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Louis Althusser:

O Objeto
de O Capital

I. Advertência

Na divisão do trabalho, um tanto deliberada e um tanto espon-


tânea que presidiu à organização deste estudo coletivo de O Capital,
coube-me falar da relação de Mar x com a sua obra. Tomei como in-
cumbência, sob esse título, a seguinte questão: que idéia faz Marx e
no-la apresenta da natureza de seu empreendimento? Em que con-
ceitos pensa ele a sua originalidade, e porta nto no que se distingue
dos economistas clássicos? Em que sistema de conceitos exprime ele
as condições que suscitaram as descobertas da Economia Clássica,
por um lado, e, por outro, as suas próprias descobertas? Para esse
fim, assumi como tarefa interrogar o próprio.Marx, para ver quan-
do e como ele refletira teoricamente a relação de ~ua obra com as
condições teórico-históricas de sua produção. Pr~tendia desse modo
propor-lhe diretamente a questão epistemológica (undamental, que
constitui o próp rio objeto da .filosofia marxista - e avaliar o mais
exatamente possível o .grau de consciência filosófica explicita a que
Marx chegou dura nte a elaboraçã·o de O Capital. Fazer ess~ avalia-
ção significava de fato com para r a parte·que Marx ha.via -iluminado
com a parte que ficara na sombra, na campo filosófico novo qtie ele
abrira pelo próprio ato de sua base científica. Avaliando o gue Marx
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fizera, pretendia eu representar, tanto quanto possível, aquilo que


ele mesmo nos convidou a fazer, para determinar o campo, avaliar a
sua extensão e torná-lo acessível à descoberta filosófica - em suma,
determinar o mais exatamente possível o espaço teórico aberto à re-
flexão filosófica marxista.
Esse era o meu projeto: à primeira vista, podia parecer simples
e plenamente executável. De fato, Marx nos deixou no texto ou nas
Notas de O Capital, em todo o itinerário percorrido, um sem-
número de juízos sobre ·s ua própria obra, além de comparações ·críti-
cas com os seus predecessores (os fisiocratas, os economistas clássi-
cos: Smith, Ricardo e outros), e finalmente observações metodológi-
cas muito rigorosas, que aproximam seus processos de análise do
método das ciências matemáticas, físicas, biológicas, etc. e do méto-
do dialético definido por Hegel. Como temos a nosso dispor, tam-
bém, a Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política de
1857 - que desenvolve de maneira extremamente profunda as pri-
meiras observações teóricas e metodológicas do livro II de Miséria
da Filosofia (1847), parecia lícito crer que esse conjunto de obras
abrangia realmente o nosso objeto de reflexão, e que bastaria, em
suma, submeter essa matéria, já elaborada, a uma ordenação siste-
mática, para que o projeto epistemológico de que falei há pouco as-
sumisse corpo e realidade. Parecia de fato natural pensar que, falan-
do de sua obra e de seus descobrimentos, Marx refletisse em termos
filosoficamente adequados sobre a originalidade, portanto sobre a
distinção específica do seu objeto - e que essa reflexão filosófica
adequada se exercesse por sua vez sobre uma definição do objeto
científico de O Capital, fixando em termos manifestos a sua distin-
ção específica.
Ora, os protocolos de leitura de O Capital de que. dispomos na
história da interpretação do marxismo, como a experiência que nós
mesmos podemos ter da leitura de O Capital, põem-nos diante de di-
ficuldades reais, inerentes ao próprio texto de Marx. Eu as gruparei
sob duas rubricas, que constituirão objeto de minha exposição:
I) Contrariamente a certas aparências, e em todo o caso contra
a nossa expectativa, as reflexões metodológicas de Marx em O Capi-
tal não nos dão o conceito desenvolvido, nem mesmo o conceito
explícito do objeto da filosofia marxista. Elas nos dão sempre algo
com que o reconhecer, identificar e discernir, e afinal com que pen-
sá-lo, mas não raro ao cabo de longa procura e desde que destrin-
chado o enigma de certas expressões. Nossa questão exige, pois,
mais que uma simples leitura literal, ainda que atenta; exige, isto-
sim, uma verdadeira leitura crítica, que aplique ao texto de Marx os
próprios princípios dessa filosofia marxista que todavia procuramos
O OBJETO DE "O CAPIT AL" 9

em O Capital. Essa leitura crítica parece consti tuir um círculo, dado


que parece mos espera r a filosofia marxi sta de sua própri a aplica ção.
Esc_la reça mos, pois: espera mos do trabalho teórico dos princíp ios fi-
los?ficos que Marx nos deu explic itamen te, ou que podem ser ex-
tra1 dos de ~u~s .. obras d? corte" e da matur idade - espéra mos do
trab~lho teonco des~es pr~ncípios aplica dos a O Capital, seu desen-
volv1mento, se~ ennqu ec1me nto, ao mesmo tempo que o requin ta-
mento do seu rigor. Esse círculo aparen te não poderi a surpre ender-
n os: toda .. produ ção" de conhe cimen to o implica em seu processo.

2) Essa pesqui sa filosófica choca-se no entant o com outra difi-


culdad e real, que se refere agora não mais à presença e distinç ão do
objeto dafilo sofia marxi sta em O Capital, mas à presença e distinç ão
do objeto científico do própri o O Capital. Para nos atermo s a uma .
ún ica e simples questã o sintom ática, em torno da qual giram quase
todas as interp retaçõ es e críticas de O Capital; qual é, rigoro samen te
faland o, a natureza do objeto cuja teoria O Capital nos dá? Esse ob-
jeto será a Econo mia ou a História? E, para especificar essa questão:
se o objeto de O Capital é a Econo mia, em que, rigorosamente, esse
objeto se disting ue, em seu conceito, do objeto da Econo mia Clássi-
ca? Se o objeto de O Capital é a História, que Histór ia é essa e qual é
o lugar da Economia na História?, etc. No caso ainda, uma simples
leitura literal, ainda que atenta , do texto de Marx, pode nos deixar
insatisfeitos, ou até nos fazer passar ao lado da questão, eximir-nos
de propo r essa questã o, conqu anto essencial para a compr eensão de
Marx - e nos privar da consciência exata da revolução teórica pro-
vocad a pela descob erta de Marx, do seu alcance e de suas conse-
qüências. Não há dúvida de que Marx nos dá em O Capital, e sob
forma extrem ament e explícita, meios com os quais identificar e
enunc iar o conce ito de seu objeto - e até mesmo o enunc ia em ter-
mos perfei tamen te claros . Mas se ele formu lou, sem dúvida , o con-
ceito de seu objeto , nem sempr e definiu com a mesma nitidez o con-
ceito de sua distinção, isto é, o concei to dá diferença específica que o
separa do objeto da Econo mia Clássica. Não há dúvida de que
Marx teve consci ência aguda da existência dessa distinção: toda a
sua crítica da Econo mia Clássica o prova. Mas as formas nas·
quais ele nos dá essa distinç ão, essa diferença_específica, são, às ve-
zes, como O verem os, descon certan tes. Elas certam ente nos põem na
via do conce ito dessa distinç ão, mas não raro ao cabo de uma longa
procu ra e no caso ainda, uma vez decifr ado o enigm a de certas ex-
pressões. Ora, como fixar com certa nit~dez a e~~ecifica~ade dif~r~n-
cial do objeto de O Capital sem uma leitura cnttca_ e ep1stemolog1ca
que assina le o lugar em que Marx se separa teonca mente de seus
predecessores e determ ine o sentid o dessa ruptur a? Como preten der
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esse resultado sem recorrer precisamente a uma teoria da história da


produção dos conhecimentos, aplicada às relações de Marx com a sua
pré-história e, portanto, sem recorrer aos princípios da filoso-
fia marxista? A essa primeira questão junta-se outra,- como o vere-
mos: a dificuldade que Marx parece ter sentido em pensar num con-
ceito rigoroso a diferença_que distingue seu objeto do objeto da Eco-
nomia Clássica, acaso não terá a ver com a natureza da descoberta
de Marx. sobretudo em vista de sua prodigiosa originalidade? Não
terá a ver com o fato de que essa descoberta se achava teoricamente
muito adiantada em relação aos conceitos filosóficos disponíveis na
época? E. nesse caso. a descoberta científica de Marx não exigirá en-
tão imperiosamen te a colocação·de problemas filosóficos novos exi-
gidos pela natureza perturbadora de seu novo objeto? Por esta última
razão, a filosofia ver-se-ia convocada a uma leitura completa e apro-
fundada de O Capital. para responder às questões surpreendente s
que seu texto lhe propõe: questões inéditas, e decisivas para o futuro
da própria filosofia.
Esse é. pois. o duplo objeto deste estudo, que só é possível por
· uma constante e dupla recorrência; a identificação e o conhecim~nto
do objeto da filosofia marxista, em ação em O Capital, pressupõe ·
identificação e conhecimento da diferença específica do objeto do
próprio O Capital - o que implica por sua parte o recurso à filosofia
marxista e exige seu desenvolvimen to. Não é possível-ler: verdadeira-
mente O Capital sem o auxílio da filosofia marxista, que temos dt:
ler. por sua vez. e ao mesmo tempo, no próprio O Capital. Se e~sa
dupla leitura. e a constante recorrência da leitura científica à leitura
filosófica, e da leitura filosófica à leitura científica são necessários e
fecundos, poderemos sem dúvida reconhecer nela o caráter dessa re-
volução filosófica que traz em si a descoberta científica de Marx:
revolução que inaugura um modo de pensamento filosófico autenti-
camente novo.

Podemos também nos convencer de_que essa dupla leitura seja


indispensável pelas dificuldades e pelos contra-sensos provocados
no passado por leituras simples e imediatas de O Capital: dificulda-
des e contra-sensos que dizem respeito a um mal-entendido mais ou
.menos g~ave sobre a diferença específica do objeto de O Capital. So-
m~s obrigados a ter em consideração este fato de vulto: até época re-
l~tiv~?1ent~ recente, O Capital quase não foi lido, entre os uespecia-
hstas • a na~ se~ por economistas e historiadóres, que não raro pen-
saram, os pnmetros, que O Capital era um tratado de Economia no
sentido imediato de sua própria prática, e os segundos que O Capital
era. em certas partes, obra de história no sentido imediato de sua
própria prática. Esse livro, que milha'res e milhares de militantes
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operár ios estuda ram - foi lido por econo mistas e his.tori adores , mas
muito raram ente por filósofos, isto é, por especialistas capaze s de
1

propo r a O Capital a questã o prévia da nature za diferencial de seu


º?jet~ . Com raras exceções, por isso mesmo notáveis, econo mistas e
histori adores não estava m em condiç ões de lhe formu larem essa
questã o, pelo menos sob forma rigoro sa e, pois, a ponto de identifi-
car conce ptualm ente o que disting ue especi ficame nte o objeto de
·Marx de outros objeto s, aparen temen te semelh antes ou aparen ta-
dos, quer lhe sejam anteri ores ou contem porâne os. Empre endim en- ·
to desse tipo só era em geral acessível a filósofos, ou a especialistas
possui dores de forma ção filosófica suficiente - dado que ela corres -
ponde ao própri o objeto da filosofia.
Ora, quais são os filósofos que, poden do propo r a O Capital a
questã o de seu objeto , da diferen ça específica que disting ue o objeto
de Marx do objeto da Econo mia Política, clássica ou moder na - te- .
rão lido O Capital propo ndo-lh e essa questão? Saben do-se que essa ·
obra foi alvo, duran te 80 anos, de um interd ito ideoló gico-p olítico
radica l pelos econo mistas e pelos histori adores burgueses, imagin a-
se o destin o· que lhe podia reserv ar a filosofia universitária! Os úni-
cos filósofos dispos tos a .tomar O Cqpital por objeto digno dos cui-
dados da filosofia só pudera m ser por muito tempo militan tes mar-
xistas: só a partir dos último s dois ou três decênios alguns filósofos
não-m arxista s puder am transp or a fronte ira dos interdi tos. Porém ,
marxi stas ou não, esses filósofos só pudera m propo r a · O Capital
questõ es produ zidas por sua filosofia, que não estava em condiç ões,
em geral, de conceb er um verdad eiro tratam ento epistem ológic o de
seu objeto , quand o a isso não se recusa va obstin adame nte. E~tre os
marxis tas, além de Lênin, cujo ·caso é tão notáve l, podem o·s citar
Labrio la e Plekha nov, os "'austr omarx istas", Grams ci, e mais recen-
temen te Rosen thal e Iljenk ov na URSS; na Itália a Escola de Della
Yolpe (Della Yolpe, Collet ti, Pietra nera, Rossi e outros ) e numer o-
sos pesqu isador es nos países socialistas. Os '"austr omarx istas" são
apena s neoka ntiano s: nada nos deram que tenha sobrev ivido a seu
projet o ideoló gico. A obra impor ta~te de Plekha nov e sobr~t udo a
. ..
·
1 Por diversas razões muito profund as, foram de fato, no mais das vezes, militant es
.
e dirigentes políticos que, sem serem filósofos de oficio, soubera m ler e compre ender
O Capital como filósofos. Lênin é o mais extraor dinário exempl o disso: sua com-
preensã o filosófica de O Capital dá às suas análises econôm icas e política s uma pro-
·
fundida de, um rigor e uma acuidad e incomp aráveis. Na imagem que temos de Lênin,
ç, grande dirigent e político oculta não raro o homem que se dedicou ao estudo pacien-
te, minucio so e aprofun dado dás grandes obras de Marx. Não é por ·acaso·q ue deve-
mos aos primeir os anos de atividad e pública de Lênin (os _anos que p_recedera m a Re-
volução de 19.05) -tantos textos agudos dedicad os às questõe s mais espinho sas da teo-
ria de O Capital . Dez anos de. estudo e meditaç ão de O Capital deram-l he essa forma-
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de Labriola mereceriam um estudo especial - assim como, de resto, e


em nível totalmente diverso, as grandes teses de Gramsci sobre a fi-
losofia marxista. Falaremos delas mais adiante. Isso não significa
menosprezar a obra de Rosenthal ( Problemas da Dialética em O Ca-
pital), mas julgá-la em parte marginal à questão, visto que ele apenas
parafraseia a linguagem imediata pela qual Marx designa seu objeto
e suas operações teóricas, sem suspeitar que a própria·linguagem de
Marx possa ser quase sempre tomada na questão. Quanto aos estu-
dos de Iljenkov, Della Volpe, Colletti, Pietranera e outros, trata-se
de obras de filósofos que leram O Capital e lhe propõem diretamen-
te a questão essencial - obras eruditas, rigorsas e profundas, cons-
cientes da relação fundamental que relaciona a filosofia marxista
com a compreensão de O Capital. Mas veremos que essas obras nos
apresentam freqüentement e uma concepção da filosofia marxista
que m.erece discussão. Seja como for, nas reflexões dos teóricos mar-
xistas contemporâne os exprime-se em toda a parte a mesma exigên-
cia: a compreensão aprofundada das conseqüências teóricas de O
Capital carece de uma definição mais rigorosa e mais rica da filoso-
fia marxista. Em outras palavras, e para empregar a terminologia
clássica: o futuro teórico do materialismo histórico depende hoje do
aprofundamen to do materialismo dialético, que por sua vez depen-
de de um estudo crítico rigoroso de O Capital. A história nos apre-
senta essa tarefa imensa. Gostaríamos, na medida dos nossos meios,
por mais modestos que sejam, de assumir nossa parcela nessa tarefa.
Retorno à tese que tentarei.expor e ilustrar. Ter-se-á compreen-
dido que essa tese não é somente epistemológic a, que interesse só a
filósofos, propondo-se a questão da diferença que separa Marx dos
economistas clássicos: é também uma tese que pode interessar aos eco-
nomistas e até aos historiadores - e, naturalmente, por conse-
guinte, aos militantes políticos - ·em suma, a todos os leitores de O
Capital. Ao colocar a questão do objeto de O Capital, essa tese refe-
re-se diretamente ao fundament'o das análises econômicas e históri-
c~s contidas em seu texto: ela deveria portanto poder solucionar cer-
tas dificuldades de leitura, que têm sido tradicionalme nte opostas a
Marx! como t~ntas objeções peremptórias, por seus adversários. A
questa? do obJeto de O Capital não é, pois, apenas filoséfica . Se o
que foi afirmado da relação da leitura científica tiver fundamento, a

·
· a prod'1g1osa · do d·.m- ·
çào teórica incomparável
. , que prod uz1u compreensão política
_
d
gente o movimento op á · . .
as ob ô . er no russo e mternac1onal. É também por essas razoes que
ras econ m1cas e políticas de L.enm - apenas as obras escritas mas tam bem
· ( nao · a
obra h · t • -
marv,·,.1,sa ~rica) ~ossuem tal valor teórico e filosófico: pode-se estudar 'nelas a filosofia
•·
- estado " prát'ico" , a 1losotia marxista que se tornou poht1ca,
ti
e d '. no
"'m uçao
ação·• ·•anát,·se
·
• · • uma mcomparávelfor • · e fil
- teonca •

fica tramro,ma"a ,.m políticas
ec1soes • · Lenm. maçao I oso-
•'J• u, "' poli1 1ca.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 13

elucidação da diferença específica do objeto de O Capital pode for-


necer os meios de uma compreensão melhor de O Capital em seu
conteúdo econômico e até histórico.
Termino aqui esta advertência e concluo:.se substituí o projeto
inicial dessa dissertação, que devia referir-se à relação de Marx com
sua obra, por um segundo projeto referente ao objeto próprio de O
Capi.tal, tal se deu por uma razão necessária. Com efeito, para com-
preender em toda a sua profundidade as observações em que Marx
exprime a relação com a sua obra, seria preciso ir, além do sentido
literal, até o ponto essencial, presente em todas essas observações,
em todos os conceitos que implicam essa relação - até o ponto es-
sencial da diferença específica do objeto de O Capital, ponto ao mes-
mo tempo visível e oculto, presente e ausente, ponto ausente per
motivos que têm a ver com a própria natureza de sua presença, têm
a ver com a originalidade· perturbadora da descoberta revolucioná-
r~a de Marx. Que em certos casos essas razões possam ser, à primei-
ra vista, como que invisíveis, deve-se sem dúvida, em última análise,
a que são, como toda criação original radical, razões que ofuscam.
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II. Marx e suas Descobertas

Procedo por uma leitura imediata, e para esse fim cedo a pala-
vra a Marx.
Em carta a Engels, de 24 de agosto ~e 1867, escreve ele:
O que há de melhor no meu livro é:
1) {e é nisso que repousa toda-~ compreensão dos fatos) a ênfase desde o
primeiro capítulo, no duplo aspecto do trabalh o, ·segundo ele se exprima
cm valor de uso ou cm valor de troca; 2) a análise da mais-valia, indepen-
dentemente de suas formas particulares, tais como lucro, impost o, renda
fundiá'na, etc. E sobretudo no segundo volume que iSM> aparecerá. t uma
"misce lânea" a análise das formas particulares na economia clássica, que
as confunde constantemente com a forma geral.

Nas Notas sobre Wagner, que datam de 1883, no fim de sua vi-
da, Marx escreve, falando de Wagner (O Capital, Ili, 248):
.. . o vir obscurw [w agnet) não percebeu:
q~. já na análise da mercadoria, não me atenho às duas formas sob
as quais ela ie apresenta, mas que contin uo imediatemente dizendo: que
nessa dualida de da mercadoria reflete-se o duplo caráter do trabalh o, do
qual ela ~ produt o,.a saber: o trabalh o útil, isto é, os modos concretos de
trabalh o que criam valores de 1110, e o trabalh o abstrat o, trabalh o como
dispên dio da força de trabalh o, seja qual for _o modo .. útil" pelo qual eta .
é despen dida (é sobre o que repous a mais tarde a exposi ção sobre o pro-
cesso de produçãó); · ··
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e depois-que no desenvolvimento da forma valor da mercadoria e em


última análise, de sua forma-dinheiro, portanto do dinheiro, o vaio~ de
uma mercadoria se exprime no valor de uso, isto é, na forma riatural da
outra mercadoria; ·
finalme,ite, que a mais-valia por sua vez se deduz de um valor de uso
específico da força de trabalho, pertencente exclusivamente a esta etc.
e q_ue, po~ ~onseguinte, para mim o valor de uso desempenha urri pa-
pel muito mais importante do que na antiga economia, mas ele é sempre
tomado em consideração (N. 8. !) só quando essa consideração decorre da
análise de dada formação econômica, e não de uma lucubração sobre os
termos ou noções "valor de uso" e "valor".

Cito os textos como protocolos em que são expressamente


apontados por Marx os conceitos fundamentais que regem toda a
sua análise. Nesses textos, Marx indica portanto as diferenças que o
separam de seus predecessores. Ele nos oferece também a diferença
específica de seu objeto - mas, notemo-lo bem, menos sob a forma
do conceito de seu objeto do que sob a forma de conceitos que sir-
vam à análise desse objeto.
Essas passagens longe estão de ser as únicas em que Marx
ánuncia as suas descobertas. Prosseguindo, a leitura de O Capital
aponta-nos desêobertas de grande alcance: por exemplo, a gênese da
moeda, que toda a Economia clássica foi incapaz de pensar; a com-
posição orgânica do capital ( c + v ) ausente em Smith e Ricardo; a
lei geral da acumulação capitalista; a lei tendencial da baixa da taxa
de lucro; a teoria da renda fundiária etc. Não enumero essas desco-
bertas, as quais, sempre cada vez mais tornam compreensíveis fatos
econômicos e práticas que os economistas clássicos ou deixaram
passar em silêncio ou evitaram artificiosamente por serem incom-
patíveis com as suas premissas. Essas descobertas de pormenor de
fato não passam de conseqüência, próxima ou distante, dos novos
conceitos fundamentais que Marx identificou em sua obra como
descobertas mestras. Examinemo-las.
A redução das diferentes formas de lucro, renda e juro à mais-
valia é em si uma descoberta secundária à mais-valia. As descober-
tas básicas referem-se pois a:

1) o par valor/valor de uso; a recorrência desse a outro par:


trabalho abstrato /trabalho concreto; a importância particularíssi-
ma que Marx, contrariamen te à economia clássica, dá ao valor de
uso e ao seu correlato, o trabalho concreto; a referência aos pontos
estratégicos onde valor de uso e trabalho concreto desempenham
papel decisivo: as distinções de capital constante e capital variável
por um lado, e por outro dos dois setores da produção (Setor I, pro-
dução dos meios de produção; Setor II, produção dos meios de con-
sumo).
16 1 ER "O <'A PI TA I ..

2) a m a is-vali a

Em resum o: os conce itos que t ruzcm as descob ertas funda men-


tais d e M a rx sã o : valor e valor de u.,·o: trabalho abstra to e trabalho
concre to; mais-valia.
Isso é que Marx nos diz. E não temos a parent ement e razão al-
g uma pa ra duvid ar do que ele diz. Realm ente, ao ler O Capital, po-
d e mo s demo nstrar que suas aná lises econô micas repou sam de fato.
em última instân cia, nesses conce itos fundam entais . Podem o-lo,
mas sob condiç ão de uma leitura ate nta. Contu do, essa demon stra-
ção n ã o é fácil: ~xige grand e esforç o de rigor. Sobre tudo, para que
seja feit a e se veja claro na própri a cla reza que ela produ z, ela impli-
ca. t! desde o princí pio, algo que está presen te nas descob ertas decla-
radas de Marx - mas presen te nelas na forma de uma estran ha au-
si:ncta .
A título de indica ção. para fazer presse ntir em negati vo essa au-
sência . conten temo- nos com uma simple s observ ação: os conce itos
aos quais Marx relacio na expres samen te sua descob erta, e que sus-
tentam todas as suas anális es econô micas , os concei tos de valor e
m a is-va lia. são justam ente os conce itos sobre os quais mais se encar-
niçou toda a critica feita a Marx pelos econo mistas moder nos. Yale
ter em conta os termo s em que esses conce itos foram atacad os pelos
econo mistas não-m arxist as. Censu rou-se a Marx o fato de que esses
concei tos. na medid a em que aludin do à realid ade econô mica, no
fundo perma neciam conce itos não-ec onômi cos, mas .. filosóf icos" e
"meta físico s" . Até mesm o um econo mista tão esclar ecido como C.
Schmi dt, que teve o mérito , logo depois de public ado o livro II de O
Capita l. de deduz ir dele a lei da baixa tenden cial da taxa de lucro,
que só viria a ser expos ta no contex to do livro III - até mesm o C .
Schm idt censu ra à lei do valor de Marx ser ela uma "ficçã o teóric a",
necess ária sem dúvida , mas ainda assim pura ficção . Não cito essas
crítica s por prazer . mas porqu e recaem sobre a própri a base das
anális es econô micas de Marx, sobre os conce itos de valor e mais-
valia. recusa dos como conce itos "não- opera tórios", design ando
realid ades não-e conôm icas porqu e não-m ensurá veis, não-
quanti ficáve is. Certo é que essa censu ra denun cia à sua manei ra a
conce pção que os econo mistas em questã o fazem de seu própri o ob-
jeto e dos conce itos que ele autori za: se a crítica indica o ponto onde
a oposiç ão deles a Marx atinge a mais alta sensib ilidad e, nem por
isso eles nos dão o própr io objeto de Marx em sua censur a, dado
que o tratam como objeto "meta físico " . Indico no entant o esse pon-
to como a própri a questã o do mal-entendido, em que os econo mistas
comet em um contra -senso quant o às anális es de Marx . Ora, esse
mal-e ntendi do de leitura só é possív el por um equívo co sobre o obje-
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to própr io de Marx . que consi ste nos econo mista s em ler o seu pró-
prio objet o proje tado em Marx , em vez de ler em Marx um outro
objeto que . não o deles, mas totalm ente diferente. Esse ponto do
m?l-entf!nd,1~0 que os econo mista s decla ram ser o da fragilidade e
da falha te_onca de Marx ê,.pel o contr ário, o ponto de sua maio r for-
ça ! Ê precis amen te o que o distingue radica lment e de seus crític os e
també m. ao que parec e, de algun s de seus partid ários mais próxi -
mos.
Como prova da exten são do mal-e ntend ido, cito a carta de En-
gels a C. Schm idt, datad a de 12 de março de 1895, onde pudem os
colher, há pouco , um eco da objeç ão ,d e Schm idt. Engels lhe respo n-
de assim :*
Sua carta me dá uma noção, creio, sobre a maneir a pela qual V. S• se
lança por um atalho a propós ito da taxa de lucro. Verifico nela a mesma
forma de perder- se em pormen ores, o que atribuo ao método eclético de
filosof ar que se introdu ziu desde 1848 nas universidades alemãs , que per-
de toda a perspec tiva geral e que não raro acaba em argume ntaçõe s esté-
reis e sem objetiv o sobre questões de pormen or. Ora, parece -me que, de
todos os clássicos, foi a Kant que V. S• mais se dedico u; e Kant, devido
ao estado da filosofia alemã em seu tempo, e à sua oposiç ão ao leibnizia-
nismo pedant e de Wolf, foi mais ou menos obriga do a fazer conces sões
aparen tes e formai s a essa argume ntação à maneir a de Wolf. Assim en-
tendo a tendên cia de V. S• que se manife sta também na digress ão sobre a
lei do valor, mergul hando nos pormen ores, a ponto de não atentar , ao
que me parece, para as interconexões de conjun to, rebaixa ndo a lei do
valor a uma ficção, ficção necessária, assim como Kant faz de Deus um
postula do da razão prática .
As objeçõ es que V. S• faz contra a lei do valor atingem todos os con-
ceitos.q uando os conside~amos do ponto de vista da realidade. A iden-
tidade do pensam ento com o ser. para empreg ar a termin ologia hegelia-
na, coincid e totalm ente com o seu exemp lo do círculo e do polígo no.
Ambos , o concei to de uma coisa e sua realida de, são paralel os·com o duas
assínto tas, aproxi mando -se consta ntemen te sem jamais encont rar-se.
Essa diferença que as separa é a mesma diferença que impede que o co.ncei-
to do ser seja realidade direta e imediatamente, e que a realidade não seja
imediatamente o seu próprio conceito. Porém, mesmo quando um concei-
to possua a natureza essencial dos conceitos, e por isso não possa coincidir
prima facie diretam ente com a realidade, da qual deve ser primei ro abs-
traido, é, não obstan te, algo mais que uma ficção, a menos que V. S• con-
sidere .como ficção todos os resulta dos do pensam ento porque a realida-
de não corresp onde a esses resulta dos a não ser por um longo rodeio e
mesmo assim só se aproxi ma deles de maneir a assintó tica.

Essa respo sta estarr ecedo ra (sob a banal idade de duas evidên-
cias) const itui de algum modo o comentár~o de boa vonta de do mal-

Acresc ento o ·períod o inicial da carta e o imedia tament e anterio r à alusão


a Wolf.

(N . do T.)
18 LER "O CAPITAL"

entendido, que dará força aos adversários de Marx para comentar


de má vontade. Engels sai-se bem da objeção ..operatória" de C.
Schmidt mediante uma teoria do conhecimento sob medida - que
ele vai procurar e fundamentar nas aproximações da abstração, ina-
dequação do conceito, enquanto conceito, a seu objeto! Trata-se de
uma resposta marginal à questão: em Marx de fato o conceito da lei
do valor é cabalmente adequado a seu objeto, dado que é o conceito
dos limites e suas variações, e portanto o conceito adequado de seu
campo de inadequação - e de modo nenhum conceito inadequado
em virtude de um pecado original que atingisse todos os conceitos
postos no mundo pela abstração humana. Portanto, Engels mencio-
na como debilidade nativa do conceito, com base numa teoria empi-
rista do conhecimento, o que constitui justamente a força teórica do
conceito adequado de Marx! Essa menção só é possível na cumplici-
dade dessa teoria ideológica do conhecimento, ideológica não ape-
nas em seu conteúdo (o empirismo), mas também em seu emprego,
dado que feita para responder, entre outros, a esse mal-entendido
teórico preciso. Não apenas a teoria de O Capital corre o risco de ser
prejudicada (a tese de Engels, no Prefácio do livro III: a lei do valor
é economicamente válida udo início do escambo até o século XV de
nossa era" - é um exemplo perturbador do que afirmo). E ainda
mais: a teoria filosófica marxista fica tisnada, e com que tisnadura!
A mesma da ideologia empirista do conhecimento, que serve de nor-
ma teórica silenciosa tanto à objeção de Schmidt como à resposta de
Engels. Se me detive nesta última resposta é para deixar bem claro
que o mal-entendido presente pode denunciar não apenas aversão
política ou ideológica, mas também os efeitos de uma cegueira teóri-
ca, na qual corremos o risco de cair se não .nos dermos ao trabalho
de propor a Marx a questão do seu objeto.
O OBJETO DE " O CAPITA L" 19

III. Os Méritos da Economia Clássica

Tomemos, pois, as coisas éxatamente como são declaradas, e


indaguemos depois que idéia Marx faz de si mesmo, não ·s ó direta-
mente, quando examina em sua obra aquilo que o di~tingue dos eco-
nomistas clássicos, como também indiretamente, quando se compa-
ra, isto· é, baliza neles, a presença ou·o pressentimento de sua desco-
berta na não-descoberta deles, e pensa, pois, o seu próprio vis-
lumbre na cegueira de sua pré-história mais próxima.
Não posso entrar aqui em todos os pormenores, que no entanto
merecem um estudo rigoroso e completo. Tenho em vista apenas al-
guns elementos que serão como índices pertine!1tes do problema que
nos ocupa.
Marx avalia a sua dívida par_a com os predecessores e aprecia o
saldo positivo de seu pensamento (em relaç.ã o à sua própria desco-
berta) sob duas formas distintas que aparecem muito nitidamente
em Teorias sobre a Mais-Valia (Histoire des Doctrines Economiques):
Por um lado, presta homenagem e atribui mérito a este ou aque-
le prede~essor por ter isolado e analisado certo conceito importante,
mesmo quando a expre·ssão que enunci a C$Se conceito permaneç~
ainda presa na ar·madilha de uma confusão ou de·uma ambigilidade
de linguagem. Ele baliza desse modo Q conceito de valor em .Petty; o
conceito do mais-valia em Steuart, .nos fisio.cratas~ etc. Obtém então
20 LER "O CAPITAL'"

o saldo das aquisi ções conce ptuais isolad as, extrai ndo-as no mais
das vezes da confus ão de uma termin ologia ainda inadeq uada.
Por outro lado, dá ênfase a outro mérito , que não mais consid e-
ra esta ou aquela aquisi ção de porme nor (certo concei to), mas o
mo do de tratam ento .. científ ico" da econo mia polític a. Sob esse as-
pecto, duas caract erístic as lhe parece m discrim inante s. A prime ira,
num espírit o muito clássic o, que se pode dizer galilea no, refere-se à
atitud e científ ica em si: o métod o da coloca ção entre parênt eses dos
aspect os sensíveis, isto é, no domín io da Econo mia polític a, de to-
dos os fenôm enos visíveis e dos conce itos empír ico-pr áticos produ -
zidos pelo mundo econô mico (renda , juro, lucro, etc.); em suma, to-
das essas catego rias econô micas da .. vida quotid iana" , sobre a qual
Marx declar a, no fim de O Capital, que é o equiva lente de uma ·•reli-
gião". Essa coloca ção entre parênt eses tem por efeito o desvel amen-
to da essênc ia oculta dos fenôm enos, de sua interio ridade essencial.
Para Marx, a ciênci a da econo mia depen de, como qualqu er outra .
ciênci a, dessa reduçã o do fenôm eno à essênc ia ou,' como ele mesm o
o declar a - numa compa ração explíc ita com a astron omia -, redu-
ção do .. movim ento aparen te ao movim ento real". Todos os econo -
mistas que fizeram uma descob erta científ ica, mesm o de porme nor,
passar am por essa reduçã o . No entant o, essa reduçã o parcia l não
basta para consti tuir a ciênci a. t então que ocorre a segun da carac-
terístic a. É ciênci a uma teoria sistem ática, que abranj a a totalid ade
de seu objeto , e apreen da o .. víncul o interio r" que põe em conex ão
as essênc ias (reduz idas) de todos os fenôm enos econô micos . Esse é o
grand e mérito dos fisiocr atas, e destac adame nte acima de todos
Quesn ay, de ter. mesm o sob forma parcia l (dado que ele se limita va
à produ ção agríco la) relacio nado fenôm enos tão divers os como sa-
lário. lucro. renda, lucro comer cial. etc. a uma essênc ia -origin ária ú-
nica. a mais-v alia produ zida no setor da agricu ltura. E mérito de
Adam Smith o ter esboça do essa sistem ática liberta ndo-a do pressu -
posto agríco la dos fisiocr atas - mas o seu demér ito está em só o ter
feito pela metad e. A fragili dade imperd oável de Smith é de fato o ter
preten dido pensa r sob uma origem única objeto s de nature za dife-
rente: ao · mesm o tempo verdad eiras .. essênc ias" (reduz idas), mas
també m fenôm enos brutos não-re duzido s à essênc ia: a sua teoria en-
tão é apena s a reuniã o sem necess idade de duas doutri nas: a exotér i-
ca (em que são unidos fenôm enos brutos não reduzi dos) e a esotéri-
ca, a única cientif ica (em que estão unidas as essênc ias). Essa singel a
observ ação de Marx é prenhe de sentid o: ela implic a não ser só a
forma de sistem aticida de o que consti tui a ciênci a, mas a forma de
sistem aticida de só das "essên cias'' (conce itos teórico s), e não a siste-
matici dade dos fenôm enos brutos (eleme ntos do real) relacio nados
entre si, ou então a sislem aticida de mista das "essên cias" e dos fenô-
O OBJETO DE "O CAPITAL" 21

menos brutos. Seja como for, é mérito de Ricardo· o ter pensado e


superado essa contradição entre as duas •·doutrinas" de Smith, e o
ter concebido verdadeiramente a Economia Política sob a forma da
científicidade, isto é, como o sistema unificado dos conceitos que
_enuncja a essência i_n terna de seu objeto:
Chega enfim Ricardo ... O fundamento, o ponto de partida da fisio-
logia do sistema burguês, da compreensão de -seu organismo íntimo e de
seu processo vital, é a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Ri-
cardo parte daí, e obriga a ciência a abandonar a velha rotina, a tomar
consciência de até que ponto as demais categorias que ela desenvolveu ou
representou - as reiações de produção e circulação - correspondem a esse
fundamento, a esse ponto de partida, ou até que ponto a contradizem;
até que ponto a ciência, que nada mais faz do que reproduzir os fenôme-
nos do processo e esses próprios fenômenos, corresponde ao fundamento
sobre o qual repousa a conexão íntima, a .v erdadeira fisiologia da socie-
dade burguesa, ou o que constitui seu ponto de partida; numa palavra, o
que vem a ser essa contradição entre o movimento aparente e o movi-
mento real do sistema. Essa é para a ciência a grande significação históri-
ca de Ricardo.
(Histoire des Doctrines Economiques, Ili, 8-9.)

Redução do fenômeno à essência (do dado a seu conceito), uni-


dade interna da essência (sistematicidade dos conceitos unificados
sob seu conceito), eis, pois, as duas determinações pásitivas que
constituem, ao ver de Marx, as condições do caráter científico de um
resultado isolado, ou de uma teoria geral. Notaremos no entanto
aqui que essas determinações exprimem, a propósito da Economia
Política, as condições gerais da racionalidade científica existente (do
Teórico existente): Marx apenas as vai buscar no estado das ciências
existentes para introduzi-las na Economia Política como normas
formais da racionalidade científica em geral. Quando julga os fisio-
cratas, Smith ou Ricardo, ele os submete a essas normas formais
que decidem se eles . as respeitaram ou omitiram, sem ·prejulgar
quanto ao conteúdo de seu objeto.
No entanto, não nos limitamos a puros julgamentos de forma.
O conteúdo de que essas formas fazem abstração, acaso não foi an-
tes designado por Marx nos próprios economistas? Os conceitos que
Marx coloca na base de sua própria teoria, o valor e a mais-valia,
acaso não figuram já em pessoa nos títulos teóricos dos economistas
clássicos, assim como a redução fenômeno-essência e a sistematici-
da_de teórica? Eis-nos, porém, diante de uma situação bem estr,a nha.
Tudo se apresenta como se, quanto ao essencial - e é precis~ment_e .
assim que os críticos modernos de Marx julgaram o seu empreendi-
mento - Marx fosse apenas o herdeiro da Economia clássica, e her-
deiro muito bem aquinhoado, pois recebe dos antepassados os con-
ceitos-chave. (o conteúdo de seu objeto) e o método de redu.ç ão,
22 LER "O CAPIT AL"

bem como o modelo da sistematicidade intern a (a forma científica


de seu objeto). Qual pode ser então a originalidade de Marx, o seu
mérito histórico? Simplesmente o ter conti nuado e concluído um
trabal ho já quase acabado: preen chido as lacunas, soluc ionad o os
probl emas em suspenso, aume ntado , em suma , o patrim ônio dos
clássicos, mas na base de seus própr ios princípios, e porta nto de sua
problemática, aceitando não apena s o métod o e a teoria deles, más
també m, com métod o e teoria , a própr ia defiriição de seu objeto. A
resposta à questão: .. qual é o objet o de Marx , qual o objeto de O
Capital?" estaria já inscrita, com alguns matizes e pouco mais, po-
rém em seu própr io princípio, em Smith e sobre tudo em Ricardo. O
grand e tecido teórico da Econ omia Política já estava pront o, com
apena s alguns fios corrid os e algumas falhas aqui e ali. Marx teria
conse rtado os fios, melho rado a trama , dado acaba mento em alguns
ponto s, em suma , teria concluído o traba lho para o 'torna r irre-
preensível. Sendo assim, a possibilidade de um mal-e ntend ido de lei-
tura sobre O Capital desaparece: o objeto de Marx era o mesmo de
Ricardo. A história da Econo mia Política, de Ricar do a Marx , tor-
na-se então uma bela contin uidad e sem ruptu ra, que não mais cons-
titui probl ema. Se mal-e ntend ido houve r, estará em outra parte , em
Ricar do e Marx - não mais entre Ricar do e Marx , porém entre toda·
a Econo mia clássica do valor do traba lho de que Marx é apena s o
brilha nte "conc luido r", e a econo mia política mode rna margi nalist a.
e neom argin alista que repou sa, por sua vez, numa probl emáti ca in-
teiram ente distin ta.
Na realidade, quand o lemos certos come ntário s de Gram sci (a
filosofia marxi sta é Ricar do generalizado), as análises de Rosen thal,
ou mesmo as observações em.hora críticas de Della Volpe e seus
discípulos, ficamos impre ssion ados ao verificar que não saímo s des-
sa continuidade de objeto. Com exceção da censu ra que Marx dirige a
Ricar do por ter, ao despr ezar a comp lexida de das "med iaçõe s",
posto direta mente em relaçã o suas abstra ções com as realid ades
empíricas; a não ser a censu ra de abstra ção espec ulativ a ("hip ostiza -
ção", na linguagem de Della Volpe, Colle tti e Pietra nera) oue Marx
dirige a Smith , isto é, em suma , com exceção de algun s passo s em
falso ou de algum a ºinve rsão" no empr ego norm al da abstra ção,
;não se perce be difere nça essencial entre o objet o de Smith e de Ri-
cardo e o objet o de Marx . Essa indife rencia ção de objeto foi regis-
trada na in~rp retaç ão marx ista vulga r sob a forma seguinte: a dife-
rença é só de métod o. O méto do que os econo mista s clássicos apli-
cavam -a seu objeto ·seria a.penas· metafisico, ao passo que o de Marx
era, pelo contr ário, dialético_. Tudo vai depen der então da dialética,
que se conce be como um méto do em si, impo rtado de Hegel, e apli-
cado ~ um objet o em si, já pr~sente em Ricar do. Pelo milag re do Gê-
O OBJETO DE .. O CAPITAL" 23

nio Marx teria apenas celebrado essa união feliz que, como toda fe-
licidade, não tem história. Para nossa infelicidade, sabemos porém
que permanece uma upequenina" dificuldade: a história da "recon-
versão" dessa dialética, que se impõe "recolocar sobre os pés" para
que ela ande afinal na terra firme do· materialismo.
No caso ainda, não evoco as facilidades de uma interpretação
esquemática, que sem dúvida tem títulos: políticos e histór.icos, pelo
prazer de tomar distâncias. Essa hipótese da ·continuidade de objeto
entre a economia clássica e Marx não pertence só aos adversários de·
Marx, nem mesmo a alguns de seus partidários: ela surge silenciosa-
mente, em muitas ocasiões, d<;> próprio discurso explícito de Marx,
ou antes, nasce de certo silêncio de Marx que duplica, despercebido,
o seu próprio .discurso explícito. Em certos momentos, em certos lu-
gares sintomáticos, esse silêncio surge em pessoa no discurso e o
obriga a produzir malgrado seu, em curtos lampejos claros, invisí-
veis ·na luz da demonstração, verdadeiros lapsos teóricos: certa pala-
vra que fica no ar, embora pareça inserida na necessidade do pensa-
mento, certo juízo que fecha irremediavelmente, com uma falsa evi-
dência, o próprio espaço que ele parece abrir diante da razão. Uma
simples leitura literal não vê nos argumentos a não ser a continuida-
de do texto. É preciso uma leitura ..sintomaf' para tornar essas lacu-
nas perceptíveis, e para identificar, sob as palavras enunciadas, o
discurso do silêncio que, emergindo no discurso verbal, provoca
nele esses brancos, que são as folhas do rigor, ou os limites extremos ·
de seu esforço: sua ausência, uma vez atingidos esses limites, no es-
paço que, não obstante, ele abre.
Darei dois exemplos disso: a concepção de Marx das abstrações
que sustentam o processo da prática teórica, e o tipo de censura que
ele dirige aos economistas clássicos.

O capítulo Ili da Introdução de /857 pode ser corretamente to-


mado como o Discurso sobre o Método da nova filosofia fundada
por Marx. É de fato o único texto sistemático de Marx que contém,
sob o título de análise das categorias e do método da economia polí-
tica, 'algo com que fundar uma teo.na·da prática científica·, e portan-
to uma teoria das condições do processo do conhecimento, que
constitui o objeto da filosofia marxista:
A problemática teórica que sustenta esse texto permite distin-
guir corretamente a filosofia marxista de toda ideologia especulativa
ou empirista. O ponto decisivo da tese de Marx diz respeito ao
princípio de distinção do real e do pensamento. Uma coisa é o real e
seus diferentes aspectos: o concreto-real,· o processo do real, a totali-
dade real, etc.; outra coisa é o pensamento do real e seus diferentes as-
24 LER "O CAPITAL"

pectos: o processo de pensamento, a totalidade do pensamento, o


concreto do pensamento, etc.
Este princípio de distinção implica duas teses essenciais: 1) a
tese materialista do primado do real sobre o pensamento, dado que
o pensamento do real pressupõe a existência do real independente de
seu pensamento (o real ..depois como antes subsiste em sua indepen-
dência fora do espírito", p. 165); e 2) a tese materialista da especifici-
dade do pensamento e do processo de pensamento em relação ao
real e ·ao proc·esso real. Essa segunda tese constitui muito particular-
mente objeto da reflexão de Marx no capítulo III da Introdução. O
pensamento do real, a concepção do real, e todas as operações de
pensamento pelas quais o real é pensado e concebido, pertencem à
ordem do pensar, ao elemento do pensamento, que não se pode con-
fundir com a ordem do real, com o elemento do real. .. O todo, tal
como aparece no espírito como totalidade·pensadp, é um produto do
cérebro pensante...' ~ (p. 166); do mesmo modo o concreto-de-
pensamento pertence ao pensar e não ao real. O processo do conhe-
cimento, o trabalho de elaboração ( Verarbeitung) pelo qual o pensa-
mento transforma as intuições e as representações do início em co-
nhecimentos ou concreto-de-pensamento, dão-se inteiramente no
pensamento. _
Não há dúvida alguma de que existe entre o pensamento-do-real.
e esse real uma relação, mas se trata de uma relação de conhecimen-
t'o, 1 uma relação de inadequação ou de adequação de conhecimento,
e não uma relação real (entendamos por isso uma relação ins.c rita
nesse real de que ó pensamento é o conhecimento adequado ou ina-
dequado). Essa relação de conhecimento entre o conhecimento do
.real e o real não é uma relação do real conhecido nessa relação. Essa
distinção ~ntre relação do conhecimento e relação do real é funda-
mental: se não a respeitarmos, caímos infalivelmente ou no idealis-
mo especulativo ou no idealismo empirista. No idealismo especula-
tivo se, como Hegel, confundirmos o pensamento com o real, redu-
zindo o real ao pensamento, ..concebendo o real como o resultado do
pensamento" (p. 165); no-·idealismo empirista, se confundirmos o
pensamento com o real, reduzindo o pensamento do real ao próprio
real. Nos dois casos essa dupla redução consiste em projetar e em
realizar um elemento no outro: em pensar a diferença entre o real e
seu pensamento como diferença ou interior ao próprio pensamento
(idealismo especulativo), ou interior ao próprio real (idealismo em-
pirista).

1
Tomo 1, cap. 1, parágrafos 16 e 18.
O OH.lt:l'O IH·: "O CAPITAi." 25

Essas tese~ colocam naturalmente problemas, ! mas estão impli-


cada.s se~ equivoco n~ texto de Marx. Ora, isso é o que nos interes-
sa._ Exammand? os_ metodos da Economia Política, Marx distingue
d~t s dele~: o primeiro_, ~ue parte ..de uma totalidade viva" ("popula-
ç~o. n~çao. Est~do, vanos Estados"); e o segundo "que parte de no-
roes simples, tais como o trabalho, a divisão do trabalho, o dinheiro. o
ralor. ett'. ". Dois métodos. portanto: um. que parte do real mesmo. o
'outro que parte de abstrações. Qual é o bom desses dois métodos?
.. Parece ser hom método o começar pelo real e pelo concreto ... entre-
tanto. olhando mais de perto, percebemos que isso é um erro". O se-
gundo método, que parte de abstrações simples, para produzir, num ·
.. concreto-de-pensam ento" o conhecimento · do real. "é manifesta-
mente o método científico correto", e é o adotado pela Economia
Política clássica, de Smith e Ricardo. Formalmente, nada há a cen-
surar quanto à nitidez desse enunciado.
Entretanto, esse próprio·enunciado, em sua evidência, contém e
dissimula um silêncio sintomático de Marx. Esse silêncio é inaudível
em todo o desenvolvimento do discurso, que se empenha em mos-
trar que o processo de conhecimento é processo de trabalho e de ela-
boração teórica, e que o concreto-de-pensame nto, ou conhecimento
·do real, é o produto dessa prática teórica. Só se percebe esse silêncio
num ponto preciso, exatamente onde passa despercebido: quando
Marx fala das abstrações iniciais sobre as quais se efetua esse trabalho
de transformação. Que vêm a ser essas abstrações iniciais? Com que
direito Marx aceita nessas abstrações iniciais, e sem as criticar, as ca-
tegorias de que partem Smith e Ricardo, dando assim a entender que
ele pensa na continuidade de seu objeto e, pois, que entre eles e ele não-
se dá nenhuma ruptura de objeto? Essas duas questões vêm a ser uma
só e mesma questão, ·precisamente aquela a que Marx não responde,
simplesmente porque não a.formula. Eis o lugar do seu silêncio, e esse
lugar, vazio, corre o perigo de ser ocupado pelo discµrso .. natural"
da ideologia, sob a capa do empirismo: .. Os economistas do século
X V/// começam sempre por uma totalidade viva: população, nação,
Estado, vários Estados,· mas acabam sempre por extrair, mediante
análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como di-
visão do trabalho, dinheiro, valor, etc. Uma vez que esse_s fatores te-
nham sido mais ou menos determinados e abstraídos, começam os sis-
temas econômicos que partem das noções simples, tais como traba-
lho ... " ( 165). Silêncio sobre a natureza dessa "análise", dessa ·•abs-

Cf. tomo 1. cap. 1. parágrafos 16, 17 e 18.


