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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA

Reitor
Roberto Ramos Santos

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação


Luiz Pessoni

Coordenador do Nuhsa
Erwin H. Frank

Comissão Editorial

Carlos Alberto M. Cirino


Erwin H. Frank (in memorian)

Conselho Editorial

Prof. Dr. Carlos Alberto M. Cirino (UFRR)


Prof. Dr. Erwin H. Frank (UFRR) (in memorian)
Prof. Dr. Jaci Guilherme Vieira (UFRR)
Prof. Dr. José Carlos Franco de Lima (UFRR)
Profª Ms. Elaine Moreira (UFRR)
Profª Ms. Olendina de C. Cavalcante (UFRR)

Conselho Consultivo

Prof. Dr. Luiz Pereira de Lima Junior (UFPB)


Prof. Dr. Vicenzo Lauriola (INPA)
Prof. Dr. Reinaldo Imbrozio Barbosa(INPA)
Prof. Dr. Orlando Sampaio e Silva (UFPA)
Profª. Dra. Leda Leitão Martins (Pitzer-College/Califórnia USA)
Profª Dr. Jonh M. Norvell (Pitzer-College/Califórnia USA)
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima (Museu Nacional/UFRJ)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA

ISSN 1981-8599

VOLUME 1 NÚMERO 2
OUTUBRO/2008

BOA VISTA/RR
2008
Copyright © 2008
Editora da Universidade Federal de Roraima

Todos os direitos reservados.


A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui
violação dos direitos autorais (Lei n. 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo
184 do Código Penal.

REVISÃO:
Cátia Wankler

CAPA:
Hefrayn Lopes

EDITORAÇÃO:
Hefrayn Lopes

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação

Ficha Catalográfica - Biblioteca Central da UFRR


A exatidão das informações, conceitos e opiniões são de exclusiva responsabilidade da autora

Editora
SUMÁRIO
7 | EDITORIAL

9 | HOMENAGEM
ERWIN HEINRICH FRANK (1950-2008)
Carlos Alberto Marinho Cirino

ARTIGOS

11 | OS MACUXI SÃO MESMO DO “CARIBE”?


Erwin H. Frank

37 | NOSSA TERRA: AS RELAÇÕES ETNOAMBIENTAIS


DOS WAPISCHANA NA TERRA INDÍGENA DA
MALACACHETA/RORAIMA
Carlos Alberto M. Cirino, Erwin H. Frank,
Olendina de Carvalho Cavalcante

47 | A COLONIZAÇÃO NO RIO BRANCO E OS ESPAÇOS PROTEGIDOS


RAPOSA SERRA DO SOL E PARQUE NACIONAL DE CANAIMA
Ana Zuleide Barroso da Silva

63 | A COBERTURA DA MORTE DO ÍNDIO ALDO MOTA


NA ÓTICA DO JORNAL FOLHA DE BOA VISTA
Jaci Guilherme Vieira e Paulo Sergio Rodrigues Silva

81 | DIFERENÇAS ÉTNICAS E O LUGAR


DO ÍNDIO NA ESCOLA EM BOA VISTA
Jonildo Viana dos Santos

107 | MODERNIDADE E COMUNIDADES RIBEIRINHAS:


VISÕES DE UMA VIAGEM AO BAIXO AMAZONAS
Nelvio Paulo Dutra Santos

RESENHA

125 | ALBERTS-FRANCO, Cristina.


Theodor Koch-Grünberg. Do Roraima ao Orinoco, Vol.1
Erwin H. Frank
EDITORIAL

O
segundo número da Revista do Núcleo Histórico
Socioambiental – NUHSA está marcado por uma
homenagem: o registro do recente falecimento do Prof.º
Dr. Erwin Heinrich Frank. A homenagem é o registro do
depoimento pessoal de uma entre as muitas pessoas
que conviveram com Erwin Frank nos últimos anos: seu amigo pessoal e
de trabalho Carlos Cirino.
Não conseguimos ainda avaliar a perda, para a UFRR e o estado de
Roraima, do Prof. Erwin Frank. É unânime o reconhecimento do
trabalho que desenvolveu, nos últimos anos, nesta Instituição, atuando
como professor, pesquisador, perito, orientador e conhecedor da
questão indígena.
A revista continua publicando trabalhos relacionados com as linhas de
pesquisa do Núcleo. O primeiro deles é uma discussão sobre o mito da
origem caribenha dos índios de Roraima, especificamente, os Macuxi de
autoria do saudoso Erwin Frank. Segue o artigo apresentado pelos
pesquisadores Carlos Cirino, Erwin Frank e Olendina Cavalcante no II
Congresso de Antropologia – Mérida/Venezuela, abordando a
proposta de um diagnóstico etnoambiental na Terra Indígena da
Malacacheta/RR. Adiante os trabalhos de Ana Zuleide, Jaci Guilherme e
Paulo Silva tratando de temáticas relacionadas às questões da TI Raposa
Serra do Sol.
No último bloco, uma discussão sobre o preconceito étnico nas escolas
de Boa Vista promovida por Jonildo Santos e uma rica narrativa sobre os
ribeirinhos, resultado de uma viagem ao Baixo Amazonas do
pesquisador Nelvio Santos.
Finalmente, uma resenha de título recém-lançado, oportunando aos
leitores uma primeira leitura sobre seu conteúdo.
Comissão Editorial
HOMENAGEM
ERWIN HEINRICH FRANK
CARLOS ALBERTO MARINHO CIRINO*

rwin foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Tinha

E um jeito todo especial de tratar as pessoas, os amigos mais


próximos e, principalmente, seus alunos. O conheci em 1997, quando
estava realizando minha pesquisa de campo entre os Wapischana para
elaboração da minha tese de doutorado, ano em que Erwin havia
ingressado na UFRR. A partir daquela data, passamos a discutir
temáticas relacionadas à questão indígena no estado de Roraima, afora a
companhia em bancas de defesas de monografias dos alunos do Curso
de Ciências Sociais e até mesmo de concurso para professores.
Quando retornei em 1999, ele era chefe do Depto de Antropologia e
passamos a conviver diariamente, dividindo o mesmo
espaço de trabalho.
Começava uma parceria e cumplicidade intelectual
que se prolongaria até o fim de sua vida. Lembro
dos momentos em que defendíamos a continuidade
do nosso Departamento e a permanência da
habilitação em Antropologia no Curso de Ciências
Sociais. Erwin, a cada momento, fortalecia o ensino e a
pesquisa em Antropologia na UFRR. Foram anos de
pesquisas juntos, participação em congressos,
organização de encontros, da Abanne de 2005,
construção do Curso de Especialização em
Gestão em Etnodesenvolvimento promovido
pelo Núcleo Histórico Socioambiental
(NUHSA), núcleo criado por ele e que
passei também a coordená-lo via linhas

*Professor Adjunto do Depto de Antropologia da UFRR


de pesquisa. Dividíamos uma disciplina no Curso de Mestrado em
Recursos Naturais, afora as atividades de assessoria as comunidades
indígenas de Roraima. As perícias antropológicas que realizamos
tinham uma contribuição mútua. Aprendemos a lidar um com outro e
encarar juntos os novos desafios que a ciência e a UFRR nos colocava.
Não posso deixar de lembrar o final do ano de 2002 e todo o ano
2003, quando realizamos um diagnóstico etnoambiental na TI
Malacacheta, de caráter interdisciplinar, mas, praticamente coordenado
por antropólogos. O trabalho de campo para ele era algo prazeroso,
incansável e muitas vezes, expressando-se com a educação que lhe era
peculiar, nos criticava quando quebrávamos a seriedade das atividades
para o descanso e o relaxamento, depois de várias horas de trabalho.
Esse era o Erwin dedicado que recebeu, carinhosamente, o nome
indígena “Waramax” dos índios Wapischana da Malacacheta.
Erwin, além de etnólogo, tinha uma invejável vocação para o
magistério, para a pesquisa, a formação e orientação de alunos.
Procurava, por meio das disciplinas que ministrava, despertar o
interesse por uma formação teórica mais sólida e fazia isto com muita
propriedade através dos seus “manuscritos”. Era um mestre por
excelência, nas aulas, nas orientações, no atendimento aos colegas de
trabalho, ao mesmo tempo generoso e severo. Não tinha outra ambição,
a não ser ensinar, pesquisar e escrever. Ele nos deixou fazendo o que
realmente gostava, tentando concluir uma pesquisa no Museu
Amazônico da UFAM.
Numa sexta-feira, antecipando sua viagem a Manaus, passamos a
manhã trabalhando juntos. Ele confessara a preocupação com a possível
decisão do STF de rever a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra
do Sol. Eu tinha acabado de ler os dois artigos de sua autoria que ora
publicamos neste número da revista. Discuti com ele as observações que
fiz, assim como a última revisão do livro que acabara de escrever e estava
sendo encaminhado para Editora da UFRR. Ele nos deixou esses
presentes. Para mim, pessoalmente, escreveu a apresentação do meu
livro. Dádiva que muito me orgulho e que gera um consolo diante da
perda e do vazio de sua ausência.
OS MACUXI SÃO
MESMO “DO CARIBE1”?
ERWIN H. FRANK*

RESUMO: Neste ensaio discutiremos um mito que tanto historiadores como antropólogos
da região circum-Roraima repetem há décadas, como se verdade histórica comprovada
fosse. Procuraremos as fontes, e analisaremos a evidencia em pro e contra, não para
“desmascarar”, mas, para comprovar que, quando se trata de povos não-ocidentais, a
antropologia e a historiografia constituem esforços necessariamente complementares de
um só projeto. Este projeto comum é entender as culturas como “históricas”, e a história
humana como culturalmente constituída. A conclusão de nossa trabalho é que, em
verdade, não há como fazer antropologia, se esquecendo do passado dos povos
analisados. Mas também não há como estudar este passado, sem o norte do conceito
principal da antropologia: a “cultura”.

PALAVRAS CHAVES: Macuxi, (etno)-história, Roraima

O MITO

Começamos a pensar na redação deste ensaio, quando estavámos


lendo em algum lugar que o ilustre representante do Estado de Roraima,
o Dr. Mozarildo Cavalcanti, em discurso proferido do alto da tribuna do
Senado da Republica, tinha informado aos seus pares e a nação que: “... a
maioria dos índios que se encontram em Roraima veio do Caribe, fugindo da
perseguição dos espanhóis.” Ora, um Senador da Republica, é claro, não
precisa indicar “fontes”; embora, neste caso, acreditamos o Dr.
Cavalcante não teria nenhuma dificuldade em aponta-las. O mito da
origem caribenha da “maioria dos índios” de Roraima (aqueles que
falam línguas da família lingüística “caribe”, particularmente: os
Macuxi), e da sua migração/fuga (bem tardia!) até Roraima, consta em
inúmeras publicações de historiadores (e antropólogos) regionais, tanto

1 Uma versão anterior deste trabalho, com o titulo de “O mito da Origem Caribenha dos Macuxi” foi
lido em 2007, como “Palestra Inaugural” no Forum Estudantil Latinoamericano de Antropologia e
Arqueologia, no auditório da UFRR. Agradecemos à comissão organizadora deste evento pelo convite
e os seus participantes pelas suas contribuições a uma discussão que ajudou em focalizar o texto.
* Professor adjunti Departamento de Antropologia da UFRR
brasileiros como da ex-colonia britânica e atual “Republica
Cooperativista da Guiana” que, sem dúvida, o ilustre Senador da
Republica conhece bem. Citaremos, em seguida, somente uma outra
versão dele; desta vez, tomada da obra do historiador regional,
Professor Aimberê Freitas; não para atribuir a este autor
responsabilidades que ele não tem, mas, porque fomos informados de
que a “História e Geografia de Roraima” dele serve de “material
didático” em escolas deste Estado (e até em cursos universitários!).
Afirma o professor:

... segundo estudos realizados [os Macuxi] vieram da bacia


do Orenoco, [na] – Venezuela. Estudos mais profundos
informam que vieram do Caribe. Seriam então caribenhos.
Há, no entanto, entendimento comum de que imigraram
para o interior do continente sul-americano para fugir da
perseguição dos europeus, notadamente espanhóis,
ingleses, holandeses e franceses. Nesta fuga, os Macuxis
expulsaram outras tribos .. como por exemplo, os
Wapixanas” (Freitas, 1996, p.39; grifo meu)

Ora, o professor Freitas é historiador o suficiente para nem tentar


datar a suposta “migração/fuga” dos Macuxi (e outros índios da
Roraima atual) do Caribe até os lavrados de Roraima. Mas, como o mito
insiste em que ela ocorreu em tempos históricos (isto é: minimamente
depois de 1492), ela se deu, ou no século XVI, em conseqüência das
atividades de caçadores espanhóis de escravos índios que começaram a
operar irregularmente nas ilhas “menores” das Antilhas e na “Costa das
Perlas” (nordeste da Venezuela), de 1512 em adiante (Sauer 1984), ou, se
havia mesmo alguns “ingleses, holandeses e franceses” envolvidos,
somente no século XVII (Boucher 1992). Do outro lado, se (uma vez em
movimento) eles não “correram” de vez até além do monte Roraima2,
então é difícil de se imaginar que chegaram nas suas terras atuais antes
de, digamos, do século XVIII; principalmente, porque faz parte do mito
que, na virada do século XVI a XVII, eles foram encontrados habitando
as margens do baixo rio Orenoco, pelo famoso pirata inglês,

2 Façanha bem difícil de imaginar, para todo um povo de agricultores (mesmo “itinerantes”); afinal, eles
não podiam ainda contar no caminho, nem com restaurantes nem hotéis, e é pouco provável que os
povos que encontraram no caminho, os “deixaram passar”, sem resistência.
“Sir” Walter Raleigh3, quem - supostamente - “conversou” (embora, não
se sabe em que língua) - com o seu então “rei”, um tal de Topinerani,
“homem de 110 anos”, residente de uma “cidade”, chamada Orocotona
(que, como veremos, tem alguma importância na nossa história)!

Ora, como veremos em breve, há mesmo autores regionais,


defendendo que os Macuxi teriam mesmo só começado a ocupar o
extremo norte de Roraima na segunda metade do século XVIII; ou seja: no
mesmo momento, quando as autoridades da Portugal colonial
mandaram construir o forte de São Joaquim, na margem sul do rio
Tacutú (1775), embora fontes históricos dificilmente contestáveis (e os
indicados autores sabem disso!), os indicam firmemente estabelecidos no
total da extensão atual do seu território, no mais tardar, já no inicio
daquele sécul.

Mas, seja isso como for! Fato é que o professor Aimberê Freitas (e
todos os demais que já aceitaram e reproduziram o mito da origem dos
Macuxi no Caribe, e a sua posterior “fuga/migração” para Roraima
como “fato histórico”) é rotundamente equivocado quando o declara
comprovado por “estudos” (até: profundos). Pois: tais “estudos”
simplesmente inexistem! O que existe mesmo, é meramente uma nota (de pé
de página), de autoria do naturalista alemão, Robert-Hermann
Schomburgk, na página 78 da re-edição por ele organizada e comentada,
de uma famosa abra de autoria do já mencionado pirata, “Sir” Walter
Raleigh (1848), publicada, pela primeira vez em 1596, onde Schomburgk
se declara a sua convicção de que os Orenoqueponi, povo indígena que
Raleigh diz ter encontrado (em 1594) na margem do baixo rio Orenoco,
eram, se não os próprios Macuxi, então, pelo menos, “um ramal” destes.
Eis a (minha) tradução da nota:

Encontrar esta palavra [“Orocotona” - nome da “cidade” do


“rei” dos Orenocqueponi, de 110 anos. Vide acima; E.F.] foi de
grande interesse para mim. Ela comprova que os Orenoceponi
foram uma ramal da tribo dos Macusi [Macuxi] que, na

3 Mas, não há como esquecer que este mesmo Raleigh foi também o “pai” da colonização inglesa no que
são os atuais Estados Unidos, levando – três décadas antes da Mayflower – camponeses ingleses a costa
da Virginia.
atualidade, habitam as savanas do Rupununi e do rio Branco. Na
língua deles, Oroké significa “papagaio”; touna,[significa] água.
É claro que o fato singular deste nome, dificilmente nos teria
levado a tal conclusão, se não houvesse repetidas instantes no
relato de Ralegh, que não podem consideradas acidentais. Na
pagina 57 (da edição original) ele fala da ilha Okaywita; Okay
significa “grande”, [e] iwotta [significa] “rio” naquela língua
[dos Macuxi]. A garça grande ... se chama Wanure, daí:
“Wanuretona” (p.65). A grande cidade habitada pelos Epuremei,
se chama “Macureguarai”. Macuwari é “a palavra”, warei [é] o
adjetivo “parecido”; Iconuru significa “azul” ou “azulado”..;
Ralegh menciona na pagina 93, uma montanha chamada
“Iconuri”. Iwana é um nome comum de homens entre os Macusi;
“Orowacai” é nome de uma aldeia Macusi, perto do [rio] Cotinga
[Cotingo]... Até o nome de “Toparimaca” pode ser ligada a língua
Macusi. Eporimang é o ato de tranqüilizar alguém; para dar um
exemplo: solicitando uma terceira pessoa para tentar
apaziguar um grupo de indígenas rebeldes, nos diríamos
topuremacka: “Acalma-los!”. A analogia destes e outras palavras
não é meramente acidental, mas, prova que os Macusis,
ou pelo menos um ramal da tribo, antes habitavam o Orenoco...
(Raleigh, 1848, P.78)

Ora, as “evidencias lingüísticas”, apresentada por Schomburgk


em pro da sua especulação, talvez foi aceitável ainda, na primeira
metade do século XIX. Mas, com certeza, ela não é (mais), a luz de
lingüística atual!

Mesmo assim, desde a segunda metade do século XIX, a


especulação (pseudo)-linguística do naturalista alemão (re)-aparece (já
como um “fato histórico”, supostamente comprovado) em diversas
publicações de autores guianenses, como, por exemplo, Everard
ImThurn (1883, p.172-3)4 ou, ainda na metade do século passado, a
antropóloga Íris Myers (1993, p.12-13); embora esta antropóloga, afinal,

4 “Há duas teorias com relação à migração dos carib. A primeira é que todas as tribos Carib chegaram
na Guiana por terra firma, e que algum ramal passou de lá, para as ilhas, onde formaram os “caribs das
ilhas” que habitavam as Antilhas no momento da sua descoberta pelos Europeus, e dos quais muito
poucos ainda sobrevivem em [nas ilhas de] Domínica e São Vincente. A segunda teoria, que prefiro, já
que parece substanciada por muitos dos fatos que terão que apontar nos capítulos que seguem, é que
prefere descartar a especulação de Schomburgk em pro de outra,
segundo a qual, no início do século XVII, se chamavam “Yaio”. Os Yaio
também são mencionado em Raleigh (embora: como habitantes de
Trinidad). Porem, a referencia da Sr.a Myers não é Raleigh, mas, um dos
“capitais” deste, chamado Keymis que, no seu relato de outra viajem a
“Costa selvagem”, os localiza nas cercanias de um “Lago Amuco”, no
mesmo interior da Guiana ocidental.

Desafortunadamente, a Sr.a Myers não deixa bem claro, por que


ela prefere os Yaios sobre os Oreniceponi, afinal. Afinal, a sua principal
fonte (Keymis) nunca chegou nem perto do mítico lago, e há outros
autores do século XVII, segundo os quais os Yaio moravam no
Suriname!

Há, finalmente, ainda uma sugestão, segundo a qual os Macuxi do


século XVI não foram, nem os “Orenoqueponi”, e nem os “Iaôs”, mas
sim: os “Muchiquiens” que, na metade do século XVII (1654), aparece
num mapa francês como habitantes da margem oriental de um
inexistente “Lago Parime”, enorme extensão de água doce que, nos
mapas europeus dos séculos XVI a XVIII ocupa toda a atual região
circum-Roraima. Segundo o imaginário de alguns europeus, foi no
centro deste “lago” que se ergueu a famosa cidade de “Manoa”, capital
do “reino” do ainda mais famoso “El Dorado”. (Afinal: não é que a
palavra “muchiquiem” se parece algo com “maxucí”, sobretudo
tomando em conta que o autor do mapa falava francês)?

Ocorre que, alem do indicado mapa, não há mais nenhuma outra


referencia a Muchiquiens. Parece que eles desapareceram “do mapa”
(isto é: da história e geografia do escudo da Guaiana), junto com o
“Lago” cujas praias habitavam, a cidade de “Manoa” no centro deste
lago, e com o próprio “reino/rei” acima indicado (alias: mais ou menos
no mesmo instante quando surgem as primeiras referencias aos
“Macuxi” em nossas fontes, já firmemente estabelecidos no seu
território atual).

todas as tribos Carib, atualmente na Guiana, chegaram a esta parte de terra firme das ilhas... The
Macusis .. no momento da sua chegada [do mar caribe, E.F.] subiram o Orinoco, na margem do qual
viviam, como Robert Schomburgk mostrou, provavelmente tão recentemente, como os tempos de
Raleigh.” (Im Thurm, 1967, p.172-3)
Alem disso, não há mesmo mais nada para substanciar a origem
dos Macuxi no (mar) caribe, a sua “fuga” de lá, para escapar a
perseguição de quem for, sua passagem pelo baixo rio Orenoco (ou
qualquer outra parte!), e chegada final, no seu território atual; - pelo
menos nada que podia mesmo qualificar como “fonte histórica”.

Mesmo assim, desde a primeira metade século passado, é - via os


indicados autores guianenses - que o mito entra também na
historiografia (regional) brasileira; onde – desde então – é
constantemente repetido (aliás, na maioria dos casos, sem referencia à
qualquer “fonte”), inclusive por historiadores, antropólogos e outros, de
boa reputação e sólida formação nas suas respectivas ciências5!

A FILOSOFIA DA HISTORIA

Ora, a existência (e permanência, durante décadas e até séculos)


de uma mera “especulação” (claramente indicada como tal, pelo seu
autor inicial!), ou, às vezes, até de uma deliberada “invenção
interessada” de alguém ou alguns, no cânon de nossos “saberes
consagrados” (ou: “fatos comprovados”) históricos ou antropológicos,
não é, por certo, nada incomum. Ao contrario! Como não se cansa
documentar sempre de novo, um certo ramal da historiografia (e
antropologia) atual (surgido nas décadas 80 e 90 do século passado; vide
Hobbawm e Ranger 1997; Anderson 1983 ou também (mais importante
para nosso mito): Hulme 1986), a historiografia e antropologia
(principalmente, as historias oficiais, ou nacionais, aquelas que são
ensinadas nas escolas, e as “introduções a antropologia” que informam
os cursos sobre “historia das civilizações” ou “historia mundial”)
costuma estar repletas de tais “invenções”!

Também não há como negar que a pergunta pelo “lugar da


origem” dos Macuxi (e outros indígenas de Roraima, da família
lingüística “caribe”), assim como de possíveis “migrações” deles, em

5 Aliás, é interessante observar que, no mesmo instante em que o mito entra na (etno)-historiografia
brasilense, ele desaparece, finalmente, das publicações de autores guianenses. Na literatura
venezuelana, por sua vez, a única referencia a ele até agora encontrada é de autoria do antropólogo-
historiador Dr. Emanuele Amódio, quem - é claro - “aprendeu” enquanto trabalhou em Roraima.
Desde que se estabeleceu firmemente no cenário científico venezuelano, o mito não faz mais parte de
nenhuma das preciosas obras historiográficas do Dr. Amódio!
tempos pré- ou proto-históricos, constitui um assunto de pouca
importância, além do reduzido circulo dos “especialistas” na história e
antropologia da região que eles ocupam na atualidade (na Guiana e –
principalmente – Roraima), assim que a persistência de nosso mito na
literatura regional, particularmente: a roraimense, talvez, mereceria, no
máximo, uma nota (de rodapé) esclarecedora, em algum ensaio
dedicado a coisas mais “sérias”. Porem, tem razões para não tratar o
assunto tão despreocupadamente.

A primeira destas é o ab-uso que alguns reprodutores regionais


recentes do mito fazem dele, em trabalhos elaborados com claras
finalidades políticas; concretamente: com a intenção de por em dúvida a
“tradicionalidade” da ocupação indígena da celebre “Terra Indígena
Raposa-Serra do Sol” (e outras terras indígenas vizinhas), habitada por
Macuxi e outros povos nativos de Roraima, desde tempos imemoriais.

Sabe-se que o (alias: vergonhoso!) “Estatuto de Índio”, de 1973


(desafortunadamente, ainda em vigor), faz da “tradicionalidade de
ocupação”, a fonte o critério principal (até o único!) do direito
constitucional de índios no Brasil às partes do território nacional, por ele
habitadas na atualidade. Por certo, o famoso Capitulo VIII “Dos Índios”
da Constituição de 1988, no seu Artigo 231, qualifica a exigência com
(minimamente) quatro outras, igualmente “decisivas” em qualquer
processo administrativo de identificação e delimitação/demarcação de
alguma parte do território brasileiro como, por direito originário, “terras
indígenas” e “de uso exclusivo” dos seus habitantes indígenas. Daí que
alguns autores atuais até consideram a “tradicionalidade” de ocupação,
uma exigência “superada” pela Constituição em vigor. Porém, não há
duvida que a ampla maioria dos brasileiros “comuns” segue
considerando a “ocupação tradicional” (até: imemorial!) o principal, até
mesmo o único critério, realmente capaz de justificar a dedicação de
alguma parte do território nacional ao “uso exclusivo” de índios!

