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Agência feminina:

convergências entre Garfinkel e Beauvoir


AMARO XAVIER BRAGA JUNIOR*

Resumo: Construído de forma ensaística, discute as bases de construção do


conceito de agência feminina por vias de dois autores: Harold Garfinkel e
Simone de Beauvoir. Parte de uma hermenêutica transversal sobre: (1) a análise
de Garfinkel feita sobre Agnes, um rapaz que se apresenta como mulher e
participa de um estudo com o objetivo de realizar uma cirurgia de mudança de
sexo; e (2) a análise da situação e discurso das lésbicas, feita por Beauvoir. Como
chave analítica, propõe mediar a análise do entendimento da noção de agência
feminina, por vias da noção de corpo e pela interface com a fenomenologia da
percepção de Merleau-Ponty. Propõe uma correlação, enquanto construto
analítico, no qual a percepção Identidade-Mente, seria interna e, a percepção
Identidade-Papel, externa; enfatizando que, em ambos os casos, há uma situação
mediada pela percepção, ora de um “eu”, ora de um “mim”.
Palavras-chave: Teoria da Agência; Fenomenologia da Percepção; Questões de
Gênero.
Female agency: convergences between Garfinkel and Beauvoir
Abstract: Constructed in an essayistic manner, it discusses the foundations of
the construction of the concept of female agency through of two authors: Harold
Garfinkel and Simone de Beauvoir. It is part of a transversal hermeneutics about:
(1) Garfinkel's analysis of Agnes, a boy who presents himself as a woman and
participates in a study with the objective of performing a sex change surgery;
and (2) Beauvoir's analysis of the situation and discourse of lesbians. As an
analytical key, it proposes to mediate the analysis of the understanding of the
notion of female agency, through the notion of body and through the interface
with Merleau-Ponty's phenomenology of perception. It proposes a correlation,
as an analytical construct, in which the Identity-Mind perception would be
internal and the Identity-Role perception external; emphasizing that, in both
cases, there is a situation mediated by perception, sometimes from a “me”, now
from a “me”.
Key words: Agency Theory; Phenomenology of Perception; Gender issues.

*
AMARO XAVIER BRAGA JUNIOR é Mestre e Doutor em Sociologia (UFPE), Mestre
em Antropologia Social (UFAL). É professor efetivo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Alagoas - UFAL.

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Introdução faria, nos termos que Giddens (2000, p.
14) chamaria posteriormente de “Fluxo
A discussão entre Estrutura e Agência é Contínuo da Conduta” ao analisar as
bem antiga na sociologia e vem intervenções causais e as condutas de
envolvendo muitos teóricos que se indivíduos – a partir de suas conversas –
preocuparam sobre quem é mais forte na apropriação de padrões de
e\ou quem toma as rédeas que comportamentos socialmente
direcionam o comportamento: a reconhecidos como femininos e sendo
estrutura social, com seus sistemas identificado através destes, mesmo não
normativos ou padrões culturalmente sendo um indivíduo feminino. De forma
definidos; ou, se o indivíduo é o ainda rudimentar, o que se nota, é que a
gerenciador de seus próprios destinos e agência feminina foi inicialmente
situações, um agente, isto é, aquele que debatida pela voz de um indivíduo
age, toma as decisões e tem voz ativa. nascido homem e que migra sua
Com os estudos feministas, o papel das identidade de gênero para se tornar
mulheres começou a ser questionado de mulher. Ora, Garfinkel descreve a
maneira a desenvolver uma visão intencionalidade de um agente em seu
feminina do Agente, ou, para simplificar, processo de feminilização e seu posterior
o que chamarei de “Agência Feminina”. reconhecimento social.
Analisavam, sobretudo, como as É notório que o debate concreto sobe a
mulheres agiam para reverter suas Agência Feminina será fomentada pelas
situações. Muitos destes estudos autoras feministas ao explicitar a agência
estavam relacionados à subjetividade ou como “a nossa capacidade para tomar
se envolviam entre as discussões dos decisões e agir no mundo em ordem para
limites, do que, na sociologia, se mudá-lo” (FRANCIS, 2001, p. 68 apud
convencionou chamar de debate entre MAGALHÃES, 2003, p. 06). Entre
Estrutura e Ação. essas, com um dos trabalhos mais
Depois do pioneirismo do trabalho de comentados e polêmicos, está Simone de
Marx (1975), são com os estudos do Beauvoir, com seu livro “O Segundo
interacionismo simbólico que a figura de Sexo”. Neste ensaio, Beauvoir rascunha,
um indivíduo atuante, não totalmente historicamente, o processo artificial de
submisso ao sistema social, aparece e se criação de uma imagem de “mulher”
destaca. As raízes da imagem de um construída a partir de um conceito
indivíduo – agente, naquele campo, ideológico de “homem”. O pioneirismo
denominado de “ator” ganha a atenção de Beauvoir dedicando-se a pensar a
dos pesquisadores. Neste ambiente, condição feminina, é um dos fatores que
ainda prevalece a imagem masculina do me motivaram a selecionar seu texto
indivíduo – muito em decorrência das para um exercício de comparação teórica
estruturas linguísticas predominantes em torno do conceito supramencionado.
que alimentaram a produção teórica. Obviamente, existem diversas críticas
em torno do trabalho de Beauvoir e as
Entretanto, veremos surgir mais adiante, próprias limitações oriundas pelo
algumas abordagens que começam a desenvolvimento e a atualização
privilegiar o aspecto da ação do histórica dos estudos feministas sobre o
indivíduo, enfocando de certa forma, o tema. É necessário compreender que
ambiente feminino. Retomo aqui o deste trabalho não pretende traçar um
exemplo de Harold Garfinkel no seu desenvolvimento histórico do conceito e
“Estudos de Etnometodologia”, que suas respectivas contribuições pela voz