26 LER O CAPITAL

tração" e dessa "detorminução*"- silêncio, ou antes relacionamento


dessas "abstruçdes" com o real de que são abstraidas, com "a intui-
çåo e a representaçâo" do real, que parecem então, em sua pureza, a
matéria bruta dessas abstraçdes sem que o estatuto dessa matéria
(bruta ou prima?) seja enunciado. No bojo desse silêncio pode-se co-
Iher naturalmente a ideologia de uma relação de
correspondencia
realentre o real e sua intuiçao e representação, ca presença de uma
abstração"" que opera sobre o real para extrair dele cssas "relações
gerais abstratas", isto é, uma ideologia empirista da abstraço.
Pode-se formular a questão de outra maneira, e verifica-se sempre a
mesma ausência: em que essas "relaçðes gerais abstratas"" podem ser
consideradas "determinantes"? Toda abstração como essa será o
conceito cientifico de seu objeto?' Não haverá abstraçðes
ideológicas
e abstraçðes cientificas, boas e más abstraçðes? Silêncio. Podemos
formular a mesma questão também de outro modo: essas famosas
categorias. abstratas dos economistas clássicos, gssas abstrações de
que devemos partir para produzir conhecimentos, essas abstrações
não constituem então problema para Marx. Resultam, no seu modo
de ver, de um processo de abstração prévia, sobre o qual ele silencia:
as categorias abstratas poderão então "réfletir" categorias reais, o
abstrato real que habita os fenômenos empíricos do mundo econó-
mico como a abstração da sua individualidade. Ainda é possível ou-
tra formulação da
questão: as categorias abstratas do inicio (as dos
economistas) lá estão afinal, e produziram conhecimentos "concre-
tos", mas não se vë em que sejam transformadas; parece mesmo que
não tinham de se transformar, porque existiam já, desde o início,
numa forma adequada a seu objeto, tal como o "concreto-de-
pensamento" - que o trabalho cientifico irá produzir - possa apare-
cer como sua concretização pura e simples, pura e simples autocom-
plicação,. pura e simples autocomposição tida implicitamente por
sua autoconcretização, E desse modo que um silêncio pode esten-
der-se num discurso explícito ou implícito. Toda a descrição
que Marx nos da continua formal, dado que não questiona a nature-
teórica
za dessas abstraçðes iniciais, nem o problema da
adequação delas ao
objeto, em suma, o objeto a que elas se referem; dado que, correlata-
mente, ele não questiona a transtormação dessas categorias abstra-

O preço desse silêncio: leia-se o


capítulo VIl do livro de Rosenthal, Os Problemas
da Dialéica em O Capital, e sobretudo as páginas dedicadas a cvitar o problema da
diferença entre a "boa" e a "má" abstração (pp. 304-305; 325-327). Imagine-se a sorte
na filosofia marxista de um termo tão cquivoco como "generalizaçäo" pelo qual é
pensada (isto é, de fato, não-pensada) a natureza da abstração cientifica. O preço des
se silêncio despercebido é a tentação
empirista.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 27

tas no decorrer da pratica teörica, e portanto a natureza do objeto


implicado nessas transformações. Não se trata de censurar Marx
não era obrigado a tudo dizer, num texto, de resto, iné-
por isso; ele
dito, e, seja em que situação for, não se pode exigir de ninguém gue
leito-
diga tudo de uma só vez. Pode-se, entretanto, censurar a seus
res muito apressados o não terem percebido esse silêncio ' e o terem
caído no empirismo. E situando com precisão o lugar do silêncio de
Marx que podemos colocar a questo que essesilêncio contémeen-
cobre: precisamente a questão da natureza diferencial das abstrações
sobre as quais trabalha o pensamento cientifico para produzir, ao
cabo do seu processo de trabalho, abstrações novas, diferentes das
primeiras, e radicalmente novas, no caso de um corte epistemológi-
co como o que separa Marx dos economistas clássicos.
necessidade de
Se, anteriormente, tentei pôr em evidência a
essa dando nomes diferentes às diferentes abstra-
diferença,
pensar
da prática teórica, e distinguindo cui-
ções que ocorrem no processo
dadosamente as Generalidades I (abstrações iniciais) das Generali-
dúvida
dades Il (produtos do processo de conhecimento),
sem

acrescentei algo ao discurso de Marx: no entanto, sob outro aspecto,


nada mais fiz do que restabelecer, e portanto manter o seu próprio
silêncio. Percebi esse si-
discurso, sem consentir na tentação do seu
e a ação
lêncio como a falha possivel de um discurso sob a pressão

um discurso
sobre sentido desse silêncio. Ele faz parte de
o
Que não haja equivoco da filosofia marxista, da
os princípios
determinado. que não tinha por objeto expor de méto-
conhecimentos, mas determinar as regras
teoria da história da produção de
da Economia Política. Marx situava-se, pois, no
do, indispensáveis para o tratamento da sua produção. Essa a ra-
se propor o problema
seio de um saber já constituído, sem de Smith e
desse texto, tratar as "boas abstrações"
zão pela qual ele pode, nos limites extraordi-
as condições
certo real, e silenciar sobre
Ricardo como correspondendo a Política clássica:
o nascimento da
Economia
nariamente complexas que provocaram ser produzido o
de saber por que processo pôde
pode deixar em suspenso a questão Economia Politica clássica se pô-
da problemática clássica em que o objeto da
campo certo domínio sobre o
em seu conhecimento,
de constituir como objeto que dava,
E uma exigëncia para nós que esse texto
real, embora ainda dominado pela ideologia. constituir essa teoria da
limiar dessa exigência de
metodológico nos leve ao próprio mas é também
conhecimentos quecoincide com a filosofia marxista;
produção dos atentos ao mesmotempo ao
devemos a Marx desde que estejamos
uma exigência que texto (seu silêncio
nesse ponto preciso)e ao alcance filosó-

Incabamento teórico desse ela nos obriga a pensar: a ar-


história (em particular ao que
Jico de sua nova teoria da científica com as demais práticas, e a
his-
da prática
ticulação da prática ideológica e tratar esse silêncio
lória orgânica e diferencial dessas práticas). Em suma, podemos
como um silêncio
evidente por si, porque
tomando-o
nesse texto de dois modos: ou tratando-o como um
conteúdo a teoria da abstração
impirista dominante; ou
tem por extremo a que Marx
conduz seu pensamen-
imite e problema. Como limite: o ponto da filosofia empiris-
to; mas então, esse limite, longe
de nos lançar de novo no campo
28 LER "O CAPITAL"

recalcantes de outro discurso que, graças a esse


um
recalque, assume
o lugar do primeiro, e fala em seu silèncio: o discurso empirista.
Nada mais fiz do que obrigar esse siléncio a falar no primeiro discur
so, dissipando o segundo.
Simples pormenor, dir-se-á. Certamente
mas é desse
gènero de pormenores que dependem, quando o rigor
falha neles, os discursos tagarelas e de
grandes conseqüëncias, que
arrastam Marx inteiro para a própria ideologia que ele combate e
recusa. Veremos a seguir exemplos pelos quais o
um minúsculo silêncio torna-se título de
não-pensamento de
discursos não-pensados,
isto é, de discursos ideológicos.

ta,abre-nos um campo novo. Como problema: qual é


campo novo? Temos a
precisamente a natureza dess
noso dispor agora sufícientes estudos de história do saber.
para suspeitar que temos de procurar em vias diferentes dos
mo. Mas nessa
itinerários do empiris-
procura decisiva, o próprio Marx nos dá princípios fundamentais
estruturação e a articulação das diferentes práticas). E através disso (a
que se percebe a
diferença existente entre o tratamento
ideológico de um silêncio e de um vazio teóri-
co, e seu tratamento cientifico: o
primeiro tratamento coloca-nos diante de uma clau-
sura ideológica; o
segundo diante de uma abertura científica. Com isso
imediatamente um exemplo rigoroso da ameaça ideológica podemos ver
que pesa sobre todo tra-
balho cientifico: a ideologia não apenas
espreita a ciência a cada ponto onde falha o
seu rigor como também no
ponto extremo em que uma pesquisa atual atinge seus li-
mites. Nisso. precisamente, éque
pode intervir, no
atividade filosófica: como a vigilância teórica que próprio a
nível da vida da ciência, a
tra a clausura da
protege abertura da ciência con-
ideologia, sob a condição, é claro, de não se contentar com o falar
de abertura e fechamento em geral, mas das
estruturas típicas, historicamente determi
nadas, dessa abertura e desse fechamento. Em Materialismo
não cessa de lembrar essa existência
e
Empirocriticismo, Lênin
absolutamente fundamental, que constitui a fun-
ção especifica da filosofia marxista.
O OBJETo DE "O CAPITAL"
29

IV. Os Defeitos da Economia Clássica.


Esboço do Conceito de Tempo Histórico

Passo ao meu segundo exemplo, pelo qual podemos avaliaro


problema, mas de outro modo: examinando ogênero de censura que
Marx dirigie aos economistas clássicos. Ele Ihes faz muitos reparos
de pormenor, e uma censura de fundo.

Dos reparos de pormenor, mencionarei um apenas, que tange a


uma questão de terminologia. Ele questiona esse fato, aparentemen-
te insignificante, de que Smith e Ricardo analisam sempre a "mais-
valia" sob a forma do lucro, da renda e do juro, e de que ela jamais é
chamada por seu nome, mas sempre disfarçada sob outros; que a
mais-valia não é concebida em sua ""generalidade", distinta de suas
"formas de existência": lucro, renda e juro. O aspecto dessa censura
é interessante: Marx dá a impressão de considerar a confusão da
mais-valia com suas formas de existëncia como Simples insuficiència

de linguagem, fácil de retificar. E, de fato, quando l Smith e Ricar-


do, restabelece a expressão ausente sob as palavras que a disfarçam;
ele as traduz, corrigindo a omissão deles, dizendo justamente o que
análises
Silenciam, lendo-lhes as análises da renda e edo lucro como
da mais-valia geral, que no entanto jamais designada como a es-
sencia interna da renda e do lucro. Ora, sabemos que o conceito de
mais-valia é, conforme o próprio Marx o confessa, um dos dois con
30 LER "O CAPITAL"

ceitos-chave da sua teoria, um dos conceitos indicativos da diferen-


ça específica que o separa de Smith e Ricardo, sob o aspecto da
problemática e do objeto. De fato, Marx trata a ausência de um con-
ceito como se estivesse em causa a ausência de uma palavra e concei-
to que não é um qualquer, mas que, como veremos, é impossível tra-
tar como conceito em todo o rigor do termo sem suscitar a questão
da problemática que pode sustentá-lo, isto é, a diferença de proble-
matica, o corte que separa Marx da Economia clássica. No caso ain-
da, quando articula essa censura, Marx não pensa literalmente o que
ele faz visto que reduz à omissão de uma palavra a ausência de um
conceito orgånico que "precipita" (no sentido quimico do termo) a
revolução da problemática. Essa omissão de Marx, caso não seja re
dimida, o reduz ao nível de seus predecessores, e eis-nos de novo na
continuidade do objeto. Voltaremos ao assunto.

A censura de fundo que Marx, desde Miséria da Filosofia até O


Capital, dirige a toda a Economia clássica é ter ela uma concepção
a-histórica, eternitária, fixista e abstrata, das categorias econômicas
do capitalismo. Marx declara em termos nítidos que é preciso histo
ricizar essas categorias, para pôr em evidência e compreender sua
natureza, sua relatividade, e sua transitividade. Os economistas clás-
sicos fizeram, diz ele, das condições da produção capitalista as con-
dições eternas de toda produço, sem perceber que essas categorias
eram historicamente determinadas, portanto históricas e transitó-
rias.

Os cconomistas exprimem as relações da produção burguesa, a divi-


são do trabalho, o crédito e a moeda, como categorias fixas, eternas, imu
táveis... Os economistas nos explicam como se produz nessas relações da-
das, mas o que não explicam é como essas relações se produzem, isto é, o
movimento histórico que as faz surgir... essas categorias são tão pouco
eternas quanto as relações que elas exprimem. São produtos históricos e
transitórios.
(Misere de la Philosophie, Ed. Sociales, pp. 115-116; 119.)

Como veremos, essa critica não é a última palavra da critica


real de Marx. Ela continua superficial e ambigua, ao passo que sua
critica é infinitamente mais profunda. Mas não é sem dúvida por
acaso que Marx tantas vezes fica a meio caminho da critica real em
sua critica declarada, quando determina assim toda a sua diferença
em relação aos economistas clássicos na não-historicidade da con-
cepção deles. Esse julgamento pesou grandemente na interpretação
que se fez não apenas de O Capital e da teoria marxista da economia
politica, mas também da filosofia marxista. No caso, estamos num
dos pontos estratégicos do pensamento de Marx, e diria mesmo
que
O OBJETo DE "O CAPITAL" 31

no ponto estratégico n° I do pensamento de Marx, em que o inaca-


bamento teórico do juizo de Marx sobre si mesmo produziu os mais
sérios mal-entendidos, e ainda uma vez não apenas entre os seus ad-
versários, interessados em conhec -lo mal para o condenar, mas
também e antes de tudo entre os seus partidários.
Podemos grupar todos esses mal-entendidos em torno de um
equivoco central sobre a relação teórica do marxismo com a histo-
ria, sobre o pretenso historicismo radical do marxismo. Examine-
mos o fundamento das diferentes formas assumidas por esse mal
entendido decisivo.
A nosso ver ele atinge diretamente a relação de Marx com He
gel, e a concepção da dialética e da história. Se toda a diferença que
separa Marx dos economistas clássicos se resume no caráterhistór
co das categorias econômicas, basta a Marx historicizar essas cate
gorias, recusar admiti-las como fixas, absolutas, eternas. e as consi-
derar, pelo contrário, como categorias relativas. provisórias e transi
tórias, portanto sujeitas em última instância ao momento de sua
existência histórica. Nesse caso, a relação de Marx com Smith e Ri-
cardo pode ser representada como idëntica à relação de Hegel para
com a filosofia clássica. Marx seria então Ricardo posto em movi-
mento, como se disse que Hegel era Spinoza posto em movimento;
Nesse caso, ainda uma
posto em movimento, isto é, historicizado.
vez todoo mérito de Marx teria sido o de hegelianizar, o de dialeti-
zar Ricardo, isto é,. pensar segundo o método dial tico hegeliano um
conteúdo jä constituído, que sò estivesse separado da verdade pelo
relatividade histórica. Nesse mais,
caso, uma vez
delgado tabique da
recaimos nos esquemas consagrados por uma tradição inteira, es-
quemas que repousam numa concepção
da dialética como método
em si, indiferente ao próprio conteüdo de que ela é a lei, sem relaç o
com a especificidade do objeto de que ela deve fornecer ao mesmo
os princípios de conhecimento e as leis objetivas.
Não insisto
tempo
nessa questão. que já foi elucidada, pelo menos em principio.
Mas gostaria de pôr em evidëncia uma outra confusão que nem
foi denunciada nem elucidada, e que domina ainda, e sem dúvida
do marxismo. Refiro-
por muito tempo dominará, a interpretação
me expressamente à confusão que se refere ao conceito de história.
se afirma que a Economia clássica não
tinha uma con-
Quando
cepção histórica, mas eternitária, das categorias económicas; quan-
do se declara que é preciso, para tornar essas categorias adequadas a
seu objeto, pensá-las como históricas introduz-se o conceito de his-
tória, ou antes, certo conceito de história existente na representação
Vulgar, mas sem tomar a cautela de propor as questões a seu respei-
to. Faz-se intervir em realidade como solução um conceito que colo-.
32 R ) APIIA

ca por sua vez um problema teórico. porque tal como é tomado e re-
cebido, é um conceito não-criticado, e que, como todos os conceitos
"evidentes". corre o risco de não ter por qualquer conteúdo teórico
senão a função que Ihe atribui a ideologia existente ou dominante. E
lazer intervir como solução teórica um conceito cujos titulos não se
Cxaminaram, e que. em vez de ser uma solução, const itui na verdade
um
problema. E considerar que se pode tomar a Hegel ou à prátic:.
empirista dos historiadores esse conceito de história e introduzi-lo
em Marx sem qualquer dificuldade de principio, isto é. sem se pro-
por a questão critica prévia de saber qual é o conteúdo efetivo de um
conceito que se "junte" assim. ingenuamente, como se fosse eviden-
te. ao passo que se impunha. pelo contrário, e antes de tudo, indagar
qual deve ser o conteúdo do conceito de história que a problemática
de Marx Cxige e impöe.
Sem me antecipar ao que se segue. gostaria de esclarecer algu-
mas questðes de principio. Tomarei como contra-exemplo pertinen
te (logo veremos por que essa pertinencia), a concepção hegeliana de
história, o conceito hegeliano do tempo histórico, em que se reflete
para Hegel a essência do histórico como tal.

Hegel, como se sabe, definia o tempo: "der daseiende Begriff".


isto é. o conceito na sua existência imediata, empírica. Como o tem-
po nos remete por sua vez ao conceito como sua essência, isto é.
como Hegel proclama conscientemente que o tempo histórico não é
senão a reflexão, na continuidade do tempo, da essncia interior da
totalidade histórica encarnando um momento do desenvolvimento
do conceito (no caso a ldéia). podemos. com autorização de Hegel,
considerar que o tempo histórico apenas reflete a essência da totali-
dade social da qual éa existéncia. Equivale a dizer que as caracteris-
ticas essenciais do tempo histórico nos remeteräo, como indices, à
cstrutura própria dessa totalidade social.
Podem isolar-se duas caracteristicas essencias do tempo históri-
co hegeliano: a continuidade homog nea e a contemporaneidade do
tempo.

1 A continuidade homogénea do tempo. A continuidade homo-


genea do tempo é a reflexão na existència da continuidade do desen
volvimento dialtico da Ideia. O tempo pode assim ser tratado como
um continuo no qual se manitesta a continuidade dial tica do pro-
cesso de desenvolvimento da ldèia. Todo o problema da ciência da
história resume-se então, nesse nivel,. no recorte desse continuo se
gundo unma periodização correspondente à sucessão de uma totalida-
de dialética à outra. Os momentos da Idéia existem em outros tantos
periodos históricos, os quais incumbe recortar exatamente no conti-
) OB10 DE O CAPITAL" 33

nuo do tempo. Hegel nada mais fez quanto a isso do que pensar em
sua problemätica teórica própria o problema fundamental da práti
ca dos historiadores, aquele que Voltaire
exprimia ao distinguir, por
exemplo, o século de Luis XV do século de Luis XIV; é ainda o
problema principal da historiografia moderna.
2A contemporaneidade do tempo ou categoria do presente histo-
rico. Esta segunda categoria é a condição de da primei-
possibilidade
Ta e ela é que nos revelará o pensamento mais profundo de Hegel. Se
o
histórico
tempo é a existência da totalidade social, impõe-se escla
recer qual é a estrutura dessa existência. Que a relação da totalidade
social com a sua existência histórica seja
relação com uma existen
a

Ca imediata
outras implica
palavras, que essadarelação
a estrutura sejahistórica
existncia talimediata.
por sua évez Em
que todos os
elementos do todo coexistem sempre no mesmo tempo, no mesmo
presente. e são. pois, contemporåneos uns dos outros no mesmo pre-
sente. Isso significa que a estrutura da existência histórica da totali-
dade social hegeliana permite o que proponho chamar de "corte de
esséncia". isto é, essa operação intelectual pela qual se opera em
qualquer momento do tempo histórico um corte vertical, um corte
do presente de tal modo que todos os elementos do todo revelados
por esse corte estejam entre si numa relação imediata, que exprime
imediatamente a sua essência interna. Quando falarmos de "corte de
essência". estaremos aludindo, pois, à estrutura especifica da totali
dade social que permite esse corte, em que todos os elementos do
todo são dados numa co-presença, que é por sua vez a presença ime
diata de sua essência, que se tornou assim imediatamente legível ne
les. Compreende-se, com efeito, seja a estrutura especifica da totali-
dade social o que permite esse corte de essência: porque esse corte só
é possível pela natureza peculiar da unidade dessa totalidade, uma
unidade "espiritual, se quisermos definir com issoo tipo de unida-
de de uma totalidade expressiva, isto é, totalidade cujas partes todas
sejam cada qual "partes totais", expressivas umas das outras, e ex
pressivas cada uma da total1dade social que as contém, porque con
tendo cada uma em si, sob a forma imediata de sua expressão, a pró-
pria essência da totalidade. Faço aqui alusão à estrutura do todo he-
geliano de que já falei: o todo hegeliano possui um tipo de unidade
tal que cada elemento do todo, quer se trate desta ou daquela deter
minação material ou econômica, desta ou daquela instituição politi-
ca, desta ou daquela forma religiosa, artistica ou filosöfica. é sempre
a presença do conceito em si mesmo num momento histórico deter-
minado. E nesse sentido que a co-presença dos elementos uns nos
outros, e a presença de cada elemento no todo são fundadas numa
presença prévia de direito: a presença total do conceito em todas as
I.ER O CAPITAL"
34

determinaçõoes de sua existëncia. Com iSs0 é que se torna possivel a


continuidade do tempo: como o fenômeno da continuidade de pre.
sença do conceito em suas determinaçóes positivas. Quando falamos
de momento do desenvolvimento da ldëia em Hegel, devemos estar
prevenidos de que esse termo remete a unidade de dois sentidos: ao
momento como momento de um desenvolvimento (o que exige a
continuidade do tempo e suscita o problema teórico da periodiza-
ção): ao momento como momento do tempo, como presente, que é
sempre o fenðmeno da presença do conceito em si mesmo em todas.
as suas determinações concretas.

Essa presença absoluta e homogênea de todas as determinações


do todo na essência atual do conceito é que permite o "corte de es-
sência" de que acabamos de falar. Ela é que explica em seu princípio
a célebre fórmula hegeliana, que vale para todas as determinações
do todo.até e inclusive para a consciência de si desse todo no saber
desse todo que é a filosofia
historicamente presente a famosa för-
-

mula segundo a qual ninguém pode saltar por cima de seu tempo. O
presente constitui de fato o horizonte absoluto de todo saber, dado
que todo saber jamais ésenão a
existência
terior do todo. A filosofia, por mais
no
saber
vá,
do principio in-
longe que jamais ultrapassa
Os limites desse horizonte absoluto: mesmo que faça o seu vôo de
noite, ela pertence ainda ao dia, ao hoje, e não passa do presente re-
fletindo sobre si, refletindo sobre a presença do conceito para si - o
amanha Ihe é por essência interdito.

Essa a razão pela qual a categoria ontológica do presente inter-


dita qualquer previs o do tempo histórico, toda previsão consciente
do desenvolvimento futuro do conceito, todo o saber quanto ao Ju-
turo. Isso esclarece a dificuldade teórica de Hegel para explicar a
existencia desses "grandes homens", que
desempenham entao na
Sua reflexäo o papel de testemunhos paradoxais de uma impossivel
Previsdo histórica consciente. Os grandes homens não percebem
nem conhecem o futuro: eles o adivinham no pressentimento. Os
grandes homens nada mais são do que adivinhos, que pressentem
sem ser capazes de conhecer, a iminência da essência do amanhä, "a
amêndoa dentro da casca", o futuro em gestação invisível no
Sente, a essencia por chegar, em vias de nascer na alienação da essen
pre
Cia atual. O fato de que não
haja conhecimento do futuro impeae
que haja uma ciência da politica, um saber referente aos efeitos futu-
ros dos fenömenos presentes. Eis porque, no sentido estrito, nao na
poltica hegeliana possível, e, de fato, jamais se conheceu um poinico
hegeliano.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 35

Se insisto a essa altura sobre a natureza do tempo histórico he-


geliano e suas condições teóricas é porque essa concepção da histó-
ria, e de sua relação com o tempo, está ainda viva entre nós, como o
podemos ver na distinção, mtito difundida hoje, entre sincronia e
diacronia. Na base dessa distinção está a concepção de um tempo
histórico contínuo-homogêneo, contemporâneo a si. O sincrônico é
a própria contemporaneidade, a co-presença da essência em suas de-
terminaçÖes. o presente podendo ser lido como estrutura num "cor-
te de essência" porque o presente é a própria existência da estrutura
essencial. O sincrônico supõe, pois, essa concepção ideológica de um
tempo contínuo-homogêneo. O diacrônico é então apenas o trans-
formar-se desse presente na seqüência de uma continuidade tempo-
ral, em que os "acontecimentos a que se reduz a *"hi_tória no sen-
tido estrito (cf. Lévi-Strauss) não passam de contingências sucessi
vas no continuo do tempo. Tanto o diacrönico como o sincrönico,
que é o conceito primeiro, pressupõem ambos, portanto, as próprias
características que revelamos na concepção hegeliana do tempo:
uma concepção ideológica do tempo histórico.

Ideológica, porque está nítido que essa concepção do tempo


histórico nada mais é do que a reflexão da concepção que Hegel tem
do tipo de unidade que constitui o vínculo entre todos os elementos,
cconómicos. políticos, religiosos. estéticos, filosóficos, etc.. do todo
social. E pelo fato de que o todo hegeliano seja um "todo espiri-
tual", no sentido leibniziano de um todo do qual todas as partes
"conspiram" entre si, de que cada parte é pars totalis, que é possível
e necessária a unidade desse duplo aspecto do tempo histórico (conti-
nuidade-homogënea/contemporaneidade).
E é essa a razão pela qual o contra-exemplo hegeliano é perti-
nente. O que, para nós, camufla a relação que acabamos de fixar er
ire a estrutura do todo hegeliano e a natureza do tempo histórico he-
geliano é que a idéia hegeliana do tempo é tomada ao empirismno
mais vulgar, ao empirismo das falsas evidências da "prática" quoti-
diana que verificamos em sua forma ingênua na maior parte dos
próprios historiadores, pelo menos em todos os historiadores conhe
cidos de Hegel, que não propunham na época qualquer questão
sobre a estrutura especifica do tempo histórico. Hoje, certos histo-
riadores começam a indagar, e no raro sob forma muito notável
(ef. L. Febvre, Labrousse, Braudel e outros): mas não indagam em

Já se disse que a filosofia hegeliana era um "empirismo especulativo" (Feuerbach).


36 LER "O CAPITAL"

função da estrutura do todo que estudam, não indagam sob uma for
ma verdadeiramente conceptual: constatam simplesmente que há di-
ferentes tempos na história, variedades de tempo, tempos
curtos,
durações médias e longas durações, e se contentam com o notar suas
interferências como produtos do seu encontro;
não relacionam,
pois, essas variedades, como variações na estrutura do todo que, no
entanto, rege diretamente a produção dessas variaçðes; são
antes
tentados a relacionar essas variedades como variantes mensuráveis
pela duração - ao tempo comum, ao tempo ideológico continuo de

que falamos. O contra-exemplo de Hegel e. pois, pertinente, porque


representativo das ilusões ideológicas toscas da prática corrente e da
prática dos historiadores, não apenas daqueles que não
propöem
questöes, mas inclusive daqueles que propöem questðes, dado que
essas questões estão em geral relacionadas não com a questão funda-
mental do conceito de história, mas com a concepção ideológica do
tempo.

No entanto, o que podemos reter de Hegel é precisamente o que


nos mascara esse empirismo, que Hegel apenas sublinhou em sua
concepção sistemática da história. Podemos reter esse resultado,
produzido por nossa curta análise critica: é preciso interrogar com ri
gor a estnutura do todo social para nele descobrir o segredo da con-
cepção da história na qual o "devir" desse todo social é pensado:
uma vez conhecida a estrutura do todo social, compreende-se a rela
cao aparentemente "sem problema" que com ela mantém a concep
ção do tempo histórico na qual essa concepção se reflete. O que aca-
bamos de fazer quanto a Hegel vale também quanto a Marx: o es-
forço que nos permitiu pôr em evidência os pressupostos teóricos la-
tentes de uma concepção da história que parecia "evidente", mas
que está de fato organicamente ligada a uma concepção precisa do
todo social, podemos aplicá-lo a Marx, propondo-nos por objeto o
elaborar o conceito marxista de tempo histórico a partir da concepção
marxista da totalidade social.

Sabemos que o todo marxista se distingue sem confusão possi


vel
do todo hegeliano: trata-se de um todo cuja unidade, longe de ser
a
unidade expressiva ou "espiritual" do todo de Leibniz e Hegel,.e
constituido por certo tipo de complexidade, a unidade de um todo es-
truturado, comportando o que podemos chamar de níveis ou instân
cias distintas e "relativamente autônomas", que coexistem nessa
unidade estrutural complexa, articulando-se uns com os outros se
O OBJETo DE "0 CAPITAL" 37

gundo os modos de determinações especificas, determinadas em ul-


tima instância pelo nível ou instância da economia."

Temos, evidentemente, de esclarecer a natureza estrutural desse


todo, mas podemos nos contentar com essa definição provisória,
para prever que o tipo de coexistência hegeliana da presença (que
permite um "corte de essência") näo pode convir à existéncia desse
novo tipo de totalidade.
Essa coexistëncia peculiar, Marx a designa já nitidamente a cer
ta altura de Miséria da Filosofia. ao falar simplesmente, no caso, das
relações de produção:
As relações de produção de qualquer sociedade constituem um todo.
O Sr. Proudhon considera as relações econômicas como outras tantas fa-
ses sociais, engendrando uma à outra, resultando uma da outra, como a
antitese da tese, e realizando na sua sucessão lógica a razão impessoal da
humanidade, O único inconveniente desse método é que, ao encetar o
exame de uma só dessas fases, o Sr. Proudhon não a possa explicar sem
auxilio de todas as demais relações da sociedade, relações. todavia, que
ele ainda não fez engendrar pelo seu movimento dialético. Quando, em
seguida, o Sr. Proudhon. por meio da razão pura, passa ao parto das de-
mais fases, age como se tratasse de crianças recém-nascidas. esquecendo-
se de que são da mesma idade que a primeira... Quando se constrói com as
categorias da economia política o edificio de um sistema ideológico, os
membros do sistema social são deslocados. Os diferentes membros da so-
ciedade são transformados em outras tantas sociedades à parte. que che-
gam umas depois das outras,. Como poderia a fórmula lógica do movimen-
to, da sucessão, do tempo. explicar sozinha o corpo da sociedade. no qual
todas as relações econômicas coexistem simultaneamente e se sustentam
umas às outras? (Os grifos são meus. L. A.)
(Misère de la philosophie, Ed. Sociales. pp. 119-120.)

Tudo está aí: essa coexistência, essa articulação dos membros


do sistema social", o apoio mútuo das relações entre si, não po-
dem ser pensados na "lógica do movimento, da sucessão, do tem-
po". Se tivermos presente no espírito que a "lógica", como demons-
trou Marx em Miséria da Filosofia, é to-só a abstração do "movi-
mento" e do "tempoque são aqui invocados em pess0a, como a
origem da mistificação proudhoniana, concebe-se que seja
inverter a ordem da reflexäo, e pensar em primeiro lugar a estrutura
especifica da totalidade para compreender tanto a forma da coexis-

Cf. Contradiction et surdétermination" (La Pensée, n° 106), "Sur la dialectique


matérialiste" (La Pensée, n° 119). Reunidosem Pour Marx, Maspero, pp. 85 ss. e 161
ss. (Ediçãão brasileira A Favor de Marx, publicado por Zahar Editores).
LER O CAPITAL"
38

tencia de seus membros como as relações constitutivas e a estrutura


da própria história.
Na Inirodução de 1857, no que se refere à sociedade
capitalista.
Marx esclarece de novo que a estrutura do todo deve ser
concebida
antes de qualquer afirmação referente à sucessão temporai:

Não se trata da relação que se estabelece entre as


relações econòmi-
cas na sucessão das diferentes formas de sociedade. Menos ainda da or
dem de sucessåo delas "na idëia" (Proudhon), Irata-se de sua
hierarquia
articulada (Gliederung) na sociedade burguesa (p. 17)
Com isso fica esclarecida uma nova questão importante: a es-
trutura do todo éarticulada como a
estrutura.de um todo orgánico
hierarguizado. A coexist ncia dos membros e relações no todo está
sujeita à ordem de uma estrutura dominante, que introduz certa or-
dem especifica na articulação ( Gliederung) dos membros e das rela-
çoes
Em todas as formas de sociedade, é uma produção determinada, e as
relaçðes engendradas por ela. que atribuem a todas as demais produçðes
eàsrelaçdes engendradas por estasa sua posiço e a sua importncia (in-
rodução, p. 170.)

Observamos aqui uma questão fundamental: essa dominància


de certa estrutura de que Marx nos oferece ilustração (dominação de
uma forma de produção, por exemplo, a produção industrial sobre a
produção mercantil simples, etc.) não pode reduzir-se ao primado de
um cemtro, tanto quanto a relação dos elementos com a estrutura
não pode reduzir-se à unidade expressiva da essência interior a seus
fenomenos. Essa hierarquia representa apenas a hierarquia da eficá
Cia existente entre as diferentes "niveis" ou instâncias do todo so-
Cial. Como cada um dos niveis é por sua vez estruturado, essa hie
rarquia representa portanto a hierarquia, o grau e índice de eficacia
CAIStentes niveis estruturados presentes no todore
entre os diferentes
a
hierarquia da eficácia de uma estrutura dominante sobre estrutu
ras subordinadas e seus elementos. Em outro trabalho mostrei que.
para ser concebida, essa "dominância" de uma estrutura sodre ds
demais na unidade de uma conjuntura remetia ao princípio da deter
minação "em última instância" das estruturas não-econðmicas pea
estrutura econömica; e que essa "determinação em uluma insta
cia era a condição absoluta da necessidade e da inteligibilidade do
deslocamentos das estruturas na hierarquia da eficácia, ou do ue
camento da "dominäncia"" entre os niveis estruturados do todo: que
So essa "determinação em última instáncia" permitia escapar ao
()OBJETO DI O CAPITA 39

lativismo arbitrário dos deslocamentos observáveis, dando a esses


deslocamentos a inevitabilidade de uma função.

Se esse for de fato o tipo de unidade peculiar da totalidade mar-


xista, resultam dai importantes conseqüências teóricas.

Em primeiro lugar, é impossível pensar a existëncia dessa totali-


dade na categoria hegeliana da contemporaneidade do presente. A
coexistencia dos diferentes níveis estruturados: o econômico, o polí-
tico, o ideológico, etc., portanto da infra-estrutura econômica, da su-
perestrutura juridica e política, das ideologias e formações teóricas
(filosofia, cièncias) não pode ser pensada na coexistència do presente
hegeliano, desse presente ideológico em que coincidem a presença
temporal e a presença da essëncia com os seus fenômenos. E, por
conseguinte, o modelo de um tempo continuo e homogéneo, que é o
lugar da existência imediata dessa presença continuada, já não pode
ser tomado como o tempo da história.

Comecemos por esta última questão, que tornará mais tangí-


veis as conseqüências desses princípios. Podemos, num primeiro en-
foque, concluir da estrutura especifica do todo marxista, que já não
é possível pensar no mesmo tempo histórico o processo do desenvol-
vimento dos diferentes níveis do todo. O tipo de existência histórica
desses diferentes "níveis" no é o mesmo. A cada nível devemos,
pelo contrário, atribuir um tempo próprio, relativamente autönomo,
portanto relativamente independente, em sua própria dependência,
dos tempos" dos demais níveis. Devemos e podemos dizer: há,
para cada modo de produç o, um tempo e uma história peculiares,
escandidos de modo especifico, do desenvolvimento das forças pro-
dutivas; tempo e história peculiares às relações de produção, escan-
didos de maneira específica; história peculiar da superestrutura polí-
tica; tempo e história peculiares à filosofia..; tempo e história pecu-
liares às produções estéticas..; tempo e história peculiares às elabo-
raçoes cientificas, etc. Cada uma dessas histórias peculiares é escan-
dida segundo ritmos peculiares e só pode ser conhecida sob a condi-
ção de ter determinado o conceito da especificidade de sua tempora-
lidade histórica, e de suas escansões (desenvolv1mento contínuo, r e
volução, cortes, etc.). Que cada um desses tempos e cada uma dessas
histórias sejam relativamente autônomos não significa que consti
tuam outros tantos domínios independentes do todo: a especificidade
de cada um desses tempos, de cada uma dessas histórias, em outras
palavras, sua autonomia e independência relativas, fundam-se em
certo tipo de articulação no todo, e, portanto, em certo tipo de de-
pendencia em relação ao todo. A história da filosofia, por exemplo,
40 LER O CAPITAL"

não é uma história independente por direito divino: o direito dessa


história a existir como história especifica é determinado pelas rela
çðes de articulação, e, pois, de eficácia, relativas, existentes no inte-
rior do todo. A especificidade desses tempos e dessas histórias é por
tanto diferencial, dado que fundada nas relações diferenciais existen-
tes no todo entre os diferentes níveis: o modo e o grau de indepen-
déncia de cada tempo e de cada históriasäo, pois, determinados com
inevitabilidade pelo modo e grau de dependéncia de cada nível no
conjunto das articulações do todo. Conceber a independëncia "rela-
tiva" de uma história e de um nível jamais pode, pois, reduzir-se
à afirmação positiva de uma independ ncia no vazio, nem mesmo àà
simples negação de uma dependência em si: conceber essa "indepen-
dência relativa" significa definir sua "relatividade'", isto é, o tipo de
dependncia que produz e determina como seu resultado inevitável
esse modo de independência "relativa": significa determinar, no
nível das articulações das estruturas parciais no todo, esse tipo de
dependência produtora da independência relativa cujos efeitos ob-
servamos na história dos diferentes "níveis".

Esse principio é que fundamenta a possibilidade e a inevitabili


dade de histórias diferentes que correspondem respectivamente a
cada um desses "níveis". Esse principio é que nos autoriza a falar de
uma história das religiões, de uma história das ideologias, de uma
história da filosofia, de uma história da arte, de uma históória das
ciências, sem jamais nos dispensar, mas, pelo contrário, nos impon-
do-a obrigação de pensar a independência relativa de cada uma des
sas histórias na dependència específica que articula os diferentes
niveis uns com os outros no todo social. Esta a razão pela qual, se
temos o direito de constituir essas histórias diferentes, que so ape
nas histórias diferenciais, não nos poderiamos contentar com o
constatar-como o fazem não raro os melhores historiadores de nos
sa época - a existência do tempo e de ritmos diferentes, sem os rela-
cionar com o conceito de sua diferença, isto é, com a dependência
tipica que os fundamenta na articulação dos níveis do todo. Portan-
to, não basta dizer, como o fazem alguns historiadores modernos,
que há periodizações diferentes segundo os diferentes termos, e que
cada tempo possui seus ritmos, lentos,
uns outros longos; impõe-Se
pensar esses diferentes ritmos, essas diferenças de ritmos e de escan
são em seus fundamentos, no tipo de articulação, de deslocament0e
de torção que
ir
relaciona esses diferentes tempos entre si. Digamos
mesmo, para ainda mais além, que não nos devemos
refletir assim
contentar
com o a existência de tempos visíveis e mensuráveis,
mas que é necessário, absolutamente necessário, propor a
do modo de existência de questao
tempos invisíveis, ritmos e escansões invis
O OBJETO DE "O CAPITAL" 41

veis a discernir sob as aparèncias de cada tempo visível. A simples


leitura de O Capital mostra-nos que Marx foi profundamente sensi-
vel a essa exigência. Mostra, por exemplo, que o tempo da produção
economica, se é um tempo especifico (diferente segundo os diferen-
tes modos de produção), é, como tempo especifico, um tempo com-
plexo nao-linear - mas um tempo de tempo, tempo complexo que se

pode ler na continuidade do tempo da vida ou dos relógios, mas que


é preciso construir a partir das estruturas próprias da produção. O
tempo da produção econômica capitalista que Marx analisa deve ser
construido em seu conceito. O conceito desse tempo deve ser cons-
truido a partir da realidade dos ritmos diferentes que assinalam as
diferentes operaçðes da produção, da circulação e da distribuição: a
partir dos conceitos dessas diferentes operações, por exemplo, a di-
ferença entre o tempo da produção e o tempo de trabalho. a diferen-
ça dos diferentes ciclos da produção (rotação do capital fixo, do ca-
pital circulante, do capital variável, rotação monetária, rotação do
capital comercial e do capital financeiro, etc.). O tempo da produção
econômica no modo de produção capitalista nada tem a ver absolu-
tamente com a evidência do tempo ideológico da prática quotidiana:
esta, sem duvida, enraizado em certos lugares determinados, no

tempo biológico (certos limites de alternância entre o trabalho e o


certos ritmos
repouso para a força de trabalho humana e animal;
em nada, em sua es-
para a produção agricola), mas não se identifica
sência, com esse tempo biológico, e não é de modo algum um tempo
que possa ler-se imediatemente no transcurso deste ou daquele pro-
cesso dado. Trata-se de um tempo invisível, ilegivel por essência, tão
invisívele tão opaco quanto a própria realidade do processo total da
produção capitalista. Esse tempo não é acessível, como "entrecruza-
mento" complexo dos diferentes tempos. dos diferentes ritmos, ro-
tações. etc. de que acabamos de falar, a não ser em seu conceito, que
como todo conceito jamais é "dado imediatamente. jamais legivel
na realidade visível: esse conceito, como todo conceito, deve ser pro-
duzido, construido.
O mesmo pode dizer-se do tempo politico e do tempo ideológi-
e do tempo científico, sem falar
co, do tempo teórico (filosófico)
também do tempo da arte. Vejamos um exemplo. O tempo da histó-

ria da filosofia também não é imediatamente legível: sem dúvida, vé


se. na podemos tomar
cronologia histórica. sucederem-se filosófos, e
essa seqüência pela própria história. No caso ainda, impõöe-se rejei-
tar os conceitos ideológicos da sucessão do visivel, e cuidar de cons
Iruir o conceito do tempo da história da filosofia. E para construir esse
conceito. é absolutamente imperioso definir a diferença especifica
do filosófico entre as formações culturais existentes (ideológicas
e
Teórico
cientificas): definir o filosófico como pertencente ao nivel do
42 IER O CAPITAL"

como tal: e determinar as relações diferenciais do Teórico como tal


com, de um lado, as diferentes práticas existentes, e de outro, a ideo-
logia e, enfim o cientifico. Definir essas relações diferenciais é defi-
ro tipo de articulação peculiar ao Teórico (filosófico) com essas ou-
tras realidades: portanto, definir a articulação peculiar da história
da filosofia com as histórias das praticas diterentes, com a his-
das ideologias e com a história das ciências. Mas isso não basta:
para construir o conceito de filosofia, é preciso definir, na filosofia,
a realidade especifica que constitui as formações filosóficas
propria-
nente ditas, e à qual nos
devemos reterir para pensar própria pos-
a
sibilidade de acontecimentos filosóficos. Trata-se de uma das tarefas
essenciais de todo trabalho teórico de produção do conceito de his-
1ória: dar uma definição rigorosa do Jato histórico como tal.
Sem pretender adiantar-me a esse tóópico, menciono aaui apenas
que se pode definir como fato histórico, em sua generalidade, entre
todos os fenômenos que se produzem na existência histórica, os fa-
tos que afetam com uma mutação as relações estruturais existentes.
Na história da filosofia será preciso também, para poder falar dela
como de uma história, admitir que nela se
produzem fatos filosófi-
cos, acontecimentos filosóficos de alcance histórico, isto
é, muito pre-
cisamente fatos filosoficos que produzem mutação real nas relações
estruturais filosóficas existentes, no caso, a problemática teórica exis-
tente. Claro está que nem
sempre esses fatos säo visíveis e que, pelo
contrário, acontece estarem no mais das vezes ocultos, sendo objeto
de um verdadeiro recalque, uma verdadeira negação histórica mais
ou menos durável. Por exemplo, a mutação da problemática
dogmá-
tica clássica pelo empirismo de Locke é um acontecimento filosófico
de alcance histórico, que domina ainda hoje a filosofia crítica idea-
lista, como dominou todo o século XVIII bem como Kant e Fichte e
inclusive Hegel. Esse fato histórico, sobretudo em seu longo alcance
(e em particular sua importância em primeiro plano para a com-
preensão do pensamento do idealismo alemo, de Kant a Hegel) é
não raro conjecturado: raramente é avaliado em sua verdadeira
pro-
fundidade. Ele desempenhou um papel absolutamente decisivo na
interpretação da filosofia marxista, e somos ainda em grande parte
prisioneiros dele. Outro exemplo: a filosofia de Spinoza introduz
uma revolução teórica sem precedente na história da filosofia, e sem
dúvida a maior revolução filosófica de todos os tempos, a ponto de
podermos considerar Spinoza, do ponto de vista filosófico, como 0
unico antepassado direto de Marx. No
entanto, essa revolução radi
cal foi objeto de um recalcamento
histórico prodigioso, e ocorreu
com a filosofia
da em certos
spinozista quase o mesmo que está acontecendo ain
países com a filosofia marxista: serviu de pecha inta-
mante para acusação de
"ateismo". A insistência com que os secuios
O OBJETO DE "O CAPITAL" 43

xVII e XVIll oficiais combateram animosamente a memoria de


Spinoza, a distância que todo autor devia infalivelmente tomar em
relação a Spinoza para ter o direito de escrever (cf. Montesquieu)
atestam não apenas a repulsa, mas também o extraordinário atrati-
seu pensamento. A história do spinozismo recalcado da filo-
vo do
sofia transcorre então como uma história subterrânea que atua em
outros lugares, na ideologia politica e religiosa (o deismo) e nas ciên-
cias, mas não no palco iluminado da filosofia visível. E quandoo
spinozismo aparece em cena, na "querela do ateismo" do idealismo
alemão, e depojs nas interpretações acadêmicas, é mais ou menos
sob o signo do mal-entendido. Já disse o bastante, creio, para sugerir
em que caminho deve seguir, em seus diferentes dominios, a cons-
trução do conceito de história; para mostrar que a construção desse
conceito produz sem dúvida uma realidade que nada tem a ver com
a seqüëncia visível dos acontecimentos registrados pela crônica.
Do mesmo modo que sabemos, desde Freud, que o tempo do
inconsciente não se confunde com o tempo da biografia, que se im-
põe, pelo contrário, construir o conceito do tempo do inconsciente
do mesmo
para chegar à compreensão de certos traços da biografía,
modo é preciso elaborar os conceitos dos diversos tempos históri-
sáo dados na evidencia ideológica da continuidade
cOs, que jamais
do tempo (que bastaria recortar convenientemente por uma boa pe-
riodização para transformá-lo em tempo da história), mas que de-
vem ser elaborados a partir da natureza diferencial e da articulação
diferencial de seu objeto na estrutura do todo. Haverá necessidade
de outros exemplos para nos convencermos disso? Leiam-se os notá-
veis estudos de Michel Foucault sobre a "história da loucura" e
sobre o "nascimento da clinica" e se terá uma idéia da distância que
pode separar as belas seqüências da crônica oficial, em que uma dis-
ciplina ou uma sociedade nada mais fazem do que refletir, sua boa
consciencia, quer dizer. a máscara de sua må consciencia - da tem-

poralidade absolutamente inesperada que constitui a essencia do


processo de constituição e de desenvolvimento dessas formações
culturais: a verdadeira história nada tem que permita lë-la no conti-
nuo ideológico de um tempo linear que baste escandir e recortar; ela
possui, pelo contrário, uma temporalidade própria, extremamente
complexa, e, é claro, totalmente paradoxal ante a simplicidade de-
sarmante do preconceito ideológico. Compreender a história de for-
mações culturais tais como a da "loucura" a do advento do "olho
clinico" em medicina, supõe um imenso trabalho, não de abstração,
mas trabalho na abstração, para construir o próprio objeto, identifi-
cando-o, e construir, por conseguinte, o conceito de sua história.
Nesse caso, estamos em posição rigorosamente oposta à história
44 LER O CAPITAL

empírica visível, em queo tempo de todas as histórias é o tempo


simples da continuidade, e o "conteúdo" o vazio de acontecimentos
que nele se produzem, e que se tenta depois determinar segundo mé-
todos de recortagem para "periodizar" essa continuidade. Em vez
dessas categorias do continuo e do descontinuo que resumem o mis-
tério vulgar de toda história, lidamos com categorias infinitamente
mais complexas, específicas segundo o tipo de história, em que ocor-
rem novas lógicas, em que, evidentemente, os esquemas hegelianos -
que não passam de sublimação das categorias da "lógica do movi-
mento e do tempo tém apenas valor altamente aproximativo, e
ainda, sob condição de fazer delas um uso aproximativo (indicativo)
correspondente à sua aproximação - porque se dev ssemos tomar es-
sas categorias hegelianas por categorias adequadas, o emprego delas
se tornaria então teoricamente absurdo, e praticamente baldado ou
catastrófico.
Essa realidade específica do tempo histórico complexo dos
níveis do todo, paradoxalmente, pode ser submetida à experiència
tentando-se a aplicação, a esse tempo especifico e complexo, da pro-
va do "corte de essência". prova decisiva da estrutura da contempo-
raneidade. Corte histórico desse gênero, mesmo que efetuado no re
corte de uma periodização consagrada para fenômenos de mutação
superior- seja na ordem econômica, seja na ordem politica - jamais
extrai qualquer "presente" que possua a estrutura da chamada
contemporaneidade", presença correspondente ao tipo de unidade
expressiva ou espiritual do todo. A coexistëncia que se verifica r
corte de essência'" não revela qualquer essência onipresente, que
seja o próprio presente de cada um dos *níveis". O corte que "vale"
para determinado nível, seja político ou econômico - que portanto
corresponda a um "*corte de essëncia" para o politico, por exemplo -
não corresponde a nada de semelhante para outros níveis: econômi-
co, ideológico, estético, filosófico, científico - que vivem em outros
tempos, e passam por outros cortes, outros ritmos e outras pontua-
ções. A presença de um nível é, por assim dizer, a ausência de outro,
essa coexistëncia de uma "presença e de ausências é apenas eleito
da estrutura do todo em sua descentração articulada. O que se capta
assim como ausências numa presença localizada é precisamente a
não-localização da estrutura do todo ou, mais exatamente, o tipo de
eficácia própria da estrutura do todo sobre os seus "niveis (por sua
vez estruturados) e sobre os "elementos" desses níveis. O que esse
impossivel corte de essência revela é, nas próprias que ele
ausências
mostra em negativo, a forma de existência histórica peculiar a uma
o
formação social decorrente de determinado modo de produço,
tipo peculiar daquilo a que Marx chama processo de desenvolvi
mento do modo de produção determinado. Esse processo é ainda
O OBJETO DE "O CAPITAL" 45

aquele que Marx, ao falar em O Capital do modo de produção capi-


talista, chama de tipo de entrelaçamento dos diferentes tempos (e ele
Se contenta então com o falar só do nivel econômico), isto é, o tipo
de "defasagem" (décalage) e de torção das diferentes temporalida-
des produzidas pelos diferentes níveis da estrutura, cuja combinação
complexa constitui o tempo peculiar do desenvolvimento do processo.