Eis a fonte da conveniência política de nosso mito para alguns


autores regionais recentes que, mesmo plenamente cientes da maioria da
evidencia documental contraria a ele, insistem em repetir o mito, como se
verdade comprovada fosse, com a mal-disfarçada finalidade de
deslegitimar (aos olhos da sociedade civil regional e nacional; não-índia, é
claro, que efetivamente ignora tal evidencia) aqueles índios e não-índios
que, durante as ultimas três décadas, lutaram pela demarcação da região
de savanas e serras ao norte do Tacutu (e leste dos rios Cotingo e
Surumu) como “Terra Indígena Raposa-Serra do Sol” e, pelo tanto, “de
uso exclusivo” dos seus habitantes indígenas6.

Porém, a conveniência política do mito para alguns autores,


definitivamente, não é a única, e, talvez, nem sequer a mais importante
“razão” da sua estranha persistência na historiografia e antropologia
regional, não obstante da existência de uma ampla (e crescente)
documentação que o desmente. Pois, entre os seus defensores recentes
há também autores, conhecidamente favoráveis à “causa indígena”,
como, por exemplo: os doutores Emanuel Amódio e Vincente Pira,
autores de “Índios de Roraima”, celebre publicação do “Centro de
Informação da Diocese de Roraima” do final da década de 80 (CIDR 1989
e 1990), ou - mais recentemente ainda - o nosso colega e historiador da
Universidade Federal de Roraima, Dr. Viera (2007). Obviamente, há
ainda “algo” a mais neste mito que o torna a priori “verossímil”, até para
autores sem quaisquer “segundas intenções”; ao ponto de que – também
estes - simplesmente dispensam, não somente a “critica”, mas até da
simples consulta da sua “fonte”, e até descartarem (ou simplesmente não
realizam/identificam como tais) toda a inegável evidencia já acumulada,
contraria a ele. A questão é: como explicar esta estranha confiabilidade a
priori do mito, inclusive em autores, sem qualquer interesse no seu abuso,
para fins puramente políticos?

ANTROPOLOGIA “POP”

A filosofia da historiografia e etnografia nos informa que a


redação de qualquer obra historiográfica ou antropológica, em
realidade: qualquer obra em ciências sociais ou humanas) implica –
inevitavelmente - inúmeras “escolhas”, entre uma infinidade de
informações e interpretações alternativas (e, frequentemente, até
contraditórias entre si) que o autor encontra na literatura primaria (as

6 O argumento (mais ou menos explicito) destes autores reza assim: Como a história “comprova” que
os Macuxi só começaram a ocupar o seu território atual no mesmo instante em que ai chegaram também
os Portugueses, o “nosso” direito (isto é: dos não-índios de Roraima) é tão “tradicional” como o direito
deles! Logo: não há nenhuma razão para dedicar tão extensa (e rica) região ao “uso exclusive” dos seus
habitantes índios. Vide (entre outros): Agostinho (s/d), Miranda, 2002, e C.A. Borges da Silva em:
Miranda, Coord., 2004; - nenhum dos quais é, por certo, historiador.
fontes) e secundária (outros autores que já escreveram sobre certo
assunto). Na obra final, alguns “fatos” (e/ou interpretações; próprios ou
de terceiros) acabam finalmente enfatizadas (reproduzidas), e outras
(implicitamente ou explicitamente) descartadas.

Por certo, espera-se que os historiador ou antropólogos (isto é:


autores que se dizem cientistas) fundamente as suas “escolhas”, em
evidencia sólida (a luz dos conhecimentos científicos, acumulados no
momento da redação/publicação da sua obra) e que, sempre que restam
dúvidas, as articule (mostrando, inclusive, o que há de evidencia
contrario a sua conclusão final) no próprio “corpo” da sua obra. Só que,
desafortunadamente, isso não sempre ocorre. Pois, muitas vezes, na fase
de “pesquisa”, preparativa a sua obra, um autor se topa com
“informações” (em documentos primários ou autores “secundários”)
que se “enquadram” tão perfeitamente no que acredita de antemão
sobre algum assunto que acha mesmo supérfluo o trabalho de confirmar
aquela “informação7”. Ou seja, em todos nós há sempre aquilo que o
renomado antropólogo Marshal D. Sahlins chamou recentemente uma
“visão pop” da história e/ou da “natureza” (antropologia) de povos
não-ocidentais, uma espécie de “senso comum pré-científico” que,
mesmo assim, norteia – inconscientemente - nosso trabalho científico,
principalmente nossa percepção da “credibilidade” a priori de
“informações” com as quais nos topamos em nossas “fontes (primarias e
secundárias)”.

Parece-nos que a estranha longevidade do mito da origem


“caribenha” dos Macuxi, não obstante da existência de toda a evidencia
existente (e bem conhecida pela grande maioria dos autores regionais,
como prova o uso que eles fazem dela em outras partes das suas obras)
constitui um bom exemplo deste fenômeno.

Concretamente, a credibilidade a priori que o mito da origem


caribenha dos Macuxi (e da sua migração/fuga – historicamente bem
recente – das Antilhas menores até Roraima) nos parece fundamentada
numa serie de deduções infundadas que estes autores fazem do fato que
a lingüística comparativa classifica a língua dos Macuxi como “(da
família lingüística) caribe”, fato que parece confirmar que os Macuxi ou,

7 Nada demais, porque, afinal, ninguém pode mesmo ler tudo!


pelo menos, a língua por eles falada, se originou mesmo na região
geográfica do mesmo nome (o “mar” caribe). Afinal: por que a língua
dos Macuxi é identificada como “caribe”, se o povo que a fala, não é
“de lá8”?. E afinal, não é que todos sabemos, que “os índios” são mesmo
assim? Nômades (!); hoje aqui, amanha acolá! E que, às vezes, nem
precisam ser “molestados” para, de repente, desaparecer e re-aparecer,
outro dia, sei lá onde? Não foi assim que os Tupi9 chegaram a costa
brasileira, empuxando is Tapuya para os certões?

O CARIBE, FAMÍLIAS LINGÜÍSTICAS E CANIBAIS

Admitimos, inicialmente, que a complexa semântica do termo


“caribe” (carib, caribes, caribenhos) se presta a confusões. Pois, há uma
desconcertante “homonímia” (isto é: “identidade de nome”) entre (1º)
certa região geográfica que, desde o século XVII, é chamada de “(mar)
caribe”; há (2º) uma ampla fração de habitantes nativos daquela região
que, ainda em 1492 (isto é: quase quarto anos antes do seu primeiro
contato direto com eles), Cristóvão Colombo identificou (no famoso
“diário de bordo” da sua primeira “viajem”) como “canibas” (Amódio,
s/d; Hulm, 1986, Cap.I), e que, nos documentos hispânicos do século
XVI e XVII, acabam genericamente tachados de “caribes”, - em oposição
direta a outros habitantes indígenas da mesma região, com igual
generalidade, identificados como “aruak” (Sauer, 1966; Boucher 1992).

Há também (3º) um povo indígena, de autodenominação


“Karinha” (Whitehead 1988; Civrieux 1976) que, na atualidade, vive
espalhado do oriente venezuelano, até o Suriname (e ainda o Amapá,
onde são conhecidos como “os Galibi”), mas que, no passado, ocupou
espaços ainda mais extensos, e que certa literatura antropológica chama
(os verdadeiros) “caribes”, mesmo que eles não são descendentes dos
“canibas” de Colombo ou dos “caribes” das ilhas (menores) do mar
caribe, dos autores hispânicos (e outros) do século XVI e XVII.

8 Trata-se, sem dúvida de uma pergunta, digamos, “ingênua”. Mas, já nos topamos com ela, varias
vezes, no dia-a-dia de nosso trabalho como professor de antropologia na UFRR, e. estamos convencidos
de que a “visão” (ou falta de informação) que nela se expressa, não é confinada a iniciantes em
“ciências sociais”.
9 Desafortunadamente, este não é o espaço para aprofundar a possível relação do mito da origem
caribenha dos Macuxi com aquele, mais antigo (corrente na época de um Stavenhagen e o inicio do
IHGB), que indicava também os Tuipi-Guarani como “oriundos do caribe” (vide: Noelli e Ferreira 2007;
- e Stavenhagen nem tinha um pirata inglês, ou naturalista alemão, para justificar a tal especulação)!
Finalmente (4º), há ainda (e sobretudo) a já mencionada família
lingüística, da qual tanto os Karinha como os Macuxi fazem parte,
também chamada de “caribe” (ou “carib”, em inglês), mesmo que nem
todos que, no século XVI e XVII, aparecem como “caribes” nas nossas
fontes históricas, falavam mesmo uma língua desta “família”, e a ampla
maioria das línguas desta família é, na atualidade, falada por povos
indígenas, vivendo bem distantes do (mar) “caribe” (Basso, Ed., 1977). -
Só que nenhuma das “conclusões” que se poderia tirar desta
homonímia, se justifica.

Para começar: a língua dos Macuxi e mesmo “da família lingüística


caribe”; ou seja: os Macuxi, como também os Taurepang/Pemon, os
Ingaricó/Akawaio e Patamona, os Waiwai, Waimiri-Atroari e Yekuana
(para somente mencionar povos falando línguas da “família”,
atualmente presentes em Roraima), falam uma língua, “geneticamente”
relacionada as línguas faladas, por exemplo, pelos Yukpa (que habitam a
fronteira norte entre a Venezuela e a Colômbia), os Carijona (do sudeste
da Colômbia), os Panare (no vale do Orenoco), os Txicão e Arara do
baixo Xingu, os Nahukwa e Bakairi do alto Xingu (e além), assim como
os Trio e tantos outros, no interior da Guiana ocidental (Durbin 1977).
Mas, nem por isso, os Macuxi (ou qualquer outro do povos da família)
“são”, ou “se originaram” necessariamente “no (mar) caribe”! Mas,
então: por que as línguas destes povos são chamadas de (a família
lingüística) “caribe”?.

A resposta é mesmo “histórica”, mas não no sentido que muitos


parecem imaginar! Só que, antes de respondê-la, é ainda preciso
esclarecer, o que é, mesmo, uma “família lingüística!

Sabe-se (aliás: há mais de dois séculos já) que línguas “vivas”, isto
é, línguas ainda faladas cotidianamente pelos integrantes de um (ou
vários) povo(s), sofrem constantes “mudanças”, tanto no seu
vocabulário (empréstimo de termos, frequentemente de línguas,
pertencentes a outras “famílias10”) como, sobretudo, na sua “fonética”;

10 Basta lembrar, que termos, originalmente da língua inglesa, como “computador”, ou “down-load”,
fazem parte da língua portuguesa, somente há alguns poucos anos e que ainda outros termos dela,
como “hinterland”, “judô” ou “almoxarifado” foram “emprestadas” do alemão, japonês e
árabe, respetivamente.
isto é: a maneira de falantes de uma língua em regiões geograficamente
distintas, de “pronunciar” (e distinguir) os consoantes e vogais,
constitutivos dela (os assim chamados: fonemas). Tais mudanças são
involuntárias e (por isso!) incontroláveis, e - pelo geral - eles ocorrem
sem que os próprios falantes da língua os percebessem. Porem, estas
mudanças “fazem” com que, com o passar do tempo, a língua
(inicialmente “comum”) de integrantes de dois ou mais “subgrupos” de
um povo, geograficamente distantes, um do(s) outro(s), “se divida”,
inicialmente em (dois ou mais) dialetos, e - como o processo de
diferenciação fonética, lexical e (em menor grau, também) gramatical
nunca para - afinal, em línguas “novas”, mutuamente ininteligíveis.
Segundo os especialistas nesta matéria: é desta maneira que uma única
língua (língua-mãe) pode dar origem a dois ou mais (e, ao longo dos
milênios, as vezes a dúzias de) línguas distintas que – por esta ligação
“genética” (isto é: “de origem”) entre eles, são classificadas como
integrantes da uma só “família lingüística”. Segundo estes mesmo
especialistas, o tempo necessário para que alguma língua, falada por
grupos locais distintas, se transforme em duas ou mais línguas (novas!),
mutuamente ininteligíveis (isto é: no núcleo inicial de toda uma
“família” de línguas distintas), é – mais ou menos - mil anos!

Em alguns casos, a relação “genética” (isto é: de origem comum)


entre duas ou mais línguas, na atualidade, plenamente ininteligíveis
mutuamente, é de fácil reconhecimento, até para laicos em “lingüística
comparativa”. Isto é o caso, por exemplo, na família de línguas “latinas”,
como o português, o francês, o italiano e o romano atual (em realidade,
trata-se meramente de uma sub-familia, de uma família lingüística
muito mais ampla: a “indo-germánica”), ou também no caso das línguas
(“germânicas”) faladas pelos atuais alemães, holandeses,
dinamarqueses e suecos. Nestes casos, basta comparar palvras do
mesmo significado (por exemplo: “pai”, “dedo”, “casa”, “amor”), para
se dar conta da sua “origem comum11”. Porem, em outros casos, somente
os especialistas em “lingüística comparativa” estão capaz de mostrar a
origem comum de línguas de mesma “família lingüística12”.

11 Para uma divertida introdução a matéria, vide: H. Walter, 1997.


12 Por exemplo, quem já escutou algum russo, grego, inglês falar, jamais suspeitaria que as línguas
deles pertencem todas a mesma “família lingüística” (a já mencionada: “indo-germânica”) do
português. Isto, porque esta família começou a “se diferenciar” internamente, num passado
extremamente remoto; minimamente uns seis mil anos atrás.
Mas, seja isso como for. Fato é que, na atualidade, a lingüística
comparativa já mostrou que a (quase) totalidade dos milhares de línguas
ainda faldas neste planeta (e muitas daquelas que já desapareceram),
pertencem a meramente umas tantas dúzias de “famílias” (algumas das
quais com centenas de línguas distintas), e até existem trabalhos bem
argumentados que reduzem este total a meramente uma dúzia de
“supra-famílias” (Greenberg 1959, 1987; Swadesh, 1958). Uma destas
propostas junta, por exemplo, todas as línguas autóctones da
América do Sul em uma única “supra-familia”, e o total das línguas
nativas de todo o continente em três, duas das quais também presentes
no continente asiático13.

Ora, o que realmente importa para nós é que, segundo a lingüística


comparativa atual, todas as línguas da “família lingüística caribe” são –
inquestionávelmente - “descendentes” de uma única língua (chamada
“proto-carib”) que algum povo indígena falou, provavelmente, há mais
de três mil anos. Isto, por certo, não significa necessariamente que todos
os integrantes de povos indígenas que, na atualidade, falam alguma
língua desta “família”, são obrigatoriamente também descendentes “bio-
genéticos” daqueles homens e mulheres que, num passado remoto,
falavam o “proto-carib14”. Porém, neste case específico, as relações
lingüísticas são tomadas pelos especialistas, como forte indicador de
relações também “genéticas” (no sentido biológico) entre eles.

O relacionamento “genético” entre as línguas da família “caribe”


(inicialmente restrita à membros da família, da bacia do rio Orenoco) foi
inicialmente descoberta pelo missionário jesuíta, Filippo Salvadores
Gilij (1955; original: 1780-84), quem também chamou, por primeira vez
os “Karinha” verdadeiros “Caribes”. No inicio do século XVIII, a
descoberta de Gilij foi popularizada entre os linguístas europeus da sua

13 A “maior” família lingüística das terras baixas da América do Sul (em termos de línguas integrantes
e de extensão geográfica) é a família lingüística “aruak”. Línguas desta família são faladas ainda do sul
da Florida até o norte da Argentina, e das ladeiras orientais dos Andes até Amapá. A segunda é a família
lingüística “tupi-guarani”, com poucas línguas ao norte do rio Amazonas e particularmente vigente na
costa e o sul do Brasil até (inclusive) o Paraguai. Outras famílias importantes (embora de menor
“extensão”) são: a família “caribe”, a família lingüística “pano”, e a família “tucano”. (Rodrigues, 1988)
14 Afinal: poucos daqueles que, na atualidade, falam o português são mesmo descendentes (“tatra-
tratra-etc.-netos”) daqueles “ladinos” (romanos) que, 2000 anos atrás, conquistaram o
que atualmente é o Portugal, mesmo que todos eles (juntos com todos os espanhóis, franceses, italianos e
romanos, entre outros) falam uma língua, cuja “língua-mãe” foi efetivamente, a língua destes
“conquistadores” (o “latim”).
época pelo naturalista alemã, Philip von Martius, que ainda incluiu
nesta “família” varias línguas da Amazônia que Gilij ainda
desconheceu. Mas, foi somente no inicio do século passada que toda a
extensão atual da família lingüística foi finalmente (re)-conhecida.

Ora, tanto Gilij como von Martius consideravam (ainda) os índios


das Antilhas menores, aqueles que, no seu diário de 1492, Cristóvão
Colombo chamou de “canibas” e que, nas nossas fontes posteriores são
denominadas os “caribes das ilhas”, falantes de outra língua da “família
caribe”. Em realidade, principalmente Gilij se mostra convencido de que
estes “caribes das ilhas” faziam mesmo parte e parcela dos “verdadeiros
caribes”, isto é: dos Karinha. Mais ainda, foi porque considerava as
demais línguas “parecidas” como, de alguma maneira “derivadas”
daquela dos “verdadeiros caribes” (os Karinha) que Gilij chamou todas
elas de “línguas caribe”, diferenciando-as, de tal maneira, de outro
conjunto de línguas do Orenoco que chamou de “aruak” e ainda um
terceiro grupo que já sabia que não eram nem “aruak” e nem “caribe”. Só
que estudos posteriores (realizados acima de vocabulários do século
XVII, colecionados por missionários franceses, entre sobreviventes dos
“caribes das ilhas”) mostraram (paradoxalmente) que os habitantes
nativos das ilhas menores do mar caribe (deste as ilhas de “Trinidade” e
“Tobago”, no sul, até Puerto Rico, ao norte) não falavam qualquer língua
da família lingüística “caribe”, mas, uma língua da família “aruak”
(Boucher, 1992, p.2); embora, “com fortes influências” da língua dos
“Karinha”, seus vizinhos ao sul, em “terra firme”.

Esta descoberta resulta menos surpreendente, tomando em conta


o fato de que, em realidade, a distinção no diário de Colombo entre, por
um lado, os “Taino/(Aruak)” das Antilhas majores (Cuba e Espanhola)
e os “Canibas/(Caribes)” das Antilhas menores (diferencia “étnica” da
qual Colombo foi informado, em Cuba, dos próprios “Taino”) não se
referia (em absoluto), a qualquer diferencia lingüística (afinal, o capitão
genovês se topou com o primeiro “caniba/carib” somente na sua
segunda viagem às Américas), mas, a uma oposição – digamos – “de
temperamento” (comportamental, isto é: cultural) de suma importância
para o seu projeto colonial. Pois, enquanto Colombo encontrou os Taino
(inicialmente) das Bermudas e, posteriormente, de Cuba e Santo
Domingo, sumamente pacíficos e hospedeiros, o que estes mesmos
Taino lhe informaram sobre os “Canibas”, habitantes de algumas ilhas
longínquas ao sul, foi que estes fossem homens extremamente
agressivos, ao ponto de realizar constantes incursões no território
taino, com a única finalidade de satisfazer sua insaciável “fome”
por carne humana15.

Uma vez firmemente estabelecida no imaginário europeu, em


conseqüência da publicação e imediata tradução a quase todas as
línguas européias das cartas de Colombo, anunciando a sua espetacular
“descoberta”, a oposição constatada pelo capitão genovês entre “aruak”
(pacíficos) e “caribes” (ferozes canibais) se alastra, por dois século, nas
nossas fontes da descoberta e conquista das Américas. Principalmente
ao longo das primeiras décadas após 1492, povos indígenas
recentemente contatadas, que recebem os seus “descobridores”
pacificamente são chamados “aruak”, enquanto aqueles resistem
(ativamente ou passivamente) ao contato são coletivamente tachados de
“caribes” e canibais; - seja o que for a “língua” falada por uns ou outros16.
De toda maneira, até bem entrado já o século XVIII, os “caribes das ilhas”
constituíam mesmo o protótipo de qualquer povo deveras “caribe”
(selvagem!) no “imaginário antropológico” europeu.

Ora, os “Karinha” (os “verdadeiros” Caribes de Gilij!), povo


indígena que, no século XVI, dominavam uma vasta região que
atravessava o médio e baixo rio Orenoco e se estendia da costa oriental
de Venezuela e Trinidade, até a atual Suriname, acabaram bem cedo
tachados também de “caribes” (e canibais!), não tanto por atacar os
espanhóis (afinal, o território da ampla maioria deles ficou distante das
rotas – ainda basicamente marítimas, naquela época - percorridas por
estes, mas, porque alguns “aruak” da costa norte de Venezuela e, de 1640
em adiante também, outros “aruaques” do médio Orenoco (após a
chegada lá, dos primeiros espanhóis, vindos das alturas dos Andes, da
longínqua Colômbia), desde os seus primeiros contatos com os

15 Aliás, o termo “canibal” se espalhou em todas as línguas européias, do século XVI em diante,
justamente em base da noticia dada por Colombo dos hábitos antropofágicos dos “Canibas”, do longínquo “mar
caribe”! (Amódio s/d)
16 Do ponto de vista é até surpreendente, que muitos dos povos que, de tal maneira, acabaram identificados como
“aruak”, realmente falavam línguas desta família lingüística, e que muitos “caribes”, realmente falavam línguas
que, posteriormente, foram identificadas como da família lingüística caribe. Parece que, alem da diferencia
lingüística, havia ainda consideráveis diferencias culturais entre os falantes de línguas de uma e outra “família”,
diferenças que só recentemente, a antropologia está re-descobrindo.
europeus, não se cansaram de se queixar de “vizinhos” do interior,
altamente agressivos e – é claro - “canibais”.

Mas, o fato que, até hoje, alguns historiadores e antropólogos insistem


ainda em seguir Gilij em chamar os Karinha de verdadeiros “caribes”, e
até iguala-los, as vezes, ainda, aos “caribes das ilhas”, não significa, nem
que os “Karinha” atuais fossem mesmo os “(únicos) sobreviventes” de
todos aqueles povos que nossas fontes dos séculos XVI e XVII
identificam como “caribes“, e menos ainda, que estes Karinha (ou
“caribes verdadeiros”) teriam, em algum momento do seu passado,
habitado as ilhas menores do (mar) caribe17. Igualmente improcedente é
“deduzir” (como fazem alguns; vide Gilij) do fato que os Karinha atuais
falam outra língua da “família lingüística caribe”, que todos os
integrantes desta família lingüística constituíssem meramente tantas
“sub-divisões regionais” deles, ou que todos os povos da família fossem,
de alguma maneira, (culturalmente) “iguais” aos Karinha.
Em realidade, tanto os arqueólogos como os lingüistas nos ensinam que
os Karinha são mesmo “parentes” bem distantes dos demais integrantes
da família, em particular, aqueles que, na atualidade, vivem mais
“perto” deles (como os Akawaio, os Patamona, e também os Macuxi).
De qualquer maneira, constitui mesmo um erro grave ligar a historia dos
Macuxi (ou qualquer outro povo da família lingüística “caribe” do
interior do escudo das Guianas) a esta dos “caribes das ilhas”
ou dos “Karinha”; - mesmo que estes últimos jogaram um papel
importante na história dos Macuxi, principalmente do século XVII em
adiante (Whitehead 1999 e 1999), mas não sobre a sua localização,
passada ou atual.

A FUGA

A história dos “caribes das ilhas” já foi amplamente documentada


e analisada por inúmeros autores. Nenhum deles jamais encontrou
qualquer indício de alguma “fuga em massa” deles das Antilhas
menores para “terra firme” (o continente sul-americano).
17 É verdade que havia incursões esporádicas dos Karinha em Trinidade, Margarita e outras ilhas das
Antilhas menores, e também: que parece ter existido uma aliança de longa data entre os Karinha e os
“caribes das ilhas” (daí a “forte” influencia dos primeiros sobre o vocabulário da língua [aruak!] dos
últimos). Em realidade, tanto os “caribes das ilhas” como os Karinha, eram excelentes navegantes, cujos
guerreiros se deslocaram, com grande facilidade e rapidez, sobre consideráveis distancias, dentro e
fora dos seus respectivos territórios, e até em alto mar, para atacar ou comercializar com outros povos.
É verdade que os indígenas “desapareceram” (a maioria)
daquelas ilhas, ao longo de pouco mais de quatro décadas, após o
começo da sua colonização, na década vinte do século XVII. De algumas
das ilhas, eles foram simplesmente expulsas, pelos plantadores
(ingleses, franceses e holandeses) de tabaco e, posteriormente, cana que
se apoderaram das suas terras, em outras ilhas, eles diminuíram em
número, em conseqüência de sangrentas guerras que estes
colonizadores travaram contra eles, particularmente nas décadas 50 e 60
do século XVII18. Mas a principal causa do seu (quase) desaparecimento
das Antilhas, ainda na segunda metade do século XVII, foram, sem
dúvidas, as epidemias sucessivas (da gripe à febre amarela, da malária a
dengue), introduzidas no meio deles, pelos donos europeus das
plantações e seus escravos africanos; principalmente os últimos, com os
quais os “caribes das ilhas” se misturaram a tal ponto que, afinal,
restaram (quase) somente “carib noire” (caribes negros) 19.

