res. . movit: a testemunha tem mais autoridade do que o fato que fala. O sujeito do testemunho é constitutivamente cindido , só
—
testemunhado Liv., 2, 37, 8) ou a vox ( voces... nullo auctore emissae.
—
palavras cuja verdade nenhuma testemunha garante Cá c., Coei
30 ) . O testemunho sempre é, pois, um ato de “autor ” , implicando
-
.
'M
Ip
;ÈÈ
7A
—
tendo consistê ncia na desconexão e na separa çã o n ão sendo, con -
tudo, redut ível às mesmas. Isso significa “ser sujeito de uma des-
s
-W ;;1
subjetivação”; por isso , a testemunha, o sujeito é tico, é o sujeito
sempre uma dualidade essencial, em que sã o integradas e passam a que dá testemunho de uma dessubjetivaçá o. O fato de nã o ser pos-
valer uma insufici ê ncia ou uma incapacidade. s ível atribuir o testemunho \l'inassegnabilità delia testintonianza]
Desse modo, explicam-se também o sentido de “fundador de uma V n ão é mais que o pre ço desta cisã o , dessa inquebrantável intimida-
estirpe ou de uma cidade” que o termo auctor tem nos poetas, e o sig-
nificado geral de “pôr em ser, dar existência” , que Benveniste identifi-
m
;SÍt :
de do mu ç ulmano e da testemunha , de uma impotência e de uma
potê ncia de dizer.
152 0
O que resta de Ausch witz O arquivo e o testemunho * i 53
Iã mbém o segundo paradoxo de Levi, que reza “ O homem é aque- multiplicação da morte em Bichat, o fato de se tornar morte aos
le que pode sobreviver ao homem” encontra aqui seu sentido. Muçul- poucos ou por partes, e sua divisão em uma sé rie de mortes parciais:
mano e testemunha, humano e inumano, são coextensivos e, contudo, morte do cé rebro, do fígado, do coração... O que Bichat, poré m ,
n ão coincidentes, divididos e, apesar disso, inseparáveis. Essa indivisível n ão consegue aceitar, o que continua a apresentar -se a ele como
partiçã o , essa vida cindida e, mesmo assim , indissol ú vel , expressa-se enigma irredut ível, n ão é tanto essa multiplicaçã o da morte, quanto
por uma dupla sobrevivência: o n ão-homem é quern pode sobreviver a sobrevivê ncia da vida orgâ nica em relaçã o à vida animal , a incon-
ao homem, e o homem é quern pode sobreviver ao não homem. Só - cebível permanência do “animal de dentro” , mesmo que o “animal
porque, no homem, foi possível isolar o muç ulmano, só porque a vida de fora” tenha deixado de existir. Se a preced ê ncia da vida orgâ nica
humana é essencialmente destrutível e divisível , a testemunha pode em relação à vida animal pode ser, de fato, explicada como processo
sobreviver-lhes . A sobrevivê ncia da testemunha no confronto com o de desenvolvimento na direçã o de formas cada vez mais elevadas e
inumano c fun ção da sobrevivência do muçulmano no confronto complexas, como dar conta , por sua vez, da insensata sobrevivê ncia
com o humano. O que pode ser infinitamente destruído é o que pode do animal de dentro ?
sobreviver infinitamente a si mesmo. As páginas em que Bichat descreve a extinção gradual e inexorá -
vel da vida animal na sobrevivê ncia indiferente das fun ções orgâ ni-
48. A tese central da fisiologia de Bichat consiste em que a vida
pode sobreviver a si mesma , e, aliás, em que ela é constirutivamence
cas est ão entre as mais intensas das Recberches. -
A morte natural tem isso de notável, ou seja, de que ela põe fim , qua -
—
cindida cm uma pluralidade de vidas e, portanto, cie mortes. To-
das as suas Recberchesphysiologiques sur la vie et sur la mort [ investi-
asas?
m se compíetamente, à vida animal, bem antes que acabe a vida orgânica.