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de outras autoras, mas percorrer um sexo; e (2) a análise da situação e
estudo comparativo para possibilitar a discurso das lésbicas, feita por Beauvoir.
problematização sobre um conceito. Estes dois capítulos foram escolhidos
justamente por possibilitar, em minha
Para seguir com uma hermenêutica que
perspectiva, um entendimento de como a
se satisfaça no espaço limítrofe do artigo,
agência feminina se estrutura
foi necessário concentrar meus esforços
socialmente, como procurarei
na análise dos dois autores supracitados.
demonstrar em sequência.
A pessoa leitora mais atenta, talvez sinta
falta de uma bibliografia atualizada que São através destas mulheres – que no
debata sobre a temática, principalmente, senso comum, muitas vezes, não são
para esclarecer como as questões da reconhecidas como exemplos de
agência e do feminino, vêm sendo mulheres naturais e “normais” - que os
discutidas do ponto de vista teórico autores rascunham a tomada de decisões
dentro da epistemologia feminista. das mulheres e suas influências na ordem
Nesse campo, sugiro consultar os social com o objetivo de estabelecer uma
trabalhos de Julie Nelson (1995), Becky mudança social. Um dos pontos
Francis (2001), Judith Butler (2003) e interessantes é que o debate sobre a
Berenice Bento (2006). autonomia das mulheres perpassa, nestes
autores, a apresentação destes casos.
Neste momento, enfatizo o aspecto de
que a questão da autonomia e da A seguir, apresento, de forma resumida,
transcendência a que Beauvoir se refere cada uma destes casos.
em seus estudos, pode ser identificada na
A Agnes de Garfinkel – a percepção
questão da agência. Trata-se, portanto,
interna-externa na agência feminina
de uma mediação entre os conceitos, haja
vista, que a autora, não discutiu, Para dar constituição a sua abordagem
propriamente, a noção de agência, em etnometodológica, Garfinkel retoma o
sua época. funcionalismo estrutural de Parsons,
rejeitando a proposta de hiper
Dessa forma, estabeleço uma relação no
socialização e fundindo sua análise com
qual a agência feminina, seria
as perspectivas Goffmanianas1 pelo qual
constantemente debatida quando ela
o Agente arquiteta suas ações, de modo
estabelece um diálogo das relações de
a perceber o sentido da estrutura social
poder que se constituíram em relação à
dado pelos agentes e não por influências
mulher – em verdade, de falta de poder,
externas e com uma forte influência da
de uma submissa subordinação – naquele
fenomenologia de Schutz, ao enfatizar a
momento histórico.
questão do significado da vida subjetiva
O que se pretende fazer a seguir é e percebendo a realidade como uma
discutir a noção de Agência Feminina construção da mente humana (uma
nestes dois trabalhos, apresentados de intersubjetividade). Aqui se estabelece
maneira transversal nos casos uma associação direta: o conceito de
apresentados pelos autores, a saber: (1) a intersubjetividade, refere-se, justamente,
análise de Garfinkel feita sobre Agnes, à existência de um mundo da vida
um rapaz que se apresenta como mulher anterior a qualquer subjetividade
e participa de um estudo com o objetivo particular. E os métodos de propiciar esta
de realizar uma cirurgia de mudança de observação, em alguma parte, foram
1
Tomo a liberdade de fazer uma associação característica dessas tradições como parte
direta entre Garfinkel e Goffman. Ela é integrante do interacionismo simbólico.

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mediados pela análise das conversações. jovem com pele creme. Não tinha
Garfinkel procurou demonstrar a pelos faciais, suas sobrancelhas
funcionalidade de sua teoria com estudos estavam nitidamente depiladas e não
empíricos. Um destes dados empíricos usava maquiagem, exceto batom.
Em sua primeira aparição ela estava
mais famosos é sua análise das
vestida com uma camisa justa que
conversações com Agnes (ARMITAGE, destacava seus ombros delgados,
2001; RITZER, 1993; SCOTT, 2006). É busto largo e cintura estreita. Seus
notório que as apresentações sobre pés e mãos, embora um pouco
Agnes não se basearam na análise maiores que o normal para uma
conversacional, afinal, etnometodologia mulher, não eram notáveis. Sua
e a análise conversacional não são maneira de se vestir não a distinguia
sinônimos no campo metodológico. em nada de uma garota típica de sua
Ainda assim, se desenvolveu um idade e classe. Não havia nada de
chamativo ou exótico em suas
[...] corpo de conhecimento do senso roupas. Não havia indício de nojo ou
comum e da gama de procedimentos de que ela se sentisse desconfortável
e considerações [métodos] por meio com suas roupas, como é muito
dos quais os membros comuns da comum entre travestis e mulheres
sociedade dão sentido às com problemas de identificação
circunstâncias em que se encontram, sexual. Sua voz, sintonizada em um
e acham um caminho para seguir tom alto, e seu discurso, mostrava
com base nestas circunstâncias e uma cegueira ocasional semelhante
agir em conformidade com elas. àquela que afeta as mulheres quando
(HERITAGE, [1984] apud imitam um homem homossexual.
RITZER, 1993, p. 103, tradução Suas maneiras eram
nossa.) 2 apropriadamente femininas, com o
leve desconforto típico da
Agnes se apresentou como uma jovem adolescência média. (GARFINKEL,
moça que nasceu com o corpo errado: 2006, p. 138) 3
A aparência de Agnes era
convincentemente feminina. Ela era Garfinkel (2006) enfatiza ainda, que
alta, magra e feminina em forma. Agnes falava, andava, se vestia e
Suas medidas eram 38-24-38 gesticulava com uma adorável moça,
polegadas. Ela tinha longos cabelos apesar de não ter uma genitália
loiros escuros e um rosto muito condizente. O que os médicos
2
No original: “[...]cuerpo de conocimiento de delgados, busto amplio y cintura estrecha. Sus
sentido común y de la gama de procedimientos y pies y manos, aunque algo más grandes de lo
consideraciones [métodos] por medio de los usual para una mujer, no eran notables. Su
cuales los miembros corrientes de la sociedad manera de vestir no La distinguia em nada de lo
dan sentido a las circunstancias en las que se típico en una muchacha de su edad y clase. No
encuentran, hallan el camino a seguir en esas había nada llamativo o exótico en su vestimenta.
circunstancias y actúan en consecuencia” No había asomo de disgusto o de que se sintiese
(HERITAGE, [1984] apud RITZER, 1993). incómoda com su ropa, como suele ser muy
3
No original: “La apariencia de Agnes era frecuente entre travestis y mujeres con problemas
convincentemente femenina. Era alta, delgada y de identificación sexual. Su voz, afinada a un
de figura femenina. Sus medidas eran 38-24-38 tono alto, y su forma de hablar mostraban un
pulgadas. Tenía el cabello largo rubio oscuro y ocasional ceceo similar al que afecta a las
un bonito rostro juvenil de piel color crema. No mujeres cuando imitan a un hombre homosexual.
tenía vello facial, lucía las cejas cuidadosamente Sus maneras eran apropiadamente femeninas,
depiladas y no usaba maquillaje, excepto pintura com la leve incomodidad típica de la
labial. Em su primera aparición iba vestida con adolescencia media”. (GARFINKEL, 2006, p.
una camisa apretada que resaltaba sus hombros 138)