É também verdade que há autores (espanhóis, mas, sobretudo,


ingleses, franceses e holandeses do século XVII) que, tentando explicar a
(quase) extinção deste povo em pouco mais de meio século, alegaram
que “muitos” deles teriam “fugido” das ilhas20! Só que, até hoje, falta
qualquer indicio científico (independente das afirmações destes autores)
de qualquer fuga em massa deste “povo” das suas ilhas nativas.

Não duvidamos que alguns deles, famílias e até grupos locais


inteiros, particularmente das ilhas dos Antilhas menores mais próximas
ao continente sul-americano, se deslocaram mesmo para algumas partes
de “terra firme”; principalmente, para escapar – temporariamente ou
“para sempre” - dos caçadores espanhóis de escravos (para as minas de
ouro de Santo Domingo, e/ou para as bancas de perolas da ilha
Margarita) que, da segunda década do século XVI em adiante,

18 Para uma boa antologia das principais fontes (espanhóis, ingleses e franceses) sobre a história dos
caribes das ilhas, de 1492 (carta de Colombo), até o inicio do século XIX, vide Hulm e Whitehead, 1992.
19 Nunca havia muitos “caribes das ilhas”. As estimativas mais confiáveis do seu numero total, no
inicio do século XVI (quando este número já tinha começado a diminuir, em conseqüência do
escravismo espanhol e, sobretudo, em conseqüência de enfermidades que os caçadores espanhóis de
escravos deixaram entre eles), não passa de uns 15 mil (Boucher, 1992).
20 Mas, é importante notar que a maioria das fontes que atribuem o (quase) desaparecimento
dos “caribes das ilhas” a migração (fuga) para Terra Firme datam do século XVIII, quando mais de 90%
dos “caribes” que restavam já eram “caribes negros”. Aliás, são estes “caribes negros” que, no século
XIX, os ingleses deportaram para Belize, os únicos que ainda hoje falam a língua (aruak) dos
“caribes das ilhas”.
assaltaram as ilhas. Afinal, os documentos dos séculos XVI e XVII
confirmem que, durante todo este tempo, havia um constante troca de
pessoas (genros, escravos), bens (canoas, parafernália) e idéias
(palavras) entre as ilhas e a costa norte do subcontinente, até pontos tão
distantes como o golfo de Venezuela e a Costa Selvagem, gerenciada
tanto pelos caribes das ilhas como os Karinha.

Mas, nas épocas melhor documentadas, a reação costumeira dos


caribes das ilhas nunca foi a “fuga” para terras distantes, mas, a retirada
tática ao interior, e as partes orientais das suas ilhas, expostas aos ventos
fortes do Atlântico e, por isso, pouco atrativas para os europeus.
Além do mais, perfeitamente adaptados ao seu ambiente marítimo (ilhas
pequenas, de origem vulcânica, terras fértis, pesca em alto-mar ou
“lagunas”, coleta de mariscos, construtores de canoas aptas para
excursões bélicas a longa distancia em alto-mar etc.) é altamente
improvável que estes “caribes das ilhas” teriam trocado a costa do mar
pelo interior do subcontinente sul-americano, principalmente por terras
afastadas também dos grandes rios.

Mas, o principal problema do nosso mito da origem dos Macuxi no


(mar) caribe e da sua fuga/migração em direção sul, via o vale do rio
Orenoco para as alturas da região circum-Roraime é de cunho
lingüística. Como no momento da “descoberta” as ilhas menores do mar
caribe foram ocupadas por falantes de um língua aruak, os Macuxi
dificilmente se originaram aí.

Ora, havia (e há ainda) falantes de línguas do tronco “caribe”,


perto da costa nor-oriental da atual Venezuela, e na bacia do Orenoco.
Será então, que os Macuxi, embora não do (mar) caribe, saíram daquela
região para para migrar (ou fugir, pouco importa) até as terras que
atualmente ocupam? Novamente, na há nenhuma “evidencia” direta
(documentos, tradições) confirmando tal hipótese (além da já citada
especulação de Robert Hermann Schomburgk).

Mas, a ausência de provas jamais falsifica qualquer tese (embora as


torne pouco provável). Só que, em nosso caso específico, existe uma
ampla gama de “fatos” (arqueológicos, etnológicos e – novamente –
sobretudo lingüísticos) que tornam tal tese não só “pouco provável”,
mas: plenamente ridículo.
A ORIGEM DOS MACUXI: AS EVIDENCIAS

Lingüisticamente (e alias, também culturalmente, mas: disso mais


tarde), os Macuxi fazem parte de um amplo conjunto de povos que,
tecnicamente, todos falam meramente tantos dialetos de uma única
“língua” da família “caribe”. Por aussencia de um termo melhor,
chamarei esta língua única de: lingua “Pemon/Kapon”! Falam dialetos
desta língua os povos “Pemon” (Taurepang, Pemon e Caramacoto), os
Akawaio (cujos grupos locais em território brasileiro são conhecidos
como Ingarikó), os Patamona e os próprios Macusi. Os falantes desta
língua ocupam, na atualidade (e desde que temos alguma noticia deles), um
extensão ininterrupta de terras, relativamente altas e distantes de rios
facilmente navegáveis, ao redor (circum-) do monte Roraima.
Os diversos dialetos deste língua única se desenvolveram em tempos
relativamente recentes (antes da época das descobertas). Se, pelo tanto, os
Macuxi se originaram mesmo no Caribe (ou, minimamente na norte da
Venezuela ou o vale do Orenoco), os demais povos acima indicados, em
épocas anteriores a descoberta, se originaram aí também, e se os Macuxi
“fugiram” de lá para Roraima, os demais fugiram juntos, para – uma vez
chegados ao centro do escudo da Guiana, se distribuir nitidamente, ao
redor do indicado monte. Mas, veremos o que a lingüística moderna nos
ensina sobre isso.

Como já vimos, o critério técnico (“científico”) de distinção entre


“línguas” e meros “dialetos” de uma lingua é que os integrantes de
grupos falando “dialetos” da mesma “língua” estão ainda capazes de se
comunicarem verbalmente (mesmo que com certa dificuldade), sem
precisar de algum “interprete” ou “tradutor”. Falantes de línguas
distintas (mesmo línguas estreitamente aparentadas), no outro lado, por
definição, não estão (mais) capaz de se entenderem mutuamente20.
Ora, deste o século XIX, vários observadores competentes (entre eles,
ImThurn 1883, p.165) têm notado que os Macuxi têm mesmo pouca ou
nenhum dificuldade, de se comunicarem, principalmente com os seus
vizinhos ao norte, os três grandes subgrupos regionais dos “Pemon”, ao

21 Aliás, é neste sentido que a língua brasileira é outro “dialeto” do português e, como insisto freqüentemente nas
minhas aulas (provocando a ira dos meus alunos!), o próprio português não passa de um dialeto do espanhol, e
vice-versa! É verdade que as distinções fonéticas, lexicais e sintáticas entre o português e o espanhol já tornaram a
comunicação [verbal] entre Portugueses/Brasileiros e os Espanhóis [ou: Mexicanos, Venezuelanos, Argentinos,
etc.] sumamente difícil; mas, nem por isso, realmente impossível!
ponto de que uma das maiores autoridades da etnografia, folklore e
linguística dos Pemon, o Padre Amarellada, confessou certa vez, que era
mesmo incapaz de apontar qualquer diferencia somatológica, étnica ou
glotológica entre estes povos, suficientemente significantes, para
justificar a sua diferenciação em, por um lado, “Pemon”, e pelo outro
lado, “Macuxi”.

Existem, por certo, dificuldades maiores na comunicação verbal


direta entre os Macuxi/Pemon (que, alem do mais, compartilham a auto-
denominação “Pemongong”) e os seus vizinhos orientais, os assim
chamados Akawaio(/Ingaricó) e Patamona (povos que compartilham a
auto-denominação: Kapon). Mas, nem nestes casos, a comunicação é
mesmo totalmente impedida; como, no outro lado ela é definitivamente,
entre o conjunto (lingüístico) dos Macuxi/Pemon (Pemon),
Ingarico/Akawaio e Patamona (Kapon) e os seus “familiares
lingüísticos” mais “próximos” (mas só em termos geográficos!), os
Karinha, por um lado, e os Yekuana ou Mayongong, no outro.

Mas, as diferenciam dialetais entre no interior da “língua


pemon/Kapon” também não são “de ontem”. Se, meramente 400 anos
atrás, os ancestrais dos falantes atuais destes dialetos habitavam outras
partes de América Latina, então, as diferencias lingüísticas começaram a
surgir naquele lugar.

Ora, como nos informam os lingüistas, os Karinha e Yekuana


pertencem a (dois) “subgrupos” da “família lingüística caribe”, bastante
distintas, uma da outra, e também: distintas do subgrupo de línguas da
família a qual pertence a “língua Pemon/Kapon”. As diferencias são
menores no caso dos Yekuana/Mayongong, E maiores, no caso dos
Karinha, o que indica que os ancestrais dos Karinha se separaram
daqueles dos Pemon/Kapon e dos Yekuana/Mayongong, quando estes
últimos ainda “viviam juntos”, e que os ancestrais dos
Yekuana/Mayongong se separaram dos Pemon/Kapon com bastante
anterioridade ao surgimento das primeiras diferenciações no interior
destes últimos. Ora, evidencia arqueológica (Williams, 2003; Cruxent e
Rouse 1961; Tarbel 1985, Zucchi 1985) sugere que os ancestrais dos
Karinha chegaram a “costa selvagem” (dos atuais estados nacionais de
Guyana e Suriname), na primeira metade do 1º milênio depois de Cristo.
Não sabemos ainda de onde eles partiram, mas, não há qualquer dúvida
que eles, já naquele momento, eram “portadores” de uma cultura
(material e ideal) complexa e – em vários aspectos - bastante distinta
daquela dos atuais “Pemon/Kapon”.

Ora, a ampla maioria dos especialistas em linguística


comparativa toma o elevado número de línguas da família lingüística
Carib (principalmente das subdivisões “oriental” dela) no interior do
escudo das Guianas (número no passado ainda maior), assim como a
própria divisão interna desta família lingüística em esta mesma região,
em pelo (minimamente) três “blocos”, ou “sub-familias”, cada uma com
varias línguas, assim como o numero relativo reduzido de línguas da
família fora do escudo da Guiana, como indicadores fortes da origem da
família como um todo, no interior do mesmo escudo! Com toda certeza,
isto vale para aquele “ramal” da família que os lingüistas chamam
de os “caribes centrais”, e ao qual pertencem, entre outros, os diversos
dialetos da língua dos Kapon/Pemon (mas nem os Yekuana e, menos
ainda, os Karinha).

Os “caribes centrais” constituem um de, em total, quatro grandes


subdivisões desta família lingüística. Na atualidade, falantes de línguas
desta subdivisão habitam a parte central-interior do escudo e, em
tempos não muito remotos (menos do que 2000 anos atrás), as línguas
atuais desta subdivisão começaram a se diferenciar internamente,
inicialmente, numa fração “sul-oriental” (que, na atualidade, abrange as
línguas dos Waimiri-Atroari, Waiwai, dos Trio e Wayana-Aparai, na
fronteira entre o Brasil, o Suriname, e da Guiana francesa) e outro (“nor-
ocidental”), do qual o Pemon/Kapon é, atualmente, o representante
principal. Se esta primeira diferenciação lingüística envolveu mesmo
alguma “migração”, o mais provável parece que foi uma migração dos
ancestrais dos Pemon-Kapon em direção oeste: do interior central e oriental
do escudo, ao longo do divisor de águas entre as bacias do rio Amazonas
em direção oeste e noroeste. As diferencias dialetais atuais, por outra
lado, no interior da línga “Pemon/Kapon”, dificilmente se iniciou há
mais de uns 800 anos, e a diferenciação entre os dialetos dos Pemon e
Macuxi (como também aquela entre os dialetos dos Akawaio/Ingarikó e
Patamona), com certeza, somente começou mais tarde22.

Pelo geral, o processo de diferenciação dialetal no interior de


qualquer língua implica “distanciamento geográfico” (isolamento
relativo) entre os ancestrais dos seus falantes atuais. Ora, como, na
atualidade (e desde o inicio dos tempos em que temos documentações
indubitáveis ao respeito) os principais “dialetos” no interior da língua
Pemon/Kapon (o Macusi, o Pemon, o Akawaio etc.) se encontram
convenientemente distanciados, uns dos outros, por imponentes (mas
não insuperáveis) barreiras geográficas, torna-se mais do que
meramente “provável” que as diferencias dialetais entre (inicialmente)
os Pemon/Macuxi, por um lado, e os Akawaio/Patamona, no outro,
assim como – posteriormente - as diferencias no interior destes dois
grupos de dialetos, se desenvolveram mesmo in situ, isto é: posterior a, e
em conseqüência da ocupação por parte destes povos da região circum-
Roraima, que ocupam ainda hoje23.

ECOLOGIA CULTURAL DO BLOCO PEMON/KAPON

Finalmente, a origem local dos povos da “lingua Pemon/Kapon”


em conseqüência da sua ocupação de diversas partes da região “circum-
Roraima”, ainda em tempos pré-históricos está também fortemente
sugerida pela reduzida variabilidade (até invariabilidade) da cultura
deles e as profundas raízes dela na “ambiente” que habitam.

A identidade cultural dos Pemon/Kapon se documente – entre


outros - num imaginário cultural compartilhado, centrado no “Monte
Roraima”, na ênfase comum em todos estes povos, no cultivo da
mandioca “brava” (e as pimentas); pela sua arquitetura peculiar das suas
“malocas”, e a decoração corporal (principalmente, tatuagens). Ela é
confirmada pela ausência de qualquer mecanismo efetivo de integração
sociopolítica “tradicional”, acima dos (numericamente) ínfimos grupos
locais (preferencialmente endógamos) que, mesmo assim, participam
em redes regionais de trocas materiais e imateriais de amplo alcance,

22 Sobre o grau de diferenciação lingüística entre os Ingarikó, Akawaio e Patamono, respectivamente,


anota, por exemplo, o lingüista Ernest Migliazza (1980, p.121, tradução do inglês: E.F.): “Akawaio,
Ingarikó e Patamona são os nomes de três pequenos grupos geograficamente distintos, mas, falando
virtualmente a mesma lingua, chamado aqui de “Kapon”. Tornou se evidente, al longo de nossa
pesquisa (survey!) de 1969 que há somente insignificantes variações entre [a lingua dos] Akawaio e [a
língua dos] Patamona, e que Ingarikó e meramente um nome Macuxi local para [os] Akawaio e
Patamona. Não encontramos nenhuma diferencia lingüística nos faltantes [destas línguas] que
mereceriam chama-las ´línguas´ distintas.”
23 Esta hipótese é confirmada pelos resultados recentes da (ainda rara) arqueologia na região,
resultados que, desafortunadamente, temos como discutir neste espaço (mas: vide Frank em prelo),
assim como pela inegável identidade cultural básica, compartilhada por todos os povos envolvidos.
fundamentadas numa divisão de trabalho (econômico e ritual) “artificial”
(que envolvia, até há pouco, canoas, pedras verdes, zarabatanas e
curare, redes, canções e “magias”), pelo interior das quais, em tempos
coloniais, circulavam ainda “escravos” [“poico”], armas, panos, e
moedas de origem ocidental (Whitehead, 1988).

Enfim, há um (único e muito particular) estilo (cultural) de vida,


compartilhado por todos os povos do conjunto Pemon/Kapon, - e até
além destes (Riviére, 1984), fundamentado numa “visão do mundo” que
justifica, no mesmo instante, o relacionamento específico e particular
dos seus grupos locais com os “recursos, naturais” e “simbólicos” que o
seu meio ambiente oferece.

Esta cultura única (e particularmente “circum-roraimense”), não


tem nada de “importada” (de onde for). Ao contrario, ela revela uma
ligação íntima (e de longa data!) com o espaço geográfico único, ocupado
por estes povos; ligação que encontra a sua expressão mais clara numa
“mitologia de origem”, tanto da paisagem, como do “estilo de vida” dos
próprios Pemon/Kapon, centrada no topos de dois irmãos, filhos do sol
(Macunaíma e Insiquiran), assim como – geograficamente - no “monte
Roraima”, majestoso toqueiro da “árvore da vida” (“wazacá”) que
Macunaíma derrubou.

Esta identificação intima (adaptação) dos Pemon/Kapon com o


espaço atual de vida deles, com certeza, não se desenvolveu “no caribe”; e
nem foi criado do nada em meramente 200 anos, após a sua suposta
“chegada” tardia na regiã.

Os Macuxi de nosso mito têm nada disso. Eles são simplesmente


uns índios que vem de algum lugar e, pressionado por algo ou alguém,
vão para outro; - pois, “sabem” viver em todos e não precisam nada em
particular. Ilhas do caribe, vale do Orenoco, terras altas da região
circum-Roraima: tanto faz! Os Macuxi de nosso mito são nômades e, eco-
culturalmente, por completo indeterminados. Eles não constroem casas
específicas (com materiais que há em alguns lugares, mas não em
outras); eles não têm técnicas de produção, nem conhecimentos e
imaginário (que “funcionam” em algum lugar e não em outro). Eles são
simplesmente uns homens nus, sem identidade e “raízes”.
Mas, não é justamente assim que “todo mundo” pensam que “os
índios” (em geral) são mesmo? Será, então essa a “visão pop” (histórico-
antropológico) que fez (e segue fazendo) com que tão poucos jamais
suspeitaram desta “estória” sem qualquer “fundamento”?

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NOSSA TERRA:
AS RELAÇÕES ETNOAMBIENTAIS
DOS ÍNDIOS WAPISHANA NA
TERRA INDÍGENA DA
MALACACHETA/RORAIMA.

CARLOS ALBERTO MARINHO CIRINO1


ERWIN H. FRANK2
OLENDINA DE CARVALHO CAVALCANTE3

RESUMO: Neste trabalho, apresentaremos, sucintamente, o “Diagnóstico Etnoambiental


da Terra Indígena da Malacacheta”, projeto de pesquisa etnocientífica-multidisciplinar
que, recentemente, foi realizado com muito êxito pelo “Núcleo Histórico Socioambiental”
(NUHSA) da Universidade Federal de Roraima (UFRR), em estreita colaboração com os
habitantes indígenas da indicada reserva e como passo indispensável para a futura
elaboração e implementação de um “Plano de Manejo” da indicada Terra Indígena.
Esperamos poder repetir o diagnóstico em outras TIs de Roraima das quais nenhuma
dispõe, até o momento, de qualquer tipo de planejamento ambiental.

PALAVRAS-CHAVE: Malacacheta, diagnóstico etnoambienal, TI Serra da Lua,


Waspichana, Terra Indígena.

A TI-MALACACHETA:

Embora a existência de uma “maloca” (aldeia) Wapishana do


mesmo nome seja documentada na região, deste as últimas décadas do
século XIX, a então TI da Malacacheta foi “identificada”, oficialmente
pelo órgão federal responsável (Fundação Nacional do Índio – Funai)
como “terra indígena”, somente em 1977, delimitada em 21 de maio de
1982 e homologada no dia 05 de janeiro de 1996. A TI é registrada no

1 Professor adjunto do Departamento de Antropologia da UFRR. Doutor em Antropologia


pela PUC/SP.
2 Professor adjunto do Departamento de Antropologia da UFRR. Doutor em Etnologia pela
Universidade de Bonn/Alemanha.
3 Professora assistente do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Roraima
(UFRR). Mestre em Antropologia pela Universidade da Flórida.
Cartório de Registro de Imóveis do Município de Bonfim/RR4, conforme
matrícula n° 17.305, livro 2/RG, fls. 1 e 2, em 19 de janeiro de 1998
(ISA, 2001:295)5.

Junto com duas outras TIs (Canauanim e Tabalascada), a TI-


Malacacheta se encontra ao norte da “Serra da Lua6”, numa montanha
rochosa que se levanta no centro de uma ampla savana, delimitada ao
Oeste pelo rio Branco e ao norte pelo rio Tacutu.

Trata-se da área central do território tradicional dos Wapishana,


único povo de língua Aruak em Roraima e, desde o início do século
XVIII (Farage 1991), documentado como ocupantes das partes baixas
(sul) de extensas savanas que, desde os rios Parime e Amajari, afluentes

4 Com a criação do Município de Cantá em 17 de outubro de 1995. lei estadual nº 99, a área da
TI ficou incorporada à jurisdição administrativa do novo município. Anteriormente, pertencia ao
Município de Bonfim.
5 É preciso destacar que a demarcação da TI-Malacacheta foi um processo bastante sui generis. Desde o
século XVIII, parte da “fazenda São José”, uma das três “fazendas reais” instaladas para criação de
gado, nas savanas de Roraima no final daquele século e, posteriormente (século XIX) ilegalmente
“privatizado” por um poderoso empresário do caucho (Sebastião Diniz), no início do século XX.
O latifundiário e o descendente de Sebastião, Sizenando Diniz, se apoderam da aldeia, dos índios e das
terras circundantes. Alegando que somente desta maneira poderia proteger os indígenas de outros
fazendeiros e desejando se apossar das terras deles, ele solicita e recebe permissão para deslocar seu
gado para as imediações da aldeia, afora a construção de uma casa nas redondezas (Cirino, 2000). Após
a sua morte, a posse da – agora – “fazenda” da Malacacheta passou a esposa de Sizenando que, em 1962
requereu junto ao Juiz de Direito em exercício na Comarca de Boa Vista, “título e conservação” dos seus
direitos, mesmo que, seis anos antes, ela já tinha vendido o imóvel para um grupo de 10 índios
Wapishana, moradores da própria aldeia. Cirino (op.cit, p.168) destaca o fato: “... a transição de compra
e venda tinha como outorgante vendedora a viúva Ermelinda do Nascimento Pinto e, como outorgados
compradores, um grupo de 10 índios Wapishana da própria maloca da Malacacheta”. Quando então,
em 1977, a Funai “identificou” a Malacacheta como “terra indígena”, ela se deparou com um impasse
“dos seus pares serem os verdadeiros posseiros” da área em questão (p.169). Dizem os Wapishanas que
a Funai teria sugerido que os 10 índios, “donos” da área, passassem a sua posse para o órgão tutelar
para que esse, se seguida, demarcasse a área em favor da comunidade da Malacacheta”, o que
realmente veio acontecer.
6 Farage (1991) anota que a demarcação das TI's vizinhas em TI's separadas constituiu uma lastimável
injustiça em razão de terem sido isoladas aldeias vizinhas, onde o território da caça, pesca e circulação
eram tradicionalmente comuns. Acrescenta a autora que o “mais grave é o fato das ilhas liberaram
terras para a instalação de fazendas que vem sistemanticamente invadindo os limites já estreitos de tais
áreas” (p.1964).
7 Segundo o Centro Eucomênico de Documentação e Informação (CEDI, 1991), a demarcação das três
terras em áreas descontínuas (ilhas) teria sido uma proposta da própria Funai.
Segundo informações datada de 19787 (Lobo D'almada, 1861), até o final do século XVIII, os
Wapishanas eram considerados com o maoir grupo indígena do Rio Branco. Na atualidade, eles
representam o segundo maior grupo do estado de Roraima. Os Wapishanas atuais se concentram na
região da Serra da Lua e o vizinho (alto) vale do rio Tacutú (fronteira com a Guiana), mas é possível
localizá-los também nas regiões do Amajari, Baixo Contingo e do Surumu. Do lado da República
Cooperativa da Guiana, os Wapishanas se concentram nas savanas do rio Rupununi (Cirino, 2000).
setentrionais do rio Urariquera que, junto com o Tacutu, forma o rio
Branco, se estendem em direção sudeste, até além da fronteira nacional
entre o Brasil e a Guiana (Savanas do Rupununi7). A região da Serra da
Lua se encontra diretamente ao Leste da capital de Roraima, Boa Vista,
com a qual a TI se encontra conectada via uma estrada, uma parte
asfaltada; outra carroçável, cerca de uns 40 km de extensão.