Para evitar qualquer mal-entendido sobre o que acabo de dizer,


creio necessário acrescentar as observações a seguir.
A teoria do tempo histórico que acabo de esboçar permite fun-
damentar a possibilidade de uma história dos diferentes níveis, con-
siderados em sua autonomia "relativa". Mas não se deveria deduzir
disso que a história é constituída pela justaposição das diferentes
histórias "relativamente" autônomas, das diferentes temporalidades
históricas, de curta duração umas e de longa duraç o outras, no
transcurso de um mesmo tempo histórico. Em outras palavras, uma
vez recusado o modelo ideológico de um tempo contínuo, suscetivel
de cortes de essências do presente, é preciso evitar a substituição
dessa representação por outra de aspecto diferente mas que restaure
por baixo a mesma ideologia do tempo. Não pode, pois, ser o caso
de relacionar a um mesmo tempo ideológico de base a diversidade
das diferentes temporalidades, e avaliar, na mesma linha de um tem
po continuo de referência. a sua defasagem, e que' nos contentaria
mos então em pensar como atraso ou avanço no tempo, portanto
nesse tempo ideológico de referência. Se em nossa nova concepção
tentarmos efetuar o "corte de ess ncia", iremos constatar que ele é
impossível. Mas isso não quer dizer que nos achemos então diante
de um corte desigual, corte em degraus ou dentes múltiplos, em que
ou o atraso de um
figurem, no espaço temporal, o adiantamento
a outro, como nas tabelas da Rede
Ferroviária em
tempo em relação
o adiantamento dos trens säo representados por um
ou atraso
que
fizéssemos isso, cairíamos, como
avanço ou atraso espaciais. Se
acontece com freqüëncia entre os melhores historiadores, na arma-
dilha da ideologia da história, em que o avanço e o atraso não pas
sam de variantes da continuidade de referëncia, e não efeitos da es-
trutura do todo. Com todas as formas dessa ideologia é que se im-
corretamente ao seu conceito os feno-
poe romper para relacionar
menos constatados pelos próprios historiadores, ao conceito de his-
tória do modo de produção considerad0 - e não a um tempo ideoló-

continuo.
gico homogèneo e
Essa conclusão é da maior importäncia para a determinação
correta do estatuto de uma srie completa de noções, que desempe
na linguagem do pensamento econo-
nham grande papel estratgico
46 LER O CAPITAL"

mico e politico de nosso século,.por exemplo, as noções de desigual-


dade do desenvolvimento, de sobrevivência, de atraso (atraso da cons-
ciencia) no próprio marxismo, ou a noção de "subdesenvolvimento'
na prática econômica e politica
atual. E-nos necessário, pois, no que
tange a essas noções, que tëm na prática conseqüencias de grande al-
cance, esclarecer devidamente o sentido que convém dar ao conceito
de temporalidade diferencial.

Para atender a essa exigëncia, temos uma vez mais que


purificar
nosso conceito de teoria da história, de modo radical, de toda conta-
minação pelas evidncias da história empirica, pois sabemos que
essa "história empírica" nada mais é que o aspecto desnudo da ideo-
logia empirista da história. Devemos, contra essa tentação empirista
cujo peso é imenso - e que no entanto não é sentido pelo comum dos.
homens, e inclusive por certos historiadores, como não é sentido pe-
los homens deste planeta o peso da enorme camada atmosférica
que
os esmaga - , ver e
compreender claramente, sem qualquer equí-
voco, que o conceito de história não mais pode ser empirico, isto
é, histórico no sentido vulgar, que, como já dizia Spinoza, o conceito
de cão não pode ladrar. Devemos conceber do modo mais rigoros0 a
necessidade absoluta de libertar a teoria da história de qualquer en-
volvimento com a temporalidade "empírica", com a concepção
ideológica do tempo que a sustenta e encobre, com essa noção ideo-
lógica de que a teoria da história possa, enquanto teoria, estar sub-
metida às determinações "concretas" do "tempo histórico", sob o
pretexto de que esse "tempo histórico" constituiria seu objeto.
Não devemos alimentar ilusão sobre a força incrível desse pre
conceito, que a todos nós domina ainda, e que constitui o estòfo doo
historicismo contemporâneo, e que nos levaria a confundir o objeto do
conhecimento com o objeto real, afetando o objeto de conhecimen
das qualidades" próprias do objeto real de que ele é conheci-
mento. O conhecimento da história não é histórico, tanto quanto
não é açucarado o conhecimento do açúcar. Mas antes que esse
principio singelo "penetre" nas consciências, sem dúvida será neces-
sária uma "história" inteira. Contentemo-nos por ora com o escla-
recimento de alguns pontos. Cairíamos, com efeito, na ideologia do
tempo continuo-homogëneo-contemporâneo a si, caso relacionasse
mos a esse único e mesmo tempo as diferentes temporalidades há
pouco mencionadas, como outras tantas descontinuidades de sua
continuidade, e que pensássemos então como atrasos e avanços,
Sobrevivencias ou desigualdades de desenvolvimento perceptiveis
nesse tempo. Com isso, a
despeito de nossas recusas, estariamoS ins
tituindo, de fato, um tempo de referência, na continuidade do qual
mediriamos essas desigualdades. Muito pelo contrário, temos d
O OBJETo DE "O CAPITAL" 47

temporais como, e unica-


considerar essas diferenças de estruturas
diferentes
mente como, índices objetivos do modo de articulação dos
do todo.
elementos ou diferentes estruturas na estrutura de conjunto
na histôria esse
Isso equivale a dizer que, se não podemos efetuar
"corte de essência", há de ser na unidade específica
da estrutura
desses pretens0s
compexa do todo que devemos pensar o conceito desenvolvimento
atrasos, avanços, sobrevivências, desigualdades de
real: o presente da
gue co-existem na estrutura do presente histórico
historicidade diferenciais não tem,
conjuntura. Falar de tipos de
a um tempo de base em que pu-
pois, sentido algum em referência
dessem ser medidos esses atrasos e avanços.

Por outro lado, isso equivale a dizer que o sentido último da


linguagem metafórica do atraso, do avanço, etc. deve ser procurado
na estrutura do todo, no lugar próprio deste ou daquele elemento,
do todo.
peculiar a determinado nível estrutural na complexidade absoluta
Falar de temporalidade histórica diferencial é, pois, ter
em sua articulação prôpria, a
obrigaçao de situar o lugar, e pensar, nível na configuração atual do
função de certo elemento ou de certo desse elemento em fun-
todo; ë determinar a relação de articulação
ção dos demais elementos, dessa estrutura em função
das
demais e s
veio a ser chamado de sua
truturas; é ser obrigado a definir o que
estrutura dee
sobredeterminação ou subdeterminação, em função da
definir o que em outra
determinação do todo; é ter a obrigação de
de determinação, índice de
linguagem poderíamos chamar de índice ou a estrutura em questão,
eficácia de que estão dotados o elemento
atualmente na estrutura de conjunto do todo. Por índice de eficácia
domi-
podemos entender o caráter de determinação mais ou menos
nante ou subordinado, portanto, sempre mais ou menos "parado-
no mecanismo atual do to-
xal", de um elemento ou estrutura dados à
do. E isso nada mais é do quea teoria da conjuntura, indispensável
teoria da história
Não é minha intenção aprofundar essa análise, que está quase
a extrair duas conclusões
toda por ser elaborada. Vou limitar-me
conceitos de sincronia e diacro-
desses principios: uma, referente aos
nia e, a outra, referente ao conceito
de história.
1° Se o que dissemos tem um sentido objetivo, é claro que o par
de um desconhecimento, pois a tomá-
sincronia-diacronia éo lugar
isto é, já que
lo por conhecimento fica-se no vazio epistemológico,
-

a ideologia tem medo do


vazio no pleno ideológico, precisamente
-

no cerne da concepção ideológica


de uma história cujo tempo seria
ideo-
contínuo-homogêneo-contemporåneo a si. Se essa concepção
En-
lógica da história e de seu objeto cai, também desaparece par.
o
48 LER "O CAPITAL"

tretanto, uma coisa dele permanece: o que é visado pela operação


epistemológica de que esse par é a reflexão inconsciente, precisa-
mente essa operação epistemológica em si, uma vez despojada de
sua referência ideológica. O que é visado pela sincronia nada tem a
ver com a presença temporal
do objeto como objeto real, mas, pelo
contrário, tem a ver com outro tipo de presença, e a presença de ou-
tro objeto: não a presença temporal do objeto concreto, não o tempo
histórico da presença histórica do objeto histórico, mas a presença
Ou o tempo") do objeto de conhecimento da própria análiseteórica
a presença do conhecimento. Por conseguinte, o sincrônico é tão-só a
concepção das relações especificas existentes entre os diferentes ele
mentos e as dilerentes estruturas da estrutura do todo; é o conheci-
mento das relações de dependência
e articulação que a
num todo orgânico, num sistema. O sincrónico éa eternidade no sen-
transformam
tido spinozista, ou conhecimento adequado de sua complexidade. E
precisamente isso o que Marx distingue da sucessão histórica con-
creto-real, ao perguntar:

Com efeito, como é que a fórmula lógica apenas do movimento, da


sucessão, do tempo, poderia explicar o corpo da sociedade, no qual todas
as relações econômicas coexistem simultaneamente e se sustentam mu-
tuamente? (Misère de la Philosophie, p. 120.)

Ora, se a sincronia é isso, ela nada tem a ver com a simples pre-
sença temporal concreta, mas refere-se ao conhecimento da articula
ção complexa que faz do todo um todo. Ela não é essa co-presença
concreta-é o conhecimento da complexidade do objeto de conheci-
mento, o que dá o conhecimento do objeto real.
Se assim é no que diz respeito à sincronia, devemos tirar con
clusões semelhantes no que se refere à diacronia, dado que é a con-
da essência a
cepção ideológica sincronia (da contemporaneidade da
si) que funda a concepção ideolgica da diacronia. Basta mostrar
como, nos pensadores que a fazem desempenhar o papel da história,
a diacronia confessa o seu desnudamento. A diacronia é reduzida ao
factual, e aos efeitos do factual sobre a estrutura do sincrônico: o his
tórico é então o imprevisto, o acaso, o peculiar do fato, que surge ou
cai por motivos contingentes no continuo vazio do tempo. O projeto
uma "história estrutural" estabelece então, neste contexto,
problemas terriveis, cuja reflexão laboriosa encontramos nas passa-
gens que Lévi-Strauss Ihe dedica na Antropologia estrutural. DDe fato,
mediante gue milagre um tempo vazio e fatos pontuais poderiam
provocar desestruturaçðes e reestruturações do sincrônico? Uma vez
colocada em seu lugar a sincronia, o sentido "concreto'" da diacro-
nia cai, e no caso ainda nada mais resta dela a não ser o seu uso
epis
O OBJETo DE "O CAPITAL" 49

temológico possível, sob condição de que se faça passar por uma


conversão teórica e a considerar em seu verdadeiro sentido, como
uma categoria, não do concreto, mas do conhecer. A diacronia pas-
sa então a ser nada mais que o falso nome do processo, ou o que
Marx chama de desenvolvimento das formas. Mas, no caso ainda,
estamos no conhecimento, no processo do conhecimento, e nao no
desenvolvimento do concreto-real.

2 Passo ao conceito de tempo histórico. Para o definir com ri-


gor, temos de admitir a condição seguinte: dado que esseconceito só
pode fundar-se na estrutura complexa com dominante e articulaçoes
diferenciais da totalidade social, que uma formação social decorren-
te de certo modo de produção constitui, seu conteúdo só pode ser
percebido em função da estrutura dessa totalidade- seja considera-
da em seu conjunto, seja considerada em seus diferentes "niveis".
Em particular, não é possível dar conteúdo ao conceito de tempo
histórico, a não ser definindo o tempo histórico, como a forma es-
pecífica da existência da totalidade social considerada, existënca
em que diferentes níveis estruturais de temporalidade interfe-
rem em função das relações peculiares de correspondéncia, nao
correspondência, articulação, defasagem e torção que mantèm mu-
tuamente, em funçao da estrutura de conjunto do todo, os diferentes
niveis" do todo. Devemos dizer que, assim como não há produção
em geral, não há história em geral, mas estruturas especificas dahis-
toricidade, fundadas em últimainstância em estruturas especificas
dos diferentes modos de produção, estruturas especificas da histor-
cidade que, sendo apenas a existência de formações sociais determi-
nadas (pertencentes a modos de produção especificos), articuladas
como todos, só têm sentido em função da essência dessas totalida-
es, isto é, da essência de sua complexidade própria.

'Cf.t. 1, cap. I, parágrafo 13.


Acrescento, para evitar qualquer mal-entendido, queessa critica do empirismo la-
tente que freqüenta hoje o emprego corrente do conceito bastardo de "diacrônico"
não atinge evidentemente a realidade das transformações históricas. Por exemplo, a
passagem de um modo de produção a outro. Se quisermos designar essa realidade (o
fato da transformação real das estruturas) como sendo a "diacronia", não estaremos
com isso designando senao o próprio histórico (que jamais é puramente estático) ou,
por uma distinção interior ao histórico, o que se transforma de modo visível. Mas
quando se quer pensar o conceito dessas transformações, não mais se está no real ("o
diacrônico), mas no conhecimento, em que atua a dialética epistemológica que aca-
bamos de expor, a propósito do "diacrônico" real em si: o conceito, e o "desenvolvi-
mento das suas formas". Quanto a isso, veja-se mais adianteo texto de Balibar.
50 LER O CAPITAL"

Essa definição do tempo histórico por seu conceito teórico inte-


ressa diretamente aos historiadores e à sua prática. Porque ela atrai
a atenção deles para a ideologia empirista que domina poderosa-
mente, com poucas exceções, todas as variedades de história (seja a
história no sentido amplo, ou a história especializada: econômica,
social, política, da arte, da literatura, da filosofia, das ciências, etc.).
Falando de modo brutal, a história vive na ilusão de que pode dis-
pensar a teoria, no sentido estrito a teoria do seu objeto, e, portan-
do 0
to, dispensar uma definição seu objeto teórico. que lhe serve de
teoria, o que, a seu ver, assume o lugar dela, é a metodologia, istoé,
as normas que Ihe tegem as práticas efetivas, práticas centradas na
critica dos documentos e na restauração dos fatos. O que nela assu-
me o lugar de objeto teórico é, a seu ver, o objeto "concreto". A his-
tória toma, pois, a sua metodologia pela teoria que lhe falta, e toma
o concreto das evidências concretas do tempo ideológico pelo ob-
jeto teórico. Essa dupla confusão é tipica de uma ideologia empiris-
ta. O que falta à história é o enfrentamento consciente e corajoso de
um problema essencial a qualquer ciência: o problema da natureza e
da constituição de sua leoria. Entendo por isso a teoria interior à
própria ciência, o sistema dos conceitos teóricos que fundamenta
qualquer método e toda prática, inclusive experimental, e que ao
mesmo tempo define o seu objeto teórico. Ora, salvo exceções, os
historiadores não enfrentam o problema vital e urgente para a histó-
ria: o problema da teoria da história. E como acontece inevitavel-
mente, o lugar deixado vazio pela teoria cientifica é ocupado por
uma teoria ideológica, cujos efeitos nefastos podem exibir-se, até no
pormenor, no próprio plano da metodologia dos historiadores.
0 objeto da história como ciência possui, pois, o mesmo tipo de
existëncia teórica, e se estabelece no mesmo nível teórico que o obje-
to da economia política segundo Marx. A única diferença que.se
pode apurar entre a teoria da economia politica - de que O Capital é
um exemplo - e a teoria da história como ciência, decorre de que a
teoria da economia política considera apenas uma parte relativa
mente autónoma da totalidade social, ao passo que a teoria da histó-
ria toma em princípio a totalidade complexa como tal por objeto.
Afora essa diferença, não há, do ponto de vista teórico, qualquer o
ferença entre a ciência da economia politica e a ciência da história.

A oposição, freqüentemente invocada, entre o caráter "abstra-


to de O Capital e o pretenso caráter "concreto" da história como
Ciencia, é puro e simples mal-entendido, sobre o qual vale dizer algu-
ma coisa,
pois ele ocupa lugar privilegiado no reino dos preconcel
tos em que vivemos. O fato de que a teoria da economia politica se
elabora e se desenvolve na
investigação de certa matériä-prima io
O OBJETO DE "O CAPITAL" 51

necida em última instância por práticas da história concreta, real -

e deva real1zar-se em análises econômicas consideradas


que possa
concretas" e referentes a esta ou aquela conjuntura, a esta ou aque
la formação social, a este ou aquele período - encontra o equivalen-
te exato no fato de que a teoria da história se elabora e se desenvolve
também numa investigação de certa matéria-prima produzida pela
história concreta real e que encontre também sua realização na "a-
nálise concreta" das "situações concretas". Todo o mal-entendido
advém de que a história não mais existe a não ser sob essa segunda
forma, como "aplicação" de uma teoria.. que a rigor não existe e
da história se fazem de certo
que, por isso, as aplicações da teoria
modo no dorso dessa teoria ausente, e se tomam naturalmente por
ela... a menos que não se apóiem (porque Ihes e necessario um minl-

de teoria para existir) em esboços de teoria mais ou menos ideo-


mo

lógicos. Devemos sério o fato de que a teoria da história, no


encarar a
sentido rigoroso, não existe, ou que só existe para os historiadores,
no mais das vezes
que os conceitos de história existentes são, pO1s,
conceitos "empíricos" mais ou menos à procura do fundamento teó-
rico "empíricos", istoé, fortemente mestiçados com uma ideologia
"evidências". E o caso dos melhores
que se dissimula sob as suas
historiadores que se distinguem precisamente dos demais por sua
preocupação teórica, mas que procuram a teoria num nível em que.
ela não se pode encontrar, no nível da metodologia histórica, que
não pode definir-se fora da teoria que a fundamenta.
como teoria, no sentido
No dia que existir história também
em
existëncia como ciëncia teórica e
que acabamos de definir, sua dupla
como ciência empírica não mais suscitará problemas, a exemplo da

dupla existência da teoria marxista da economia política como cièn-


cia teórica e ciência empírica. Neste dia, o desequilibrio teórico do
par cambado: ciência abstrata da economia politica/ciência preten-
samente "concreta" da história, terá desaparecido, e com ele todos
Os sonhos e ritos religiosos da ressurreição dos mortos e da comu-
nhão dos santos, que depois
cem anos de Michelet os historiadores
catacumbas, mas
passam ainda o seu tempo a comemorar, não
nas

nas praças públicas do nosso século.

Acrescentarei uma palavra ainda a esse assunto. A presente con-

Tusão entre história como teoria da história e história como prelen-


do seu
Sa "ciencia do concreto", a história tomada no empirismo
Deto e o confronto dessa história empirica "concreta com a teo-
ria abstrata" da economia política, são a raiz de um sem-numero
de confusões conceptuais e falsos problemas. Pode mesmo dizer-Se
9ue esse mal-entendido produz por si mesmo conceitos ideológicos
Cuja função consiste em preencher a distáncia, isto é, o vazio existen
52 LER O CAPITAL'"

te entre a parte teórica da história existente e a história empírica


(que é não raro a história existente). Não pretendo passar em revistaa
esses conceitos; para tanto seria necessário um estudo completo.
Destacarei apenas três como exemplo: os pares clássicos essência/fe-
nomenos, necessidade/contingència e o "problema" da ação do in-
divíduo na história.

O par essência/fenômenos encarrega-se, na hipótese economi-


Cista ou mecanicista, de explicar o não-econômico como fenômeno
do econômico, que é sua essência. Sub-repticiamente, nessa opera-
ção, o teórico (e o "abstrato") estão do lado do econômico (vistoo
que temos a teoria dele em 0 Capital), c o empírico, o "concreto",
do lado do não-econômico, isto é, do lado do político, da ideologia,
etc. O par essência/fenômeno desempenha bem esse papel, se consi
derarmos o fenômeno como o concreto, o empirico, e a essëncia
como o não-empirico, como o abstrato, como a verdade do fenôme-
no. Com isso se estabelece essa relação absurda entre o teórico (eco-
nômico) e o empírico (não-econômico) num passo de dança que
compara o conhecimento de um objeto com a existência de outro -o
que nos leva a um paralogismo.

O par necessidade/contingência, ou necessidade/acaso é da


mesma espécie, e destina-se à mesma função: preencher a distância
entre o teórico de um objeto (por exemplo, a economia) e o não-
teórico, o empirico de outro (o não-econömico no qual o económico
abre o seu caminho": as "circunstâncias", a "individualidade",
etc.). Quando se diz, por exemplo, que a necessidade "abre o seu ca-
minho" através dos dados contingentes, através de circunstâncias
diversas, etc. coloca-se uma espantosa mecânica em que são con-
frontadas duas realidades sem relação direta. A "necessidade" de-
signa, no caso, um conhecimento (p. ex., a lei de determinaçâo em
última instância pela economia), e as *"circunstâncias", o que não é
conhecido. Mas em vez de comparar um conhecimento com outro,
coloca-se o não-conhecimento entre parênteses, e põe-se em seu lu
gar a existência empírica do objeto não-conhecido (a que se dá o
nome de"circunstâncias", os dados contingentes, etc.) - o que per-
mite cruzar os termos, e realizar o paralogismo de um curto-circuito
em que se compara então o conhecimento de um objeto determinado
(a necessidade do económico) com a existência empírica de outro
objeto (as "circunstâncias" politicas ou outras, através das quais se
diz que essa "necessidade" *"abre o seu caminho").
A mais célebre forma desse paralogismo nos é dada pelo
"problema" do "papel do individuo na história"... trágico debate
em que se trata de confrontar o teórico ou conhecimento de um ob-
O OBJETo DE "O CAPITAL" 53

jeto determinado (por exemplo, a economia) - que representa a es-


sência da qual os demais objetos (o politico, o ideológico, etc.) são
pensados como os fenômenos - com essa realidade empírica excessi-
vamente importante (politicamente!) que é a ação individual. No
caso ainda, temos diante de nós um curto-circuito de termos cruza-
dos, cuja comparação é ilegitima: pois no caso confrontamos o co-
nhecimento de um objeto determinado com a existência empírica de
outro! Eu não gostaria de insistir nas dificuldades que esses concel-
tos apresentam para seus autores, que não podiam desembaraçar-se
de outro modo, a menos que empreendessem o questionamento
crítico dos conceitos filosóficos hegelianos (e de modo mais geral
clássicos) que esto nesse paralogismo como veneno na água. Obser
vo, todavia, que esse falso problema do "papel do individuo na his-
tória" é, no entanto, indicador de um verdadeiro problema, que de
corre de pleno direito da teoria da história: o problema do conceitoo
das formas de existência históricas da individualidade. O Capital nos
dá os principios necessários para a colocação desse problema, ao de
finir para o modo de produç o capitalista as diferentes formas da in-
dividualidade exigidas e produzidas por esse modo de produção, se-
gundo as funções de que os indivíduos são"portadores" (Träger) na
divisão do trabalho, nos diferentes "níveis" da estrutura. E claro, no
caso ainda, o modo de existência histórico da individualidade num
modo de produçãodado não a olho
é visível
nu na seu
"história";
conceito deve, pois, ser construído, e como todo conceito ele reserva
surpresas, a mais crua das quais é que ele não se assemelha às falsas
evidências do "dado" - que não passa de máscara da ideologia cor-
rente. É a partir do conceito das variações do modo de existência
histórico da individualidade que pode ser enfocado o que subsiste
verdadeiramente do "problema" do "papel do indivíduo na história",
que, proposto na sua forma célebre, é um problema falso, porque
cambado, teoricamente "adulterino", dado que se confronta nele a
teoria de um objeto com a existência empirica de outro. Na medida
real (o das
n
que não se tenha proposto o problema teórico formas
de existência históricas da individualidade) continuaremos a assistir
confusão Plekhanov, que vasculha o leito de
ao debate na como
-

Luis XV para verificar que os segredos da queda do Antigo Regime


não estão lá enfurnados. Via de regra, os conceitos não se escondem
em camas. *

início deste livro, sobre caráter de inacabamento da obra.


Althusser adverte, no o
Esta referência a Plekhanov exemplifica isso. O leitor poderá verificar em Reflexões
alude a
sobre a História (Editorial Presença, Lisboa, 1970, pp. 113 ss.) que Plekhanov
sociais, único
M Pompadour dentro de um contexto bem determinado de condições
54 LER O CAPITAL"

Uma vez elucidada, pelo menos em principio, a especificidade


do conceito marxista de tempo histórico uma vez criticadas como
ideológicas todas as noções comuns que sobrecarregam a palavra
história, podemos compreender melhor os diferentes efeitos que esse
mal-entendido sobre a história originou na interpretação de Marx.
A compreensão do principio das confusões revela-nos ipso facto a
pertinência de certas distinções essenciais que, figurando em termos
adequados em O Capital, apesar disso foram não raro mal com
preendidas.

Compreendemos em primeiro lugar que o simples projeto de


"historicizar" a economia politica clássica nos lança no impasse teó-
rico de um paralogismo em que as categorias econômicas clássicas,
em vez de serem pensadas no conceito Aeórico de história, são sim-
plesmente projetadas no conceito ideológico de história. Esse projeto
nos dá o esquema clássico, novamente ligado ao desconhecimen-
to da especificidade de Marx: no final, Marx teria concluido a união
da economia politica clássica com o método dialético hegeliano
(concentrado teórico da concepção hegeliana da história). Eis-nos,
porém, de novo diante da colagem de um método exotérico prexis-
tente sobre um objeto predeterminado, isto é, diante desta união
teoricamente duvidosa de um método definido independentemente
de seu objeto, e cujo acordo de adequação com o seu objeto só pode
ser celebrado sob o fundo comum ideológico de um mal-entendido
gue marca tanto o historicismo hegeliano como o eternitarismo dos
economistás. E com isso os dois termos do par eternidade/história
vão proceder de uma problemática comum, vindo o "historicismo"
hegeliano a ser apenas a contraconotação historicizada do "eternita-
rismo" econômico.

Mas compreendemos também, em segundo lugar, o sentido dos


debates, que não estão ainda encerrados, sobre a relação da teoria
econômica com a história, no próprio O Capital. Se os debates se
prolongaram até nós, isto se deve em grande parte ao efeito de umna
confusão sobre o estatuto da própria teoria econômica e da história.
Quando Engels, no Anti-Dühring (Ed. Soc., p. 179), escreve que ""a
Economia Política é essencialmente uma ciência
"trata de matéria histórica, isto é, constantemente
histórica", porque
mos no ponto exato do
cambiante", esta-
equívoco: onde a palavra histórica tanto pode
pender para o conceito marxista como para o conceito ideológico de

em que
car
é possível a influência de indivíduos. Critica, isto sim, Sainte-Beuve,
por bus-
explicações históricas em fatos de alcova.
(N. do T.)
O OBJETO DE "O CAPITAL"
55

história, conforme designe o objeto de conhecimento de uma teoria


da história ou, pelo contrário, o objeto real de que essa teoria dá o
conhecimento. Podemos de pleno direito afirmar que a teoria da
economia politica marxista remete como uma de suas regiões à teo-
ria marxista da história; mas podemos também crer que a teoria da
economia politica é atingida até em seus conceitos teóricos pela qua-
lidade própria da história real (sua "matéria" que é "cambiante"). E
no sentido dessa segunda interpretação que Engels nos joga, em cer-
tos textos surpreendentes, que introduzem a história (no sentido em-
pirista-ideológico) até nas categorias teóricas de Marx. Cito por
exemplo a obstinação dele em reiterar que Marx não podia produ
zir em sua teoria verdadeiras definições cientificas devido a razöes
atinentes às propriedades de seu objeto real, à natureza móvel e cam-
biante de uma realidade histórica refratária por excelência a qualquer
eterna só poderia falsear a
tratamento por definição, cuja Jorma Jixa e
perpétua mobilidade do vir-a-ser histórico.

No Prefácio ao livro IlI de O Capital (VI, 17), Engels, citando


as críticas de Fireman, escreve:

Todas elas se baseiam nesse mal-entendido: Marx gostaria de definir


onde na realidade desenvolve; de modo geral estaríamos no direito de
procurar nos escritos dele definições já prontas, válidas de uma vez por
todas. Evidentemente, a partir do momento em que as coisas e suas rela-
çoes recíprocas são concebidas como não-fixas, mas como variáveis, os
seus reflexos mentais e os seus conceitos também estão sujeitos à variação e
à mudança; nessas condições, eles não estarão encerrados numa definição
rigida, mas desenvolvidos segundo o processo histórico ou lógico de sua
formação. Por conseguinte, vè-se claramente por que Marx parte, no iníi
cio do Livro I, da simples produção mercantil, que para ele é à condição
histórica prévia, para chegar depois... ao capital.

O mesmo tema é retomado nas notas de trabalho do Anti-


Dühring (Ed. Soc., p. 395):
As definições não têm valor para a ciência, porque são sempre insufi-
cientes. A única definição real é o desenvolvimento da própria coisa, mas
esse desenvolvimento não é mais uma definição. Para saber e mostrar o que
é a vida, somos obrigados a estudar todas as formas da vida e a represen-
tá-las em seu encadeamento. Por outro lado, para o uso corrente, uma
breve exposição dos caracteres mais gerais e ao mesmo tempo mais tipi-
e isso
cos no que se chama uma definição pode ser útil, e até necessária,
mais do que ela
não pode prejudicar, caso não se peça a essa exposição
pode enunciar. (Os grifos são meus. L. A.)

Os dois trechos não deixam, infelizmente, lugar a qualquer


cquivoco, pois vão ao ponto de designar muito precisamente o lugar
56 LER O CAPITAL"

do "mal-entendido" e a lhe formular Todas as persona-


os termos.
gens do mal-entendido entram em cena no caso, cada qual desempe-
nhando o papel prescrito pelo efeito que se espera desse teatro. Bas-
ta-nos mudá-los de lugar para que exibam o papel que se lhes atri
bui, o abandoneme se ponham a declamar um texto completamente
diferente. Todo o mal-entendido desse raciocinio decorre de fato do
paralogismo que confunde o desenvolvimento teórico dosconceitos
com a gênese da história real. No entanto, Marx havia distinguido
cuidadosamente essas duas ordens, ao mostrar, na Introdução de
1857, que não se podia estabelecer qualquer correlação biunívoca
entre os termos que figuram, por um lado na ordem de sucessão dos
conceitos no discurso da demonstração cientifica, e por outro na or-
dem genética da história real. No caso, Engels postula essa impossi-
vel correlação, identificando sem hesitar o desenvolvimento
"lógi-
co como desenvolvimento "histórico". E com grande honestidade
ele nos indica a condição de possibilidade teórica exigida por essa
dentificação: afirmação da identidade da ordem dos dois desen
a
volvimentos deve-se a que os conceitos necessários a toda teoria da
história são afetados, na sua substância de conceitos, pelas proprie
dades do objeto real. *A partir do momento em que as coisas... säo
concebidas como... variáveis, os seus reflexos mentais, os
conceitos
estão também submetidos á variação e à mudança". Para
desenvolvimento dos conceitos com o desenvolvimento da história
identificar o
real, é preciso, pois, ter identificadoo objeto do conhecimento com
o objeto real. ter submetido os conceitos às determinações reais da
história real. Engels afeta assim os conceitos da teoria da história
com um coeficiente de mobilidade, diretamente tomado à sucessão
empírica (à ideologia da história) concreta, transpondo assim o
concreto-real" no "concreto-de-pensamento", e o histórico como
mudança real no proprio conceito. Sob premissas tais, o raciocinio é
cabalmente obrigado a concluir pelo caráter não-científico de qual-
quer definição: "as definições não tém valor para a ciëncia, dado
que "a única definição real éé o desenvolvimento da própria coisa, mas
esse desenvolvimento não é mnais uma definição". No caso ainda, a coi-
sa real entra no lugar do conceito, e o desenvolvimento da coisa real
(isto é, a história real da gênese concreta) entra no lugar do
"desen-
vo/vimento das Jormas que, tanto na Introdução como em O Capital,
é explicitamente declarado como transcorrendo exclusivamente no
conhecimento, referindo-se exclusivamente à ordem necessária de
aparecimento e desaparecimento dos conceitos no discurso da de-
monstração cientifica. Serå preciso mostrar como, na interpretaçao
de Engels, deparamos com um tema
que já encontramos na resposta
a C. Schmidt: o tema da fragilidade originária do conceito? Se as de-
finições não têm valor para a ciência é porque são "sempre insufi-
O OBJETO DE "() CAPITAI."
51
cientes, quer dizer, o conceito é por naturezà falho e traz essa falha
inscrita na Sua propria natureza de conceito: é a consciência desse
pecado original que Ihe faz abdicar de qualquer pretensão de definir
o real, que se "define a si mesmo na produção histórica das formas
de sua gênese. Partindo disso, se propusermos a questão do estatuto
da definição, isto , do conceito, seremos obrigados a
conferir-Ihe
um papel bem diverso da sua pretensão teórica: um papel "prático",
bem próprio para "o uso corrente", um papel de designação geral,
sem qualquer função teórica. Paradoxalmente, vale notar que En-
gels, que começou por cruzar os termos implicados na sua questão,
chega, como conclusão, a uma definição cujo sentido Ihe é também
cruzado, isto é, deslocado em relação ao objeto que ele visa, dado
que nessa definiçao puramente prática (corrente) do papel de con-
ceito científico, ele nos dá de fato com que nutrir uma teoria de uma
das funções do conceito ideológico: a função de aluso e de indica-
dor práticos.

Eis a que ponto leva o desconhecimento da distinção funda-


mental que Marx nitidamente assinalara entre o objeto do conheci-
mento e o objeto real, entre o "desenvolvimento das formas" do
conceito no conhecimento e o desenvolvimento das categorias reais
na história concreta: a uma ideologia empirista do conhecimento eà
identificação do lógico e do histórico no próprio O Capital. Não sur
preende que tantos intérpretes girem em círculos na questão depen-
dentes dessa identificação, se é verdade que todos os problemas refe
rentes à relação do lógico com o histórico em O Capital pressupôem
uma relação que não existe. Imagine-se essa relação como correspon
dência biunívoca direta dos termos das duas ordens constantes nes-
ses dois desenvolvimentos (o do conceito, o de história real), imagi-
ne-se essa mesma relação como correspondência inversa dos termos
das duas ordens de desenvolvimento (este é o fundo da tese de Della
Volpe e de Pietranera que Rancière analisa), e não saimos da hipote
se de uma relaç o onde não existe relação alguma. Desse erro po-
dem-se tirar duas conclusões. A primeira é inteiramente pråtica:
dificuldades encontradas na solução desse problema são graves, na
verdade insuperáveis; se já nem sempre è possivel resolver um
problema existente, pode-se estar certo de que de modo algum se há
de resolver um problema que não existe. A segunda conclusão é

Devemos a Kant poder suspeitar que problemas que não existem possam ensejar
de soluções tão
prodigiosos esforços teóricos e a produção mais ou Kant rigorosa
menos

antasmagóricas quanto seu objeto, pois a filosofia de pode em grande parte ser
Concebida como a teoria da possibilidade da existência de "ciências sem objeto (me
d1SiCa, cosmologia, psicologia racional). Se não se tiver ânimo de ler Kant, pode-se
58 LER O CAPITAL"

teórica: é que seimpðe uma soluçdo imaginária a um problemu


imaginário, e não qualquer soluçào imaginária, mas a solução ima-
ginaria exigida pela colocaçao (imaginaru) desse problema imaginá-
rio. Toda colocaçào imaginaria
(ideologica) de um problema (que
pode tambèm ser imaginário) traz enm si uma problemática
nada, que deline tanto a possibilidade como a forma de determi-
desse problema. Essa problematica reencontra-se, como suacolocação
refletida, na própria solução dada ao problema, em virtude imagem
do jogo
especular peculiar ao'imaginário ideológico (ef. tomo I. cap. I); se
não se encontra diretamente em pessou nu questão mencionada, ela
aparece em outro lugar, de face
descobertu, quando se trata explici
tamente dela, na "teoria do conhecimento"
latente que sustenta a
identificação do histórico com o lôgico: uma ideologia empirista do
conhecimento. Nåo é. pois, por acaso que vemos
Engels literalmente
jogado por sua questão na tentação desse empirismo, nem que, sob
outra forma, Della Volpe e seus
discipulos sustentem a tese da iden-
tificação inversa das ordens histórica e lógica em O Capital. pelo ar-
gumento de uma teoria da "abstração histórica", que é uma forma
superior de empirismo historicista.
Volto a O Capital. O erro que acabamos de assinalar sobre a
existencia imaginária de uma relação não-existente tem por efeito
tornar invisível outra relação - legítima porque existente e fundada
de direito entre teoria da economia e teoria da história. Se a
-

pri-
meira relação (teoria da economia história concreta)
e
ria, a segunda relação (teoria da economia e teoria da história) é*
era imaginá-
uma verdadeira relação teórica. Por que ficou a tal ponto se não in-
visível pelo menos opaca? E que a primeira relação tinha a seu favor
a precipitação da "evidência", isto é, tentações empiristas dos histo-
riadores que, lendo em O Capital páginas de história "concreta" (a
luta pela diminuição da duração da jornada de trabalho, a
passagemn
da manufatura à grande indústria, acumulação primitiva, etc.), Vi-
ram-se de algum modo "à vontade"', e colocavam então o problema
da teoria econômica em função da existência dessa história "concre-
ta,sem sentir a necessidade de propor a questão dos seus titulos.
Interpretavam à maneira empirista as análises de Marx, que, long
de serem análises históricas no sentido rigoroso, isto é, sustentadas

interrogar diretamente os produtores de "ciências'" sem objeto: por exemplo, os teo


OgOS, à maior parte dos psicossociólogos ou certos "psicólogos", etc. Acrescento, ac

, u e em certas circunstâncias essas "ciências sem objeto" podem, devido à con-


Juntura
teðrica e ideológica, conter ou produzir, na eluboração da tçoria do seu pre
enso "objeto", as formas teóricas da racionalidade existente: por exemplo, na ldade
Media, a teologia detinha sem
dúvida nenhuma e elaborava as formas do teorico
ExIS
tente.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 59

pelo desenvolvimento do conceito de história, são antes produtos


semi-acabados para uma historia (ct. o texto de Balibar, p. 153)
tratamento histórico desses materiais. Faziam da
que verdadeiro
Dresença desses materiais elaborados pela metade o argumento de
uma concepção ideológica da história, e propunham então a ques-
tão dessa ideologia da história "concreta" à teoria "abstrata" da
economia política: donde ao mesmo tempo o seu fascínio diante de
O Capital e o seu embaraço diante desse discurso que Ihes aparecia,
economistas tinham
em numerosas partes, como "especulativo". Os
entre a história econômica (concre-
quase o mesmo reflexo, jogados
ta) teoria econömica (abstrata). Uns e outros pensavam encon-
e a
trar emO Capital o que procuravam, mas encontravam
nele tam-
bém outra coisa a mais, que não procuravam, e que tentavam então
reduzir, propondo o problema imaginário das relações biunívocas,
ou outras, entre a ordem abstrata dos conceitos e a ordem concreta
à
da história. Não viam que aquilo que encontravam não respondia
sua questão, mas à questão inteiramente diversa que,
é claro, des-
mentia a ilusão ideológica do conceito de história que traziam neles,
e projetavam em sua leitura de O Capital. O que eles não viam é que
a teoria "abstrata" da economia politica é a teoria de uma região
que pertence organicamente como regio (nível ou instância) ao
viam é que a his-
próprio objeto da teoria da história.0 que eles não
tória aparece em O Capital como objeto de teoria, e não como obje-
to real, como objeto ""abstrato" (conceptual), e não como objeto
concret0-real; e que os capítulos em que o primeiro grau de um tra-
tamento histórico é aplicado por Marx ou para as lutas pela redução
da jornada de trabalho ou para a acumulação primitiva capitalista,
do
remetem, como a seu princípio, à teoria da história, à elaboração
conceito de história, e de suas "formas desenvolvidas", da qual a
constitui uma
teoria econômica do modo de produção capitalista
"região" determinada.
Uma palavra a mais sobre um dos efeitos atuais desse mal1-
entendido. Verificamos nele uma das origens da interpretação de O
Capital como "modelo teórico", fórmula cuja intervenção pode
ser a
priori sempre recuperada no sentido clinico rigoroso da palavra,
sobre o objeto de um co-
como sintoma do mal-entendido empirista como "mode-
dado. De essa concepção da teoria
fato,
nhecimento
Só épossível sob a primeira condição, propriamente ideológica,
concreto
do
de
incluir,própria teoria, a distância que a separa
na
de pensar
cmpirico; e sob a segunda condição, também ideológica,
como
distäncia como distância por sua vez empírica e, depois,
sd então ter o privilegio
ertencente ao próprio concreto, que se pode
ISto e, a banalidade) de definir como o que é "sempre-mais-rico-e
ais-Vivo-que-a-teoria". Ninguém duvida de que haja nessa procla
60 LER O CAPITAL"

mação de títulos exaltantes da superabundância da "vida" e do


"concreto", da superioridade da imaginação do mundo, e do vigor
da ação sobre a pobreza e a velhice da teoria, uma séria
lição de mo-
déstia intelectual a bom entendedor
meia palavra basta. Mas também estamos(presunçoso ede
dogmático)
-

prevenidos que o con-


creto e a vida possam ser pretexto para as facilidades de uma
lice
tagare-
que pode servir para mascarar intenções apologéticas (um
deus, seja qual for a chancela, está sempre em vias de fazer o seu ni-
nho nas plumas da superabundância, isto é, da "transcendência"
do
concretoe da "vida") - ou pura e simples preguiça intelectual. O
que nos importa é precisamente o uso que se faz desse gênero de lu-
gares-comuns repetidos fastigiosamente sobre o tema dos excessos
da transcendência do concreto. Ora, na concepção do conhecimento
como "modelo", vemos o real ou o concreto intervir para permitir
pensar a relação, isto é, a distäncia do ""concreto" à teoria, ao mes-
mo tempo na própria teoria, e no prôprio real, e não num real exte-
rior a esse objeto real do qual a teoria dá precisamente o conheci-
mento, mas nesse objeto real mesmo, como uma relação da parte
com o todo, de uma
parte "parcial" com um todo superabundante
cf. tomoI, cap. I, parágrafo 10). Essa operação tem por efeito ine-
vitável fazer pensar a teoria como um instrumento empirico, entre
outros, em suma, reduzir diretamente toda teoria do conhecimento
como modelo ao que ela é: uma forma de pragmatismo teórico.
Sustentamos, pois, com isso, até no último efeito do seu erro,
um princípio de compreensão e de crítica preciso: é o relacionamen-
to de correspondëncia biunívoca, no real do
objeto, de um conjunto
teórico (teoria da economia política) com o conjunto empíriço real
(a história concreta) cujo primeiro conjunto éo conhecimento, que
a raiz dos contra-sensos sobre a
questão das "relações" da "Lógica"
com a "história" em O Capital. O mais grave desses contra-sensos é
o seu efeito de
cegar: que tenha por vezes impedido de perceber que
O Capital continha cabalmente uma teoria da história, indispensável
para a compreens o da teoria da economia.
O OBJETO DE "O CAPITAL"
61

V. O Marxismo no é um Historicismo

Eis-nos, porém, diante de um último mal-entendido que é da


mesma estirpe, mas talvez ainda mais sério, porque recai não apenas
sobre a leitura de O Capital, não apenas sobre a filosofia marxista,
mas sobre a relação que existe entre O Capital e a filosofia marxista,
e pois entre o materialismo histórico e o materialismo dialético, isto
é, sobre o sentido da obra de Marx considerada como um todo e, fi-
nalmente, sobre a relação existente entre a história real e a teoria
marxista. Esse mal-entendido decorre do equívoco que ve no marxis
mo um historicismo, e o mais radical de todos, um "historicismo ab-
soluto". Essa afirmação põe em cena, sob as roupagens da relação
existente entre a ciència da história e a filosofia marxista, a rela-
ção que a teoria marxista mantém com a história real.

Afirmo que o marxismo, do ponto de vista teórico, nem é um


historicismo nem um humanismo (cf. Pour Marx, pp. 225 ss.); que,
muitas circunstâncias, humanismo e historicismo repousam am-
em
bos na
mesma problemática ideológica; e que, teoricamenteJalando.
O marxismo é, por um mesmo movimento e em virtude da ruptura

epistemológica única que o funda, um anti-humanismo e um anti-


a-humanismo e a-historicismo.
Storicismo. A rigor, devia eu dizer todo o de uma
Emprego, pois, conscientemente, para lhe dar peso
62 LER O CAPITAL"

declaração de ruptura, que longe está de evidente e, pelo contrário é


dificil de captar, essa dupla fórmula negativa (anti-humanismo, anti-
historicismo) em vez de uma simples forma privativa, porque esta
não é bastante forte para repelir o assalto humanista e historicista
que, em certos meios há quarenta anOs, não cessa de ameaçar o mar-
xismo.