Os movimentos do velho são raros e lentos; custa fadiga sair da atitude Se fosse poss í vel supor um homem em quem a morte destru ísse apenas
em que se encontra. Sexrtado ao lado do fogo que o esquenta, transcorre todas as funções internas, como a circulação, a digestã o, as secreções
suas jornadas concentrado em si mesmo, alheio ao que acontece à sua : etc. , deixando subsistir o conjunto das funções da vida animal, tal ho -
volta , sem desejos, sem paixões, sem sensações; quase não fala , pois nada mem veria então aproximar-se o fim da sua vida orgânica com olhos
o leva a romper o silê ncio, satisfeito por sentir que ainda existe, quando indiferentes, pois sentiria que o bem da sua existência n ão depende de-
qualquer outro sentimento já desvaneceu... É fácil verificar, a partir do las e que ele assim seria capaz, mesmo depois desta esp écie de morte , de
que dissemos, de que no velho as funções exteriores se apagam aos pou- sentir e provar tudo aquilo que até então constituía a sua felicidade.11
cos, de que a vida animal já cessou quase inteiramente quando a orgâ ni-
ca ainda está ativa. Sob esse ponto dc vista , a condi çã o do ser vivo Em todo caso, seja que sobreviva o homem ou o n ão- homem , o
que a
animal ou o orgâ nico , se pocleria dizer que a vida traz em si mesma
morte natural est á para anular é semelhante àquela em que se encontrava
no seio materno, ou então ao estado do vegetal, que não vive sen ã o no
interior, e para o qual toda a natureza está em silêncio. 11
m
3» ;
— —
o sonho ou o pesadelo da sobrevivê ncia.
n Ibidem , p. 202 ss .
íH -
alcan çar um ponto limite que, assim como as fronteiras da geopoíí-
12
Ibicícm , p. 203 ss. Vm
m J v Ibidem , p. 205 ss .
1881
»
É
156 a O cjtie resca de Auschwitz. O arquivo e o testemunho ° 157
tica , é essencial mente móvel e se desloca segundo o progresso das 1; lidade absolutamente separada da linguagem , se cancelarem , no
tecnologias científicas e políticas. A ambição suprema do biopoder muçulmano, a relação entre impossibilidade e possibilidade de dizer,
consiste em produzir em um corpo humano a separação absoluta que constitui o testemunho, então eles estarã o repetindo incons-
entre o ser vivo c o ser que fala, entre a zoe e o b/ os , o n ão-homem e
1 cientemente o gesto dos nazistas , e se mostrarão secretamente soli-
o homem: a sobrevivê ncia. d ários com o arcanum imperii. O seu silê ncio traz consigo o risco de
Por isso, o muç ulmano no campo - assim como, hoje em dia , o repetir a advertência zombeteira das SS aos habitantes do campo e
corpo do ultracomatoso e do neomort das salas de reanimação n ão
manifesta apenas a eficácia do biopoder, mas apresenta, por assim — que Levi transcreve no início de Os afogados e os sobreviventes'.
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês n ós ganhamos;
dizer, a sua cifra secreta , exibe o seu arcanum. No seu De arcanis re-
rum publicarum ( 1605), Clapmar distinguia, na estrutura do poder, ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape,
uma face vis ível (o jus imperii ) e uma face oculta (o arcanum , que ele o mundo lhe dar á crédito. Talvez haja suspeitas, discussões, investiga-
ções de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as
deriva de arca, cofre , caixa de ferro) . Na biopol í tica contemporâ nea ,
provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva
a sobrevivê ncia é o ponto em que as duas faces coincidem , é o vir à
algué m , as pessoas dirão que os fatos narrados são táo monstruosos que
luz do arcanum imperii como tal. Por tal motivo, de permanece, por
não merecem confian ça Nós é que ditaremos a histó ria dos Lager.14
assirrf dizer, invisível na sua própria exposiçã o, ficando tanto mais
recô ndito quanto mais exposto ao olhar. No mu çulmano, o biopo- 4.10. É precisamente tal isolamento da sobrevivê ncia em relação
der pretendeu produzir o seu ú ltimo arcano, uma sobrevivê ncia se - à vida o que o testemunho refuta com cada uma de suas palavras.
