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Tratado,do Desespero.
. e da Beatitude
André· Comte-Sponville

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Martins Fontes
Introdução

o labirinto
Desespero e beatitude
'~s esperanças dos tolos são desprovi-
das de razão."
DEMÓCRITO

Courbet dizia a seus alunos: "Veja se, no quadro que você


quer pintar, há uma cor ainda mais escura do que esta; indique
seu lugar, e passe essa cor com sua espátula ou com o pincel;
ela provavelmente não indicará nenhum detalhe em sua escuri-
dão. Em seguida, ataque por gradações os matizes menos inten-
sos, procurando colocá-los em seu lugar, depois as meias-tintas;
por fim você só precisará fazer brilhar os claros ...»I Isso também
vale para o pensamento. É preciso começar pelo mais escuro,
buscar "o vazio, e o negro, e o nu", e chegar progressivamente à
luz. Porque a noite é primária. Se não fosse, não precisaríamos
pensar. É preciso começar pelo desespero.
Essa "noite escura" do pensamento é o silêncio. É neces-
sário muito tempo para chegar a ele, e muita coragem. Por-
que a juventude é tagarela, por impaciência, e a velhice tam-

1. Citado por Aragon, L'exemple de Courbet, p. 17.

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

bém, na maioria das vezes, por covardia. É necessário, antes lugar nenhum, que sua corrida era vã e louca, todos os LI!> 's-
de mais nada, calar-se, e entrar dentro de si. Porque a noite forços inúteis e toda esperança ilusória. Então, parou. E adivinho
está em nós, não em algum outro lugar, como em nós tam- o barulho da sua respiração, e esse silêncio nele como uma m r-
bém a luz. Mas é preciso começar pela noite, vazia e vaga, te. Ou, talvez, ele não tenha necessitado correr, conhecendo d
como diz a Bíblia, e nela morar por um longo tempo. Antes antemão o gênio sem falhas de seu pai... Pouco importa. Eu o
do primeiro dia e da primeira manhã, há o infinito das noites. imagino sentado no chão, encostado na parede, a cabeça nos
Ant~ da primeira palavra, a eternidade do silêncio. joelhos... E, de repente, a serenidade estranha que dele se
J! preciso começar pela solidão. Os outros nos distraem, nos apossa. A angústia que se anula no extremo de si mesma. O
divertem, e nos afastam do essencial. Nós mesmosiJNão. O desespero.
essencial está em mim, mas não é eu. Em mim (em meu corpo):
esse vazio. É preciso começar por esse vazio. É preciso começar Começar pela angústia, começar pelo desespero: ir de
pela angústia. E que seria da angústia sem a solidão? Os outros uma ao outro. Descer. No fim de tudo, o silêncio. A tranqüili-
me dão a impressão de existir, de ser alguém, algo... Ao passo dade do silêncio. A noite que cai aplaca os temores do cre-
que a solidão, para quem a vive sem mentir, me revela meu na- púsculo. Não mais fantasmas: o vazio. Não mais angústia: o
da, me ensina minha vaidade, o vazio em mim da minha presen- silêncio. Não mais perturbação: o repouso. Nada a temer; na-
ça. Verdade da angústia. Descubro então que não sou nada, que da a esperar. Desespero.
não há nada em mim a descobrir, nada a compreender, nada a
conhecer, a não ser esse nada mesmo. Solidão e silêncio: a noite ~O desespero - não a tristeza. E até: o desespero contra
da alma. Noite total, a alma não existe. a tristeza. Porque a tristeza nunca é mais que a decepção de
É necessário começar por essa noite. Deter-se nela. Enfren- uma esperança precedente. E não há esperança que não se
tar essa angústia. É por isso que muita gente nunca começa, e fi- frustre, que não tenha seu quinhão de tristeza e de inquietu-
ca girando a esmo diante das portas de si mesmos. Falatório e di- de. Ciladas do tempo. Labirinto de viver. Ao passo que o ver-
versão, jogos do sentido e da ilusão, caminhos e descaminhos do dadeiro desespero - se ele é possível - não poderia ser triste:
mundo e da alma: labirinto. Mas às vezes alguns se fartam. Há se fosse, não poderia deixar de esperar o fim da sua tristeza e
dias em que não suportamos mais o falatório. Paramos. Enfim, o se anularia nessa contradição. Se a tristeza é um estado nega-
silêncio. Enfim a solidão. E a angústia lá está como um grande tivo, o desespero, no sentido em que o considero, é um esta-
espelho vazio. Assim, no labirinto, depois de ter corrido por mui- do neutro. É o grau zero da esperança. Nada mais, nada me-
to tempo, depois de ter atravessado estas milhares de salas, de nos. É uma espécie de estado sem futuro [pois não há futuro
corredores, depois de ter se perdido em todos aqueles caminhos que não seja de esperança], cuja possibilidade e cujas conse-
e descaminhos, em todos aqueles cantos e recantos, em todas qüências trata-se, precisamente, de avaliar. O desespero é o
aquelas sinuosidades sem fim, de rua sem saída em rua sem saí- próprio presente. Em outras palavras: a eternidade de viv r2.
da, de esquiva em esquiva, e sempre as mesmas portas, sempre
as mesmas paredes, houve um momento, sem dúvida, em que
2. Cf. Wittgenstein, Tractatus logico-pbilosopbicus, 6.4311: "Se se cnrcntlvi
Ícaro, esgotado, ao cabo de suas forças e de sua coragem, sem por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a aternporalída I', "'ll.lu
fôlego e sem esperança, compreendeu que não havia saída, em vive eternamente quem vive no presente" (trad. fr. P. Klossowski, "lei' 's" - NIU'"),