Sabemos perfeitamente em que circunstâncias essa interpreta-


ção humanista e historicista de Marx nasceu, e que circunstâncias
recentes Ihe deram renovado vigor. Ela nasceu de uma reação vital
contra o mecanismo e o economicismo da II Internacional, no
periodo que precedeu, e sobretudo nos anos que se seguiram à revo-
lução de 1917. Possui, por essa razao, reais meritos históricos, como
possui certos títulos históricos, embora sob forma bastante diferen-
te, o renascimento recente dessa interpretação, depois da denúncia,
pelo XX Congresso, dos crimes e erros dogmáticos do "culto da perso-
nalidade". Se esse recente vigor não é mais do que repetição, e o mais
das vezes o desvio generoso ou hábil mas "direitista" de uma reação
histórica que tinha então a força de um protesto de espírito re-
volucionário, embora "esquerdista" - não poderia nos servir de nor-
ma para julgar do sentido histórico do seu primeiro estado. Os te-
mas de um historicismo e humanismo revolucionários surgiram em
torno da esquerda alem, de Rosa Luxemburg e Mehring primeira-
mente, e depois, após a revolução de 17, em torno de numerosos teo-
ricos, alguns dos quais se perderam como Korsch, mas outros de-
sempenharam papel importante, como Lukács, e até muito impor-
tante, como Gramsci. Sabemos em que termos Lênin julgou esse
movimento de reação "esquerdizante" contra a vulgaridade mecani
cista da Il Internacional: condenando-lhe as fábulas teóricas, a táti-
ca politica (cf. O Esquerdismo ou a Doença Infantil do Comunismo)
mas sabendo reconhecer o que ele continha ento de autenticamente
revolucionario, por exemplo, em Rosa Luxemburg e Gramsci. Serd
preciso um dia esclarecer todo esse passado. Esse estudo histórico e
teórico nos é indispensável para bem distinguir, inclusive em nosso
presente, as personagens reais dos fantasmas, e para assentar em
Dase indiscutivel, os resultados de uma critica feita então no tumuto
da batalha, em que a reação contra o mecanicismo e fatalismo da l
Internacional teve de assumir a forma de um apelo à consciência e a
vontade dos homens, para que fizessem afinal a revolução que a his-
toria
Ihes permitia fazer.
Nesse dia se compreenderá talvez um pou-
co melhoro paradoxo de um titulo célebre em que Gramsci exaltava
a
Revolução contra o Capital, afirmando francamente que a revolu-
ção anticapitalista de 1917 teve de fazer-se "contra O Capital de K.
Marx. pela ação voluntária e consciente dos homens, das massas e
O OBJETO DE O
CAPITAL' 63

dos bolcheviques e não pelavirtude de um livro em que a l1 Interna-


cional lia. como numa Biblia, o advento fatal do socialismo."

Até que seja feito o estudo cientifico das condiçôes que produ-
ziram a primeira forma "esquerdista"" desse humanismo e desse his-
toricismo, estamos aptos a identificar o que, em Marx, podia autori-
zar então essa interpretação e o que nao deixa, evidentemente, de
justificar sua forma recente aos olhos dos leitores atuais de Marx.
Não nos espantaremos ao descobrir que as mesmas ambigüidades
de formulação que nutriram uma leitura mecanicista e evolucionista
autorizaram igualmente uma leitura historicista: Lênin nos deu mui-
tos exemplos do fundamento teórico comum do oportunismo e do
esquerdismo, para que esse encontro paradoxal não nos embarace.
Menciono ambigüidades de formulações. No caso ainda, esco-
ramo-nos numa realidade cujos efeitos já avaliamos: Marx, que ca
balmente produziu em sua obra a distinção que o separa de seus pre
decessores, não pensou - e este é o destino comum de todos os cria-
dores com toda a nitidez desejável o conceito dessa distinção; Marx
não pensou teoricamente, sob forma adequada e desen volvida, o
conceito e as implicações teóricas do seu esforço teoricamente revo
lucionário. Ora, ele o pensou, na melhor das hipoteses, nos concei
tos em parte tomados a outros, e sobretudo nos conceitos hegelianos
-
o que introduz um efeito de deslocamento entre o campo semânti-
co original em que säo colhidos esses conceitos, e o campo dos obje-
tos conceptuais aos quais são aplicados; ora, ele pensou essadiferen
ça por si mesma, mas parcialmente, ou no esboço de uma indicação,
na procura obstinada de equivalentes,'" mas sem chegar de todo a
enunciar na adequação de um conceito o sentido original rigoroso
do que produzia. Esse deslocamento, que só pode ser revelado e re-
duzido mediante uma leitura critica, faz objetivamente parte do pró-
2
prio texto do discurso de Marx.

Gramsci: "Não, as forças mecânicas nunca levam a melhor na histria: são os ho-
mens, sã0 a consciència e o espírito que modelam o aspecto exterior e acabam sempre
por triunfar... contra a lei natural, contra o curso fatal das coisas impôs-se a vontade

tenaz do homem". (Texto publicado em Rinacità, 1957, pp. 149-158. Citado por Ma-
rio Tronti no Studi Gramsciani, Editori Riuniti, 1959, p. 306.)
às suas metáforas
Sob esse aspecto, seria necessário dedicar um estudo completo
Lipicas, à sua proliferação em torno de um centro que elas têm por missão cercar, não
podendo chamá-lo pelo seu nome próprio, o de seu conceito.
mas de todo
Esse deslocamento e sua necessidade não são peculiares de Marx,
es-

forço de fundação cientifica e de toda produção cientifica em geral: seu estudo exige
teoria da história da produção dos conhecimentos e uma história do teôrico,
uma
cuja necessidade sentimos ainda aqui.
64 LER O CAPITAL"

Nisso consiste, fora de qualquer tendenciosidade, a razão pela


qual tantos herdeiros e partidários de Marx puderam desenvolver
inexatidões sobre o seu pensamento, embora pretendendo permane-
cer fiéis à letra dos textos que tinham nas mãos.
Gostaria de entrar aqui em algum pormenor para mostrar sob
que aspecto alguns textos de Marx permitem dar-lhe uma interpre-
tação historicista. Não falarei dos textos da juventude ou do "corte"
(Pour Marx, p. 26) porque a demonstração no caso é fácil. Nãoé
preciso torcer textos como as Teses sobre Feuerbach e A ldeologia
Alema, e que contem ainda profundas resson ncias humanistas e
historicistas, para Ihes fazer pronunciar as palavras que deles se es-
peram: esses textos falam por si. Falarei apenas de O Capital e da In-
trodução de 57.
Os textos de Marx que autorizam uma leitura historicista de
Marx podem ser grupados sob duas rubricas. Os primeiros referem-
se à definição das condições nas quais nos é dado o objeto de toda
Ciencia histórica.
Na Introdução de 57, escreve Marx:
. em toda ciência histórica ou social em geral não se deve jamais es-
quecer, a propósito da marcha das categorias económicas, que o tema, no
caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como no cé
rebro, e que as categorias exprimem, pois, formas de existência, condi-
çoes de existência determinadas, não raro simples aspectos determinados
desse tema, dessa sociedade determinada, etc. (170).

Podemos comparar esse texto com uma passagem de O Capital


(I.87):
A reflexão sobre as formas da vida social, e. por conseguinte, sua
análise científica, segue um caminho completamente oposto ao movVi
mento real. Ela começa depois, com dados já inteiramente estabelecidos.
com os resuliados do desenvolvimento..

Esses textos indicam não apenas que o objeto de qualquer ciën-


cia sociale histórica é objeto que se tornou resultado, mas também
que a atividade de conhecimento que se aplica a esse objelo e lambem
determinada pelo presente desse dado, pelo momento atual do dado.
Eo que certos intérpretes marxistas italianos, retomando unma ex-
pressão de Croce. chamam de categoria da "contemporaneidade do
"presente histórico", categoria essa que define historicamente, e de-
ine como históricas, as condições de qualquer conhecimento sobre
um objeto histórico. Esse termo "contemporaneidade" pode con-
ter um equivoco. con forme sabemos.
O próprio Marx parece reconhecer essa condição absoluta na
Introdução, poucas linhas antes do texto citado:
O OBJITO DE "O CAPITAI" 65

O que se chama desenvolvimento histórico repousa em suma no fato


de que a última forma considera as lormas passadas como fases condu-
centes ao seu próprio grau de desenvolvimento, e como essa forma rara-
mente é capa/, e isso apenas em condicies bem determinadus, de fazer sa
própria crtica... ela as concebe sempre sob um aspecto unilateral. A reli
gião eristà nào foi capaz de ajudar a compreender ohjetivamente as mito-
logias anteriores, senão após ter concluido até certo grau. por assim dizer
dynamei, a sua própria eritica. Do mesmo modo, a economia politica
hurguesa só veio a compreender as sociedades feudais, antigas, orientais,
no dia em que começou a autoerítica da sociedade burguesa...
( Introducçãv, 170.)

Em resumo: toda ciência de um objeto histórico ( em particular


da economia politica) recai sobre um objeto histórico dado, presen-
te, objeto que se tornou resultado da história passada. Toda opera-
ção de conhecimento, partindo do presente e referente a um objeto-
transformado, nada mais é. portanto, que a projeção do presente no
passado desse objeto. Marx descreve, pois, aqui a retrospecção que

Hegel criticara na história "refletidora" (Introdução à Filosofia da


História). Essa retrospecção inevitável só é científica se o presente
chega à ciència de si, à crítica de si, å sua autocritica, isto é, se o pre-
sente for um 'corte essencial que torne a essencia VISIvel.
Mas aqui é que intervém o segundo grupo de textos, ponto de-
cisivo onde se poderia falar de um historicismo. de Marx. O ponto
refere-se precisamente ao que Marx chama no texto acima de ""as
condições bem determinadas da autocrítica de um presente. Com-
preendamos: para que deixe de ser subjetiva a retrospecção da cons-
ciencia de si de um presente, impõe-se que esse presente seja capaz
de autocriticar-se a fim de atingir a ciência de si. Ora, que vemos se
considerarmos a história da economia política? Vemos pensadores
que nada mais fizeram do que pensar, encerrados
nos
limites do seu
presente, e não podendo saltar por cima do seu tempo. Por exemplo,
Aristóteles. Todo o seu gênio não Ihe permitiu escrever além da
igualdade.r obj tos A = " objetos B, como igualdade. e declarar que
a substancia comum dessa igualdade era impensável porque absur-
da. Assim fazendo, chegou aos limites de seu tempo. Quem o impe

dia de ir além?
O que impediu Aristóteles de LER (herauslesen) na forma valor das
mercadorias que todos os trabalhos são expressos aqui como trabalho
humano indistinto, e, por conseguinte, iguais, foi que ä sociedade grega
repousava no trabalho dos escravos, e tinha por base natural a desigual-
dade dos homens e de suas forças de trabalho.
(O Capital. 1. 73.)

O presente que permitia a Aristóteles ter essa genial intuição de


leitura o impedia ao mesmo tempo de responder ao problema que
LER O CAPITAL"
66

ele formulara. " O mesmo vale p a r a todos os demais grandes criado-

res da economia politica clássica. Os mercantilistas nada mais fize-


ram do que refletir o seu prôprio presente, fazendo a teoria monetá-
ria da politica monetária do seu tempo. Os fisiocratas apenas refleti.
ram o seu próprio presente, esboçando uma teoria genial da mais-
valia, mas da mais-valia natural, a do trabalho agrícola, em que se
podia ver o trigo crescer e o excedente não-consumido de um traba-
lhador agrícola produtor de trigo passar aos celeiros do fazendeiro:
assim fazendo, eles nada mais enunciavam do que a própria essência
do seu presente, o desenvolvimento do capitalismo agrário nas planí-
cies férteis da Bacia Parisiense, que Marx enumera: * a Normandia,
a Picardia, a Île-de-France (Anti-Düring, Ed Soc., cap. X, p. 283).
Também os fisiocratas não puderam passar além da sua época; só
chegaram a conhecimentos na medida em que a época lhes oferecia
numa forma visível e os produzira para a sua consciència: descre-
viam, em suma, o que viam. Ter o Smith e Ricardo ido além, e terão
descrito o que não viam? Passaram além de sua época? Não. Se che-
garam a uma ciência que foi coisa diferente da simples consciência
do seu presente éque a consciência deles continha a verdadeira au-
tocrítica daquele presente. Como foi possível então aquela autocríti-
ca? Na lógica dessa interpretação, hegeliana em seu principio, so-
mos tentados a dizer: atingiram na consciência de sua época presen-
te a própria ciência, porque essa consciência era, como consciëncia,
a sua própria autocrítica, e
portanto ciência de si.
Em outras palavras: a característica de seu presente vivo e vivi-
do, que o distingue de todos os demais
presentes (do passado) é que,
pela primeira vez, esse presente produzia em si sua própria crítica de
Si, que ele possuía, pois, esse privilégio histórico de produzir a ciên
Cia de si na própria forma da consciência
de si. Mas ele traz um n0-
me: è o do
presente saber absoluto, em consciènciae
que ciencia se
1dentificam, e onde a verdade pode ser lida em livro aberto
menos, se não diretamente, pelo menos com pouco esforço, dado
nos
feno
que nosfenômenos estão realmente presentes, na existência
ca empirl-
real, as abstrações em que repousa toda a ciência histórico-social
considerada.
O segredo da
expressão do valor diz Marx logo após haver falado
-

de Aristóteles -, a
igualdade e a equivalência de todos os trabalhos
do a serem, e na medida em dev
que são trabalho humano,
só podem
ser
deci
Não é falso, sem dúvida; mas quando relacionamos essa limitação diretamente a
"história, corremos o risco, no caso ainda, de invocar
lógico de história. simplesmente o conceito ideo-
A enumeração é
mentário que faz
de Engels, juntamente com "outras provincias francesas, no
do
Quadro de Quesnay. (N. do CO
T.)
O OBJETO DE "O CAPITAL" 67

frados quando a noção de igualdade humana houver já adquirido a tena-


cidade de um preconceito popular... Mas isso só acontece numa sociedade
em que a forma mercadoria se tiver transformado na forma geral dos produ-
tos do trabalho, em que, por conseguinte, a relação dos homens entre si,
enquanto produtores e trocadores de mercadorias, for a relação social
dominante...
(O Capital, 1, 75.)

Ou ainda:

..é preciso que o mundo da mercadoria se tenha completamente de-


senvolvido antes que, da própria experiência se extraia esta verdade
cientifica: que os trabalhos privados, executados independentemente uns
dos outros, embora se entrelacem como ramificações do sistema social
espontaneo da divisão do trabalho, são constantemente reduzidos à sua
medida social proporcional...
(0 Capital, I, 87.)
A descoberta cientifica... de que os produtos do trabalho, enquanto
valores, são a expressão pura e simples do trabalho humano gasto na sua
produção assinala uma época no desenvolvimento da humanidade..
(O Capital, 1, 86.)

Essa época histórica da fundação da ciência da Economia Polí


tica parece realmente posta aqui em relações com a propria expe
riência (Erfahrung), isto é, a leitura a céu aberto da essència no feno
meno, ou, se preferirmos, a leitura em corte da essência na quadra
do presente, com a essência de uma época determinada da história
humana, em que a generalização da produção mercantil, portanto,
da categoria mercadoria, apareça ao mesmo tempo como a condi-
ção de possibilidade absoluta e o dado imediato dessa leitura direta
da experiência. Efetivamente, tanto na Introdução como em O Capi-
tal afirma-se que essa realidade do trabalho em geral, do trabalho
abstrato, é produzida como uma realidade fenomênica pela produ-
ção capitalista. A história teria de algum modo atingido esse ponto,
produzido essa presença específica excepcional onde as abstrações
cientificas existem em estado de realidades empíricas, em que a ciên-
Cia, os conceitos cientificos existem na forma do visivel da experièn-
Cia como outras tantas verdades a céu aberto.
Eis os termos da Introdução:

Essaabstração do trabalho em geral não é apenas o resultado no


totalidade concreta de trabalho. A indife-
pensamento (Geistige) de uma
determinado corresponde a uma forma de so-
rença quanto a tal trabalho
ciedade na qual os indivíduos determinados passam com facilidade de
um trabalho a outro, e na qual o gênero
de trabalho preciso é para eles
68 LER O CAPITAL'

fortuito, e pois indiferente. No caso, o trabalho transformou-se não ape-


nas na categoria, mas na reaidade (in der Wirklichkeit) por sua vez um
meio de criar a riqueza em geral, e deixou, enquanto determinação, de
identificar-se com os indivíduos, sob algum aspecto particular. Esse estado
de coisas atingiu o mais alto grau de desenvolvimento na forma de exis-
tência mais moderna das sociedades burguesas, nos Estados Unidos. Lá
apenas é que a abstração da categoria "trabalho", "trabalho em geral",
trabalho "sem adjetivação. ponto de partida da economia moderna, trans-
forma-se em verdade prática (wird praktisch wahr). Desse modo, a mais.
simples abstração, que a economia moderna coloca em primeiro lugare que
exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de socieda-
de, só aparece no entanto sob essa forma abstrata como verdade prática
(praktish wahr) enquanto categoria da sociedade mais moderna.
(Inirodução, pp. 168-169.) (Grifos meus. L. A.)

Se o presente da produção capitalista produziu na sua realidade


visível ( Wirklichkeit, Erscheinung, Erfahrung), na sua consciëncia de
si, a própria verdade cientifica, se, pois, sua consciência de si, seu
próprio fenômeno é em ato sua própria autocrítica - compreende-se
perfeitamente que a retrospecção do presente sobre o passado não
seja mais ideologia, porém verdadeiro conhecimento, e apreende-se
o primado epistemológico legítimo do presente sobre o passado:
A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais
desenvolvida e mais variada possível. Com isso, as categorias que expri-
mem as relações dessa sociedade e que permitem compreender-Ihe a es-
trutura permitem ao mesmo tempo explicar a estrutura e as relaçôes de
produção de todas as formas de sociedades extintas com cujos restos e ele-
mentos ela se edificou, das quais certos vestigios, parcialmente ou não ainda
superados, continuam a sobreviver nela, e das quais certos indícios simples,
ao se desenvolverem, assumiram toda a sua significação, etc. A anatomia do
homem éa chave da anatomia do macaco. Nas
espécies animais inferiores
não se podem compreender os indícios anunciadores da forma superior a
menos que a forma superior seja por sua vez ja conhecida. Assim a eco-
nomia burguesa nos dá a chave da economia
antiga, etc.
(Introdução, p. 169.)

Basta dar passo a mais na lógica do saber absoluto, pensar


um
o desenvolvimento da história que culmina e se realiza no
de uma ciência idntica à presente
consciência, e refletir esse resultado numa
retrospecção fundada, para conceber toda a história econômica (ou
outra) como o desenvolvimento, no sentido hegeliano, de uma
ma
simples primitiva, originária (por exemplo, o valor, imediata- for
mente presente na mercadoria) e para ler O Capital como uma dedu-
ção lögico-histórica de todas as
uma categoria
categorias econòmicas a partir de
originária, a categoria de valor ou a de trabalho. Sob
essa condição, o método de
a gènese
exposição de O Capital confunde-se com
especulativa do conceito. Mais ainda, essa gênese especula-
o OBJETo DE "O CAPITAL" 69

concreto real, isto é,


tiva do conceito é idèntica à gênese do próprio
ao processo da história empírica.
Desse modo nos encontraríamos
do
diante de uma obra de essëncia hegeliana. Eis por que questão
a
tudo podendo ocorrer
ponto de partida assume tal valor critico,
numa leitura mal compreendida do primeiro capítulo do primeiro
como o
Livro. E também por essa razão que toda leitura crítica,
mostraram as exposições precedentes, deve
elucidar o estatuto dos
e do modo de análise do primeiro capítulo
do Livro I,
conceitos
na0 cair nesse mal-entendido.
para Essa forma de historicismo pode ser considerada como Joma
se anula na negação
limite, na medida mesma em que ela culmina e
tomá-la como matriz
do saber-absoluto. Nessa condição, podemos
comum das demais formas, menos peremptórias e não raro menos
ela
visíveis, algumas vezes mais "radicais"", do historicismo, porque
nos introduz à sua compreensäio.
de histori
A prova disso säo algumas formas contemporâneas
marxismo, as
cismo que impregnam a obra de certos intérpretes do
sobretudo na Itá
vezes conscientee outras vezes inconscientemente,
lia e na França. E na tradição marxista italiana que
a interpretação
os traços
do marxismo como "historicismo absoluto" apresenta
Devo insistir nisso um
mais acentuados e as formas mais rigorosas.
pouco mais.
ele herdou em
E em Gramsci que se origina essa tradição que
grande parte de Labriola e Croce. Devo, pois, falar de Gramsci.
com ob-
Faço-o com escrúpulo, temendo não só desfigurar
grande obra genial.
de
servações forçosamente esquemáticas espirito
o uma

como também levar o leitor, mal-


prodigiosamente variada e sutil
-

reservas teóricas que quero formular ape-


grado meu, a estender as
nas a propósito da interpretação
gramsciana do materialismo dialéti-
co às descobertas
fecundas de Gramsci no dominio do materialismo
em mente essa distinção, sem
histórico. Peço. pois, que se tenha bem
a qual essa tentativa de
reflexão critica ultrapassaria seus limites.
sobre um cuidado elementar: re-
Devo primeiramente advertir ocasião e sob o pri-
imediatamente, em qualquer
tomar
cuso-me a
à mao, o que Gramsci diz
com as suas pró-
meiro pretexto ou texto
suas palavras quando desempenhem
a
prias palavras: só tomarei verdadei-
conceitos "orgânicos", pertencentes
função confirmada de
filosófica mais profunda, e não quando
ramente à sua problemática
linguagem, encarregada
de uma
de as-
desempenhem apenas o papel
designativa "prática" (designa-
Sumir ou papel polêmico ou função
existentes, ou ainda de uma dire-
ção ou de um problema ou objeto
resolver um problema). Por exem-
cão a tomar para bem colocar e "his
Gramsci declará-lo "humanista"" e
plo, seria a rigor condenar
70 LER "O CAPITAL"

toricista absoluto", com base na primeira leitura de um texto polê


mico como esta obsservação célebre sobre Croce (I! Materialismo
Storico e la Filosofia di B. Croce. Einaudi, p. 159):

E certo que o hegelianismo é a mais importante das razões (relativa-


mente) de filosofar do nosso autor, também e especialmente porque o he
gelianismo tentou ultrapassar as concepções tradicionais do idealismo e.
do materialismo numa nova sintese que teve sem dúvida importância ex-
cepcional e que representa um momento histórico-m undial da reflexão fi-
losófica. Assim é que acontece que, quando se diz no Ensaio [de Croce]
que o termo "imanência" na filosofia da práxis é empregado em sentido
metafórico, nada se diz absolutamente; de fato, o termo imanência ad-
quiriu significação especial, que não é a dos "panteistas", e nada tem da
significação metafisica tradicional, mas é nova e deve ser fixada. Esque-
ceu-se na expressão muito comum (materialismo histórico) que era preci-
so acentuar o segundo termo - "histórico" e não o primeiro, que é de
origem metafisica. A filosofia da práxis e "o historicismo" absoluto, a
mundanização e a "lerrestridade" absolutas do pensamento, um humanis-
mo absoluto da história. E nessa direção que devemos cavar o filão da
nova concepção do mundo.

Não há dúvida alguma de que afirmações como estas: "huma-


nista", "*historicista", "absolutas" têm sobretudo sentido crítico e
polêmico; têm, antes de tudo o mais, por função: 1) rejeitar qualquer
interpretação metafísica da filosofia marxista; 2) indicar, como con-
ceitos "praticos, "o lugar e a direção do lugar em que a concepção
do marxismo deve fixar-se para romper todos os laços com as me-
tafisicas anteriores: o lugar da "imanência" e do "neste mundo" que
Marx contrapunha já como o "Diesseits" (o nosso mundo) à trans-
cendência, ao além (Jenseits) das filosofias clássicas. Essa distinção
aparece em termos nítidos numa das Teses sobre Feuerbach (Tese n°
2). Entretanto, podemos já, pela natureza "indicativo-prática" des-
ses dois conceitos, acasalados por Gramsci numa única e mesma
função (humanismo, historicismo), tirar uma primeira conclusão,
por sua vez restritiva, é certo, mas teoricamente importante: se
conceitos são polèmico-indicativos, indicam bem a direçäo na esses
uma reflexão deve encaminhar-se, o tipo de domínio em que deve
qual
ser colocado o problema da interpretação do marxismo, mas não
dão o conceito positivo dessa interpretação. Para poder julgar a in-
terpretação de Gramsci, devemos primeiramente esclarecer os con
ceitos poSitivos que a exprimem. Que entende Gramsci por "histori-
CIsmo absoluto'"?

14
No sentido definido Pour
em
Marx, pp. 254 ss.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 71

veri-
Se ultrapassarmos a intenção crítica de suas formulações,
Ao apresentar o
ficaremos de início um primeiro sentido positivo.
determina
marxismo como historicismo, Gramsci dá ênfase a uma
na história real.
ção essencial à teoria marxista: o seu papel prático
de Gramsci é quanto ao papel
Uma das preocupações constantes a concepção
prático-histórico daquilo a que ele chama retomando ou "ideo-
-

crociana da religião as grandes "concepções do


-
mundo'"
na vida
logias": trata-se de formações teóricas capazes de penetrar
animar toda uma época
pratica dos homens, e portanto de inspirar e
histórica, fornecendo aos homens, não apenas aos *intelectuais
mas também e sobretudo aos "simples", uma visão geral do curso
"
Sob
do mundo e ao mesmo tempo uma norma de conduta prática.
esse aspecto, o historicismo do marxismo nada
mais é que a cons-
ciencia dessa tarefae dessa necessidade: o marxismo não pode ter a
na sua pró-
pretensão de ser a teoria da história, a menos que pense, todas
pria teoria, as condições dessa penetração na história, dos homens.
em as

camadas da sociedade, e até na conduta quotidiana


de fór-
Nessa perspectiva é que se pode compreender certo número
mulas de Gramsci ao dizer por exemplo que a filosofia deve ser con
mais é que a
creta, real, deve ser história, que a filosofia real nada
politica, que a filosofia, a política e a história são em definitivo uma
só e mesma coisa. Dessa perspectiva é que se pode compreender
a
sua teoria dos intelectuais e da ideologia, a distinção que ele faz en-
tre intelectuais individuais que podem produzir ideologias mais ou
menos subjetivas e arbitrárias, e os intelectuais orgânicos", ou o

religião, caso de
que B. Croce oferece da
uma con-
15Se nos ativermos à definição
em norma de vida, e se essa norma de vida
não
cepção do mundo que se transforme norma realizada na vida prática, os homens em
for tomada no sentido livresco, mas
maioria são filósofos, na medida em que agem praticamentee em que em suas ações
práticas... está implicitamente contida uma concepção do mundo, uma filosofia."
(Gramsci, Materialismo Storico, p. 21.)
fundamental de toda concepção do mun-
"Agora, porém, coloca-se o problema
movimento cultural, "religião" e "fë", caso que
do, de toda filosofia que se tornou
se acha contida nesta última
produziu uma atividade prática e uma vontade, que
e

como premissa teórica implícita (uma "ideologia", poderíamos


dizer, se ao termo
uma concepção do mundo, que
ideologia se der justamente o sentido mais elevado de
se manifesta implicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as
manifestações da vida individual e coletiva).
conservar a unidade ideoló-
"Em outros termos, o problema que se coloca é o de
essa ideologia..."
gica no bloco social, que é cimentado e unificado precisamente por
(lbidem. p. 7.)
Ter-se-á observado que a concepção de uma ideologia que se manifesta "implici-
na arte, no direito, na atividade econômica,
*"todas as manifestações da
tamente"
vida individual e coletiva" está muito próxima da concepço hegeliana.
12 LER "O CAPITAL"

intelectual coletivo" (o Partido), que garantem a "hegemonia"


uma classe dominante impondo a Sua concepção do mundo"
(ou ideologia orgânica) na vida quotidiana de todos os homens: e
entender sua interpretação de O Príncipe maquiavélico cuja herança
é retomada pelo partido comunista moderno em condições novas,
Em todos esses casos, Gramsci apenas exprime essa necessidade,
não apenas prática, mas conscientemente, teoricamente inerente ao
marxismo. O historicismo do marxismo é então apenas um dos as-
pectos e efeitos de sua própria teoria bem concebida, é apenas a sua
propria teoria coerente consigo: uma teoria da história real deve
também entrar na história real, como outrora o fizeram outras
"concepções do mundo". que é verdade quanto às grandes reli-
gioes deve ser com mais forte razão quanto ao próprio marxismno,
não apenas a despeito mas por causa da diferença que existe entre
ele e essas ideologias, em razão da sua originalidade filosófica, dado
que a sua originalidade consiste em incluir o sentido prático de sua
propria teoria. "

Entretanto, como se terá notado, este último sentido de "histo-


ricismo, que nos remete a um tema interior à teoria marxista, é ain-
da, em grande parte, uma indicação crítica, destinada a condenar to-
dos os marxistas "livrescos", os que pretendem fazer o marxismo
cair no tipo das "filosofias individuais" sem contato com a realidade
- ou ainda todos os ideólogos, que, tal como Croce, retomam a tra-

dição desastrada dos intelectuais do Renascimento. pretendendo fa-


zer a educação do gênero humano "por cima'", sem entrar na ativi-
dade política e na história real. O historicismo afirmado por Grams-
ci tem o sentido de um vigoroso protesto contra esse aristocratismo

"Todos os homens são filósofos" (p. 3).


"Dado que agir é sempre agir politicamente. não se poderá dizer que a filosofia real de
cada um está inteiramente contida em sua politica?.. não se pode, pois, destacar a fi-
losofia da politica, e pode-se mesme mostrar que a escolha e a crítica de uma
concep
çao do mundo são também um fato politico" (p. 6).
*Se e verdade que toda filosofia é a
expressão de uma sociedade, ela deveria agir
sobre a sociedade, determinar certos efeitos,
positivos e negativos; a medida na qua
ela age é à medida de seu alcance histórico, dado que ela não é "elucubração" indivi-
dual, mas "fato histórico" (pp. 23-24).
'A identidade da história com a filosofia é
imanente ao materialismo... A propo-
sição de que o proletariado alemão é herdeiro da filosofia clássica alem contém
Cisamente a identidade de história com filosofia"... (p. 217). Cf. as pp. 232-234. pre
O que recobre o conceito de
"historicismo", tomado nesse sentido, traz um nome
preciso no marxismo: é o problema da união da teoria com a
mente o problema da união da teoria prática, mais espeCial
marxista com o movimento operario.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 73

da teoria e de seus " p e n s a d o r e s " . " O velho protesto contra o fari

saísmo livresco da II Internacional ("A Revoluço contra 0 Capi-


tal) ai repercute ainda: trata-se de um apelo direto à "pratica, a
atividade politica, à *transformação do mundo", sem o que o mar-
xismo seria apenas presa de ratos de biblioteca ou de burocratas
politicos passivos.
Trará esse protesto necessariamente em si uma interpretação
teórica nova da teoria marxista? Não necessariamnente: porque pode-
rá simplesmente sob a forma prática de um chamado absoluto, um
tema essencial da teoria de Marx: o tema da nova relação, instaura-
da por Marx, em sua própria teoria, entre a "teoria" e a "prática".
Encontramos esse tema meditado por Marx em dois lugares: por um
lado, no materialismo histórico(na teoria do papel das ideologias,e
do papel de uma teoria cientifica na transformação das ideologias
existentes) e, por outro, no materialismo dialètico, a proposito d
teoria marxista da teoria e da prática, e sua relação, no quese temno
costume de chamar "a teoria materialista do conhecimento". Nesses
dois casos, o que é afirmado com vigor por Marx é o que está em
causa no nosso problema: é o materialismo marxista. A ênfase dada
no sentido muito ri-
por Gramsci ao "historicismo" do marxismo,
em realidade ao caráter
goroso que acabamos de definir, alude, pois,
tem-
decididamente materialista da concepção de Marx (ao mesmo essa
po no materialismo histórico e no
materialismo dialético). Ora,
realidade obriga-nos a uma observação, desconcertante, e que com-
três aspectos tão
perturbadores entre si: 1) Embora
porta
o materialismo, Gramsci de-
o que esteja diretamente em causa seja
clara que na expressão "materialismo histórico" "a ènfase
deve ser
dada ao segundo termo: "histórico, e não ao primeiro, que é, segun
do ele, "de origem metafisica"; 2) Embora a ënfase materialista se re-
também ao materia-
fira não apenas ao materialismo histórico, mas
lismo dialético, Gramsci só fala do materialismo histórico e mais
-

leva inevitavelmente a
ainda, sugere que a expressão "materialismo"
ressonâncias "metafísicas", ou talvez mais que ressonâncias; 3) E
"materialismo histórico"
claro, então, que Gramsci dá à expressão
-

cientifica da história um duplo


que designa peculiarmente a teoria
-

sentido: significa para ele, ao mesmo tempo, tanto materialismo his-


a confundir no
tórico como filosofia marxista. Gramsci tende, pois,
materialismo histórico, como categoria única, ao mesmo tempo
a

teoria da história e o materialismo dialético, que no entanto so dis-


esta última
Ciplinas distintas. Para fazer essas observações e tirar

Gramsci, Materialismo Storico, pp. 8-9.


74 LER O CAPITAL"

conclusão, não me baseio evidentemente apenas na frase que anali-


so, mas em numerosos outros desenvolvimentos de Gramsci, que as
confirmam sem qualquer duvida, e que Ihe dão, pois, um sentido
conceptual. " Creio que nesse ponto e que podemos descobrir um

novo sentido do "historicismo" gramsciano, que não se pode mais


reduzir, desta feita, ao emprego legítimo de um conceito indicativo,
polemico ou critico - mas que se deve considerar como interpretação

teórica retferente ao próprio conteúdo do pensamento de Marx, e


que pode cair então sob nossas reservas ou críticas.

Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polèmico e práti-


co desse conceito, uma verdadeira concepção "historicista" de
Marx: concepção "historicista" da teoria da relação da teoria de
Marx com a história real. Não se trata de puro acaso que Gramsci
esteja constantemente perseguido pela teoria crociana religião,
pois que aceita seus termos e a estende das religiöes efetivas à nova
"concepção do mundo" que é o marxismo; não faz, sob esse aspecto,
diferença alguma entre essas religiðes e o marxismo; classifica reli-
giðes e marxismo sob o mesmo conceito de "concepções do mundo"
ou ideologias"; identifica também facilmente religião, ideologia, fi-
losofia e teoria marxista, sem ressalvar que o que distingue o marxis-
mo dessas "concepções ideológicas do mundo" é menos essa dife-
rença formal (importante) de pôr fim a todo "além" supraterrestre,
do que a forma distintiva dessa imanência absoluta (sua "terrestri-
dade"): a forma da cientificidade. Essa "ruptura" entre as antigas re-
ligioes ou ideologias inclusive "orgânicas" e o marxismo, que é uma

Cf. Por exemplo: "A filosofia da práxis decorre certamente da concepçãoimanen


tista da realidade, mas na medida em que esta última foi purificada de todo aroma es
peculativo, e reduzida à pura história ou historicidade, ou ao puro humanismo..nao
apenas a filosofia da práxis está ligada ao imanentismo, mas também sua concepcao
subjetiva da realidade, na medida mesma em que ela a inverte, explicando-a como
fato histórico, como "subjetividade histórica de um grupo social, como fato real, gue
se apresenta como fenômeno de "especulação" filosófica e é simplesmente umaativi
dade prática, a forma de um conteúdo concreto social e o modo de conduzir o con-
junto da sociedade para se constituir uma unidade moral.." (Materialismo Storico, P
191.)
Ou ainda: "Se é necessário, no eterno transcurso dos acontecimentos, fixar con
ceitos, sem os quais a realidade não poderia ser compreendida, será preciso tambem,
eé absolutamente indispensável, determinar e lembrar que a realidadeem movimento
eo conceito da realidade, se é que podem ser distinguidos logicamente, devem ser
concebidor historicamente como unidade inseparável" (ibidem, p. 216).
As ressonâncias do historicismo bogdanoviano são evidentes no primeiro texto,
no segundo aparece a tese empirista-especulativa de todo historicismo: a identidade
do conceito com o objeto real (histórico).
O OBJE T0 DE O CAPLTA 15

Ciencia. e que deve tornar-se ideologia "orgânica" da históriahuma


na.produzindo nas massas uma nova forma de ideologia (uma ideo-
logia que repousa agora numa ciência - o que jamais se viu) - essa
ruptura não é verdadeiramente refletida por Gramsci. e, absorvido
que está pela exigència e pelas condições pråticas da penetração da
filosofia da práxis"" na história real, ele relega a segundo plano a
significação teórica dessa ruptura e suas conseqüëncias teoricasC
práticas. Ele tende também freqüentes vezes a reunir sob um mesmo
termo a teoria cientifica da história (materialismo histórico) e a filo-
sofia marxista (materialismo dialético), e a pensar essa unidade
como uma "concepção do mundo ou como "ideologia" afinal
comparavel as antigas religiðes. Tende inclusive a pensar a relaçao
da ciëncia marxista com a história real com o modelo da relação de
uma e
ideologia "orgânica (historicamente dominante atuante)
com a história real: e em definitivo a pensar essa relação da teoria
científica marxista com a história real com o modelo da relação de
expressão direta que explica muito bem a relação de uma ideologia
orgânica com o seu tempo. Nisso é que reside, ao que me parece, o
principio contestável do historicismo de Gramsci. Nisso é que ele
encontra espontaneamente a linguagem e a problemática teórica in
dispensáveis a todo "historicismo.
A partir dessas premissas, pode dar-se um sentido teoricamente
historicista às fórmulas que já citei no injcio - porque, amparadas
por todo o contexto que acabei de assinalar, elas assumem também
esse sentido em Gramsci - e se vou agora tentar desenvolver, o mais
rigorosamente possível em tão breve espaço, suas implicaçðes, é não
tanto para censurar Gramsci (que tem muita sensibilidade histórica
e teórica para no tomar, quando necessário, suas distâncias), mas
latente cujo conhecimento pode tor-
para tornar visível uma lógica
nar compreensiveis alguns de seus eleitos teoricos que ficariam enig8
máticos no contexto do próprio Gramsci ou daqueles que ele inspira
ou podem a ele aderir. Também neste caso, proponh0-me a expor,
como o fiz a propósito da leitura "historicista" de certos textos de O
Capital. uma situação-limite, e definir menos esta ou aquela inter-
pretação (Gramsci, Della Voipe, Colletti, Sartre e outros) do queo
sobre suas reflexões e que,
campo da problemática teórica que paira
vez por outra, surge em alguns de seus
conceitos, problemas ou solu-
ções. não são de estilo, to-
Para esse fim, e com essas ressalvas, que
concebido como um
marei agora a fórmula: o marxismo deve ser
"historicismo absoluto" como tese sintomática, que permitirá pôr
em

evidència toda uma problemática latente. Como entender, em


nossa

essa afirmação de Gramsci? Se o


marxismo é
presente perspectiva,
76 LER O CAPITAL

um historicismo absoluto, isto se deve a que ele historiciza aquilo


que no historicismo hegeliano é propriamente negação teórica e prá
tica da história: o seu fim, o presente inultrapassável do saber abso-
luto. No historicismo absoluto não há mais saber absoluto, portan-
to de fim da história.
Não há mais presente privilegiado em que a totalidade se torne
visivel e legível num "corte de essencia",em que consciència e ciên-
cia coincidam. Que não haja mais saber absoluto - o que torna o
historicismo absoluto - significa que o saber absoluto está por sua

vez historicizado. Se não há mais presente prívilegiado, todos os


presentes tornam-se tambem privilegiados. Segue-se que o tempo
histórico possui, em cada um de seus presentes, uma estrutura tal
que permite a cada presente o "corte de essência" da contempora-
neidade. Todavia, como a totalidade marxista não tem a mesma es-
trutura que a totalidade hegeliana, como em especial ela
comporta
niveis ou instâncias diferentes não diretamente expressivos uns dos
outros - é preciso, para torná-la suscetível ao "corte de essência", li-

gar entre si esses níveis distintos de um modo tal que o presente de


cada um coincida com todos os presentes dos demais; que eles se-
jam, pois, "contemporäneos. Seu relacionamento assim refeito ex-
cluirá esses efeitos de distorção e de defasagem que contradizem,
na concepção marxista autêntica, essa leitura
ideológica da contemp0-
raneidade. O projeto de pensar o marxismo como historicismo (ab-
soluto) desencadeia, pois, automaticamente os efeitos em cadeia de
uma lógica necessária, que tende a rebaixar e aplastar a totalidade
marxista sobre uma variante da totalidade hegeliana, e que, mesmo
com a cautela de distinções mais ou menos
retóricas, acaba por esfu
mar, reduzir ou omitir as diferenças reais que separam os níveis.
Podemos mostrar com precisão o
ponto sintomático em que
essa redução dos niveis se mostra a nu - isto é, se dissimula sob a
capa de uma "evidência" que a trai (nos dois sentidos da palavra):
no estatuto do conhecimento científico e
filosófico. Vimos
Gramsci insistia a tal ponto na unidade prática da concepçaoque
do
mundo com a história que deixava de observar o que distingue a teo-
ria marxista de toda ideologia orgânica anterior: o seu caráter de co-
nhecimento cientifico. A filosofia marxista, que ele não distingue ni-
tidamente da teoria da história, sofre o mesmo destino: Gramsci a
poe em relação de expressão direta com a história presente: a filoso-
fia é então, como queria Hegel
(concepção retomada por Croce),
"história da filosofia" e em definitivo história. Sendo toda filosofia,
toda ciência, em seu fundo real, história real, a história real pode
por sua vez ser considerada filosofia e ciência.
Mas como pensar, na teoria marxista, essa dupla afirmação ra-
dical, e criar as condições teóricas que permitem formulá-la? Por um
O OBJETO DE "O CAPITAL" 77

sem-número de deslizamentos conceptuais, que têm por efeito justa-


mente reduzir a distância entre os níveis que Marx havia distinguido.
Cada um desses deslizamentos é tanto menos perceptível quanto
não se fixe a atenção às distinções teóricas expressas no rigor dos
conceitos de Marx.
Assim é que Gramsci declara constantemente que uma teoria
cientifica, ou esta ou aquela categoria decorrente de uma ciência, é
uma superestruiura"" ou uma "categoria histórica" que ele assimi-
la a uma "relação h u m a n a " . 2' E, de fato, atribuir a o conceito de

superestrutura" uma extensão que Marx Ihe recusa, dado que sóó
classifica sob esse conceito: 1) a superestrutura jurídico-politica e 2)
a superestrutura ideológica (as "formas de consciência social" cor
respondentes): Marx jamais inctui nelas, salvo nas"obras da juven
tude" (e em particular nos Manuscritos de 44), o conhecimento cientí-
fico. A ciência nâo pode ser classificada sob a categoria de *superes-
trutura", assim como a lingua, que Stalin mostrou nela não se en-
quadrar. Fazer da ciência uma superestrutura è julga-la como uma
dessas ideologias "orgânicas". que aderem t a bem à estrutura que
acabam tendo a mesma "história"" dela! Ora, mesmo na teoria mar-
xista, lemos que as ideologias podem sobreviver à estrutura que lhes
deu nascimento (é o caso da maioria delas: por exemplo, a religião, a
moral. a filosofia ideológica), e certos elementos da superestrutura
juridico-politica também (o direito romano!). Quanto à cieëncia,
pode tambem nascer de uma ideologia, destacar-se de seu campo
para constituir-se como ciência, mas justamente esse afastamento,
essa ruptura", inauguram uma nova forma de existëncia e de tem-
poralidade históricas, que levam
ciência a a
menos em
escapar (pelo
certas condições históricas que asseguram a continuidade real de sua
própria história não foi sempre este o caso) å sorte comum de uma
-

história peculiar: a do "bloco histórico" da unidade da estrutura


com a superestrutura. O idealismo reflete ideologicamente a tempo-
ralidade própria da ciência, seu ritmo de desenvolvimento, seu tipo
de continuidade e de mensuração, que parecem faz-la escapar às vi-
cissitudes da história politica e econômica, sob a forma de a-
historicidade e intemporalidade: ele hipostasia assim um fenômeno
real, que precisa de todas as demais categorias para ser pensado,
mas que deve ser pensado, distinguindo a história relativamente au-

CT. as páginas surpreendentes de Gramsci sobre a ciência. Materialismo Storico


pp. 54-57.Em realidade a ciência é também uma superestrutura, uma ideologia
(56). ef. também p. 162.
Materialismo Storico, p. 160.
78 LER "O CAPITAL

tônoma e própria do conhecimento científico das demais modalida-


des da existência histórica (a das superestruturas ideológicas, jurídi.
co-politicas e a da estrutura económica).
Reduzir e identificar a história própria da ciência à da ideologia
orgânica e à história económico-política significa, afinal, reduzir a
ciência à história como å sua "essëncia". A gueda da ciència na his-
tória é aqui apenas índice de uma queda teórica: aquela que joga a
teoria da história na história real: reduz o objeto (teórico) da ciência
da história à história real; confunde, pois, o objeto de conhecimento
com o objeto real. E isso nada mais é do que a queda na ideologia
empirista, posta em cena sob os pappéis aqui representados pela fi-
losofia e pela história reais. Seja qual for o seu prodigioso gênio his-
tórico e político, Gramsci não escapou a essa tentação empirista
quando quis pensar o estatuto da ciência e sobretudo (porque ele se
ocupa pouco da ciência) da filosofia. Ele éconstantemente tentado a
pensar a relação entre a história real e a filosofia como relação de
unidade expressiva, sejam quais forem as mediações encarregadas
de garantir essa relação. " Vimos que para ele o filósofo é, em última

instância, um "político": para ele, a filosofia é o produto direto (sob


a ressalva de todas as "mediações necessárias") da atividade e da ex-
periència das massas, da práxis econômico-política: a essa filosofia
do"bom senso jáinteiramente feita fora deles, e que fala na práxis
histórica, os filósofos de ofício simplesmente servem de porta-voz e
Ihe dão as formas do seu discurso - sem poder modificar-lhe a subs-
tância. Espontaneamente, Gramsci coincide, como uma oposição
indispensável à expressão do seu pensamento, com as próprias fór-
mulas de Feuerbach, contrastando, num texto célebre de 1839, a fi-
losofia produzida pela história real com a filosofia produzida pelos
filósofos- as fórmulas contrastando a práxis com a especulação. E é
nos próprios termos da "inversão" feuerbachiana da especulação
em filosoffa "concreta" que ele entende
crociano: "inverter" o
consertar o historicismo
historicismo especulativo de Croce,

recolocá-lo sobre os pés, para fazer dele o historicismo mar-


xista - e encontrar a história real, a filosofia "concreta". Se é verda-
de que a "inversão" de uma problemática conserva a prôpria natu-
reza dessa problemática, n o será de admirar que a relaçao de ex
pressão direta (com todas as "mediações'" necessárias) pensadas por
Hegel ou Croce entre a história real e a filosofia, se ache na teoria in
vertida: precisamente na relaço de expressão direta que Gramsc
tentou estabelecer entre a politica (história real) e a filosofia.

*Sobre o conceito de mediação, cf. tomo I, cap. I. parágrafo 18.


O OBJETO DE "O CAPITAL" 19

Mas não basta reduzir ao mínimo a distância que separa na es-


trutura social o lugar específico das formações teóricas, filosóficas e
científicas da prática politica, portanto o lugar da prática teórica do
lugar da prática politica - é preciso ainda adquirir uma concepção
da prática teórica que ilustre e consagre a identidade proclamada en-
tre a filosofia e a
política. Essa exigência latente explica novosdesli-
zamentos conceptuais, tendo de novo por efeito reduzir a distinção
entre os níveis.

