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O Objeto
de O Capital
I. Advertência
operár ios estuda ram - foi lido por econo mistas e his.tori adores , mas
muito raram ente por filósofos, isto é, por especialistas capaze s de
1
·
· a prod'1g1osa · do d·.m- ·
çào teórica incomparável
. , que prod uz1u compreensão política
_
d
gente o movimento op á · . .
as ob ô . er no russo e mternac1onal. É também por essas razoes que
ras econ m1cas e políticas de L.enm - apenas as obras escritas mas tam bem
· ( nao · a
obra h · t • -
marv,·,.1,sa ~rica) ~ossuem tal valor teórico e filosófico: pode-se estudar 'nelas a filosofia
•·
- estado " prát'ico" , a 1losotia marxista que se tornou poht1ca,
ti
e d '. no
"'m uçao
ação·• ·•anát,·se
·
• · • uma mcomparávelfor • · e fil
- teonca •
•
fica tramro,ma"a ,.m políticas
ec1soes • · Lenm. maçao I oso-
•'J• u, "' poli1 1ca.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 13
Procedo por uma leitura imediata, e para esse fim cedo a pala-
vra a Marx.
Em carta a Engels, de 24 de agosto ~e 1867, escreve ele:
O que há de melhor no meu livro é:
1) {e é nisso que repousa toda-~ compreensão dos fatos) a ênfase desde o
primeiro capítulo, no duplo aspecto do trabalh o, ·segundo ele se exprima
cm valor de uso ou cm valor de troca; 2) a análise da mais-valia, indepen-
dentemente de suas formas particulares, tais como lucro, impost o, renda
fundiá'na, etc. E sobretudo no segundo volume que iSM> aparecerá. t uma
"misce lânea" a análise das formas particulares na economia clássica, que
as confunde constantemente com a forma geral.
Nas Notas sobre Wagner, que datam de 1883, no fim de sua vi-
da, Marx escreve, falando de Wagner (O Capital, Ili, 248):
.. . o vir obscurw [w agnet) não percebeu:
q~. já na análise da mercadoria, não me atenho às duas formas sob
as quais ela ie apresenta, mas que contin uo imediatemente dizendo: que
nessa dualida de da mercadoria reflete-se o duplo caráter do trabalh o, do
qual ela ~ produt o,.a saber: o trabalh o útil, isto é, os modos concretos de
trabalh o que criam valores de 1110, e o trabalh o abstrat o, trabalh o como
dispên dio da força de trabalh o, seja qual for _o modo .. útil" pelo qual eta .
é despen dida (é sobre o que repous a mais tarde a exposi ção sobre o pro-
cesso de produçãó); · ··
O OBJETO DE "O CAPITAL" 15
2) a m a is-vali a
to própr io de Marx . que consi ste nos econo mista s em ler o seu pró-
prio objet o proje tado em Marx , em vez de ler em Marx um outro
objeto que . não o deles, mas totalm ente diferente. Esse ponto do
m?l-entf!nd,1~0 que os econo mista s decla ram ser o da fragilidade e
da falha te_onca de Marx ê,.pel o contr ário, o ponto de sua maio r for-
ça ! Ê precis amen te o que o distingue radica lment e de seus crític os e
també m. ao que parec e, de algun s de seus partid ários mais próxi -
mos.
Como prova da exten são do mal-e ntend ido, cito a carta de En-
gels a C. Schm idt, datad a de 12 de março de 1895, onde pudem os
colher, há pouco , um eco da objeç ão ,d e Schm idt. Engels lhe respo n-
de assim :*
Sua carta me dá uma noção, creio, sobre a maneir a pela qual V. S• se
lança por um atalho a propós ito da taxa de lucro. Verifico nela a mesma
forma de perder- se em pormen ores, o que atribuo ao método eclético de
filosof ar que se introdu ziu desde 1848 nas universidades alemãs , que per-
de toda a perspec tiva geral e que não raro acaba em argume ntaçõe s esté-
reis e sem objetiv o sobre questões de pormen or. Ora, parece -me que, de
todos os clássicos, foi a Kant que V. S• mais se dedico u; e Kant, devido
ao estado da filosofia alemã em seu tempo, e à sua oposiç ão ao leibnizia-
nismo pedant e de Wolf, foi mais ou menos obriga do a fazer conces sões
aparen tes e formai s a essa argume ntação à maneir a de Wolf. Assim en-
tendo a tendên cia de V. S• que se manife sta também na digress ão sobre a
lei do valor, mergul hando nos pormen ores, a ponto de não atentar , ao
que me parece, para as interconexões de conjun to, rebaixa ndo a lei do
valor a uma ficção, ficção necessária, assim como Kant faz de Deus um
postula do da razão prática .
As objeçõ es que V. S• faz contra a lei do valor atingem todos os con-
ceitos.q uando os conside~amos do ponto de vista da realidade. A iden-
tidade do pensam ento com o ser. para empreg ar a termin ologia hegelia-
na, coincid e totalm ente com o seu exemp lo do círculo e do polígo no.
Ambos , o concei to de uma coisa e sua realida de, são paralel os·com o duas
assínto tas, aproxi mando -se consta ntemen te sem jamais encont rar-se.
Essa diferença que as separa é a mesma diferença que impede que o co.ncei-
to do ser seja realidade direta e imediatamente, e que a realidade não seja
imediatamente o seu próprio conceito. Porém, mesmo quando um concei-
to possua a natureza essencial dos conceitos, e por isso não possa coincidir
prima facie diretam ente com a realidade, da qual deve ser primei ro abs-
traido, é, não obstan te, algo mais que uma ficção, a menos que V. S• con-
sidere .como ficção todos os resulta dos do pensam ento porque a realida-
de não corresp onde a esses resulta dos a não ser por um longo rodeio e
mesmo assim só se aproxi ma deles de maneir a assintó tica.
Essa respo sta estarr ecedo ra (sob a banal idade de duas evidên-
cias) const itui de algum modo o comentár~o de boa vonta de do mal-
o saldo das aquisi ções conce ptuais isolad as, extrai ndo-as no mais
das vezes da confus ão de uma termin ologia ainda inadeq uada.
Por outro lado, dá ênfase a outro mérito , que não mais consid e-
ra esta ou aquela aquisi ção de porme nor (certo concei to), mas o
mo do de tratam ento .. científ ico" da econo mia polític a. Sob esse as-
pecto, duas caract erístic as lhe parece m discrim inante s. A prime ira,
num espírit o muito clássic o, que se pode dizer galilea no, refere-se à
atitud e científ ica em si: o métod o da coloca ção entre parênt eses dos
aspect os sensíveis, isto é, no domín io da Econo mia polític a, de to-
dos os fenôm enos visíveis e dos conce itos empír ico-pr áticos produ -
zidos pelo mundo econô mico (renda , juro, lucro, etc.); em suma, to-
das essas catego rias econô micas da .. vida quotid iana" , sobre a qual
Marx declar a, no fim de O Capital, que é o equiva lente de uma ·•reli-
gião". Essa coloca ção entre parênt eses tem por efeito o desvel amen-
to da essênc ia oculta dos fenôm enos, de sua interio ridade essencial.
Para Marx, a ciênci a da econo mia depen de, como qualqu er outra .
ciênci a, dessa reduçã o do fenôm eno à essênc ia ou,' como ele mesm o
o declar a - numa compa ração explíc ita com a astron omia -, redu-
ção do .. movim ento aparen te ao movim ento real". Todos os econo -
mistas que fizeram uma descob erta científ ica, mesm o de porme nor,
passar am por essa reduçã o . No entant o, essa reduçã o parcia l não
basta para consti tuir a ciênci a. t então que ocorre a segun da carac-
terístic a. É ciênci a uma teoria sistem ática, que abranj a a totalid ade
de seu objeto , e apreen da o .. víncul o interio r" que põe em conex ão
as essênc ias (reduz idas) de todos os fenôm enos econô micos . Esse é o
grand e mérito dos fisiocr atas, e destac adame nte acima de todos
Quesn ay, de ter. mesm o sob forma parcia l (dado que ele se limita va
à produ ção agríco la) relacio nado fenôm enos tão divers os como sa-
lário. lucro. renda, lucro comer cial. etc. a uma essênc ia -origin ária ú-
nica. a mais-v alia produ zida no setor da agricu ltura. E mérito de
Adam Smith o ter esboça do essa sistem ática liberta ndo-a do pressu -
posto agríco la dos fisiocr atas - mas o seu demér ito está em só o ter
feito pela metad e. A fragili dade imperd oável de Smith é de fato o ter
preten dido pensa r sob uma origem única objeto s de nature za dife-
rente: ao · mesm o tempo verdad eiras .. essênc ias" (reduz idas), mas
també m fenôm enos brutos não-re duzido s à essênc ia: a sua teoria en-
tão é apena s a reuniã o sem necess idade de duas doutri nas: a exotér i-
ca (em que são unidos fenôm enos brutos não reduzi dos) e a esotéri-
ca, a única cientif ica (em que estão unidas as essênc ias). Essa singel a
observ ação de Marx é prenhe de sentid o: ela implic a não ser só a
forma de sistem aticida de o que consti tui a ciênci a, mas a forma de
sistem aticida de só das "essên cias'' (conce itos teórico s), e não a siste-
matici dade dos fenôm enos brutos (eleme ntos do real) relacio nados
entre si, ou então a sislem aticida de mista das "essên cias" e dos fenô-
O OBJETO DE "O CAPITAL" 21
nio Marx teria apenas celebrado essa união feliz que, como toda fe-
licidade, não tem história. Para nossa infelicidade, sabemos porém
que permanece uma upequenina" dificuldade: a história da "recon-
versão" dessa dialética, que se impõe "recolocar sobre os pés" para
que ela ande afinal na terra firme do· materialismo.