A TI-Malacacheta tem forma mais ou menos triangular, com um


ângulo agudo nas mesmas ladeiras ao norte da Serra da Lua. Ela é
cortada, a mais ou menos dois terços da sua extensão para o norte, pelo
rio Quitauaú, correndo em direção leste-oeste. Ao sul deste rio, a TI está
coberta por uma densa mata montanhosa, ainda quase intocada na sua
extensão sul. Ao norte do rio, a vegetação predominante é a savana
(semi-estépica), com a exceção de duas estreitas faixas de mata, na
atualidade já extremamente degradada, no extremo nordeste da reserva,
ao redor de duas outras montanhas baixas, áreas quase que exclusivas
de produção tradicional da reserva8.

O uso extensivo destas faixas de mata constitui somente o mais


sério dos problemas ambientais atuais da Malacacheta. Pressionados
pelo crescimento demográfico, os agricultores da Malacacheta8
aumentam as suas áreas em produção e diminuem, progressivamente, o
tempo entre dois períodos produtivos (pousio) na mesma área.
O resultado disso é, por um lado, uma diminuição da produtividade por
hectares, aspectos não percebidos pelos Wapishana, e, por outro lado, a

7 Ver página 39
8 Mesmo que a mesma distância do centro comunitário (a uns 7 a 10 Km), a mata do sul do rio
Quitauaú é pouco aproveitada pelos agricultores Wapishanas, pois ambas as margens deste rio
costumam se tornar pântanos durante a época de chuvas, dificultando a equação da produção das
roças. Os solos ácidos da savana são plenamente inaptos para a agricultura, pelo menos do tipo
tradicional destes indígenas.
9 Em tempos idos, as atividades econômicas dos Wapishanas se concentravam em torno do cultivo das
roças, da pesca, da caça e da fabricação dos instrumentos de trabalho. Eles cultivavam a mandioca,
tabaco, milho, cana de açúcar, banana, batata, jerimum, entre outros. Com a mandioca fabricavam a
farinha e o beiju, alimento diário do grupo. No início do século passado, já escoavam o excedente da
produção da farinha para o mercado de Boa Vista, mas não poderíamos considerar isso como um
comércio regular (Cirino, op.cit., p.77). No momento, os Wapishanas continuam a praticar a caça e a
pesca, mas em pequena escala. A caça é mais uma atividade de lazer e praticada com espingarda.
A pesca é mais intensiva, empregando o arpão e o malhador. Cada unidade familiar mantém uma roça,
onde produzem diversos produtos, o de maior relevância continua sendo a mandioca empregada na
produção da farinha, do beiju e do caxiri. Mas, não obstante as mudanças ocorridas no universo
cultural dos índios Wapishana da aldeia da Malacacheta, estes continuam reafirmando seus códigos
culturais, mesmo que redefinidos.
incipiente invasão (claramente indesejável) das matas ao sul do
Quitauaú, principalmente de uma estrada que marca o limite oriental da
TI, por parte de pais de família Wapischana, em busca de novas terras.

Em vista deste tipo de problemas, não resta dúvida que a TI-


Malacacheta precisa urgentemente de um plano de manejo consciente e
efetivo, para tentar reverter às degradações ambientais já ocorridos
e/ou em andamento, e tentar impedir novas e irreversíveis degradações
ambientais no futuro. Ora, tal Plano de Manejo precisa se fundamentar
num conhecimento amplo e detalhado de um máximo de aspectos
determinantes da área como “ecossistema”. Desde a sua constituição
geofísica, até as intervenções, culturalmente determinadas, que os
Wapischana realizam nela “tradicionalmente” a “lógica” cultural que
justifica e determina o modo concreto destas intervenções. Foi esse o
ponto de saída para o nosso projeto de “Diagnóstico”.

METODOLOGIA:

Acolhemos como metodologia de nossa pesquisa uma versão


adaptada da proposta de Milliken (1998) no trabalho “Levantamento
etnoecológico em reservas indígenas na Amazônia brasileira”. O texto
de Milliken (op.cit.) foi elaborada, especificamente, para fundamentar a
elaboração de projetos de gestão em área indígenas.

O objetivo fundamental da metodologia é “fornecer uma


ferramenta prática e flexível para a investigação da etnoecologia ou
interface étnica/ambiental, em áreas indígenas na Amazônia brasileira”
(p.10). A metodologia permite o levantamento rápido de grande
quantidade de dados relevantes, tanto em escala macro quanto em
escala micro, focalizando as necessidades atuais e futuras da
comunidade, além das opções para a exploração dos recursos
potenciais, objetivando a implementação de políticas voltadas para o
etnodesenvolvimento.

Em outra passagem, o autor afirma que:

...o recurso mais importante suprido por esses levantamentos será


um corpo de informações etnoecológicas básicas em macro-escala
sobre as áreas indígenas estudadas. Isso fornecerá informações
básicas e cruciais para o desenvolvimento de qualquer processo
subseqüente de gestão nessas áreas (...). Com base nesse
conhecimento, será possível fazer recomendações para
investigações posteriores mais aprofundadas, focalizando as
necessidades comunitárias atuais e futuras, as opções para
exploração de recursos de potencial importância, e os meios de
mitigar ou prevenir ameaças ao seu modo de vida relacionada ao
meio ambiente ou aos recursos (p. 10)

A metodologia oferece ainda a oportunidade para coletar


informações detalhadas, focalizando, tanto em oficinas quanto na
pesquisa de campo, situações e demandas específicas das comunidades
indígenas. O resultado desse tipo de levantamento terá grande
relevância para o desenvolvimento de projetos de gestão na área
em estudo, que requerem um amplo conhecimento da etnoecologia
da área indígena.

A nossa pesquisa teve um caráter eminentemente


multidisciplinar e foi avaliada pela comunidade em todas as fazes do
processo de elaboração do diagnóstico. É importante ressaltarmos
algumas propostas nela contida.

Quando Milliken (1998) propõe discutir a idéia de gestão em áreas


indígenas, o faz sugerindo que seria melhor focalizar o debate em torno
da realidade prática das comunidades indígenas que estão passando por
processo de demarcação. Essas comunidades estariam se adaptando a
mudanças que “afetaram tanto o seu meio ambiente como a forma pela
qual produzem” (p. 8). Nestes novos contextos, as comunidades estão
buscando outras fontes de renda para satisfazer novas necessidades,
meios para se adaptar a outros estilos de vida, meios de enfrentar as
ameaças às suas terras e recursos provocados pelos agentes externos.

Em seguida, Milliken enaltece (apud Beauclerk et al.) alguns


objetivos da gestão em áreas indígenas, tais como: promover atividades
que trazem benefícios econômicos em longo prazo para a maioria da
população; emancipar os povos indígenas da tutela e substituir servidão
econômica pela autonomia econômica; dar poder a grupos indígenas,
demonstrando a eles como ganhar controle sobre suas próprias
necessidades comerciais; apoiar o uso racional dos recursos indígenas
sem colocar em risco o meio ambiente; defender a comunidade da
desintegração social por meio do encorajamento de formas comunitárias
de produção e comercialização (1998:8).

O ponto chave da metodologia, acima aventada, é o levantamento


de informações funcionais que sejam úteis para as próprias
comunidades indígenas. As informações deverão ser mantidas em um
nível prático e compreensível, com a mínima referência a teorias e
hipóteses acadêmicas. Todos os resultados deverão ser apresentados de
forma clara e objetiva.

Voltando para nosso projeto, a fase inicial “Diagnóstico


Etnoambiental” previu o levantamento de uma ampla e detalhada
documentação sobre os conhecimentos que a própria comunidade
indígena detém, assim como as características, oportunidades e as
limitações da sua TI, como também os conhecimentos dela no que diz
respeito a própria organização social, sobre a dinâmica cultural e os
limites que esse conhecimento impõe na escolha de alternativas de
manejo dos recursos.

Essa fase da pesquisa foi marcada por uma intensa interação e


cooperação entre equipe técnica da UFRR, formada por oito professores
especialistas em diversas áreas da ciência, alunos bolsistas e a
comunidade em questão. No campo foram levantadas informações
adicionais, tais como: análise de amostragem de solo, água,
mapeamento de diversos recursos naturais, identificação científica de
espécies da fauna e flora, levantamento que envolveu todos os setores
populacionais da TI alvo. Mas, a parte central deste trabalho, constituiu
a realização de três grandes “oficinas temáticas”, com a participação de
toda a comunidade.

As oficinas foram realizadas durante dois dias consecutivos,


sempre nos finais de semana, e de acordo com a
disponibilidade/calendário de atividades da aldeia. As oficinas foram
pensadas com três grandes eixos temáticos: “Nossa terra”; “Nosso
trabalho – nossa vida e “Nossa cultura, organização e história”.

A primeira oficina (“Nossa terra”) teve como meta focalizar


aspectos espaciais das relações etnoambientais na TI Malacacheta.
Centramos nossas discussões em torno das atividades produtivas, da
etnohistória da região, das características morfológicas e climáticas,
da identificação das áreas degradadas, mapeamento da fauna/flora,
matas e savanas. A segunda oficina (“Nosso trabalho – nossa vida”)
abriu um debate sobre a ordem social, sobre as atividades produtivas de
forma mais detalhada e a divisão social do trabalho. A última oficina
(“Nossa cultura, organização e história”), finalmente, estimulou à
construção da história da TI, sua formação, a invasão por posseiros e a
organização política.

As três oficinas temáticas tiveram, como finalidade última,


facilitar a acumulação e sistematização das informações, enquanto
material para a elaboração do nosso diagnóstico etnoambiental.
Convém observar que o trabalho desenvolvido durante as oficinas
estimulou muito à autoconsciência da comunidade, sobretudo
em relação ao meio ambiente (aspecto que deve incentivar práticas
do mesmo tipo em outras comunidades/TIs realizadas pelos
próprios indígenas). Com relação à planificação e realização concreta
dasoficinas: no primeiro dia organizava-se o plano geral do evento com
a comunidade; em seguida, colocava-se em andamentos a sua realização
que, por sua vez, era amplamente documentada. No final, levantávamos
a proposta de formação de grupos de trabalhos temáticos e sessões
plenárias, assim como outras dinâmicas que, por ventura, mostrassem-
se apropriadas.

As oficinas eram acompanhadas de atividades adicionais de


pesquisa que visavam, especialmente, a transformação dos
conhecimentos etnoambientais em dados e linguagem científica.
Buscamos, então, identificar as causas “objetivas” dos problemas
ambientais sem explicação etnocientífica. A metodologia previu ainda a
escolha e treinamento de pessoal da própria comunidade para colaborar
com a equipe técnica.

A nossa equipe multidisciplinar foi composta por duas biólogas,


acompanhadas no levantamento de dados sobre a fauna e flora por
alunas bolsistas do Curso de Biologia; por um pedólogo, acompanhado
na análise dos solos da TI por um aluno bolsista do Curso de Agronomia,
um geólogo acompanhado por uma aluna bolsista do Curso de
Geografia e três Antropólogos, assistidos por um aluno do Curso
de Ciências Sociais10. Três antropólogos coordenaram os trabalhos, e
acompanharam os demais profissionais durante o trabalho de campo.

Todo o levantamento de dados no campo dos membros da equipe


foi sempre acompanhado por membros da comunidade que, por sua
vez, foram escolhidos para tal pelos próprios índios e de acordo com os
conhecimentos tradicionais que detinham em cada uma dessas áreas. A
pesquisa, também foi acompanhada pela Fundação Nacional do Índio –
Funai e pelo Conselho Indígena de Roraima – CIR, entidade que
coordena as comunidades indígenas de Roraima.

A realização do Diagnóstico Etnoambiental na TI Malacacheta só


foi possível em razão do financiamento recebido da “The Nature
Consevancy do Brasil”, organização não governamental que visa
proteger a biodiversidade da Terra, em parceria com o Conselho
Indígena de Roraima – CIR. Tal financiamento possibilitou o custei das
despesas que compunha o orçamento total do projeto, principalmente as
de deslocamento, pagamento de pessoal da comunidade e bolsas de
pesquisas para estudantes da UFRR.

O prazo de realização do projeto foi estimado em um ano, iniciado


em setembro de 2002. Durante todo esse período, elaboramos relatórios
periódicos sobre andamento do projeto e sobre a utilização dos recursos
financeiros, prestações de conta que foram acompanhadas de perto por
todos os envolvidos no projeto. Foram esses, portanto, os contornos
gerais do nosso diagnóstico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa que originou este texto buscou elaborar um


diagnóstico etnoambiental da Terra Indígena da Malacacheta que,
desde início, foi pensado e discutido em conjunto com a comunidade.
A finalidade desse trabalho foi mapear os recursos naturais disponíveis
na TI em termos de fauna, flora, da geomorfologia, da edafologia e
também construir uma etnohistória da Comunidade Malacacheta.
10 A equipe multidisciplinar foi composta pelos seguintes professores da Universidade Federal de
Roraima: Dra. Silvana Túlio Fortes e Msc. Albanita de Jesus Silva (biólogas); Dr. José Augusto Costa
(geógrafo); Dr. José Frutuoso do V. Junior (pedagogo) e pelos antropólogos Dr. Carlos Alberto Marinho
Cirino (coordenador), Dr. Erwin H. Frank e Msc. Olendina C. Cavalcante.
Cabe ressaltar, mais uma vez, que esse mapeamento e construção
foram elaborados a partir do conhecimento tradicional e das
experiências desse grupo. Durante todo o processo de coleta das
informações e das discussões nas oficinas de trabalho, alguns problemas
já ganhavam visibilidade, em decorrência da degradação dos recursos
naturais daquela área.

Uma vez concluído, o diagnóstico (que implica a elaboração de


um relatório técnico final e de um “Atlas da TI-Malacacheta”, como
material didático da escola da reserva), consequentemente, os seus
resultados e implicações serão extensamente discutidos com toda a
comunidade indígena em questão. Em seguida, será tarefa da
comunidade a elaboração de um plano de manejo para a TI. Nisso, o
nosso apoio e os conhecimentos levantados no diagnóstico, nortearão
esse possível plano, mas como qualquer decisão sobre o uso futuro dos
recursos da TI implicará, necessariamente, repercussões sobre o modo
cultural de ser e viver destes indígenas, a decisão final só pode ser deles.

BIBLIOGRAFIA

CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Povos Indígenas no Brasil,


1987/88/89/90. In.: Aconteceu Especial, 1991.

CIRINO, Carlos Alberto. A Boa Nova na Língua Indígena: Contornos da Evangelização


dos Wapischana no Século XX. Tese de doutorado, PUC/SP, 2000.

FARAGE, Nadia. As muralhas dos Sertões: os Povos Indígenas no Rio Branco e a


Colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

FARAGE, Nádia. Terras Indígenas no Lavrado: O impasse continua. In.: Povos Indígenas
no Brasil, 1987, 1988, 1989, 1990. São Paulo, 1991.

INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Biodiversidade na Amazônia brasileira.


São Paulo, 2001.

LOBO D'ALMADA. Manuel da Gama. Descripção relativa ao Rio Branco e seu território
(1797). In.: Revista Trimestral do Instituto Histórico, Geographico e Ethnographico do
Brasil, Tomo XXIV, Rio de Janeiro, 1861.

MILLIKEN, William. Levantamentos etnoecológicos em reservas indígenas na


Amazônia brasileira: uma metodologia. Edinburgh Development Consultants, 1998.
A COLONIZAÇÃO NO RIO BRANCO
E OS ESPAÇOS PROTEGIDOS
RAPOSA SERRA DO SOL E PARQUE
NACIONAL DE CANAIMA

ANA ZULEIDE BARROSO DA SILVA1

RESUMO: No contexto da Amazônia colonial o presente artigo aborda o processo de


ocupação da região do rio Branco e a organização do cenário dos espaços protegidos Terra
Indígena Raposa Serra do Sol e Parque Nacional de Canaima, o valor que estes
representam para as comunidades indígenas que habitam estes espaços protegidos; com
relação aos recursos ambientais versos sustentabilidade em terras indígenas,
especificamente na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e Parque Nacional de Canaima, no
sentido de ajudar a garantir a manutenção de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado para este povo, a partir da valorização e do respeito as suas identidades
culturais. Pois, a diversidade cultural não significa que devam ser preservados valores e
práticas como um fim em si próprios, com cego apego às tradições. Cultura não é um
conjunto congelado de valores e práticas; ela é recriada constantemente na medida em que
os povos questionam, adaptam e redefinem seus valores e práticas às realidades que se
modificam e à troca de idéias. É de suma importância que todas as comunidades tenha
oportunidades expandidas para que ela faça suas próprias escolhas no sentido de definir o
caminho e a velocidade do caminhar, visando sempre à melhoria da qualidade de vida de
todos os seus membros, segundo suas próprias visões.

PALAVRAS-CHAVE: Colonização no rio Branco, Terra Indígena Raposa Serra do Sol,


Parque Nacional de Canaima.

1. INTRODUÇÃO

No presente artigo abordar-se-á o processo de ocupação da região


do rio Branco e o cenário dos espaços protegidos Terra Indígena Raposa
Serra do Sol e Parque Nacional de Canaima, o valor que estes
representam para as comunidades indígenas que habitam estes espaços
protegidos; com relação aos recursos ambientais correlacionados a
sustentabilidade em terras indígenas, especificamente na Terra

1 Professora Assistente II da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Mestre em Ciência da


Computação (UFMG) e Doutoranda do Programa de Doutorado Interinstitucional (Dinter) em
Ciências Sociais e Relações Internacionais promovido pela UnB/FLACSO/UFRR.
Indígena Raposa Serra do Sol e Parque Nacional de Canaima, no sentido
de ajudar a garantir a manutenção de um meio ambiente ecologicamente
equilibrado para este povo, a partir da valorização e do respeito as suas
identidades culturais.

A Amazônia, tanto na parte brasileira quanto na parte


venezuelana, hoje possui uma população ainda rarefeita. Por muito
tempo se pensou que a floresta tropical fosse imprópria à sobrevivência
humana. Os princípios da teoria do determinismo ecológico entendiam
a pobreza de recursos ambientais como entraves ao desenvolvimento
das sociedades indígenas, inviabilizando a concentração e crescimento
populacional. A complexidade cultural somente seria atingida em um
ambiente propício. Os solos são ácidos, lixiviados e frágeis, impróprios à
subsistência humana2. De modo contundente, Anna Roosevelt3
procurou desacreditar essa teoria, estabelecendo uma nova visão da pré-
história amazônica. Várias pesquisas arqueológicas encontraram um
rico patrimônio que revela evidências de uma longa e substancial
seqüência de desenvolvimento indígena na Amazônia.

Isto sugere, ao contrário das interpretações precedentes,


que as terras baixas da Grande Amazônia podem ter sido
ocupadas muito cedo, sendo o lugar de origem de alguns
importantes desenvolvimentos culturais para as Américas
(Roosevelt, 1992. p. 53).

Ao se referir aos espaços fronteiriços, ressalta Cardoso de Oliveira


que “vale considerar, no que diz respeito ao processo identitário, que se
trata de um espaço marcado pela ambigüidade das identidades – um
espaço que, por sua própria natureza, abre-se à manipulação pelas
etnias e nacionalidades em conjunção” (2000:17). Acrescenta Cardoso de
Oliveira, examinando o caso de etnias indígenas situadas em áreas de
fronteira, quanto à nacionalidade, como uma segunda identidade, é
claro que ela será instrumentalizada de conformidade com situações
concretas em que os indivíduos ou os grupos estiverem inseridos, como

2 MEGGERS, B. J., EVANS, C. Archeological excavations at the mouth of the Amazon. Bulletin of the
American Ethnological Society, n. 167, 1957.
3 ROOSEVELT, A. C. Determinismo ecológico na interpretação do desenvolvimento social indígena
da Amazônia. In: NEVES, W. A. (Org.). Origens, adaptações e diversidade biológica do homem nativo
da Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, p. 103-141, 1991.
a de procurarem assistência à saúde, à educação dos filhos ou uma
eventual proteção junto a forças militares de fronteira: seriam casos
típicos de manipulação de identidade junto a representantes dos
respectivos Estados nacionais.

Oliveira afirma que, no caso de etnias localizadas em fronteiras


entre Estados nacionais, não se trata mais de considerá-las em si
mesmas, isto é, como tais, mas de inseri-las num outro quadro de
referência: o quadro (inter)nacional. A rigor, poder-se-ia dizer que tal
quadro teria sua configuração marcada por um processo transnacional,
apontando esse termo para o caráter dinâmico das relações sociais
vividas pelo contingente populacional localizado na fronteira. (...)
Portanto, no caso de uma situação de fronteira, aquilo que surge
poderoso determinador social, político e cultural – provavelmente mais
do que a etnicidade – passa a ser a nacionalidade dos agentes sociais; é
quando nacionalidade e etnicidade se interseccionam (...).

2. COLONIZAÇÃO NA REGIÃO DO RIO BRANCO

Apesar de pouco enfocada pela historiografia, esta região não


ficou necessariamente refratária ao processo de colonização. Nos
séculos XVI e XVII, missionários e viajantes já se aventuravam nestes
rincões amazônicos. Ali, fronteiras econômicas, coloniais e geopolíticas
foram demarcadas e remarcadas. Dispersos – já desde o século XVII –
existiam estabelecidos fortins militares e postos de trocas franceses,
espanhóis, portugueses, holandeses e ingleses. Junto a eles, havia micro-
sociedades indígenas migrando, comunidades de escravos fugidos
negros movimentando-se, soldados desertando e índios aldeados entre
economias camponesas e o comércio das canoas que refaziam os
caminhos fluviais na região4.

Para pensar tais complexos processos históricos de


reconfigurações coloniais seriam possíveis articular duas metáforas.
A primeira, de um tabuleiro de xadrez. O movimento de peças era lento
e cuidadoso. Interesses, objetivos e estratégias redefinidos
constantemente. Porém, ao contrário de um jogo de xadrez, é importante

5 Jonas Marçal de QUEIROZ & Flávio GOMES, Lusotopie 2002/1:25-49


destacar que o tabuleiro e principalmente as peças desses processos
históricos muitas vezes eram desconhecidos5.

Diferente do jogo de xadrez, não havia domínio absoluto e


racionalidade das variáveis. Como, para onde, por que e com quem se
mover? Neste caso, poderíamos usar a imagem de Alice, no País das
Maravilhas. A cada avanço e recuo, mais surpresas, espantos,
desapontamento e euforia. Nas reconfigurações, personagens e cenários
assim se comportaram6.

Na região colonial do Brasil, no extremo norte, fugitivos – negros,


índios e soldados desertores – foram protagonistas de uma original
aventura, na qual reinterpretaram os sentidos da colonização. Com suas
próprias ações, reinventaram significados e construíram visões sobre
escravidão, liberdade, ocupação, posse, fronteiras e domínios coloniais.
Inventaram a geografia de suas ações. Mais do que isto, marcou as
experiências da colonização e ocupação de vastas regiões amazônicas,
principalmente aquelas das fronteiras coloniais internacionais como a
região. Colonos chegavam, navios aportavam, cálculos econômicos
eram feitos, fortalezas erguidas, marcos de limites colocados e provisões
enviadas. Começavam várias aventuras para homens e mulheres
naqueles rincões.

De acordo com a Nádia Farage7, no contexto da economia colonial


amazônica, a produção natural da região do rio Branco prestava-se
igualmente à atividade extrativista: dos seus campos se obtinham
madeiras e resinas apreciadas, além de baunilha, cacau e salsaparrilha,
itens importantes da exportação do Grão-Pará. A extração do cacau
parece ter sido a mais significativa, pois que ele crescia às margens do
baixo Rio Branco, área de mais fácil acesso para os coletores vindos do
rio Negro. A pesca e a viração de tartaruga vieram a suprir o mercado
regional da capitania do rio Negro no século XVIII8.

É difícil, senão impossível, inventariar a importância e extensão


dessa produção e, conseqüentemente, seu valor como móvel das

6 Jonas Marçal de QUEIROZ & Flávio GOMES.


7 Farage, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização
8 Lobo D´Almada, M. (1787) 1861: pp 661-663.
incursões portuguesas à região. Por mais expressivas que esta fosse, no
entanto, sobressaem na ocupação do rio Branco dois outros motivos tão
ou mais fundamentais: sua importância para o mercado interno colonial
como zona de suprimento de escravos índios e sua posição estratégica,
que impunha uma política oficial do Estado visando defender a
Amazônia de possíveis aventuras expansionistas dos vizinhos
espanhóis e holandeses.

A cidade de Boa Vista começa a existir como município a partir de


1890, ainda com o nome de Boa Vista do Rio Branco, por uma decisão do
governador do Amazonas Augusto Ximeno de Ville Roy, tendo em vista
que a região do rio Branco, como um todo, ainda pertencia a este Estado.
Segundo Freitas, teve como primeiro prefeito João Capistrano da Silva
Mota, conhecido como Coronel Mota.

As primeiras famílias que se fixaram no vale do rio Branco,


consideradas pioneiras, foram de Inácio, Domingos e Manoel Lopes de
Magalhães; Bento Ferreira Marques Brasil; do próprio Coronel
Mota e de Alfredo Venâncio de Souza Cruz9. Segundo este autor, em
1830 foi fundada uma fazenda particular, de gado bovino, a qual o
fundador Inácio Lopes de Magalhães, um dos pioneiros, deu o
nome de Boa Vista10.