parada de qualquer possibilidade de testemunho, uma espécie de -
Ele diz que é precisamente porque o não humano e o humano, o ser
subst â ncia biopol í tica absoluta que, no seu isolamento, permite que vivo e o ser que fala, o mu çulmano e o sobrevivente coincidem , pre-
se confira qualquer identidade demográfica, étnica, nacional e políti- mi
lÉfe; cisamente por haver, entre eles, uma divisão insuperável, é que pode
ca. Se algu é m participasse, de algum modo, da “solução final ” , era, no haver testemunho. Precisamente enquanto ele é inerente à l íngua
jargã o da burocracia nazista, um Geheimnistràger, um depositá rio de m
m como tal, precisamente porque atesta o fato de que só através de
segredos, e o muçulmano é o segredo absolutamente n ão cestemunhá- m uma impot ê ncia tem lugar uma pot ê ncia de dizer, a sua autoridade
.
vel , a arca n ão desvel ável do biopoder Não desvelável porque vazia,
m
y
n ão depende de uma verdade fatual , da conformidade entre o dito e
porque n ão é mais que o volkloser Raum, o espaço vazio de povo no os fatos, entre a mem ória e o acontecido, mas, sim , depende da rela-
centro do campo, que, ao separar toda vida de si mesma, marca a pas- ção imemorável entre o indizível e o dizível, entre o fora e o dentro da
sagem do cidadão para o Staatsangehôrige de ascendência n ão ariana, do língua. A autoridade da testemunha reside no fato de poder falar unica-
n ão ariano para o judeu, do judeu para o deportado e, finaimente, m mente em nome de um não poder disser, ou seja, no seu ser sujeito. O tes-
do judeu deportado para além de si mesmo, para o muç ulmano, ou temunho não garante a verdade fatual do enunciado conservado no
seja, para uma vida nua n ã o atribu ível e não testemunhável . .
-
arquivo, mas a sua n ão arquivabilidade, a sua exterioridade com res-
Por isso, os que reivindicam atualmente a indizibilidade de Auschwitz 771 peito ao arquivo; ou melhor, da sua necessá ria subtração enquanto —
deveriam ser mais cautelosos nas suas afirmações. Se quiserem dizer
que Auschwitz foi um acontecimento ú nico, frente ao qual a tesce-
— —
existência de uma língua tanto perante a mem ória quanto perante o
esquecimento. Por isso mesmo por ser possível dar testemunho só
munha deve, de algum modo, submeter toda sua palavra à prova de onde há a possibilidade de dizer e só haver testemunha onde houver
uma impossibilidade de dizer, ent ão eles têm razão. Se, poré m , con-
jugando unicidade e indizibilidade , fizerem de Auschwitz uma rea- •’ P. Levi, Os afogados e os sobreviventes , cit., p. 1.
158 O que resta de Auschwitz O a rq uivo e o zcs te m u n ho 51
159
—
uma dessubjetivação o muçulmano é realrnence a testemunha integrai,
e por isso n ão é poss ível separar o mu çulmano do sobrevivente. 4.11. Em entrevista de 1964 à televisão alem ã, Hannah Arendt
É oportuno refletir sobre o estatuto particular que, sob tal pers - respondeu ao entrevistador que perguntava sobre o que restava, para
íva, compete ao sujeito. Que o sujeito do testemunho ou me
pect
—
lhor, que inclusive toda subjetividade, enquanto sersujeito e testemunhar
-
v
-
ela , da Europa do per íodo pré-hitlerista em que havia vivido: “ O
que resta ? Resta a l í ngua materna” ( Was bleibt? Es bleibt die Mntter -
—
são, em ú ltima an álise, uma ú nica realidade seja resto, isso não de - i sprache ) . O que é uma l í ngua como resto ? Como é possível uma l ín -
——
não-homem e homem ou sejam quais forem , em geral, os termos de HÉ corpus ou ent ão evocado de novo em um arquivo. Para o latim , isso
um processo histórico acabem se unindo em uma alcançada e consu - C
:
aconteceu no momento em que é rompida a tensão entre sermo
mada humanidade, se compondo em uma identidade realizada. Isso n ão urbanus[discurso urbano] e sermo rustieus [ discurso rural] , que aflora
significa que, sendo privados de um fim, venham a set condenados à in - à consci ê ncia dos falantes já na era republicana. Enquanto a oposi-
sensatez ou à vaidade de um desencanto e de urn andar à deriva infinitos. ção era percebida como tensão polar interna, o latim se manteve como
-
Eles n ão têm um fim, mas um resto, não h á, dentro deles ou debaixo de- l íngua viva, e o sujeito percebia que falava em uma ú nica l íngua; quan-
les, um fundamento, mas, entre eles, em seu meio, há uma separação M do ela se rompe, a parte normatizada separa-se como l íngua morta
irredutível, na qual cada termo pode pôr-se em posição de resto, pode m» (ou como aquela que Dante chama grammatica ) e a parte an ô mica
W&
testem unhar. Realmente histórico é aquilo que cumpre o tempo n ão na
direção do futuro, nem simplesmente na direção do passado, mas no aro
1
Si!
d á vida aos romances vulgares.