No caso ainda, não evoco as facilidades de uma interpretação
esquemática, que sem dúvida tem títulos: políticos e histór.icos, pelo
prazer de tomar distâncias. Essa hipótese da ·continuidade de objeto
entre a economia clássica e Marx não pertence só aos adversários de·
Marx, nem mesmo a alguns de seus partidários: ela surge silenciosa-
mente, em muitas ocasiões, d<;> próprio discurso explícito de Marx,
ou antes, nasce de certo silêncio de Marx que duplica, despercebido,
o seu próprio .discurso explícito. Em certos momentos, em certos lu-
gares sintomáticos, esse silêncio surge em pessoa no discurso e o
obriga a produzir malgrado seu, em curtos lampejos claros, invisí-
veis ·na luz da demonstração, verdadeiros lapsos teóricos: certa pala-
vra que fica no ar, embora pareça inserida na necessidade do pensa-
mento, certo juízo que fecha irremediavelmente, com uma falsa evi-
dência, o próprio espaço que ele parece abrir diante da razão. Uma
simples leitura literal não vê nos argumentos a não ser a continuida-
de do texto. É preciso uma leitura ..sintomaf' para tornar essas lacu-
nas perceptíveis, e para identificar, sob as palavras enunciadas, o
discurso do silêncio que, emergindo no discurso verbal, provoca
nele esses brancos, que são as folhas do rigor, ou os limites extremos ·
de seu esforço: sua ausência, uma vez atingidos esses limites, no es-
paço que, não obstante, ele abre.
Darei dois exemplos disso: a concepção de Marx das abstrações
que sustentam o processo da prática teórica, e o tipo de censura que
ele dirige aos economistas clássicos.
1
Tomo 1, cap. 1, parágrafos 16 e 18.
O OH.lt:l'O IH·: "O CAPITAi." 25
um discurso
sobre sentido desse silêncio. Ele faz parte de
o
Que não haja equivoco da filosofia marxista, da
os princípios
determinado. que não tinha por objeto expor de méto-
conhecimentos, mas determinar as regras
teoria da história da produção de
da Economia Política. Marx situava-se, pois, no
do, indispensáveis para o tratamento da sua produção. Essa a ra-
se propor o problema
seio de um saber já constituído, sem de Smith e
desse texto, tratar as "boas abstrações"
zão pela qual ele pode, nos limites extraordi-
as condições
certo real, e silenciar sobre
Ricardo como correspondendo a Política clássica:
o nascimento da
Economia
nariamente complexas que provocaram ser produzido o
de saber por que processo pôde
pode deixar em suspenso a questão Economia Politica clássica se pô-
da problemática clássica em que o objeto da
campo certo domínio sobre o
em seu conhecimento,
de constituir como objeto que dava,
E uma exigëncia para nós que esse texto
real, embora ainda dominado pela ideologia. constituir essa teoria da
limiar dessa exigência de
metodológico nos leve ao próprio mas é também
conhecimentos quecoincide com a filosofia marxista;
produção dos atentos ao mesmotempo ao
devemos a Marx desde que estejamos
uma exigência que texto (seu silêncio
nesse ponto preciso)e ao alcance filosó-
ca por sua vez um problema teórico. porque tal como é tomado e re-
cebido, é um conceito não-criticado, e que, como todos os conceitos
"evidentes". corre o risco de não ter por qualquer conteúdo teórico
senão a função que Ihe atribui a ideologia existente ou dominante. E
lazer intervir como solução teórica um conceito cujos titulos não se
Cxaminaram, e que. em vez de ser uma solução, const itui na verdade
um
problema. E considerar que se pode tomar a Hegel ou à prátic:.
empirista dos historiadores esse conceito de história e introduzi-lo
em Marx sem qualquer dificuldade de principio, isto é. sem se pro-
por a questão critica prévia de saber qual é o conteúdo efetivo de um
conceito que se "junte" assim. ingenuamente, como se fosse eviden-
te. ao passo que se impunha. pelo contrário, e antes de tudo, indagar
qual deve ser o conteúdo do conceito de história que a problemática
de Marx Cxige e impöe.
Sem me antecipar ao que se segue. gostaria de esclarecer algu-
mas questðes de principio. Tomarei como contra-exemplo pertinen
te (logo veremos por que essa pertinencia), a concepção hegeliana de
história, o conceito hegeliano do tempo histórico, em que se reflete
para Hegel a essência do histórico como tal.
nuo do tempo. Hegel nada mais fez quanto a isso do que pensar em
sua problemätica teórica própria o problema fundamental da práti
ca dos historiadores, aquele que Voltaire
exprimia ao distinguir, por
exemplo, o século de Luis XV do século de Luis XIV; é ainda o
problema principal da historiografia moderna.
2A contemporaneidade do tempo ou categoria do presente histo-
rico. Esta segunda categoria é a condição de da primei-
possibilidade
Ta e ela é que nos revelará o pensamento mais profundo de Hegel. Se
o
histórico
tempo é a existência da totalidade social, impõe-se escla
recer qual é a estrutura dessa existência. Que a relação da totalidade
social com a sua existência histórica seja
relação com uma existen
a
Ca imediata
outras implica
palavras, que essadarelação
a estrutura sejahistórica
existncia talimediata.
por sua évez Em
que todos os
elementos do todo coexistem sempre no mesmo tempo, no mesmo
presente. e são. pois, contemporåneos uns dos outros no mesmo pre-
sente. Isso significa que a estrutura da existência histórica da totali-
dade social hegeliana permite o que proponho chamar de "corte de
esséncia". isto é, essa operação intelectual pela qual se opera em
qualquer momento do tempo histórico um corte vertical, um corte
do presente de tal modo que todos os elementos do todo revelados
por esse corte estejam entre si numa relação imediata, que exprime
imediatamente a sua essência interna. Quando falarmos de "corte de
essência". estaremos aludindo, pois, à estrutura especifica da totali
dade social que permite esse corte, em que todos os elementos do
todo são dados numa co-presença, que é por sua vez a presença ime
diata de sua essência, que se tornou assim imediatamente legível ne
les. Compreende-se, com efeito, seja a estrutura especifica da totali-
dade social o que permite esse corte de essência: porque esse corte só
é possível pela natureza peculiar da unidade dessa totalidade, uma
unidade "espiritual, se quisermos definir com issoo tipo de unida-
de de uma totalidade expressiva, isto é, totalidade cujas partes todas
sejam cada qual "partes totais", expressivas umas das outras, e ex
pressivas cada uma da total1dade social que as contém, porque con
tendo cada uma em si, sob a forma imediata de sua expressão, a pró-
pria essência da totalidade. Faço aqui alusão à estrutura do todo he-
geliano de que já falei: o todo hegeliano possui um tipo de unidade
tal que cada elemento do todo, quer se trate desta ou daquela deter
minação material ou econômica, desta ou daquela instituição politi-
ca, desta ou daquela forma religiosa, artistica ou filosöfica. é sempre
a presença do conceito em si mesmo num momento histórico deter-
minado. E nesse sentido que a co-presença dos elementos uns nos
outros, e a presença de cada elemento no todo são fundadas numa
presença prévia de direito: a presença total do conceito em todas as
I.ER O CAPITAL"
34
mula segundo a qual ninguém pode saltar por cima de seu tempo. O
presente constitui de fato o horizonte absoluto de todo saber, dado
que todo saber jamais ésenão a
existência
terior do todo. A filosofia, por mais
no
saber
vá,
do principio in-
longe que jamais ultrapassa
Os limites desse horizonte absoluto: mesmo que faça o seu vôo de
noite, ela pertence ainda ao dia, ao hoje, e não passa do presente re-
fletindo sobre si, refletindo sobre a presença do conceito para si - o
amanha Ihe é por essência interdito.
função da estrutura do todo que estudam, não indagam sob uma for
ma verdadeiramente conceptual: constatam simplesmente que há di-
ferentes tempos na história, variedades de tempo, tempos
curtos,
durações médias e longas durações, e se contentam com o notar suas
interferências como produtos do seu encontro;
não relacionam,
pois, essas variedades, como variações na estrutura do todo que, no
entanto, rege diretamente a produção dessas variaçðes; são
antes
tentados a relacionar essas variedades como variantes mensuráveis
pela duração - ao tempo comum, ao tempo ideológico continuo de
continuo.
gico homogèneo e
Essa conclusão é da maior importäncia para a determinação
correta do estatuto de uma srie completa de noções, que desempe
na linguagem do pensamento econo-
nham grande papel estratgico
46 LER O CAPITAL"
Ora, se a sincronia é isso, ela nada tem a ver com a simples pre-
sença temporal concreta, mas refere-se ao conhecimento da articula
ção complexa que faz do todo um todo. Ela não é essa co-presença
concreta-é o conhecimento da complexidade do objeto de conheci-
mento, o que dá o conhecimento do objeto real.
