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24/04/2022 21:42 S.O.S.

do pica-pau-amarelo | Crônicas | Portal da Crônica Brasileira

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crônicas

5 ago 1950   

S.O.S. do pica-pau-amarelo
Rachel de Queiroz
I N FÂ N C I A | C A R I DA D E | M O N T E I R O L O B AT O

periódico
O Cruzeiro
local
Rio de Janeiro - RJ
acervo
Instituto Moreira Salles
acessar instituição de origem

Esta crônica de hoje é dedicada às crianças de São Paulo e com especialidade


às crianças da cidade de Tremembé. E, com mais especialidade ainda, às
crianças amigas de Monteiro Lobato, que leem e amam os seus livros e até
agora choram a morte do maravilhoso contador de histórias. 

A vocês, meninos, vou contar um caso que sucedeu. Quando Monteiro


Lobato morreu houve muitos necrológios nos jornais e no rádio, muitos
discursos bonitos e muito luto verdadeiro no coração dos seus leitores e
amigos. Pois no meio dessa tristeza, alguém teve uma ideia: “Vamos fazer
um monumento a Monteiro Lobato. Uma estátua de bronze que imortalize a
sua figura em praça pública”. Muita gente concordou e começou-se a juntar
dinheiro para o monumento, dinheiro que todos davam com gosto.

Mas estava-se no meio da coleta, quando de repente se fez ouvir uma voz
sensata, uma voz que dizia: “Estátua para Monteiro Lobato? Por quê? Para
que os brasileiros se lembrem dele? Mas Monteiro Lobato deixou publicados
treze livros para adultos e dezessete livros para crianças: trinta livros que
-A +A
valem mais do que trinta estátuas! Que representa uma estátua na frente de
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um
Portal dalivro? Quando
Crônica as estátuas de Camões estiverem todas mutiladas
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desaparecidas, ainda haverá muita gente que saiba de cor os versos dos
crônicas
Lusíadas. Assim com Monteiro Lobato: nem o mármore, nem o bronze hão
de durar tanto quanto as suas histórias no coração dos homens e das
crianças, que continuarão a se deliciar com elas, geração atrás de geração”.
― E a voz sensata continuou: “Além disso, todos que conhecemos Monteiro
Lobato sabemos muito bem que ele não gostaria de se ver em estátua,
imóvel no meio da rua, servindo de admiração aos basbaques. Até Emília
seria capaz de zombar dele! Lobato era um homem de ação e foi homem de
ação até morrer; se querem fazer alguma coisa em homenagem a ele, não
transformem bom dinheiro num pedaço morto de bronze que não serve
para nada: por que não fazem antes esse dinheiro trabalhar em benefício das
crianças pobres do Brasil? Isso sim, seria uma homenagem que agradaria a
Lobato”!

Pois a voz sensata foi ouvida e então a “Campanha Pró-Monumento a


Monteiro Lobato” transformou-se na “Associação de Puericultura Monteiro
Lobato”. E começaram a nascer os postos de puericultura ― devo confessar
que infelizmente apenas no estado de São Paulo; o resto dos estados têm
andado muito ocupados com outras coisas e ainda não entraram no
movimento. Mas esperemos que hão de entrar algum dia; pois não foi só na
sua terra que Lobato fez amigos: deixou-os em todo o Brasil. O fato é que o
dinheiro que era para ser virado em bronze frio foi se transformando em
leite para as criancinhas, em remédios, em tratamento, em roupas e até em
brinquedos.

O primeiro posto inaugurado foi o da cidade de Tremembé (onde Monteiro


Lobato passara a sua infância) e recebeu o nome de “Posto do Pica-Pau-
Amarelo”, em homenagem ao sítio de Dona Benta. Tudo liga especialmente
esse posto n° 1 à pessoa do grande morto, não só por ser em Tremembé,
como por ser a própria família de Lobato que trabalha dentro dele. A vice-
presidente do posto é a sobrinha de Lobato, a escritora Gulnara Lobato de
Morais Pereira. Dona Teca, irmã de Lobato, hoje quase que só vive para
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aquele Pica-Pau-Amarelo, passa dia e noite na máquina de costura, fazendo +A
roupinhas para as crianças que o frequentam. E o netinho de Lobato,
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p p ç q q ,
Rodrigo,
Portal um menino
da Crônica muito bonito e inteligente, que talvez um LOGIN
Brasileira dia também
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escreva histórias, igual ao avô, é um dos maiores “acionistas” do posto e


crônicas
trabalha para ele na medida do que pode.

Pois acabo de receber uma carta de dona Gulnara me mandando um S.O.S. O


Posto do Pica-Pau-Amarelo está urgentemente precisando de auxílio. É
verdade que o governo do estado lhe dá funcionários e alguns recursos. É
verdade que a Associação também ajuda, e o próprio posto tem uma
“caixinha” mantida com o dinheiro obtido em festinhas de teatro e jogos de
futebol, que vai dando para pagar as despesas de leite e farinha para a
gurizada. Mas dona Gulnara teve a ideia de distribuir enxovaizinhos às mães
pobres que esperam bebê e foi tanta mãe pobre que apareceu precisando do
enxoval, que dona Gulnara por mais que se virasse de um lado para o outro,
pedisse roupinhas a Deus e todo mundo, não dá conta do que é preciso.
Imaginem que neste tempo de frio dona Teca já inventou fazer acolchoados
de sacos de farinha de trigo cheios de jornal picado, para dar às crianças em
vez de cobertor! Por aí vocês calculam como andam as coisas.

As crianças que amam Lobato, que se deliciam com as aventuras de


Narizinho e o resto da turma maluca do Pica-Pau-Amarelo, venham por
favor em socorro do posto de puericultura que tem o nome do querido sítio
de dona Benta. Venham por favor em socorro das outras crianças que não
conhecem Lobato porque não podem comprar nem um casaquinho para
vestir no inverno, quanto mais um livro de histórias para ler! Mandem o que
puderem, dinheiro, roupinhas, lã, cobertores, talco, sabonete, até um
brinquedo usado serve, porque criança pobre também brinca.

Lobato gostava de vocês todos, ricos e pobres, e talvez gostasse ainda mais
dos pobres que dos ricos, porque o coração dele era grande demais e não
podia tolerar ver uma criança infeliz.

Façam o que puderem, por favor. E se por acaso duvidam da necessidade


real que têm da sua ajuda as crianças protegidas pelo Posto do Pica-Pau-
Amarelo, peçam a dona Gulnara que conte a vocês a história da mulher-que
A +A
vende traíra e que andava com um menininho no braço, roxo de frio!
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Narizinho,
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da Crônica visse aquele menino, dava-lhe até a roupa do corpo; e creioMENU
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mesmo a maluca da Emília encheria d’água os olhinhos de conta preta e
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arrancaria uma palhinha de milho do “paletó” do Visconde, para ajudar a
cobrir o guri!

Nota: Qualquer remessa deve ser enviada a “Associação de Puericultura


Monteiro Lobato” ― “Posto do Pica-Pau-Amarelo”. Aos cuidados de D.
Gulnara Lobato de Morais Pereira ― Tremembé. Estado de São Paulo.

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1 jan 1949

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5 out 1957

Poesia que canta -A +A


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