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demoraram a descobrir foi que a decisão forçou a outra coisa.” (GARFINKEL,
de se tornar feminina foi uma ação 2006, p. 149, tradução nossa) 4.
processual, praticada ao longo de anos,
de autorregulação com vistas a se Garfinkel rascunha em sua análise de
socializar no corpo feminino, tal qual o Agnes, as mediações e impactos do
processo de aprendizagem de um Corpo na construção identitária de um
imigrante em uma sociedade hóspede (à indivíduo; em seu peso no
moda da endoculturação, se preferir). estabelecimento dos papeis sociais e na
Não se tratava de uma imposição social constituição da situação de gênero. Mas,
ou de regras de conduta impostas de fora o que Garfinkel deixa transparecer é que
para dentro, mas da perspectiva mental apesar desta importância do corpo, ele
construída pela própria Agnes, que não é soberano sobre a mente, a
inclusive, tomava as pílulas de reposição personalidade e a identidade. De certa
de hormônio receitadas para sua mãe. forma, percebe que o corpo é uma
Sua verossímil feminilização não foi o plataforma submissa. Ele já percebe que
resultado da biologia ou de um processo existem “homens com vagina e mulheres
de socialização, mas uma ação com pênis” (GARFINKEL, 2006, p.
autorregulada de auto socialização que a 145). Estabelecendo parâmetros no qual
levou a desenvolver uma constituição a identidade da personalidade antecede o
identitária, feminina, coletivamente corpo-identidade.
reconhecida, mas que se prevalece a
partir dos critérios individualmente
As relações interpessoais alimentavam
estabelecidos (seus próprios valores e
um conjunto de imagens arquetípicas do
percepções do que é algo “feminino”).
papel feminino, colhidos, em sua grande
Se sua mente já era feminina, bastava
maioria, das práticas sociais do seu
convencer a sociedade que também
círculo de amizades e contatos familiares
possuía um comportamento condizente
(a mãe, a tia e a prima):
com sua mentalidade. Em outros termos,
ser vista como mulher. Garfinkel (2006,
p. 140) já se adiantava em perceber que Com seus colegas de quarto e
círculos mais amplos de amigos,
Agnes era “uma mulher natural e
Agnes trocou informações sobre
normal”. O último estágio do processo, homens, festas e compromissos. Ela
para completa mudança, seria o trato não apenas adotou poses de
sexual, não da prática em si, mas da aceitação passiva durante sua
aparência de seus órgãos sexuais. Entre instrução, mas também aprendeu o
ter um pênis e uma vagina, estava o valor da aceitação passiva como
último estágio de sua metamorfose uma característica feminina
identitária. A validação de um ritual, já desejável. [...] Em tais ocasiões,
cumprido. E não o elemento principal Agnes era obrigada a viver de
para seu autorreconhecimento. Afinal, acordo com certos padrões de
segundo suas próprias palavras: “Eu comportamento, aparência,
habilidade, motivos e aspirações, ao
sempre quis ser uma menina; Eu sempre
mesmo tempo em que aprendia em
me senti como uma menina e sempre fui que consistiam esses padrões.
uma menina, mas o ambiente errado me Aprendê-los foi para ela um projeto
de constante aperfeiçoamento
4
No original: “siempre quise ser una chica; me ha forzado a otra cosa”. (GARFINKEL,
siempre me he sentido como una chica y siempre 2006, p. 149)
he sido una chica, pero un ambiente equivocado