Se assim é no que diz respeito à sincronia, devemos tirar con
clusões semelhantes no que se refere à diacronia, dado que é a con-
da essência a
cepção ideológica sincronia (da contemporaneidade da
si) que funda a concepção ideolgica da diacronia. Basta mostrar
como, nos pensadores que a fazem desempenhar o papel da história,
a diacronia confessa o seu desnudamento. A diacronia é reduzida ao
factual, e aos efeitos do factual sobre a estrutura do sincrônico: o his
tórico é então o imprevisto, o acaso, o peculiar do fato, que surge ou
cai por motivos contingentes no continuo vazio do tempo. O projeto
uma "história estrutural" estabelece então, neste contexto,
problemas terriveis, cuja reflexão laboriosa encontramos nas passa-
gens que Lévi-Strauss Ihe dedica na Antropologia estrutural. DDe fato,
mediante gue milagre um tempo vazio e fatos pontuais poderiam
provocar desestruturaçðes e reestruturações do sincrônico? Uma vez
colocada em seu lugar a sincronia, o sentido "concreto'" da diacro-
nia cai, e no caso ainda nada mais resta dela a não ser o seu uso
epis
O OBJETo DE "O CAPITAL" 49
em que
car
é possível a influência de indivíduos. Critica, isto sim, Sainte-Beuve,
por bus-
explicações históricas em fatos de alcova.
(N. do T.)
O OBJETO DE "O CAPITAL"
55
Devemos a Kant poder suspeitar que problemas que não existem possam ensejar
de soluções tão
prodigiosos esforços teóricos e a produção mais ou Kant rigorosa
menos
antasmagóricas quanto seu objeto, pois a filosofia de pode em grande parte ser
Concebida como a teoria da possibilidade da existência de "ciências sem objeto (me
d1SiCa, cosmologia, psicologia racional). Se não se tiver ânimo de ler Kant, pode-se
58 LER O CAPITAL"
pri-
meira relação (teoria da economia história concreta)
e
ria, a segunda relação (teoria da economia e teoria da história) é*
era imaginá-
uma verdadeira relação teórica. Por que ficou a tal ponto se não in-
visível pelo menos opaca? E que a primeira relação tinha a seu favor
a precipitação da "evidência", isto é, tentações empiristas dos histo-
riadores que, lendo em O Capital páginas de história "concreta" (a
luta pela diminuição da duração da jornada de trabalho, a
passagemn
da manufatura à grande indústria, acumulação primitiva, etc.), Vi-
ram-se de algum modo "à vontade"', e colocavam então o problema
da teoria econômica em função da existência dessa história "concre-
ta,sem sentir a necessidade de propor a questão dos seus titulos.
Interpretavam à maneira empirista as análises de Marx, que, long
de serem análises históricas no sentido rigoroso, isto é, sustentadas
V. O Marxismo no é um Historicismo
Até que seja feito o estudo cientifico das condiçôes que produ-
ziram a primeira forma "esquerdista"" desse humanismo e desse his-
toricismo, estamos aptos a identificar o que, em Marx, podia autori-
zar então essa interpretação e o que nao deixa, evidentemente, de
justificar sua forma recente aos olhos dos leitores atuais de Marx.
Não nos espantaremos ao descobrir que as mesmas ambigüidades
de formulação que nutriram uma leitura mecanicista e evolucionista
autorizaram igualmente uma leitura historicista: Lênin nos deu mui-
tos exemplos do fundamento teórico comum do oportunismo e do
esquerdismo, para que esse encontro paradoxal não nos embarace.
Menciono ambigüidades de formulações. No caso ainda, esco-
ramo-nos numa realidade cujos efeitos já avaliamos: Marx, que ca
balmente produziu em sua obra a distinção que o separa de seus pre
decessores, não pensou - e este é o destino comum de todos os cria-
dores com toda a nitidez desejável o conceito dessa distinção; Marx
não pensou teoricamente, sob forma adequada e desen volvida, o
conceito e as implicações teóricas do seu esforço teoricamente revo
lucionário. Ora, ele o pensou, na melhor das hipoteses, nos concei
tos em parte tomados a outros, e sobretudo nos conceitos hegelianos
-
o que introduz um efeito de deslocamento entre o campo semânti-
co original em que säo colhidos esses conceitos, e o campo dos obje-
tos conceptuais aos quais são aplicados; ora, ele pensou essadiferen
ça por si mesma, mas parcialmente, ou no esboço de uma indicação,
na procura obstinada de equivalentes,'" mas sem chegar de todo a
enunciar na adequação de um conceito o sentido original rigoroso
do que produzia. Esse deslocamento, que só pode ser revelado e re-
duzido mediante uma leitura critica, faz objetivamente parte do pró-
2
prio texto do discurso de Marx.
Gramsci: "Não, as forças mecânicas nunca levam a melhor na histria: são os ho-
mens, sã0 a consciència e o espírito que modelam o aspecto exterior e acabam sempre
por triunfar... contra a lei natural, contra o curso fatal das coisas impôs-se a vontade
tenaz do homem". (Texto publicado em Rinacità, 1957, pp. 149-158. Citado por Ma-
rio Tronti no Studi Gramsciani, Editori Riuniti, 1959, p. 306.)
às suas metáforas
Sob esse aspecto, seria necessário dedicar um estudo completo
Lipicas, à sua proliferação em torno de um centro que elas têm por missão cercar, não
podendo chamá-lo pelo seu nome próprio, o de seu conceito.
mas de todo
Esse deslocamento e sua necessidade não são peculiares de Marx,
es-
forço de fundação cientifica e de toda produção cientifica em geral: seu estudo exige
teoria da história da produção dos conhecimentos e uma história do teôrico,
uma
cuja necessidade sentimos ainda aqui.
64 LER O CAPITAL"
dia de ir além?
O que impediu Aristóteles de LER (herauslesen) na forma valor das
mercadorias que todos os trabalhos são expressos aqui como trabalho
humano indistinto, e, por conseguinte, iguais, foi que ä sociedade grega
repousava no trabalho dos escravos, e tinha por base natural a desigual-
dade dos homens e de suas forças de trabalho.
(O Capital. 1. 73.)
de Aristóteles -, a
igualdade e a equivalência de todos os trabalhos
do a serem, e na medida em dev
que são trabalho humano,
só podem
ser
deci
Não é falso, sem dúvida; mas quando relacionamos essa limitação diretamente a
"história, corremos o risco, no caso ainda, de invocar
lógico de história. simplesmente o conceito ideo-
A enumeração é
mentário que faz
de Engels, juntamente com "outras provincias francesas, no
do
Quadro de Quesnay. (N. do CO
T.)
O OBJETO DE "O CAPITAL" 67
Ou ainda:
14
No sentido definido Pour
em
Marx, pp. 254 ss.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 71
veri-
Se ultrapassarmos a intenção crítica de suas formulações,
Ao apresentar o
ficaremos de início um primeiro sentido positivo.
determina
marxismo como historicismo, Gramsci dá ênfase a uma
na história real.
ção essencial à teoria marxista: o seu papel prático
de Gramsci é quanto ao papel
Uma das preocupações constantes a concepção
prático-histórico daquilo a que ele chama retomando ou "ideo-
-
religião, caso de
que B. Croce oferece da
uma con-
15Se nos ativermos à definição
em norma de vida, e se essa norma de vida
não
cepção do mundo que se transforme norma realizada na vida prática, os homens em
for tomada no sentido livresco, mas
maioria são filósofos, na medida em que agem praticamentee em que em suas ações
práticas... está implicitamente contida uma concepção do mundo, uma filosofia."