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

Essa palavra, porém, me incomoda um pouco, confesso, pelo do; temer é esperar ser tranqüilizado. Ciladas da superstição.
que evoca de aparentemente negativo ou triste, por suas co- Tudo se relaciona, tudo se encadeia, e somos prisioneiros -
notações de melancolia, de abatimento ou, numa palavra, de labirinto. E tudo isso é ilusório. O caminho do inferno está
romantismo. Se eu gostasse de neologismos, teria utilizado de calçado de esperanças frustradas e temores sem objeto. Sua-
bom grado o de inesperança, como fazia Mounier, e num sen- ve mari magrur ... A vida é a tempestade de nossos sonhos. O
tido bem próximo: "não o luto da esperança, mas a constata- porto é não mais sonhar: desespero.
ção da sua ausência ..." 3. Pois é um pouco isso - essa consta- SQinoza. "Não há esperança sem temor, nem temor sem
ração - que eu gostaria, após outros, de pensar; até o fim, se esperança.'? Círculo fatal. O temor é tristeza e prisão, a espe-
possível, isto é, até seu limite e até aquele extremo em que a rança sai dele e a ele volta: labirinto. A imaginação se acor-
beatitude, por sua vez, torna-se pensável. Mas essa palavra - renta a suas fantasias; o inferno e o paraíso torturam igual-
inesperança - não se impôs. fÉ justo, de resto. Porque o de- mente. Labirinto dos labirintos: esperar, temer, o bem, o mal..
sespero, mesmo o mais neutro, nunca é um estado original; A própria vida. Deter-se. Compreender que isso não é nada:
sempre supõe a força prévia de uma recusa. A esperança é "A experiência havia me ensinado que todas as ocorrências
primeira; logo: é necessário perdê-Ia. O des-espero indica essa mais freqüentes da vida ordinária são vãs e fúteis ....,,6 Falsos
perda, que não é a princípio um estado, mas uma ação. O de- prazeres, verdadeiro sofrimento: da esperança frustrada nasce
sespero sempre vem depois. É a ave de Minerva da alma, e seu "uma tristeza extrema.". E que esperança não é frustrada? Não
começo. Assim, na história dos números, a invenção última há esperança que não seja "impotência d'alma'" e promessa
do zero. Já a criança a princípio acredita em Papai Noel...) de tristeza. Em lugar da qual o sábio nada espera. Que teria
Sim, é um Tratado do desespero que empreendo aqui; mas ele a temer?
não como doença mortal, conforme o título que Kierkegaard Pascal ateu. Imaginar sua grandeza, liberto ele de seus
lhe deu. Quero escrever um tratado do desespero como saú- penduricalhos! Que mestre teria sido! O desespero tê-lo-ia
de de alma, e que estaria para a esperança assim como a se- curado de sua tristeza e de sua ira molestas. Ele teria perdoa-
renidade está para o medo. A esperança, virtude teologal. Mas do aos homens a inexistência de Deus, em vez de torturá-l os
se não há Deus ... O desespero é minha virtude teologal pes- com seu temor. E a esperança, como uma esponja de vina-
soal, e minha saúde. A esperança é que é uma doença, uma gre ... A aposta é um suplício. Alguém já viu um jogador feliz?
droga. O futuro não mede nada mais que minha fraqueza pre- A esperança é o mal deles. Os padres são insuportáveis com
sente. Quanto maior minha potência, menos necessito esperar. suas promessas. Por quem nos tomam? Mercadores de espe-
Desespero: força d'alma. rança, mercadores de ilusões ... "O contrário de desesperar é
Lucrécio. Sua obstinação em desesperar o leitor. As "noi-
tes serenas" são as noites sem esperança. A esperança é lou-
cura. Nem os deuses, nem a morte, nem a multidão cumprem 4. Conforme a expressão quase proverbial do De rerum natura (Il, 1). No-
te-se que os versos 7-14 indicam claramente que a "tempestade" em questão é,
suas promessas. Nada a esperar de nada. Mas também: nada
antes de mais nada, precisamente a da esperança.
a temer. Tudo se relaciona: esperar é temer sentir-se frustra- 5. Spinoza, Ética, III, explicação da definição 13 das afetações.
6. Spinoza, Tratado da reforma do entendimento, § 1.
7. Spinoza, ibid., § 1.
3. Emmanuel Mounier, L'aifrontement chrétien, Seuil, p. 22. 8. Spinoza, Ética, IV, prop. 47, escólio.

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

crer", diz Kíerkegaard". Pode-se inverter: o contrário de crer é Freud. O princípio de prazer contra o univer '0''; . o uni-
desesperar. verso é o mais forte. A felicidade não passa de um sonho .uja
O que aprecio no materialismo é, antes de mais nada, realização "é absolutamente irrealizável; toda a ordem do uni-
esse desespero. Não crer em nada. Considerar a natureza verso se opõe a ela; seríamos tentados a dizer que não entrou
"sem acréscimo estranho'v'': a natureza indiferente, sem espe- no projeto da 'Criação' o homem ser 'feliz' ... "14. Aliás, não há
ranças nem temores. Marx: renunciar às felicidades ilusórias: criação, não há projeto, e é a morte que sai ganhando.
é "a exigência que (a) felicidade real formula", diz ele!'. Mas Lucrécio, Spinoza, Marx, Freud ... A linha de Demócrito.
a única felicidade real é a felicidade presente. A esperança "As esperanças dos tolos são desprovidas de razão'">, e o
também é um ópio. E vejam só como muitos souberam ser- sábio não necessita mais esperar: basta-lhe o presente. Mate-
vir-se dela. Os dias de amanhã cantarão', diziam estes ... rialismo: descer até o ponto mais baixo, depois voltar a subir
Todo culto, qualquer que seja, funciona à base de esperança. - se pudermos. Mas é preciso descer. Porque, diz Demócrito,
A felicidade por vir é uma felicidade ilusória; e o otimismo, a "a verdade está no fundo do abísmo=".
desculpa dos tiranos. Aragon diz isso, e está bem situado
para sabê-lo'": "Não conheço nada mais cruel nesse baixo
mundo do que os otimistas de decisão. São seres de uma II
maldade ruidosa, que juraríamos que se deram por missão
impor o reinado cego da tolice ... Deixem, deixem aos peda- O difícil é ser só.
gogos do vai tudo bem essa filosofia que tudo na prática da Sem Deus. Sem amigos. Sem amores.
vida desmente ... "12 O materialismo é uma desilusão. É neces- O ateísmo é difícil, mais de um fracassou nele. Não basta
sário desesperar Billancourt***. não crer, como não basta, para saber o que é a noite, fechar
os olhos ... O nada é, antes de mais nada, um mistério, e sem-
pre nos inventamos sóis. Sei de ateus de nascimento mais re-
• Les lendemains cbantants [Os amanhãs cantantes] era o mote do PC francês ligiosos que certos padres. Talvez seja preferível, para se tor-
no pós-guerra, que prometia para logo o radioso futuro do socialismo ... (N. do T.)
nar ateu, ter sido crente: sabe-se do que se fala, e tê-lo sido
•• Louis Aragon, grande poeta francês, foi alto dirigente do PCF. (N. do T.)
••• Sede de fábrica da Renault. Em maio de 1968, os operários em greve, torna vigilante contra os ídolos. É a lucidez dos apóstatas .
que ocupavam a fábrica, impediram a entrada dos estudantes que haviam feito Passar em revista o ateísmo. Compreender que não resta,
uma longa marcha desde Paris para apoiá-los. (N. do E.) então, nem belo, nem bem, nem verdadeiro, talvez. Perder-s
9. Kierkegaard, Traité du désespoir [Tratado do desesperol, trad. fr. K.
Ferlov e ].-]. Gateau, "Idées" - NRF, p. 114.
nesse deserto. Quem não fez essa viagem nada pode pensar
10. Engels, fragmento inédito do "Feuerbach", em Études pbiiosopbiques, verdadeiramente, nem mesmo o que é Deus, se ele existe. Si-
Éditions Sociales, sem nome de tradutor, p. 68.
11. K. Marx, Critique de Ia philosophie du droit de Hegel [Crítica da filosofia
do direito de Hegell, trad. fr. G. Badia, P. Bange e E. Bottigelli, em Sur Ia reli- 13. Cf p. ex. Malaise dans Ia ciuilisatioti [O mal-estar na civilização], P F,
gion, Éd. Sociales, 1968, p. 42. Grifo de Marx. (Salvo precisão contrária, todas as pp. 20-21.
nossas citações de Marx e de Engels referem-se às traduções francesas publica- 14. Freud, Malaise ..., trad. fr. Ch. e]. Odier, p. 20.
das pelas Éditions Sociales.) 15. Demócrito, fragmento 292, trad. fr. J. Voilquin, em Les penseurs gre s
12. Louis Aragon, "La valse des adieux", em Le rnentir-urai, Gallimard, pp. auant Socrate, G.-F., p. 190.
541-543. 16. Demócrito, fragmento 117 (trad. fr.]. Voilquin, op. cit., p. 175).