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pessoal. (GARFINKEL, 2006, p. argumento de Garfinkel da “máscara” e
166) 5 da importância das “relações face-a-
A interação com outros indivíduos face”, continuadamente reconstruídas a
levava Agnes a sentir como os contatos partir da interação entre os indivíduos e
sociais exerciam pressão sobre seu suas encenações de scripts sociais,
comportamento. Práticas como a de nominados de Papel Social. A confusão
“permanecer discreta”, não falar de seu de Agnes foi vital para Garfinkel compor
passado, evitar assuntos que sua narrativa teórica acerca dos limites
polemizassem as mudanças corporais equívocos entre aparência e realidade e
sofridas, entre outros, eram evitados e de como o gênero se constitui a partir da
suprimidos. Só nestas situações, em lógica de uma “Atitude Natural” e, mais
particular, eram os únicos momentos adiante, nos “seen but-unnoticed
pelos quais o padrão de “anormalidade” background features” 6. E, mais adiante,
de sua situação era sentido. Isto é, apenas de como seus pensamentos, ações e sua
com o contato com as regras sociais noção de conhecimento se
validadas pelo coletivo interferiam na (trans)formam em construção social.
mentalidade identitária de Agnes. Isto é, Garfinkel não faz mais do que extrapolar
há um papel crucial da relatabilidade na a objetivação fenomenológica de base
reflexibilidade manifestada pelo Husserliana, resgatados posteriormente
indivíduo, principalmente, no que tange por Merleau-Ponty (1999). A ação de
às determinações de gênero. Agnes é a própria descrição
fenomenológica de Merleau-Ponty pelo
O que a etnometodologia de Garfinkel qual o entendimento e a experiência
enfatizou foi o papel da linguagem como antecedem o conceito.
agente do processo de legitimação e
autodeterminação da realidade social. Mas, antes de fazer a intersecção da
Ou pelo menos, do papel impactante que noção de “percepção” de Merleau-Ponty
tal aspecto tem sobre a constituição de em Garfinkel, ou como este conceito
um “membro” do grupo. Pois, para ser perpassa a obra dos dois autores,
integrada, Agnes, precisava fazer procuro, a seguir, resgatar inferências
inúmeras concessões adaptativas de seu proximais na obra de Simone de
estado de gênero. Agnes ao “evitar” falar Beauvoir.
daqueles assuntos, destacava a força que
as palavras, dentro daquele contexto, A lésbica de Beauvoir – a percepção
teriam sobre sua situação. Tendo, externa-interna na agência feminina
inclusive, a capacidade de modificar
Beauvoir produz, em seu “O Segundo
seus padrões de normalidade.
Sexo”, uma literatura filosófica, de base
Agnes manipulou os médicos e todos analítica, que se preocupa em questionar
aqueles que a circundavam. Sua lábia foi o que é uma “mulher”. Para tanto, retoma
vital para demonstrar o enriquecido criticamente os critérios defendidos de
5
No original: “Con sus compañeras de de conducta, apariencia, habilidad, motivos y
habitación y con círculosmás amplios de amigas, aspiraciones ientras que simultáneamente estaba
Agnes intercambiaba informaciones sobre aprendiendo en qué consistían esos estándares.
hombres, fiestas y citas. No solo adoptó poses de Aprenderlos era para ella un proyecto de
aceptación pasiva durante su instrucción, sino constante superación personal”. (GARFINKEL,
que además aprendió el valor de la aceptación 2006, p. 166).
6
pasiva como uma característica femenina Isto é, as “características de fundo vistas, mas,
deseable. [...]En tales ocasiones a Agnes se le não despercebidas”, em uma tradução livre.
exigía que viviera de acuerdo a ciertos estándares

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diversos pontos de vista: biológicos, subdesenvolvimento (uma dificuldade
psicológicos e históricos, para afirmar de seguir do “ser em si” para o “ser para
que “nem todo humano do sexo feminino si"). Há uma crítica ao âmbito
é necessariamente mulher”. Já no início psicanalítico (Freudiano) pelo qual a
do segundo volume de seu trabalho mulher termina sendo um ethos
Beauvoir (1949, p. 09) dispara: patológico pelo qual as neuroses se
desenvolvem. Nega as determinações
Ninguém nasce mulher: torna-se
biológicas e psicanalíticas que vinculam
mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma a personalidade à anatomia ou aqueles
que a fêmea humana assume no seio discursos de base evolucionista pelo qual
da sociedade; é o conjunto da a mulher passaria de um estágio
civilização que elabora esse produto clitoridiano para um vaginal ou ainda,
intermediário entre o macho e o àqueles no qual defendem a não
castrado que qualificam de naturalidade de uma virilidade feminina:
feminino. “[...] o fato de que o organismo do
homossexual macho pode ser
E mais adiante, encontramos: “[...] a
perfeitamente viril implica que a
"verdadeira mulher" é um produto
virilidade de uma mulher não a impele
artificial que a civilização fabrica, como
necessariamente para a
outrora eram fabricados castrados; seus
homossexualidade” (BEAUVOIR, 1949,
pretensos "instintos" de coquetismo, de
p. 145).
docilidade são-lhe insuflados, como ao
homem o orgulho fálico” (BEAUVOIR, Um dos elementos marcantes no “O
1949, p.147). Rejeitando a tese Segundo Sexo”, foi inserir um capítulo
biomédica, Beauvoir adentra no mundo sobre as lésbicas com o objetivo de
da socialização, denunciando um discutir a questão feminina. Pensar a
processo de dominação de gênero pelo mulher como um todo, não rejeitando
qual a categoria “outro” é constituída. inclusive, aquelas mulheres, que aos
Nos dois volumes de seu livro clássico, olhos de muitos não as representam ou
certa consciência feminista se constrói, quando as mulheres rejeitam o papel
revelando ao leitor um estado pelo qual feminino. Beauvoir (1949) vê a lésbica
o “feminino” é construído, não como expressão direta da situação social
totalmente pelas mulheres, mais a partir da mulher. As variações de sexualidade
de uma negação do que é o “homem”, são vistas como ações deliberadas dos
desta forma, a mulher seria o “outro”, um indivíduos para fugir dos processos de
não-masculino, objetivado, idealizado e, dominação de gênero: “A
portanto, construído. A mulher se homossexualidade pode ser para a
determina e se diferencia em relação ao mulher uma maneira de fugir de sua
homem, e não o contrário. Os valores condição ou uma maneira de assumi-la”
masculinos desenvolvidos em uma (BEAUVOIR, 1949, p. 146). E, mais
sociedade patriarcal determinam a adiante, complementa:
condição feminina. Por fim, enfatiza que A mulher que se faz lésbica porque
o ethos feminino tem se construído recusa o domínio do homem,
historicamente através de um processo experimenta muitas vezes a alegria
contínuo de dominação e submissão. de reconhecer em outra a mesma
amazona orgulhosa; [...] uma
Segundo Beauvoir (1949), a falta de mulher que quer gozar de sua
oportunidade das mulheres tem lhes feminilidade em braços femininos,
conferido um estado de conhece também o orgulho de não