(Gramsci, Materialismo Storico, p. 21.)
fundamental de toda concepção do mun-
"Agora, porém, coloca-se o problema
movimento cultural, "religião" e "fë", caso que
do, de toda filosofia que se tornou
se acha contida nesta última
produziu uma atividade prática e uma vontade, que
e
leva inevitavelmente a
ainda, sugere que a expressão "materialismo"
ressonâncias "metafísicas", ou talvez mais que ressonâncias; 3) E
"materialismo histórico"
claro, então, que Gramsci dá à expressão
-
superestrutura" uma extensão que Marx Ihe recusa, dado que sóó
classifica sob esse conceito: 1) a superestrutura jurídico-politica e 2)
a superestrutura ideológica (as "formas de consciência social" cor
respondentes): Marx jamais inctui nelas, salvo nas"obras da juven
tude" (e em particular nos Manuscritos de 44), o conhecimento cientí-
fico. A ciência nâo pode ser classificada sob a categoria de *superes-
trutura", assim como a lingua, que Stalin mostrou nela não se en-
quadrar. Fazer da ciência uma superestrutura è julga-la como uma
dessas ideologias "orgânicas". que aderem t a bem à estrutura que
acabam tendo a mesma "história"" dela! Ora, mesmo na teoria mar-
xista, lemos que as ideologias podem sobreviver à estrutura que lhes
deu nascimento (é o caso da maioria delas: por exemplo, a religião, a
moral. a filosofia ideológica), e certos elementos da superestrutura
juridico-politica também (o direito romano!). Quanto à cieëncia,
pode tambem nascer de uma ideologia, destacar-se de seu campo
para constituir-se como ciência, mas justamente esse afastamento,
essa ruptura", inauguram uma nova forma de existëncia e de tem-
poralidade históricas, que levam
ciência a a
menos em
escapar (pelo
certas condições históricas que asseguram a continuidade real de sua
própria história não foi sempre este o caso) å sorte comum de uma
-
pensamento
moderno, representada pela filosofia da práxis, é justamente a historici-
:aqao cvncreta da filosofia, e sua identificação com a história.
(Materialismo Storico, p. 133.)
empo. dado que ela nada mais é que esse mesmo tempo tomado na
captura de um reflexo especular. precisamente para que os homens a
aceitem. E por essa razão essencial que o humanismo revolucionário
dos ecos da Revolução de 17 pode servir hoje de reflexo ideológico
ou teóricas
com
preocupações politicas variadas, umas ainda apa-
rentadas, e outras mais ou menos estranhas às suas origens.
Pode-se, por analogia, comparar esse caso com o do sintoma, do lapso e do sonho
que para Freud é a "plenitude do desejo*".
LER O CAPITAL
90
e um pouco antes:
CT. OCapital, I. prefácio, p. 17. Marx fala da "nova terminologia criada" porele.
LER O CAPITAL"
94
Mas, nesse caso, que foi que Marx disse de original sobre a mais-valia?
Como se explica que a teoria marxista da mais-valia tenha ribomba-
do como o trovão num céu sereno, e isso em todos os paises civilizados,
ao passo que as teorias de todos os seus predecessores socialistas, inclusi-
ve Rodbertus. perduravam?
as encontraram
estabelecidas. Porque em vez de ver no oxigênio um
problema, viram nele "uma solução".
2)Lavoisier agiu inteiramente ao contrário: *"partindo dessa
"colo-
realidade nova, submeteu a exame toda a quimica flogística",
cou desse modo sobre os pés a quimica que sob a forma flogística anda-
os outros viam uma solução ele viu
va de cabeça para baixo". Onde
um problema. Por essa razão pode dizer-se que, se os dois primeiro
dando-lhe o con-
produziram" o oxigènio, só Lavoisiero descobriu,
ceito.
Ricardo: ele
O mesmo se deu com Marx, com relação a Smith e
verdadeiramente descobriu a mais-valia que os seus predecessores
haviam apenas produzido.
Essa simples comparação, e os termos que a exprimem, abrem-
sobre o discerni-
nos profundas perspectivas sobre a obra de Marx, e
mento de
epistemológico Para compreender Marx, devemos
Engels.
tratá-lo como um cientista entre outros, e aplicar à sua obra científi-
ca os mesmos conceitos epistemológicos e históricos que aplicamos
um funda-
a outros: no caso, Lavoisier. Marx aparece assim como
dor de ciência, comparável a Galileu e Lavoisier. E mais, para com-
de seus prede
preender a relação que a obra de Marx mantém com a
cessores, para compreender a natureza do corte ou da mutação queo
a obra de outros fundadores,
distingue deles, devemos interrogar
que tiveram por sua vez de romper também com seus predecessores.
compreensão de Marx, do mecanismo de sua descoberta, da natu-
reza do corte epistemológico que inaugura a sua fundação científica,
aos conceitos de uma teoria geral da
história das
remete-nos, pois,
capaz de pensar a essëncia desses acontecimentos teóricos.
Ciencias,
Uma coisa é que a teoria geral só exista por enquanto em projeto, ou
essa teoria
que tenha já parcialmente se concretizado; outra é que
O caminho
seja absolutamente indispensável para o estudo de Marx.
tomemos
que Engels nos aponta pelo que ele faz é de molde a que o
00 LER O CAPITAL"
sado desper cebido , no~ todo ~u em parte, e que seja preciso tempo
para que essa revolu çao teórica faça sentir todos os seus efeitos e
que tenha sofrid o inacre ditáve l recalc ament o na históri a visível d'as
.déias: o fato ac?nte ccu; o corte se deu, e a históri a daí surgid a cava
,eu curso por vias subter râneas nos interst ícios da históri a oficial:
··bef!1 ~-a vado. v,elha toupei ra!" Dia haverá em que a históri a oficial
das 1de~as estar~. em atraso quanto a ela. e quand o se der conta dis-
so: ~era demas iado tarde. a menos que assum a o reconh ecimen to
teonco desse fato. e que tire as conseq üência s dele. .
Engels mostra -nos precis ament e o outro lado dessa revolu ção:
a obstin ação daque les que a vivem em negá-la : .. O velho Priestley ju-
rou até a morte pelo tlogíst ico. e ri ada quis saber do oxigên io": é que
ele se atinha . como Smith e Ricard o. ao sistema das idéias existentes,
recusando-se a questio nar a problemática teórica com a qual a recen-
te descob erta vinha rompe r . .1 i Se adiant o esse termo problemática
teórica , é dando um nome (que é um concei to) ao que Engels nos
diz: Engels resum e de fato o questi oname nto crítico da antiga teoria.
e a consti tuição da nova. no ato de estabelecer como problema o que
antes era tido como solução. É exatam ente o que se dá com a con-·
cepção de Marx. no famos o capítu lo sobre o salário (1 I. 206 ss.). Ao
exami nar o que permit iu à econo mia polític a clássica definir o salá-
rio pelo valor dos n:ieios de subsis tência necessários. e portan to. en-
contra r e produ zir um resulta do justo, escreve Marx: .. A sua revelia.
ela mudava assim de terreno, substit uindo o valor do trabalh o. até
então objeto aparen te de suas pesqui sas. pelo valor da força de tra-
balho ... O resulta do a que chegav a a análise era. pois. não o de resol-
ver o proble ma tal como se apresentou no início, mas o de lhe mudar os
termos ". No caso ainda, vemos qual é o conteú do da .. invers ão":
.. essa mudan ça de terren o", que coinci de com a .. mudan ça de ter-
mos", portan to da base teórica , a partir da qual são enunci adas as
questões e propo stos os problemas. No caso ainda. vemos que é a
mesma coisa .. invert er" ... coloca r sobre os pés o que andav a de ca-
beça para baixo" , .. mudar de terren o" e .. mudar o~ termos ~o
proble ma": trata-s e de uma única e mesma transf or~aça o, que atin-
ge a estrutu ra própri a da teoria fundam ental. a partir da _q ual todo
proble ma é coloca do nos termo s e no campo da nova teona. Muda r
de base teórica é, pois, mudar de problemática teórica , se é certo que
11
· O mesmo acontece tanto na história do saber como na história social: n~I~ encon-
tramos gente que "nada aprendeu nem na~a e.squ~ceu", sobretudo se ass1sl1ram ao
espetáculo instalados nos camaroles de primeira Ilia .