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mone Weil percebeu-o muito bem, após Descartes: a fé su-· zonte e meu limite. Ela é o que me define, e os deuses são
põe um ateísmo prévio, que ela supera, sem o que não passa imortais porque não existem. Morrer é o preço a pagar por
de superstição ou religiosidade. O vazio é o elemento primei- ser si mesmo. A morte é solidão.
ro que torna possível o cheio. Na Bíblia, Deus não cria as tre- Essas descobertas são banais, e vividas como tais. Pelo
vas, mas constata sua preexístêncía, e os átomos de Epicuro, menos eu as vivi assim. Outros podem ter conhecido transes
eternos absolutamente, caem num vazio que, no entanto, em e êxtases; eu mal posso falar de crises. O silêncio, digo-Ihes,.
cada lugar os precede. O nada existe primeiro. É a verdade anos de silêncio. E a banalidade de viver... No entanto, há
primeira: a verdade do silêncio. fins de tarde, é verdade, certos fins de tarde em que a angús-
Passar em revista, também, os amigos. Perdê-Ias. Com- tia parece insuportável, a ponto de não se poder sequer ficar
preender de uma vez por todas sua solidão igual à minha, e em casa. O corpo chega a adoecer. Um nó nas entranhas, uma
aceitá-Ia. Tocar o fundo da indiferença deles. Precisarei falar sensação de vazio no esterno, o coração se sufoca ou se afo-
disso? Cada um de vocês sabe o que quero dizer, ou nunca ga, pernas moles, mãos úmidas ... Sim, a angústia é um estado
teve amigos - mas sonha ter. Pascal é cruel, aqui, mas neces- do corpo, com seus altos e baixos, suas calmarias e suas tem-
sário. É preciso começar pela solidão. pestades. E isso acaba passando: o corpo tem sua saúde, que
E, depois, o desamor. Não ser mais amado não é grande é feita de esquecimento. Mas a angústia também é uma per-
coisa, embora seja preciso viver essa experiência. Porém, não turbação da alma - e a alma se lembra. O aborrecimento* é
mais amar a si mesmo, não mais amar pura e simplesmente, essa lembrança. Dir-se-ia uma planície sem fim... Como uma
compreender que o amor não é nada, que não existe, ou que angústia que já não sentiríamos, por força do hábito ... Ainda
não passa de sua própria ilusão ... É preciso ter amado para não é o desespero. Mas a esperança empobreceu-se e como
compreendê-lo, para não mais esperar do amor o que ele que se diluiu ao máximo. Não passa de uma sombra de si
não pode dar, para saber que o amor não altera em nada a mesma. Já não tem outro objeto, salvo - unicamente - o tem-
solidão, não altera nada em nada, não altera nem sequer o po, que nunca é um. Não é o grau zero da esperança, mas sua
amor ... Tocar no fundo de sua própria indiferença. realidade mínima. É uma esperança vazia.
Enfim, a morte. Compreender o que é morrer. Esse nada
é tão profundo quanto o outro, menos vasto talvez, contudo
mais severo. Narciso fica louco para se imaginar ausente. É III
preciso ser um pouco Narciso para compreender, porque a
morte é egoísta. Os outros não morrem de verdade: nos dei- O aborrecimento, o desespero.
xam, vão embora ... E a dor é atroz, eu sei, e horrível a ferida. Lembro-me de um livro que li, garoto ainda, cujo título e
Mas, justamente, é uma ferida. Só eu sou mortal, e minha cujo autor não sei mais; era um romance sobre o aborreci-
morte é o único escândalo. Não é necessário raciocinar: basta mento, por sinal passavelmente tedioso e, creio eu, de quali-
imaginá-Ia para temê-Ia, e meu corpo me ensina o bastante
que ele a rejeita. "Não existo": frase impossível; no entanto,
• o francês, ennui. Em Pasca!, o termo apresenta uma certa dinâmica po-
assim será. Os que não conheceram esse medo carecem de sitiva, não só a passividade que possa transmitir o termo aborrecimento. Supõe
imaginação, eis tudo, ou de lucidez. Minha morte é meu hori- também angústia, agonia, tédio. (N. do R. T.)

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

dade bem medíocre. Mas retive esta frase de um dos perso- somos solidão, como diz Rilke, tanto no casal com n J'l1 'io
nagens, ou talvez citada em epígrafe. "Não tenho medo do da multidão. Mas essa solidão é difícil e não a atingim si'
aborrecimento; o aborrecimento é a verdade em estado pu- uma só vez. É mais simples, inicialmente, se isolar, no ntido
ro." É preciso ter passado por aí, por essa "verdade", para sa- material do termo: o isolamento não é a solidão, mas p I'
ber do que se está falando. O aborrecimento é a experiência levar a ela. Pedagogia do deserto: criar o vazio em tom d
do vazio; e tudo é vazio para quem se entedia. É o bom ca- si, para encontrá-Io em si. ão ouvir mais ninguém; não diz r
minho. O vazio é um chamado: é necessário preenchê-lo. A mais nada; escutar seu silêncio ... É preciso começar por s
morte faz isso. E a mentira. Talvez a verdade também. calar, para não mais mentir. O inverno é a primeira estação
Não estou certo de que o suicídio seja uma questão de da alma.
fato séria. Nem mesmo que seja uma questão propriamente. Mas esse silêncio, a verdade nua desse silêncio, é supor-
No máximo pode ser uma resposta, que abole a própria ques- tável? Podemos permanecer nele por muito tempo? Não sei.
tão de que se pretende resposta ... Pascal, aqui, é mais pro- Muitos o alcançaram, depois voltam. Guardam dele aquela
fundo do que Camus: aquele que se enforca, é sempre sua pouca bruma no fundo dos olhos, como velhos marinheiros,
felicidade que ele está buscando, e o verdadeiro desesperado o sonho secreto das grandes viagens. De novo, tagarelam ...
não tem, por isso, razão alguma de morrer. Porque o deses- Mas os que não cedem, os que resistem, mesmo se não para
pero não é a infelicidade, longe disso. Aquele que sofre espera sempre, mesmo se às vezes é preciso mudar de rumo, os que
não sofrer mais, o homem infeliz espera o fim de seu sofri- guardam em si, imenso e vazio, esse continente selvagem - a
mento. Assim também o que se suicida: a morte é sua espe- solidão -, estes que navegam a favor do nada, e azar dos que
rança. O verdadeiro desespero, ao contrário, supõe a indiferen- se perdem, azar de quem se afoga - estes, o que encontram?
ça. É por isso que é um estado-limite, e luxuoso até. Doença Hic Rhodus, hic salta ... Que mais encontrariam? No limite ex-
de rico, dizem, e talvez seja verdade. Os pobres têm muito de tremo do nada: o mar alto da verdade. "Creio que dois e dois
lutar. Mas isso não quer dizer que o. conforto não tenha tam- são quatro", diz Don juan'", e é palavra de desesperado. Mas
bém sua parte de verdade. Cada um segue seu caminho e também é o mundo inteiro que se oferece, e a matemática,
descobre o que pode. A verdade é uma, talvez, mas não é re- "que trata não dos fins, mas apenas das essências e das pro-
servada a quem quer que seja. A cada qual seu método e seu priedades das figuras"!" - a matemática desesperada -, ensina
caminho. um universo em que a infelicidade não existe, nem a angús-
A grande tentação é a mentira. Menos por vontade de tia, nem o medo: um universo sem esperança nem temor. E a
enganar outrem do que por medo de confessar a si mesmo a verdade está em toda parte, não apenas no pensamento abs-
verdade. Se é que verdade há. São raras as traições; a mentira trato, mas aqui, ali, diante de mim, no mundo, na simplicida-
mais freqüente é a tagarelice. Mente-se por horror do vazio ... de das coisas. Há um buquê de flores em cima da mesa: ver-
Mas a tagarelice também é covardia: medo do silêncio, medo dade absoluta. Aqui. Agora. Verdade desesperada. Ou então:
da verdade ... É palavra amedrontada. E somos todos tagarelas há três árvores no campo. Isso não se discute, não requer pro-
em público, por esse medo. É por isso que a solidão é uma
oportunidade: para, pelo menos uma vez, ir até o extremo do 17. Moliére, Don juan, III, l.
seu silêncio. Essa solidão é antes de mais nada interior, e nós 18. Spinoza, Ética, I, apêndice.