Nessa interpretação, a prática teórica tende a perder toda espe


cificidade, para ser reduzida à prática histórica em geral, categoria
sob a qual são pensadas formas de produção das mais diversas como
a prática econômica, politica, ideológica e cientifica. Essa assimila-
ção, todavia, apresenta problemas sutis: o próprio Gramsci reco-
nhecia que o historicismo absoluto arriscava tropeçar na teoria das
ideologias. No entanto, ele mesmo forneceu, comparando as Teses
sobre Feuerbach com uma frase de Engels (a história "indústria e ex-
perimentação"), o argumento de uma solução, propondo o modelo
de uma prática capaz de unificar sob seu conceito todas essas práti-
cas diferentes. A problemática do historicismo absoluto exigia que
esse problema fosse resolvido: não é por acaso que a esse problema
empirista ela tenda a propor uma solução de espirito empirista. Esse
modelo pode ser por exemplo o da prática experimental tomada não
tanto à realidade da ciência, moderna, mas a certaideologia da ciên-
cia moderna. Colletti retomou essa indicação de Gramsci, e susten-
tou que a história possui, como a própria realidade, uma "estrutura
experimental", e que ela é, pois, em sua essência, estruturada como
uma experimentação. Sendo a história real assim, por sua vez, decla-
rada "indústria e experimentação - e sendo toda prática cientifica
definida como prática experimental, a prática histórica e a pråtica
teórica passam então a ter uma só e'mesma estrutura. Colletti leva a
comparação ao extremo, assegurando que a história inclui em seu
ser, assim como a ciência, o momento da hipótese, indispensável à
colocação em cena da estrutura da experimentação, segundo os es-
quemas de Claude Bernard. A história, não cessando, na ação políti-
ca viva, de adiantar-se (pelas projeções sobre o futuro, indispensá-
veis a qualquer ação) seria assim hipótese e comprovação em ato,
exatamente como a prática da ciëncia experimental. Com essa identi-
dade de estrutura essencial, a prática teórica pode ser assimilada di-
reta, imediata e adequadamente à prática histórica - e a redução do

lugar da prática teórica ao lugar da prática política ou social, pode


então ser fundamentada na redução das pråticas a uma estrutura
única.
80 IR O APIIA"

Apresentei o exemplo de Gramsci eo de Colletti, mas isso não


significa que sejam os únicos exemplos possiveis de variações teori
cas de um mesmo invariante teórico: a problemática do historicis-
mo. Uma problemática não impõe de modo algum variações abso-
lutamente idënticas aos pensamentos que atravessam o seu campo:
podemos atravessar um campo por vias muito diferentes, dado que
o podemos abordar sob ângulos diversos. Mas o fato de depararmos
com ele implica que nos submetamos à sua lei, que produz efeitos
tão diferentes quanto sejam diferentes os pensamentos que a enfren-
tem: no entanto, todos esses efeitos têm em comum certos traços
denticos, no que são efeitos de uma mesma estrutura: a da proble
mática encontrada. Para dar um exemplo paradoxal disso, todos sa-
bem que o pensamento de Sartre não provém de modo algum da in-
terpretação do marxismo por Gramsci; tem origens muito diferen-
tes. No entanto, quando Sartre se aproximou do marxismo, deu-lhe
imediatamente. por motivos que lhe são peculiares, uma interpreta-
ção historicista (embora ele recuse esse batismo), ao declarar que as
grandes filosofias (cita a de Marx depois das de Locke e de Kant-
Hegel) são "insuperáveis na medida em que não foi superado o mo-
mento histórico de que elas são a expressão" (Critique de la Raison
Dialectique, Gallimard. p. 17). Verificamos ai, numa forma peculiar
a Sartre, as estruturas da contemporaneidade, da expressão e do in-
superável (o "ninguém pode saltar além do seu tempo" de Hegel)
que, para ele, representam especificações do seu principal conceito:
a totalização - mas que, todavia, sob as aparências da especificação
desse conceito que lhe é próprio, realizam os efeitos conceptuais ne-
cessários do encontro dele com a estrutura da problemática histori-
cista. Esses efeitos não so os únicos: não admira ver Sartre des-
cobrir por seus próprios meios uma teoria dos "ideólogos" (ibidem,
17-18) (que amoedam e comentam uma grande filosofia, e a introdu-
zem na vida prática dos homens) bem próxima sob certoS aspectos
da teoria gramsciana dos intelectuais orgânicos ; menos surpreen-
dente é encontrar em ação em Sartre a mesma redução necessária das
diferentes práticas (diferentes níveis distinguidos por Marx), a uma
pratica unica: para ele, em razão de suas próprias origens filosóficas,
não é o conceito de prática, mas o de práxis, sem mais, que está en-
carregado deassumir, ao preço de inumeráveis "mediações" (Sartre
é o filósofo das mediações por excelência: elas têm
justamente por
função assegurar a unidade na negação das diferenças), a unidade de

Verificamos em Gramsci (Materialismo Storico, p. 197) em termos claros a distin-


ção sartriana entre filosofia e ideologia.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 81

práticas tão diversas como a prática científica e a econömica ou


politica.

Não posso desenvolver essas observações muito esquemáticas.


Contudo, elas podem dar uma noção das implicações necessaria-
mente contidas em toda interpretação historicista do marxismo, e
dos conceitos particulares que essa interpretação deve produzir para
responder aos problemas que ela a si mesma propõe - pelo menos
quando pretende ser, como no caso de Gramsci, Colletti e Sartre,
teoricamente exigente e rigorosa. Essa interpretação não pode pen-
sar a si mesma a não ser sob a condição de toda uma série de redu-
ções que são o efeito, na ordem da produção dos conceitos, do cará-
ter empirista de seu projeto. E por exemplo sob a condição de redu-
zir toda prática à prática experimental, ou à "práxis" em geral, e de-
pois assimilar essa prática-m e à prática política, que todas as práti-
cas podem ser pensadas como originárias da prática histórica
real", e que a filosofia, e até a ciência, e portanto também o mar-
XISmo, podem ser pensados como a "expressão" da história real.
Chega-se com isso a rebatero conhecimento cientifico ou a filosofia,
mas de qualquer modo a teoria marxista sobre a unidade da prática
econômico-politica, no cerne da prática "histórica", na história
"real.Chega-se assim ao resultado exigido por toda interpretação
historicista do marxismo como sua própria condição teórica: a
transformação da totalidade marxista numa variante da totalidade
hegeliana.
A interpretação historicista do marxismo pode chegar a este úl-
timo efeito: a negação prática da distinção entre a ciência da história
(materialismo histórico) e a filosofia marxista (materialismo dialéti-
co). Nesta última redução, a filosofia marxista perde praticamente a
razão de ser, em proveito da teoria da história: o materialismo dialé-
tico desaparece no materialismo histórico. * Vê-se isso claramente

em Gramsci, e na maior parte dos que o seguem: não apenas a ex-


pressão materialismo dialetico, mas o conceito de uma filosofia mar-
xista definida por um objeto próprio, hes inspira as mais vivas res-
salvas. Consideram eles que a simples idéia de uma filosofia teorica-
mente autônoma (por seu objeto, teoria e método), e portanto dis-
tinta da ciência da história, lança o marxismo na metafisica, na res.

Pode observar-se, pelas mesmas razões estruturais, o efeito inverso: em Sartre


pode também dizer-se que a ciência da história marxista Iransforma-se em filosofia.
82 IER ) CAPITAL

tauração de uma Filosofia da Natureza, da qual Engels seria o arte


são. Dado que toda filosofia é históriä, a "ilosofia da
práxis" só
pode ser. como filosofia da identidade filosofia-história.
ou ciencia-história. Não mais tendo objeto próprio, a filosofia mar-
xista perde então o estatuto de disciplina autônoma, e se reduz, se-
gundo a expressão de Gramsci, retomada a Croce, a uma simples
"metodologia histórica. isto é, à simples consciència de si da histori-
cidade da história, à reflexão sobre a presença da história real em to-
das as suas manifestações:
Separada da teoria da história e da politica, a filosofia só pode ser
metafisica ao passo que a grande conquista da história do
-

pensamento
moderno, representada pela filosofia da práxis, é justamente a historici-
:aqao cvncreta da filosofia, e sua identificação com a história.
(Materialismo Storico, p. 133.)

Essa historicização da filosofia a reduz então ao estatuto de


uma metodologia histórica

Pensar uma afirmação filosófica como verdadeira num periodo de-


terminado da história, isto é, como expressão n ecessária e indissociável
de uma ação histórica determinada, de uma práxis determinada, mas ul-
trapassada e "esvaziada" do seu sentido num periodo posterior, sem cair
no ceticismo e no relativismo moral e ideológico, o que signif+ca conceber
a filosofia çomo historicidade, é uma operação mental dificil... O autor
Bukharin J não consegue elaborar o conceito de filosofia da práxis como
metodologia histórica", nem esta última como filosofia, como a únicafi-
losofia concreta, isto é, não consegue propor nem resolver, do ponto de
vista da dialética real, o problema que Croce se propôs e tentou resolver do
ponto de vista especulativo.

Com estas últimas palavras, eis-nos de volta às origens: ao his-


toricismo hegeliano, "radicalizado" por Croce, e que bastaria
"in
verter para passar da filosofia especulativa à filosofia "concreta
da dialética especulativa à dialética real, etc. O empreendimento teó-
rico de interpretação do marxismo como historicismo não sai dosli
mites absolutos quais efetua desde Feuerbach
nos se
da especulação na práxis, da abstração no "concreto": esses limites
essa "inversäo
são definidos pela problemática empirista, sublimada
ção hegeliana e da qual nenhuma "inversão" pode nos livrar. "
na especula-

Cf. Gramsci, em sua critica do manual de Bukharin; Colletti (passim).


Falei há pouco das origens próprias da filosofia de Sartre. Sartre pensa em Des
cartes, Kant, Husserl e Hegel: mas o seu pensamento mais profundo vem sem duvida
de Politzer e (por mais paradoxal que essa aproximação possa parecer) secundaria-
O OBJI: 1O DE "O CAPITAL"
83

Ve-se, pois, manifestar-se claramente, nas diferentes reduções


teóricas ndispensaveis à interpretação historicista de Marx, e em
seus efeitos, a estrutura fundamental de todo historicismo: a con-
temporaneidade que permite uma leitura em corte de essência. V-se
lambem, dado quee sua condição teórica, essa estrutura impor-se,
queira-se ou não, a estrutura da totalidade marxista, transformá-la,
e reduzira distancia real que separa seus diferentes níveis. A história
marxista "caî" no conceito ideológico de história, categoria da pre-
sença e da continuidade temporais; na prática econômico-politica
da história real, pelo nivelamento das ciências, da filosofra e das
ideologias sobre a unidade das relações de produção e das forças de
produção, isto é, de fato sobre a infra-estrutura. Por mais paradoxal
que seja esta conclusão, que sem dúvida me censurarão por tirare
enunciar, somos obrigados a tirá-la: do ponto de vista da problemá-
tica teórica, e não das intenções e acento político, esse materialismo
humanistae historicista reencontra os princípios teóricos de base da
interpretação economicista e mecanicista da II Internacional. Se
essa mesma problemática teórica pode sustentar politicas de inspira-
ção diferente, uma fatalista e outra voluntarista, uma passiva e ou
tra consciente e dinâmica - isso se dá pelos recursos do "jogo'" teóri
co que essa problemática teórica ideológica contém, como toda
ideologia. A propósito, é ao conferir, por uma contradança compen-
satória, à infra-estrutura os atributos mais ativos da superestrutura
politica e ideológica que um tal historicismo pode contrapor-se poli-
ticamente às teses da II Internacional. Essa operação de transferên-
Cia de atributos pode conceber-se sob diferentes formas: afetando,

por exemplo, a dos atributos da filosofia e da teoria


prática política
(o espontaneísmo); carregando a *"práxis*" econômica de todas as
virtudes ativas, até mesmo explosivas da politica (anarco-
sindicalismo); ou atribuindo à consciëncia e à determinação políti-
cas o determinismo económico (o voluntarismo). Em resumo, se ha
dois modos distintos de identificar a superestrutura com a infra-
um que vë
estrutura, ou a consciência com a economia
-
na cons-
ciencia e na.política só a economia, quando o outro preenche a eco-

mente de Politzer é o Feuerbach dos tempos modernos: sua Crítica dos


Bergson. Ora, nome de uma Psi-
Fundamentos da Psicologia é a crítica da Psicologia especulativa em
Satre como "ilosofemas":
cologia concreta. Os temas de Politzer foram tratados por de Sartre inverte
ele não abandonou a inspiração do primeiro; quando o historicismo
a "totalidade", as abstrações do marxismo dogmático numa teoria da subjetividade
e a propósito de outros objetos,
concrela, ele "repete" também em outros lugares,
sob
uma "inversão" que, de Feuerbach jovem Marx ea Politizer, apenas conserva,
ao
a aparéncia de sua crítica, uma mesma problemática.
84 LER O CAPITAL'

nomia de politica e de consciência, não há em operação nunca mais


do que uma única estrutura de identificação: a da problemática que
identifica teoricamente os níveis em confronto, reduzindo um ao ou-
tro. Essa estrutura comum da problemática teórica é que se torna
visivel quando analisamos não as intenções teóricas ou politicas do
mecanicismo-economicismo por um lado, e por outro o humanis-
mo-historicismo, e sim a lógica interna de seu mecanismo concep-
tual.

Uma palavra a mais sobre a relação entre humanismo e histori-


cismo. E bastante claro que se possa conceber um humanismo não-
historicista assim como um historicismo não-humanista. Evidente
mente, só falo aqui de um humanimo e de um historicismo teóricos,
considerados na sua função de fundação teórica da ciência e da filo-
sofia marxista. Basta viver na moral ou na religião, ou nessa ideolo-
gia politico-moral que se chama socialdemocracia, para mobilizar
uma interpretação humanista mas não-historicista de Marx: é só ler
Marx à "luz" de uma teoria da natureza humana, seja ela religiosa,
ética ou antropológica (cf. as RRPP, Calvez e Bigo, e Rubel, e de-
pois os sociais-democratas Landshut e Mayer, primeiros editores
das Obras da Juventude de Marx). Reduzir O Capital a uma inspira-
ção ética é brinquedo de criança, caso nos apoiemos na antropolo-
gia radical dos Manuscritos de 44. Mas pode-se também conceber ao
inverso a possibilidade de uma leitura historicista não-humanista de
Marx: se o entendo bem, nesse sentido é que tendem os melhores es-
forços de Colletti. Para autorizar essa leitura historicista no-
humanista, basta, como o faz precisamente Colletti, recusar a redu-
ção da unidade. "forças de produção/relações de produção" - que
constitui a essência da história - ao simples fenômeno de uma natu-.
reza humana, mesmo historicizada. Mas deixemos de lado essas
duas possibilidades.
E a uniäo do humanismo com o historicism0 que
impöe-se que o digamos, a mais séria tentação, porque proporciona
representa,
as maiores vantagens teóricas, pelo menos em aparência. Na redu-
às
de
cão todo conhecimento relações sociaishistóricas,
troduzir por baixo uma segunda redução, que trata as relações de
pode-se in-
produção como simples relações humanas. Essa segunda reduçào
repousa numa "evidência": acaso a história não é sempre um fenó0-
meno "humano"? E Marx, citando Vico, acaso não declara que os

Essa sub-repção é comum em todas as


interpretações humanistas do marxismo.
O OBJETO DE "0
CAPITAL 85

homens podem conhece-la. pois que a "fizeram inteiramente? Essa


"evidència repousa, entretanto, num singular pressuposto: que os
atores da história são os autores do seu texto, os sujeitos da sua
produção. Mas esse pressuposto tem também toda a força de uma
"evidencia. dado que, contrariamente ao que nos sugere o teatro,
os homens concretos Sao, na história, os atores dos papéis de sua au
toria. Basta escamotear o diretor para que o ator-autor se as-
semeihe como um irmão ao velho sonho de Aristóteles: o médico-
que-se-trata-d-Si-mesmo; e para que as relações de produção, que são
no entanto adequadamente os direitores da história, se reduzam a
simples relações humanas. Acaso A ldeologia Alem não está cheia
de fórmulas sobre esses "homens reais", esses "indivíduos concre
tos" que "com os pés bem fincados na terra"" são os verdadeiros su-
jeitos da história? Acaso as Teses sobre Feuerbach não declaram que
a própria objetividade é resultado, inteiramente humano, da ativida-
de "prático-sensível" desses indivíduos? Basta acrescentar a essa na-
tureza humana os atributos da historicidade "concreta" para esca-
par à abstração e ao fixismo das antropologias teológicas ou morais,
e para ir encontrar Marx no pröprio cerne do seu reduto: O materia
lismo histórico. Essa natureza humana será, pois, concebida como
produzida pela história, cambiante com ela, o homem cambiante,
como o queria a Filosofia Iluminista, com as revoluções de sua his-
tória, e afetado até em suas faculdades mais intimas (o ver, o enten-
der, a memória, a razão, etc. - Helvetius já o afirmava, e tambem
Rousseau, contra Diderot * Feuerbach estende-se sobre o assunto

em sua filosofia - e atualmente um sem-número de antropólogos


culturalistas detém-se na questãó) pelos produtos sociais de sua his-
tória objetiva. A história converte-se então em transformação de
uma natureza humana, que permanece o verdadeiro sujeito da histó-
ria que a transforma. Ter-se-á com isso introduzido a história na na-
tureza humana, para tornar os homens contemporâneos dos efeitos
e nisso é que está a queS
historicos de que são os sujeitos, porm
-

tão se terão reduzido as


-

relações de produção, relações sociais,


as
politicas e ideológicas a "relacões humanas historicizadas, isto é, a
relações inter-humanas, intersubjetivas. Esse é o terreno predileto de
um humanismo historicista. Esta a sua grande vantagem: recolocar
Marx na corrente de uma ideologia bem anterior a ele, nascida no
século XVIII; tirar-lhe o mérito da originalidade de uma ruptura
teórica revolucionária e näo raro, inclusive, torná-lo aceitável às for-
mas modernas da antropologia "cultural"e outras. Quem, hoje em

*Um dos autores prediletos de Marx. (N. do T.)


86 LER O CAPITAL"

dia, não invoca esse humanismo historicista, acreditando


verdadei
ramente abonar-se em Marx, quando uma ideologia desse
fato nos afasta de Marx?
tipo de
Todavia, sempre foi assim, pelo menos do ponto de vista
nem
politico. Declarei por que e como a interpretação historicista-hu-
manista do marxismo nasceu nos pressentimentos e no sulco
da
Revolução de 17. Tinha ela então
o sentido de um protesto violento
contra mecanicismo e o oportunismo da II
o
clamava diretamente a Internacional. Ela con-
consciencia vontade
cusar a guerra, derrubar o
e a dos homens para re
capitalismo e fazer a revolução. Recusava
intransigentemente tudo o que pudesse, na própria teoria, adiar ou
empanar esse apelo urgente à responsabilidade histórica dos homens
reais lançados na revolução. Exigia, num mesmo
ria da sua vontade. Essa a razão
movimento,
a teo-
pela qual ela proclamava um retorno
a Hegel (o jovem Lukács, Korsch), e elaborava uma teoria que pu
nha a doutrina de Marx em relação de
expresso direta com a classe
trabalhadora. E dessa época que data a famosa oposição entre
"ciência burguesa"e "ciência proletária", na
qual triunfava uma in
terpretação idealista e voluntarista do marxismo como expressão e
produto exclusivo da
prática proletária. Esse humanismo esquer
dista" designava o proletiariado como o
lugar e o missionário da es-
sencia humana. Se ele estava destinado ao
o homem de sua
papel histórico de libertar
"alienação", tal o era pela negação da essëncia hu-
mana de que ele era a vitima
absoluta. A aliança da filosofia como
proletariado, anunciada pelos textos do jovem Marx, deixava de ser
uma aliança entre duas
partes exteriores uma à outra. O proletaria-
do, essëncia humana em revolta contra a sua negação radical, con-
vertia-se na afirmação revolucionária da essëncia humana:o prole
tariado era assim filosofia em ato, e sua prática política a própria fi-
losofia. O papel de Marx reduzia-se então a conferir a essa filosofia
atuada e vivida em seu lugar de nascimento, a simples forma da
consciëncia de si. Daí por que se
proclamava o marxismo "Ciencia
ou
"nlosofia" "proletárias", expressão direta, produção direta da
essencia humana por seu peculiar autor histórico: o proletariado. A
tese kautskista leninista da produção da teoria marxista por uma
e
prática teórica especifica, fora do proletariado, e da "importação da
teoria marxista para o movimento operário, via-se recusada sem
consideração e todos os temas do espontaneismo se precipitavam
-

no marxismo por essa brecha aberta: o universalismo humanista do

proletariado. Do ponto de vista teórico, esse "humanismo e esse


"historicismo" revolucionários iam abeberar-se
Hegel e nos textos da juventude, então acessiveis,conjuntamente na
de Marx. Passo
Seus efeitos políticos: certas teses de Rosa
Luxemburg sobre o impe
O OBJETo DE "O CAPITAL" 81

rialismo, eodesaparecimento das leis da "economia politica" no re-


gime socialista; o proletkult; as concepçðes da "oposição operaria
etc: e de um modo geral o "voluntarismo" que marcou profunda-
mente, até nas formas paradoxais do dogmatismo stalinista, 0 perio
do da ditadura do proletariado na URSS. Ainda hoje esse
"huma-
nismo" e esse "historicismo" despertam ecos verdadeiramente revo
lucionários, nos combates políticos empreendidos pelos povos do
Terceiro Mundo para conquistar e defender sua independência pol-
tica, e enveredar pelo caminho socialista. Mas essas vantagens ideo-
logicas e politicas em si são obtidas, como o discerniu admiravel-
mente Lênin, em detrimento da lógica que pöem em jogo, e que pro
duzem, inevitavelmente, quando se oferece a oportunidade, tenta-
ções idealistas e voluntaristas na concepção e na pråtica económica
e politica - quando não provocam graças a uma conjuntura favorá-
vel - por uma inversão paradoxal, mas também necessária - concep-

ções matizadas de reformismo e de oportunismo, ou simplesmente


revisionistas.

E de fato peculiar ä toda concepção ideológica, sobretudo se ela


submeter a si uma concepção científica desviando-a de seu sentido, o
ser governada por "interesses" estranhos å necessidade exclusiva do
conhecimento. Nesse sentido, isto é, sob a condição de lhe dar o ob-
de ter valor
Jeto de que ela fala sem o saber, o historicismo no deixa
teórico: pois descreve bastante bem um aspecto essencial de toda
ideologia que adquire sentido a partir dos interesses atuais a serviço
dos quais ela estásubmetida. Se a ideologia no exprime a essência
objetiva total do seu tempo (a essência do presente histórico), pode.
deslocamentos
pelo menos, exprimir muito bem, pelo efeito de leves
internos de ênfase, as transformações atuais da situação histórica:
diferentemente de uma ciência, uma ideologia é ao mesmo tempo
teoricamente fechada e politicamente maleávele adaptável. Ela se
curva ås necessidades da época, mas sem movimento aparente, con-
tentando-se com o refletir por alguma modificação imperceptível de
Suas próprias relações internas, as transformações históricas que ela
tem por missão assimilar e dominar. O exemplo ambiguo do ag-
giornamento do Vaticano II bastaria para nos dar uma prova elo-
evolução incontestävel, mas ao
guente disso: efeito e sinal de uma
mesmo tempo hábil recuperação do controle da história, graças a

uma conjuntura inteligentemente aproveitada. A ideologia muda,


pOls, mas imperceptivelmente, conservando a forma de ideol
Cia se move, mas com um movimento imóvel, que a mantém no mes-
movimento imô-
ugar, lugar e função de ideologia. Ela é
em seu
da prôpria
,que reflete e exprime, como dizia Hegel, a propósitoalem de seu
osofia, o que se passa na história, sem jamais passar
88 LER O CAPITAL

empo. dado que ela nada mais é que esse mesmo tempo tomado na
captura de um reflexo especular. precisamente para que os homens a
aceitem. E por essa razão essencial que o humanismo revolucionário
dos ecos da Revolução de 17 pode servir hoje de reflexo ideológico
ou teóricas
com
preocupações politicas variadas, umas ainda apa-
rentadas, e outras mais ou menos estranhas às suas origens.

Esse humanismo historicista pode servir, por exemplo. de cau-


ção teórica a intelectuais de origem burguesa ou pequeno-burguesa,
que propõem, e às vezes em termos autenticamente dramáticos, a
questão de saber se so de pleno direito membros ativos de uma his
Lória que se faz, como eles o sabem ou temem, fora deles. Eis talvez
a questào mais profunda de Sartre. Ela está inteiramente contida na
sua dupla tese de que o marxismo "a filosofia insuperável da nossa
epoca e que nenhuma obra literária ou filosófica vale uma hora «
dor diante do sofrimento de um indigente reduzido pela exploração
imperialista å fome e à agonia. Tomado nessa dupla declaração de
fidelidade a uma idéia do marxismo, por um lado, e por outro àcau-
sa de todos os explorados, Sartre se convence de que pode verdadei
ramente desempenhar um papel, além das "Palavras" que ele pro-
duz e toma por derrisórias, na inumana história da nossa época,
por
uma teoria da "razão dialética" que atribui a toda racionalidade
(teórica). como a toda dialética (revolucionária) a peculiar origem
ranscendental do " projeto" humano. O humanismo historicista as-

Sume desse modo em Sartre a forma de uma exaltação da liberdade


humana em que, comprometendo-se livremente em seu combate, ele
comunga com a liberdade de todos os oprimidos, que, desde a longa
noite esquecida das revoltas de escravos, lutam para sempre por un
pouco de luz humana.
O mesmo humanismo, com pequena mudança de ênfase, pode
servir a outras causas, segundo a conjuntura e as necessidades: por
exemplo, o protestocontra os erros e os crimes do periodo do "culto
à personalidade". a impaciencia de os ver punidos, a esperança de
uma verdadeira democracia socialista, etc. Quando esses sentimentos
politicos querem obter um fundamento teórico, procuram-no semm
pre nos mesmos textos e nos mesmos conceitos: neste ou naquele
teórico surgido do grande periodo de pós-17 (e dai essas edições
jovem Lukács e de Korsch, e essa paixão por certas fórmulas equi-
do
vocas de Gramsci), ou nos textos humanistas de Marx: suas obras
da juventude: no "humanismo real", na "alienação", no ""concre-
to". na história, filosofia ou psicologia *concretas".

CLa Nouvelle Critique. nos


164 ss.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 89

Só a leitura critica das "obras da juventude" de Marx e um es-


tudo aprofundado de O Capital podem nos esclarecer sobre o senti-
do e os riscos de um humanismoe de um historicismo teóricos estra-
nhos à problemática de Marx.

O leitor há de lembrar-se talvez do ponto de partida que nos le-


vou a empreender essa análise do mal-entendido sobre a história.
Observei que o modo como Marx a si mesmo julgava podia decorrer
dos juízos com os quais ele pesa os méritos e faltas dos seus prede-
cessores. Ao mesmo tempo mencionei que deviamos submeter o tex-
to de Marx não a uma leitura imediata, mas a uma leitura "sinto-
mal'. para discernir nele, na aparente continuidade do discurso, as
lacunas, os espaços em branco e as falhas do rigor, os lugares onde o
discurso de Marx é apenas o não-dito do seu silêncio, surgindo no
seu próprio discurso. Pus em destaque um desses sintomas teóricos
no julgamento que Marx fizera sobre a ausência de um conceito em
seus predecessores, ausência do conceito de mais-valia, que ""genero-
samente" (como o diz Engels) Marx tratava como se estivesse em
causa a ausência de uma palavra. Acabamos de ver o que ocorre
com outra palavra, a palavra história, quando surge no discurso
critico que Marx dirige aos seus predecessores. Essa palavra, que pa-
rece plena, é de fato uma palavra teoricamente vazia, na imediatez
de sua evidência - ou antes, é p l e n a - d e - i d e o l o g i a , 2" q u e s u r g e n e s s a

lacuna do rigor. Quem leia O Capital sem indagar criticamente do


seu objeto, não vê malícia alguma nessa palavra que Ihe "fala":
prossegue de boa fé o discurso do qual essa palavra pode ser a pri-
ira, o discurso ideológico da história, e depois o discurso histori-
cista. As conseqüências teóricas e práticas não têm, como o vimos e
compreendemos, aquela inocência. Pelo contrário, numa leitura
epistemológica e crítica, não podemos deixar de ouvir sob essa pala-
vra proferida o silêncio que ela encobre, nem deixar de ver o espaço
em branco do. rigor interrompido, pelo tempo apenas de um relâm-
dei
pago, no espaço negro da pagina, correlatamente, não podemos
xar de perceber sob esse discurso aparentemente continuado, mas de
fato interrompido e subjugado pela irrupçãoameaçadora de um dis-
curso que recalca, a voz silenciosa do verdadeiro discurso, nem dei-
xar de restaurar o texto, para Ihe restabelecer a continuidade pro-

Pode-se, por analogia, comparar esse caso com o do sintoma, do lapso e do sonho
que para Freud é a "plenitude do desejo*".
LER O CAPITAL
90

funda. Nisso é que a identificação dos pontos precisos da falha do


rigor de Marx coincide com o reconhecimento desse rigor: esse rigor
que nos indica as suas falhas: e no instante pontual deseu silêncio
provisório. nada mais fazemos do que Ihe dar a palavra que é a sua.
O OBJETO DE "0 CAPITAL"
91

VI. Proposições Epistemológicas de 0 Capital


(Marx, Engels)

Após essa longa digressão, tracemos as coordenadas da nossa


análise. Estamos à procura do objeto próprio de Marx.
Num primeiro momento interrogamos os textos de Marx onde
ele nos indica a sua própria descoberta, e isolamos os conceitos de
valor e mais-valia como portadores dessa descoberta. Todavia, tive
mos de observar que esses conceitos eram precisamente o lugar do
mal-entendido, não apenas dos economistas, mas também de um
Sem-número de marxistas sobre o objeto próprio da teoria marxista
da economia politica.

Em seguida, num segundo momento, interrogamos Marx através


do
julgamento que ele mesmo fez de seus predecessores, os fundado
res da Economia Política clássica, na esperança de apreende-lo por
Sua vez no juízo que ele pronuncia sobre a sua pré-história cientifica.
ambem nesse caso deparamos comdefinições desconcertantes ou
insuficientes. Vimos que Marx não chegava a pensar verdadeira-
mente o conceito da diferença que
o distingue da Economia classica
que, com o pensá-la em termos de continuidade de conteúdo, ele
nos lançava ou numa simples distinção de forma - a dialética- ou
Tundamento dessa dialética hegeliana - certa concepcão ideológl-

nistoria. Avaliamos as teóricas e práticas dessas


conseqüências
ambigüidades; vimos que o equívoco dos textos atingia não apenas
a
LER O CAPITAL
92
definição do objeto especifico de O ( apital, mas também. e ac mes-
mo tempo. a definição da prática teórica de Marx. a relação da sua
teoria com as teorias anteriores - em suma. a teoria da ciència e a

teoria da história da ciencia. Nesse caso. não mais tratávamos ape-


nas da teoria da economia politica e da história, ou materialismo
histórico. mas da teoria da ciência, e da história da ciencia, ou mate
rialismo dialético. E viamos, ainda que em negativo, que existe uma
relação essencial entre o que Marx produz na teoria da história e o
filosofia. Vimo-lo pelo menos por este indicio:
que ele produz na
basta um simples vazio nos conceitos do materialismo histórico para

que ali se instale imediatamente o pleno de uma ideologia lilosófica.


reconhecer esse vazio esvazian-
a ideologia empirista. Só podemos
do-o das evidëncias da filosofia ideologica que o ocupa. So podemos

determinar com rigor certos conceitos científicos ainda insuficientes


de Marx sob a condição absoluta de reconhecer a natureza ideológi-
dos conceitos filosóficos que Ihe usurparam o lugar:
em suma,
ca
determinar ao mesmo tem-
sob a condição absoluta de começar por
filosofia marxista aptos a conhecer e reconhecer
po os conceitos da
como ideológicos os conceitos
filosóficos que nos escamoteiam as
votados a esse
falhas dos conceitos cientificos. Eis-nos cabalmente
de Marx sem
destino teórico: o de não poder ler o discurso cientifico
escrever aO mesmo tlempo. por seu próprio ditado, o texto de um ou
discurso
tro discurso, do primeiro, mas distinto dele: o
inseparável
da filosfia de Mar»

ao Ierceiro momento dessa interrogaço. O Ca-


Passemos agora
pital. os prefacios de certas cartas. e as Notas sobre Wagner
Engels,
contém de lato algo que nos possa levar por uma via fecunda. O que
até agora tivemos de reconhecer em negativo em Marx. vamos daqui
por diante revelar em positivo.

Tenhamos em mente. primeiro, simples observações sobre a ter


mindogia Sabemos que Marx censura a Smith e Ricardo o terem
constantemente conJundido a mais-valia com as formas de sua exis
tencia: lucro, renda, juro. Falta, pois, uma palavra nas análises dos
grandes cconomislas. Quando Marx os lë, restabelece no texto deles
palavra que lalta: a mais-valia. Esse ato aparentemente insignil
cante de restabelecer uma palavra ausente tra/ em si. no entant
nao e su
coneqüncius leóricas de vulto: essa palavra, com eleito,
uma palavra, mas um cunceilo, e conceito teórico, que é, no caso,
reprrenianle de um novo sistema conceptual, correlalo do aparei
mento de um novo objelo. Toda pulavra é um conceito, mias n
todo conceito é teórico, e nem todo conceito teórico é represenlante
O OBJETO DI: ")
CAPTIAL 93
de um novo objeto. Se a
palavra mais-valia é importante
o, isso se deve a que a esse
pon-
atinge diretamente a estrutura do
destino esta em jogo,
ento, nessa objeto cujo
porta que toda essa simples denominação. Pouco im-
ao espirito e sob a
conseqüencia nâo
esteja absolutamente presente
pena de Marx quando ele
cardo o terem saltado censura a Smith e Ri-
por cima de uma
obrigad0, mais palavra. Marx no pode ser
que qualquer outro, a dizer tudo ao
mesmo tempo: o
que importa e que ele diga, em outra
aqui. Ora, não se pode duvidar de parte, que não diz ao dizé-lo
o
que Marx tenha sentido
gencia teórica de primeiríssima ordem a necessidade decomo exi-
uma 1erninologia cientifica elaborar
adequada,
termos definidos, no qual não
isto é, um sistema coerente de
conceitos, mas no
apenas as palavras empregadas sejam
qual
as
palavras sejam
novas outros
tantos con-
ceitos definidores de um novo
objeto.
valor de uso e valor, escreve Marx
Contra Wagner, que confunde
(lI|, 249-250):
A única coisa clara
que se encontra nessa algaravia alem consiste
nisto: se nos ativermos ao sentido verbal, a
foi primeiramente aplicada às coisas úteis,
palavra valor ( Wert, Würde)
que ex istiam há muito tempo,
mesmo que sendo
"produtos do trabalho", antes de se converterem em
mercadorias. Mas isso tem tanto a ver com a definição cientifica do *va-
lor-mercadoria". quanto o fato de que a palavra sal entre os antigos fosse
primeiro aplicada ao sal comestivel, e que, por conseguinte, o açúcar, etc.
figurem desde Plinio como variedades de sal, etc. (250).

e um pouco antes:

Isso faz pensar nos antigos químicos antes do advento da ciência da


quimica: pelo fato de que a manteiga comestivel, que na vida quotidiana
se chama manteiga simplesmente (segundo o costume nórdico), tem uma
consisiència frouxa, eles chamaram os extratos butirosos,os cloretos,de
manteiga de zinco, manteiga de antimônio, etc. (249).

Essa passagem é sobremodo nítida, porque distingue o "sentido


verhal de uma palavra e o seu sentido cientifico, conceptual, no
fundo de uma revolução teórica do objeto de uma ciência (a quími-
ca). Se Marx tem em vista um novo objeto, deve necessariamente ad-
quirir uma terminologia conceptual nova correspondente.
Engels percebeu isso muito bem num trecho de seu prefácio à
edição inglesa de O Capital (1 886) (1, 35-36):
Persiste, contudo, uma dificuldade, e dela no podemos poupar o
leitor: o emprego de certas expressôes em sentido diferente do usual na

CT. OCapital, I. prefácio, p. 17. Marx fala da "nova terminologia criada" porele.
LER O CAPITAL"
94

vida quotidiana e do consagrado na economia política em voga. Mas isso


era inevitável.
Cada concepção nova de uma ciëncia enseja uma revolução nos ter.
mos especializados (Fachausdriüichen) dessa ciência. Isso seevidencia me
Ihor na química: toda a sua terminologia, em cada período de mais ou
menos vinte anos, muda radicalmente (Terminologie), e é dificil encon-
trar um composto orgânico que näo tenha tido uma série de nomes dife
rentes. A economia política, de modo geral, tem se contentado em respei-
tar, tais como se encontram, as expressões da vida comercial e industrial,
e em trabalhar com elas, sem se dar conta de que com isso se encerrava no

circulo estreito das idéias que elas exprimem.


Assim é que os representantes da economia clássica, embora tivessem
consciência plena de serem o lucro e a renda apenas subdivisões, parcelas
da parte não-paga, saída do produto que o trabalhador tem de fornecer
ao paträo (o primeiro que dela se apropria, ainda que no seja seu último
e exclusivo dono) - apesar disso, nunca chegaram a ulirapassar as idéias
usuais (ühliche Begriffe) de lucro e renda. nunca examinaram essa parte

não-paga do produto (chamada por Marx de produto líquido *), em seu


conjunto, como um todo, e, por iss0, nunca atingiram uma compreensão

clara, nem da origem


sua nem da sua natureza, nem das leis que regem a
distribuição posterior do seu valor. Do mesmo modo, o conceito de in-
dústria, desde que não inclua agricultura e artesanato,. está compreendi-
entre dois
do no termo manufatura, e, com isso, se apaga a diferença
da história econômica, importantes e essencialmente diversos:
o
periodos
no trabalho manual.
periodo da manufatura' propriamente dita, baseada Uma
e o da indústria moderna, baseada na maquinaria. teoria que consi-
transitório da história
dere a mnoderna produção capitalista mero estágio
economica da humanidade tem, naturalmente, de utilizar expressðes dije-
rentes daquelas enpregadas por autores que encaram esse modo de produ-
"
Cao com0 eterno e definitivo.
funda-
Destaquemos dessa passagem as seguintes afirmações
mentais:

1) toda revolução (aspecto de uma ciência) em seu objeto


novo
acarreta uma revolução inevitável em sua terminologia;
2) toda terminologia está relacionada com um circulo determi
nado de idéias, o que podemos traduzir dizendo: toda terminolo-
terminologla
gia é função do sistema teórico que lhe serve de base, toda
encerra em si um sistema teórico determinado e limitado:

A expressão "produto liquido" não consta da tradução em português da Editora


do
Civilização Brasileira de O Capital, no famoso prefácio de Engels. (N. ilida-
Esse trecho é notabilíssimo, e quase exemplar: dá-nos da excepcional sensi
de epistemológica de Engels uma idéia inteiramente diversa daquela que odv n
em outras circunstâncias. Teremos outros ensejos de assinalar o gênio teorico con
gcls, que longe está de ser o comentarista de segunda ordem que alguns quiserau
trapor a Marx.
O OBJETO DE "O CAPITAL"
95

3) a economia política clássica estava encerrada num círculo de-


terminado pela identidade de seu sistema de idéias com a sua termi-
nologia;
4) ao revolucionar a teoria econômica clássica, Marx deve ne
.cessariamente revolucionar-lhe a
terminologia;
5) o ponto sensível dessa Revolução recai precisamente na mais
valia. Por não terem pensado numa
de
expresso que fosse o conceito
seu objeto, os economistas clássicos ficaram
prisionei- na noite,
ros das palavras que não passavam de conceitos ideológicos ou
empiricos da prática econömica;
6) Engels relaciona, em última instância, a diferença de termi-
nologia existente entre a economia politica clássica e Marx com uma
diferença na concepção do objeto: os clássicos tomando-o por eter-
no, e Marx por transitório. Sabemos o que pensar desse tema.

Não obstante esta última fragilidade, essa passagem é notabilís-


sima, dado que pöe em evidência uma relação intima entre o objeto
de uma disciplina cientifica determinada e o sistema de sua termino-
logia com o sistema de suas idéias. Portanto, ressalta uma relação
intima entre o objeto, a terminologia e o sistema conceptual que lhe
corresponde relação que, uma vez modificado o objeto (uma vez
captados os seus aspectos novos"), deve necessariamente acarretar
uma modificação correlata no sistema das idéias e na terminologia
conceptual.
Digamos, em linguagem equivalente, que Engels afirma a exis-
tência de uma relação funcional necessária entre a natureza do obje-
1o, a natureza da problemática teóricaea natureza da terminologia
conceptual.
Essa relação ressalta ainda mais nitidamente de outra passagem
rpreendente de Engels, a saber, o prefácio ao livro II de O Capital,
que pode ser posta em relação direta com a análise que Marx faz da
cegueira dos economistas clássicos no tocante ao problema do salá-
rio (11, 206 ss.).
No trecho mencionado, Engels estabelece claramente a ques-
tão
Eis que transcorreram séculos desde que a humanidade capitalista
produziu a mais-valia, e no entanto só recentemente ela veio a se preocu-
par com a origem dessa mais-valia. A primeira noção que se teve dela de-
correu da prática imediata do comércio: dizia-se então que a mais-valia
resulta da majoração do valor do produto. Essa era já a opiniäo dos mer-
cantilistas: mas James Stewart deu-se conta de que, nesse caso, um perde
o que o outro forçosamente ganha. O que não impediu a persistência des-
se modo de ver por muito tempo ainda, sobretudo entre os socialistas; A.
Smith livra dele a ciência clássica.. (1V, 15).
96 LER O CAPITAL'

Engels mostra então que Smith e Ricardo conheciam a origem


da mais-valia capitalista. Se eles "não estabeleceram a distinção entre
a mais-valia como tal, enquanto categoria especial, e as formas espe-
ciais que ela assume no lucro e na renda fundiária" (citado, IV, 16).
contudo "produziram o principio fundamental da teoria marxista
de O Capital: a mais-valia.
Donde a questão, pertinente do ponto de vista epistemológico:

Mas, nesse caso, que foi que Marx disse de original sobre a mais-valia?
Como se explica que a teoria marxista da mais-valia tenha ribomba-
do como o trovão num céu sereno, e isso em todos os paises civilizados,
ao passo que as teorias de todos os seus predecessores socialistas, inclusi-
ve Rodbertus. perduravam?

O reconhecimento de Engels do efeito prodigioso do surgimen-


to de uma teoria nova: o "ribombar de troväo num céu sereno" inte-
ressa-nos como sinal marcante da originalidade de Marx. Não mais
se trata aqui dessas diferenças equivocas (eternitarismo fixista, his-
tória em movimento) nas quais Marx procurava exprimir sua rela
ção com os economistas. Engels no hesita: estabelece imediatamen-
O verdadeiro problema da ruptura epistemológica de Marx com a
economia clássica: a situa no ponto mais pertinente, que é também
o mais paradoxal: a propósito da mais-valia. Precisamente a mais-
valia não é original, pois que já cabalmente "produzida" pela econo-
mia clássica! Engels coloca então a questão da originalidade de
Marx a
de
propósito compreensão
uma que, para ele,
reaiidade não ëorigtnai
nessa extraordinária da questão que o gênio de Engels
resplandece: ele enfrenta a questão no seu derradeiro reduto, sem
sombra de um recuo; enfrenta-a no próprio local onde a quest o se
apresentava sob a forma esmagadora de sua resposta; ou antes, la
onde a resposta impedia, pelas qualidades esmagadoras de sua evi-
dencia. suscitar a mínima questão! Ele tem a ousadia de propor a

questão da originalidade e da não-originalidade de uma realidade


que ligura em dois discursos diferentes, isto é, a questão da modalida-
de teórica dessa "realidade" inscrita em dois discursos teóricos. Bas-
ta ler sua resposta para compreender que ele não propôs a questão
por malicia, ou ao acaso, mas no domínio de uma teoria da ciëncia
que se funda sobre uma teoria da história das ciências. De fato, tra-
ta-se de uma comparação com a história da química que Ihe permite
formular a questão e definir sua resposta.

Que foi que Marx disse de original sobre a mais-valia?..


A história da química pode no-lo mostrar mediante um exemplo.
teorid
Como todos sabem, em fins do século passado reinava ainda a
o OBJETo DE "O CAPITAL"
97
do flogistico, explicava a natureza de toda combusto, afirmando
que
que, do corpo combustão, destacava-se outro corpo, corpo hipotéti-
em
co, um combustivel
absoluto, a que se dava o nome de flogístico. Essa
teoria bastava para explicar a maioria dos
fenômenos químicos então co-
nhecidos, não sem todavia, em certos casos, violentar os fatos.
Ora, eis que em 1774 Priestley
chou tão puro ou tão isento de
produziu uma espécie de ar, que "a
mum era já viciado".
flogístico que, comparativamente, o ar co-
Chamou-o de ar desflogistizado. Pouco tempo dea
pois, Scheele produziu na Suécia a mesma espécie de ar, e demonstrou
sua presença na atmosfera.
Ademais, verificou que esse gás desaparecia
quando nele se queimava um corpo, ou queimando-se um corpo no ar
comum; chamou-o de "ar de fogo"..
Priestley e Scheele haviam ambos produzido o oxigênio, mas sem sa-
ber o que tinham diante de si. "Foram
incapazes de se desligar das catego
rias flogísticas "tais como as encontraram estabelecidas". O elemento
que iria subverter a concepção flogística inteiramente (die ganze phlogistis-
che Anschauung umstossen)e revolucionar a quimica, continuava, nas
mãos deles, atacado de esterilidade.
Mas Priestley imediatamente comunicara a sua descoberta a Lavoi-
sier em Paris, e este, partindo dessa realidade nova (Tatsache) passou em
revista toda a química flogística. Descobriu primeiramente que o novo
tipo de ar era um elemento quimico novo, e que, na combustão, não éo
misterioro flogístico que escapa, mas esse novo elemento que se combina
com o corpo; e foi ele assim o primeiro a colocar de pé toda a química, a
qual, sob a sua forma flogística, andava de cabeça para baixo (stellte so die
ganze Chemie, die in ihrer phlogistischen Form auf dem Kopf gestanden,
erst auf die Füsse). E se não é exato, contrariamente ao que ele pretendeu
depois, que tenha produzido o oxigênio ao mesmo tempo que Priestley e
Scheele e independentemente deles, sem dúvida foi ele quem na verdade
descobriu (der eigentliche Entdecker) o oxigênio primeiro que os outros
dois, que apenas o produziram (dargestellt) sem terem a mínima noç o
do que haviam produzido.

Marx está para os seus predecessores, quanto à teoria da mais-valia,


como Lavoisier está para Priestley e Scheele. Muito tempo antes de
Marx, já estava estabelecida a existência (die Existenz) dessa parte do va-
lor do produto que agora chamamos (nehnen) de mais-valia; havia-se
também enunciado mais ou menos claramente a sua procedência: isto é,.
o produto do trabalho de queo capitalista se apropria sem pagar o equi
valente. Mas não se foi mais além (Weiter aber kam man nicht). Uns os
economistas burgueses clássicos estudaram no mááximo a relação se
gundo a qual o produto do trabalhoé distribuido entre o trabalhador e o
possuidor dos meios de produço. Os outros os socialistas acharam
essa distribuição injusta e procuravam por meios utópicos acabaf com
essa injustiça. Uns e outros continuavam presos (befangen) nas categorias
econômicas tais quais as haviam estabelecido (wie sie sie vorgefunden hat-
ten)
Veio então Marx. Ao avesso de todos 0s seus predecessores (in direk-
tem Gegensatz zu allen seinen Vorgänger), onde cles viram uma solução
(Lösung), ele só viu um problema (Problem). Percebeu que näo havia no
caso nem ar desflogistizado nem ar de fogo, mas oxigênio; que não se tra-
tava no caso nem da simples verificação de uma realidade (Tatsache) ec0
nômica, nem do conflito dessa realidade com a justiça eternaca reta m0
LER O CAPITAL
98
ral, mas de uma realidade (Tatsache) destinada a suhverter (unmwälzen) a.
economia toda. e que. para a compreensão do conjunto fgesamien) da
produção capitalista, oferecia a chave - a quem soubesse dela se servir.