102 LER "O CAPITAL"
objeto, não raro a tal ponto diferente da antiga que se pode legitima-
mente falar de um objeto novo: - a história da matemática desde iní-
cios do século XIX até hoje, ou a história da física moderna são ricas
de mutações desse gênero. O mesmo acontece, com mais razão ainda,
~uando_ uma ciência nova l-nasce - quando ela se destaca do campo da
ideologia com a qual rompe para nascer: esse "desprender-se" teórico
provoca sempre, inevitavelmente, uma transformação revolucionária
da problemática teórica , e uma modificação igualmente radical do ob-
jeto da teoria. Neste caso, pode falar-se propriamente de revolução ,
de salto qualitativo, de modificação referente à estrutura mesma do
33
objeto. O novo objeto pode-conservar ainda algúm vínculo com o
antigo objeto iQeológico, e podemos encontrar nele elementos que
pertenciam também ao objeto antigo: mas o sentido desses elemen- ·
tos muda com a nova estrutura que precisamente lhes confere senti-
do. Essas semelhanças aparentes, referentes a elementos isolados,
podem enganar um olhar superficial que ignore a função da estrutu-
ra na constitu~ção do sentido dos elementos de um objeto, precisa-
mente como certas semelhanças técnicas referentes a elementos iso-
lados podem iludir os intérpretes que classificam sob a mesma cate-
goria (.. sociedades industriais") estruturas diferentes como o capita-
lismo e o socialismo contemporâneos. Na verdade, essa revolução
teórica, visível na ruptura que separa uma ciência nova da ideologia
de que nasce, repercute profundamente no objeto da teoria que, por
sua vez, no mesmo momento, é o lugar de uma revolução - e torna-
se adequadamente um objet0 novo. Essa mutação no objeto pode
constituir, exatamente como a mutação na problemática correspon-
.dente, objeto de um estudo epistemológico· rigoroso. E como· é por
um mesmo e único movimento que se constituem tanto a nova
problemática como o objeto novo, o estudo dessa _d~pl~ mutação
nadá mais é que um mesmo estudo que decorre da d1sc1plma que re-
flete sobre a história das formas do saber e sobre o mecanismo de
sua produção: a. filosofia. . . ~ , .
Com isso, eis-nos no hmiar de nossa questao: qual e o ob1eto
próprio da teoria econômica fundada por Marx em O Capital; qual é
0 objeto de O C apitai? Que diferença específica distingue o objeto de
Marx do objeto de seus predecessores?
Marx não tem qualqu er direito_à e~istên cia: e se não pode cxi~tir
Econom ia Política assim conceb 1da, isto se deve a razões de direito, e
não de fato.
Sendo assim, compre ende-se o mal-en tendido que separa Marx
não apenas de seus predece ssores ou de seus críticos ou partidá rios,
mas inclusive dos •~econo mistas" que o sucede ram. Esse mal-
entendi do é simples , embora ao mesmo tempo parado xal. Simples,
dado que os econom istas vivem da p~etens ão à exi~têncía da ~c?no-
mia Política , enquan to essa pretens ao lhe subtrai todo o d1re1to à
ex.istência. Parado xal, pois a conseq üência que Marx extraiu da não!
existência de direito da Econom ia Política é esse Livro imenso que
se chama O Capital e que parece falar, do princip io ao fim, tão-
somente de econom ia política .
rais que con~tt tucm ..i estn~t'.' 'ª teórica do objeto ~a Econo__mia Polí-
tica: no essencia l, essa analise diz respeito ao obJeto da Economia
Política clássica (Smith , Ricardo). mas não se limita às fo rm as clás-
~1ca~ da Economia Política. dado que as mesmas ca tegori as teóricas
fundamentais sustentam hoje ainda os trabalhos de numerosos eco-
nomistas . Ê ne~se espíri to que acredito poder tomar por guia teórico
elementar as definições propostas pelo Dicionário Filosój7co de A.
La lande. Suas variações, aproximações, até mesmo sua " superficia-
lidade" têm vantagens: podem ser tomadas por outros tantos 1ndí-
c1os, não apenas de um fundo teórico comum, mas também de suas
possibil idades de ressonâncias e \nílexões de sentido.
Lalandc defi ne assim a Economia Política: " ciência que tem por
ohjeto o conhecimento dos fenômenos e (se a nature:a desses fenóme-
nos o comporta J a determinação das leis que se refe rem â distribuição
das ríque::as. bem como sua produção e consumo. enquanto fenômenos
relacionados com a distribuição. Chama-se riqueza , no sentido técnico
da expressão, o que é suscetível de utilização'' ( l. l 87). As defin ições
sucessivas propostas por Lalande, citando Gide, Simiand. Karmin e
outros. ressaltam o conceito de distribuição. A definição da extensão
da economia política aos três campos - da produção, distribuição e
consumo - é tomada dos clássicos, sobretudo Say. Ao falar da produ-
ção e do consumo, Lalande observa que "só são econônúcas por um
aspecto. Tomadas em conjunto. implicam grande número de noções eJ-
tranhas à economia política, noções tomadas à tecnologia, à etnografia
e à ciência dos costumes. no que tange à produção. A economia política
clássica trata da produção e do consumo; mas. na medida em que rela-
cionados com a distribuição , como causa ou efeito ".
Tomemos essa definição esquemática como o fundo mais geral
da Economia Política, e vejamos o que ela implica, do ponto de vista
teórico. quanto à estrutura de seu objeto.
por sua vez dada. Ela, e só ela, permite de fato declarar económíc:o.f
os fenômenos grupados no espaço da Economia Polftica: são econô-
micos na medida em que efeitos (mais ou menos imediatos ou "'me-
diatizados") das 1'ecessidade.r dos sujeitos humanos, em suma, do
que faz do hon:ie~, ao lado de sua natureza racional (animal racio-
nal), loq~~ (anunal 'º?~ax), que ri (ridens), polftico (politicum), mo-
ral e r~hgioso, um. s~Jc1to de necessidades (homo ottonomicus). ~ a
necessidade (do suJe1to humano) que define o econômico da Econo-
mia. O dado do campo homogêneo dos fenômenos econômicos nos é
dado, pois, como econômico por essa antropologia silenciosa. Mas
então, olhando-se mais de perto, essa antropologia ºque dá" é que
vem a ser, a rigor, o dado absoluto! A menos que nos remetamos a
Deus para fundamentá-la, isto é, ao Dado que se dá a si mesmo,
causa sui, o Deus-Dado. Deixemos essa questão, em que vemos bas-
tante bem que não existe nunca um "dado no primeiro plano da cena
a não ser por uma ideologia doadora que se coloca por trás, à qual
não temos de pedir contas, e que nos dá o que bem entende. Se não
formos vê-la nos bastidores, não vemos o ato de seu "dom": ela de-
saparece no dado, como todo trabalho em sua obra. Somos seus es-
pectadores, isto é, seus mendigos.
Não é tudo: a mesma antropologia que mantém assim o espaço
dos fenômenos econômicos permitindo falar deles como econômi-
cos ressurge neles sob outras formas ulteriores, algumas das quais
são conhecidas: se a economia política clássica pôde apresentar-se
como uma ordem providencial feliz, como harmonia econômica,
(dos fisiocratas a Say, passando por Smith), é pela projeção direta
dos atributos morais ou religiosos de sua antropologia latente no es-
paço dos fenômenos econômicos. ~ o mesmo tipo de intervenção
que está em ação no otimismo liberal burguês, ou no protesto moral
dos comentaristas socialistas de Ricardo, com quem Marx não cessa
de esgrimir: o conteúdo da antropologia muda, mas a antropologia
permanece, assim como a sua função e o lugar de sua intervenção. e
ainda essa antropologia latente que ressurge em certos mitos dos
economistas políticos modernos, por exemplo sob conceitos tão
ambíguos como "racionalidade" econômica, "otimum", .. pleno em-
prego", ou economia das necessidades, economia humana. etc. A
mesma antropologia que serve de fundamento originário aos fenô-
menos econômicos está presente desde que se trate de definir seu
sentido, isto é, seu fim. O espaço homogêneo dado dos fenômenos
econômicos é assim duplamente dado pela antropologia que o en-
cerra no torniquete das origens e dos fins.
E se essa antropologia parece ausente da realidade imediata dos
fenômenos em si, está no entremeio das origens e dos fins, e também
112 LER "O CAPITAL"
A. O Consumo
Podem os começa r pelo consumo, que parece diretam ente impli-
cado pela antropo logia, dado que põe em causa o conceit o de ..ne-
cessidades" human as. Ora, Marx mostra , na Introdução de 5 7, que
não se podem definir univoc amente as necessi dades econôm icas re-
laciona ndo-as à. ••natur eza human a" dos sujeitos econôm icos. O
consumo é, de fato, duplo. Compr eende o consumo individual do_s ho-
0
mens de uma socieda de dada mas também o consumo produtivo,
qual seria necessá rio, para co~sag ,ar o uso univers al do conceit o de
114 LER "O CAPITAL"
'" Seria fascinante-. mas não cabe fazê-lo a4ui - o estudo dessas longas criticas de
Marx para ver em que ele, nessa questão capital. se distingue dt: Smith; e para ver
· como e onde ele localiza a sua dUerença es.wncial- ver como t:le explica o "equíwJL·,,·. a
"cegueira", o "erro", o "esqueciment o" incriveis de Smith. 4ut: são a rai1.do "dogma
absur~o" que domina toda a economia moderna. e ver enfim por 4ue Marx sente a
necessidade de recomeçar quatro ou cinco vezes t:ssa crítica. como st: não tivesse che-
gado ao extremo. E descobriríam os, entre outras conclusões pertinentes do ponto de
vista epistemológi co, que o "equívoco enorme" de Smith estú diretamente relacionado
com a co_miideraçào exclusiva do capitalista individual, e portanto de sujeitos econômi-
cos considerados _fora do todo. como os sujeitos últimos do processo gloh_a l. Em ou-
tras palavras, venamos sob a forma de sua eficácia direta a pre..,ença determinante da
ideologia amropo/ógica (Referências essenciais: capítulo, IV, 175-210; V. 15-85; VIII,
210-228; Doutrinas, 1, 197-218. etc.)