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

vasoIsso é. "Habemus enim ideam veram": porque temos uma quer de Deus, enquanto este fosse um sujeito, pin za mos-
idéia verdadeira'". E mesmo se não houvesse árvores: seria tra-o bem, contra Descartes: Deus não tem de criara v r la I. "
verdade que eu as vejo. E mesmo se nenhuma verdade, ja- porque ele é a verdade, eterna e incriada. A verdade V'L por
mais, em parte alguma, houvesse sido dita: o silêncio seria inteiro no campo do ser. A ignorância não a atinge, n m a
uma. Verdade do silêncio: o próprio ser. Sem frases. mentira, É por isso que os céticos não lhe subtraem nada: di-
Essa verdade não tem sentido. Não tem valor. É o que é: zer que a ignoram é reconhecer que ela existe; negar que ela
insensata e indiferente. Não vai a lugar nenhum, não promete existe é confessar que a ignoram. Os mentirosos tampouco. a
nada, não anuncia nada. A verdade não é uma parusia. Ela não verdade que alguém oculta não deixa de ser verdadeira, e dis-
funda nenhuma teleologia, não cauciona nenhum humanismo. farçá-Ia ainda é submeter-se a ela, A verdade não necessita
O futuro não lhe diz respeito. Nem a esperança. Nem a moral. de pretendentes, Não necessita de celebrantes. Não necessita de
Ela "não trata dos fins". Não trata, tampouco, dos homens. Três defensores. Não tem nenhuma necessidade, O ser não carece
bilhões de vontades não mudarão um milímetro de lugar a ver- de nada,
dade de um fato ou de um teorema. A multidão nada pode fazer, A verdade tampouco tem história, Não se torna verdadei-
nem os tiranos: "a verdade não obedece=", e Deus mesmo deve ra nem falsa; ela não se torna: ela é, E, por ser, é eterna=. O
se submeter a ela. Se ele a tivesse criado, como Descartes queria, tempo nada pode contra ela, Nem eu, Posso mudar o vaso de
não poderia mais fazer que o que foi não tivesse.sido". "Averda- lugar, quebrá-lo, jogá-lo fora .., Nada posso contra a verdade
de consiste no ser,,22:ela é o próprio ser, universal e absoluto, do que foi, e Deus mesmo, se ele existe, não pode mais que
sem começo nem fim, sem projeto nem esperança - o ser deses- eternamente a contemplar, Há um buquê de flores em cima
perado. E que importa aqui se a conhecemos ou não! A terra não dessa mesa, neste instante em que estou dizendo isto, por to-
esperou Galileu para girar. Pretensão dos homens, que crêem da a eternidade, Isso vai ser verdade ainda daqui a cem bi-
que a verdade necessita deles para existir!O ser é o que é, eis tu- lhões de anos: o buquê não estará mais lá, mas sempre será
do, as coisas são o que são, em sua simplicidade muda. Verdade verdade que já esteve, Podemos mudar o mundo, mudar a
de uma pedra: ela é o que é, "Porque é evidente que tudo o que sociedade, mudar os homens talvez ou mudar-se a si mesmo,
é verdadeiro é alguma coisa, constituindo a verdade e o ser uma mas não mudar a verdade. Galileu sabia bem disso, e que ela
mesma coisa,,,23A verdade objetiva, como seu nome indica sufi-
cientemente, não necessita de sujeitos". Não necessita nem se-
25. Idéia difícil sobre a qual será necessário retomar, como, em geral, so-
bre tudo o que diz respeito a nosso pensamento do ser e da verdade. Um capí-
19. Spinoza, Tratado da reforma do entendimento, § 27. tulo lhe será consagrado. Digamos apenas que Spinoza parece-me, neste ponto,
20. Alain, Les saisons de l'esprit, X, p. 134, de uma profundidade inigualada, que mostra que todo conhecimento adequado,
21. Cf p. ex., Descartes, Carta a Morus, de 5 de fevereiro de 1649, Pléiade, racional ou intuitivo, é sempre conhecimento "sub specie aeternitatis', Cf. p. ex.
p. 1316, e M, Guéroult, Descartes, lI, pp. 26-27. Ética, I, escólio 2 da prop. 8, e lI, prop. 44 e corolários, assim como Pensa-
22. scartes, Carta a Clerselier, 23 de abril de 1649. mentos metafísicos, lI, 1, G.-F., t. I, pp, 357-358. Todos esses textos são excelen-
23. D artes, Meditação V temente comentados por Martial Guéroult, em seu monumental Spinoza, notada-
24. 1\, mesmo que nossos conhecimentos pessoais não passem de conheci- mente t. I, pp. 78-83, e t. lI, pp. 609-615. O autor escreve aí, notada mente (t. I,
mentos sul J itiv ., isso não subtrai nada da verdade objetiva (o próprio ser), que pp. 80-81): "Uma verdade não 'dura', mas possui uma eternidade irredutívcl fi
é n cessárlo SUl 01', quando mais não fosse para pensar a subjetividade de nos- qualquer tempo e a qualquer duração ... Verdadeiro e eterno são, pois, n as(),
sos nh '('\'11 .m 5, termos quase conversíveis."