Lembremos o caso de Giovanni Pascoli, poeta em língua latina
mm
de exceder Um meio. O Reino messiânico não é nem futuro (o milénio), m entre os séculos XIX e XX , ou seja, quando o latim h á séculos já era
nem passado (a idade de ouro): é um tempo restante. língua morta. O que então acontece é que o indivíduo consegue as-
160 O que resta de Auschwkz O arquivo e o testemunho * 161
aos
, n ã
da
o
sujeitos
linguagem
arquiv
sua
que
. É
ável
a
a
é
incapacidade
falam
“
a língua
coin
obs
de
-
-
outros, conforme aconteceu , entre 1910 e 1918, com a fala piemon - ÍÍ
V cide com um falante que fica aqu é m da
nas de Celan como
treva
um “ ru ído
tesa de Forno, no Vai di Piu, quando o último ancião que a falava par- cura” que Levi sentia crescer nas p á g í
tilhou-a com um grupo de jovens, que começaram a falá-la também; ou de fundo”; é a não-língua de Hurbinek (mass-klo, matisklo), que irão
-
no caso do neo hebraico, em que toda uma comunidade se pôs conto m
m ..
encontra lugar nas bibliotecas do dito , nem no arquivo dos
enuncia-
respian-
sujeito com respeito a uma l íngua j á puramente cultual. Observando
.
m .
dos Assim como no , cé u estrelado visto à noite , as estrelas
ão dos
melhor, a situação é, porem , mais complexa. Na medida em que o decem circundadas por uma densa treva , o que , na opini
exemplo do poeta em língua morta aparece conscientemente isolado, e
ele mesmo continua falando e escrevendo em outra língua materna, po-
m cosmólogos, nada mais
,
ainda não brilhavam assim
é que
tamb
o testemunho
é m a palavra
do
da
tempo
testemunha
no qual
d á
elas
tes -
de-se afirmar que ele, de algum modo, faz conr que a língua sobreviva temunho do tempo em que eia ainda n ã o era humana . Ou ent ão,
aos sujeitos que a falavam, e que ele a produz como um meio indecidível conforme hipótese análoga , assim como , no universo em expans ão , as
— ——
ou um testemunho entre uma língua viva e uma língua morta. Dito
—
de outra maneira, que ele em uma espécie de nekyia filol ógica ofere-
galáxias mais remotas se
da sua luz, que n ão consegue
afastam
alcan
de
ç
n
ar
ó
-
s
nos
a uma
, de
velocidade
modo que a
superior
escurid ã
à
o
—
ce sua voz e seu sangue à sonrbra da l íngua morta para qLie ela volte co-
—
mo tal à palavra. Trata-se de um curioso anctor, que autoriza e convoca
que vemos nos céus nada mais seja que a invisibilidade daquela luz
assim também segundo o
, paradoxo de Levi , testemunha integral é
,
em paz se esperava a morte. Não se tinham mais nem a força nem a von- Nesse período, começou a muçulmanidade (das Muselmanentum ) e se espa -
tade dc lutar pela sobrevivência cotidiana; nos bastava o hoje, a gente se lhou por todos os esquadrões que trabalhavam, ao ar livre. O muçulmano e des -
contentava com a ração ou com o que encontrasse no lixo... prezado por todos, até pelos companheiros... Os seus sentidos ficam embotados,
KAROI, TALIK
% e quem está à volta se torna completamente indiferente para ele. Não pocle mais
falar de nada e nem sequer rezar, já não acreditando nem no céu nem no infer-
-
hm geral, pode se dizer que entre os muçulmanos havia exatamente as mes- m no. Já não pensa na sua casa, na família, nos companheiros no campo.