O OBJETO DE "O CAPITAL" 115
B. A Distribuição
Tendo em vista que a distribuição apareceu como um fator es-
sencial de determinação das necessidades - ª? lado da produção, ve-
jamos O que acontece com essa nova categona: A ~distrib~içã_o apre-
senta-se também sob um duplo aspecto. Ela e nao só ~1stnbuição
116 LER "O CAPITAL "
.. produtore s" como .. descobrido res". Mas, por outro lado, embora
em lugares diferentes, Marx mostra-se severo quanto às conseqüên -·
ci"as teóricas tiradas por seus predecessores de sua cegueira sobre o
sentido conceptua l das .realidades que produziram . Quando Marx
critica, com extrema severidade, Smith ou Ricardo por não terem
sabido distinguir a mais-valia das suas.formas de existência, censu-
ra-os de fato por não haverem dado o conceito à realidade que pode-
riam ter ..produzido ". Vemos agora claramente que a simples ·.. o-
missão" de uma expressão é em realidade a ausência de um conceito,
dado que a ausência ou presença de um conceito decide quanto a
uma cadeia de conseqüências teóricas. Eis o que nos esclarece em
recíproca sobre os efeitos da ausência da expressão na teoria que
.. contém" essa ausência: a ausência de uma "expressão " nela é a
presença de outro conceito. Em outras palavras, aquele que pensa só·
ter de restabelecer uma ..expressão" ausente no discurso de Ricardo,
ar.risca a enganar-se sobre o conteúdo conceptual de~sa ausência, e re-
duz a simples .. palavras" os-próprio s conceitos de Ricardo. E nessa
contradan ça de falsas identificações (crer que só se está restabele-
cendo uma palavra quando se está elaborando um conceito; crer que
os conceitos de Ricardo não passam de expressões) que devemos
procurar a razão pela qual Marx pode ao mesmq tempo exaltar as
decobertas de seus predecessores, onde eles no mais das vezes ape-
nas .. produziram " sem "'descobrir" - e criticá-los tão rudemente pe- .
las conseqüências que eles no entanto simplesmente delas tiraram.
Tive de entrar nesse pormenor para bem situar o sentido desse juízo
de Marx:
C. A Produtio
Toda produção é, segundo Murx, cnrncterizada por dois ele-
mentos indissociáveis: o processo de! trabalho, qu~ explica n transfor-
mnçilo que o homem inflige às mutérius nnturnis pura fazer delas va-
lores de uso, e as relações sociais dé pro<lur,io sob u determinação das
quais esse processo de trabalho é cx~cutndo. Examinaremos um
npós outro esses dois tópicos: o processo de trabalho {a) e us rela-
ções de produção (b).
11) O processo de trabalho
A análise do processo de trubulho refore-se às condições mate-
riais e técnicas da produção.
O processo de trnb11lho .. , 11· ntlvlcl1tdo que tem por finulidndc n pro- 1
duçdo de valores de uso, n aproptloQlh, dos objetos noturnls t\s necessida-
des humo nas 6 o condição nccci8~rln de, inlercdmbio muteriul entre o ho-
·mcm e a nuturcza, uma condiçllo ottturul eterno da vido humano, inde-
pendente por isso mesmo de t\ldll~ "" M\llll formas sociais, sendo ontcs co-
mum a todos os formaa ao~hll8 ( l. 186).
vidade, a troca de matérias com a natureza ... desempe nha para com
a natureza o papel de uma força da naturezaH, ele afirma que a
transform ação da natureza material em produtos , e portanto o pro-
cesso de trabalho como mecanism o material é dominad o pelas leis
físicas da natureza e da tecnolog ia . A força de trabalho insere-se
também nesse mecanism o. Es-s a determin ação do processo de traba-
lho por suas condiçõe s materiais impede em seu nível qualquer con-
cepção uhumani sta" do trabalho humano como pura criação. Sabe-
se que esse ideal_ismo não permane ceu no estado de mito, mas reinou
na economi a política e, com isso, nas utopias econômi cas _do socia-
lismo vulgar: por exemplo , em Proudho n (projeto de banco popu-
lar),. em Gray (os "bônus de trabalho"), e finalmente no · Programa de
Gotha, que proclam ava em sua primeira linha:
O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura.
J7 Sobre todas essas questões, apenas esboçadas neste capítulo, veja-se o te,ct9 de
Bali bar _ em particular o importante conceito de forçds _produtiva.f por ele analisado.
124 LER "O CAPITAL"
na distribui ção dos papéis, que faz de uma minoria de explorad ores
os propriet ários dos meios de produçã o, e da maioria da populaç ão
os produto res da mais-val ia. Toda a estrutura da sociedad e conside-
rada acha-se assim implicad a e presente , de um modo específic o, nas
relações de produçã o, isto é, na estrutura determin ada da distribui -
ção dos meios da produçã o e das funçõc:s et:onômi cas entre catego-
rias determin adas de agentes da produçã o. equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produçã o determin a o econômi co como
tal, a definiçã o do conceito da,s relações qe produçã o de um modo
de produçã o determin ado passa necessar iamente pela definição do
conceito da totalidad e dos níveis distintos da sociedad e, e de seu
tipo de articulaç ão (isto é, de eficácia) própria.
Não se trata, no caso, de modo algum, de exigênci a formal, mas
da condiç_ã o teórica absoluta que rege a própria definição do el'on1-
mico. Basta lembrar os inúmero s problem as suscitado s por essa defi-
nição quando se trata de modos de produçã o diferente s do modo de
produçã o capitalis ta, para nos darmos conta da importân cia decisi-
va deste recurso: se, como costuma dizer Marx, o que está oculto na
sociedad e capitalis ta é claramen te visível na sociedad e feudal ou na
comunid ade primitiva , é nestas últimas· sociedad es que vemos clara-
mente que o econômic o não é claramen te visível! - do mesmo modo
que, nessas mesmas sociedad es, vemos também claramen te que o
grau de eficácia dos diferente s níveis da estrutura social não é clara-
mente visível! Os antropól ogos e etnólogo s que, procuran do o ecnô-
mico, caem nas relações de parentes co ou nas instituiçõ es religiosa s
e outras, os especiali stas em história medieval que, procuran do no
'"econôm ico" a determin ação dominan te da história, a encontra m ...
na política ou na religião, estes "sabem" para que se ater a esta defi-
nição. ) Y Em todos esses casos, não se trata de apreensã o imediata do
econômi co, não se trata do "dado" econômi co bruto, como também
não se trata da eficácia imediata mente "dada" neste ou naquele
nível. Em todos esses casos, a identific ação do econômi co passa pela
construç ão de seu conceito, que supõe, para ser construí do, a defini-
ção da existênci a e da articula.c ão específic as dos diferente s níveis da
estrutura do todo, tais como estão necessar iamente implicad os pela
estrutura do modo de produçã o consider ado. Elaborar o conceito
do econômi co é defini-lo rigorosa mente como nível, instância ou re-
.gião da estrutura de um modo de produção : é, pois, definir o seu lu-
gar, a sua extensão e os seus limites próprios nessa estrutura ; é, se
4uisermos
.. ~ . tomar .. a velha imagem plato" n,·ca, , .. recor t ar " a reg1ao
·- . do
Clonom1co n., estrutura do todo segundo a ·· t· 1 - ,, '
. . . • . '.) . . · sua ar 1cu açao pro-
prra . .\fm .\t . <'ní?anar
., com a ar11culaça~o . O "recor t e· " d o "d a d o '' ou
recorte empirista eng·1na-se · · - · '
· (. • sempre com a art1culaçao precisamen-
te porque sobre o "re·•1 ·· ·:1s art1·cul· - ' b' ' ·
. . u • açoes e o recorte ar 1trarios da
1deolog1a
_ . _ • • N •·~10 ha' recor t e e, pois.
que a sustent·1 · art1cu
· 1açao - Justas,
· a
n_ao ser sob condiçao de possuir ou de construir seu conceito deles.