3. O CENÁRIO

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol e o Parque Nacional


Canaima apesar, de estarem localizados há vários quilômetros de
distância de dois centros urbanos escolhidos para compor o cenário mais
plano de observação (Ciudad Bolívar e Boa Vista), não deixam de
exercer e sofrer influência, em maior ou em menor escala, considerando
as duas realidades nacionais, e as peculiaridades características das
sociedades venezuelana e brasileira. Considere-se, também, o papel
representado por estes centros urbanos na história dos dois Estados
Nacionais. Se Boa Vista ficou à margem dos grandes acontecimentos
nacionais, tendo em vista a grande distância dos centros de decisão, não
ocorreu o mesmo com Bolívar, a cidade onde foi elaborada e tornada
pública a emblemática “Declaração de Angostura”.
9 Magalhães, op. cit. p. 12
10 id. p. 12-13
A forma como estas duas unidades federativas (Estado de Bolívar
e Roraima) foram ocupadas territorialmente pelos europeus ao longo
processo de colonização luso-espanhol e, posteriormente, pelos
novos Estados Nacionais, também não deixa de ser um fator que define
certas peculiaridades às duas regiões. Enquanto o Estado de Bolívar,
como parte integrante da grande região de Guayana11, apesar da
importância que teve no processo de formação da nação venezuelana,
teve sua “ocupação branca” retardada em parte considerável do seu
território, o Estado de Roraima, como parte integrante da Amazônia
brasileira, teve esta ocupação um pouco antecipada como descrevemos
no item 2 deste artigo.

O Brasil desenvolveu a ocupação desse território pela necessidade


de marcar presença nas regiões fronteiriças, no caso da Gran Sabana,
região mais ao sul do estado de Bolívar onde está localizada o Parque
Nacional de Canaima. Esta ocupação se inicia, oficialmente, ao final da
década de 60, com a criação da Comissão Especial para o
Desenvolvimento do Sul (CODESUR), cujo programa recebeu
denominação de “Conquista de Sur12” (Marcano, 1996:69). Na verdade,
este grande projeto foi criado por iniciativa do governo do Presidente
Rafael Caldera e desde 1968 passou a ser chamado PRODESUR.
Segundo o líder indígena Guillermo Guevara, comparando-o ao
“Projeto Calha Norte”, “foi elaborada por uma comissão onde a maioria
era composta por militares. O objetivo do projeto é desenvolver o sul da
Venezuela com exploração de minérios e madeira. Também afirmavam
que as áreas eram vazias13”. Não deixou de ser, à época, um projeto
ambicioso e ufanista, como outros projetos de conquista e ocupação
territorial que ocorreram na América do Sul, tal como o projeto de
colonização da Amazônia brasileira. Ambicioso porque, o projeto
abrangia uma extensa área (toda a Guayana venezuelana) a ser
desenvolvida economicamente, ou seja, cumprir determinadas metas já
decididas desde 1960, por iniciativa do Governo de Rômulo Betancourt,
até então engavetadas. Coube a Corporación Venezolana de Guayana -
CVG, tarefa de promover este desenvolvimento regional, assumindo,
segundo Rangel, os seguintes objetivos:

11 Ainda fazem parte dessa região administrativa os Estados de Amazonas e Delta Amaruco
12 “Conquista do Sul”.
13 CIR, 1988:17.
Estudar os recursos da região Guayana e a sua área de influência;
estudar, organizar e desenvolver a exploração dos recursos
hídricos do rio Caroní, programar desenvolvimento integral da
região de acordo com o plano da nação, promover o
desenvolvimento industrial na Guayana nos setores públicos;
coordenar as atividades econômicas e sociais executadas na região
por agências governamentais; contribuir para a organização, o
planejamento, operação e desenvolvimento de serviços públicos
necessários para o crescimento da região; decisão a tomar pelo
Executivo Nacional, em qualquer outra tarefa, a qual poderia ser
conectado para operações fora da região, onde existe uma forte
ligação com os planos internos da Guayana.

As tentativas anteriores de exploração do território da Guayana


foram esporádicas, sem um objetivo mais claro que pudesse requerer
investimentos em grande escala. Segundo Mansutti Rodríguez,
“O processo começou em 1969 - (...) um programa estatal para investir
dinheiro para integrar o rio Orinoco para a economia venezuelana. Parte
dos investimentos foram destinados para sedentarizar os indígenas, a
fim de prestar assistência médica e educacional, e mantê-los sob
controle” (1990:50). Sedentarizar os indígenas significa mantê-los nas
terras que vivem suas comunidades desde tempos imemoriais.
“Esta idéia pode, no entanto, ser confundida com a idéia de impedir que
o índio se desenvolva tecnologicamente14”.

Os autóctones que permanecem no Canaima, ainda não


totalmente que apesar te terem assimilados aspectos da cultura não-
indigena, mantém fortes raízes culturais, experimentam uma relativa
proteção, pelo fato de terem uma assistência médica e educacional,
porém, com um envolvimento constante com as mineradoras e com as
empresas de turismo ecológico. Percebe-se, portanto, que os reflexos
desta incursão ocorrida no início do século XX, ainda hoje são sentidos,
pois, as raras povoações iniciadas à época, são as que hoje, ainda,
sobrevivem, caracterizando a região como área indígena, mesmo sem
estes ter qualquer título destas terras, uma vez que a Gran Sabana, na sua
quase totalidade, foi transformada em Parque Nacional de Canaima.

14 Cf depoimento oral do antropólogo Roque de Barros Laraia.


Já no norte roraimense, como descrevemos no item 2 deste artigo,
começou o processo de fixação do europeu em meados de 1775, ano da
fundação do Forte São Joaquim, próximo à confluência dos rios Tacutú e
Uraricoera, objetivando o aldeamento de índios e a promoção de futuras
conquistas territoriais, muito embora este processo de ocupação oficial
tenha continuado desde então e só tenha ganhado força durante
o regime militar, com um projeto semelhante ao “Conquista del Sur”, o
“Projeto Calha Norte” (PCN)15. Ainda segundo Marcano (op. cit. p. 82),
este processo ainda está em marcha. Refere-se à estudiosa aos discursos
com o foco na “ocupação de espaços vazios16” e na “integração
nacional”, muito comum nas décadas de 1970 e 1980 do século XX, que
mascarava projetos econômicos de grande porte, com nítida inspiração
na Doutrina de Segurança Nacional.

Em relação à fronteira política entre Brasil e Venezuela, se no


passado, a divisão não criou grandes entraves a estes países, tampouco
no presente onde, ao contrário da situação entre Venezuela e Guiana, os
limites territoriais entre ambos, pelo Tratado de 1959, estão
consolidados desde 1973. Conforme escreveu Mendible, “a feliz
conclusão destas negociações demonstrou a importância histórica da
assinatura do Tratado de 1859. As relações bilaterais melhoraram
notavelmente a partir de 1973, apesar das diferenças na política interna
dos dois países: democracia na Venezuela e ditadura militar no Brasil”
(1993:79). Enquanto o referido autor evidencia um aparente ufanismo,
Marcano declara-se mais cautelosa, preferindo utilizar a expressão
“aproximada”, referindo-se à demarcação da fronteira brasileiro-
venezuelana. Segundo ela, a extensão da fronteira “consta, também,
como aproximada, em Ata da 41ª Conferência da Comissão Mista
Venezuelano-Brasileira, Demarcadora de Limites, realizada em
Caracas, em agosto de 1973” (1996:14).

É este o cenário, cujos fatores aqui delineados em linhas gerais,


emprestam características especiais à região, onde é nítida a
generosidade com que a natureza se manifesta ao homem, pelas
riquezas da fauna e da flora e pela exuberância das paisagens.

15 Neste artigo, “ocupação” refere-se à fixação do homem não-índio, encarregado de implementar


mineração e grandes plantações de grãos, seguindo às instalações de unidades militares.
16 Calha Norte porque visa a “ocupação” do território à esquerda das calhas dos rios Solimões
e Amazonas.
Ressalte-se também a riqueza cultural do autóctone, cujas comunidades
que habitam esses espaços vêm resistindo séculos de dominação,
espoliação e exclusão “região que ainda conserva o misterioso encanto
de uma formosura única, de difícil descrição17”.

4. O VALOR DA TERRA PARA AS


COMUNIDADES INDÍGENAS QUE HABITAM A
TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL E PARQUE
NACIONAL DE CANAIMA

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol começou a ser identificada


pela Fundação Nacional do Índio – Funai em 1977 e os primeiros estudos
concluídos datam de 1993, com o reconhecimento da Terra Indígena
como de ocupação tradicionais dos índios das etnias Macuxi, Wapixana,
Taurepang e Ingarikó. Desde então, diversas contradições sobre o tema
têm se instalado, sendo que o perímetro da pretendida terra indígena foi
aumentado com o passar do tempo, tendo sido finalmente demarcada
com a área contínua de 1.747.464 ha (um milhão, setecentos e quarenta e
sete mil, quatrocentos e sessenta e quatro hectares).

A demarcação, no entanto, só ocorreu em 11 de dezembro de 1998,


pela Portaria nº 820 do Ministério da Justiça, a homologação pelo
presidente Luis Inácio Lula da Silva, por sua vez, veio acontecer somente
em 15 de abril de 2005, por meio da Portaria nº 534, de 13 de abril de 2005,
do Ministério da Justiça. Indefinida de regulação e controle a Terra
Indígena Raposa Serra do Sol, possui a superposição da Unidade de
Conservação (Parque Nacional Monte Roraima) que faz com que o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis - IBAMA proíba atividades tradicionais dos índios, ou seja,
há uma superposição da malha administrativa das áreas protegidas e da
faixa de fronteira, como se pode observar no mapa a seguir.

De acordo com Nurit Bensusan18, o estabelecimento de unidades


de conservação nas florestas tropicais tem sido historicamente marcado
17 (Huber, 1999:4).
18 Afirmação da autora Nurit Bensusan em seu artigo intitulado “Situação das unidades de
conservação na Amazônia brasileira”. In: Conservação da biodiversidade em áreas protegidas. Rio de
Janeiro; FGV; 2006. 176 p.
pelo conflito com as comunidades locais e povos indígenas. A Amazônia
não é exceção: unidades criadas à revelia das populações que
habitam o local, sobreposição com terras indígenas e realocações
forçadas eram a regra.

Constatar-se que as etnias residentes na Terra Indígena Raposa


Serra do Sol que já sofreram incursões de agentes da sociedade moderna,
a exemplo os produtores de arroz irrigado que se instalaram nessa
região, ou seja, mesmo com algumas alterações em sua cultura, ainda
mantêm fortes valores e laços religiosos com a terra.

Culturalmente, as comunidades tradicionais, por não terem


acesso a “tecnologias” para produção, retiram da natureza, usando
manejos tradicionais, tudo o que é necessário para seu sustento, e não só
o seu sustento físico, como também o cultural. E tem feito isto, de modo
racional e sustentável, ou seja, as comunidades indígenas têm um saber
acumulado sobre os ciclos naturais, dentre eles, só a título de
exemplificação, podemos citar a reprodução e imigração da fauna, a
influência da lua na atividade de corte de madeiras, da pesca, do manejo
dos recursos naturais e conservação de espécies, com isto têm
demonstrado que a natureza possui valor cultural como histórico.

Na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a economia dos Ingarikós


é a mais tradicional desta região, e é baseada essencialmente na
agricultura de queimada, suplementada pela coleta silvestre, pela caça e
pela pesca. A forma mais importante de capital é o conhecimento
indígena de como sobreviver no ambiente das serras e isso é passado
oralmente dos mais velhos para os mais novos.

Parque Nacional de Canaima

O Parque Nacional de Canaima está localizado dentro das


coordenadas geográficas 4º 44' e 6° 30' de latitude norte e 60° 39' e 62° 59'
de longitude, quase totalmente dentro do município venezuelano de
Gran Sabana (pertencente ao estado de Bolívar), que tem sua sede em
Santa Elena de Uairén. Apenas uma pequena parte se localiza no
município de Sifontes. O Parque Nacional Canaima foi criado em 12 de
janeiro de 1962, pelo então presidente Rômulo Betancout por meio do
Decreto 770, com 1 milhão de hectares. Em 1975, o Decreto 1.137,
assinado pelo presidente Carlos Andrés19, ampliou a extensão do Parque
para 3 milhões de hectares, a qual permanece até os dias atuais.

O Parque Nacional de Canaima, não é propriedade dos índios,


mas, a eles foi concedida a permissão para que o utilizem, de acordo com
suas tradições. Em contrapartida, o Estado venezuelano cobra em troca a
exploração do turismo ecológico. Há mais de três décadas já
está delimitada uma área protegida duplamente maior que a Raposa
Serra do Sol.

A criação do Parque Nacional de Canaima descrita


anteriormente, significou grande mudança nos hábitos dos indígenas,
até então donos e senhores do seu próprio espaço, costumes, cultura e
modo de vida tribal. A partir de então, ficaram sujeitos às leis do parque,
criadas e fiscalizadas pelos não-índios e que, doravante, deverão ser
cumpridas por eles.

As Diretrizes para a Proteção e Desenvolvimento Integral, do


Plano de Ordenamento e Regulamentação para uso do Parque
Nacional de Canaima, explica as normas às quais os indígenas estão
agora submetidos.

Artigo 6: A proteção integral do parque se cumprirá dentro


da política de conservação, defesa e melhoramento do
ambiente e dos recursos naturais renováveis, como
objetivo do mais alto interesse nacional e com sujeição às
seguintes diretrizes:
1 – Proteger e manter as condições naturais naqueles
ambientes preservados ou pouco perturbados, assim como
restaurar aqueles ambientes degradados.
2 – A incorporação das comunidades indígenas à
administração e direção do parque, assim como defender e
manter seus valores históricos, culturais e aquelas
tradições compatíveis com os objetivos do parque nacional.
3 – Restaurar o habitat, comunidades biológicas e espécies e
degradadas pela ação antrópica.

19 Informações retiradas do Decreto de Criação e Ampliação do Parque Nacional Canaima.


4 – Instrumentar de forma prioritária os programas e ações
de proteção aos recursos naturais.
5 – Satisfazer racionalmente a demanda educativa,
recreacional e turística da coletividade, mediante o
fomento do uso adequado dos espaços e recursos
do parque.
6 – Apoiar de forma organizada o Conhecimento
Científico, sobre os elementos, estruturas e processos dos
recursos naturais físico-bióticos (geológicos e ecológicos) e
fomentar a participação ativa de centros de pesquisas e
docências nacionais, instituições científicas, sociedade civil
organizada, com fins conservacionistas, e de outros
organismos nos mesmos programas pertinentes.
7 – Erradicar a prática de atividades não consoantes com os
objetivos e filosofia da direção do parque nacional.
8 – Conhecer e difundir adequadamente os valores do
parque em nível local, nacional e internacional.
9 – Disseminar as infra-estruturas e organizar as atividades
de prestação de serviço ao público, essenciais, de maneira
que se integrem com o meio ambiente, evitando produzir
impactos significativos.
10 – Defender espécies em perigo de extinção.
11- Restringir atividades agrícolas nas áreas existentes.”

Entretanto, o desenvolvimento de atividades turísticas no Parque


Nacional e Canaima enfrenta alguns problemas devido à falta de
infra-estrutura e de sistemas de vigilância que se requerem para
garantir o respeito às normas para a preservação do ambiente por parte
dos turistas.

A terra representa para estas comunidades indígenas, muito mais


que um meio de subsistência, representa o suporte da vida social e está
diretamente ligada aos sistemas de crenças e conhecimento, além de
uma relação histórica. Terras não só no sentido de espaços físicos, áreas,
mas também o meio ambiente, o modo de vida, a cultura, e todas as
formas com que se inter-relaciona com a mesma.

Em face dessas proposições, que justificam os conhecimentos


tradicionais das comunidades indígenas, principalmente no valor que
estes dão a terra, concluímos este tópico destacando o proposto pela
Agenda 21:

Tendo em vista a inter relação entre o meio natural e seu


desenvolvimento sustentável e o bem estar cultural, social,
econômico e físico das populações indígenas, os esforços
nacionais e internacionais de implementação de um
desenvolvimento ambientalmente saudável e sustentável
devem reconhecer, acomodar, promover e fortalecer o
papel das populações indígenas e suas comunidades20.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A grande maioria das comunidades indígenas que mora na Terra


Indígena Raposa Serra do Sol e no Parque Nacional de Canaima já
mantêm contatos permanentes, tendo abandonado, em parte, seus
costumes de caçadores e coletores e se tornado amplamente sedentários
e integrados à sociedade envolvente, dada a história de permanente
contato com as comunidades de colonos, tornando-se praticamente
indissociáveis dos segmentos não indígenas.

Portanto, uma política de isolamento completo poderá significar


retrocesso econômico significativo, em virtude das alterações
substâncias já ocorridas em sua cultura tais como: mudanças na religião;
alterações nos critérios de sucessão tribal, e mudanças no modo de
produção e inserção no sistema de comercialização capitalista. Seria
praticamente impossível o retorno dessas comunidades indígenas às
suas origens.

O estabelecimento de espaços protegidos na Amazônia tem


importância estratégica na manutenção da biodiversidade,
consolidados como a estratégia mais popular para a conservação da
biodiversidade, passam a desempenhar também o papel de agentes de
mudanças sociais. Muitos dos espaços protegidos da Amazônia trazem
embutidas oportunidades para as comunidades da região, podendo
transformar conflitos históricos em parcerias e alianças e possibilitando,

20 Agenda 21 – Capítulo 23: Reconhecimento e fortalecimento do papel das populações indígenas e


suas comunidades – Disponível em: www.preservaçãolimeira.com.br. Acesso em 10/10/07.
enfim, uma proteção mais eficiente da biodiversidade. Os contatos com
o mundo exterior trazem, sem dúvidas, muitas vantagens para os povos
tradicionais tais como: avanços tecnológicos de todo tipo, desde
pequenas mudanças provocadas pela introdução de ferramentas mais
elaboradas, até grandes revoluções afetando seus costumes; mudanças
em seus padrões de consumo induzidas pela introdução de novos
produtos ou pelo aumento da produção doméstica; melhorias nas
condições de saúde, pela introdução de medicamentos modernos,
especialmente vacinas.

Contudo, esses benefícios do contato envolvem custos tais como:


aumento de suas dependências para com a economia moderna, pela
substituição das ferramentas tradicionais (que eram repostas) por novos
artefatos (não produzidos por eles); introdução de novas doenças,
fazendo com que o efeito líquido sobre seu estado de saúde seja,
possivelmente, negativo; progressiva perda de sua identidade cultural e
estilo de vida.

A vivificação das fronteiras hoje não deve ser vista como apenas
implantação de barreiras físicas. As fronteiras são faixas de interação
entre Estados e nacionalidades distintos, a borda do Estado nacional
consolidado, e assim orientadas para fora enquanto os limites são um
dos fator de separação de unidades políticas soberanas.

Contudo, considerando o novo contexto mundial, os limites se


fluidificam através de múltiplas redes trans-fronteiras, redes lícitas,
ilícitas e informais, que podem alcançar grandes extensões para além do
território nacional, embora nele se originando. As comunidades
indígenas de mesma etnia nas fronteiras do Brasil e da Venezuela
constituem importantes redes de parentesco e de trocas informais que
vivificam as fronteiras.

É fundamental que todas as comunidades tenham oportunidades


expandidas para que ela faça suas próprias escolhas no sentido de
definir o caminho e a velocidade do caminhar, visando sempre à
melhoria da qualidade de vida de todos os seus membros, segundo suas
próprias visões. Pois, a diversidade cultural não significa que devam ser
preservados valores e práticas como um fim em si próprios, com cego
apego às tradições. Cultura não é um conjunto congelado de valores e
praticas; ela é recriada constantemente na medida em que os povos
questionam, adaptam e redefinem seus valores e praticas às realidades
que se modificam e à troca de idéias.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Documentos

AGENDA 21 – Capítulo 23: Reconhecimento e fortalecimento do papel das populações


indígenas e suas comunidades. Disponível em: www.preservaçãolimeira.com.br. Acesso
em 10/10/07

Comunidade Indígena Maturuca. Carta da 35ª Assembléia dos Povos Indígenas do


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Acesso em 30.09.2007.

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA:


www.ibama.gov.br. Acesso em 30.09.2007.
A COBERTURA DA MORTE
DO ÍNDIO ALDO MOTA
NA ÓTICA DO JORNAL FOLHA
DE BOA VISTA
PAULO SÉRGIO RODRIGUES DA SILVA*
JACI VIEIRA GUILHERME**

RESUMO: Este artigo trata da questão da violência contra os povos indígenas de Roraima
e a cobertura dado pelo jornal Folha de Boa Vista, no período de 2003 a 2005, enfatizando o
assassinato do índio Aldo da Silva Mota, em 2003. Essa temática surgiu da necessidade de
compreendermos como são passadas para a população as notícias relacionadas à violência
indígena, pois, localmente, percebe-se uma aversão grotesca quando se fala de “índio”.
Alguns fatos sobre a violência ganham espaço na mídia impressa, outros simplesmente
são silenciados e não entendemos o porquê. Assim, é interessante analisar o papel da
imprensa - jornal Folha de Boa Vista – e o jogo de interesses das classes dominantes:
políticos, fazendeiros, rizicultores, mineradores, empresários que, além de deterem os
meios de produção, também controlam os meios de comunicação no Estado.

PALAVRAS CHAVE: Povos indígenas. Imprensa escrita. Violência. Ideologia.

INTRODUÇÃO

A história da colonização no Rio Branco foi marcada por ações


violentas. Nunca foram pacíficas as relações entre índios e brancos,
muitos grupos étnicos foram totalmente dizimados pelos colonizadores.
O indígena no Rio Branco não foi o que o filósofo suíço Jean-Jacques
Rousseau (1712 a 1778), na sua visão romântica, chamou de o “bom
selvagem”, houve luta, revolta, mortes e também resistência aos
projetos da Coroa e aos projetos das fazendas particulares instaladas
aqui na segunda metade do século XIX.

* Especialista em História Regional pela Universidade Federal de Roraima.


** Doutor em História pela Universidade Federal do Pernambuco é professor de História no
Departamento de História da Universidade Federal de Roraima
Os conflitos se estenderam durante todo o século XX e início do
século XXI, em alguns momentos um pouco escamoteado ou latente na
mídia impressa. Na verdade, a luta sempre esteve presente e nunca
desapareceu. Com o princípio da organização indígena a luta
pela terra passou a ter uma pauta constante, isso já nos anos 1970 em
diante, e como conseqüência dessa mobilização, os conflitos se acirram,
deixando muitas vítimas, fatos nos relatórios do Conselho Indígena
de Roraima – CIR1.

O olhar da imprensa local para os conflitos indígenas foi marcado,


em muitos momentos, pela distorção proposital da informação.
Assim, temos uma pergunta a ser respondida neste artigo: quais as
intencionalidades no jogo de interesses ideológicos subjacentes à mídia
impressa – Jornal Folha de Boa Vista - ao mostrar certo desprezo
histórico em relação à questão da violência contra os povos indígenas e
como são tecidas nos bastidores do jornal as notícias sobre a violência
em relação aos povos indígenas, como, por exemplo, caso do índio
Aldo da Silva Mota?

REPORTAGENS

Em mais de 200 matérias pesquisadas no jornal Folha de Boa


Vista a questão indígena permeia as manchetes, os editorias, as charges,
as páginas de opinião e também as páginas policiais. O jornal deu ampla
cobertura para os assuntos indígenas. A partir das várias matérias foi
possível observar aspectos ideológicos presentes nos textos,
reportamos a uma matéria publicada em 12 de agosto de 2003,
Caderno Policial, com o título: Serra da Lua: Índios invadem fazenda de
deputado. Essa matéria dizia respeito à ocupação por partes dos índios
da fazenda do ex-deputado Urzenir Rocha:

Os índios ligados ao CIR ocuparam a propriedade na tentativa de


apressar saída do parlamentar na reserva indígena Moriru.
O deputado estadual Urzeni Rocha denunciou em boletim de
ocorrência, domingo, a invasão de sua fazenda Itamaraty na
região da Serra da Lua.O parlamentar contou que uma freira

1 CONSELHO INDÍGENA DE RORAIMA-CIR. Relatório de Violências contra a População Indígena


da Trra Indígena Raposa/Serra do Sol. Agosto de 1999.
acompanha a ação dos índios na fazenda e que ela estaria
mantendo contato telefônico, via satélite, com outros países sobre
o que estava acontecendo. Urzeni Rocha explicou que sua fazenda
fica dentro de uma área indígena homologada pelo presidente. No
entanto, não questiona a terra, mas disse que espera o pagamento
de indenização de sua propriedade para desocupar o local.
(RURIRU, 2003, p.12).