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

não dá a menor importância para as inquísições. Temos de ramos. Madame Bovary sou eu, e todos nós: "Nó nun 'ti vi
conviver com ela, como se diz, e se a verdade nos desagrada vemos, esperamos viver e, dispondo-nos sempre a s r f 'Iiz 'S,
ou nos entristece - ela, que nunca é alegre nem triste, nem é inevitável que nunca sejamos ..."26 Ter esperança é aguardar;
agradável nem desagradável -, nós é que temos de mudar. a felicidade começa quando não se aguarda mais. O d s sp '-
Porque ela, a verdade, é que não mudará. rado quer ser feliz já, e tem razão: sua sabedoria é feita d
Sim, esses viajantes do nada, esses exploradores do abismo, impaciência - e ele só tem paciência para a sabedoria. Deu
o que eles descobrem - quando descobrem alguma coisa - é tem razão de tanto amar a esperança'". é ela que o faz viver.
a verdade do ser. Porque não há nada além disso. E lentamen- Mas, para o homem, viver de esperanças é viver de ilusões.
te, dificilmente, eles mudam. Sim: eles mudam. ]á ouço alguns Donde a religião. Donde a tristeza. "Os tristes têm duas razões
se indignarem ou protestarem: "Como! Mudar? .. Então eu não de tristes ser: eles ignoram ou eles esperarn'v"; e na maioria
seria mais EU! Se eu mudar, eu me perco ..." Mas estes de que dos casos, esperam porque ignoram. Ao passo que a verdade
falo sabem desde há muito que não há nada a perder. Um mun- sem esperança (por ser a verdade) é sempre verdade do pre-
do a ganhar, talvez, que está em mim - um mundo, mas não sente, verdade eternamente presente. Podemos, com Camus,
o eu. E nada a perder, salvo nossas ilusões, salvo o louco la- citar o exemplo de Don ]uan: "Don ]uan sabe e não espera ...
birinto de nossas quimeras. A verdade é um céu aberto. Nar- A partir do momento em que sabe, seu riso rebenta e tudo
ciso é um boboca. Ícaro levanta vôo. perdoa. Ele foi triste enquanto esperou. Hoje, na boca desta
mulher, ele encontra o gosto amargo e reconfortante da ciên-
cia única. Amargo? Apenas ... Esta vida o sacia ...,,29 Essa risada
IV de Don Juan faz eco, através dos séculos, ao riso legendário
de Demócrito: não há nada a esperar, nada a temer - riamos!
Porque o desespero dá asas. Quem perdeu tudo, torna- riamos! O desespero é tônico como um grande vento, salubre
se leve, leve ... Não vejam nisso um elogio da tristeza, antes o como o mar!
contrário. A tristeza é sempre um fardo pesado. O desespero É também a lição de Epicuro: "Nascemos uma vez, não é
não é a infelicidade, já disse. Vamos até o fim: ele é muito mais possível nascer duas vezes e é necessário não ser mais para a
próximo da própria felicidade. O homem feliz é aquele que, eternidade: tu, no entanto, que não és de amanhã, tu adias a
como se diz, "não tem mais nada a esperar", e Gide tinha ra- alegria; a vida perece pelo adiamento e cada um de nós mor-
zão, querendo morrer "totalmente desesperado": seria morrer re atarefado.v'? Ao passo que o desespero abre caminho para
feliz. A célebre frase que Dante inscreve na entrada do Infer-
no - "Abandona i toda esperança, vós que entrais!" - estaria
26. Pascal, Pensamentos, 47-172.
muito melhor nas portas do Paraíso: não há um só danado 27. Cf. Péguy: "A virtude que mais aprecio, diz Deus, é a esperança .." (Le
que não espere uma salvação, ainda que impossível, ao pas- porche du mystére de Ia deuxiême uertu).
so que o bem-aventurado que tudo obteve - e somente ele - 28. Camus, l.e mytbe de Sisypbe [O mito de Sísifol, "Idées" - NRF, p. 98.
29. Camus, ibid., pp. 98-99.
não tem nada mais a esperar. A esperança é o aguardo da fe-
30. Epicuro, Sentenças uaticanas, 14. Salvo precisão contrária, todas as nos-
licidade - o que supõe não a ter. Sabemos que poderemos sas citações de Epicuro serão tiradas da edição e da tradução francesa de M. n
aguardá-Ia por muito tempo, tanto mais quanto mais a espe- che, Epicure, lettres et maximes, Ed. de Mégare, 1977.

26 27
TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

o prazer presente - esse prazer que é "o princípio e o fim da da falta, o que iríamos esperar? O prazer em repous ;\8 , im
vida felíz.">' É o cigarro do condenado, se quiserem, mas a prazer desesperado, e o maior prazer possível'": aqui! P r
vida inteira pode ser esse cigarro, único e belo, suspenso no que o sábio vive "como um deus entre os homens'r'". D s s-
nada. "É preciso rir e ao mesmo tempo filosofar", diz Epicuro, pero e beatitude: o prazer em repouso da alma é um sta I
"governar sua casa e usar de todas as outras coisas que nos divino. E se "é aqui embaixo que a vida dos tolos se torna
são próprias ..."32É Sisifo feliz. Aliás, não há rochedo; ou ape- um verdadeiro inferno?", é também aqui embaixo que, das
nas rochedo imaginário. Lucrécio percebeu-o bem: o rochedo "alturas fortifica das pela ciência dos sábios'Y, "a vitória nos
é a própria esperança, e o temor.v Um não anda sem o ou- eleva até o CéU"43.Até o céu ... Porque Ícaro não tem roche-
tro, e o que empurramos à nossa frente sempre acaba caindo. do, e é por isso que pode voar. Não tem bagagens, e o céu é
Isso é que é absurdo, e triste, e trágico: o peso sempre de vazio.
nossos desejos insatisfeitos e de nossos temores vãos. Sísifo é A cada qual suas asas e sua viagem, a cada qual a imen-
Tântalo. O que ele deseja "não passa de ilusão e nunca é da- sidão de seu céu. Tudo está em desesperar do labirinto. Com-
do"34. Do mesmo modo, o que ele teme. Tudo isso é "vazio" preender que não há saída em lugar nenhum. É bem possível
(inanis35) e preenchido tão-somente pela imaginação. Esse deslocar muros, abrir portas, derrubar paredes ... Isso sempre
vazio só é tão pesado por causa do peso de nossos fantas- cria um labirinto, isto é, uma prisão tanto mais inexpugnável
mas. O rochedo está em nós, e é ele que o desespero anula, por não ter limites. Podemos nos mover nela tanto quanto
dando nova vida à leveza que lhe é própria. É o começo da quisermos, em todos os sentidos, e até acreditar que somos
paz. "A ambição e os deuses morrem juntos; juntos, a espe- livres. Labirinto do livre-arbítrio! Mas não se sai de si , nem da
rança e o temor. .."36O desespero se inverte em ataraxia. Por- sociedade, nem do mundo. Podemos nos movimentar no la-
que o sábio, que soube desesperar dos homens e dos deuses, birinto, mas não podemos sair dele. Podemos mudar de posi-
vive na plenitude. "Uma vez realizado em nós esse estado, ção, mas não de espaço. Podemos fugir, mas não escapar. Não
toda a tempestade da alma se aplaca, por não precisar mais o no labirinto. E tampouco alhures: pois não há nada mais. De-
vivo ir como em direção de algo que lhe falta, nem procurar sespero: a única salvação está em renunciar à salvação. A sal-
vação será inesperada ou não será.
outra coisa por meio da qual possa tornar completo o bem
da alma e do corpo ..."37Desespero e ataraxia: quem não es-
pera nada, de nada sente falta. Ataraxia e desespero: onde na-
38. Cf., p. ex., Diógenes Laércio, Vidas, doutrinas e sentenças dos filósofos
31. Epicuro, Carta a Meneceu, 128-129. ilustres, X, 136, e MareeI Conche, Epicure, lettres et maximes, pp. 70-74.
32. Epicuro, Sentenças vaticanas, 41. 39. Cf. p. ex. Epicuro, Máximas capitais, 18-21.
33. cr. Lucrécio, De rerum natura, III, 978-1023. 40. Epicuro, Carta a Meneceu, 135.
34. Lucrécio, ibid., III, 998. Salvo precisão contrária, todas as nossas cita- 41. Lucrécio, III, 1023.
ções ele Lucrécio serão extraídas da edição e da tradução francesa de A. Ernout, 42. Lucrécio, 11, 8.
Les belles-lettres, 1968. 43. Lucrécio, I, 79; literalmente: iguala-nos (exaequat) ao céu (cf. M. Con-
35. Ibid., p. ex., m, 982 e 998. che, Lucrécio, Seghers, p. 125). É um ponto importante, sobre o qual voltarem s:
36. Alain, Abrégés pour les aueugles. Epicure. a ascensão materialista se faz num espaço horizontal: o sábio se eleva, por assim
37. Epicuro, Carta a Meneceu, 128. dizer, aqui em baixo. A sabedoria é uma salvação sem transcenelência.