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obedecer a nenhum senhor. masculina. Há certamente nisso, em
(Beauvoir, 1949, p. 159) boa parte, uma escolha espontânea.
Nada é menos natural do que se
E ainda, vestir como mulher; sem dúvida, a
O que dá às mulheres encerradas na roupa masculina é também artificial,
homossexualidade um caráter viril mas é mais cômoda e mais simples,
não é sua vida erótica que, ao favorece a ação ao invés de a
contrário, as confina num universo entravar; [...] cumpre acrescentar
feminino: é o conjunto das que um dos papéis desempenhados
responsabilidades que elas são pelo adorno é satisfazer a
obrigadas a assumir pelo fato de sensualidade apreensiva da mulher;
dispensarem homens. mas a lésbica desdenha o consolo
(BEAUVOIR, 1949, p. 161) dos veludos, da seda; como Sandor,
ela os apreciará em suas amigas, ou
Em determinados termos a “vocação o próprio corpo delas os substituirá.
lésbica”, está sempre relacionada ao É também por essa razão que a
homem: “[...] [existem] dois tipos de lésbica gosta muitas vezes de
lésbicas: umas ‘masculinas’ que ‘querem bebidas fortes, de fumos fortes, de
imitar o homem’, outras ‘femininas’ que falar em linguagem rude, de impor a
‘têm medo do homem’” (BEAUVOIR, si mesma exercícios violentos:
1949, p. 147). A variação da sexualidade eroticamente ela partilha a doçura
feminina, mas ama, por contraste,
heteronormativa destas mulheres fica
um clima sem pieguismos. Por esse
determinada por uma relação dialética: expediente pode ser levada a
Uma pessoa dotada de uma comprazer-se na companhia dos
vitalidade vigorosa, agressiva, homens. Mas aqui um novo fator
exuberante, almeja despender-se intervém: a relação amiúde ambígua
ativamente e recusa ordinariamente que mantém com eles. Uma mulher
a passividade; desgraciosa, mal muito convencida de sua virilidade
constituída, uma mulher pode não quererá senão homens como
compensar sua inferioridade amigos e camaradas: essa segurança
adquirindo qualidades viris; se sua quase só se encontra naquela que
sensibilidade erógena não está tem interesses comuns com eles, que
desenvolvida, ela não deseja as — nos negócios, na ação ou na arte
carícias masculinas. Mas anatomia e — trabalha e vence como um deles.
hormônios não definem senão uma Gertrude Stein, quando recebia os
situação e não põem o objeto para o amidos, só conversava com os
qual ela transcenderá. homens e deixava a Alice Toklas o
(BEAUVOIR, 1949, p. 145) cuidado de entreter as mulheres. É
com as mulheres que a homossexual
Os elementos de externalidade do muito viril terá uma atitude
indivíduo em seu contexto social, ambivalente: Despreza-as, mas tem
aparecem mais profundamente em seu diante delas um complexo de
texto. As razões e explicações para o inferioridade como mulher e como
ethos dos indivíduos femininos de homem; receia aparecer-lhes como
gênero dissidente decorrem de uma uma mulher falhada, um homem
necessidade de se apresentarem e se inacabado, o que a conduz a exibir
mostrarem ser aquilo que eles são — e uma superioridade altiva ou a
manifestar contra elas — como a
não como os outros os veriam:
travestida de Stekel — uma
É difícil decretar, por exemplo, se é agressividade sádica. (BEAUVOIR,
por gosto ou reação de defesa que 1949, p. 162-163)
tão amiúde ela se veste de maneira

146
Apesar disso, Beauvoir reconhece que o constituem reguladas pelas convenções,
caminho contrário é visível ao passo que não pelos níveis institucionais ou de
a estrutura social, através dos sistemas costumes e, sim, por suas próprias
normativos e o tabu cultural agem sobre escolhas, ela estabelece o ponto de
o corpo alterando-o conforme suas convergência da Agência Feminina:
próprias estruturas. As relações com o
corpo aparecem como mediadores de Na realidade, a homossexualidade
não é nem uma perversão deliberada
comportamento ou como elementos
nem uma maldição fatal. É uma
influenciadores: atitude escolhida em situação, isto
A lésbica poderia facilmente é, há um tempo motivada e
consentir na perda de sua livremente adotada. Nenhum dos
feminilidade se com isso adquirisse fatores que o sujeito assume com
uma virilidade triunfante. Mas não. essa escolha — dados fisiológicos,
Ela permanece evidentemente história psicológica, circunstâncias
privada de órgão viril: pode deflorar sociais — é determinante, embora
a amiga com a mão ou usar um pênis todos contribuam para explicá-la. É
artificial para imitar a posse: não para a mulher uma maneira, entre
deixa, contudo, de ser um castrado, outras, de resolver os problemas
mas pode sofrer profundamente. postos por sua condição em geral,
Inacabada como mulher, impotente por sua situação erótica em
como homem, seu mal-estar traduz- particular. (BEAUVOIR, 1949, p.
se às vezes por psicoses. [...] 164, grifo nosso)
Amiúde a lésbica tentará compensar
sua inferioridade viril por uma Feito esta breve explanação alguns
arrogância, um exibicionismo pontos incisivos sobre as lésbicas no
reveladores de um desequilíbrio trabalho de Beauvoir, parto para uma
interior. (BEAUVOIR, 1949, p. inter-relação com os descritivos de
152) Agnes em Garfinkel, utilizando como
Ao recortar a essência feminina pelo viés eixo analítico a fenomenologia da
dos indivíduos com gêneros dissidentes percepção de Merleau-Ponty.
e sexualidades não normativas, Beauvoir Questões de “percepção do corpo”
coloca a própria existência delas como o entre a Agnes de Garfinkel e a lésbica
fator preponderante para a constituição de Beauvoir
das formas de operação da agência
feminina. Mesmo no caso das lésbicas, Muito do debate sociológico presente
influenciadas pela sua psicologia, de nos autores supracitados envolve, de
alguma forma continuam submissas à alguma forma, a dicotomia Natureza
heteronormatividade. Como? Pelo (Biológica) versus Criação (Social). Até
simples fato de absorverem e que ponto a questão biológica interfere
reproduzirem o comportamento, ou (pré)determina parâmetros
socialmente construído, como comportamentais e identitários. Entre
“masculino”. Quando Beauvoir afirma estas discussões a questão do gênero e da
que as ligações entre as lésbicas se sexualidade7 vem envolvendo muitos