No caso específico da matéria, percebemos que o jornalista foi


pouco criterioso na escolha de sua manchete. Por outro lado, se o leitor se
der ao trabalho de analisar o texto, verificará que não se trata meramente
de uma questão de manchete do jornal, mas sim de uma sutil inversão
lógica discursiva. Assim, de forma ideológica, o periódico coloca a
população indígena como vilã do processo de demarcação de suas áreas,
incentivando no leitor, a idéia do índio “baderneiro”, invasor de
propriedade particular (VIERA, 2003).

Outra matéria do jornal Folha de Boa Vista que merece uma


atenção especial na análise foi publicada em 17 de fevereiro de 2004, sob
a responsabilidade do jornalista Ribamar Rocha. O título da matéria é
“SILVESTRE CRITICA ATUAÇÃO DO CIR”. Os trechos mais
importantes são:

Como ex-membro do CIR, onde atuou por 20 anos, Silvestre


afirmou ter saído do conselho por entender que estava servindo
apenas a interesses de padres ligados a órgãos estrangeiros.
Para exemplificar o que estava afirmando, Silvestre disse que a
mesma tática é usada ainda hoje. “Em toda reunião que eles
fazem, que seja de um dia ou de uma semana, quando termina
saem tão radicalizados que destroem pontes, invadem fazendas,
derrubam torres, seja lá o que for eles fazem para insuflar os que
não estão do lado deles”. Silvestre foi contundente e deixou claro
que não é o índio que quer a demarcação.Para justificar seus
argumentos, lembrou do massacre de 1986, em Santa Cruz. 'Ali
foi tudo armado pelo bispo e pelos padres Jorge, Pedro, Thiago,
Dom Aldo e o padre Lima de Normandia', acusou. Contando um
caso mais recente, Silvestre falou do incêndio de três casas na
comunidade do Contão, fato ocorrido na semana passada.
'Novamente depois de uma reunião do CIR, eles fizeram baderna
e queimaram as casas'. (ROCHA, 2004: 05)
O jornal, a nosso ver, parece não dá o direito aos acusados de
utilizarem do mesmo espaço para apresentar suas versões ou mesmo
suas defesas às acusações feitas pelo indígena Silvestre Leocádio. Por
esses razões o Instituto Missionário da Consolata tomou a iniciativa de
processar o Jornal Folha de Boa Vista, o jornalista e o ex-presidente da
SODIUR, o senhor Silvestre Leocádio pelas calúnias aos padres.
Segundo autos do processo número 01004079304-3, a matéria veiculada
no Jornal a Folha de Boa Vista acusou o padre Tiago e outros religiosos
de serem responsáveis pelo massacre em Santa Cruz, em 1986.

A honra dos padres foi maculada com as afirmações caluniosas,


cujo propósito foi intencionalmente denegrir a imagem dos religiosos
perante a sociedade roraimense. Aos autores da ação, especificamente o
padre Tiago, foi imputada injustamente, uma conduta criminosa e
instigadora de violência. As acusações feitas pelo Sr. Leocádio em
relação aos religiosos foram improcedentes e infundadas, pois nada
consta contra os mesmos que desabone sua vida a conduta.

O Jornal Folha de Boa Vista e o autor da matéria foram


responsabilizados civilmente, pois, tornaram públicas as acusações
infundadas já apuradas pela Justiça e que isentou os religiosos de
quaisquer responsabilidades sobre os fatos ocorridos em 1986. O
jornalista sequer deu-se ao trabalho de fazer uma investigação prévia em
relação à veracidade dos acontecimentos. Informações do Processo
Judicial indicam que o objetivo da matéria publicada no Folha de Vista
era: “[...] jogar a opinião pública contra o Autor e a Igreja Católica”.
(SOUZA; FRANÇA, 2004: 04)

A Justiça considerou improcedentes as acusações veiculadas no


jornal e deu ganho de causa aos religiosos por danos morais. Quanto à
indenização pelos danos morais o Instituto Missionário da Consolata e a
Editora de Boa Vista Ltda, responsável pela edição do jornal Folha de
Boa Vista, acordaram judicialmente2 a publicação de 51 matérias de
interesse do Instituto Religioso Missionário, todas as segundas-feiras,
durante 1 ano gratuitamente.

2 O acordo foi homologado judicialmente nos autos do processo nº 0010-04.07934-3 e publicado no DPJ
nº 3104 de abril de 2005.
A COBERTURA DO JORNAL FOLHA DE BOA VISTA DA
MORTE DE ALDO MOTA, UMA ANÁLISE

Uma breve contextualização da morte do índio. No dia 02 de


janeiro de 2003, conforme relato do Coordenador do Conselho Indígena
de Roraima, o senhor Jacir José de Souza, em requerimento
encaminhado a Superintendência da Polícia Federal, o indígena
Aldo da Silva Mota, foi assassinado na Fazenda Retiro, no
município de Uiramutã.

Aldo da Silva era casado, tinha 52 anos, morador da comunidade


Lage, região das Serras, localizada na área Raposa Serra do Sol.
O indígena era vaqueiro no Retiro Fé em Deus, pertencente ao indígena
Inácio Brito. Ao receber um recado dos vaqueiros da Fazenda Retiro,
“propriedade” do ex-vereador de Uiramutã, Francisco das Chagas
Oliveira, de que um garote desgarrado do bando encontrava-se na
Fazenda Retiro, Aldo dirigiu-se sozinho a fazenda para resgatar o
garote. Nesse dia, 02 de janeiro, segundo o Aditamento da Denúncia do
Ministério Público Federal, os denunciados Eliseu Samuel Martins e
Robson Belo Gomes, vaqueiros do ex-vereador, agindo conjuntamente,
assassinaram com disparos de arma “à queima roupa”, o índio Aldo da
Silva Mota. Após o homicídio, os dois vaqueiros enterraram o corpo em
uma corva rasa3.

A morte do indígena Aldo da Silva Mota teve uma cobertura


expressiva no Jornal a Folha de Boa Vista, em relação ao assassinato de
outros indígenas. Foram 44 matérias sobre o assunto incluindo opinião,
caderno cidade, caderno política e caderno policial. Isso confirma que a
partir da Constituição de 1988, os povos indígenas em Roraima
ganharam maior visibilidade na imprensa local4. A exigência

3 Segundo informações contidas no Laudo Cadavérico N° 1295/2003 do Instituto de Medicina Legal


do Distrito Federal - Laboratório de Antropologia Forense, assinado pelos os peritos criminais: Jorge
Jardim Zacca e Carlos Nalvo Machado Júnior, foram encontrados vários vestígios próximo ao local
onde o corpo de Aldo da Silva Mota como a presença de sulcos produzidos pela espora que o índio
usava manchas de sangue em diversos pontos da fazenda, fibras de tecidos desprendidos da roupa
usada por Aldo, sinais indicativos que a vítima fora executado em local diverso e arrastado por
aproximadamente 300 metros até uma erosão onde foi enterrado.
4 Em outro momento Vieira afirma que a freqüência dos povos indígenas nos jornais de Boa Vista
esteve relacionada a longa trajetória de luta pela dermacação das suas terras, que envolveu várias etnias
e também a Igreja Católica, pois a partir da década de 1970 fez a opção pelos oprimidos, e em Roraima o
nome do oprimido são os povos indígenas. (VIRA-VOLTA, 2003).
constitucional da demarcação das terras indígenas, alinhada com a
organização dos índios em assembléias a partir dos anos de 1970,
resultou numa grande campanha mobilizatória pela demarcação das
terras indígenas. A partir de então, o indígena passa a ser um incômodo
à sociedade.

Em artigo publicado no caderno opinião e intitulado: RORAIMA,


DEZ ANOS DE RETROCESSO, Ana Paula Souto Maior, advogada
indigenista e ex-consultora jurídica da FUNAI, denuncia que: “Em
Roraima, ao contrário, os direitos indígenas são vilipendiados e os que
trabalham em sua defesa moralmente execrados. A imprensa escrita e
falada tem sua parcela de responsabilidade nesta situação hostil”.
Ao final do artigo, Ana afirma “Em tempo: parabéns à Folha pela
cobertura sobre o assassinato de Aldo da Silva Mota”. (Folha de Boa
Vista, 2003, p.02). Terá o jornal citado mostrado uma nova face5
dos povos indígenas frente às imagens construídas como vilões,
como violentos e assimilados no imaginário da população de Roraima
como verdade?

Historicamente sabemos que alguns jornais impressos o fator


ideológico tem sido determinante nas publicações de matérias
jornalísticas e nos vários artigos que tratam da questão indígena em
Roraima. Alguns jornais, contando com todo instrumental para a
produção da notícia, conseguiram criar uma imagem surreal dos povos
indígenas e essa imagem foi absorvida por muitos leitores de jornais.
Para Burgardt (2006) o que os dominantes acreditam, pensam, crêem é
veiculado por meio da mídia e absorvido pelos “menos esclarecidos”,
que, por sua vez, acabam repetindo o discurso vulgar das elites.
Os argumentos mais freqüentes nos jornais dos coronéis, políticos e
outros atores, contrários aos povos indígenas, de que há “muita terra
para pouco índio” (JOAQUIM, 2003), são tomados como verdadeiros
por muita gente. Assim, convencidos pelos argumentos de quem
consegue impor nas mídias impressas ou não, “os dominados”
acabam aderindo às manifestações dos dominantes nas praças públicas

5 Lima (2001) na preconiza que uma nova imagem dos povos indígenas vem se formando no
imaginário roraimense. Agora, segundo Lima, a imprensa passa ao leitor uma imagem de um índio que
sabe reivindicar os seus direitos, que saber se manifestar, é um índio lutador, que age por conta própria
sem a mediação dos órgãos governamentais. Agora, agindo por conta, atuam violentamente,
algumas vezes.
para defender os rizicultores ou protestar contra a homologação
em área contínua.

O discurso jornalístico tem representado nessas últimas décadas a


tensão estabelecida à medida que a questão das demarcações das áreas
indígenas foi pensada a favor dos povos indígenas e isso gerou revolta,
ódio e ressentimento entre os interesses conflitantes (BURGARDT,
2006). A impressa de Roraima, de um modo geral, tomou o partido das
elites. Burgardt em sua exaustiva pesquisa constata que: “[...] há
costumeiros ataques ao índio, mesmo que (quase sempre) de forma
indireta na imprensa escrita de Boa Vista [...]”.(2006, pág. 220).

Não existe neutralidade nos discursos jornalísticos, é notório o


posicionamento. Chaparro, em Linguagem dos Conflitos (2001, p. 23)
alerta que “[...] o jornalismo real tem o seu lado de encenação. Aceita a
prática certos rituais. E com essa propensão, participa dos jogos do
poder”. No Brasil, o jornalismo carrega em sua tradição promíscua de
envolvimento com o poder (CHAPARRO, 2001) e em Roraima não
poderia ser diferente. Continua Chaparro “No Brasil, o jornalismo
carrega uma tradição de envolvimento promíscuo como o poder [...]”.
(2001, p. 62).

A imagem que os indígenas carregam de violentos ameaça a


sociedade. Quase sempre, é uma representação ou imagens distorcidas
construindas pelas diversas mídias (BURGARDT, 2006). Isoladamente,
os povos indígenas são o que Joaquim (2003), numa releitura de Jean-
Jacques Rousseau, chamou de “Bom Selvagem”, mas quando
organizados em alguma entidade representativa, neste caso cito o CIR,
quando lutam pelos seus direitos e pela sua autonomia histórica são
considerados como “Maus Selvagens”.

Rio Branco Brasil, administrador, no artigo A Questão Indígena


Local V, publicado no jornal a Folha de Boa Vista, caderno opinião, em
dezembro de 2003 assim se manifesta:

O índio do CIR coloca quebra-molas na BR 174 infringindo a Lei


Federal. Cria ele questões vitais, como impedir a construção do
quartel do exército brasileiro no Uiramutã; queima nossas pontes
de madeira nas estradas estaduais causando morte das pessoas;
mata o gado do fazendeiro e tudo fica como está, posto que, o índio
é inimputável [...]. (Folha de Boa Vista, 2003, p. 02)

Esse olhar carregado de preconceito em relação aos povos


indígenas foi construída pelos “agentes ideológicos” que atuam na
grande imprensa prestando serviço às demandas políticas e
subordinados aos proprietários dos jornais (JOAQUIM, 2003).
O jornalista Bucci (2003) observa que a “figura do aproveitador” no meio
jornalístico tem a função de tirar vantagem da situação e colocar o leitor
ao seu lado.

Voltando à morte do índio Aldo, à primeira notícia em relação ao


caso anunciado no Jornal a Folha de Boa Vista, 08/01/2003, Caderno
Policial, página 12 A, expressa exatamente essa visão dos índios
violentos, bárbaros, selvagens: Índios Invadem Fazenda de Vereador no
Mutum. Segundo o jornal, a fazenda havia sido tomada por mais de 70
índios, que utilizavam armas de fogo, facas e terçados para fazer reféns
os funcionários da fazenda e policiais (Folha de Boa Vista, 2003).
Em entrevista aos autores, a advogada do CIR, Joênia Batista Carvalho
afirmou que nas diversas ocasiões conflituosas envolvendo os povos
indígenas a visão passada pela imprensa é sempre contra eles:

Na época a situação era bem de conflito, porque existia uma


situação jurídica, uma disputa de terras indígenas naquela
região. E a notícia que a gente ver... quando existe um problema
grave é de ir contra os próprios indígenas... “Indígenas estão
prestes a invadir a Fazenda Retiro”. As notícias que chegavam na
cidade era que havia uma aglomeração de indígenas, lógico que a
gente sabia que aquela aglomeração era para procurar o indígena
que estava desaparecido. Não é comum uma pessoa ficar mais de
5 dias fora de sua casa, sem dar notícias. Então esgotou toda a
procura através de radiofonia, através de recado e não se tinha
notícias. Então a principio saia essa situação de desaparecido.
Houve todo um conflito que os indígenas estariam ameaçando a
policia... uma situação meio que viajante. (i. v.)

No dia 10 de janeiro de 2003, o Jornal a Folha de Boa Vista,


manchete anunciou INDÍGENA FOI MORTO E ENTERRADO EM
COVA RASA NA FAZENDA DE VEREADOR. Na página policial a
notícia ganhou destaque, ocupando meia página sobre o crime do
indígena Aldo da Silva Mota. Porém, como muito bem acentuou Joênia
B. Carvalho “Mas o que se noticiou era uma briga... mas no fundo
mesmo, a questão toda era uma disputa e era uma conseqüência da
demora da homologação da Raposa Serra do Sol que tinha gerado isso,
não se divulgou”. (i.v.). Nos mais de 30 anos de luta pela homologação,
mais de 21 lideranças indígenas foram assassinadas brutalmente pela
posição tomada (SOUTO MAIOR, 2003).

A abordagem da morte do índio Aldo pelo jornal Folha de Boa


Vista pode ser compreendida pelo viés que Chaparro (2001) chama de
desumanização do texto jornalístico em que o jornalismo se contenta
com a simples exploração do conflito pelo conflito. O jornalista
Fernando Evangelista (2006) diz que o jornalismo tem o papel de saber
“costurar os fios” da história e, ao descrever sobre determinado fato,
deve ser o mais objetivo possível e contextualizar bem a informação.

Na edição do Jornal Folha de Boa Vista, 13/01/2003, na coluna


Parabólica, percebe-se uma mudança de postura, tomando posição mais
clara em favor da questão indígena:

O ASSASSINATO DO ÍNDIO Aldo Mota, em uma fazenda no


município do Uiramutã, expõe mais uma vez uma realidade que a
maioria das pessoas de Roraima teima em não perceber: a
fragilidade das relações entre a sociedade local, as instituições
públicas e os índios. E ISSO TUDO OCORRE porque quem tem
interesse direto na situação teima em não reconhecer que índio é
gente tanto quanto os demais posseiros que durante gerações
ocuparam as terras do Nordeste de Roraima e que desde sempre
trataram os nativos como animais. ENQUANTO O
PRECONCEITO não for superado, ocorrerão conflitos e
incidentes desta natureza. Com um agravante para aqueles que
não aceitam a formação de reservas indígenas. A cada novo
episódio, a lei está sempre do lado dos índios. (Folha Boa Vista,
2003, p. 03).

Porém, o que pode determinar mudança de postura em relação


aos fatos noticiados sobre a morte do índio Aldo da Silva Mota? Joaquim
(2003) observa que nenhum jornal de Roraima, em seu percurso
histórico, apresenta preocupação como os povos indígenas como
sujeitos históricos que fazem parte do cenário roraimense com suas
lendas, tradições, costumes, mitos. Também, diante da repercussão na
mídia nacional e internacional da morte do índio Aldo, os fatos
obrigaram a uma mudança na postura jornalística, idéia compartilhada
com Lima (2001) que assegura a idéia de que os fatos em relação à
organização dos povos indígenas e suas conquistas forçam a uma nova
postura da imprensa, no entanto, não se pode esquecer que a visão
predominante é a dos grupos dominantes.

MATÉRIAS COM CHARGES SOBRE A MORTE


DO ÍNDIO ALDO MOTA

Jornal Folha de Boa Vista, 11 e 12 jan. 2003. Caderno Opinião, p. 02

O humor, também como fator ideológico, a expressar o discurso


das elites nos jornais. Kossoy (2005) reconhece que as imagens têm
função fundamental e, portanto, insubstituível no registro dos
fatos e cenários. No entanto, a imagem pode prestar aos diferentes
usos interesseiros, nesse sentido, é a ideologia que determinará
sua finalidade.

Na charge publicada na Folha de Boa Vista, 11 e 12 de janeiro de


2003, aponta no título “O mártir que faltava”. Na sua forma humorada
de mostrar a repercussão do caso da morte do indígena Aldo da Silva
Mota, repassa para o leitor que a mensagem de que até que enfim surgiu
um mártir da luta pela homologação da área indígena Raposa Serra do
Sol, esquece o chargista que, durante todo o percurso de luta, mais de 20
indígenas foram assassinados por defender o direito à terra (SOUTO
MAIOR, 2003). Portanto, nega historicamente os milhares de mártires
(indígenas) que morreram vítimas de massacres e outras atrocidades,
desde o período da ocupação do Rio Branco aos nossos dias.

Ainda na charge, ao que tudo indica, os dois homens que


aparecem enrolados numa corda até o pescoço são não-índios,
provavelmente fazendeiros ocupantes de terra indígenas e que,
preocupados com a repercussão da notícia da morte do índio Aldo,
temem que a situação da homologação reverta-se a favor dos povos
indígenas. A quem interessa a morte de Aldo? Ironiza um dos
personagens da charge, provavelmente referindo-se as ONGs, Igreja
Católica ou a qualquer movimento que “levante a bandeira” da causa
indígena. Apenas esqueceu o chargista de que o assassinato do Aldo
atendeu aos interesses do mandante do crime, o ex-vereador de
Uiramutã, conhecido como Chico Tripa, como consta no processo
2003.42.00.001839-9, nas folhas 492 a 494, na denúncia do Ministério
Público, por ser um incentivador de invasões e da presença dos não-
índios na região, procurou garantir a ocupação indevida da fazenda
ordenando aos seus capangas que matassem qualquer indígena que
tentasse entrar em “sua propriedade”.

Após 3 meses da morte de Aldo da Silva, o fazendeiro Chico Tripa


foi indenizado pela ocupação da Fazenda Retiro no valor de R$ 90.000,00
(Folha de Boa Vista, 2003). Como bem diz Kossoy (2005), as imagens,
quando manipuladas, são capazes de construir no imaginário da
população “ficções documentais” e passar como realidade as “verdades
oficializadas”.
Jornal - Folha de Boa Vista, 17 jan. 2003. Caderno Opinião, p. 02

A segunda charge selecionada de um total de três referentes à


morte de Aldo da Silva Mota mostra os Instituto Médico Legal de
Roraima-IML e o Instituto Médico Legal do Distrito Federal – IMLDF.
No diálogo de possivelmente dois médicos legistas sobre o laudo do
Aldo, enquanto um aponta a verdadeira causa da morte de Aldo,
decorrente da ação de instrumento perfuro-contundente-projétil de
arma de fogo (IMLDF, 2003), o segundo “legistas” do IML de Roraima
ironiza que é natural morrer com 2 tiros. A ironia da questão do laudo
mostra o descaso com os laudos feitos no IML local.

Para Joênia Batista Carvalho, advogada do CIR, em depoimento


verbal aos autores, existem outros casos semelhantes ao que aconteceu
com o laudo do Aldo, ao apontar morte natural e indeterminada, mas
ninguém denuncia.

Inúmeros fatores podem estar relacionados ao erro, como


enfatizou Joênia B. Carvalho, mas somente uma investigação policial
pode determinar o que houve de fato.
O ex-deputado Titonho Beserra, do Partido do Trabalhadores,
líder do governo na época, que poderia ter no mínimo afastado o médico
legista, em entrevista a Folha de Boa Vista (24/03/2003) sobre erro do
laudo do índio Aldo, feito pelo IML local, fez um questionamento: “O
resultado saiu distorcido porque a vítima era um indígena que defendia
a demarcação da Raposa/Serra do Sol em área contínua ou este tipo de
equívoco é comum independentemente de quem seja o corpo?”.
A morte do indígena Aldo Mota, passado mais de 5 anos, ainda
não teve um desfecho, o processo encontra-se tramitando na enfadonha
burocracia do Poder Judiciário aguardando o julgamento dos acusados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim diz a historiografia local sobre a convivência entre índios


e não índios:

Do início do século XX até 1970, os índios viviam em clima de


harmonia (grifo nosso) com os não-índios, segundo se aludiu
inicialmente. Nesse período, houve uma integração social
e até cultural. Os índios passaram a conhecer e utilizar os
objetos e alguns equipamentos de produção trazidos pelos não
índios, como terçado, enxada, machado, serrote e outros.
(MIRANDA, 2004, p.113)

Tais afirmações ideológicas não resistem a uma investida


epistemológica da história, enquanto ciência que investiga, analisa e
critica os fatos ditos como verdadeiros. Desmascarar as versões oficiais
da história, que somente agradam a uma pequena elite e mostrar outras
leituras foi uma tarefa que exigiu uma ampla pesquisa em várias fontes.
As fontes pesquisadas mostraram que a versão oficial da história são
facilmente refutadas pela vasta documentação que apontam para
conflitos extremamente violentos. Então, o que justifica para os ditos
historiadores e mídia local sustentarem uma versão mentirosa da
história? A resposta é óbvia: a ideologia.

Dificilmente a realidade roraimense foge a essa seqüência teórica,


sendo um jogo articulado entre políticos, imprensa e outros atores
sociais. Lövy afirma que “[...] as visões de mundo, as ideologias, a
superestrutura, não configuram idéias isoladas mas um conjunto
orgânico” (2003, p.105). Tudo se encontra articulado com finalidades
bem definidas e claras, no caso específico à situação da questão indígena
em Roraima, os políticos, como representantes da classe social
dominante, utilizam-se da impressa para impor a sua visão de mundo e
negar toda a história de conflitos e violência. A articulação entre classe
política e a imprensa é estabelecida numa dinâmica de poder como bem
esclarece Michael Foucault ao afirmar que:

O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor,


como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui
ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como
uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede.
(FOUCAULT, 1990:183).

Isto é, o poder é um exercício muito bem articulado que procura


anular o outro (os indígenas) do processo histórico. Os grupos no
exercício do poder em Roraima são muito bem unidos quando o assunto
é demarcação das terras indígenas, basta perceber a imprensa escrita,
falada e televisionada afinadas com os discursos dos políticos,
fazendeiros, rizicultores, empresários, tudo “em rede”, num grande
exercício de coesão, defendendo os interesse dos grupos dominantes.
A imprensa em Roraima está muito articulada com outras esferas dos
“micros poderes”, utilizando a expressão de Foucault, exercem um
grande domínio local para atacar, denegrir todos aqueles que defendem
o direito dos grupos étnicos, principalmente os indígenas. Confirma
Mamou: “A imprensa é um poder. E esse poder, o jornalista o exercita à
seu bel-prazer. O que quer dizer mal” (1992: 91).

Joaquim (2003) confirma essa proximidade da imprensa com os


políticos: “Esses atores, na sua maioria, se utilizam da impressa local
para divulgar seus posicionamentos contrários à demarcação contínua
através das páginas dos noticiários dos jornais, mostrando às
autoridades competentes e ao público leitor, a inviabilidade da
demarcação” (2003, p. 26). Assim, boa parte da população adere à
ideologia política, tomando a imagem do discurso pelo real,
construindo, desta forma, uma falsa representação do quadro histórico
roraimense. Observa Joaquim que no caminhar histórico dos jornais em
Roraima: “Nenhum deles, desde a fundação apresenta preocupação
com os índios, como seres que fazem parte do cenário roraimense, com
seus costumes, suas lendas, seus mitos, a não ser como empecilho para o
desenvolvimento de Roraima [...]” (2003:177).

As classes sociais dominantes ao fazer valer sua visão de mundo


procuram anular a história de violência praticada historicamente
pelos colonizadores, fazendeiros, garimpeiros, mineradores,
rizicultores, para isso contam com o auxilio da imprensa para negar os
fatos afirmando que sempre “brancos e índios viveram pacificamente”
em Roraima.