Em_ outras palavras. ~ão é possível. nas sociedades primitivas, consi-
derar_ este ou aquele.fato, esta ou aquela prática. aparentemente sem
relaçao com a "economia·· (como as práticas a que dão lugar os ri-
tos ~o ~arentesco ou da religião. ou relações entre grupos na con-
correnc1a do "potlatch''). como rigorosa!nente econômicas, sem se ter
antes elaborado o conceito da diferenciação da estrutura do todo so-
cial nessas diferentes práticas ou níveis. sem ter descoberto o seu sen-
tido próprio na estrutura do todo, sem ter identificado. na diversida-
de desconcertante dessas práticas. a região da pratica econômica,
sua c?nfiguraçào e suas modalidades. Ê provável que grande parte
das dificuldades da etnologia e da antropologia contemporâneas de-
corra de que elas enfoquem os "fatos", os "dados" da etnografia
( descritiva) sem tomar a precaução teórica de elaborar o conceito de
seu objeto: essa omissão leva-os a projetar na realidade etnográfica
as categorias que definem praticamente para elas o econômico. isto
é, as categorias que, além do mais, são não raro por sua vez empíri-
,cas, da economia das sociedades contemporâneas. Basta isso para
multiplicar as aporias. Se no caso ainda acompanharmos Marx. só te-
remos feito esse desvio pelas sociedades primitivas e outras para ver
nelas em claro o que a nossa própria sociedade nos oculta: isto é,
para ~•er nela nitidamente que o econômico, assim como qualquer
outra realidade (política, ideológica etc.). jamais se vê nitidamente,
não coincide com o .. dado". Isso é tanto mais evidente para o modo
. de produção capitalista quanto sabemos que ele é o modo de produ-
ção em que o fetichi.rmo atinge sobretudo a região do econômico.
Malgrado as ..evidências" maciças do .. dado" econômico no mu~do
de produção capitalista, e precisamente por causa desse aspecto
.. maciço" dessas ..evidências" fetichizadas, só existe acesso à essên-
cia do econômico pela elaboração do seu conceito, isto é, pela colo-
cação em evidência do lugar ocupado na estrutura do todo pela re-
gião do econômico, e portanto pela colocação em evidência da arti-
culação existente entre essa região e as demais regiões (superestrutu-
ra jurídico-política e ideológica), e pelo grau de presença (ou de ~fi-
cácia) das demais regiões na própria região econômica. No caso ain-
da, essa exigência pode ser encontrada diretamente como exigência
teórica positiva: pode também ser omitida, e manifesta-se então por
efeitos próprtos, sejam teóricos (contradições, limiares na explica-
130 LER "O CA PITAL"
não tendo jamais conceb ido, assim como toda a cultura de sua épo-
ca. que um .. fato" pode ser a existên cia de uma relação de ··combi -
nação'' . de uma relação de comple xidàde, consub $tancia l ao modo
de produç ão como um todo, domina ndo o seu present e, suas crises,
seu futuro. determ inando como lei de sua estrutu ra a realida de eco-
nômica inteira, até no pormen or visível dos fenôme nos empíric os -
ao mesmo tempo que perman ecendo invisível em sua própria evidên-
cia ofuscan te.
O OBJETO DE ..O CAPITAL " 133
determ inadas (por essa problem ática mesma ) sobre o seu ser, ao
mesmo tempo antecip ando a forma de suas respost as ( o esquem a da
medida ): em suma, uma problem átic_a empiris ~a. A teor_ia de Marx
opõe-se radical mente a essa concep çao. Isso na? qu~r ~1zer que_ela
lhe seja uma .. inversã o": trata-se de uma teoria ong1na l, teorica -
mente sem relação com a anterio r; portan to, uma ruptura com ela.
Uma vez que Marx define o econôm ico por -'""" conceito, ele nos
apresen ta, se quiserm os ilustrar proviso riamen te o seu pensam ento
median te uma metáfo ra espacia l, os fenôme nos econôm icos não na
infinitu de de um espaço plano homog êneo, mas numa região deter-
minada por certa estrutu ra regiona l e inscrita por sua vez num lugar
determ inado de uma estrutu ra global: portan to, como um espaço
comple xo e profun do, inscrito por sua vez em outro espaço comple -
xo e profun do. Mas deixem os de lado essa metáfo ra espacia l, dado
que suas virtude s se esgotam nessa primeir a oposiçã o: com efeito,
tudo tem a ver com essa profun deza, ou, para falar mais rigoros a-
mente, com a naturez a dessa complexidade. Definir os fenôme nos
econôm icos pelo seu conceit o é defini-l os pelo conceit o dessa com-
plexida de, isto é, pelo conceit o da estrutura (globa~ do modo de
produç ão, na medida em que ela determ ina a estrutura (region al)
que constit ui como objetos econôm icos, ~ determ ina os fenôme nos
dessa região definid a, situada num lugar definid o da estrutu ra do to-
do. No nível econôm ico propria mente dito, a estrutu ra que constit ui
e determ ina os objetos econôm icos é a estrutura seguinte: unidad e
das forças produti vas/rel ações de produç ão. O conceit o desta últi-
ma estrutura não pode ser determ inado fora do conceit o da estrutu -
ra global do modo de produç ão. ·
~" • 1o J.
<..· 1·. l:ap1lu
136 LER "O CAPIT AL''
nômen os econô micos são determ inado s por sua compl exidad e .(istc -
é, sua estrut ura), não mais se lhes pode aplica r, como antiga mente , e
conce ito de causal idade linear. Impõe -se outro conce ito para expli•
car a nova forma de causal idade exigida pela nova defini ção do ob-
jeto da Econo mia Política, por sua .. compl exidad e", isto é, por sua
determ inação própri a: a determinação por uma estrutura.
Essa terceir a conseq üência merece atençã o especial, porqu e nos
introd uz num domín io teóric o rigoro samen te novo. Tese que soa em
. nossos ouvid os como algo já conhe cido é que um objeto não possa
ser defini do por sua aparên cia imedi ateme nte visível ou perceptível,
mas que tenha de passar pelo atalho do seu conce ito para o apreen -
der (begreifen: apreen der; BegrifJ- conceito). Essa é, pelo menos , a
lição de toda a histór ia da ciência moder na, mais ou menos refletida
na filosofia clássica, mFsmo que essa reflexão se tenha opera do no
eleme nto de um empir ismo transc enden te (como em Descartes), ou
transc enden tal (Kant e Husserl), ou idealista-.. objeti vo" (Hegel).
Certo é que se impõe grand e esforço teórico para acaba r com todas
as forma s desse empir ismo sublim ado na .. teoria do conhecimento~'
que domin a a filosofia ocidental, para rompe r com a sua proble má-
tica do sujeito (o cogito) e do objeto - e todas as suas varian tes. Con-
tudo, pelo menos todas essas ideologias filosóficas •~aludem" a uma
(.lecessidade real, impos ta, contra esse empir ismo persis tente, pela
prátic a teóric a das ciências reais: saber qu~ o conhe cimen to de um
objeto real passa, não pelo contat o imedia to com o .. concr eto" mas
pela produ ção de conceito desse objeto (no sentid o de objeto de co-
nhecimento), como por sua condiç ão de possibilidade teórica abso-
luta. Do ponto de vista formal, a tarefa que Marx nos impõe, quand o
nos força a produ zir o conceito do econômico para termo s condi-
ções de consti tuir uma teoria da econo mia política, quand o nos
obriga a definir por seu conceito o domínio, os limites e as condiç ões
de valida de de uma matem atizaç ão desse objeto , não se trata de ma-
neira algum a de uma ruptur a com a prátic a científica efetiva, mes-
mo rompe ndo de fato com toda a tradiç ão ideali.s ta-emp irista da fi-
losofia crítica ocidental. Pelo contrá rio, as exigências de Marx reto-
mam em novo domín io requisitos que são, de há muito , impos tos à
prátic a das ciências que atingi ram autono mia. Se essas exigências
não raro se choca m contra as prátic as profun damen te impre gnada s
de ideologia empir ista que reinavam e reinam ainda na ciência eco-
nômica, isso se deve, sem dúvida, à-juve ntude dessa ~•ciência", e
també m a que a .. ciência econô mica" está sobrem odo expos ta às
pressões da ideologia: as ciências da sociedade não têm a sereni dade
das ciências matem áticas . Hobbe s já o dizia: a geome tria un~ os ho-
mens; a ciência social os divide . A .. ciência eco!1?mica" é o campo
de batalh a e o alvo dos grande s comba tes pohllc os da histór ia.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 137
1
• Cf. Ler "O Capital", vol. 1, p. 51.
138 LER "O CAPITAL"
Nada mais faço aqui do que retomar , sob a forma mais genéri-
ca, um problem a teórico fundame ntal e dramátic o, do qual as expo-
sições.- preceden tes nos deram uma idéia precisa. Afirmo que se trata
de um problem a fundame ntal, pois é claro que, por outras vias, a
teoria contemp orânea, tanto em psicanál ise como em lingüísti ca e
nas demais disciplin as como a biologia , e talvez mesmo em física,
veio a enfrentá -lo, sem perceber que Marx, muito antes dela, o .. pro-
duzira", no sentido próprio. Afirmo tratar-se de um problem a teóri-
co dramático, dado que Marx, que "produz iu" esse problema, não o
140 LER "O CAPITA L"
fórico eª.º mesm o tempo o mais próxim o do concei to que Marx ti-
nh a e~ ~1st~ qua,ndo queria design ar simult aneam ente a presen ça e
a a usenci a, isto e, a existência da estrutura em seus efeitos.