7
As confusões acerca do contraste entre Gênero de mudanças de sexo envolvendo crianças com
e Sexualidade são contínuas e reducionistas. má formação, castrações acidentais e\ou
Casos inúmeros têm sido divulgados hermafroditas, em sua grande maioria relatados
desacreditando o aspecto da criação e por médicos que não aceitam a abordagem
envolvendo o âmbito do biológico, socializadora. Ora, apesar de ser ariscado tal
principalmente quando relacionados a cirurgias argumento, posso colocar que os fracassos,

147
pesquisadores que não só alimentaram casos há uma situação mediada pela
uma plataforma empírica que, ainda percepção, ora de um “eu”, ora de um
hoje, sustenta muitas pesquisas, como “mim”. E, talvez, aí esteja o grande
ergueram construtos teóricos que alicerce daquelas teorias de gênero. Ou
seguem no mesmo patamar. É o caso dos se relacionam a um lado ou ao outro, sem
autores deste ensaio. conseguir se ambientar entre os dois.
A seguir, pretendo dialogar com as A mulher, para Beauvoir, vive um eterno
aproximações teórico-filosóficas de estado de confusão. Sua percepção da
Harold Garfinkel e Simone de Beauvoir realidade é desfocada, muito em
acerca da construção do gênero feminino decorrência das ações (históricas) do
e sua visão de Agência Feminina, homem e dela mesma, ao passo que não
mediados, a meu ver, pelas abordagens se reconhece como um “Um”, mas
filosóficas de Merleau-Ponty em sua sempre como um “Outro”. A
Fenomenologia da Percepção. naturalização de um ethos feminino, isto
é, o fato de as pessoas serem mulheres,
Garfinkel e Beauvoir estão em dois por nascerem mulheres, é falseada.
pontos justapostos. No primeiro há uma Primeiro, pela lógica biomédica de uma
clara vinculação da identidade feminina herança biológica imperativa que relega
por vias de corporificação. Já em ao indivíduo um destino como a ideia de
Beauvoir, não há correspondência entre que “mulheres precisam engravidar”
a mulher e seu corpo, afinal, ela não é um (penso aqui nas ideias que associam
ser-para-si. feminilidade à maternidade, p. ex.), logo,
se não puderem engravidar,
Seria possível, utilizar como chave biologicamente falando, perdem o status
analítica para compreender a relação de “mulheres” (o que ocorre muito entre
entre estes dois trabalhos a ideia de que as mulheres trans que são atacadas,
há uma relação entre corpo e mente injustamente, em suas posições sociais
como ambientes para a percepção? Esta de mulheres devido a esse fator; depois,
correlação, enquanto construto analítico, pela herança da criação/educação que
se daria da seguinte forma: (1) a socializa o indivíduo em um conjunto de
percepção Identidade-Mente, vista como papeis pré-determinados procurando
interna e, depois a (2) a percepção especificar funções e comportamentos
Identidade-Papel, como externa. Ambas ao sexo de nascimento (p. ex., mulheres
em constante diálogo intermitente, mas devem criar a prole e cuidar das tarefas
situacionalmente, dispostas em domésticas, serem recatas, delicadas,
ambientes diferentes. O grande problema etc.).
nos dois casos não é se o corpo pertence
à alma, ou vice-versa. (Não é, Para entender o comportamento dos
propriamente, o que é mais importante.) indivíduos com gêneros dissidentes
Mas sim, perceber que em ambos os analisados, tanto por Beauvoir quanto

relatados nestes estudos, está na dicotomização esqueçamos de suas ambientações com o corpo).
dos Inter lugares do gênero e da sexualidade. Isto é, enquanto as categorias não comportarem a
Apesar do peso estatístico e dos padrões de realidade observada – e não idealizada – as
normalidade, impostos socialmente, a grande implicações das ações de mudança tendem a
problemática está no deslocamento da identidade continuar sem um estabelecimento confiável de
destes indivíduos no âmbito de um gênero prognósticos e passíveis de erros fatais para a
dicotômico (pré-biológico-criacional) e na integração social dos indivíduos, nestas situações
tentativa de indicações quanto às atividades sujeitos.
sexuais condizentes ao gênero (e não nos