Entendemos também que não são as demarcações das terras


indígenas que são o empecilho para o desenvolvimento regional, mas
sim a ausência de políticas públicas e projetos econômicos dos
governantes, que envolvam as comunidades indígenas (VIEIRA, 2007).
O maior problema brasileiro não são os índios com suas terras, muito
embora se apregoe o contrário, uma parte dos problemas do Brasil é a
concentração de renda e de terras nas mãos dos grandes empresários e
latifundiários e também a corrupção política e administrativa
(GUIMARÃES, 2005).

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DIFERENÇAS ÉTNICAS E O
LUGAR DO ÍNDIO NA ESCOLA
EM BOA VISTA
JONILDO VIANA DOS SANTOS*

RESUMO: Trata de uma parte de minha pesquisa de mestrado que investigou o


preconceito étnico como um fenômeno social percebido nas salas de aula das escolas de
ensino fundamental na cidade de Boa Vista, entre estudantes etnicamente diferentes.
Nesse contexto de diferenciações os indígenas são vistos como sujeitos étnica e
socialmente inferiores, vítimas vulneráveis da violência, e da não aceitação para a vida em
uma sociedade não-indígena. A discriminação está quotidianamente presente nas relações
sociais, embora seja disfarçada por mecanismos sutis de evitação, mas que interferem no
acesso do índio às oportunidades de maneira igualitária em relação a outros grupos
étnicos estabelecidos. Estudamos os mecanismos de configuração do preconceito étnico no
ambiente escolar e sua relação com a construção das identidades. Percebemos que essa
projeção negativa sinaliza que atitudes ou comportamentos preconceituosos e
discriminatórios que se concretizam através da verbalização, da exclusão, causam
estigmatização por parte do excluído.

PALAVRAS-CHAVE: Preconceito, Discriminação, Identidade, Representações, Estigma.

INTERAÇÃO SÓCIO-REPRESENTATIVA DOS


SUJEITOS DO CONFLITO ÉTNICO

Essa discussão é uma tentativa reflexiva de explicação do


fenômeno¹ social que foi percebido nas salas de aula do ensino
fundamental na cidade de Boa Vista, capital do Estado de Roraima,
durante nossa permanência como docente por cinco anos com turmas de
terceira e quarta séries. Esse fenômeno é o preconceito étnico entre
alunos de fenótipos diferentes, ou seja, os de pele clara, que chamaremos
de não-índios, filhos de migrantes e os de pele bronzeada, olhos puxados,
filhos de indígenas, que aqui chamaremos de índio-descendentes, não
usaremos os termos “caboclo ou caboco”, pelo fato do adjetivo permear

* Mestre em Educação pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM


um sentido pejorativo construído sócio-historicamente como um termo
que designa pobreza material e física em seus sentidos mais
abrangentes. Pautamo-nos para essa postura em Gomes (1991), que diz
que “esse termo pejorativo é dado àqueles índios, que ficam a margem
do desenvolvimento [...] era, e ainda é uma maneira piedosa de tratar os
índios e seus descendentes”. Portanto, achamos inconveniente usar o
termo “caboco ou caboclo” para designar os descendentes de indígenas.

A percepção da problemática em si nasce dos conflitos em uma


escola pública localizada numa região pobre da cidade de Boa Vista,
povoada em sua maioria por migrantes das mais diversas regiões do
Brasil e de Roraima, observamos que durante as atividades didáticas em
turmas de alunos da terceira e quarta séries do ensino fundamental, na
faixa etária de idade entre oito e dez anos, assuntos que relacionavam a
imagem do indígena não eram bem vindos. Com isso, percebíamos nos
alunos não-índios um discurso excludente, beirando a ojeriza, que
representava a opinião que traziam consigo de algum lugar, a formação
e a trajetória dessas manifestações nos intrigaram. Na prática docente
em experiências didático-pedagógicas, como interpretação
textual/visual, com objetivo de trabalhar a percepção e a criticidade,
tendo como recurso imagens de paisagens de lugares pobres e hostis,
com pessoas desnutridas ou fora dos padrões de beleza estabelecidos
que traziam consigo, era comum ouvirmos dos alunos não-indígenas
comentários do tipo: “aquela região é pobre, lá não tem comida, as crianças
morrem de fome, é chato e só tem índio...”; por outro lado os alunos índio-
descendentes silenciavam-se.

Nossa análise das manifestações discriminatórias e


preconceituosas no ambiente escolar passa por uma discussão
fomentando a formação identitária, a partir da formação populacional
da cidade de Boa Vista capital, e do Estado de Roraima, através da
contextualização sócio-histórica, e como esse contexto foi materializada.
A noção de identidade aplicada ao ambiente escolar em um contexto
multicultural nos remete a uma reflexão sobre a existência
representativa no imaginário social de concepções sociais e culturais do
que concerne ser indígena ou seu descendente no espaço urbano.

Para tanto, fizemos recortes teóricos interdisciplinares, elegendo


com um desses recortes a Teoria das Representações Sociais, por ser uma
discussão teórica, que tem como procedimento metodológico observar a
vida cotidiana dos sujeitos através da expressão do senso comum, que é
elaborado socialmente, funcionando no sentido de interpretar, pensar e
agir sobre a realidade, a partir de um conteúdo simbólico e prático.
Ela favorece o desvendar dos mecanismos de funcionamento da
elaboração social do real, tornando fundamental no estudo de idéias e
condutas sociais, seu uso se dará nas interpretações discursivas e
textuais escritas e faladas.

Concomitante, faremos um debate sobre Identidades, por ser


considerada uma categoria de análise que irá mediar a compreensão da
tomada de postura do sujeito no espaço social, ou seja, a identidade
constitui a execução de um papel social, um elemento que é utilizado
como referencial para submeter o objeto a uma análise de sua dimensão
social; um recurso teórico que vai subsidiar a compreensão do fenômeno
da aceitação e exclusão.

Buscamos examinar as propriedades do fenômeno, dentro de


uma totalidade, observando as contradições existentes entre os
elementos da base social e da educação em uma sociedade recém
formada, analisando de que maneira essas contradições acabam se
relacionando no estágio social numa abordagem privilegiando o
diálogo entre os sujeitos da pesquisa e os teóricos. Iniciamos o debate
sobre a relação social estabelecida no ambiente escolar e a vertente étnica
entre os alunos do ensino fundamental, discorrendo sobre a teoria da
representação social, que como dito outrora se trata de uma forma de
conhecimento prático, de senso comum, que circula na sociedade. Esse
conhecimento é constituído de conceitos e imagens sobre pessoas,
papéis, fenômenos do cotidiano.

Sobre o conceito de representações sociais, encontramos algumas


definições significativamente diferentes na literatura científica. Sá
(1998) cita o uso como derivação genérica de representação para o
campo do pensamento social como vinculação teórica com outras
perspectivas microssociológicas e, ainda, sob a perspectiva de Berger;
Luckmann (2005).

Seu precursor é Serge Moscovici que em 1961 com a publicação de


Psychanalyse: son image et son public, inaugura o debate sobre teoria das
representações sociais, que desde então nasce, se distinguindo por
apresentar a existência de um pensamento social resultante das
experiências, das crenças e das trocas de informações presentes na vida
cotidiana, objetivando desenvolver uma teoria menos individualista
que a psicologia social estadunidense e, também, um posicionamento
relacional entre o pensamento sociológico e a psicologia social,
mediadora entre o homem e o seu meio (MOSCOVICI, 1961, p.10).
Sua análise foi desenvolvida, a partir da crença que a sociedade atual,
mais tecnificada e complexa, necessitaria de outro conceito, menos
genérico que as representações coletivas de Durkheim, para
acompanhar, explicar e tentar compreender como ocorre a formação do
pensamento e do conhecimento social. Georges Friedmann converge
com Moscovici quando diz que:

Hoje, a visão do mundo que tem o adulto das cidades não é


explicável somente pela ação geral da sociedade, das
'representações coletivas'. É indispensável colocá-las em cada
caso em relação com o lugar concreto que o indivíduo ocupa na
sociedade e com os caracteres particulares do meio técnico
(FRIEDMANN, 1968 p. 47).

Para Moscovici, o fenômeno das representações sociais é próprio


das sociedades de estruturas complexas, na qual os acontecimentos
ocorrem em ritmo acelerado, onde não há tempo suficiente para que as
representações se tornem uma tradição estática, ou seja, das sociedades
contemporâneas em constantes e aceleradas transformações. Não se
resumindo a acontecimentos culturais ou políticos, este fenômeno
constitui uma forma de pensamento social que inclui as informações,
experiências, conhecimentos e modelos arquetípicos que, recebidos e
transmitidos pelas tradições dinâmicas, pela educação e pela
comunicação, circulam e influenciam a sociedade.

Moscovici (2003) endossa que as representações sociais são


resultantes da relação entre nossos mundos interno e externo. Todas as
interações humanas entre duas pessoas ou entre dois grupos,
pressupõem representações que são criadas internamente.
O pensamento coletivo se individualiza através desse processo
mental, interno.
O referido teórico atribui duas funções às representações.
A primeira refere-se à convecionalização de objetos, pessoas ou
acontecimentos. Tais elementos, em um primeiro momento são
localizados em uma categoria e depois, gradualmente, são colocados em
um modelo compartilhado por um grupo de pessoas, internizados e
depois externalizados. Por exemplo, associar a cor da pele ao caráter, ou
o indígena ao atraso desenvolvimentista. Esses são exemplos de
representações compartilhadas por um grande número de pessoas e que
nos permitem compreender como um sujeito ao ser posto na categoria
indígena pode passar a integrar o modelo do atraso capitalista. Todos os
elementos que emergem se juntam a esse modelo e se sintetizam nele,
criando uma relação que o define, e os legitima como tal.

Até mesmo aquilo que não se encaixa em uma categoria, acaba se


adequando à mesma mediante um esforço do sujeito. Cada experiência é
somada a uma realidade predeterminada por convenções sociais que
nos ajudam a interpretar e distinguir uma mensagem, classificando-a
como significante em relação a outras ou como um acontecimento
conjuntural, pontual, um bom exemplo desse fenômeno é luta dos
indígenas pela demarcação e homologação de terras em Roraima.
Nessa perspectiva, são vistos como o entrave ao desenvolvimento do
Estado. Portanto, não são bem vistos pelo não-índio.

A segunda função é prescritiva, ou seja, refere-se a uma tradição


que decreta o que deve ser pensado, impondo-se aos sujeitos.
Nesse sentido, as representações são o produto de elaborações e
mudanças que ocorrem em sucessivas gerações e são partilhadas
influenciando a mente dos sujeitos pelos meios comunicacionais
institucionalizados, entre eles a Escola.

As pessoas longe de serem receptores passivos, pensam por si


mesmas, produzem e comunicam-se incessantemente suas próprias e
específicas representações e soluções às questões que eles mesmos
produzem. Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, escolas
etc., as pessoas analisam comentam, formulam idéias espontâneas, não
oficiais, que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas
escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como planejam seu
futuro etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias apenas lhes
fornecem o alimento para o pensamento (op. cit. p. 45).
Informações novas, típicas das sociedades complexas, imagens,
descrições que passam a circular na sociedade passam, também, a
ocupar um lugar no imaginário social e são reproduzidas pela
linguagem, revelando sua ligação com conhecimentos anteriores.
Dessa maneira, as experiências passadas não são idéias mortas, agora
desempenham atividade, penetrando e modificando as atuais
experiências e idéias.

Com este argumento, Moscovici refuta, simultaneamente, os


principais argumentos do behaviorismo e da psicologia cognitivista,
que vêem a representação como um elemento estático, anacrônico. Para
os behavioristas, a mente era apenas uma página onde nossas
experiências sensoriais podem ser escritas. Para os cognitivistas, esta
página se transforma num receptáculo onde “as informações,
palavras e pensamentos poderiam ser totalmente manipulados ou
previsíveis”, a depender do estímulo dado (SCHULTZ; 1992 apud
HERZLICH, 2005,p. 410).

A compreensão do pensamento do sujeito se daria através da


aferição dos estímulos, não havendo diferença entre as reações dos
sujeitos comuns e dos cientistas especializados (MOSCOVICI, 2003).
Moscovici defende que sujeitos ou grupos não são receptores passivos,
mas participantes importantes de uma sociedade complexa,
elaboradores de um pensamento social qual constantemente avaliam,
reavaliam seus problemas e soluções.

Com o objetivo de provar as hipóteses de sua teoria, Moscovici


procura desvendar como ocorreria a apropriação do conceito científico
da psicanálise pela sociedade francesa, pois acreditava que a guerra e a
instabilidade social, a inquietude e ansiedade fariam com que o público
leigo adaptasse conceitos formais divulgados pelos meios de
comunicação e pelas pesquisas científicas em algo mais tangível e
diferente do pretendido pela comunidade científica. Assim, o conceito
formal da psicanálise, é transformado em um conceito diferente do
original, ou seja, em uma representação social.

Moscovici (1961, p. 308) conclui que esta resignificação possui um


fim prático ao sujeito e ao grupo, desenvolver uma idéia que fosse mais
simples de compreender, ou seja, pela lógica não científica, o senso
comum, e que pudesse, ao mesmo tempo, dar chance às pessoas na
resolução de seus próprios problemas e conflitos.

No entanto, permitir que problemas pessoais ou do grupo


possam ser resolvidos a partir da elaboração deste senso não justificaria
a existência de uma representação. Quando uma resignificação torna-se
necessária é porque existem conflitos entre o que foi dito e o
efetivamente compreendido. As representações expõem estes conflitos,
apresentam uma nova compreensão e permitem que discursos
diferentes convivam num mesmo ambiente, sobre essa resignificação
Moscovici argumenta que a,

la représentation facilitant l'énoncé de nombreux conflits


normatifs, nationaux, souciaux, permet en même temps
une transposition des langages hétérodoxes, de conceps et
de théories réputés como ésotériques et qui, de ce fait,
deviennent des instruments pour la communication et le
comportement collectis² (MOSCOVICI , 1961, p. 309).

Dessa maneira, a teoria das representações sociais nos ajudaria a


explicar o fato de encontrarmos em nossa sociedade a discriminação e o
preconceito étnico, apesar das explicações científicas que procuram
demonstrar o contrário, que vivemos em uma democracia racial e que esse
problema não nos afeta. O autor nos informa que as idéias novas são
familiarizadas, a partir do conhecimento já existente de forma a não
colidirem ou ameaçarem a realidade pré-existente. O resultado é que as
representações exercem o papel de intermediárias entre o conceito e sua
percepção, entre o sistema cognitivo e a estrutura social, tornando-os
intercambiáveis (MOSCOVICI, 2003, p. 127).

São "ao mesmo tempo ilusórias, contraditórias e verdadeiras".


Embora consideradas matérias primas importantes para análise
do social e também para a ação político-pedagógica de
transformação, "as representações sociais não conformam a
realidade e seria outra ilusão tomá-las como verdades científicas,
reduzindo a realidade à concepção que os atores sociais fazem
dela" (MINAYO, 1996, p. 174).
Com estas características, Moscovici conclui que o propósito das
representações sociais é o de prevalecer o acontecimento representado
sobre a tradição e a lógica. Um possível distúrbio ou problema é
avaliado, classificado com relação aos registros anteriores e adaptado ao
ambiente já convencionado, legitimando o poder das representações
sociais em alimentar as práticas em vigor na sociedade, perpetuando-as
ou transformando-as (SÁ, 1998, p.50), e exercendo o papel de integração,
de estruturação das identidades individuais e sociais e de comunicação.

Moscovici nos mostra dois universos de pensamento que


compõem as representações sociais: o consensual e o reificado. O primeiro
é o lugar onde as representações sociais são produzidas, ambientadas, o
conhecimento é espontâneo, elaborando suas opiniões e respostas sobre
política, ciências, educação, ecologia, violência, etnofobia, doença,
desigualdade social, orientação sexual, ou seja, as noções apreendidas e
compartilhadas nas instituições: na escola, em casa, na rua, no ambiente
de trabalho ou pela mídia (MOSCOVICI, 2003, p. 187). Esse universo
está em contínuo movimento e os sujeitos são transformados, muitas das
vezes, involuntariamente em cúmplices por meios da coerção, podendo
falar em nome do grupo e ser protegido por ele. Esta arte da convivência
flexível é que torna possível a vida social.

O universo reificado é o científico, onde há o certo e o errado,


o verdadeiro e o falso, o autorizado e o não autorizado, o qualificado e o
não qualificado, observados e julgados através do instrumental
metodológico. Há posições sociais e categorias determinadas de
acordo com os contextos conjunturais apresentados. Os conceitos
resignificação que resultam em representações se encontram no
universo reificado, enquanto as representações sociais, no consensual.
Esta resignificação deve ser observada de maneira imparcial, que, em
um primeiro momento pode parecer inapropriado ou errado, tem como
mérito nos mostrar qual foi o raciocínio empregado, qual a sua lógica
basilar estrutural.

A relação entre internalidade e externalidade expõe a maneira


como os sujeitos lidam com o novo, com o não-familiar, adequando-o a
conhecimentos já adquiridos. Representações constituem-se em um
esforço do sujeito para tornar familiar, o não-familiar, movimento
contrário é percorrido pela ciência, que busca transformar o familiar em
não-familiar, problematizando a realidade, o conhecido, em busca do
desconhecido. Sob este ponto de vista, a ciência estabelecida pelos meios
acadêmicos e representações sociais são diferentes. Mas a relação entre
ambas pode ser de complementaridade sob outra perspectiva.
À medida que novas teorias e informações surgem, trazendo o não-
familiar para nossas vidas, há a necessidade de reproduzir estas
novidades em um nível mais imediato e acessível, ou seja, em
representações. Assim, no mundo atual, ciência e representações
caminham juntas. Segundo Moscovici a ciência, antes baseada no senso
comum, fazia do senso comum algo menos comum. No mundo
complexo o senso comum é a ciência.

“Cada fato, cada lugar comum esconde dentro de sua própria


banalidade um mundo de conhecimento, determinada dose de cultura e
um mistério que o faz ao mesmo tempo compulsivo e fascinante.”
(op. cit. p.60).

Outro aspecto das representações sociais é a transitoriedade do


familiar ao não familiar, faz-se necessário dois mecanismos: ancoragem
e objetivação. Ancorar significa reduzir idéias estranhas a categorias e
imagens comuns, dando-lhes uma feição de familiaridade. Todo indígena
é burro. Objetivar significa transformar algo abstrato em algo quase
concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo
físico. Discriminação étnica. Objetivação une a idéia de não-familiaridade
com a de realidade. Toda representação torna real um nível diferente da
realidade. Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma idéia,
reproduzir um conceito em uma imagem (op.cit. p. 71).

As representações sociais são históricas na sua essência e


influenciam o desenvolvimento do sujeito desde o seu nascimento.
As imagens e conceitos que orientam a ação familiar são derivados de
todas as experiências de seus pais desde seus tempos de escola infantil a
idade adulta, de conversas com familiares e com outras famílias, das
leituras que fizeram, das novelas de televisão aos quais assistiram, bem
como de suas experiências pessoais. São estas imagens e conceitos
aprendidos que determinam seu relacionamento com outros sujeitos, o
significado que ela dará aos seus sentimentos, seus comportamentos e a
maneira como organizará o ambiente no qual está inserido. No caso
específico do sujeito da pesquisa, alunos do ensino fundamental, a
compreensão que os pais têm desse sujeito em formação modela sua
personalidade e constrói a base para a sua socialização. A dimensão
histórico-social é central para compreendermos os elementos que
compõem as representações dos sujeitos.

CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE SOCIAL


E UNIVERSO ESCOLAR

A Teoria da Identidade Social parte da premissa de que todos têm


uma necessidade de lograr uma identidade individual positiva e que o
status que têm os grupos de pertença contribui para conseguir tal feito,
assim, o sujeito encontra-se num contínuo processo de comparação e
pertencimento.

Falar sobre identidade quando se discute diferença étnica, nos


remete à complexidade do conceito na contemporaneidade. Mudanças
estruturais no fim de século XX, e início do XXI, como o fenômeno da
globalização, facilitam a troca, a interação, transformando as certezas
que temos a respeito de nós próprios em relação às diversas identidades
que assumimos. A influência das transformações estruturais sobre as
identidades prevê sua constante transformação, a partir de trocas com
outras culturas e suas identidades (Hall, 1997).

Sua utilização mais evidente tem ocorrido em espaços


segmentados como os da “identidade étnica, da identidade nacional e da
identidade de gênero, encontrando, sobretudo no tocante à identidade
étnica uma sofisticação bastante notável” (DUARTE apud DURHAM, et
al, 1986, p. 70).

Por isso, consideramos necessário empregar o debate sobre


identidade nesta discussão, dentro da análise das representações e das
relações sociais dos alunos, nos dando uma amplitude no conhecimento
e entendimento de categorias postas nesta descrição analítica.

A identidade baseia-se em compartilhar valores, crenças, idéias e


práticas das quais tem os sujeitos, afinidades e que o elemento valorativo
pese em suas ações de adesão daquilo que o satisfaz e que julga ser bom e
importante para sua sobrevivência. Outro viés da identidade é a
diferença, que se debruça no reconhecimento pelo outro, do conjunto de
características individuais e grupais através das quais se distinguem e
buscam se reconhecer dentro do espaço social.

Nessa perspectiva, a construção de um “eu indígena” ou de um


“eu não-indígena” de modo individual e/ou coletivo, ocorre a partir das
relações sociais que se estabelecem entre o aluno e seu grupo,
comunidade interna em sua volta, levando em conta os aspectos
culturais suportados e estabilizados, no sentido de atribuir uma
obviedade, por um processo social que acate simultaneamente de forma
dialética, as ações de identidade e diferenciação.

Esse reconhecimento que se busca no outro, importa mais do que


características em si mesmas. Isso indica que o conceito de identidade é,
antes de tudo, um conceito relacional; é a afirmação de um “Eu”, de um
“Nós”, diante de um “Outro”, ou seja, uma identidade relativa.
Um modo particular específico, diante de um geral. Os processos de
formação e construção de identidades são considerados frutos das
relações dos sujeitos ou grupos com processos sociais mais amplos e,
portanto, compreensíveis a partir da busca de legitimidade para suas
especificidades.

A identidade do aluno é uma construção que se faz com atributos


culturais, se caracterizando por elementos preexistentes a ele; outros,
adquiridos por ele no exercício de sua relação no grupo, conferindo
diferenças aos demais grupos internos no estabelecimento de ensino.
E, entre suas personalidades, conferindo a idéia de um elemento dentro
da estrutura institucional que é a escola, se evidenciando quando
contrasta na diferença do outro, se legitimando de maneira subjetiva.

Com base em Cardoso de Oliveira (1985, p. 45), dentro da


concepção de identidade do aluno, notamos existir a identidade
contrastiva de afirmação do “eu” migrante, filho de agricultores ou de
indígena, em detrimento do “eu” morador da zona urbana, tomada de
consciência de sua condição presente, de identidade combinada entre
seus pares e suas relações aluno-aluno, aluno–família, aluno–sociedade,
utilizando-se da combinação identitária em cada situação.
As identidades modelam-se no cumprimento do dever como estudante,
tentando buscar uma compatibilidade entre a antiga representação
(rural/tribal) e o atual (urbano).
Esse processo identitário na escola decorre de um
desenvolvimento etário socializador acumulativo que permite ao aluno,
do momento de sua entrada e de sua estada como educando, uma
adaptação nos diferentes ambientes espaciais da escola. Construindo-se
ao longo de processos históricos dos grupos humanos e da
necessidade de permanência no grupo social a fim de se firmar no
contexto de existência.

Os alunos quando vão para escola se confrontam com uma


realidade diversificada, não muito diferente da que se observava fora do
estabelecimento de ensino, com regras e normas tanto dentro como fora.
Inserido em um novo contexto, assume uma nova postura social,
quando é aceito pelo grupo onde os outros sujeitos estão nas mesmas
condições de agregados de uma ordem, como declara Santos Oliveira:

Os indivíduos normalmente agem de acordo com os padrões


estabelecidos pelo grupo social em que vivem. Assim como um
indivíduo pode possuir mais de uma identidade, assumindo de
modo coerente os papeis e comportamentos que à ele são exigidos
(2002, p. 142).

Nesse contexto, as identidades são construídas de maneiras


diversas, de acordo as diferentes sociedades, o lugar social que o sujeito
ocupa, os conjuntos de valores, idéias e normas, formando seu
instrumento de leitura para a interpretação do mundo. Assim, cada
sujeito, segundo seu contexto sócio-histórico e a partir desses
referenciais, vai organizando a sua percepção da realidade. Sabemos
também que possuímos várias identidades. A identidade pessoal, a
identidade social, a identidade familiar, a identidade nacional etc.

Assim também é com a criança, ela possui uma identidade na


família, na escola, no grupinho, na educação física, em casa, na igreja.
Como há muitas identidades, precisamos pensar como a criança se
relaciona com a família, com a escola, no local onde mora, etc., para
pensar a sua identidade.