Partindo dessa realidade, ele submete a exame (untersuchte) o conjunto


das categorias que ele encontrou estabelecidas, precisamente como La
voisier. partindo do oxigênio, submetera a exame as categorias da quimi.
ca flogistica. Para saber o que é a mais-valia, era-lhe necessário saber o
que é o valor. Antes de tudo o mais, era. pois, necessário submeter à criti
ca a teoria do valor do próprio Ricardo. Portanto, Marx estudou o tra-
balho em relação à sua propriedade de constituir o valor, e determinou
pela primeira vez que trabalho constitui o valor. por que e como o consti
tui: determinou, ademais, que o valor nada mais é em suma senão traba-
Iho coagulado daquela espécie - questão que Rodbertus jamais chegou a

compreender. Marx estudqu em seguida a relação entre a mercadoria e o


dinheiro, e mostrou como e por que a mercadoria, em virtude de sua qua-
lidade inerente de ser valor, e a troca de mercadorias produzem necessa-
riamente a oposição entre a mercadoria e o dinheiro; a teoria do dinheiro
que ele fundou é a primeira que foi completa (ershöpsende) e que hoje é
aceita em toda a parte tacitamente. Estudou a transformação do dinheiro
em capital, e provou que ela tem por base a compra e a venda da força
de trabalho. Ao substituir (en die Stelle.. setzen) o trabalho pela força de
trabalho, isto é, a propriedade de criar o valor, ele solucionava de uma só
vez (löste er mit einem Schlag) uma das dificuldades nas quais a Escola de
Ricardo naufragou: a impossibilidade de harmonizar a troca reciproca
de capitale trabalho com a lei ricardiana da determinação do valor pelo
trabalho. Foi ao verificar a diferenciação entre capital constante e capital
variável que ele chegou a representar (darzustellen) e assim a explicar
erklären), em sua marcha real e justa nos mínimos pormenores, o pro
cesso de formação do valor, o que foi impossível a todos os seus prede-
cessores; ele. pois. verificou, no interior do próprio capital, uma distin-
ção de que Rodbertus e os economistas burgueses foram incapazes de de-
duzir o que quer que fosse, mas que forneceu a chave para a solução dos
problemas econômicos mais complicados, como o provam de novo, do
modo mais impressionante, o livro I1, e mais ainda, como se verá, o livro
l1. Marx foi muito mais além do exame da própria mais-valia; descobriu
duas formas dela: a mais-valia absolutae a relativa, e demonstrou o pa-
pel diferente, mas decisivo nos dois casos, que elas têm desempenhado na
evolução histórica da produção capitalista. Partindo da mais-valia, ele
desenvolveu a primeira teoria racional que possuímos do salário, e foi o
primeiro a dar os traços fundamentais de uma história da acumulação
capitalistae um quadro de sua tendência histórica.
E Rodbertus? Após haver lido tudo isso... acha que dissera já a mes
ma coisa, de modo mais sucinto e claro, sobre a origem da maS-val1a
acha afinal que tudo isso se aplica sem dúvida à "forma atual docap
tal", isto é, ao capital tal como existe historicamente, mas não ao con
ceito de capital", isto é, à idéia utópica que Rodbertus faz do capital.
como o velho Priestley, que. até a morte, jurou pelo flogistico, e na
quis saber do ougênio. Com a diferença de que Priestley foi realmen
primeiro a produzir oxigênio, ao passo que Rodbertus, com a sua
valia, ou antes com a sua "renda". simplesmente redescobriu um uga
comum, e que Marx, contrariamente à atitude de Lavoisier, nãoIez
ao de pretender que fora o primeiro a descobrir a realidade (1alsuce
da existência da mais-valia
(IV, 20-22).
o OBJETO DE "0 CAPITAL" 99

Resumamos as teses desse trecho notáve


) Priestley e Scheele, em pleno período de dominação da teoria
do flogistico, "produzem (stellen dar) um gás estranho, que foi cha-
mado pelo primeiro de ar desflogistizado - e pelo segundo: ar de fo-
go. Na verdade era o gas que mais tarde viria chamar-se oxigenio.
Todavia, observa Engels, "eles apenas o produziram, sem ter a míni-
ma noção do que haviam produzido, isto é, sem possuir o seu conce
1o. Esta a razao pela qual "o elemento que
iria subverter totalmente a
concepção flogistica e revolucionar a química continuava estéril eles
nas

mãos deles". Por que essa esterilidade e essa cegueira? Porque


foram incapazes de se desligar das categorias flogísticas' tais
com0

as encontraram
estabelecidas. Porque em vez de ver no oxigênio um
problema, viram nele "uma solução".
2)Lavoisier agiu inteiramente ao contrário: *"partindo dessa
"colo-
realidade nova, submeteu a exame toda a quimica flogística",
cou desse modo sobre os pés a quimica que sob a forma flogística anda-
os outros viam uma solução ele viu
va de cabeça para baixo". Onde
um problema. Por essa razão pode dizer-se que, se os dois primeiro
dando-lhe o con-
produziram" o oxigènio, só Lavoisiero descobriu,
ceito.
Ricardo: ele
O mesmo se deu com Marx, com relação a Smith e
verdadeiramente descobriu a mais-valia que os seus predecessores
haviam apenas produzido.
Essa simples comparação, e os termos que a exprimem, abrem-
sobre o discerni-
nos profundas perspectivas sobre a obra de Marx, e
mento de
epistemológico Para compreender Marx, devemos
Engels.
tratá-lo como um cientista entre outros, e aplicar à sua obra científi-
ca os mesmos conceitos epistemológicos e históricos que aplicamos
um funda-
a outros: no caso, Lavoisier. Marx aparece assim como
dor de ciência, comparável a Galileu e Lavoisier. E mais, para com-
de seus prede
preender a relação que a obra de Marx mantém com a
cessores, para compreender a natureza do corte ou da mutação queo
a obra de outros fundadores,
distingue deles, devemos interrogar
que tiveram por sua vez de romper também com seus predecessores.
compreensão de Marx, do mecanismo de sua descoberta, da natu-
reza do corte epistemológico que inaugura a sua fundação científica,
aos conceitos de uma teoria geral da
história das
remete-nos, pois,
capaz de pensar a essëncia desses acontecimentos teóricos.
Ciencias,
Uma coisa é que a teoria geral só exista por enquanto em projeto, ou
essa teoria
que tenha já parcialmente se concretizado; outra é que
O caminho
seja absolutamente indispensável para o estudo de Marx.
tomemos
que Engels nos aponta pelo que ele faz é de molde a que o
00 LER O CAPITAL"

todo custo: é nada menos que caminho da filosofia fundada


o
Marx por
no próprio ato de fundação da ciência da
história.
O texto de Engels vai mais longe. Ele nos d em
claros o termos
primeiro esboço teórico do conceito de corte: essa mutação pela
qual uma ciência nova se estabelece sobre nova
tância da antiga problemática ideológica. Ora, problemática, à dis-
eis a questão mais
surpreendente: Engels pensa essa teoria da mutação da problemáti-
ca, e, pois, do corte, nos termos da "inversão,
que coloca sobre os
pés" uma disciplina "que andava de cabeça para haixo'". Estamos
diante de um velho conhecimento! diante dos
próprios termos pelos
quais Marx, no posfácio da 2 edição alem de O Capital,
tratamento imposto à dialética hegeliana, para definiu o
faz-la
do idealista ao estado materialista. Estamos diante dos
passar do esta-
mos pelos quais Marx definiu, numa förmula
próprios ter
que exerce ainda um
peso ennorme sobre o marxismo, sua relação para com Hegel. Mas
que diferença! Em vez da fórmula enigmática de Marx, temos uma
luminosa fórmula de Engels - e na förmula de Engels achamos
mente de modo claro, e pela primeira vez final
talvez pela única vez em
-

todos os textos clássicos - , a explicação da fórmula de Marx.


" Reco-
locar sobre os pés a química que andava dé cabeça para
baixo signifi-
ca, sem qualquer ambigüidade possível no texto de Engels:
mar a base teórica, transformar a
transfor-
problemática teórica da química,
substituir a antiga problemática por nova problemática. Eis o senti-
do da famosa "inversão": nessa imagem que é apenas imagem, e que
não
tem, pois, nem o sentido nem o rigor de um conceito, Marx pro-
curava simplesmente indicar por sua conta a existëncia dessa mutd-
ção da problemática, que inaugura toda fundação científica.

3) Engels descreve de fato uma das condições formais de um


acontecimento da história teórica: a rigor, uma revolução teórica. Vi-
mos que é preciso construir os conceitos de fato ou de acontecimento
teóricos, de revolução teórica que intervém na história do conheci
mento, para poder constituir a história do conhecimento - do mes-
mo modo que é preciso construir e articular os conceitos de fato e de
acontecimento históricos, de revolução, etc. para se ter condição de
pensar a história política ou a história econômica. Com Marx esta-
mos no ponto de um corte histórico de importância fundamental,
não apenas na história da ciência da história, mas também na histo-
ria da filosofia, mais precisamente, na história do Teórico: esse corte
(que nos permite assim solucionar um problema de periodização da
história do saber) coincide com esse acontecimento teórico que é a re-
volução da problemática instaurada por Marx, na ciência da histo-
ria e na filosofia. Importa pouco que esse acontecimento tenha pas
O OBJETO DE "O CAPIT AL'~ 1O1

sado desper cebido , no~ todo ~u em parte, e que seja preciso tempo
para que essa revolu çao teórica faça sentir todos os seus efeitos e
que tenha sofrid o inacre ditáve l recalc ament o na históri a visível d'as
.déias: o fato ac?nte ccu; o corte se deu, e a históri a daí surgid a cava
,eu curso por vias subter râneas nos interst ícios da históri a oficial:
··bef!1 ~-a vado. v,elha toupei ra!" Dia haverá em que a históri a oficial
das 1de~as estar~. em atraso quanto a ela. e quand o se der conta dis-
so: ~era demas iado tarde. a menos que assum a o reconh ecimen to
teonco desse fato. e que tire as conseq üência s dele. .
Engels mostra -nos precis ament e o outro lado dessa revolu ção:
a obstin ação daque les que a vivem em negá-la : .. O velho Priestley ju-
rou até a morte pelo tlogíst ico. e ri ada quis saber do oxigên io": é que
ele se atinha . como Smith e Ricard o. ao sistema das idéias existentes,
recusando-se a questio nar a problemática teórica com a qual a recen-
te descob erta vinha rompe r . .1 i Se adiant o esse termo problemática
teórica , é dando um nome (que é um concei to) ao que Engels nos
diz: Engels resum e de fato o questi oname nto crítico da antiga teoria.
e a consti tuição da nova. no ato de estabelecer como problema o que
antes era tido como solução. É exatam ente o que se dá com a con-·
cepção de Marx. no famos o capítu lo sobre o salário (1 I. 206 ss.). Ao
exami nar o que permit iu à econo mia polític a clássica definir o salá-
rio pelo valor dos n:ieios de subsis tência necessários. e portan to. en-
contra r e produ zir um resulta do justo, escreve Marx: .. A sua revelia.
ela mudava assim de terreno, substit uindo o valor do trabalh o. até
então objeto aparen te de suas pesqui sas. pelo valor da força de tra-
balho ... O resulta do a que chegav a a análise era. pois. não o de resol-
ver o proble ma tal como se apresentou no início, mas o de lhe mudar os
termos ". No caso ainda, vemos qual é o conteú do da .. invers ão":
.. essa mudan ça de terren o", que coinci de com a .. mudan ça de ter-
mos", portan to da base teórica , a partir da qual são enunci adas as
questões e propo stos os problemas. No caso ainda. vemos que é a
mesma coisa .. invert er" ... coloca r sobre os pés o que andav a de ca-
beça para baixo" , .. mudar de terren o" e .. mudar o~ termos ~o
proble ma": trata-s e de uma única e mesma transf or~aça o, que atin-
ge a estrutu ra própri a da teoria fundam ental. a partir da _q ual todo
proble ma é coloca do nos termo s e no campo da nova teona. Muda r
de base teórica é, pois, mudar de problemática teórica , se é certo que

11
· O mesmo acontece tanto na história do saber como na história social: n~I~ encon-
tramos gente que "nada aprendeu nem na~a e.squ~ceu", sobretudo se ass1sl1ram ao
espetáculo instalados nos camaroles de primeira Ilia .
102 LER "O CAPITAL"

a teoria de uma ciência em dado momento de sua história é tão-só a


matriz teórica do tipo de questões que a ciência propõe a seu objeto -
se é certo que com uma nova teoria fundamental aparece no mundo
do saber uma nova maneira orgânica de propor questões ao objeto,
propor problemas e, por conseguinte, produzir respostas novas. Ao
falar da questão que Smith e Ricardo formularam ·a respeito do salá-
rio, escreve Engeh;: .. colocada sob essa forma, a questão (die Frage) é
insolúvel (unlos/ich). Marx a colocou ein termos certos (richtig) e por _
isso lhe deu a resposta" (ib., p. 23). Essa colocação certa do problema
não é obra do acaso: pelo contrário, é efeito de uma teoria nova, que
é o sistema de colocação dos problemas numa forma justa - o efeito
de uma nova problemática. Toda teoria é, pois, em sua essência,
uma problemática, isto é, a matriz teórico-sistemática da colocação
de todo problema referente ao objeto da teoria.

4) Mas o texto de Engels contém algo mais. Contém a idéia de


que a realidade. o fato novo ( Tatsache), no caso a existência da
mais-valia. não se reduz à .. simples constatação de um fato econômi-
co": pelo contrário, é um fato destinado a subvert~r toda a econo-
mia, e a fazer compreender ... o conjunto da produção capitalista". A
descoberta de Marx não é, pois, uma problemática .subjetiva (sim-
ples maneira de interrogar uma realidade dada, mudança de .. ponto
de vista" puramente subjetivas): correlatamente à transformação da
matriz teórica da colocação de qualquer problema referente ao obje-
to, ela diz respeito à realidade do objeto: sua definição objetiva. Ques-
tionar a definição do objeto é propor a qüestão da definição diferen-
cial da originalidade do objeto visado pela nova problemática teóri-.
ca. Na história das revoluções de uma ciência, toda subversão da
problemática teórica corresponde a uma transformação da defini-
ção do pbjeto, e portanto de uma diferença localizável no próprio
o~jeto da teoria.
Ao tirar esta última-conclusão, terei ido mais longe que Engels?
Sim e não. Não, porque Engels conta não apenas com um sistema de
idéias tlogísticas que, antes de Lavoisier, determinava a colocação
de todo o problem·a e, pois, o sentido de todas as · soluções corr,es-
pondentes: conta também com um sistema de idéias em ~icardo,
quando evoca a necessidade última, a que Marx f(?i obrigado, de
.. submeter à crítica a própria teoria do valor de Ricardo" (ib:, 21).
Sim, talvez, se é certo que Engels, tão arguto na análise desse fato
teórico que é uma revolução científica, não tem a mesma audácia pa-
ra pensar sobre os efeitos dessa revolução no o~jeto da teoria. Pudemos
notar, quanto a este ponto que lhe é tão sensível, os equívocos de
sua concepção: todos eles podem reduzir-se à confusão empirista en-
tre O objeto de conhecimento e o objeto real. Engels teme claramen-
O OBJETO DE "O CAPITAL" 103

te, ao aventurar-se fora dessas seguranças (imaginárias) da tese em-


pirista, perder as garantias que lhe fornece a identidade real procla-
mada entre o objeto de conhecimento e o objeto real. Ele dificilmen-
te pode conceber o que no entanto diz de fato, e que a história das
ciência~ lhe mostra a cada passo: que o processo de produção de um
conhec1me_nto pass~ ·necessariamente pela transformação incessante
do seu obJeto (conceptual); que essa transformação, que coincide
com a história do conhecimento, tem por efeito precisamente produ-
zir um novo conhecimento (um novo objeto de conhecimento) que
o
diz respeito sempre ao objeto real, do qual conhecimento se apro-
funda precisamente pelo remanejamento do objeto de conhecimen-
to. Como o diz profundamente Marx, o objeto real, do qual se trata
de adquirir" ou de aprofundar o conhecimento, permanece o que é,
antes e depois do processo de conhecimento que lhe diz respeito (cf.
Introdução de 57); se ele é, pois, o ponto de referência absolÚto do
processo de conhecimento que lhe diz respeito - o aprofundamento
do conhecimento desse objeto real efetua-se por um trabalho de
transformação teórica que atinge necessariamente o· objeto de conhe-
cimento, dado que só se refere a ele. Lênin compreendeu perfeita-
mente essa condição essencial da prática científica - e esse é um dos
grandes temas de Materialismo e Empirocriticismo: o tema do apro-
fundamento incessante do conhecimento do objeto real pelo remanejo
incessante do objeto de conhecimento. Essa transformação do objeto
de conhecimento pode apresentar formas diversas: pod~ ser contí-
nua, insensível - ou, pelo contrário, descontínua e espetacular.
Quando uma ciência bem estabelecida se desenvolve sem movimen-
tos bruscos, a transformação do objeto (de conhecimento) adquire
uma forma contínua e progressiva: a transformação do objeto torna
Nisíveis, no objeto, unovos aspectos" que antes não eram absoluta-
mente visíveis; acontece então ao objeto o que ocorre com cartas
geográficas de regiões ainda mal conhecidas, mas que estão sendo
exploradas: os espaços em branco interiores enchem-se de pormeno-
res e esclarecimentos novos, m·a s sem modificar o contorno geral, já
reconhecido e conhecido, da região. É assim, por exemplo, que po-
demos prosseguir depois de Marx a investigação sistemática do ob-
jeto definido por Marx: ganharemos com isso novos pormenores, ao
Hver" o que antes não podíamos ver - mas no interior de um objeto
cuja estrutura será confirmada por .nossos resultados, mais do que
subvertida por eles . Coisa diferente se dá nos períod~s críticos de de-
senvolvimento de uma ciência, quando ocorrem Verdadeiras muta-
ções da problemática teórica: então oobjeto da teoria sofre uma mu-
tação correspondente, que, desta feita, não recai apenas so~re ua~-
pectos" do objeto, sobre minúcias de sua estrutura, mas sobre a pro-
pria estrutura. O que agora se torna visível é uma nova estrutura do
104 LER "O CAPITAL"

objeto, não raro a tal ponto diferente da antiga que se pode legitima-
mente falar de um objeto novo: - a história da matemática desde iní-
cios do século XIX até hoje, ou a história da física moderna são ricas
de mutações desse gênero. O mesmo acontece, com mais razão ainda,
~uando_ uma ciência nova l-nasce - quando ela se destaca do campo da
ideologia com a qual rompe para nascer: esse "desprender-se" teórico
provoca sempre, inevitavelmente, uma transformação revolucionária
da problemática teórica , e uma modificação igualmente radical do ob-
jeto da teoria. Neste caso, pode falar-se propriamente de revolução ,
de salto qualitativo, de modificação referente à estrutura mesma do
33
objeto. O novo objeto pode-conservar ainda algúm vínculo com o
antigo objeto iQeológico, e podemos encontrar nele elementos que
pertenciam também ao objeto antigo: mas o sentido desses elemen- ·
tos muda com a nova estrutura que precisamente lhes confere senti-
do. Essas semelhanças aparentes, referentes a elementos isolados,
podem enganar um olhar superficial que ignore a função da estrutu-
ra na constitu~ção do sentido dos elementos de um objeto, precisa-
mente como certas semelhanças técnicas referentes a elementos iso-
lados podem iludir os intérpretes que classificam sob a mesma cate-
goria (.. sociedades industriais") estruturas diferentes como o capita-
lismo e o socialismo contemporâneos. Na verdade, essa revolução
teórica, visível na ruptura que separa uma ciência nova da ideologia
de que nasce, repercute profundamente no objeto da teoria que, por
sua vez, no mesmo momento, é o lugar de uma revolução - e torna-
se adequadamente um objet0 novo. Essa mutação no objeto pode
constituir, exatamente como a mutação na problemática correspon-
.dente, objeto de um estudo epistemológico· rigoroso. E como· é por
um mesmo e único movimento que se constituem tanto a nova
problemática como o objeto novo, o estudo dessa _d~pl~ mutação
nadá mais é que um mesmo estudo que decorre da d1sc1plma que re-
flete sobre a história das formas do saber e sobre o mecanismo de
sua produção: a. filosofia. . . ~ , .
Com isso, eis-nos no hmiar de nossa questao: qual e o ob1eto
próprio da teoria econômica fundada por Marx em O Capital; qual é
0 objeto de O C apitai? Que diferença específica distingue o objeto de
Marx do objeto de seus predecessores?

JJ Exemplo disso: 0 "objeto" de Freud é radicalmente novo em ~elação ao "objeto"


da ideologia psicológica ou filosófica de s~us predecess~res. O obJeto de Freud é O in-
. te . que nada tem a ver com. os obJetos, por mais numerosos que se queiram'·
consc1en
de to d as as variedades da psicologia moderna. Pode mesmo conceber-se que a tarefa
• • 1 de toda disciplina nova consiste • em pensar a d'" 11erença espec ifi1ca do objeto
pnncJpa . . . • d b' ·
la desc obre em d1stingu1-lo rigorosamente o o ~eto antigo e em construir
novo que e · . ,- Ih ·
os conce1·tos próprios necessános. parad'pensá-lo.
. r .
e. nesse traba o teórico f undamen-
• .
tal que uma ciência nova adquire o ire1to e1et1vo a autonomia.
O OBJ ETO OE "O CAPI TA L" 105

VII. O Objeto da Economia Política

Para respo nder à quest ão queJ1os propo mos, tomam os literal-


mente o subtít ulo de O Capital .. Crític a da Econo mia Políti ca" . Se
nossa persp ectiva estive r corre ta, .. critic ar" a Econo mia Política não
pode signif icar a censu ra ou retificação desta ou daque la inexa tidão
ou quest ão de porm enor de uma disciplina existente - nem mesm o o
preen chime nto de lacun as, de espaç os em branc o, dando prossegui-
mento a um traba lho de explo ração já ampla mente feito ... Critic ar a
Econo mia Políti ca" significa contrapor-lhe ·uma nova probl emáti ca
e um objeto novo: portan to, questionar o ohjeto mesmo da Econo mia
Política. Mas como a Econo mia Política se define, como Econo -
mia Políti ca, por seu objeto , a crítica q-ue vai atingi:.la a partir de um
novo objet o que se lhe contr aponh a, pode atingi r a Econo mia Políti-
ca em sua própr ia existên•cia. Este é precis amen te o caso: a crítica da
Econo mia Políti ca por Marx não pode quest ionar o seu objeto sem
quest ionar també m a própr ia Econo mia Política, em suas preten -
sões teóric as de auton omia, no ureco rte" que ela instau ra na reali-
dade ~ocial para dele const ituir a teoria . A critica da Econo mia Polí-
tica por Marx é, pois, bem radical: ela quest iona não apena s o obje-
to da Econo mia Políti ca, nias a própria Economia Política como ob-
jeto. Para dar a essa tese a vanta gem da sua radica.lidade, digam os
gue a Econo mia Políti ca, tal qual se define em sua pretensão, para
LER "O CAPITA L' '
106

Marx não tem qualqu er direito_à e~istên cia: e se não pode cxi~tir
Econom ia Política assim conceb 1da, isto se deve a razões de direito, e
não de fato.
Sendo assim, compre ende-se o mal-en tendido que separa Marx
não apenas de seus predece ssores ou de seus críticos ou partidá rios,
mas inclusive dos •~econo mistas" que o sucede ram. Esse mal-
entendi do é simples , embora ao mesmo tempo parado xal. Simples,
dado que os econom istas vivem da p~etens ão à exi~têncía da ~c?no-
mia Política , enquan to essa pretens ao lhe subtrai todo o d1re1to à
ex.istência. Parado xal, pois a conseq üência que Marx extraiu da não!
existência de direito da Econom ia Política é esse Livro imenso que
se chama O Capital e que parece falar, do princip io ao fim, tão-
somente de econom ia política .

1mpõe-se, pois, entrar no pormen or de ·esclare cimento s índis- .


pensáveis, e revelá-los pouco a pouco na relação rigoros a que os
une. Adiant ando-n os a eles e mostra ndo o que é necessá rio para a
sua compre ensão, damos um primeir o balizam ento. A pretens ão de
existência da Econom ia Política é função da naturez a e, pois, da de-
finição de seu objeto. A Econom ia Política toma por objeto o domí-
nio dos ·•fàtos econôm icos" que têm para ela a evidênc ia de fatos:
dados absolut os que ela toma tais quais se dão. sem lhes pedir expli-
cações. A revogaç ão da pretens ão da Econom ia Política por Marx
coincide com a revogaçãQ da evidênc ia desse .. dado" que ela. toma
arbitrar iamente por objeto ao pretend er que esse objeto lhe é dado.
Toda a contest ação de Marx recai sobre esse objeto, sob a· sua mo-
dalidad e pretend ida de objeto .. dado": a pretens ão da Econom ia
Política não é mais que o reflexo especu lar da pretens ão de seu obje-
to a lhe ser dad9. Ao propor a questão do .. dado" do objeto, Marx
propõe a própria questão do objeto, sua· naturez a e seus limites, e
portant o do seu domíni o de existên cia, dado que a modalid ade de
acordo com a qual uma teoria pensa o seu objeto. altera não apenas
a naturez a desse objeto. mas também a situaçã o 'e a extensã o do seu
domíni o de_ existência. Tomem os, a título de exempl o, uma tese cé-
le~re_de Spmoza : podemo s, em primeir o enfoqu e, afirmar que tanto
nao pode haver Econom ia Política como não existe ciência das
··co n clusões " como tál: a ciência das "conclu sões" :
não é ciência.
, -
dado que ela e' a · .. ·
ignoranc1a em ato de suas .. premis sas" - ela e tao-
.
somen t: 0 •~aginá rio em ato (o .. primeir o gênero "). A ciência das
~onc_l~soes e ~penas efeito, produt o da ciência das premiss as:.,.. mas ·
admitin do existen .
... · d as prem 1ssa:;,
te es sa c1enc1a a pretensa c1enc1a
. _ . . . , .
d..is conclus oes (o .. prim eiro · .. ,, , como 1magm ano e
- . , . genero ) e conhec ida
imagm ano em ato·· con ·h ·d
• ec1 a, ela desapa rece então no desapar eci- ·
O OBJETO DE "O CAPITAL" 107

mento da sua pretensão e de seu objeto. O mesmo acontece grosso


modo co!11 Marx. Se ª. Economia Polltica não pode existir por si
mesma, e qu_e o seu obJeto não existe por si mesmo, não é o objeto
de seu conceito ou porque o seu conceito o é de um objeto inadequa-
do. A Economia Política só pode existfr sob a condição de que exista
primeiro a ciência de _suas premissas, ou, em outras palavras, a teo-
ria do seu conceito - mas, uma vez que exista essa teoria, então a
pretensão da Economia Política desaparece no que ela é: pretensão
imaginária. Dessas indicações muito esquemáticas podemos tirar
duas conclusões provisórias. Se a '"crítica da Economia Política"·
possui realmente o sentido que afirmamos, deve ser ao mesmo tem-
po construção do conceito verdadeiro do objeto, que a Economia
Política clássica visa no imaginário de sua pretensão - construção
que produzirá o conceito do objeto novo ql:Je Marx contrapõe à
Economia Política. Se toda a compreensão de O Capital estiver de-
pendente da construção do conceito desse novo objeto. quem puder
ler O Capital sem procurar nele o conceito, e sem tudo relacionar a
esse conceito, correrá o risco de enganar-se muito com esses mal-
entendidos ou enigmas: vivendo só nos ..efeitos" de causas invisí-
veis, no imaginário de uma economia tão perto deles quanto o sol a
duzentos passos do .. primeiro gênero de conhecimento" - tão perto,
precisamente por estar distante deles uma infinidade de léguas.

Essa baliza basta como introdução à nossa análise. Eis como


iremos empreendê-la: para chegar a uma definição diferencial do
objeto de Marx., faremos o trajeto por um atalho prévio: o da análise
do objeto da Economia Política, que nos mostrará, em seus traços
estruturais, o tipo de objeto que Marx recusa, para constituir o seu
(A). A crítica das categorias desse objeto nos mostrará, na prática
teórica de Marx, os conceitos positivos constitutivos do objeto de
Marx (8). Poderemos então definir esse objeto e da definição tirar
algumas conclusões importantes.

A. Estrutura do Objeto da Economia Política


Não poderíamos tratar aqui do exame em pormenor ?ªs teo~ias
clássicas, muito menos das teorias modernas da economia política.
para delas extrair uma definição do objeto a que se relacionam em
sua prática teórica, mesmo que elas não reflitam sobr~ este o~jeto
em si mesmo. 34 Proponho-me apenas destacar os conceitos mais ge-

•~ Sobre as teorias modernas, ler-se-á com proveito o notável artigo de Godelier,


"Objet e méthodes de L' anthropologie économique'', L'homme, outubro de 1965. ·
t.l:R " O C,\ PITAL .
108

rais que con~tt tucm ..i estn~t'.' 'ª teórica do objeto ~a Econo__mia Polí-
tica: no essencia l, essa analise diz respeito ao obJeto da Economia
Política clássica (Smith , Ricardo). mas não se limita às fo rm as clás-
~1ca~ da Economia Política. dado que as mesmas ca tegori as teóricas
fundamentais sustentam hoje ainda os trabalhos de numerosos eco-
nomistas . Ê ne~se espíri to que acredito poder tomar por guia teórico
elementar as definições propostas pelo Dicionário Filosój7co de A.
La lande. Suas variações, aproximações, até mesmo sua " superficia-
lidade" têm vantagens: podem ser tomadas por outros tantos 1ndí-
c1os, não apenas de um fundo teórico comum, mas também de suas
possibil idades de ressonâncias e \nílexões de sentido.
Lalandc defi ne assim a Economia Política: " ciência que tem por
ohjeto o conhecimento dos fenômenos e (se a nature:a desses fenóme-
nos o comporta J a determinação das leis que se refe rem â distribuição
das ríque::as. bem como sua produção e consumo. enquanto fenômenos
relacionados com a distribuição. Chama-se riqueza , no sentido técnico
da expressão, o que é suscetível de utilização'' ( l. l 87). As defin ições
sucessivas propostas por Lalande, citando Gide, Simiand. Karmin e
outros. ressaltam o conceito de distribuição. A definição da extensão
da economia política aos três campos - da produção, distribuição e
consumo - é tomada dos clássicos, sobretudo Say. Ao falar da produ-
ção e do consumo, Lalande observa que "só são econônúcas por um
aspecto. Tomadas em conjunto. implicam grande número de noções eJ-
tranhas à economia política, noções tomadas à tecnologia, à etnografia
e à ciência dos costumes. no que tange à produção. A economia política
clássica trata da produção e do consumo; mas. na medida em que rela-
cionados com a distribuição , como causa ou efeito ".
Tomemos essa definição esquemática como o fundo mais geral
da Economia Política, e vejamos o que ela implica, do ponto de vista
teórico. quanto à estrutura de seu objeto.

a) Implica. em primeiro lugar, a existência de fatos e fenômenos


''econômicos". distribuídos no interior de um campo determinado.
que possui essa propriedade de ser um campo homogêneo. O (ampl'
e os fen ômen os que o constituem. preenchendo-o. são dados. islü é.
acessí~eis ao olhar e à observação diretos: sua captação não depen-
de. pois, da elaboração teórica prévia do seu conceito. Esse c.1 mpo
homogêneo é um espaço determinado, cujas diferentes determina-
ções, falos ou fenômenos econômicos são. em virtude da homoge-
neidade do cam po de sua existência, comparáveis, muito precisa-
mente mensuráveis. e portanto quantificáveis. Todo fato econômico
é, p~is, n'.en_surá~el por essência. Era já o grande princípio da Eco-
norma cl~ss1c~:. Justamente, o primeiro ponto importante sobre 0
4ual recai a crrt1ca de Marx . O grande erro de Smith e Ricardo é. ao
O OBJETO OE "O CI\PITAL" 109

ver d_e Mar.x. o de t~rem sacrificado u unálíse da forma -valor pan, a


cons1deraçao exclusiva da quantidade de valor: "o valo, como quurr1í-
dade absorve a atenção de/ex·· (1. 83. nota 1). Os econornístas moder-
nos estão do lado dos clássicos. a despeito de suas diferenças de con-
cepção. quando censuram Marx por produ;;ír. em sua teoria. concei-
e.
tos não-operatórios. isto excluindo a medida de seu objeto: por
exemplo, a mais-valia. Mas essa censura volta-se contra os seus au-
tores, pois Marx admite e emprega a medida: para as .. formas de-
senvolvidas" da mais-valia (o lucro, a renda. o juro). Se a mais-valia
não é mensurável. isso se deve justamente a que ela é o com•eilv das
suas formas, por sua vez mensuráveis. Evidentemente essa simple~
definição altera tudo: o espaço hómogêneo e plano dos fenômenos
da economia política passa a ser então simples dado. uma vez que
exige o posicionamento de seu conceito. isto é. a definição das condi-
ções e dos limites que permitem tomar esses fenômenos por homo-
gêneos, e portanto mensuráveis. Observemos tão-só essa diferença -
mas sem esquecer que a economia política moderna permanece fiel à
tradição .. quantitativa" empirista dos clássicos, posto que ela só co-
nhece fatos "mensuráveis". para utilizar uma expressão de A. Mars-
chal.

b) Essa concepção empirista-positivista dos fatos econômicos


não é, porém. tão "banal" como pode parecer. Falo aqui da .. bana-
lidade" do espaço plano de seus fenômenos. Se esse espaço homogê-
neo não.remete à profundeza de seu conceito. remete. no entunt~. a
certo mundo exterior a seu próprio plano e que assegura o papel teórico
de o sustentar na existência. e de o fundar. O espaço homo$êneo dos
fenômenos econômicos imp(jca uma relação detérminada com o,
mundo dos homens que produzem, distribuem. recebem e conso-
mem. Ê a segunda implicação teórica do objeto da Economia Polí-
tica. Essa implicação nem sempre é tão visível quanto o é em Smith e
Ricardo; pode ficar latente e não ser diretamente tematizada pela Eco-
nomia: ela nem mesmo é essencial à estrutura do objeto. A Econo-
mia Política relaciona os fatos econômicos às neces!iidade.\· (ou à --u-
tilidade") dos sujeitos humanos como à sua origem . Tem, pois. ten-
dência a reduzir os valores de troca aos valores de uso e estes últi-
mos (as •'riquezas", para usarmos a expressão da Economia clássi-
ca) às necessidades dos homens. Ê ainda a afirmação de F. Simiand
(citado por Lalande): "Em que um fenômeno é econômico! Em i•ez de
definir esse fenômeno pela consideração das riquezas ( termo clá.\·.'iico
na tradição francesa, mas que não é o melhor), parece-me prej't;rível
acompanhar os economistas recente.'i, que tomam como noção central
a satisfação das necessidades materiais" (Lalande. 1, 188). Simiand
110 Ll!H "O ( 'J\l'ITAI ..

equivoca-se ao apresentar sua c,dgênoiu como novidade: ,tuu c.hsfíni-


ção simplesmente repete a definiçilo t:lúNsicu. pondo Qtn cenu, pC)r
trás dos homens e suas necessidades, a suujimrdo /( 1Órl,·u de ,nl.)elto.v
dos fenômenos econõrnicos.
Equivale a dizer que a Economia clássicu s6 pode r,en"ur 08 f'u ..
tos econômicos como pertencentes LH) espaço homogêneo ÚQ "uu po~
sitividade e mensurabilidade, sob a condiçuo de umu cmtrfJ/J<>lol(IU
'"ingênua" que funde, nos sujeitos econômicos e suns nece,.i.idudcK,
todos os atos pelos quais são produzidos, distribuidoH, recebidos e
consumidos os objetos econômicos. Hegel deu o conceito fíl<)Abílco
da unidade dessa antropologia ºingênua" com os fenômeno8 econô-
micos na expressão célebre da "e.\'fera das necesJ·ldades" ou da ..HO•
ciedade civil". 3~ distinta da sociedade polftica. No conceíto da esfe-
ra das necessidades, os fatos econômicos são pensados em sua essên-
cia econômica como fundados em sujeitos humanos submetido8 à
.. necessidade" (besoin): no ho,no oeconomicus, que é, também, um
dado (visível, observável). O campo positivista homogêneo dos fatos
econê!micos mensuráveis repousa, pois, num mundo de sujeitos,
cuja atividade de sujeitos produtores na divisão do trabalho tem por
objetivo e efeito a produção de objetos de consumo destinados a sa-
tisfazer esses mesmos sujeitos de necessidades. Os suJeilos, como su-
jeitos de necessidades, sustentam, pois, as atividades dos sujeitos
como produtores de valores de uso, trocadores de mercadorias e
consumidores de valores de uso. O campo dos fenômenos econômi ..
cos é assim fundado, em sua origem como em seu fim, no conjunto
dos sujeitos humanos, que suas necessidades determinam como su-
jeitos econômicos. A estrutura teórica própria da Economia Política
tem a ver. pois, com relacionamento imediato e direto de um ·espaço
homogêneo de fenômenos dados, e uma antropologia ideológica que
fundamenta no homem sujeito das necessidades ( o dado do homo oe-
conomicus) o caráter econômico dos fenômenos do seu espaço.
Examinemos isso mais de perto. Falávamos de um espaço ho-
mogêneo de fatos ou fenômenos econômicos, dados. Eis que, por trás
desse dado, descobrimos um mundo de sujeitos humanos dados, in-
dispensáveis para mantê-los na existência. O primeiro dado é por-
tanto falso: ou é cabalmente um dado, dado por essa antropologia.

n O conceito de "sociedade civil", presente nos textos de maturação de Marx. e


constantemente retomado por Gramsci, para designar a esfera da existência econôm_i-
ca. é ambíguo e deve ser retirado do vocabulário teórico marxista - a menos que seJa
tomado não para contrapor-se o econômico ao poHtico, mas o .. privado" ao público,
ist_o é, um efeito combinado do direito e da ideologia jurfdico-politica sobre o econô-
mico.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 11 l

por sua vez dada. Ela, e só ela, permite de fato declarar económíc:o.f
os fenômenos grupados no espaço da Economia Polftica: são econô-
micos na medida em que efeitos (mais ou menos imediatos ou "'me-
diatizados") das 1'ecessidade.r dos sujeitos humanos, em suma, do
que faz do hon:ie~, ao lado de sua natureza racional (animal racio-
nal), loq~~ (anunal 'º?~ax), que ri (ridens), polftico (politicum), mo-
ral e r~hgioso, um. s~Jc1to de necessidades (homo ottonomicus). ~ a
necessidade (do suJe1to humano) que define o econômico da Econo-
mia. O dado do campo homogêneo dos fenômenos econômicos nos é
dado, pois, como econômico por essa antropologia silenciosa. Mas
então, olhando-se mais de perto, essa antropologia ºque dá" é que
vem a ser, a rigor, o dado absoluto! A menos que nos remetamos a
Deus para fundamentá-la, isto é, ao Dado que se dá a si mesmo,
causa sui, o Deus-Dado. Deixemos essa questão, em que vemos bas-
tante bem que não existe nunca um "dado no primeiro plano da cena
a não ser por uma ideologia doadora que se coloca por trás, à qual
não temos de pedir contas, e que nos dá o que bem entende. Se não
formos vê-la nos bastidores, não vemos o ato de seu "dom": ela de-
saparece no dado, como todo trabalho em sua obra. Somos seus es-
pectadores, isto é, seus mendigos.
Não é tudo: a mesma antropologia que mantém assim o espaço
dos fenômenos econômicos permitindo falar deles como econômi-
cos ressurge neles sob outras formas ulteriores, algumas das quais
são conhecidas: se a economia política clássica pôde apresentar-se
como uma ordem providencial feliz, como harmonia econômica,
(dos fisiocratas a Say, passando por Smith), é pela projeção direta
dos atributos morais ou religiosos de sua antropologia latente no es-
paço dos fenômenos econômicos. ~ o mesmo tipo de intervenção
que está em ação no otimismo liberal burguês, ou no protesto moral
dos comentaristas socialistas de Ricardo, com quem Marx não cessa
de esgrimir: o conteúdo da antropologia muda, mas a antropologia
permanece, assim como a sua função e o lugar de sua intervenção. e
ainda essa antropologia latente que ressurge em certos mitos dos
economistas políticos modernos, por exemplo sob conceitos tão
ambíguos como "racionalidade" econômica, "otimum", .. pleno em-
prego", ou economia das necessidades, economia humana. etc. A
mesma antropologia que serve de fundamento originário aos fenô-
menos econômicos está presente desde que se trate de definir seu
sentido, isto é, seu fim. O espaço homogêneo dado dos fenômenos
econômicos é assim duplamente dado pela antropologia que o en-
cerra no torniquete das origens e dos fins.
E se essa antropologia parece ausente da realidade imediata dos
fenômenos em si, está no entremeio das origens e dos fins, e também
112 LER "O CAPITAL"

em virtude de sua universalidade, que não é mais do que repetição.


Sendo todos os sujeitos identicamente sujeitos de necessidades, po-
dem-se tratar os seus efeitos pondo entre parênteses o conjunto des-
ses sujeitos: sua universalidade refle!e-se então na universalidade
das leis dos efeitos de suas necessidades - o que inclina naturalmente
a Economia Política no sentido da pretens~o de tratar no absoluto·
os fenômenos econômicos, para todas as formas de sociedade, pas-
sadas presentes e futuras. Esse gosto de falsa eternidade que Marx
encontrava nos clássicos pode advir politicamente do seu desejo de
perenizar o modo de produção burguês, e é muito evidente quanto a
alguns: Smith, Say e outros. Mas pode advir de outra razão, mais
velha que a burguesia, vivendo no tempo de outra história, de uma
razão não política, mas teórica: efeitos teóricos induzidos por essa
antropologia silenciosa que legitima a estrutura do objeto da Econo-
mia Política. É sem dúvida o caso de Ricardo, que sabia muito bem
que a burguesia tinha os dias contados, que lia já esse destino no me'."
canismo de sua economia, e que no entanto mantinha em voz alta o
discurso da eternidade.
Será necessário, na análise da estrutura do objeto da Economia
Política, ir mais longe que essa unidade funcional entre o campo ho-
mogêneo de fenômenos econômicos dados - e de uma antropologia
latente, e pôr em evidência os pressupostos, os conceitos teóricos (fi-
losóficos) que em suas relações específicas mantêm essa unidade?
Ver-nos-íamos então diante de conceitos filosóficos tão fundamen-
tais como: dado, sujeito, origem, fim, ordem - e diante de relações
como a de causalidade linear e teleológica, em suma, outros tantos
conceitos que mereceriam uma análise pormenorizada para mostrar
o papel que estão obrigados a desempenhar na encenação da Econo-
mia Política. Mas isso nos levaria demasiado longe. E, além do
mais, nós os veremos ao avesso, quando virmos Marx ou desfazen-
do-se deles ou lhes atribuindo funções inteiramente diversas.
O OBJETO DE ..O CAPITA L" 113

VIII. A Crítica de Marx

Marx recusa ao mesmo tempo a concep ção positiv a de um cam-


po homog êneo de fenôme nos econôm icos dados - e a antropo logia
ideológica do homo oeconomicus (e qualqu er outra) que a sustent a.
Recusa, pois, com essa unidad e, a própria estrutu ra do objeto da
Economia Política .
Vejamos em primeir o lugar o que acontec e com a antropologia
clássica na obra de Marx. Para isso, percorr eremos ligeiramente as
grandes regiões do ••espaç o" econôm ico: consum o, distribu ição e
produç ão - para ver que lugar teórico o·s conceit os antropo lógicos
podem ocupar nele.

A. O Consumo
Podem os começa r pelo consumo, que parece diretam ente impli-
cado pela antropo logia, dado que põe em causa o conceit o de ..ne-
cessidades" human as. Ora, Marx mostra , na Introdução de 5 7, que
não se podem definir univoc amente as necessi dades econôm icas re-
laciona ndo-as à. ••natur eza human a" dos sujeitos econôm icos. O
consumo é, de fato, duplo. Compr eende o consumo individual do_s ho-
0
mens de uma socieda de dada mas também o consumo produtivo,
qual seria necessá rio, para co~sag ,ar o uso univers al do conceit o de
114 LER "O CAPITAL"

necessidade, definir como o consumo que satisfaz as necessidades da


produção. Este último consumo compreend e: os .. objetos" da pro-
dução (matérias brutas ou matérias-p rimas, esta última resultado da
transforma ção de matérias brutas), e os instrumen tos da produção
(ferramentas, máquinas, etc.) necessários para a produção. Uma par-
cela do consumo refere-se pois, direta e exclusivam ente, à própria
produção. Toda uma parte da produção é dedicada portanto não a
satisfazer as necessidades dos indivíduos , mas a permitir a reprodu-
ção. simples ou ampliada, das condições da produção. Dessa cons-
tatação, Marx extrai duas distinções absolutam ente essenciais, que
estão ausentes na Economia Política clássica: a distinção entre o ca-
pital constante e o capital variável, e a distinção entre os dois Setores
da produção: o Setor/, destinado a reproduzir as condições da produ-
ção numa base simples ou ampliada, e o Setor li. destinado ú pro-
dução dos objetos do consumo individual. A proporção existente
entre esses dois Setores é governada pela estrutura da produção, que
intervém diretament e para determinar a natureza e o ·v olume de uma
parte inteira dos valores de uso, que jamais entram no consumo das
necessidades, mas apenas na própria produção. Essa descoberta de-
sempenha um papel essencial na teoria da realização do valor, no
processo de acumulaçã o capitalista , e em todas as leis que dela de-
correm. Sobre essa questão é que se dá uma intermináv el polêmica
de Marx contra Smith, retomada diversas vezes nos livros 11 e H I,
cujos ecos encontram os nas críticas dirigidas por Lênin aos populis-
tas e a seu mestre. o economist a .. romântico " Sismondi . .Ih
Entretanto , essa distinção não resolve todas as questões. Se é
certo que as .. necessidad es" da produção escapam a toda determina-
ção antropológ ica, não é menos verdade que uma parte dos produ-
tos é consumida pelos indivíduos , que satisfazem com ela as suas
••necessidades" . Mas, no caso ainda, vemos a antropolog ia abalada

'" Seria fascinante-. mas não cabe fazê-lo a4ui - o estudo dessas longas criticas de
Marx para ver em que ele, nessa questão capital. se distingue dt: Smith; e para ver
· como e onde ele localiza a sua dUerença es.wncial- ver como t:le explica o "equíwJL·,,·. a
"cegueira", o "erro", o "esqueciment o" incriveis de Smith. 4ut: são a rai1.do "dogma
absur~o" que domina toda a economia moderna. e ver enfim por 4ue Marx sente a
necessidade de recomeçar quatro ou cinco vezes t:ssa crítica. como st: não tivesse che-
gado ao extremo. E descobriríam os, entre outras conclusões pertinentes do ponto de
vista epistemológi co, que o "equívoco enorme" de Smith estú diretamente relacionado
com a co_miideraçào exclusiva do capitalista individual, e portanto de sujeitos econômi-
cos considerados _fora do todo. como os sujeitos últimos do processo gloh_a l. Em ou-
tras palavras, venamos sob a forma de sua eficácia direta a pre..,ença determinante da
ideologia amropo/ógica (Referências essenciais: capítulo, IV, 175-210; V. 15-85; VIII,
210-228; Doutrinas, 1, 197-218. etc.)
O OBJETO DE "O CAPITAL" 115

em suas pretensões teóricas pela ~nálise de Marx. Não apenas essas


.. necessidades" são definidas especificamente por Marx como .. his-
tóricas" e não como dados absolutos (Misere de la Philosophie, E.S.,
pp. 52-53, O Capital, l, pp. 174,228; VIII, p. 235, etc.) como também
e sobretudo são reconhecidas em sua função· econômica de necessi-
dades, sob a condição de serem .. solventes" (VI, 196, 207). As únicas
necessidades que desempenham um papel econômico são as que po-
dem ser economicamente satisfeitas: essas necessidades não são de-
terminadas pela natureza humana em geral, mas pela solvabilidade,
isto é, pelo nível das · rendas de que dispõem os indivíduos - e pela
natureza dos produtos disponíveis, que são, num momento dado, o
resultado das capacidades técnicas da produ_ção. A determinação
das necessidades dos indivíduos pelas formas da produção vai ainda
mais além, dado que a produção rião produz somente meios de co-
numo (valores de uso) determinados, mas também o seu modo .de
consumo, e até o desejo desses produtos (Introdução de 5 7, p. 157).
Em outras palavras, o consumo individual por sua vez, que põe em
relação aparentemente imediata valores de uso e necessidades ( e pa-
rece, pois, implicar de direito uma antropologia, embora historiciza-
da), nos remete de uma parte às capacidades técnicas da produção
e
(ao nível das forças de produção) de outra às relações sociais de pro-
dução que fixam a distribuição das rendas (formas da distribuição
da mais-valia e do salário). Por esta última questão, somos le-
vados à distribuição dos homens em classes sociais, que se tornam
então os "'verdadeiros" .. sujeitos" (desde que possamos empregar ·
esse termo) do processo de produção. A relação direta das .. necessi-
dades" assim definidas com um fundamento antropológico torna-se
então putamente mítica: ou antes, impõe-se inverter a ordem das
coisas, e dizer que a idéia de uma antropologia, se possível, passa
pela tomada em consideração da definição econômica (nome antro-
pológico) dessas .. necessidades". Essas necessidades estão submeti-
das a uma dupla determinação estrutural, e não mais antropológica:
a que distribui os produtos entre o Setor I e o Setor 11, e a que atri-
bui às necessidades o seu conteúdo e sentido (a estrutura da relação
das forças produtivas e das relações de produção). Essa concepção
recusa, pois, à antropologia clássica o seu papel fundante do econô•
mico.

B. A Distribuição
Tendo em vista que a distribuição apareceu como um fator es-
sencial de determinação das necessidades - ª? lado da produção, ve-
jamos O que acontece com essa nova categona: A ~distrib~içã_o apre-
senta-se também sob um duplo aspecto. Ela e nao só ~1stnbuição
116 LER "O CAPITAL "

das rendas (o que remete às relações de produção ), mas distribuição


dos valores de uso produzid os pelo processo de produção . Ora, sa-
bemos que, nesses valores de uso, figuram os produtos do Setor I, ·
ou meios de produção - e os produtos do Setor II, ou meios de con-
sumo. Os produtos do Setor 11 são trocados contra as rendas dos in-
divíduos, portanto em função de suas rendas e portanto de sua dis-
tribuição , e, por conseguinte, da primeira distribuição. Quanto aos
produtos do Setor l, os meios de produção , destinad os a reproduz ir
as condições da produção , não são trocados contra rendas, mas di-
retament e entre os proprietá rios dos meios de produçã o (.é o resulta-
do dos esquemas de realização do livro li): entre os membros da
classe capitalista que detêm o monopól io dos meios de produção .
Por trás da distribuição dos valores de uso, perfila-se assim outra
distribuição: a distribuição dos homens em classes sociais exercendo
uma função no processo de produção .
Em sua concepção mais banal, a distribuiçã o aparece como distri-
buição dos produtos, e assim como mais distanciada da produção e por
assim dizer independen te desta. Mas, antes de ser distribuiçã o dos produ-
tos, ela é: l 9) distribuiçã o dos instrument os de produção e 29), o que é ou-
tra determinação da mesma relação, distribuiçã o dos membros da socie-
dade entre os diferentes gêneros de produção (subordina ç·ã o dos ·indivi~
duos a relações de produção determinad as). A distribuiçã o dos produtos
não é manifestam ente senão o resultado dessa distribuiçã o, que está in-
cluída no próprio processo e determina a estrutura da produção.
(Marx, Introdução de 57, E. S., 161).