28 29
TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

v da será necessano superar o erro mais elementar r lativo '


exístêncía.v" "O samsara não difere de maneira nenhuma I
o desespero não tem fronteiras. A esse emaranhado de nirvana, e o niruana não difere de maneira nenhuma do sam-
sentidos e de ilusões que chamo "labirinto", a Índia desde sarar" O niruana não é o contrário do samsara, mas sua
sempre deu o nome de samsara, que é o labirinto dos renas- verdade: é o próprio samsara, na medida em que é livre das
cimentos. Nenhum paraíso, aqui, nenhuma escatologia". A ilusões que nos prendem a este, que nos fazem crer que ele
gente só renasce para sofrer, e para morrer de novo. "Não há tem um sentido, que é algo - quando não é nada, salvo vazio
outra coisa que nasça além da dor, somente a dor nasce, so- e contra-senso. Vazio também o nirvana: extinção, não-ser,
mente a dor cessa ...,,45 Desespero. Mas os homens esperam, vacuidade ... Nirvana e samsara são, pois, ao mesmo tempo,
contudo, e giram a esmo na prisão de seus desejos. É por idênticos e opostos: o samsara é esse mundo oco, na ilusão
isso que sofrem. "Não há fogo comparável à cobiça, não há que nos dá da sua plenitude; o nirvana é esse mundo - sempre
estreitamento como o ódio, não há rede como a ilusão. Não tão oco -, na plenitude que a justa percepção da sua vacuida-
há rio como o desejo.r" O samsara é a própria vida, essa ro- de nos proporciona. "A mesma coisa é Samsara ou Niruana,
da louca em que tudo é sofrimento (dukkha), segundo Buda, segundo a maneira de a ver - subjetiva ou objetivamente.P?
porque tudo é desejo, esse "turbilhão em que a força vital é Assim também o sonhador que desperta e compreende - ó

fascinada pelas paixões polarizadas do temor e do desejo'r". beatitude! repouso! - que seu pesadelo não era nada e que
ó

A salvação está em sair dele, mas só podemos fazê-lo renun- não há nada além de seu pesadelo. O Desperto (o Buda) co-
ciando a ele: não há salvação no samsara, como tampouco nhece então a serenidade. "Ele vive tranqüilo e feliz, pois
há salvação no labirinto. E também não há salvação em outro obteve a paz da alma.'?'
mundo. Não há paraíso para o budismo, não há além. O nir- Donde o que Zimmer chama de "o grande paradoxo do
vana não é outro mundo, que viria justificar este, dar-lhe um budismo'Y, que é, no fundo, o fato de que a salvação supõe
sentido, santificar ou superar suas ilusões. Nem paraíso, nem que cessemos de crer na salvação, e que o budismo, filosofia
justificação, nem santificação. O mundo é o mundo, nada mais, da renúncia, culmina na renúncia ao budismo. A doutrina, di-
e o céu é vazio. Não há deuses, ou nada a esperar deles. zia Buda'", não passa de uma jangada que leva à libertação; ela
Então? .. Então a salvação é esse vazio mesmo, a compreen- não é a própria líbertação. Uma vez atravessado o rio, não ser-
são da ilusão, a aceitação do contra-senso - o desespero. O ve para nada carregar a jangada nas costas ... E "quando, por
nirvana não é, portanto, o contrário do sarnsara: "Enquanto fim, a jangada é abandonada, quando a vista das duas mar-
o nirvana for encarado como algo diferente do samsara, ain- gens e do rio separador desaparece, não existe então, na ver-
dade, nem reino de vida e de morte nem reino de libertação.
44. Pelo menos na tradição budista - e, especialmente, no budismo primi-
tivo -, a que nos referimos. 48. H. Zimmer, op. cit., pp. 378-379.
45. Samyukta-âgarna anônimo, citado por A. Bareau, Bouddha, Seghers, 49. Nagarjuna, citado por W. Rahula, op. cit., p. 63, nota 19.
p.116. 50. W. Rahula, op. cit., p. 63.
46. Dbammapada, citado na seleta de textos apresentada por Walpola Rahula, 51. Vinaya-pitaka, lI, 156-157, citado por H. Arvon, Le Bouddha, PUF, p. 71.
L 'enseignement du Bouddha d'aprés les textes les plus anciens, Seuil, "Points", p. 177. 52. H. Zimmer, op. cit., p. 378.
47. H. Zimmer, Les pbilosopbies de I'lnde, Payot, p. 377. 53. Cf. W. Rahula, op. cit., pp. 29-30.

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRI TO

Muito mais, não há budismo - não há barco, pois não há a causa é a esperança ("a sede"); o remédio. é o d
margens nem água entre as margens. Não há barco e não há "cessação da sede") ... Mas não há, aí, nenhuma trist za, ssc
barqueiro - não há Buda'?", Que haja desespero nisso (o que desespero é uma imensa paz: "Do desejo nasce o desgo t , I.
chamam de "niilismo" budista), é certo. Esse desespero pode desejo nasce o temor. Para o que se libertou completam nt
ser percebido em três níveis, que o "sermão de Benares'?' enun- do desejo, não há mais desgosto; de onde lhe viria o temor?" o
cia sucessivamente. Há, primeiro, o que poderíamos chamar E essa paz é uma paz feliz: "Se, com um espírito sereno, fala-s
de desespero descritivo, cuja fórmula (primeira "verdade san- ou age-se, a felicidade nos segue então como a sombra que
ta"56)é o célebre sarvam dukkham, "tudo é dor": "O nasci- não nos abandona.t'" Sombra: imagem invertida. E é, de fato,
mento é dor, a velhice é dor, a doença é dor, a morte é dor, a de uma inversão que se trata, pois do conhecimento univer-
união com os que detestamos é dor, a separação dos que ama- sal da dor (sarvam dukkha) nasce, como sua imagem impres-
mos é dor, não obter o que desejamos é dor. .."57 A segunda sa num molde e como sua negação, a paz feliz que abole -
"verdade santa" expõe o que poderíamos chamar de desespe- "como se virássemos para cima o que é virado para baixo ..."62.
ro etiológico, já que se refere à causa do sofrimento. Ora, essa Inversão: o desespero se inverte em nirvana. "Ó amigo, o Nir-
causa é a própria esperança que nos tortura, o que Buda cha- vana é a felicidade. O Nirvana é a fellcídadel'<'
ma de "a sede": "Eis de novo, em verdade, ó monges, a santa Aceitemos isso por enquanto, depois vai ser preciso vol-
Verdade da origem da dor: é a sede que leva a renascer, (...) tar. Aceitemos esse encontro estranho, para além dos séculos
sede do desejo, sede da existência, sede da inexistência ..."58 e dos continentes, do sábio do Jardim e do Desperto de Bena-
Não é de se espantar, assim, que a terceira "verdade santa" res. Não vai ser o único, çle resto, e teremos muitas vezes opor-
exponha uma espécie de desespero programático: se a origem tunidade de pôr em paralelo o riso de Epicuro e o sorriso de
da dor é a sede, a supressão da dor supõe a não-sede - o que Buda. Mas o essencial não está aí, nesse encontro, ou conver-
chamo de desespero. "Eis ainda, em verdade, ó monges, a san- gência, de dois pensamentos antigos. O essencial é o que eles
ta Verdade da cessação da dor: o que é a cessação e o desli- podem nos ajudar, hoje, a pensar. Porque o desespero, o que
gamento completo dessa mesma sede, seu abandono, sua re- chamo de desespero, não seria então nada mais talvez - para
jeição, o fato de ter-se libertado dela, de não mais se prender quem soubesse atravessá-lo de lado a lado - do que aquilo
a ela..."59 Em suma, as três primeiras "verdades santas" são as que Epicuro chamava de ataraxia (ausência de perturbações)
verdades do desespero: a vida é desesperadora ("tudo é dor"); e Buda de niruana (extinção). Nada mais que isso, e no en-
tanto o contrário Como se virássemos para cima o que está
virado para baixo " A sabedoria é a inversão do desespero,
54. H. Zimmer, op. cit., p. 378.
e seu apogeu. E o mais alto céu de Ícaro: o próprio labirinto
55. Isto é, o primeiro discurso de Buda, após sua iluminação, cujo texto
pode ser encontrado em Bareau, op. cit., pp. 89-93. de onde ele alça vôo.
56. "A riya-sacca' , que alguns também traduzem (W. Rahula, por exemplo)
por "nobre verdade".
57. Citado por A. Bareau, op. cit., p. 90; a tradução de dukkba por dor ou 60. Stances gnomiques relatives à l'origine de Ia douleur [Estâncias gnômi-
sofrimento é tradicional (e justificada), mas simplificadora: cf. W. Rahula, op. cit., cas relativas à origem da dor], citado por A. Bareau, op. cit., p. 137.
pp.36-39 61. Stances gnomiques ..., citado por A. Bareau, op. cit., p. 137.
58. Sermão de Benares, citado por A. Bareau, op. cit., p. 91. 62. Citado por A. Bareau, op. cit., p. 96.
59. Ibid. 63. Citado por W. Rahula, op. cit., p. 67.