148
por Garfinkel, proponho estabelecer uma momentos, relata que só se percebe não-
aproximação com uma Teoria da normal quando na presença de pessoas
Percepção, em conformidade com a que conhecem seu passado e a
filosofia de Merleau-Ponty (1999), como interrogam sobre as questões de suas
previamente exposto. origens. Nos discursos de Agnes e das
lésbicas sobre seus corpos, aparece a
Agnes reflete sobre seu organismo e os discussão fenomenológica de Merleau
vínculos dele com o meio ambiente, num Ponty onde o corpo é um “veículo do ser-
processo de intencionalidade atuante. no-mundo”, e onde a dicotomia da
Tanto a Agnes de Garfinkel, quanto as filosofia clássica entre o corpo objeto e o
lésbicas de Beauvoir, se relacionam com corpo pessoal se reconfiguram: “[...] a
um corpo reflexivo e intersubjetivo. mulher, como o homem, é seu corpo,
Ambos caminham com o objetivo de mas seu corpo não é ela, é outra coisa.”
gerenciar o significado do Ser, (BEAUVOIR, 1949, p. 49). O mesmo
particularmente, nos casos apresentados, ocorre com Agnes, que mente acerca da
do Agente enquanto Ser Feminino. construção de seu corpo para findar esta
Neles, a percepção ganha dimensão de dicotomia.
consciência e interfere no corpo, na
personalidade, na identidade e na própria O raciocínio se equipara a sua análise do
situação de gênero\sexualidade. A “membro fantasma” superando os
imagem percebida de Agnes é enquanto limites tanto biológicos, quanto
“mulher com corpo de homem” ou das psicológicos na “presença efetiva de uma
lésbicas como “homens sem pênis”. representação”. Entre ter o pênis (Agnes)
As impressões sobre o corpo e suas e não o ter (Lésbicas), nós temos tanto a
relações com os indivíduos permeiam os “representação da presença efetiva”
dois autores. As impressões dos sentidos quanto à “presença efetiva de uma
também são colocadas como elementos representação”8. Ora, é a ambiguidade da
importantes para os dois chegarem a presença-ausência que permeia o
conclusões diferentes quanto à questão discurso dos personagens de Garfinkel e
da constituição do gênero e de seu papel de Beauvoir. A intencionalidade das
na constituição dos indivíduos de gênero representações defendida por Husserl e
dissidente ou da construção ou rejeição retomada por Merleau-Ponty,
do feminino. obviamente – devido à herança
fenomenológica – se encontra em
Merleau-Ponty (1999) situa a Garfinkel, ao perceber as ações de Agnes
normalidade no ambiente da percepção que induzem a sua autorregulação do Ser
do indivíduo. Agnes, em diversos e em suas escolhas de fala, vestes, gestos
8
Seguindo a lógica que Merleau Ponty descreve no comportamento e nos atos decorrentes. Hoje
sobre o impacto de um membro fantasma, se essas pessoas não são mais vistas como
enfatiza que a existência de algo pode independer “lésbicas”, mas como homens trans, intersex ou
de sua materialidade concreta. Isto é, a existência de gênero fluído, entre outras assertivas sobre
de algo toma corpo em uma dimensão de sentido suas identidades. A questão do debate é que
na percepção do ser (do próprio ou dos outros que Merleau Ponty nos ajuda a entender como essas
o observam). A presença efetiva é o produto dimensões de existência ou invisibilidade das
material, ele pode existir e ser ignorado por cosias perpassa não sua materialidade objetiva,
completo como inexistente (como ocorre com o mas sua percepção simbólica sobre o sujeito e
órgão de Agnes); em contraponto, mesmo sem sua identidade. Porque a existência de algo é
ter o órgão, as, na época chamadas “lésbicas”, decorrente da percepção de que a coisa existe,
podem ter um pênis simbólico, assumindo a independente de quaisquer outros aspectos.
representação da presença efetiva dele, no andar,

149
e procedimentos. Sim, sabemos que validação das alterações corporais
Garfinkel foi enganado por Agnes. Por solicitadas pelas pessoas trans (e
isso, a grande questão é saber em que intersexuais). Parece, portanto, não ser
medida ele reconhece ou sustenta a ideia possível discutir a agência do gênero
de uma intencionalidade referente ao sem a mediação dos corpos das pessoas.
corpo de Agnes, tal como ele a A mudança precisa ser materializada
apresentou em seus estudos, antes da para ser percebida como existente. O que
cirurgia9. Garfinkel e Beauvoir discordam é a
ordem dessa mudança: se ela começa na
O convencimento do outro, praticado por mentalidade interna e afeta a mudança
Agnes é a ponte para o convencimento externa do corpo ou, ao contrário, parte
de si mesmo, como fica claro no trabalho das alterações externas, afetando a
de Garfinkel. Mas, não fica distante nas mentalidade e a autopercepção,
descrições e ambientações das lésbicas respectivamente.
de Beauvoir, particularmente quando se
A percepção ocorre, para Merleau-
refere àquelas que copiam os homens
Ponty, quando se estabelece uma relação
(BEAUVOIR, 1949, p. 141) e
interior-exterior e que, apesar disso,
estabelecem o mesmo princípio com o dificilmente se torna explícito. Quando
intuito de se aproximar de uma
este filósofo afirma que é através da
existência externa como ponte para uma percepção que se chega ao
existência interna. Ao que tudo indica, a
conhecimento, encontramos nas
descrição que o indivíduo faz de seus
descrições dos casos clínicos de Agnes e
“Esquemas Corporais” (noção oriunda
das Lésbicas, o espaço por onde esta
da medicina, passada para a psicologia e
teoria se concretiza.
adotada na filosofia de Merleau-Ponty)
em mediação com suas identidades de Quando Beauvoir (1949, p. 142)
gênero e sexuais, estão presentes em contextualiza a lésbica “[...] mesmo
ambas as interpretações. Tanto adaptando-se mais ou menos exatamente
Garfinkel, quanto Beauvoir resgatam a a seu papel passivo, a mulher é sempre
importância dos Esquemas Corporais no frustrada como indivíduo ativo. Não é o
destrinchamento de seus problemas- órgão da posse que ela inveja no homem:
objetos, de tal maneira que sentir as é a presa”. É sua função social. Seu status
descrições do corpo se torna perceber o ou em outros termos, de seu papel social.
corpo e suas implicações10. Em outros Apesar que, no trecho acima, Beauvoir
termos: é pela aparência do corpo e suas não enfatizar as necessidades de
modificações que o gênero se processa e extensão do corpo por parte das lésbicas,
se faz perceber. Essa dimensão é ela reconhece como é recorrente entre
essencial e aparece em ambos os elas, a necessidade de se expressar pelo
trabalhos analisados e nos ajuda a corpo masculino em outro momento
entender todo o debate contemporâneo (BEAUVOIR, 1949, p. 152)11. As
das teorias queer e a necessidade de mesmas considerações recaem sobre a
9
Compreendo que postular uma relação entre autores e seus dados empíricos em torno da
Garfinkel e Merleau-Ponty via uma tentativa de discutir a agência feminina.
10
fenomenologia Hursserliana não seria suficiente Isso será esclarecido de maneira mais
para demonstrar que Garfinkel transcende a evidente nos estudos de Judith Butler (2003) em
dicotomia corpo-mente. (Nem Husserl faz isso, torno do conceito de performatividade de gênero
por conseguinte). O objetivo é ter uma ponte mediada pelos esquemas corporais.
11
analítica que nos permita dialogar entre os Retome a citação já apresentada antes de
Beauvoir (1949, p. 159ss).