Nos dois casos, pela distribuição das rendas, e pela distribuição


dos meios de consumo e dos meios de produção , índice da distri-
buição dos membros da sociedade em classes distintas, somos, pois,
levados às relações de produção , e à produção em si.
O exame das categorias que pareciam à primeira vista exigir a
intervenção teórica de uma antropol ogia do homo oeconomicus, e
que, por essa razão, lhe podiam dar uma aparênci a de fundamento,
produz portanto este duplo resultado: 1) o desapare cimento da an-
tropolog ia, que cessa de desempe nhar o seu papel fundado r (deter-
minação do econômico como tal, determin ação dos .. sujeitos" do
e·conômico). "O espaço plano" dos fenômenos econômicos não
mais é duplicad o pelo espaço antropol ógico da existência dos sujei-
tos humanos : 2) a recorrência necessária, implicad a na análise do
consumo e da distribuição ao lugar de determin ação verdadeiro do
econômico: a produção. Correlat amente, este aprofund amento teóri-
co rios aparece como uma transform ação do campo dos fenômenos
econômicos: a seu antigo· .. espaço plano" homogên eo vem suceder
uma nova figura, em que os "fenôme nos" econômi cos são pensados
sob a dominaç ão das "relações de produção", que os determin am.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 117

Ter-se-á reconhecido, no segundo desses resultados, uma tese


fundamental de Marx: é a produção que rege o consumo e a distri-
buição, e não o inverso. É freqüente ver reduzir-se toda a descoberta
de Marx a essa tese fundamental, e às _suas conseqüências.
Essa "redução" choca-se no entanto com uma pequena dificul-
dade: essa descoberta já fora feita pelos fisiocratas, e Ricardo, o eco-
nomista "da produção por excelência" (Marx), lhe de4 uma forma
sistemática. Ricardo, com efeito, proclamou o primado da produ-
ção sobre a distribuição e o consumo. Impõe-se mesmo ir mais além
e reconhecer, como o fe~ Marx na Introdução de 57, que, se Ricardo
afirmou que a distribuição constituía o objeto próprio da Economia
Política, é que ele aludia ao que, da distribuição, concerne à distri-
buição dos agentes da produção em classes sociais ( Introdução de 57,
E. S., pp. 160-161 ). Todavia, devemos aplicar aqui a Ricardo o que
Marx dele diz, a propósito da mais-valia. Ricardo dava todos os si-
nais externos do reconhecimento da realidade da mais-valia - mas
não cessava de falar dela sob os aspectos do lucro, da renda e do ju-
ro, isto é, sob outros conceitos que não o seu. Do mesmo modo, Ri-
cardo dá todos os sinais exteriores do reconhecimento da existência
das relações de produção - mas deixa no entanto de falar delas sob
os aspectos só da distribuição das rendas e dos produtos - portanto,
sem lhes elaborar o conceito. Quando se trata apenas de identificar a
existência de uma realidade sob o seu disfarce, pouco importa que o
termo ou os termos que a designam sejam conceitos inadequados. É
o que permite a Marx traduzir, numa leitura substitutiva imediata, a
linguagem de seu predecessor, e pronunciar a expressão mais-valia
onde Ricardo pronuncia a expressão lucro - ou a expressão relações
de produção onde Ricardo diz distribuição das rendas. Tudo vai bem
na medida em que se trata ~e designar uma existência: basta corrigir
.uma expressão para denominar a coisa pelo seu nome. Mas quando
se trata das conseqüências teóricas que surgem desse disfarce, a
questão fica mais séria: dado que a expressão desempenha agora a
função de conceito, cuja inadequação ou ausência provocam efeitos
teóricos graves, reconheça-os ou não o autor (como no caso de Ri-
cardo, nas contradições em que ele tropeça). Ficamos sabendo então
· que aquilo que tomamos pelo disfarce de uma realidade sob sua ex-
pressão inexata é o disfa~ce d_e um segundo ~isfarce: o disfarce sob
uma expressão da função teórica de um conceito. Sob essa condição,
as-variações da terminologia podem ser o índice real de uma varia-
ção na problemática e no objeto. No entanto, tudo ocorre como se
Marx houvesse dividido o seu próprio trabalho. De um lado, ele se
contenta com ef~tµar uma leitura substitutiva de seus predecessores:
é O que Engels considera sinal de ··generosidade", que o faz sempre
calcular com muita largueza suas dividas, e tratar praticamepte os
118 LER "O CAPITAL"

.. produtore s" como .. descobrido res". Mas, por outro lado, embora
em lugares diferentes, Marx mostra-se severo quanto às conseqüên -·
ci"as teóricas tiradas por seus predecessores de sua cegueira sobre o
sentido conceptua l das .realidades que produziram . Quando Marx
critica, com extrema severidade, Smith ou Ricardo por não terem
sabido distinguir a mais-valia das suas.formas de existência, censu-
ra-os de fato por não haverem dado o conceito à realidade que pode-
riam ter ..produzido ". Vemos agora claramente que a simples ·.. o-
missão" de uma expressão é em realidade a ausência de um conceito,
dado que a ausência ou presença de um conceito decide quanto a
uma cadeia de conseqüências teóricas. Eis o que nos esclarece em
recíproca sobre os efeitos da ausência da expressão na teoria que
.. contém" essa ausência: a ausência de uma "expressão " nela é a
presença de outro conceito. Em outras palavras, aquele que pensa só·
ter de restabelecer uma ..expressão" ausente no discurso de Ricardo,
ar.risca a enganar-se sobre o conteúdo conceptual de~sa ausência, e re-
duz a simples .. palavras" os-próprio s conceitos de Ricardo. E nessa
contradan ça de falsas identificações (crer que só se está restabele-
cendo uma palavra quando se está elaborando um conceito; crer que
os conceitos de Ricardo não passam de expressões) que devemos
procurar a razão pela qual Marx pode ao mesmq tempo exaltar as
decobertas de seus predecessores, onde eles no mais das vezes ape-
nas .. produziram " sem "'descobrir" - e criticá-los tão rudemente pe- .
las conseqüências que eles no entanto simplesmente delas tiraram.
Tive de entrar nesse pormenor para bem situar o sentido desse juízo
de Marx:

Ricardo, a quem importava conceber a grodução moderna na sua


estrutura social determinada, e que é o economista da produção por ex-
celência, afirma por esse motivo que não é a produção, mas a distribuição
o que constitui o verdadeiro tema da economia politica moderna.
(Introdução de 57, E. S., p.161.)

"Por ess_e motivo" significa:


mstintivamente, ele via nas formas de distribuição a expressão mais
nf tida das relações determinadas dos agentes de produção numa sociedade
dada (ibidem, p.160).

Essas "relações determina das dos agentes n umà sociedade da-


da" são justament e as relações de produção, cuja consideraç ão por
Marx, não sob a forma de um pressentim ento "instintivo ", isto é,
não à "revelia" - mas sob a forma do conceito e de suas conseqüên -
cias, subverte o objeto da Economia clássica, e, ·com o seu objeto, a
própria ciência da Economia Política como tal,
O OBJETO DE "O C:1\PITAL" 119

O peculiar de Marx nilo é 1 do foto, hnver ufirmudo nem mesmo


1~l~strndo o primado da produçno (Rknrdo u seu modo já o havia
lt1~0), mas _haver transformado o cont•t,tlto dr prod"ção, uo lhe atri-
~u1r um o~Jeto radicalmente diferente do objeto designado pelo un-
t 1go conceito.

C. A Produtio
Toda produção é, segundo Murx, cnrncterizada por dois ele-
mentos indissociáveis: o processo de! trabalho, qu~ explica n transfor-
mnçilo que o homem inflige às mutérius nnturnis pura fazer delas va-
lores de uso, e as relações sociais dé pro<lur,io sob u determinação das
quais esse processo de trabalho é cx~cutndo. Examinaremos um
npós outro esses dois tópicos: o processo de trabalho {a) e us rela-
ções de produção (b).
11) O processo de trabalho
A análise do processo de trubulho refore-se às condições mate-
riais e técnicas da produção.
O processo de trnb11lho .. , 11· ntlvlcl1tdo que tem por finulidndc n pro- 1
duçdo de valores de uso, n aproptloQlh, dos objetos noturnls t\s necessida-
des humo nas 6 o condição nccci8~rln de, inlercdmbio muteriul entre o ho-
·mcm e a nuturcza, uma condiçllo ottturul eterno da vido humano, inde-
pendente por isso mesmo de t\ldll~ "" M\llll formas sociais, sendo ontcs co-
mum a todos os formaa ao~hll8 ( l. 186).

Esse processo reduz-se à combinuçno de elementos simples que


~do em número de três: " ... 1) a atividodíl pessoul do homem, outra-
bullao propriamente dito; 2) o objeto sobro o qual o trabalho atua; 3)
o meio pelo. qual ele atuaº (1, 181 ). No processo de trabalho inter-
v6m. pois. um disp6ndio da forçudo trnholho dos homens, que, utili-
zundo segundo regras (técnicas) odcquudns instrumentos de trabn-
lho determinado~. transformu o objrrn de trnbalho (seja mntériu.
hrutn, seja matéria já trabulhadu, ou mntérin-primn) em produto
úti 1.
Essa análise ressàlta dois carm·tcrt'.,. r.uenriais que examinare-
mos sucessivamente: a natureza 1'ltllt!rlal dns condições do proces-
so de trabalh o; o papel dominurHc dos meios de produçdo no pro-
1.:esso de trabalho.
Primeiro aspecto. Todo dispêndio produtivo du força de trnbn-
lho supõe para seu cxcrcicio condh;Ocs matrrlais que se reduzem to-
dos à existancia da natureza, sctjn brutu, sttju modificada pelo ativi-
dndc humana . .Quando Marx escreve que ºo trabalho é untes de
tudo um processo que se passa entre o homem e a naturczu, proces-
~o no qual o homem assegura, rcsulo o controla, por suu própria ati-
120 LER "O CAPITAL "

vidade, a troca de matérias com a natureza ... desempe nha para com
a natureza o papel de uma força da naturezaH, ele afirma que a
transform ação da natureza material em produtos , e portanto o pro-
cesso de trabalho como mecanism o material é dominad o pelas leis
físicas da natureza e da tecnolog ia . A força de trabalho insere-se
também nesse mecanism o. Es-s a determin ação do processo de traba-
lho por suas condiçõe s materiais impede em seu nível qualquer con-
cepção uhumani sta" do trabalho humano como pura criação. Sabe-
se que esse ideal_ismo não permane ceu no estado de mito, mas reinou
na economi a política e, com isso, nas utopias econômi cas _do socia-
lismo vulgar: por exemplo , em Proudho n (projeto de banco popu-
lar),. em Gray (os "bônus de trabalho"), e finalmente no · Programa de
Gotha, que proclam ava em sua primeira linha:
O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura.

a que Marx responde u:


O traba!ho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é igualmente a
fonte dos valores de uso (que são, até mesmo, a riqueza real!), como o
trabalho, que em si não passa de expressão de uma força natural, a força
de trabalho do homem. Essa expressão já gasta acha-se em todas as carti-
lhas, e só é verdadeira sob condição de subentende r que o trabalho é an-
terior, com todos os objetos e processos que o acompanh am. Mas um ,
programa socialista não poderia permitir a essa fraseologia burguesa o
passar em silêncio as eondições que, só elas, lhe podem dar um sentido .. .
Os burgueses têm ex.celentes razões para atribuir ao trabalho essa força
sobrenatural de criação ...
( Critique de Gotha, E. S., pp. 17-18)

Esse mesmo utopismo é que levava Smith, e todos os utopistas


que o acompan haram nessa questão, a omitir, nos conceito s econô-
micos, a representação formal da necessidade da reprodução das COf!-
dições materiai s do processo de trabalho, como essencial à existênci a
desse processo - e portanto a fazer ª~-~traçã o da matertal idade atual
das forças produtiv as (objeto de trabalho , instrume ntos materiai s de
trabalho ) implic~d os em qualque r processo de produçã o (sob esse
aspecto a Econom ia Política de Smith carece de uma teoria da repro-
dução, indispen sável a qualque r teoria da produçã o). f: o mesmo
idealism o do trabalho que, nos Manuscritos de 44, permite· a Marx
declarar Smith o "Lutero da ~conom ia PÕlftica ·m oderna" por ha-
ver sabido reduzir toda riqueza (todo valor de uso) apenas ao traba-
lho humano ; e sacrame ntar a união teórica de Smith e Hegel: o pri-
meiro por ter reduzido toda a economi a política à subjetivi dade dQ
trabalho , o segundo por haver concebid
. o "o. trabalho como essência
.
O OBJETO DE "O CAPITAL" l~l

-do homem". Em O Capital, Marx rompe com esse idealismo do tra-


balho, pensando o conceito das condições materiais de qualquer
processo de trabalho, e produzindo o conceito das formas de existên-
cia econômicas dessas condições materiais: para o modo de produ-
ção capitalista, as distinções decisivas do capital constante e do capi-
tal variável por um lado, do Setor I e do Setor II da produção, por
outro.

Podemos avaliar, por esse simples exemplo, os efeitos teóricos e


práticos provocados no próprio campo da análise econômica, tão-só
pelo pensamento do conceito de seu objeto. Basta que Marx pense,
como pertencente ao conceito de produção, a realidade das condi-
ções materiais da produção, para fazer nascer, no próprio campo da
análise econômica, conceitos economicamente "operatórios" (capi-
tal constante, capital variável, Setor I, Setor II) que lhe subvertem a
ordem e a natureza. O conceito de seu objeto não é paraeconômico;
é o conceito da elaboraç·ã o de conceitos econômicos necessários
para a compreensão da natureza do próprio objeto econômico: os
conceitos econômicos de capital constante e capital variável, de Se-
tor I e Setor II são apenas a determinação econômica, no campo
mesmo da análise econômica, do conceito das condições materiais do
processo de trabalho. O conceito do objeto existe então imediata-
mente sob a forma de conceitos econômicos diretamente "operató-
rios". Mas, sem esse conceito do objeto, esses conceitos não teriam
sido produzidos, e teríamos· ficado no idealismo econômico de
Smith, exposto a todas as tentações da ideologia.

Essa questão·é fundamental,_ porque nos mostra que não basta,


para se considerar marxista, considerar que o econômico, e, na eco-
nomia, a produção, comandam todas as demais esferas da existência
social. Pode-se proclamar essa tese e, no entanto, ao mesmo tempo,
desenvolver uma concepção idealista da economia e da produção,
ao declarar que o trabalho constitui ao mesmo tempo "a essência do
homem" e a essência da economia política, em suma, ao desenvolver
uma ideologia a'n tropológica do trabalho, da .. civilização do traba-
lho", etc. O materialismo de Marx supõe pelo contrário uma concep-
ção materialista da produção econômic~, isto é, entre outras condi-
ções, a exposição d.as condições materiais irredutíveis do processo
de trabalho. Esse é um dos pontos de aplicação diretos da fórmula
de Marx, contida na carta a Engels que citei, em que Marx esclarece
que "atribuiu importância inteiramente diversa" da de seus prede-
cessores "à categoria de valor de uso". Nessa concepção é que trope-
çam todas as interpretações do marxismo como "'filosofia do traba-
lho", sejam ela~ éticas, personalistas ou existencialistas: a teoria _s_a r-
122 LER "O CAPITAL"

triana do prá~ico-inerte em particular, porque lhe falta o conceito da


modalidade das condições materiais do processo de trabalho. Smith
relacionava já as condições materiais atuais do processo de trabalho
ao trabalho passado: ·ele dissolvia assim numa regressão ao infinito
a atualidade das condições materiais exigidas em dado momento
pela existência do processo de trabalho, na inatualidade dos traba-
lhos anteriores, em sua ~embrança (Hegel iria ratificar essa conoop-
ção em sµa teoria do Erinnerung). Sartre dissolve tambêm na
iembrança filosófica de uma práxis anterior, por sua vez subordina-
da em relação a uma outra ou outras práxis anteriores e assim por
diante até a práxis do sujeito originário, as condições materiais
atuais cuja combinação estrutural comanda todo trabalho efetivo,
toda transformação atual de uma_l'!latéria:-pri-ma _em produto útil.
Em Smith, como economista, essa dissipação ideal provoca impor-
tantes conseqüências teóricas no domínio da própria economia. Em
Sartre, ela se sublima imediatamente na sua " verdade" filosófica
explícita: a antropologia do sujeito, latente em Smith, assume em
Sartre a forma aberta de uma filosofia da liberdade.

Segundo aspecto. A mesma análise do processo de trabalho põe


em evidência o papel dominante dos ºmeios de trabalho" .

O uso e a fabricação dos meios de trabalho ... caracterizam o proces-


so de trabalho especificamente humano, e é por essa razão que Franklin
define o homem como animal que fabrica ferramentas (too/making ani-
ma{). Restos de antigos meios de trabalho têm, ·para o estudo das for-
mas econômicas das sociedades desaparecidas, a mesma importância que
a estrutura dos fósseis para o conhecimento da organização das espécies
extintas. O que distingue as épocas econômicas entre si não é o que se
produziu (macht), mas a maneira como ( wie) se produziu, com que meios
de trabalho se produziu. Os meios de trabalho servem para medir o de-
senvolvimento da força de trabalho e, além disso, indicam as condições
sociais (Anzeiger) em que se realiza o trabalho.
(O Capital, l, pp. 182-83.)

Entre os três elementos constitutivos do processo de tr~balho


(objeto, meios e força de trabalho), existe, pois, uma dominância: a
dos meios de trabalho. Este último elemento é que permite, no pro-
c~sso de t!abalho comum a todas as épocas econômicas, identific_a~ e
situar a diferença específica que irá distinguir suas formas essenciais.
Sã~ os "meios de trabalho" que determinam a forma típica do pro-
cesso de trabalho considerado: ao determinar o "modo de ataque"
d~ natureza externa submetida à transformação na produção econô-
mica, eles determinam o modo de produção, categoria fundamental
O OBJETO DE ..O CAPITAL"
123.

da análise marxista (tanto em economia como em história); determi-


nam ao me~mo tem~o o grau de produtividade do trabalh~ produti-
vo. O conceito das diferenças pertinentes observáveis nas variedades
d_e p~oce!s?,s de t~a~a~ho, o conceito que permite não somente a "pe-
nod1zaçao da historia, mas, antes de tudo, a elaboração do concei-
to de história: o conceito de modo de produção fundamenta-se assim,·
sob o aspecto que consideramos aqui, nas diferenças qualitativas
dos meios de trabalho, isto é, em sua produtividade. Será necessário
ainda ressaltar que existe uma-relação direta entre o conceito do pa-
pel dominante dos meios de trabalho e o conceito economicamente
"'operatório" de produtividade'? Será preciso observar ainda que a
Economia clássica jamais soube, pelo que a censura Marx. isolar e
identificar ess~ conceito de produtividade - e que seu desconheci-
mento da história está ligado à ausência do conceito de modo de pro-
dução? 31
Ao elaborar o conceito~chave de modo de produção, Marx
pode de fato exprimir o grau diferencial de ataque material da natu-
reza pela produção, o modo diferencial de unidade existente entre o
"'homem e _a natureza", e os graus de variação dessa unidade. Mas,
ao mesmo tempo que nos revela o alcance teórico do tomar em con-
sideráção as condições materiais da produção, o conceito de modo
de produção revela-nos também outra realidade determinante, cor-
relata do grau de variação da unidade .. homem-natureza": as rela-
ções de produção:

Os meios de trabalho são não apenas as medidas do desenvolvimen-


to da força de trabalho humano, mas também os indicadores (Anzeiger)
das relações sociais nas quais se produz ...

Com isso descobrimos que a unidade homem-natureza, expres-


sa pelo grau de variação dessa unidade, é ao me·s mo tempo e imedia-
tamente a unidade da relação homem-natureza e das relações sociais
em que a produção se efetua. O conceito de modo de produção con-
tém, pois, o conceito da unidade dessa dupla unidade.
b) As relações de produção
Encontramo-nos assim diante de uma nova condição do proces-
so de produção. Após as condições materiais do processo de produ-

J7 Sobre todas essas questões, apenas esboçadas neste capítulo, veja-se o te,ct9 de
Bali bar _ em particular o importante conceito de forçds _produtiva.f por ele analisado.
124 LER "O CAPITAL"

ção, em que se exprime a natureza específica da relação que o ho-


mem mantém com a natureza, temos agora de estudar as condições
sociais do processo de produção: as relações sociais de produção. Es-
sas novas condições referem-se ao tipo específico de relações exis-
tentes entre os agentes da produção em função das relações existentes
entre esses agentes de uma parte e de outra os meios materiais da
produção. Esse esclarecimento é fundamental: porque as relações
Jociais de produção não são de mÇJdO algum redutíveis a simples rela-
ções entre os homens, a relações que ponham em causa apenas os ho-
mens. e portanto às variações de uma matriz universal, a intersubjetivi-
dade' (reconhecimento. prestígio. luta, dominação e servidão, etc.).
As relações sociais de pr,o duçào em Marx não põem em cena os ho-
mens sós. mas põem em cena, nas combinações específicas, os agen-
1es do processo de produção, e·as condições materiais do processo de
produção. Insisto neste ponto, por uma razão que se une à análise que
Ranciere fez de certas expressões de Marx, em que, numa terminolo-
gia ainda inspirada em sua filosofia antropológica de juventude, se
podia ser tentado a contrapor, literalmente, as relações dos homens
entre si às relações das coisas entre si. Ora, nas relações de produção
estão implicadas necessari~mente relações entre os homens e as coi-
sas, tais que as relações dos homens entre si são definidas ali porre-
lações rigorosas existentes entre os homens e os elementos materiais
do processo de produção.
De que modo pensa Marx essas relações? Ele as pensa como
uma .. distribuição" ou uma .. combinação" ( Verbindung). Ao falar
da distribuição, na Introdução (p. 161 ), escreve Marx:

Em sua concepção mais banal, a distribuição aparece como d:stri-


huição de produtos. e como que distanciada da produção. por assim di-
Ler independente desta. Mas. antes de ser distribuição de produtos, ela é:
1) distribuição dos instrumentos de produção e 2) - o que é outra deter-
minação da mesma relação - distribuição dos membros da sociedade en-
tre os diferentes gêneros de produção (subordinação dos indivíduos are-
lações de produção determinadas). A distribuição dos produtos é mani-
festamente apenas o resultado dessa distribuição, que está incluída no
próprio processo de produção, e determina a e.Hrutura da produção (Glie-
derung). Considerar a produção sem levar em conta essa distribuição que
nela está incluída é manifestamente abstração ~azia, quando, pelo con-
trário. a distribuição dos produtos está implicada por essa distribuição
que constitui originariamente um momento da produção (Moment) ... a
produção tem necessariamente seu ponto de partida numa di.Hribuicão
dos instrumentos de produção...

Essa distribuição consiste, pois, em certa atribuição dos meios


de produção aos agentes da produção, em certa relação normal esta-
belecida entre os meios de produção, de um lado, e de outro os agen-
tes da produção. Formalmente essa distribuição-atribuição pode ser
O OBJETO DE "O CAPITAL" 125

concebida como uma combinação ( Verbindung) de um certo número


de elementos pertencentes aos meios de produção ou aos agentes da
produção, combinaçijo essa que se efetua segundo modalidades de-
terminadas.
Ê o que diz o próprio Marx:

Sejam quais forem as formas sociais da produção, os trabalhadores


e os meios de produção permanecem sempre os fator-es delas. Mas uns e
outros estão apenas em estado virtual na medida que se acham separa-
dos. Para uma produção qualquer, impõe-se sua combinação. ~ a manei-
ra e.\·pecial (die he.wndere A ri und Weüe) de operar essa combinação que
distingue as diferentes épocas econômicas pelas quais passou a estrutura
social (Gese/1.\·chaft.utruktur).
(0 Capital. IV, 38.)

Em outra passagem, sem dúvida a mais importante (O Capital.


VI 11, 170-173 ), ao falar do modo de produção feudal, escreve Marx:
a forma econômica específica na qual sobretrabalho não-pago é ex-
torquido aos produtores imediatos, determina a relação de dominação e
de servidão tal como decorre imediatamente da própria produção, e rea-
ge por sua vez sobre ela de modo determinante. ~ sobre ela que se funda
inteiramente a estruturação (Ge.'i/altung) da comunidade econômica, sur-
gida das próprias relações de produção, e com isso ao mesmo tempo a
sua estrutura ( (iestaltt política especifica. Ê cada vez na relação imedia-
ta dos proprietários das condições de produção com os produtores ime-
diatos - relação da qual cada forma corresponde sempre, de acordo com
a sua natureza, a certo grau de desenvolvimento determinado do modo
(Art und Weise) de trabalho, e portanto a certo grau de desenvolvimento
de sua força produtiva social - que encontramos o segredo mais Intimo
(inner.~te Geheimnis), o fundamento (Grundla:ge) oculto da construção so-
cial (Komtruktirm) inteira, e por conseguinte também da forma polftica
da soherania, e da relação de dependência, em suma, de cada forma de
Estado especifica .

Os desenvolvimentos desse texto fazem aparecer distinções da


maior importância sob os dois elementos até aqui confrontados (a-
gentes da produção e meios de produção). Quanto aos meios de pro-
dução, vemos aparecer a distinção já conhecida entre o objeto da
produção. por exemplo a terra (que desempenhou diretamente um
papel determinante em todos os modos de produção anteriores ao
capitalismo), e os instrumentos de produção. Quanto aos agentes da
produção, vemos surgir, além da distinção essencial entre os agentes

• Vcrilica-se que o tradutor francês e Althusser preferem "estruturação" e "estrutu-


rn" pura os vocáhulus <ie.\·talrun~ e Gestalt de ~arx, que poderiam ser corretamente
lrn<lu,.idos por "formaçào" e "forma'', respectivamente. (N. do T.)
126 LER "O CAPITAL"

imediatos da produção (expressão de Marx), cuja força de trabalho é


posta em ação na produção, e outros homens que desempenham
um papel no processo geral da produção como proprietários dos
meios de produção, mas sem nela figurar como trabalhadores ou
agentes imediatos, dado que a sua força de trabalho não é emprega-
da no processo produtivo. É ao combinar, ao relacionar esses dife-
rentes elementos: força de trabalho, trabalhadores imediatos, Se-
nhores não-trabalhad ores imediatos, objeto de produção, instru-
mentos de produção, etc., que chegamos a determinar os diferentes
modos de produção que existiram e que podem existir na história hu-
mana. Essa operação de relacionamen to de elementos preexistentes
determinados poderia dar a pensar numa combinatória, se a nature-
za específica muito especial das relações postas em jogo nessas dife-
rentes combinações não lhes definisse e lim'itasse estreitamente o
campo. Para obter os diferentes .m odos de produção, impõe-se com-
binar esses diferentes elementos, porém tendo em vis.t a os modos de
combinação ( Verb(ndurgen) específicos, que só têm sentido na natu-
reza própria do resultado da combinatória (sendo, esse resultado, a
produção real) - e que são: a propriedade, a posse, a disposição, o
desfrute, a comunidade, etc. A aplicação de relações específicas às di-
ferentes distribuições dos elementos disponíveis produz um número
limitado de formações, que constituem as relações de produção dos
modos de produção determinados . Essas relações determinam ore-
lacionamento que os diferentes grupos de agentes de produção man-
têm com os objetos e os instrumentos da produção, e com isso distri-
buem ao mesmo tempo os agentes da produção em grupos funcio-
nais, ocupando um lugar determinado no processo produtivo. As re- -
lações dos agentes da produção entre si resultam então das relações
típicas que mantêm com os meios de produção (objeto, instrumen-
. tos), e de sua distribuição em grupos determinados e localizados
funcionalmen te em suas relações com os meios de produção pela es-
trutura da produção. · _ .
Não posso estender-me .aqui na análise teórica desse conceito
de .. combinação" , e de suas diferentes formas: remeto o leitor, para
este ponto, à exposição de Balibar. É claro, porém, que a natureza .
teórica do conceito de '"combinação " pode fundar a afirmação, feita
anteriorment e sob forma crítica, de que o marxismo não é um histo-
ricismo: visto que o conceito marxista de história repousa no pincí-
pio da variação das formas dess~ .. combinação" . <_?ostaria de insis-
tir apenas sobre a natureza particular dessas relaçoes de produção,
que são notáveis sob duplo aspecto._
Vimos no texto que acabo de citar, Marx mostrar que determi-
nada form~ de combinação dos el~me~tos dispo~í_v:is ~m~licava ne-
cessariament e certa forma de dom1naçao e de suJe1çao md1spensável
O OBJETO DE "O CAPITAL" 127

para assegurar essa combinação, isto é, certa configuração ( Gesta/-


tung) política da sociedade. Vê-se precisamente em que lugar se acha
fundada a necessidade e a forma da .. formação" política: no nível
das Verbindungen que constituem os modos de ligação entre os agen-
tes da produção e os meios da produção, no nível das relações de
propriedade, de posse, de disposição etc. H Esses tipos de relação, se-
gundo a diversificação ou a não-diversificação dos agentes da pro-
dução em trabalhadores imediatos e donos, tornam necessária ou
supérflua (sociedades de classes ou sociedades sem classes), a exis-
tência de uma organização política destinada a impor e manter esses
tipos de relação determinados por intermedio da força material (a
do Estado) e da força moral (a das ideologias). Vê-se com isso que
. certas relações de produção supõem, como condição de sua própria
existência, a existência de uma superestrutura jurídico-política e
ideológica, e por que essa superestrutura é necessariamente específi-
ca (dado que função das relações de produção específicas). Vê-se
também que outras relações de produção não exigem superestrutura
política, mas apenas ideológica (as sociedé\des sem classes). Vê-se fi-
nalmente que a natureza das relações de produção consideradas não
apenas exige ou não exige esta ou aquela forma de superestrutura,
mas determina também o grau de eficácia delegado a este ou aquele
nível da totalidade social. Sejam quais forem as outras conseqüên-
cias, pelo menos uma conclusão podemos tirar, referente às relações
de produção: elas remetem às formas superrestruturais que exigem,
como a outras tantas condições de sua própria existência. Não se
pode, pois, pensar as relações de produção em seu conceito, fazendo
abstração de suas condições de existência superestruturais específi-
cas. Como único exemplo, podemos verificar que a análise da venda
e compra da força de trabalho, em que existem as relações de produ-
ção capitalista (a separação entre os proprietários dos meios de pro-
dução, por um lado, e, por outro, os trabalhadores assalariados) su-
põe diretamente, para a compreensão de seu objeto, a consideração
de relações jurídicas formais, que constituem como sujeitos de direi-
to o comprador (o capitalista) assim como o vendedor (o assalaria-
do) da força de trabalho - assim como toda uma superestrutura
política e ideológica que mantém e contém os agentes econômicos

18 Esclarecimento importante: o termo "propriedade", utilizado por Marx, pode


dar a impressão de que as relaçõos de produção são idêntica~ ~s relações jurfd~c~s.
Não é assim. O direito não são as relações de produção. Estas ulllmas pertencem a in-
fra-estrutura, ao passo que o direito pertence à superestrutura.
128 LER "O CAPITAL "

na distribui ção dos papéis, que faz de uma minoria de explorad ores
os propriet ários dos meios de produçã o, e da maioria da populaç ão
os produto res da mais-val ia. Toda a estrutura da sociedad e conside-
rada acha-se assim implicad a e presente , de um modo específic o, nas
relações de produçã o, isto é, na estrutura determin ada da distribui -
ção dos meios da produçã o e das funçõc:s et:onômi cas entre catego-
rias determin adas de agentes da produçã o. equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produçã o determin a o econômi co como
tal, a definiçã o do conceito da,s relações qe produçã o de um modo
de produçã o determin ado passa necessar iamente pela definição do
conceito da totalidad e dos níveis distintos da sociedad e, e de seu
tipo de articulaç ão (isto é, de eficácia) própria.
Não se trata, no caso, de modo algum, de exigênci a formal, mas
da condiç_ã o teórica absoluta que rege a própria definição do el'on1-
mico. Basta lembrar os inúmero s problem as suscitado s por essa defi-
nição quando se trata de modos de produçã o diferente s do modo de
produçã o capitalis ta, para nos darmos conta da importân cia decisi-
va deste recurso: se, como costuma dizer Marx, o que está oculto na
sociedad e capitalis ta é claramen te visível na sociedad e feudal ou na
comunid ade primitiva , é nestas últimas· sociedad es que vemos clara-
mente que o econômic o não é claramen te visível! - do mesmo modo
que, nessas mesmas sociedad es, vemos também claramen te que o
grau de eficácia dos diferente s níveis da estrutura social não é clara-
mente visível! Os antropól ogos e etnólogo s que, procuran do o ecnô-
mico, caem nas relações de parentes co ou nas instituiçõ es religiosa s
e outras, os especiali stas em história medieval que, procuran do no
'"econôm ico" a determin ação dominan te da história, a encontra m ...
na política ou na religião, estes "sabem" para que se ater a esta defi-
nição. ) Y Em todos esses casos, não se trata de apreensã o imediata do
econômi co, não se trata do "dado" econômi co bruto, como também
não se trata da eficácia imediata mente "dada" neste ou naquele
nível. Em todos esses casos, a identific ação do econômi co passa pela
construç ão de seu conceito, que supõe, para ser construí do, a defini-
ção da existênci a e da articula.c ão específic as dos diferente s níveis da
estrutura do todo, tais como estão necessar iamente implicad os pela
estrutura do modo de produçã o consider ado. Elaborar o conceito
do econômi co é defini-lo rigorosa mente como nível, instância ou re-
.gião da estrutura de um modo de produção : é, pois, definir o seu lu-
gar, a sua extensão e os seus limites próprios nessa estrutura ; é, se

1~ Cf. Godelier, "Objet et méthodes de l'anthropo logie economiqu e", L'flornme,


outubro de 1965.
O ()BJLTO DL "O CA PITAL"
129

4uisermos
.. ~ . tomar .. a velha imagem plato" n,·ca, , .. recor t ar " a reg1ao
·- . do
Clonom1co n., estrutura do todo segundo a ·· t· 1 - ,, '
. . . • . '.) . . · sua ar 1cu açao pro-
prra . .\fm .\t . <'ní?anar
., com a ar11culaça~o . O "recor t e· " d o "d a d o '' ou
recorte empirista eng·1na-se · · - · '
· (. • sempre com a art1culaçao precisamen-
te porque sobre o "re·•1 ·· ·:1s art1·cul· - ' b' ' ·
. . u • açoes e o recorte ar 1trarios da
1deolog1a
_ . _ • • N •·~10 ha' recor t e e, pois.
que a sustent·1 · art1cu
· 1açao - Justas,
· a
n_ao ser sob condiçao de possuir ou de construir seu conceito deles.
Em_ outras palavras. ~ão é possível. nas sociedades primitivas, consi-
derar_ este ou aquele.fato, esta ou aquela prática. aparentemente sem
relaçao com a "economia·· (como as práticas a que dão lugar os ri-
tos ~o ~arentesco ou da religião. ou relações entre grupos na con-
correnc1a do "potlatch''). como rigorosa!nente econômicas, sem se ter
antes elaborado o conceito da diferenciação da estrutura do todo so-
cial nessas diferentes práticas ou níveis. sem ter descoberto o seu sen-
tido próprio na estrutura do todo, sem ter identificado. na diversida-
de desconcertante dessas práticas. a região da pratica econômica,
sua c?nfiguraçào e suas modalidades. Ê provável que grande parte
das dificuldades da etnologia e da antropologia contemporâneas de-
corra de que elas enfoquem os "fatos", os "dados" da etnografia
( descritiva) sem tomar a precaução teórica de elaborar o conceito de
seu objeto: essa omissão leva-os a projetar na realidade etnográfica
as categorias que definem praticamente para elas o econômico. isto
é, as categorias que, além do mais, são não raro por sua vez empíri-
,cas, da economia das sociedades contemporâneas. Basta isso para
multiplicar as aporias. Se no caso ainda acompanharmos Marx. só te-
remos feito esse desvio pelas sociedades primitivas e outras para ver
nelas em claro o que a nossa própria sociedade nos oculta: isto é,
para ~•er nela nitidamente que o econômico, assim como qualquer
outra realidade (política, ideológica etc.). jamais se vê nitidamente,
não coincide com o .. dado". Isso é tanto mais evidente para o modo
. de produção capitalista quanto sabemos que ele é o modo de produ-
ção em que o fetichi.rmo atinge sobretudo a região do econômico.
Malgrado as ..evidências" maciças do .. dado" econômico no mu~do
de produção capitalista, e precisamente por causa desse aspecto
.. maciço" dessas ..evidências" fetichizadas, só existe acesso à essên-
cia do econômico pela elaboração do seu conceito, isto é, pela colo-
cação em evidência do lugar ocupado na estrutura do todo pela re-
gião do econômico, e portanto pela colocação em evidência da arti-
culação existente entre essa região e as demais regiões (superestrutu-
ra jurídico-política e ideológica), e pelo grau de presença (ou de ~fi-
cácia) das demais regiões na própria região econômica. No caso ain-
da, essa exigência pode ser encontrada diretamente como exigência
teórica positiva: pode também ser omitida, e manifesta-se então por
efeitos próprtos, sejam teóricos (contradições, limiares na explica-
130 LER "O CA PITAL"

ção), sejam práticos (por exemplo, dificuldades na técnica de planifi-


cação, socialista ou mesmo capitalista). Eis, muito esquematicamen-
te, a primeira conclusão que podemos tirar da determinação por
Marx do econômico pelas relações de produção.

A segunda conclusão é também importante. Se as relações de


produção nos aparecem agora como uma estrutura regional por sua
vez inscrita na estrutura da totalidade social, ela nos interessa tam-
bém por sua natureza de estrutura. No caso, vemos dissipar-se a mi-
ragem de uma antropologia teórica, ao mesmo tempo que se dssipa
a miragem de um espaço homogêneo de fenômenos econômicos da-
dos . Não somente o econômico é uma região estruturada que ocupa
um lugar próprio na estrutura global do todo social, como em seu
próprio lugar, em sua autonomia (relativa) regional, ela funciona
como uma estrutura regional determina ndo como tal os seus ele-
mentos. Verificamos aqui os resultados dos demais estudos deste li-
vro: a saber, que a estrutura das relações de produção determina lu-
gares e funções que são ocupados e assumidos por agentes da produ-
ção, que nunca são mais do quP- ocupa ntes desses lugares, na medida
em que são ··portadores" (Trãger) dessas funções. Os verdadeiros
... sujeitos" (no sentido de sujeitos constituintes do processo) não são,
pois, esses ocupantes nem esses funcionários; não são, pois, contra-
riamente a todas as aparências, as ··evidências" do "dado" da antro-
pologia ingênua, os ••indivíduos concretos", os "homens reais'' -
mas a definição e a distribuição desses lugares e dessas funções. Os
verdadeiros "sujeitos" são, pois, esses definidores e esses distribuido-
res: as relações de produção (e as relações sociais políticas e ideológi-
cas). Mas, como se trata de ·•relações", não poderíamos pensá-las
sob a categoria de sujeito. E se, por acaso, quiséssemos reduzir essas
relações de produção a relações entre os homens, isto é, a .. ,e/ações
humanas", estaríamos violando o pensamento de Marx, que mostra
com a maior profundidade, sob condição de aplicar a algumas de
suas raras fórmulas am~íguas uma leitura verdadeiramente crítica,
que as relações de produção (assim como as relações sociais políticas
e ideplógicas) são irredutíveis a qualquer intersubjetividade antro-
pológica dado que só combinam agentes e objetos numa estrutura
específica de distribuição de relações, lugares e funções, ocupados e
··portados" por o~jetos e agentes da produção.

Pode-se compreender então, uma vez mais, em que o conceito


do se.u objeto distingue radicalmente Marx de seus predecessores e
por que seus críticos fa_lharam. Pensar o ~o_nceito da produção é
pensar O conceito da unidade ~e suas cond15oes: o modo de produ-
ção. Pensar O modo de produçao é pensar nao somente as condições
O OBJETO DE "O CAPITAL" 131

mate~iais, ma~ também . as condiçõe s sociais da produçã o. Em cada


ca_so e produzir o conceito que rege a definição dos conceito s econo-
micamen te Hoperat órios" (empreg o de propósit o esse termo, que é
?e uso corrente entr~ os economi stas) a partir do conceito de seu ob-
Jeto. Sab~mo s qual e: no modo de produçã o capitalis ta, o conceito
que ~x1:nme, ~a ~eahdad e ~conômi ca em si, o fato das relações de
produça o cap1tahs ta: é o conceito de mais-valia. A unidade das con-
dições materiai s com as condiçõe s sociais da produçã o capitalis ta é
exp~essa na ~elaçã_o direta existente entre o capital variável e a pro-
du~ao ~a m~1s-vaha. Decorre de que não seja uma coisa, que a mais-
vaha nao seJa uma realidad e mensurá vel, mas o conceito de uma re-
lação, o conceito de uma estrutura social de produção ,.existen te, de
uma_ existênc ia visível e mensurá vel apenas em seus .. efeitos", no
sentido que ef!l pouco definirem os. O fato de que exista apenas em
seus efeitos não significa que possa ser inteiram ente captada neste ou
naquele de seus efeitos determin ados: seria preciso para isso que ela
estivesse inteiram ente presente nele, ao passo que ela só está presen-
te, como estrutura , na sua ausência determinada. Ela só está presente
na totalidad e, no movime nto total de seus efeitos, no que Marx cha-
ma de "totalida de desenvol vida de suas formas de existênci a", por
uma razão que decorre de sua própria natureza : o ser uma relação
de produçã o existente entre os agentes do processo de produçã o e os
meios de produçã o, isto é, a própria estrutura que domina o proces-
so na totalidad e de seu desenvol vimento e de sua existência. O objeto
da produçã o, a terra, o minério, o carvão, o algodão, os instrumen-
tos de produção, uma ferramen ta, a máquina etc. são "coisas" ou
realidade s visíveis, perceptív eis, mensuráveis: não são estruturas. As
relações de produçã o são estrutura s - e por mais que o economi sta
comum examine os "fatos" econômi cos, os preços, as trocas, o salá-
tio, o lucro, a renda etc., todos esses fatos "mensur áveis", não "ve-
rá", em seu nível, estrutura nenhuma , tanto quanto o .. físico" pré-
newtonia no não podia "ver" a lei ·de atração na queda dos corpos
ou o químico pré-lavo isieriano não podia ver o ox~gênio no ar "des-
flogis\iza do". Certame nte, do mesmo modo como, antes de New-
ton, "viam-se " cair os corpos, "via-se" antes de Marx a massa de
homens "explora dos" por uma minoria. Mas o conceito das .. for-
mas" econômi cas dessa exploraç ão, o conceito da existência econô-
mica das relações de produção , da dominaç ão e da determin ação de
toda a esfera da economi a políticca por essa estrutura, não tinham
então existênci a teórica. Admitid o que Smith e Ricardo tenham
··produzi do" no .. fato" da renda e do lucro, o ••fato" da mais-valia,
continua ra~ no escuro, não sabendo o que haviam .. produzid o",
dado que não sabiam pensá-lo em seu conceito , nem tirar diss? as
conseqüê ncias teóricas. Estavam a mil léguas de poderem pensa-lo,
132 LER "O CAPITA L"

não tendo jamais conceb ido, assim como toda a cultura de sua épo-
ca. que um .. fato" pode ser a existên cia de uma relação de ··combi -
nação'' . de uma relação de comple xidàde, consub $tancia l ao modo
de produç ão como um todo, domina ndo o seu present e, suas crises,
seu futuro. determ inando como lei de sua estrutu ra a realida de eco-
nômica inteira, até no pormen or visível dos fenôme nos empíric os -
ao mesmo tempo que perman ecendo invisível em sua própria evidên-
cia ofuscan te.
O OBJETO DE ..O CAPITAL " 133

IX. A Imensa Revolução Teórica de Marx

Podemo s agora voltar ao passado, para tomar a medida da dis-


tância que separa Marx de seus predecessores - e distinguir o objeto
de Marx do deles.

Podemo s, a partir de agora, deixar de lado o tema da antropo-


logia, que, na Econom ia Política, tinha por função fundame ntar ao
mesmo tempo a natureza econômica dos fenômenos econômi cos (pela
teoria do homo oeconomicus), e a existência deles no espaço homogê-
neo de um dado. Retirado o udado" da antropol og·ia, .fica esse espa-
ço, precisam ente o espaço que nos interessa. Que acontece a esse ob-
jeto, em seu ser, não mais podendo fundar-s e numa antropol ogia?
Que efeitos o atingem em decorrên cia da falta dessa base?

A Econom ia Política pensava os fenômen os econômi cos como


pertence ntes a um espaço plano em que reinava uma causalid ade
mecânica transitiv a, de tal modo que determin ado efeito pudesse
relacion ar-se a uma causa-ob jeto. um outro fenômeno: de tal modo
que a necessidade de sua i"manência pudesse ali ser captada comple-
tamente na seqUência de um dado. A homoge neidade desse espaço.
seu caráter plano, sua propriedade de dado. seu tipo de causalidade
linear: outras tantas determin ações teóric~s que constitu em em seu
sistema a estrutur a de uma problem ática teórica, isto é, de certa ma-
neira de concebe r seu objeto, e ao mesmo tempo lhe propor questões
LER "O CAPITA L"
134

determ inadas (por essa problem ática mesma ) sobre o seu ser, ao
mesmo tempo antecip ando a forma de suas respost as ( o esquem a da
medida ): em suma, uma problem átic_a empiris ~a. A teor_ia de Marx
opõe-se radical mente a essa concep çao. Isso na? qu~r ~1zer que_ela
lhe seja uma .. inversã o": trata-se de uma teoria ong1na l, teorica -
mente sem relação com a anterio r; portan to, uma ruptura com ela.
Uma vez que Marx define o econôm ico por -'""" conceito, ele nos
apresen ta, se quiserm os ilustrar proviso riamen te o seu pensam ento
median te uma metáfo ra espacia l, os fenôme nos econôm icos não na
infinitu de de um espaço plano homog êneo, mas numa região deter-
minada por certa estrutu ra regiona l e inscrita por sua vez num lugar
determ inado de uma estrutu ra global: portan to, como um espaço
comple xo e profun do, inscrito por sua vez em outro espaço comple -
xo e profun do. Mas deixem os de lado essa metáfo ra espacia l, dado
que suas virtude s se esgotam nessa primeir a oposiçã o: com efeito,
tudo tem a ver com essa profun deza, ou, para falar mais rigoros a-
mente, com a naturez a dessa complexidade. Definir os fenôme nos
econôm icos pelo seu conceit o é defini-l os pelo conceit o dessa com-
plexida de, isto é, pelo conceit o da estrutura (globa~ do modo de
produç ão, na medida em que ela determ ina a estrutura (region al)
que constit ui como objetos econôm icos, ~ determ ina os fenôme nos
dessa região definid a, situada num lugar definid o da estrutu ra do to-
do. No nível econôm ico propria mente dito, a estrutu ra que constit ui
e determ ina os objetos econôm icos é a estrutura seguinte: unidad e
das forças produti vas/rel ações de produç ão. O conceit o desta últi-
ma estrutura não pode ser determ inado fora do conceit o da estrutu -
ra global do modo de produç ão. ·

Essa simples colocaç ão dos conceit os teórico s fundam entais de


Marx, o simples posicio nament o deles na unidad e de um discurs o
teórico , acarret a de pronto certo número de conseq üências de vulto.