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TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

Prossigamos. O desespero, o que chamo de desespero, Epicuro, com Buda ...), que essa inversão não é pur V'I'-
não pode ser nada mais, então, nesse extremo em que ele se bal, mas o efeito de um conhecimento. Que o qu é inu rsor,
inverte, do que aquilo a que Spinoza - pois já é tempo de vol- em todos os sentidos do termo, é a verdade: porqu Ia p
tarmos a ele - dava o nome de beatitude. Sim, se o sábio bem- as coisas de novo no lugar. Por exemplo (mas é bem mais qu
aventurado vive sem temor (pois "o temor é uma tristeza'v'), um exemplo), "na medida em que conhecemos as cau as da
também vive sem esperança: pois "não há esperança sem te- tristeza ... ficamos contentes+". Inversão: descer depois subir.
mor,,65.Por certo, Spinoza não dá a esse estado bem-aventurado
O desespero é o ponto em que essa inversão se torna possí-
(sem esperança nem temor) o nome de desperatio (desespero),
vel; a beatitude, aquele em que ela se consuma. Porque "se a
que reserva para outro US066. Mas a idéia está lá, se não está
alegria consiste numa passagem a uma perfeição maior, a bea-
a palavra. Com efeito, Spinoza precisa que a esperança não po-
titude por certo deve consistir em que a alma é dotada da pró-
de ser boa por si mesma'", visto que indica "uma falta de co-
pria perfeição"?'. Perfeição desesperada, pois a alma não tem
nhecimento e uma impotência da alma"68,e que, por conse-
mais a imaginar nenhuma alegria que lhe falte. A beatitude é a
guinte, "quanto mais nos esforçamos por viver sob a conduta da
consumação do desespero; o desespero, o lugar da beatitude
razão, mais fazemos esforço para nos tornar menos dependen-
tes da esperança ...,,69A sabedoria é desesperar. Apesar disso, po- - seu lugar vazio: o espaço livre que a torna possível, e que
ela ocupa todo.
rém, é justo mudar de palavra. Porque alguma coisa aqui se
inverte, como um céu na água que se mira, ou vice-versa. O de-
sespero se inverte em beatitude. Quero crer, com Spinoza (com
VI

64. Spinoza, Ética, I1I, def. 13 das afeições (cf. também Ética, IV, prop. 63 e Eis-nos bem longe do "desespero" sinistro, que pretendem
demonstração). seja o clima espiritual de nossa época, o qual é tecido tão-so-
65. Spinoza, Ética, III, def. 13 das afeições, explicação.
66. Cf. Ética, 1Il, escólio 2 da prop. 18 e def. 15 das afeições e explicação. mente de falsas quedas e ascensões abortadas. Movimento de
67. Ética, IV, prop. 47, demonstr. e escólio. pulga, não de pássaro ... Mas é que não se desce baixo o bas-
68. Ibid. tante, porque não se pára de esperar sempre mil e uma coi-
69. Ibid. (grifo meu). A beatitude não nasce, pois, nem da esperança nem
do temor, mas, ao contrário, supõe sua ausência comum: o que chamo de deses-
sas. ão é um desespero, é uma sucessão indefinida de espe-
pero. Para dizer a verdade, a beatitude não nasce, propriamente falando, pois é ranças frustradas. Nosso tempo não é o do desespero, mas o
eterna. É por isso que não se lhe pode supor um começo, a não ser "ficticiamen- da decepção. E da decepção suprema: a de não sermos imor-
te" (Ét., V, prop. 33, escólio). O desespero, no sentido em que o considero, talvez
taisn É que esperamos demais, sempre demais. Empurramos
não seja nada mais finalmente, do que o nome, já que um nome é necessário,
que, por minha vez, resolvi dar a esta "ficção": a de que uma beatitude eterna nossos rochedos, e ei-los que tornam a cair... Mas de que outro
possa começar ... Essa aporia somente pode ser superada, se essa superação for
possível, por uma teoria da eternidade. A palavra "desespero" indica apenas que
isso ainda não se deu, isto é, ela designa como que de longe esta aporia mesma, 70. Spinoza, Ética, v, escólio da prop. 18.
mas em baixo-relevo, como num molde, vista, se assim podemos nos exprimir,
71. Spinoza, Ética, V, escólio da prop. 33.
do lado do tempo, ou, em outras palavras, sub specie temporis ... Proust chamava
72. Decepção que dá à morte uma realidade que ela não tem: ponto em qu
isso de Tempo perdido, que é, como se sabe, a mesma coisa que o Tempo redes-
Epicuro (Catta a Meneceu, 124-125), Lucrécio (Ill, 830-1094) e Spinoza (Ética, IV,
coberto, mas também seu contrário.
prop. 67) estão de acordo. Voltaremos a isso.