Essa questã o é extrem ament e impor tante, para evitar uma re-
caída, ainda que mínim.a de certo modo por inadve rtência , no desvio
da concepção clássica do objeto econômico, para evitar o dizer-s e que
a conce pção marxis ta do objeto econô mico seria, em Marx, determ i-
nada de fora por uma estrutura não-económica. A estrutu ra não é
uma essênc ia extern a aos fenôm enos econô micos cujos aspect os,
forma s e relaçõ es ela viria modif icar, e que seria eficaz sobre eles
como causa ausent e, - ausente porque externa a eles. A ausência da
ca~ a na .. causalidade metonímica-,, da estrutura sobre seus efeitos
42
al
•: Express ão de J. A. Miller para caracte rizar uma forma de causalid ade estrutur
descobe rta em Freud.
142 LER "O CAPITAL"
41
O Capital, VIII , 196: "Toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das
coisas se confundissem" . Ressonância do velho sonho de toda reflexão da política clás-
sica: toda política seria supérflua se a paixão e a razão dos homens se confundissem.
O OBJET O DE "O CAPIT AL" 143
sá~io pens,a~, num conce ito verda deiram ente reflet ido, o probl ema
ep1stemolog1co que ele no entan to havia produzido: como explicar
teoricamente a eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos?
Essa dificu ldade não deixo u de ter conse qüênc ias. Assin alei que a
reflex ão teóric a anter ior a Marx havia forne cido apena s dois mode -
los de uma eficác ia pensa da: o mode lo de uma causa lidade transi tiva
de orige m galile ana e cartes iana, e o mode lo de uma causa lidade ex-
pressi va de orige m leibni ziana , retom ada por Hegel . Esses dois mo-
delos podia m entre tanto revela r um fundo com um na oposi ção clás-
sica do par essência-fenômeno, jogan do com o equív oco dos dois
conce itos. O equív oco desse s dois conce itos é, de fato, evide nte: a es-
sência remet e ao fenôm eno, mas ao mesm o tempo , em surdin a, ao
inessencial. De fato o fenôm eno remet e à essên cia, de que ele pode
ser a manif estaçã o ou a expre ssão, mas remet e ao mesm o tempo , e
em surdi na, àquilo que apare ce ao sujeit o empír ico, à perce pção e,
pois, à afecç ão empír ica de um sujeit o empír ico possív el. É simpl íssi-
mo então acum ular na própr ia realid ade.es sas determ inaçõ es equí-
vocas , e localizar no próprio real uma distin ção que no entan to é des-
tituíd a de sentid o a meno s que em funçã o de uma distin ção exterior
ao real, dado que põe em jogo uma distin ção entre o real e o seu co-
nheci mento . Marx , à procu ra de um conce ito para pensa r a singu lar
realid ade da eficác ia de uma estrut ura sobre <;>s seus eleme ntos, não
raro recor reu, e na verda de de modo quase inevit ável, ao par clássico
essência e fenômeno, encam pando , por força e não por virtud e, as
suas ambig üidad es, e extra polan do para a realid ade, sob a forma de
"interior e exter ior" do real, do "movimento real e do movimento apa-
rente", da "essência íntim a" e das determ inaçõ es concr etas, fenom é-
nicas, perce bi_d as e manip ulada s por indiví duos, a diferença episte-
mológica entre o conhecimento de uma realidade e essa própria reali-
dade. Não tenha mos dúvid a de que isso teve conse qüênc ias no con-
ceito que ele tinha .de ciênc ia, como o podem os perce ber quand o
Marx cuido u de dar o conce ito daqui lo que seus prede cesso res ha-
viam achad o, ou falha do - ou o conce ito da difere nça que o distin -
guia deles.
Mas esse equív oco teve també m conse qüênc ias sobre a inter-
preta ção do fenôm eno que Marx batizo u com o nome de "fetichis-
mo". Ficou claro que o fetich ismo não era um fenôm eno subje tivo,
pertin ente às ilusõe s ou à perce pção dos agent es do proce sso econô -
mico, de modo que não se pode reduz i-lo aos efeitos subjetivos pro-
duzid os nos sujeit os econô micos pelo lugar deles no proce sso, na es-
trutur a. No entan to, quant as passa gens de Marx nos apres entam o
fetichismo como uma "aparência", uma "ilusã o" pertin ente unica -
mente à "cons ciênc ia", mostr ando- nos o movi mento real, intern o,
144 LER " O CA PITAL"
as teó-
O peq uen o com entá rio que se segue é sobr e dois prob lem ta de
ober
ricos imp orta ntes , rela cion ados dire tam ente com a desc
obje to de O
Mar x e as suas form as de expressão: o da definição do
das form as
Capital com o "a méd ia idea l" do capi talis mo real - e o
de tran siçã o de um mod o de prod uçã o a outr o.
econômicas
Supo remo s sempre, neste exam e geral, que as relações
a coisa, as rela-
reais correspondem bem a seu conceito, ou o que é a mesm
que tradu zem o seu pró-
ções reais só serão expo stas aqui na medida cm
prio tipo gera l (a/lgemeinen Typus) ... (VI, 160).
l com o
Mar x define em vári as opo rtun idad es esse tipo gera
capitalis-
.. méd ia idea l" (idealer Durchschnitt) do mod o de prod ução
estã o com bi-
ta. Essa den omi naçã o, em que a média e a idealidade
rem a cert o
nad as do lado do con ceit o, ao mes mo tem po que se refe
átic a filosófi-
real existente, esta bele ce de nov o a que stão da pro~ lem
ada de emp i-
ca que sust enta essa term inol ogia : não esta rá imp regn
uma passa-
rismo'? A isso serí amo s leva dos a pen sar tend o em vista
ital.
gem do Pref ácio da prim eira ediç ão alem ã de O Cap
festam na
O fisico observa os processos da natureza, quan do se mani
s pertu rbad o-
form a .mais característica e estão mais livres de influência a ocorrência
ras, ou, quan do possível, faz experimentos que asseg uram
148 LER "O CAPITAL"
Marx deu elementos para pensar esse problema, decisivo dos pontos
de vista teórico e prático: é a partir do conhecimento dos modos de
produção em pauta que podem ser formulados e resolvidos os
problemas da transição. Por esse motivo é que podemos prever o fu
turo, e constituir a teoria não apenas desse futuro, mas também e
sobretudo das vias e meios que nos garantirão a sua realidade.
A teoria marxista da história, entendida como acabamos de de-
finir, assegura-nos esse direito, desde que saibamos definir muito
exatamente as suas condições e limites. Mas, ao mesmo tempo, ela
nos dá com o que avaliar o que nos resta a fazer - e que é imenso,
para definir com todo o rigor desejável essas vias e esses meios. Se é
certo que a humanidade só se propõe tarefas que está em condições
de realizar (sob condição de não dar a essa fórmula uma conotação
historicista), ainda assim é preciso que a humanidade adquira exata
consciência da relação existente entre essas tarefas e suas capacida-
des, e que ela aceite passar pelo conhecimento desses termos e sua
relação, e portanto pelo questionamento dessas tarefas e capacida-
des, para definir os meios próprios para produzir e dominar seu fu-
turo. Na falta disso, e até na "transparência" de suas novas relações
economicas, ela correria o risco, como já teve a experiência nos si-
lèncios do terror - e como pode ter uma vez mais nos anseios do hu-
manismo, correria o perigo de entrar, com a consciência pura, num
futuro ainda carregado de perigos e de sombras.
Observacções
O Capital é citado .na tradução das Editions Sociales (8 volu-
mes). O número em algarismos romanos indica o número do tomo; em
alagarismos arábicos, a página. Por exemplo, O Capital, IV, 105 deve
ler-se: O Capital, Editions Sociales, tomo IV, p. 105.
As Teorias sobre a Mais-Valia (Theorien über den Mehr-wert)
foram iraduzidas em francés por Molitor ( Ed. Costes) sob o título
Histoire des Doctrines Economiques, em 8 tomos. Empregamos a
mesma fórnmula de referência que para O Capital (tomo, página).
A conteceu-nos freqüentemente retificar as traduções francesas de
referéncia. inclusive a tradução do livro I de O Capital por Roy. para
acudir mais de perto ao texto alemão, em certas passagens
demasiado
densas ou carregadas de sentido teórico. Em nossa leitura de modo mui-
1o geral recorremos ao texto alemão da edição Dietz (Berlim), enm que
O Capital e as Teorias sobre a Mais-Valia comportam cada qual tres
tomos.
L. Althusser