mas difirmças que entre homens que vivem em condições normais; quero -
Qttase todos os muçulmanos morreram no campo; só um pequeno percen
dizer, diferenças físicas ou psíquicas. As condições do Lager é que tornavam tual conseguiu sair daquela situação. A boa sorte ou a providência fizeram
,
ADOI.F GAWAI.EWICZ [ ...] A cada passo viam-se muçulmanos, figuras sem carne e imundos, com
$
Já havia provado um pressentimento deste estado. Na cela, havia conhecido - a pele e o rosto enegrecidos, o olhar perdido, os olhos fimdos, as roupas des-
u sensação da vida que se ia: todas as coisas cerrenas não tinham mais im- m -
gastadas, encharcadas e fedidas. Moviam se a passos lentos c titubeantes,
portância. As junções corpóreas definhavam. Até a fome me atormentava inadequados ao ritmo da marcha... Falavam apenas das suas lembranças e de
,
11 comida: quantos pedaços de batata havia ontem na sopa, quantas fatias de car-
menos. Sentia urna estmnha doçura, porém não tinha mais a força dc me
levantar do colchão de palha e, se o conseguia fazer, para ir à latrina, tinha
que me apoiar nas paredes... |
m
jf
ne, se o caldo era denso ou apenas água... As cartas que chegavam de casa não
traziam conforto> pois não se iludiam de voltar. Um pacote era esperado com
ansiedade para que se pudessem saciar pelo menos uma vez. Sonhávamos em
WLODZIMIERZ BORKOWSKI
d A revolver os restos da cozinha para encontrar restos depáo ou borra de café.
Vivi em meu próprio corpo a forma de vida mais atroz do Lager, o horror O muçulmano trabalhava por inércia, ou melhor, fazia de conta que tra -
da condição muçulmana. Fui um dos primeiros muçulmanos; vagava pelo
% .
bulhava Um exemplo: durante o trabalho na serraria, procurávamos as
campo como cão vagabundo; tudo me era indiferente, contanto que pudesse serras menos afiadas, que podiam ser usadas sem dificuldade, não impor-
viver mais um dia. Cheguei ao Lager em 14 de julho de 1940, com o pri-
tando se cortavam ou não. Muitas vezes fazíamos de conta que trabalha -
SÍ® vamos um dia inteiro, sem. cortar nem sequer uma cepa. Se tivéssemos que
meiro comboio, vindo da prisão de jarnow. . . 8§
S| endireitar os pregos, martelávamos sem parar sobre a bigorna. Mas sempre
Após algumas dificuldades iniciais, fui colocado no Kommando Agiicul -
tura, onde trabalhei até o outono daquele ano na colheita das batatas e do
:: devíamos ficar atentos para que ninguém nos visse, e também isso cansa -
va. O muçulmano não tinha um objetivo, fazia seu trabalho sem pensar;
feno e na trilbadura. De repente ocorreu um acidente no Kommando. Ha-
viam descoberto que civis de fora nos davam de comer. Acabei na compa- -
movia se sem pensar, sonhava apenas em ter na fida um lugar em que
nhia disciplinar e lã começou a tragédia da minha vida no campo. Perco as pudesse receber mais sopa e mais densa. Os muçulmanos seguiam aten -
tamente os gestos dos chefes de cozinha para ver se, ao porem a colher na
forças e a saúde. Após alguns dias de trabalho duro, o Kapo do Kom man -
.
panela, pegavam a sopa de baixo ou de cima Forniam apressados e não
-
do precedente transferiu me da companhia disciplinar para o Kommando
Serraria. O trabalho era menos duro, mas se precisava estar ao ar livre o
pensavam senão em obter uma segunda porção, mas isso nunca acontecia:
dia inteiro, e naquela: ano o inverno em muito frio, sempre com chuva mis- -
uma segunda porção, recebiam na os que trabalhavam mais e melhor, e
eram mais considerados pelo chefe de cozinha...
,
turada com neve; as geadas já começavam e nós vestidos com tecidos leves,
13 Os outros internados evitavam os muçulmanos: não Ijavia, com eles, nenhum
roupas de baixo e camisa, chinelos de madeira sem meias e, na cabeça, um
,
gorro de tecido. Nesta situação, sem alimento suficiente, encharcados c ge- - tema comum de conversa, pois os muçulmanos divagavam e falavam só de co -
mida.Os muçulmanos não gostavam dos prisioneiros “melhores a não ser que
"
sts
mm
168 * O que resta de Auschwitz O arquivo e o testemunho * 169