Primeira: o econôm ico não pode possuir a qualida de de um


dado (imedia tament e visível, observá vel, etc.), dado que sua identifi -
cação exige o conceit o da estrutu ra econôm ica, que por sua vez exi-
ge o conceit o da estrutu ra do modo de produç ão (seus diferen tes
níveis e articula ções específ icas) - visto que sua identifi cação supõe
portan to a constru ção do seu conceito. O conceit o do econôm ico
deve ser const~u ído para cada modo de produção, do mesmo modo
como o conceit o de cada um dos demais .. níveis" pertenc entes ao
m. .od? de ·produç ão: ? político , o ideológ ico, etc. Toda a ciência eco-
nom1ca depend e, pois, como qualqu er outra ciência da constru ção
do conceit o de seu objeto. Sob essa_condiç ão, não há 'contra dição al-
guma entre a teoria da Econom ia e a teoria da Históri a; pelo contrá-
O OBJETO DE "O CAPITAL'' 135

rio, a teoria da economia é uma região subordinada da teoria da his-


tória; evidentemente, não no sentido historicista, nem no empirista,
mas no sentido em que pudemos esboçar essa teoria da história. 40 E
do me~mo modo que toda .. história" que não elabore o conceito do
seu obJeto, mas pretenda .. lê-lo" imediatamente no visível do .. cam-
P? '_' dos fenômenos históricos, fica, queira ou não, maculada de em-
p1rtsmo, exatamente como qualquer .. economia política" que vá "às
própr.ias coisas", isto é, ao ..concreto", ao .. dado", sem construir o
conceito de seu objeto, fica, queira ou não, enrodilhada na armadi-
lha de uma ideologia empirista, e sob ameaça constante do ressugir-
mento de seus verdadeiros .. objetos", isto é, dos seus objetivos (seja
ele o ideal do liberalismo clássico, ou mesmo de um .. humanismo"
do trabalho, e até mesmo socialista).
Segunda: Se o .. campo" dos fenômenos econômicos não mais
tem a homogeneidade de um plano infinito, os seus objetos já não
são de pleno direito, em todos os lugares homogêneos entre si, e,
pois, uniformemente suscetíveis de comparações e de medida. A pos-
sibilich1de da medida, e da intervenção do instrumento matemático,
de suas modalidades próprias, etc. nem por isso está exclÚída do eco-
nômico, ma~ está a partir de então sujeita aos requisitos da definição
conceptual dos lugares e limites do mensurável, ·c o_m-o IÜgares·e limi-
tes aos quais podem aplicar-se outros recursos da ciência .matemáti-
ca (por exemplo, instrumentos da econometria, ou processos outros
de formalização). A formalização matemática só pode estar subor-
dinada com relação à formalização conceptual. No caso ainda, o li-
mite que separa a economia política do empirismo, inclusive forma-
lista, passa pela fronteira que separa o conceit0 do objeto (teórico)
do objeto .. concreto", e dos protocolos, inclusive matemáticos, de
sua manipulação .
As conseqüências práticas desse princípio são evidentes: por
exemplo, na solução dos problemas .. técnicos" da planificação: em
que se tomam deliberadamente por problemas verdadeiramente
.. técnicos" "problemas" que surgem puramente da ausência do con-
ceito do objeto, isto é, do empirismo econômico. A .. tecnocracia"
intelectual nutre-se desse gênero de confusões, e vê nisso em que se
empregar em tempo integral: nada há de mais demorado para resol-
ver que um problema 'inexistente ou mal formulado.

Terceira: se o campo dos fenômenos econômicos não mais é


aquele espaço plano, mas um espaço profundo e complexo; se os fe-

~" • 1o J.
<..· 1·. l:ap1lu
136 LER "O CAPIT AL''

nômen os econô micos são determ inado s por sua compl exidad e .(istc -
é, sua estrut ura), não mais se lhes pode aplica r, como antiga mente , e
conce ito de causal idade linear. Impõe -se outro conce ito para expli•
car a nova forma de causal idade exigida pela nova defini ção do ob-
jeto da Econo mia Política, por sua .. compl exidad e", isto é, por sua
determ inação própri a: a determinação por uma estrutura.
Essa terceir a conseq üência merece atençã o especial, porqu e nos
introd uz num domín io teóric o rigoro samen te novo. Tese que soa em
. nossos ouvid os como algo já conhe cido é que um objeto não possa
ser defini do por sua aparên cia imedi ateme nte visível ou perceptível,
mas que tenha de passar pelo atalho do seu conce ito para o apreen -
der (begreifen: apreen der; BegrifJ- conceito). Essa é, pelo menos , a
lição de toda a histór ia da ciência moder na, mais ou menos refletida
na filosofia clássica, mFsmo que essa reflexão se tenha opera do no
eleme nto de um empir ismo transc enden te (como em Descartes), ou
transc enden tal (Kant e Husserl), ou idealista-.. objeti vo" (Hegel).
Certo é que se impõe grand e esforço teórico para acaba r com todas
as forma s desse empir ismo sublim ado na .. teoria do conhecimento~'
que domin a a filosofia ocidental, para rompe r com a sua proble má-
tica do sujeito (o cogito) e do objeto - e todas as suas varian tes. Con-
tudo, pelo menos todas essas ideologias filosóficas •~aludem" a uma
(.lecessidade real, impos ta, contra esse empir ismo persis tente, pela
prátic a teóric a das ciências reais: saber qu~ o conhe cimen to de um
objeto real passa, não pelo contat o imedia to com o .. concr eto" mas
pela produ ção de conceito desse objeto (no sentid o de objeto de co-
nhecimento), como por sua condiç ão de possibilidade teórica abso-
luta. Do ponto de vista formal, a tarefa que Marx nos impõe, quand o
nos força a produ zir o conceito do econômico para termo s condi-
ções de consti tuir uma teoria da econo mia política, quand o nos
obriga a definir por seu conceito o domínio, os limites e as condiç ões
de valida de de uma matem atizaç ão desse objeto , não se trata de ma-
neira algum a de uma ruptur a com a prátic a científica efetiva, mes-
mo rompe ndo de fato com toda a tradiç ão ideali.s ta-emp irista da fi-
losofia crítica ocidental. Pelo contrá rio, as exigências de Marx reto-
mam em novo domín io requisitos que são, de há muito , impos tos à
prátic a das ciências que atingi ram autono mia. Se essas exigências
não raro se choca m contra as prátic as profun damen te impre gnada s
de ideologia empir ista que reinavam e reinam ainda na ciência eco-
nômica, isso se deve, sem dúvida, à-juve ntude dessa ~•ciência", e
també m a que a .. ciência econô mica" está sobrem odo expos ta às
pressões da ideologia: as ciências da sociedade não têm a sereni dade
das ciências matem áticas . Hobbe s já o dizia: a geome tria un~ os ho-
mens; a ciência social os divide . A .. ciência eco!1?mica" é o campo
de batalh a e o alvo dos grande s comba tes pohllc os da histór ia.
O OBJETO DE "O CAPITAL" 137

. Coisa inteiramente diversa ocorre com a nossa terceira conclu-


são, e com a exigência que ela nos impõe de pensar os fenômenos
econômicos determinados por uma estrutura (regional), por sua vez
determinada pela estrutura (global) do modo de produção. Essa exi-
gência apresenta a Marx um problema que não é apenas científico,
isto é, decorrente da prática teórica de uma ciência determinada (a
Economia Política ou a História), mas um problema teórico, ou filo-
sófico, dado que diz respeito muito prec.isamente à produção de um
conceito ou de um conjunto de conceitos que atingem necessaria-
. mente as próprias formas da cientificidade ou da racionalidade (teó-
rica) existente, as formas que definem, num momento dado, o Teóri-
co em si, isto é, o objeto da filosofia. 41 Esse problema refere-se ca-
balmente de fato à produção de um conceito teórico (filosófico), ab-
solutamente indispensável para constituir o discurso rigoroso da
teoria da história e da teoria da economia política: a produção de
um conceito filosófico indispensável, que não existe na forma do con-
ceito.
Talvez, seja demasiado prematuro afirmar que o surgimento de
qualquer ciência nova estabelece inevitavelmente problemas teóri-
cos (filosóficos) dessa ordem: Engels pensava assim - e temos um
s~m-número de razões para acreditar que assim -seja, se examinar-
mos o que se passou ao ensejo do nascimento das matemáticas na
Grécia, da constituição da física de Galileu, do cálculo infinitesimal,
da fundação da química, da biologia, etc. Em não poucas d~ssas con-
junturas assistimos a este fenômeno notável: a .. retomada" de um
descobrimento científico fundamental pela. reflexão filosófica e a
produção, pela filosofia, de certa forma de racionalidade nova (Pla-
tão após os descobrimentos dos matemáticos dos séculos IV e V;
Descartes depois de Galileu, Leibniz com o cálculo infinitesimal,
etc.). Essa "retomada" filosófica; essa produção pela filosofia de no-
vos conceitos teóricos que solucionam os problemas teóricos, se não
.estabelecidos explicitamente, pelo menos contidos "em estado práti-
co" nos grandes descobrimentos científicos em questão, assinalam
as grandes rupturas da história do Teórico, isto é, da história da filo-
sofia. Parece, entretanto, que certas disciplinas científicas puderam
fundar-se ou mesmo crer-se fundadas, por simples extensão de certa
forma de racionalidade existente (a psicofisiologia, a psicologia,
etc.), o que tenderia a insinuar que não é qualquer fundação científi-
ca que provoca ipso facto uma revolução no Teórico, mas, pelo m_e-
nos;· podemos presumir, uma fundação científica tal que esteja na

1
• Cf. Ler "O Capital", vol. 1, p. 51.
138 LER "O CAPITAL"

obrigação de remanejar na práti~a a problem~tica existe~t: no Teó-


rico para poder pensar o seu obJeto: a filosofta em condtçoes de re-
fletir no Teórico, pelo esclarecimento de uma nova forma de racio-
nalidade (cientificação, apoditicidade. etc.). essa subversão ocasiona-
da pelo surgimento de uma ciência como essa, assinalaria então por
sua existência uma escansão decisiva. uma ·revolução na história do
Teórico.
Parece que Marx nos oferece precisamente um exemplo dessa
importância, se tivermos em mente o que já . dissemos em outra
oportunidade sobre o retardo necessário à produção filosófica dessa
nova racionalidade, e até mesmo de certos recalcamentos históricos
que algumas revoluções teórica's podem sofrer. O problema episte-
mológico colocado pela modificação radical do objeto da Ecenomia
Política por Marx pode ser formulado desta maneira: mediante que
conceito pode pensar-se o novo tipo de determinação. que acaba de ser
identificado como a determinação dos fenômenos de uma região dada
pela estrutura dessa região? De modo mais geral, por meio de que
conceito, ou de que conjunto de conceitos, pode pensar-se a determina-
ção dos elementos de uma estrutura. e as relações estruturais existen-
tes entre esses elementos, e todos os efeitos dessas relaçijes. pela eficá-
cia dessa estrutura? E. a fortiori. por meio de que conceito. ou de que
conjunto de conceitos pode pensar-se a determinação de uma estru-
tura subordinada por uma estrutura dominante'! Em outras palavras,
como definir o conceito de uma causalidade estrutural'!
Essa· simples questão teórica "resume em si mesma a prodigiosa
descoberta cientifica de Marx: a da teoria da história e da economia
política, a de O Capital. Resume-a como uma prodigiosa questão
teórica contida ··em ·estado prático" no descobrimento científico áe
Marx, a questão que Marx •·praticou" em sua obra, à qual deu por
resposta a sua própria obra científica, sem lhe produzir o conceito
numa obra filosófica do mesmo rigor.
Essa simples questão era a tal ponto nova e imprevista que en-
cerrava aquilo com que estourar todas as teorias clássicas da causa-
lidade - ou algo que a tornasse desconhecida, a fizesse passar des-
percebida, e ser sepultada antes mesmo de nascer.
De modo esquemático, pode dizer-se que a filosofia clássica (o
Teórico existente) dispunha em tudo e por tudo de dois sistemas de
conceitos para pensar a eficácia: o sistema mecanicista de origem
cartesiana, que reduzia a causalidade a uma eficácia transiliva e
a_nalítica. Essa causalidade não era adequada para pensar a eficácia
de um todo sobre os seus elementos, a não ser ao preço de distor-
ções fora do com~m (como se vê na •·psicologia" ou na ·•biologia"
de De~cartes) .. Dispunha-se, entretanto, de um segundo sistema.
concebido precisamente para explicar a eficácia de um todo sobre os
O OBJETO DE "O CAPITAL " 139

seus ele~ento s: o conceito leibnizia no de expressão. Esse modelo é


que domina todo o pensame nto de Hegel. Mas supõe em seu princí-
pio que o todo, de que se trata, seja redutível a um princípio de inte-
rioridad e peculiar , isto é, redutível a uma essência interior, da qual
os elemento s do todo não passam então de formas de expressã o fe-
nomênic as, estando o princípio interno da essência presente em cada
ponto do todo, de modo que a cada instante se possa escrever a
equação , imediata mente adequad a: _certo elemento (econôm ico, polí-
tico, jurídico , literário , religioso, etc., em Hegel)= essência interna do
todo. Tinha-se de fato um modelo que permitia pensar a eficácia do
todo sobre cada um de seus elemento s, mas essa categori a essência -
interna/ fenômen o exterior, para ser em todos os lugares e em todos
os instante s aplicáve l a cada um dos fenômen os decorren tes da tota-
lidade em questão, pressupunha certa natureza do todo, precisamente
essa natureza de 'um todo " espiritual", em que cada elemento é expres-
sivo de toda a totalidade, como "pars totalis". Em outras palavras , ti-
nha-se de fato em Leibniz e Hegel uma categori a da eficácia do todo
sobre os seus elemento s ou partes, mas sob condição absoluta de
que o todo não fosse uma estrutura .
S_e o todo for estabelec ido como estruturado, isto é, como pos-
suindo um tipo de unidade inteiram ente diversa do tipo de unidade
do todo espiritua l, o mesmo acontece : torna-se impossív el não so-
mente pensar a determin ação dos elemento s pela estrutur a sob a ca-
tegoria de causalid ade analítica e transitiv a, e ainda mais, torna-se
impossívél pensá-la sob a categoria de causalidade expressiva global de
uma essência interior unívoca imanente a seus fenômenos. Propor-s e
pensar a determin ação dos elemento s de um todo pela ·estrutur a do .
todo era estàbele cer um problem a absoluta mente novo no maior
embaraç o teórico, porque não se dispunh a de nenhum conceito filo-
sófico ~labora do para resolvê-l o. O único teórico que teve a ousadia ·
inaudita de estabele cer esse problem a e de lhe esboçar uma primeira
solução foi Spinoza . Mas a história, como sabemos , sepultou -o nas
trevas da noite. Só com Marx, que todavia o conhecia pouco, é que
começam os escassam ente a adivinha r os traços desse rosto macerad o.

Nada mais faço aqui do que retomar , sob a forma mais genéri-
ca, um problem a teórico fundame ntal e dramátic o, do qual as expo-
sições.- preceden tes nos deram uma idéia precisa. Afirmo que se trata
de um problem a fundame ntal, pois é claro que, por outras vias, a
teoria contemp orânea, tanto em psicanál ise como em lingüísti ca e
nas demais disciplin as como a biologia , e talvez mesmo em física,
veio a enfrentá -lo, sem perceber que Marx, muito antes dela, o .. pro-
duzira", no sentido próprio. Afirmo tratar-se de um problem a teóri-
co dramático, dado que Marx, que "produz iu" esse problema, não o
140 LER "O CAPITA L"

colocou como problema, porém aplicou-s~ a s?lucio~~-lo na prática ,


sem dispor de seu conceito, com extraor d~nána hab1hda_de, mas ~em
de todo evitar racair nos esquemas anteriores, necessariamente ina-
dequad os para a formulação e solução desse problem a. Esse proble-
ma é que Marx tenta discernir nestas expressões, à procura delas
mesmas, que lemos na Introdução:
Em qualquer forma de sociedade, é uma produção determin ada, ~ as
relações engendradas por ela, que atribuem a todas as demais produções
e às relações geradas por estas o seu lugar e a sua importân cia. Ê um raio
de luz ( Be/euchtung) geral em que estão mergulhadas todas as cores, e que
lhe modificam os matizes particulares. Ê um éter especial que determina.
o peso específico de todas as formas de existência que nele se abrigam
( 170-71 ).

A passagem citada trata da determ inação de certas estrutu ras


de produç ão subordi nada por·um a estrutu ra de produç ão domir.an-
te, e portant o de uma estrutu ra por outra estrutu ra, e elementos de
certa estrutu ra subord inada pela estrutu ra domina nte, e portant o
determinante. Anteriormente tentei explicar esse fenômeno pelo
conceito de sobredeterminâção, tomado à psicanálise, e pode admi-
tir-se que essa transferência de um conceito analítico à teoria mar-
xista não era arbitrár ia, porém necessária, dado qúe, em ambos os ca-
sos, o que está em causa é o mesmo problema teórico.; com que concei-
to pensar a determinação de um elemento ou de uma estrutura por ou-
tra estrutura? Trata-s e do mesmo problem a que Marx tinha em vis-
ta, e que procuro u resolver ao introdu zir a metáfo ra de uma varia-
ção do raio de luz geral, do éter em que se banham os corpos, e mo-
dificações subseqüentes produz idas pela domina ção de uma estrutu -
ra particu lar sobre a localização, a função e as relações (essas são as
expressões de Marx: suas relações, lugar e importâ ncia) sobre a cor
originá ria e o peso específico dos objetos. É o mesmo problem a do
qual as exposições precedentes nos mostra ram, por uma análise ri-
gorosa de suas expressões e formas de raciocínio, a presenç a cons-
tante e real, em Marx, e que se pode resumir inteiram ente no concei-
to da ·'Darstellung", o conceito epistemológico-chave de toda a teo-
ria marxista ·do valor, e que tem precisamente por objeto designa r
esse .modo de presença da estrutu ra nos seus efeitos, e pois a própria
causali dade estrutu ral.
Se id~ntifi~a!11os o conceito da "Darste llung", isso não significa
que ele seJa o umco de -que se serve Marx para pensar a eficácia da
estrutu ra: basta ler as primeir as trinta páginas de O Capital para se
perceber que·ele empreg a dezenas de expressões diferen tes de caráter
metafórico para explicar essa realida de específica não pensada até
ele. Se o retemos, é que esse termo é ao mesmo tempo menos meta-
O
O OBJETO DE "O CAPITAL" 141

fórico eª.º mesm o tempo o mais próxim o do concei to que Marx ti-
nh a e~ ~1st~ qua,ndo queria design ar simult aneam ente a presen ça e
a a usenci a, isto e, a existência da estrutura em seus efeitos.
Essa questã o é extrem ament e impor tante, para evitar uma re-
caída, ainda que mínim.a de certo modo por inadve rtência , no desvio
da concepção clássica do objeto econômico, para evitar o dizer-s e que
a conce pção marxis ta do objeto econô mico seria, em Marx, determ i-
nada de fora por uma estrutura não-económica. A estrutu ra não é
uma essênc ia extern a aos fenôm enos econô micos cujos aspect os,
forma s e relaçõ es ela viria modif icar, e que seria eficaz sobre eles
como causa ausent e, - ausente porque externa a eles. A ausência da
ca~ a na .. causalidade metonímica-,, da estrutura sobre seus efeitos
42

não é resultado da exterioridade da estrutura em relação aos fenôme-


nos económicos; é, pelo contr,ário, a própria forma da interioridade da ·
estrutura, como estrutura, em seus efeitos. Isso implic a então que os
efeitos não sejam extern os à estrutu ra, não sejam um objeto ou um
eleme nto, um espaço preexi stente, nos quais a estrutu ra viria impri-
mir a sua marca: muito pelo contrá rio, implic a que a "estrutura seja
imane nte a seus efeitos, causa imane nte de seus efeitos no sentid o
spinoz iano do termo , e que toda a existência da estrutura consista em
seus efeitos , em suma, que a estrfit ura, tão-so mente combi nação es-
pecífic a de seus própri os elemen tos, nada seja fora de seus efeitos.
Esse esclar ecime nto é impor tantíss imo para explic ar a forma às
vezes estran ha que a descob erta e procur a de expres são dessa reali-
dade assum em també m em Marx. Para compr eende r essa forma es-
tranha , impõe -se notar que a exterio ridade da estrutu ra em relaçã o a
seus efeitos pode ser conce bida ou como pura exterio ridade ou
como uma interioridade, sob condiç ão apena s que essa exterio ridade
ou interio ridade sejam pensad as como distintas de seus efeitos. Essa
distinç ão assum e não raro em Marx a forma clássic a da distinç ão
entre o dentro e o fora, entre a ..essênc ia íntima " das coisas e a sua
.. superf ície" fenom ênica, entre as relaçõ es '"íntim as", o '"víncu lo
íntimo " das coisas ·e as relaçõ es e víncul os extern os das própri as coi-
sas. E sabe-s e que essa oposiç ão, que equiva le em princíp io à distin-
ção clássic a da essênc ia e do fenôm eno, isto é, a uma distinç ão que
. situa no ser em si, na realidade em si, o lugar interior de seu conceito,
conpr aposto então à '"supe rfície" das aparên cias concre tas; que,
pois, transp õe como difere nça de nível ou de partes no próprio objeto
real uma distinç ão que não perten ce a esse objeto real, dado que se

al
•: Express ão de J. A. Miller para caracte rizar uma forma de causalid ade estrutur
descobe rta em Freud.
142 LER "O CAPITAL"

trata da distinção que separa o conceito, ou conhecimento desse


real, desse real como objeto existente; - sabe-se que essa oposição
pode levar, em Marx, a esta obviedade: se a essência não fosse a dife-
rença dos fenômenos , se o interior essencial não fosse diferente do ex-
terior inessencial oufenomênico, não se teria necessidade da ciência. 43
Sabe-se também que essa fórmula singular pode nutrir-se de todos
os argumentos de Marx que nos apresentam o desenvolvimento do
conceito como a passagem do abstrato ao concreto, passagem enten-
dida então como da interioridade essencial - abstrata em princípio -
às determinações concretas externas, visíveis e perceptíveis, passagem
que resumiria em suma o trânsito do livro I ao livro III. Toda argu-
mentação equívoca repousa ainda uma vez na confusão entre o con-
creto-de-pensamento, entretanto perfeitamente isolado por Marx na
Introdução do concreto real, com esse mesmo concreto real - ao pas-
so que em realidade o concreto real do livro III, isto é, o conhecimen-
to da renda fundiária, do lucro e do juro, é, como qualquer conheci-
mento, não o concreto empírico, mas o conceito, portanto, ainda e
sempre uma abstração: o que pude chamar e de fato chamei de "Ge-
neralidade III", para bem assinalar que se tratava ainda de um pro-
duto do pensamento, conhecimento de uma existência empírica e não
essa própria existência empírica. Impõe-se então tirar a conclusão
disso e dizer que a passagem do livro I ao livro III de O Capital nada
tem a ver com a passagem do abstrato-de-pensamento ao concreto-
real, com a passagem das abstrações do pensamento necessárias para o
conhecer, ao concreto empírico. Do livro I ao livro III, não saímos ja-
mais da abstração, isto é, do conhecimento, dos .. produtos do pen-
sar e do conceber": jamais saímos do conceito. Passamos apenas, no
interior da abstração do conhecimento, do conceito da estrutura e
dos efeitos mais gerais da estrutura, aos conceitos dos efeitos parti-
culares da estrutura - não transpon:ios jamais, um momento sequer,
a fronteira absolutaJT1ente instránponível que separa o .. desenvolvi-
mento" ou especificação do conceito, do desenvolvimento e da par-
ticularidade das coisas_~ e isso por uma razão sólida: essa fronteira é
de direito intransponível porque é fronteira de nada, porque não pode
ser uma fronteira, porque não há espaço homogêneo comum (espírito
ou real) entre o abstrato do conceito de uma coisa e o concreto empíri-
co dessa coisa que possa autorizar o emprego do conceito de fronteira.
Se insisto a esta altura sobre esse quívoco é para deixar bem cla-
ra a dificuldade diante da qual Marx se achava quando lhe foi neces-

41
O Capital, VIII , 196: "Toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das
coisas se confundissem" . Ressonância do velho sonho de toda reflexão da política clás-
sica: toda política seria supérflua se a paixão e a razão dos homens se confundissem.
O OBJET O DE "O CAPIT AL" 143

sá~io pens,a~, num conce ito verda deiram ente reflet ido, o probl ema
ep1stemolog1co que ele no entan to havia produzido: como explicar
teoricamente a eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos?
Essa dificu ldade não deixo u de ter conse qüênc ias. Assin alei que a
reflex ão teóric a anter ior a Marx havia forne cido apena s dois mode -
los de uma eficác ia pensa da: o mode lo de uma causa lidade transi tiva
de orige m galile ana e cartes iana, e o mode lo de uma causa lidade ex-
pressi va de orige m leibni ziana , retom ada por Hegel . Esses dois mo-
delos podia m entre tanto revela r um fundo com um na oposi ção clás-
sica do par essência-fenômeno, jogan do com o equív oco dos dois
conce itos. O equív oco desse s dois conce itos é, de fato, evide nte: a es-
sência remet e ao fenôm eno, mas ao mesm o tempo , em surdin a, ao
inessencial. De fato o fenôm eno remet e à essên cia, de que ele pode
ser a manif estaçã o ou a expre ssão, mas remet e ao mesm o tempo , e
em surdi na, àquilo que apare ce ao sujeit o empír ico, à perce pção e,
pois, à afecç ão empír ica de um sujeit o empír ico possív el. É simpl íssi-
mo então acum ular na própr ia realid ade.es sas determ inaçõ es equí-
vocas , e localizar no próprio real uma distin ção que no entan to é des-
tituíd a de sentid o a meno s que em funçã o de uma distin ção exterior
ao real, dado que põe em jogo uma distin ção entre o real e o seu co-
nheci mento . Marx , à procu ra de um conce ito para pensa r a singu lar
realid ade da eficác ia de uma estrut ura sobre <;>s seus eleme ntos, não
raro recor reu, e na verda de de modo quase inevit ável, ao par clássico
essência e fenômeno, encam pando , por força e não por virtud e, as
suas ambig üidad es, e extra polan do para a realid ade, sob a forma de
"interior e exter ior" do real, do "movimento real e do movimento apa-
rente", da "essência íntim a" e das determ inaçõ es concr etas, fenom é-
nicas, perce bi_d as e manip ulada s por indiví duos, a diferença episte-
mológica entre o conhecimento de uma realidade e essa própria reali-
dade. Não tenha mos dúvid a de que isso teve conse qüênc ias no con-
ceito que ele tinha .de ciênc ia, como o podem os perce ber quand o
Marx cuido u de dar o conce ito daqui lo que seus prede cesso res ha-
viam achad o, ou falha do - ou o conce ito da difere nça que o distin -
guia deles.

Mas esse equív oco teve també m conse qüênc ias sobre a inter-
preta ção do fenôm eno que Marx batizo u com o nome de "fetichis-
mo". Ficou claro que o fetich ismo não era um fenôm eno subje tivo,
pertin ente às ilusõe s ou à perce pção dos agent es do proce sso econô -
mico, de modo que não se pode reduz i-lo aos efeitos subjetivos pro-
duzid os nos sujeit os econô micos pelo lugar deles no proce sso, na es-
trutur a. No entan to, quant as passa gens de Marx nos apres entam o
fetichismo como uma "aparência", uma "ilusã o" pertin ente unica -
mente à "cons ciênc ia", mostr ando- nos o movi mento real, intern o,
144 LER " O CA PITAL"

do processo, "aparecendo" sob forma fetichizada à .. consciênci a"


dos mesmos sujeitos, sob a forma do movimento aparente! E, no en-
tanto, quantas outras passagens de M~rx nos asseguram que essa
aparência nada tem de subjetiva, mas é, pelo contrário, sempre ob-
jetiva, a .. ilusão" ·das .. consciência s" e das percepções sendo por sua .
vez secundária , e deslocada pela estrutura dessa primeira "ilusão"
puramente objetiva! Nesse caso, sem dúvida, é que vemos mais cla-
ramente Marx debater-se com conceitos de referência inadequad os a
seu objeto, ora aceitando-o s, ora recusando- os, num movimento ne-
cessariame nte contraditór io.
Entretanto , e em virtude mesmo dessas hesitações contraditó-
rias, Marx toma não raro o partido daquilo que afirma efetivamen -
te: e produz então conceitos adequados ao seu objeto. Mas tudo se
passa como se, ao produzi-los num lampejo, não tivesse posto em
ordem e enfrentado teoricamen te essa produção, não a tivesse refle-
tido para impô-la ao campo total de suas análises. Por exemplo, ao
tratar da taxa de lucro, escreve Marx:

Essa relação mvlc+v 11 taxa de lucro // concebida de maneira ade-


quada em sua dependência conceptual, interior (seinem begrifflichen. in-
nern Zusammenhang entsprechend gefasst) ê à natureza "da mais-valia, ex-
prime o grau de valorização de todo o capital adiantado (O Capital. VI ,
64).

Nesse trecho como em muitos outros, Marx "pratica" sem


qualquer equívoco essa verdade de que a interioridade nada mais é
que o "conceito", que ela não é "o interior" real do fenômeno, mas
seu conhecime nto. Sendo assim, a realidade que Marx estuda já não
pode apresentar- se como uma realidade em dois níveis, o interior e o
exterior, o interior sendo identificad o com a essência pura e o exte-
rior como um fenômeno, ora puramente subjetivo, estado de uma
"consciênc ia", ora impuro, porque estranho à essência ou inessen-
cial. Se "o interior" é o conceito, o exterior só pode ser a especifica-
ção do conceito, exatamente como os efeitos ºda estrutura do todo só
podem ser a própria existência da estrutura. Eis, por exemplo, o que
diz Marx sobre a renda fundiária:

É importante para a análise científica da renda da terra, isto é, da


forma econômica, específica e autônoma, que assume a propriedade da
terra ~o modo capitalista de produção, examiná-la em sua forma pura,
despojada de qualquer ct>mplemento que a falsifique e lhe complique a
nat~reza; mas é importantíssimo também conhecer os elementos que são
a ra1z _dessas confusões, a fim de compreender bem os efeitos práticos da
p~opnedade da terra, e inclusive chegar ao conhecimento teórico de certo
numero de fatos que, embora em contradição com o conceito e a natureza
da renda da terra, aparecem no entanto como modos de existência desta
(O Capital, VII, 16).
O OBJETO DE "O CAPITA L" 145

V~~os aqui em_ flagran te o duplo estatut o que Marx atribui à


su~ analise . Ele an~lis~ uma forma pura, que nada mais é que o con-
ceito da renda capital ista da terra. Essa pureza, ele a pensa ao mes-
mo tempo como a modali dade e a própria definiç ão do conceit o, e
ao n:i~smo tempo a pensa como o que ele disting ue da impureza
~mp1~1ca. Essa mesma impure za empíri(.;a, clt: ;, pensa no entanto
1med1atamente, num segund o movim ento ·de retifica ção, como "os
modos de existência", isto é, como determ inações teóricas do concei-
t? d: renda_~a terra em si. Nesta última concep ção, saímos da dis-
tmçao emp1n sta da essência pura e dos fenôme nos impuro s; aban-
d_onamos a idéia empiris ta de uma pureza que é então apenas o re-
sultado de uma depuração empíric a (visto que depura ção do empíri-
co) - pensam.os realme nte na pureza como pureza do conceito, pure-
za do conhec imento adequa do a seu objeto, e nas determ inações
desse conceit o como o conhec imento efetivo dos modos de existên -
cia da renda da terra. Claro está que essa linguagem por si mesma
revoga a distinç ão de interior e exterio r, para pôr em seu lugar adis-
tinção do conceit o e do real, ou do objeto (de conhec imento ) e do
objeto real. Mas se levamo s a sério essa indispensável substitu ição,
ela nos orienta no sentido de uma concep ção da prática científica e
de seu objeto que nada mais tem em comum com o empiris mo.
Marx nos dá os princíp ios dessa concep ção inteiram ente modi-
ficada da prática científi ca, e sem qualqu er equívoc o, na Introdução
de 5 7. Mas uma coisa é desenv olver essa concep ção, e outra é pô-la
em prática a propós ito do problem a teórico inaudit o da produç ão
do conceit o da eficácia de uma estrutu ra sobre .os seus elemen tos.
Esse conceit o que vimos Marx praticar no empreg o que faz da Dars-
tellung, e na tentativ a de captar nas imagen s da modific ação do raio
de luz ou do peso específ ico dos objetos pelo éter no. qual estão
imersos , aflora por vezes em pessoa, na análise de Marx, nas passa-
gens em que ele se exprim e numa linguag em inédita , mas extrem a-
mente rigoros a: a linguag em das metáfo ras que são entreta nto já
conceitos quase perfeitos, aos quais só falta talvez o terem sido
apreendidos e, pois, tomado s e desenv olvidos como conceit os. O
mesmo se aplica toda vez que Marx nos apresen ta o sistema capita-
lista como um mecanismo, uma mecânica, uma maquinaria, máquina
ou montag em ( Triebwerk, M echanismus, Getriehe ... cf. VI li, 255;
Ili, 887; VIII, 256; IV, 200; V, 73; V, 154); ou como a comple xidade
de um .. metabo lismo social" (VIII, 191). Seja como for, as distin-
ções corrent es de fora e dentro desapa recem, assim como a ligação
.. íntima " dos fenôme nos contrap ostos à sua desorde m visível: esta-
mos diante de outra imagem , de um semico nceito novo, definiti va-
mente liberto s das antinom ias empiris tas da subjeti vidade fenomê ni-
ca e da interio ridade essenci al, diante de um sistema objetiv o regula-
146 LER "O CAPITAL"

mentado, nas suas determinações mais concretas, pelas leis de sua


montagem e de sua maquinaria, pelas especificações do seu conceito.
Nese caso é que podemos ter em mente o termo Darstel/ung, compa-
rá-lo a essa .. maquinaria" e tomá-lo literalmente, como a própria
existência dessa maquinaria em seus efeitos: o modo de existência
dessa encenação, desse teatro que é ao mesmo tempo a própria cena,
o texto, os atores, esse teatro cujos espectadores só podem ser efeti-
vamente espectadores porque são primeiramente os seus atores for-
çados, tomados nas constrições de um texto e papéis dos quais não
podem ser os autores, dado que se trata, em essência, de um teatro
sem autor.
Devemos fazer um comentário a mais? Os esforços reiterados
de Marx para romper os limites objetivos do Teórico existente, para
modelar o instrumento com o qual pensar a questão que a sua des-
coberta científica colocava para a filosofia, os seus fracassos, e mes-
mo as suas recaídas. fazem parte do drama teórico que ele viveu.
numa solidão absoluta, muito antes de nós, que apenas começamos
a suspeitar, pelos signos de nosso céu, de que a sua questão é a nossa,
por muito tempo, e que ela governa todo o nosso futuro. Sozinho,
Marx procurou à sua volta aliados e sustentáculos: quem poderá
censurá-lo por ter-se apoiado em Hegel? Quanto a nós, devemos a
Marx o não estarmos sós: nossa solidão só se susteve por nossa ig-
norância do que ele dissera. É esta que devemos acusar, em nós e em
todos os que pensam tê-lo ultrapass·a do - e só falo dos melhores -
quando esti-0 apenas no limiar da terra que ele nos descobriu e
abriu. Devemos a ele até mesmo enxergar-lhe as falhas, as lacunas,
as omissões: elas contribuem para a sua grandeza, pois que, ao con-
siderá-las, nada mais fazemos do que retormar nos inícios um dis-
curso interrompido pela morte. Sabemos como termina o terce~ro li-
vro de O Capital. Um título: as classes sociais. Vinte linhas, e depois
o silêncio.
O OBJETO DE "O CAP ITAL " 147

Apêndice: Sobre a '' Média Ideal''


e as Formas de Transição

as teó-
O peq uen o com entá rio que se segue é sobr e dois prob lem ta de
ober
ricos imp orta ntes , rela cion ados dire tam ente com a desc
obje to de O
Mar x e as suas form as de expressão: o da definição do
das form as
Capital com o "a méd ia idea l" do capi talis mo real - e o
de tran siçã o de um mod o de prod uçã o a outr o.
econômicas
Supo remo s sempre, neste exam e geral, que as relações
a coisa, as rela-
reais correspondem bem a seu conceito, ou o que é a mesm
que tradu zem o seu pró-
ções reais só serão expo stas aqui na medida cm
prio tipo gera l (a/lgemeinen Typus) ... (VI, 160).
l com o
Mar x define em vári as opo rtun idad es esse tipo gera
capitalis-
.. méd ia idea l" (idealer Durchschnitt) do mod o de prod ução
estã o com bi-
ta. Essa den omi naçã o, em que a média e a idealidade
rem a cert o
nad as do lado do con ceit o, ao mes mo tem po que se refe
átic a filosófi-
real existente, esta bele ce de nov o a que stão da pro~ lem
ada de emp i-
ca que sust enta essa term inol ogia : não esta rá imp regn
uma passa-
rismo'? A isso serí amo s leva dos a pen sar tend o em vista
ital.
gem do Pref ácio da prim eira ediç ão alem ã de O Cap
festam na
O fisico observa os processos da natureza, quan do se mani
s pertu rbad o-
form a .mais característica e estão mais livres de influência a ocorrência
ras, ou, quan do possível, faz experimentos que asseg uram
148 LER "O CAPITAL"

do processo, em sua pureza. Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o


modo de produção capitalista e as correspondentes relações de produção
e de circulação. Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produ-
.ção. Este Ó motivo pelo qual a tomei como principal ilustração de minha
explicaçã_o teórica (1, 18).

Marx escolheu, pois, o exemplo inglês. No entanto, submete


esse mesmo exemplo a notável "purificação", visto que, segundo ele
mesmo declara, a análise é feita sob condição de supor que o seu ob-
jeto não compreende jamais senão duas classes em confronto (situa-
ção sem qualquer exemplo no mundo) e que o mercado mundial por
inteiro está submetido ao mundo da produção capitalista, o que
também está fora da realidade. Portanto, o que Marx estuda não é:
propriamente o exemplo inglês, não obstante clássico e puro,'mas um
exemplo inexistente, precisamente o que ete chama de "média ideal"
do modo de produção capitalista. Lênin ressaltou essa dificuldade
manifesta nas Nouvelles remarques sur la théorie de la réa/isation de
1899 (Oeuvres, ed. francesa, tomo IV, pp. 87-88):
Detenhamo-nos por um momento no problema que há muito ocupa
a atenção de Strouvé: qual é o valor científico verdadeiro da realização?
Exatamente o mesmo de todas as demais ·teses da teoria abstrata de
Marx. Se Strouvé perturbado com o fato de que "a realização absoluta é
o ideal da produção capitalista, mas de modo nenhum a sua realidade",
fá-lo-emos lembrar que todas as demais leis do capitalismo descobertas
por Marx se traduzem exatamente do mesmo modo que o ideal do capita•
/ismo e de modo nenhum a realidade dele. "Nosso objetivo", escrevia
Marx, "é representar a organização interna do modo de produção capi•
talista apenas, por assim dizer, em ·s ua média ideal". A teoria do capital
pres~upõe que o trabalhador receba o valor integral de sua força de tra-
balho. Tal é o ideal do capitalismo, mas de modo nenhum a realidade. A
teoria da renda pressupõe que a população agrícola inteira se ache dividi-
da em proprietários çf a terra, ·em capitalistas e em trabalhadores assala-
riados. Tal é o ideal 4o capitalismo, mas de modo nenhum a realidade. A
teoria da realização pressupõe uma distribuição proporcional da produ-
ção. Tal é o ideal do capitalismo; mas de modo nenhum a sua realidade.

Lênin nada mais faz do que retomar a linguagem de Marx,


contrastando, a partir do termo "ideal" na expressão "média ideal",
a idealidade do objeto de Marx com a realidade histórica efetiva.
Não seria preciso irmos muito longe nessa oposição para cair nas ar-
madilhas do empirismo, sobretudo se lembrarmos que Lênin desig-
na a teoria de Marx como teoria "abstrata", que parece assim con-
trapor-se naturalmente ao caráter concreto-histórico da realidade
das f armas efetivas do capitalismo. Mas, no caso ainda, podemos
apreender a verdadeira intenção de Marx, concebendo essa idealida-
de (idéa/ité) como uma ideidade (idéellité), isto é, como simples con-
ceptualidade de seu objeto, e a "média" como o conteúdo do concei-
O OBJETO DE "O CAPITAL" 149 .

to desse objeto - e não como resultado de uma abstração empírica.


Nã_o se trata em ~arx de um objeto ideal (idéal) contraposto a um
.obJeto real, e, por isso mesmo, distinto dele, como o dever ser do ser,
a norma do fato - o objeto da teoria de Marx é ideal (idée/), isto é,
definido em Jermos de conhecimento, na abstração do éonceito. O
próprio Marx o diz, quando escreve que a "diferença específica do
sistema capitalista-se manifesta (sich darstellt) na estrutura de seu nú-
cleo integral (in ihrer panzen Kerngestalt" (VI, 257). Essa "Kernges-
talt'' e suas determinações é que constituem o objeto da análise de
Marx, na medida em que essa difere,FtÇa ·especít'kã define o modo
de produção capitalista como modo de produção capitalista. O que,
para economistàs vulgares, como Strouvé, parece em contradição
com a realidade, constitui para Marx a própria realidade, a realidade
de seu oNeto teórico. Basta, para bem compreender isso, ter em men-
te o que dissemos do objeto da teoria da história e, pois, da teoria da
economia política: ela estuda as formas de unidade fundamentais da
existência histórica, isto é, os modos de produção. É, de resto, o que
Marx nos diz, se tomarmos suas expressões literalmente, no prefácio
da primeira edição alemã quando fala da Inglaterra:

Nesta obra. o que tenho de pesquisar é o modo de produção capita-


lista e as correspondentes relações de produção e circulação (1, 18).

Quanto~ Inglaterra, a ler de perto o texto de Marx, ela inter-


vém simplesmente como fonte de ilustração e de exemplos, e de modo
nenhum como objeto de estudo teórico:

Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este o


motivo pelo qual a tomei como principal ilustração de minha explicação
teórica ( ihid. ).

Essa declaração inequívoca recoloca na justa perspectiva a ex-


pressão inicial, em que se invoca o exemplo da física, em termos que
podiam dar a entender que Marx estava à procura de um objeto
.. puro", "livre de influências perturbadoras". A Inglaterra, pois, é
também um objeto impuro e pert_urbado, mas essas .. impurezas" e
.. perturbações" não causam mal teórico algum, dado que não é a In-
glaterra o objeto teórico de Marx, mas o modo de produção capitalista
. na sua .. Kerngestalt" e a.v determinaçâes dessa .. Kerngestalt" . Quan-
do Marx nos declara estudar uma .. média ideal", impõe-se com-
preender que essa idealidade é a conotação não do não-real, ~~ d_a
forma ideal, mas do conceito do real; e compreender que essa me-
dia" não é empirista, e pois a conotação do não-singular, mas, pelo
contrário, conotação do conceito da diferença especifica do modo
de produção considerado.
150 LER "O CAPITAL"

Sigamos mais além. Pois, se voltarmos ao exemplo inglês, e se o


compararmos ao objeto aparentemente purificado e simplificado de
Marx, esse modo de produção capitalista de duas classes, só o pode-
mos fazer se estivermos diante de um resíduo real: precisamente,
para nos limitarmos a essa questão pertinente à existência real das
demais classes (proprietários de terra, artesãos, pequenos proprietá-
rios agrícolas). Não podemos honestamente suprimir esse resíduo
real, invocando pura e simplesmente o fato de que Marx só se pro-
põe como objeto o conceito da diferença específica do modo de pro-
dução capitalista, e invocando a diferença entre o real e o seu conhe-
cimento!
No entanto, é nessa diferença aparentemente peremptória, e
que constitui o argumento principal da interpretação empirista da
teoria de O Capital, que assume toda significação o que dissemos do
estatuto da teoria da história. Porque Marx só pode estudar a dife-
rença específica do modo de produção capitalista sob a condição de
estudar ao mesmo tempo os demais modos de produção, e não apenas
os demais modos de produção, como tipos de unidade específica de
Verbindung entre os fatores da produção, mas também as relações de
diferentes modos de produção entre si, no processo de constituição
dos modos de produção. A impureza do capitalismo inglês é um ob-
jeto real e determinado que Marx não se propôs estudar em O Capi-
tal, mas que é relevante na teoria marxista: essa impureza é, sob a
sua forma imediata, o que podemos provisoriamente chamar de
"'sobrevivências", no seio do modo de produção capitalista, domi-
nante na Grã-Bretanha, de formas de modos de produção subordi-
nados e não ainda eliminados pelo modo de produção capitalista.
Essa alegada impureza constitui, pois, objeto pertencente à teoria
dos modos de produção: muito em especial a teoria da transição de
um modo de produção a outro, o que se confunde com a teoria do pro-
cesso de cons_tituição de um modo de produção determinado, dado que
todo modo de produção se constitui a partir de formas existentes de
um modo de produção anterior. Esse objeto pertence de pleno direi-
to à teoria marxista, e se soubermos conhecer esses títulos de direito
desse objeto, não poderemos censurar a Marx o não nos ter dado a
teoria dele. Todos os textos de Marx sobre a acumulação primitiva
do capital constituem pelo menos a matéria, já não seja o esboço
dessa teoria, no que concerne ao processo de constituição do modo
de produção capitalista - isto é, a transição do modo de produção
feudal para o modo de produção capitalista. Devemos, pois, reco-
nhecer o que Marx efetivamente nos deu, e o que isso nos permite
encontrar do que ele não chegou a nos dar. Assim como podemos
dizer que. possuímos apenas o esboço de uma teoria marxista dos
modos de produção anteriores ao modo de produção capitalista -
O OBJETO DE "O CAPITAL"
151

nodemos dizer, e inclusive, dado que a existência desse problema e


sobretudo a necessidade de colocá-lo na forma teórica própria nio
são reconhecidos de modo unnime devemos dizer que Marx não
nos deu teoria da iransiçao de um
a
modo de produção a outro, isto é,
da constituiçao de um modo de produção. Sabemos que essa teoria
indispensável, simpiesmente para podermos concluir o que se chania
a construção do sOCialismo, em que está em causa a transição do
modo de produção capitalista ao modo de produção socialista, ou
ainda para solucionar os problemas apresentados pelo chamado
"subdesenvolvimento dos países do terceiro mundo. Não posso a
me estender sobre os problemas teóricos apresentados por esse obje-
to novo, mas podemos admitir como certo que a formulação e solu-
ção desse problemas de contundente atualidade estão em primeiro
plano no estudo do marxismo. Não apenas o problema do culto da
personalidade, mas tambem todos os problemas atuais enunciados
sob a forma das "vias nacionais para o socialismo", das "vias
pacífi-
cas" ou não, etc. dependem diretamente dessas pesquisas teóricas.
Nesse caso também e mesmo que certas formulações nos
le
-

vem à beira de um equívoco, Marx não nos deixou sem indicações


ou recursos. Se podemos colocar como problema teórico a questão
da transicão de um modo de produção a outro, e portanto não ape
nas explicar transições passadas, mas ainda prevero futuro, e "sal
tar por cima donosso tempo" (o que não podia fazer o historicismo
hegeliano), é, não em função de uma pretensa "estrutura experimen-
tal da história, mas em função da teoria marxista como teoria dos mo-
dos de produção, da definição dos elementos constitutivos dos
diferentes modos de produção, e pelo fato que os problemas teóricos
suscitados pelo processo de constituição de um modo de produção
(em outras palavras, os problemas da transformação de um modo
de produção em outro) são função direta da teoria dos modos de
produção considerados. " Eis a razão pela qual podemos dizer que

Marx deu elementos para pensar esse problema, decisivo dos pontos
de vista teórico e prático: é a partir do conhecimento dos modos de
produção em pauta que podem ser formulados e resolvidos os
problemas da transição. Por esse motivo é que podemos prever o fu
turo, e constituir a teoria não apenas desse futuro, mas também e
sobretudo das vias e meios que nos garantirão a sua realidade.
A teoria marxista da história, entendida como acabamos de de-
finir, assegura-nos esse direito, desde que saibamos definir muito
exatamente as suas condições e limites. Mas, ao mesmo tempo, ela

"Cf. o estudo de Balibar, p. 153.


152 LER "O CAPITAL"

nos dá com o que avaliar o que nos resta a fazer - e que é imenso,
para definir com todo o rigor desejável essas vias e esses meios. Se é
certo que a humanidade só se propõe tarefas que está em condições
de realizar (sob condição de não dar a essa fórmula uma conotação
historicista), ainda assim é preciso que a humanidade adquira exata
consciência da relação existente entre essas tarefas e suas capacida-
des, e que ela aceite passar pelo conhecimento desses termos e sua
relação, e portanto pelo questionamento dessas tarefas e capacida-
des, para definir os meios próprios para produzir e dominar seu fu-
turo. Na falta disso, e até na "transparência" de suas novas relações
economicas, ela correria o risco, como já teve a experiência nos si-
lèncios do terror - e como pode ter uma vez mais nos anseios do hu-
manismo, correria o perigo de entrar, com a consciência pura, num
futuro ainda carregado de perigos e de sombras.

Observacções
O Capital é citado .na tradução das Editions Sociales (8 volu-
mes). O número em algarismos romanos indica o número do tomo; em
alagarismos arábicos, a página. Por exemplo, O Capital, IV, 105 deve
ler-se: O Capital, Editions Sociales, tomo IV, p. 105.
As Teorias sobre a Mais-Valia (Theorien über den Mehr-wert)
foram iraduzidas em francés por Molitor ( Ed. Costes) sob o título
Histoire des Doctrines Economiques, em 8 tomos. Empregamos a
mesma fórnmula de referência que para O Capital (tomo, página).
A conteceu-nos freqüentemente retificar as traduções francesas de
referéncia. inclusive a tradução do livro I de O Capital por Roy. para
acudir mais de perto ao texto alemão, em certas passagens
demasiado
densas ou carregadas de sentido teórico. Em nossa leitura de modo mui-
1o geral recorremos ao texto alemão da edição Dietz (Berlim), enm que
O Capital e as Teorias sobre a Mais-Valia comportam cada qual tres
tomos.

L. Althusser

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