34 35
TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

modo poderiam fazer?São rochedos ... E tornamos a descer com superada, anacrônica, ilusória ... Pode ser, mas afinal d . mIas
eles, chorando sobre nossas ilusões perdidas e já sonhando que importa, se outra não há? De resto, a felicidad, na a
com as próximas ... "Enquanto permanece distante, o objeto de beatitude, não está apenas no fim do caminho, mas na pré pria
nossos desejos parece-nos superior a todo o resto; se for nos- caminhada. Epicuro diz isso?", Spinoza diz isso", e pelo m n s
so, logo desejamos outra coisa, e a mesma sede da vida man- disso tive experiência. Confesso ingenuamente: amo a filosofia
tém-nos sempre na expectativa ...'>73 Essa loucura trágica é tam- pela felicidade - mesmo se fugaz - que ela me proporciona.
bém o que Camus pensou tão bem sob o nome de absurdo, Vão me perguntar então o que é a filosofia. E sem dúvi-
de que Sísifoé o mito e Don Juan o herói. Este livro gostaria de da isso já não está claro para muita gente, diante da estranha
tentar pensar, sob a invocação de Ícaro, uma ascensão de outro disparidade que hoje essa palavra encobre e que, muitas vezes,
tipo, sem rochedo nem montanha - sim, sem rochedos, salvo os não passa de erudição e jogo de palavras ou, em geral, tagare-
imaginários, e sem montanhas, salvo as sonhadas! -, da qual, lice da razão. Porque a razão também tagarela ... Para dizer a
parece-nos, para falar apenas do Ocidente, Epicuro e Spinoza verdade, não discutirei sobre as palavras, e deixo a cada um
- e outros, depois - fizeram mais que indicar o caminho. Mi- se chamar como bem entender. O.importante é pôr-se de acor-
nha loucura, se é mesmo uma, é ainda acreditar nisso. do quanto às definições. A minha tem mais de dois mil anos,
A cada qual suas asas e sua viagem, dizia eu, a cada qual a e apraz-me tomar emprestada de Epicuro, sem mudar uma só
imensidão do céu ... Acaso das vidas e das capacidades: as asas palavra nem encontrar o que quer que seja a reparar, a insu-
que eu conheço são pensamentos. Filosofar é minha viagem; perável formulação: "Afilosofia é uma atividade que, por dis-
a sabedoria, o céu a que tendo. Há outros caminhos, sem dú- cursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz=" No-
vida, e talvez mais belos ou mais curtos. Mas dá para escolher. tem que não faço referência aqui a esse monstro proteiforme
Ou antes (porque a vontade tem o que dizer: quem mais di- que ronda as bibliotecas, grande engolidor de oferendas e sa-
ria?), não dá para escolher a sua escolha, mas apenas a sua res- crifícios (teses, memórias, colóquios ...), com suas missas e seus
posta. E a alternativa para mim fixada foi: desespero oufilosofia. sumos sacerdotes, suas vestais e seus inquisidores, com seus
Acaso dos dias... Escolhi sucessivamente um ou outra, conforme livros sagrados, seus profetas e seus mártires ... Estou falando
os momentos e as circunstâncias da vida, conforme as intermi- da história da filosofia - disciplina estimável, bem sei, mas que
tências do coração e as hesitações da razão, antes de eu per- acabará um dia, se não se tomar cuidado, devorando a pró-
ceber que no fim os dois caminhos se uniam, pois que um não pria filosofia e que, por mim, deixo entregue - sem pesar -
passava do reconhecimento verdadeiro do outro. A sabedoria aos historiadores. É hoje que precisamos viver. É hoje que
é o feliz ponto desse encontro, do qual, nem é preciso dizer, precisamos pensar. E só conta, em Epicuro ou Buda, em Lu-
não falo por experiência pessoal (se eu o tivesse alcançado, crécio ou Pascal, em Marx ou Spinoza, o que pode - hoje -
aliás, não sentiria mais a necessidade de falar nele), mas sim- nos ajudar. E pouco me importa que eles divirjam em tantos
plesmente por ter levado a sério a nossa tradição filosófica, no
que ela indica como seu objetivo. Dizem-me que isso é coisa
74. Epicuro, Sentenças vaticanas, 27.
75. Spinoza, Tratado da reforma do entendimento, § 4.
76. Epicuro, segundo Sexto Empírico, Adversus mathematicos, XI, 169, íta-
73. Lucrécio, !lI, 1082-1084. do por M. Conche, Epicure ..., p. 41.

36 37
TRATADO DO DESESPERO E DA BEATITUDE O LABIRINTO

pontos". O que me interessa é que eles podem, juntos, nos aju- lha, a sabedoria e o materialismo. Minha tese é qu i P I' S 'I'
dar a pensar. Meu problema não é ecletismo, mas estratégia. pensado segundo o eixo vertical de uma ascensão, que, 111
Mostremos o jogo. Isso, essa ascensão, cuja figuração mítica dizia Lucrécio num verso que já citei, "nos eleva até o céu". Pr -
tomo emprestado de Ícaro, minha "idéia de trás", como diria Pas- curarei mostrar que o idealismo é pensável em termos inv r
cal, é que ela nada mais é, em sua dupla marcha - descida e su- de acordo com o eixo de uma descida (de uma queda ...), m
bida -, do que aquilo a que chamamos, faz séculos, com uma que a salvação mesma e a verdade vêm de cima (logo descem ...),
palavra cuja ambigüidade mesma me encanta, bandeira e injúria, sob a forma de uma assunção e de uma revelação. Materialismo
blasfêmia e grito de guena: materialismo. Tive durante muito ou idealismo: subida ou descida, ascensão ou assunção, eleva-
tempo, posso confessar, o projeto de escrever um livro que se ção ou revelação ... Ícaro - ou Pentecostes.
chamasse "o materialismo ascendente", antes de compreender O fato de haver em ambos os casos verticalidade (oposição
que essa expressão era pleonástica, visto que se tratava de um de um alto e de um baixo) não nos deve surpreender: trata-se de
materialismo filosófico. Ícaro é o emblema desse pleonasmo. Adi- filosofia, e a filosofia não existiria sem essa dimensão. A horizon-
vinha-se então o único objeto deste livro, que é saber se é possí- tal pertence ao corpo que se deita, e o filósofo não cessa, ao con-
vel hoje uma filosofia materialista que fosse fiel à sua definição trário, de despertar. Mas caberá a nós ver em que medida o ma-
antiga de amor da sabedoria. Nizan a evocou, em seus días", terialismo é capaz de explicar essa "ascensão" que o define: co-
mas a história e a morte o impediram de falar muito a seu respei- mo o alto pode nascer do baixo, o superior do inferior, já que é
to. O movimento das idéias na França quis em seguida que o também - e Auguste Comte tinha razão aqui" - esse movimento
materialismo contemporâneo, no que ele talvez tivesse de me- de baixo para cima (Ícaro ...) que caracteriza o materialismo. Nos-
lhor, deixasse essa questão como que entre parênteses. E os que so problema será então compreender como o pensamento do
recentemente pareceram querer mais ou menos voltar a ele, fize- "baixo" (o materialismo) desemboca na idéia (sempre já questio-
ram-no na maioria dos casos de través, ou então se afastando do nada, como veremos) de uma subida, ao passo que o pensa-
materialismo. Parece-me que é tempo - mil sinais assim indicam mento do "alto" (o idealismo, a religião ...) não cessa de teorizar a
- de retomar esse problema no fundo e pensar juntos, pois se idéia (sempre já superada ou negada) de uma queda. E para que
trata da nossa história, como as duas faces de uma mesma meda- todas as coisas fiquem claras - nesses tempos em que, muito fe-
lizmente, Marx está livre dos ouropéis da moda e, em breve, do
peso das igrejas -, a ele deixemos o cuidado de encenar, se as-
77. Se bem que ... Essa aparente desordem também tem, como veremos, sua sim posso dizer, esta introdução. Porque "ao contrário da filoso-
coerência. A aproximação entre alguns desses autores é, de resto (com maior ou
fia (idealista) alemã, que desce do céu para a terra", diz ele em A
menor felicidade) tradicional: Epicuro e Marx (Nizan, Cogniot. ..), Epicuro e Spi-
noza (Guyau), Spinoza e Marx (Althusser), .. Cf. também, sobre a relação Marx- ideologia alemã, "é da terra para o céu que subimos aquir'". Da
Epicuro (e sobre a Tese de 1841), F. Markovits, Marx dans le [ardin d'Epicure, terra Rara o céu ... Estão me compreendendo, agora? Ícaro! Ícaro!
Éd. de Minuit, 1974. A aproximação entre Spínozae Buda, concebível, também
foi tentada; cf., p. ex., o estudo (interessante mas muitas vezes discutível) de E.
Reinisch, Revue pbilosophique, nº 1, 1979: "La def du spinozisme". 79. Cf. Auguste Comte, Systême de politique positive, 1º vol., reed. Anthropos,
78. Cf. Paul Nizan, Les matérialistes de l'Antiquité, Maspero, p. 33: "Uma 1969, OC, t. VII, pp. 50-53. Voltaremos ao tema.
sabedoria materialista hoje em dia não seria muito diferente por seus princípios 80. Marx e Engels, Idéologie Alemande, p. 51 (grifo meu) [A ideologia alemã,
da de Epicuro, mas C ..) seria muito mais ambiciosa ... " Idéia que compartilho, sua trad. bras. Martins Fontes]. Trata-se aqui do movimento do pensamento histórico, p i$
ambição pelo menos. é esse, de fato, o problema de Marx. Mas veremos que isso pode ser generaliza 10.

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