150
Agnes nas conversações de Garfinkel. heteronormatividade. É preciso, nesse
Sua mudança corporal e a secção do momento, fazer uma ressalva: as
pênis se faz necessária para efetivar sua considerações de Beauvoir eram
essência feminina (construída na prototípicas e foram bastante discutidas
mentalidade de cada um deles). Neste na literatura e nos estudos que se
momento, o corpo biológico é uma ponte desenvolveram ao longo do tempo em
para o corpo social. E, ambos os autores, torno dessa percepção ser realmente
ao que parece, terminam por rejeitar a necessária. A alteridade da lésbica não
existência de essência feminina in poderia, portanto, perpassar por essas
natura, como o senso comum defende, questões de associação à feminilidade ou
seja pela construção mimetizada na à masculinidade.12
Agnes de Garfinkel, seja pela exclusão
dela nas lésbicas de Beauvoir. Em ambos, Beauvoir e Garfinkel, a
perspectiva Sartreana se reacende. O
Beauvoir ao colocar a noção de essência outro não se autodefine, ele é construído
feminina como algo existente a partir da pelo olhar do Outro-outro. Isto é, é
adoção da noção de masculinidade (o através da interação entre os indivíduos
“outro”), seja nas primeiras ações que a identidade e autopercepção se
feministas, seja na constituição constroem por vias de um movimento
estereotipada das lésbicas, aproxima-se, reflexivo. Tanto a Agnes de Garfinkel
tangencialmente, da afirmação da quanto as Lésbicas de Beauvoir, fazem
feminilidade enquanto criação referência à construção da feminilidade
masculina, do homem e para o homem, mediada pela internalização das normas
por parte dos grupos dominantes da que gerenciam a vida social e enfatizam
sociedade e não distante – apesar da o “Ser Mulher” ou “Agir Feminino”.
ausência de declaração – das descrições
de construção de feminilidade de Agnes, Uma “segurança ontológica”, conforme
feita por Garfinkel. Isto é, em ambos os definido por Giddens (1991), é obtida
casos percebemos como o indivíduo pelos movimentos de repetição (das
desenvolve estratégias de feminilização estratégias de feminilização) por parte
que compõem a Agência Feminina. dos agentes interessados (no nosso caso,
Agnes e as Lésbicas, mas também toda
Comentários finais mulher que queira ser identificada
socialmente como “Mulher”)
Parece haver uma situação complexa no desenvolvendo o que viria a ser visto
qual, se considera a seguinte digressão: como um processo de padronização de
se a adoção da masculinidade implica condutas para uma Agência Feminina.
ausência de autonomia feminina, a
agência feminina não existiria enquanto Tanto em Beauvoir quanto em Garfinkel
tal. Por outro lado, nota-se a posição encontramos uma perspectiva de base
extremamente conservadora de Beauvoir fenomenológica e existencialista que
em relação à homossexualidade alimenta o papel da percepção na
feminina que termina sendo vista como identificação (ao gosto de Merleau-
consequência da falta de autonomia das Ponty) e constituição da consciência do
mulheres na construção de uma indivíduo em um processo de
sexualidade dissidente em relação à autopercepção. Na primeira (as lésbicas
12
Essas considerações de contestação e de nos trabalhos das pesquisadoras Simons (1995),
compreensão das condições históricas e sociais Chaperon (1999) e Candiani (2019), entre outras.
do trabalho de Beauvoir podem ser conferidas

151
de Beauvoir), quando “eu sei que sou eu, FRANCIS, Becky. Beyond postmodernism:
porque eu não sou você”, por isso uma feminist agency in educational research. In
FRANCIS, Becky; SKELTON, Christine
percepção externa-interna (e por isso o (Orgs.). Investigating Gender. Contemporary
Eu como o Outro); já no segundo (a perspectives in education, Londres:Open
Agnes de Garfinkel), algo como “eu sei University Press, 2001, 65-76.
que sou eu, porque eu sou você” e, GARFINKEL, Harold. Estudios en
portanto, uma percepção interna-externa Etnometodología. Rubí (Barcelona): Anthropos
(a mudança do Eu, iniciada Editorial; México: UNAM. Centro de
internamente, é mediada, Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y
Humanidades; Bogotá: Universidad Nacional de
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externalizada e a partir das mimeses das
construções sociais). GIDDENS, Anthony. As conseqüências da
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