A alteridade na construção da identidade é fundamental, pois a


imagem que o Outro faz do infante pode interferir na construção da
imagem que ele faz de si próprio. Pois é neste momento de sua vida que
têm os primeiros contatos com os Outros que não de sua casa.
Daí extingue-se a idéia que a criança é um sujeito que pela sua idade não
estabelece relações sociais.

Goffman (1992), em sua investigação sobre as interações


ocorridas entre atores sociais na vida cotidiana e as construções
resultantes destas interações, afirma que os sujeitos constroem suas
identidades; e que a manutenção destas identidades depende do
processo resultante das interações mantidas por estes sujeitos
no processo de compreensão de si próprios e de suas intervenções na
realidade vivida. Esse autor diz que as identidades coletivas passaram a
ser compreendidas a partir de, não só um agregado de interações sociais,
mas também da razão político-estratégica de atores sociais. Podemos
considerar que nas últimas três décadas do século XX, como sendo quase
um consenso a idéia de que identidades coletivas são construções
políticas e sociais e que devem ser tratadas como tal, como referencial.

A noção de identidade dentro do contexto de sociedades


complexas rompe com as dicotomias entre indivíduo e sociedade;
passado e presente, bem como entre ciência e prática social, estão tão
associadas à idéia de acontecimentos sociais como esta última à
primeira. O sentido de continuidade e permanência presente em um
sujeito ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que é
lembrado, quanto o que é lembrado depende da identidade de quem
lembra. Da mesma maneira que a identidade, os acontecimentos sociais
também deixaram de ser pensado como um atributo estritamente
individual, passando a ser considerada como parte do processo
social em que aspectos da psique se encontram interligados a
determinantes sociais.

A identidade, enquanto imagem cognitiva assimilada pelos seus


integrantes, se estrutura por meio dos processos de identificação do
sujeito com a sociedade. Há, contudo, outro elemento que interage nesse
processo de formação da identidade, que é a cultura. Ela influencia a
identidade na medida em que os valores e crenças do grupo interferem
na representação que eles constroem (CUCHE, 1996).

No processo histórico, o homem se reconhece como sujeito que


faz, vive e influencia, e é influenciado pela história, tendo como
principal objetivo a construção de sua identidade, onde se articulam os
aspectos grupais e individuais, o particular e o geral, proporcionando
uma reflexão do sujeito dentro da sociedade ou grupo “não há
sociedades sem cultura, do mesmo modo que não existe ser humano
destituído de cultura”, conseqüentemente sem identidade (SANTOS
OLIVEIRA, 2002, p. 135). “Toda identidade é socialmente construída no
plano simbólico da cultura” (MARQUES,1997, p.67).

A identidade é constituída pelo conjunto de representações que


seus integrantes formulam sobre seu significado, em um contexto social,
isto é, quem são seus integrantes compreendem a si mesmos como um
coletivo. É importante salientar que além da noção da representação
construída pelos sujeitos, existe também uma complementaridade entre
a identidade e a cultura imbricadas, pois a segunda influencia
amplamente a primeira, na medida em que a cultura abarca o repertório
simbólico e de valores com os quais os sujeitos constroem as
representações acerca dos fenômenos. Nesse sentido, seu significado é
construído pelos seus integrantes, a partir dos parâmetros culturais que
eles dominam. Sobre a dimensão simbólica de construção de
identidades Geertz contribui argumentando que,

desvencilhar as dimensões simbólicas da ação social – arte,


religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum – não é
afastar-se dos dilemas existenciais da vida em favor de algum
domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é mergulhar
no meio delas. (GEERTZ, 1989, p. 40)

Como em outros processos identitários, a identidade do discente


se constrói gradativamente, num processo que envolve inúmeras
variáveis, causas e efeitos, desde as primeiras relações estabelecidas no
grupo social mais íntimo, que é a família, em que os contatos pessoais se
estabelecem permeados de sanções e afetividade e no qual se elaboram
os primeiros ensaios de uma futura visão de mundo e vai criando
ramificações e desdobramentos, a partir das outras relações que o sujeito
estabelece em seu meio.

A identidade da criança é entendida aqui como uma construção


social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um
grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo
étnico/racial sobre si mesmos, a partir da relação com o outro (GOMES,
2003). A reflexão sobre a construção da identidade da criança não pode
prescindir da discussão sobre a identidade como processo mais amplo,
mais complexo. Esse processo possui dimensões sociais que não podem
ser separadas, pois estão interligadas e se constroem na vida social.

Como sujeitos sociais, é no âmbito da cultura e da história que


definimos as identidades sociais. Essas múltiplas e distintas identidades
constituem os sujeitos, na medida em que estes são interpelados a partir
de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais.

Reconhecer-se inserido numa delas, o discente supõe, portanto,


responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido
de pertencimento a um grupo social de referência. Nessa perspectiva,
quando pensamos a escola como um espaço específico de formação,
inserida num processo educativo bem mais amplo, encontramos mais
do que currículos, disciplinas escolares, regimentos, normas, projetos,
provas, testes e conteúdos.

Pensamos que a identidade social dos alunos passa a significar


uma complexa estratégia na luta desigual pela sobrevivência material e
simbólica. Estamos diante da incorporação de identidades que, em
decorrência de eventos históricos, introduzem novas relações de
diferença, as quais passam a ser fundamentais no domínio dos espaços
sociais na escola. Assim, podemos pensar as identidades não como
sendo fixas, mas, tomando os argumentos de Boaventura Santos (2000),
como identificações em curso, integrantes do processo histórico
da modernidade, no qual concorrem velhos e novos processos de
recontextualização e de particularização das identidades.

DO PRECONCEITO A ETNOFOBIA E A DISCRIMINAÇÃO

A elaboração desses conceitos teve início no final do século XIX,


com a construção da teoria das diferenças inatas e permanentes entre
brancos e não-brancos. Essas elaborações influenciaram de modo
marcante a compreensão das ciências sociais sobre a questão racial.
Essa prática, que utiliza critérios de raça para segregar, humilhar,
discriminar, foi denominada racismo (CAVALLEIRO, 2003).
Três escolas emergiram nesse período. A etnológico-biológica
acreditava que a inferioridade das raças estava ligada às diferenças
físicas, podendo explicar outras diferenças culturais. Para comprovar
suas elaborações, cientistas dedicavam parte de seus estudos a medir
crânios e esqueletos, na busca de provar a correlação entre os caracteres
inatos e culturais, levando a uma acentuação do caráter primitivo de
determinadas raças (SKIDMORE, 1976).

Essas construções científicas vieram contribuir para


a consolidação de estereótipo imaginário social, acreditando que a
distinção moral "estava contida" na essência racial, ou seja,
características depreciativas como: o índio não sabe falar, não tem
educação, não tem história, não tem cultura, não é bonito, não é
inteligente, não pode liderar, entre outras características, estariam
ligadas intrinsecamente a questões fenotípicas, isto é, uma redução do
cultural ao biológico, desvalendo-se as características individuais e
sociais do sujeito. As marcas do corpo ou caracteres físicos demarcam as
distâncias e os locais ocupados no prestígio social. Por meio de um traço
"objetivo" — caracteres físicos —, indica-se o caminho para construções
arbitrárias, baseadas na ideologia dominante, as quais passam a atribuir
significados que desqualificam a identidade dos povos indígenas.

Para entendermos a relação entre racismo e o preconceito, Heller


nos informa que trata-se de uma idéia ou opinião antecipada, sem maior
ponderação ou conhecimento da realidade objetiva, que prejulga
características sejam elas físicas, étnicas ou sociais, dependendo da
maneira de como é usada essa opinião provoca o fracasso pessoal,
sendo limitador das potencialidades do sujeito e como tal não permite
que esses sujeitos possam viver a vida, já tão limitada pelas condições
cotidianas das sociedades complexas, em sua plenitude possível, por
causa de sua classe, cor ou origem. Por conta do meio social,
muitas vezes assumimos estereótipos, analogias e esquemas elaborados,
por outro lado somos envolvidos pelo meio em que crescemos
(HELLER, 2000).

Nesse sentido, pode-se passar muito tempo até que percebamos


criticamente tais esquemas impostos. Às vezes, passam-se gerações
inteiras sem que se problematizem os estereótipos de comportamento e
pensamento. Outras vezes, pode-se questioná-los num menor espaço de
tempo. O preconceito sempre é visto como um fenômeno social de
menor importância e não relacional.

Quando esse preconceito é relacionado às diferenças, a partir da


cor da pele e do fenótipo, se torna um modelo discriminatório recalcado,
escondido atrás de um sistema de valores explícitos, que inibe o outro na
sua avaliação. Essa segregação disfarçada estimula o imaginário da
igualdade e da harmonia étnica entre nós, pois não se assume que existe
esse tipo de comportamento (BORGES PEREIRA, 1996, p. 76).
A ocultação da discriminação étnica na sociedade brasileira foi
estimulada pelo discurso da democracia racial, da qual Gilberto Freyre é
um grande expoente, na década de 1930, seguido por Oliveira Viana³ na
década de 1940, e que só começou a ser contestado na década de 50 por
Florestan Fernandes e Oracy Nogueira4.

Nessa perspectiva teórica, o preconceito contra índio-


descendentes no ambiente escolar é tido como tratamento diferenciado
conferido a certos membros em sala de aula, que se são identificados
como diferentes de “Nós” (GUIMARÃES, 1998), pode originar-se da
representação que se tem do outro, visto como opinião ou julgamento
construído institucionalmente antes do conhecimento dos fatos e
sujeitos, usualmente desfavoráveis. Juízo prévio, conceito negativo que
um sujeito ou grupo tem sobre outro sujeito ou grupo diferente
(CRUZ, 1989; SILVA, 1995; BENTO, 1998).

Sant'Ana (2001) analisa o preconceito étnico enquanto fenômeno


social, relacionando-o como fenômenos psicológicos, considera que esse
modelo de preconceito está baseado em julgamentos de pessoas sobre
outras pessoas, a partir de suas características fisionômicas, ou seja,
encontra-se na esfera da consciência dos sujeitos. Diz ele, ninguém é
obrigado a gostar de alguém, mas, é obrigado a respeitar as diferenças.
Daí advém a crítica à igualdade racial propalada pelo Estado Nacional
que todos devem ser iguais.

O preconceituoso nem sempre fere os direitos, de fato, do outro,


mesmo que não alimente grandes simpatias por esse outro seja ele,
negro, índio, homossexual, cigano etc. Preconceito é, portanto, uma
opinião preestabelecida, que é imposta pelo meio, época e educação.
Ele regula as relações de uma pessoa com a sociedade. Ao regular, ele
permeia toda a sociedade, tornando-a uma espécie de mediador de
todas as relações humanas. Ele pode ser definido, também, como uma
indisposição, um julgamento prévio, negativo, que se faz de pessoas
estigmatizadas por estereótipos. (SANT'ANA, 2001, p. 54)

Apesar do preconceituoso nem sempre ferir os direitos do outro,


isso não quer dizer que tal tipo de sentimento não possa vir a se
tornar prejudicial, pois, o preconceito é o primeiro passo para uma
atitude discriminatória, e discriminar significa separar, distinguir,
estabelecer diferença.

Com isso, por discriminação entendemos como um


comportamento de exclusão dirigido a um membro de um exogrupo,
que pode ser exercido através de segregação observada em instituições
sociais e que, dessa maneira, disseminam o preconceito (MYERS, 2000).
Este autor assegura que a discriminação é uma conduta negativa
injustificável contra um grupo e seus membros, e que tem como
processo subjacente: o preconceito. A discriminação pode aparecer de
forma direta, expressa de maneira clara com proibições ou tratamento
desigual a um sujeito ou grupo, ou de forma indireta e automática,
estando muito presente na sociedade atual.

DE QUEM MESMO ESTAMOS FALANDO?

Apresentamos o sujeito da pesquisa e suas especificidades no


contexto de um sujeito ativo, fazedor de história e agente direto das
relações sociais. Para tanto, partimos da exposição do método de
procedimento, que consiste no trabalho de campo, que significa um
momento de aproximação com o objeto que se pretende investigar, abre
a possibilidade não somente de aproximação, mas também de criação e
recriação do conhecimento a partir da experiência presente e real,
questionando sobre as nuances do fenômeno e o preparo do
pesquisador. Representa um processo de desbravação, rumo a algo que
se tem apenas superficialmente construído e idealizado sobre o objeto e
os sujeitos, propicia diálogo que nasce a partir da garimpagem e
articulação de falas e práticas. “Assim o trabalho de campo deve estar
ligado a uma vontade e a uma identificação com o tema a ser
estudado, permitindo uma melhor realização da pesquisa proposta”
(Neto, 1994, p. 52).
A ida ao campo de pesquisa parte da força da identificação com a
temática, da livre vontade e da capacidade criadora do pesquisador que
pretende: conhecer o espaço em que está inserida sua problemática;
conhecer os sujeitos envolvidos na problemática; avaliar se sua
metodologia é eficiente; e por fim se inserir no macro contexto que
envolve a pesquisa enquanto processo de investigação, incluindo os
sujeitos e os referenciais teóricos.

A entrada no espaço social e geográfico onde se pretende fazer o


trabalho de campo, no nosso caso uma escola de primeira a quarta série
de ensino fundamental da rede pública municipal de educação de Boa
Vista localizada na periferia da cidade, se deu conforme o esperado, pois
os primeiros contatos partiram de uma conversa formal com direção do
estabelecimento de ensino quando nos apresentamos enquanto
pesquisador em educação. Em seguida, apresentamos uma síntese da
proposta de investigação científica, explicitando detalhadamente os
métodos de procedimentos, objetivos da pesquisa, público alvo,
duração da permanência no estabelecimento, os possíveis benefícios da
pesquisa para a comunidade e para a ciência da educação. Nessa fase da
pesquisa devemos construir um bom relacionamento, pois caso
contrário podemos inviabilizar essa etapa da pesquisa, e
conseqüentemente o projeto em si fica deficitário.

Esse primeiro contato serviu para conhecermos nosso público


alvo potencial, os alunos de terceira e quarta série do ensino
fundamental, e o público secundário, seus respectivos professores,
construindo os primeiros laços de intercâmbio através de uma
aproximação lenta e gradual, essa fase se deu através da nossa presença
em sala de aula observando os comportamentos que possibilitassem
extração de subsídios para a investigação. Também fizemos testes-
piloto, para avaliarmos a estrutura e a dinâmica de entrevistas, para
então estabelecer o padrão definitivo aplicável.

Pelo fato de termos tido experiência como docente em


estabelecimentos de ensino semelhantes ao que escolhemos para a
pesquisa, tivemos o cuidado de não subestimar a capacidade de
mudanças conjunturais, pensar que a escola não poderia passar por
metamorfoses seria imaturidade perceptual. A escola é uma instituição
social dinâmica que segue os processos de mudanças, pois se muda
direção, professores, alunos, técnicos, o que faz refletirmos que nossa
presença foi recebida e percebida de outra maneira. Por isso, não
podemos pensar que iríamos depararmos com informações que
julgamos já saber, pelo fato de um dado momento histórico termos
pertencido àquele ambiente. Devemos perceber o campo com o espaço
de novas possibilidades criadoras, capaz de nos proporcionar novas
percepções, e evitar atritos na relação com os sujeitos, e com a própria
ética com a ciência na coleta e condução das informações.

Portanto, esse primeiro contato com o campo nos propiciou uma


reflexão sobre a dinâmica da investigação científica com instrumento
criado pela racionalidade humana, com o objetivo de captar elementos
que montem e fundamentem a observação sobre os fenômenos.
Mostra-nos a necessidade de mantermos diálogos constantes
entre abordagem e procedimentos metodológicos, a fim de evitar
confusões epistemológicas que impossibilitem a veracidade dos
resultados da investigação.

No campo prático de coleta, utilizamos a interpretação visual por


meio de fotografias de três grupos étnicos hegemônicos: negro, índio, e
branco. Dessa maneira, foi possível observar qual a compreensão tida
pelos alunos acerca de sua identidade étnica. Percebemos que o branco
foi representado como associado ao que é desenvolvido, citadino,
possuidor de beleza física, sorridente, enquanto o negro e o índio seriam
o inverso, moradores do meio rural, ligados ao trabalho braçal,
desprovidos de dinheiro, terras e com saúde debilitada.

A imagem do negro é mutilada de atribuições positivas,pois para


alguns o negro é associado a macumbeiro, feiticeiro, representa a escuridão
da alma, “preto é coisa do diabo...”, já o indígena é representado como um
quase nulo, desconhecido, sem história, comedor de bicho do mato e de
raízes, sua trajetória é marcada pela distância real e simbólica entre
brancos e negros. Existe uma noção de hierarquia étnica, segundo qual o
índio fica numa sub-lista piramidal. Os grupos étnicos têm seus espaços
bem delimitados no imaginário social, transbordando para o convívio
cotidiano real.

Como resultado do trabalho de campo, apresentamos os


seguintes dados quanti-qualitativos que se somaram as vozes dos
sujeitos, servindo como elementos constitutivos de entendimento do
fenômeno investigado.

Levantamento da Classificação Étnica dos Alunos pelo Registro


de Nascimento e pela Auto-Identificação

IN IC IA L / I D A D E LO CA L D E CO R N O R EG . COR AUTO-
N A S C IM E N T O N A S C IM E N T O ID E N T I FIC A Ç Ã O
01 A – 09 B o a V ista – R R P a rd a N egro
02 B – 10 B o a V ista – R R N ã o re g istra d a N egro
03 D – 09 B o a V ista – R R B ra n ca B ra n co
04 L - 10 B o a V ista – R R P a rd a N egro
05 M - 10 B o a V ista – R R N ã o re g istra d a B ra n co
06 M - 09 B o a V ista – R R P a rd a N eg ra
07 M – 09 B o a V ista – R R N ã o re g istra d a N egro
08 R – 09 M u c a ja í – R R N ã o re g istra d a N egro
09 Y - 09 B o a V ista – R R P a rd a N enh um
10 A – 10 M anaus – A M B ra n ca B ra n co
11 A – 11 B o a V ista – R R P a rd a N egro
12 B – 10 B o a V ista – R R P a rd a N egro
13 D – 11 A lta m ira – P A N ã o re g istra d a N egro
14 I – 11 B o a V ista – R R B ra n ca N egro
15 J – 11 A u g u stin ó p o lis – T O N ã o re g istra d a N egro
16 L – 10 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
17 L – 10 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
18 T – 11 B o a V ista – R R P a rd a N egro
19 B – 11 B o a V ista – R R P a rd a B ra n co
20 I – 10 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
21 J – 10 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
22 L – 12 B o a V ista – R R P a rd a N egro
23 R - 09 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
24 R – 11 B o a V ista – R R P a rd a B ra n ca
25 T – 10 B o a V ista – R R P a rd a In d íg e n a
26 A - 09 B o a V ista – R R P a rd a N egro
27 D – 09 B o a V ista – R R B ra n ca N egro
28 H – 09 B o a V ista – R R N ã o re g istra d a N egro
29 K – 09 B o a V ista – R R N ã o re g istra d a N egro
30 L – 09 B o a V ista – R R P a rd a N eg ra
31 R – 09 B o a V ista – R R B ra n ca N eg ra
32 R – 09 B o a V ista – R R B ra n ca B ra n co
33 T – 10 B o a V ista – R R P a rd a B ra n co
34 W – 09 B o a V ista – R R P a rd a N eg ra
35 E – 09 B o a V ista – R R P a rd a N eg ra
36 J - 10 B o a V ista – R R P a rd a N eg ra
37 K – 11 B o a V ista – R R P a rd a B ra n ca e n e g ra
38 T – 09 B o a V ista – R R B ra n ca N eg ra
Ao relacionarmos a auto-identificação do sujeito com
determinado grupo étnico, sua justificativa para tal escolha percebemos
discursos identitários de assimilação de características que representam
uma postura ideológica diante do processo de identificação.

A sociedade roraimense caracteriza-se por possuir uma


pluralidade étnica significativa, sendo esta, produto de um processo
sócio-histórico de colonização e exploração iniciado no século XVIII, que
inseriu num mesmo cenário dois grupos étnicos distintos: o europeu,
advindo de Portugal e o índio, habitante milenar destas terras.
Esse contato favoreceu o intercurso dessas culturas, levando à
construção de uma região inegavelmente miscigenada, multifacetada,
uma unicidade marcada pelo antagonismo e pelo conflito.

Observa-se que todos os alunos entrevistados nasceram na


Região Norte do Brasil.

Boa Vista/RR: 34
Mucajaí/RR: 01
Manaus/AM: 01
Altamira/PA: 01
Augustinópolis/TO: 01

A última fase do processo migratório em Roraima, ocorrido em


meados da década de 1990, trouxe muito trabalhadores rurais oriundos
oeste do Maranhão e do Leste do Pará, e de indígenas do Leste e Norte de
Roraima, que se instalaram nos bairros periféricos da cidade de Boa
Vista, onde o governo de Estado construiu um grande conjunto
habitacional, que em decorrência desse ato surgiram outros bairros em
seu entorno (FERRI, 1996; SILVA; SOUZA, 2006).

Identificação pela cor segundo o Registro de Nascimento.

Pardo: 23
Cor não-registrada: 08
Branco: 07
Negro: 00
Segundo o IBGE, a cor parda é uma cor intermediária entre o
negro e branco, branco e índio, deixando de lado os termos: caboclo,
cafuzo e mameluco, já há muito em desuso por causa de sua carga
discriminatória. Mas esse termo, muito usado para fins de identificação,
gera muita polêmica por esconder a afirmação étnica do sujeito, dessa
maneira impossibilitando a efetiva organização dos movimentos que
lutam em defesa do seu grupo étnico como é caso do movimento negro
quando alguns negros se apresentam e são apresentados como marrom-
bombom, moreninho, moreno-jambo. No caso específico de Roraima, o
indígena ou seu descendente é classificado como regional, roraiminha,
ula-ula, caboquinho, descaracterizando e pojorando sua identidade.
Registrar as crianças como pardas seria de certa maneira torná-las
menos marginais (SANTOS; SILVA, 2006).

A cor segundo a Auto-identificação.


Negro: 23
Branco: 08
Indígena: 05
Dupla identificação. Negro/Branco: 01
Não se identificou: 01

O entendimento a respeito da auto-identificação passa


necessariamente pelo debate sobre identidade social em um contexto
desfavorável, que está intrinsecamente ligado a noção de
pertencimento, aceitação e sobrevivência. Pois, as várias configurações
de identidade habitam reflexões dos teóricos da modernidade, como
Giddens (1991) ou da pós-modernidade como Boaventura Santos (2000)
e exigem a circunscrição deste homem ao momento atual do mundo
globalizado, marcado por um capitalismo desorganizado, a fim de
explicitar as novas bases sobre as quais se articulam o pessoal e o social
na contemporaneidade.
Assim, a relação entre o visível e o invisível, o manifesto e o não
manifesto, do contexto indicado nas falas dos sujeitos, foi aqui
referenciado como parte de um processo educacional em permanente
construção e reconstrução, cuja expressão do que se evidenciou
como visível e repetitivo, foi tomado como um referente expresso em
palavras e atos.
NOTAS
1
Na filosofia entende-se como aparência; nessa perspectiva
fenômeno é a aparência sensível, que se opõe à realidade da qual por
outro lado pode ser considerado como manifestação, ou ao fato ao qual
por outro lado pode ser considerado idêntico. Assume também a
correlação de coisa em si e evoca reconhecimento objetivo. Aplicado à
observação da sociedade define-se como “toda maneira de fazer, fixa ou
não, suscetível de exercer sobre o individuo uma coação externa”.
Considerando os fenômenos sociais em si próprios, desprendidos dos
sujeitos conscientes que os representam. Dicionário de Filosofia. Nicola
Abbagnano. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982.
2
A representação que facilita o enunciado de numerosos conflitos
normativos, nacionais, sociais, permite ao mesmo tempo uma
transposição das linguagens heterodoxas, conceitos e teorias conhecidos
como esotéricas e que, conseqüentemente, se tornam instrumentos para
a comunicação e o comportamento coletivos (MOSCOVICI, 1961, p. 309,
tradução nossa).
3
De acordo com Joel Rufino dos Santos (1984), era conhecido na
academia como o “intelectual da ideologia do colonialismo”. Possuía
um método próprio para analisar a sociedade brasileira – interpretações
meramente impressionistas. Escreveu as obras: Populações meridionais
do Brasil (2volumes), Evolução do povo brasileiro, O caso do império,
Instituições políticas brasileiras (2 volumes), Raça e assimilação entre
outras obras.
4
Um dos intelectuais mais preocupado com a problemática racial
no Brasil. A sua obra mais conhecida é: Preconceito de Marca:
As relações raciais em Itapetininga. São Paulo: Edusp, 1998.

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MODERNIDADE E
COMUNIDADES RIBEIRINHAS:
VISÕES DE UMA VIAGEM AO
BAIXO AMAZONAS

NELVIO PAULO DUTRA SANTOS1

RESUMO: Este trabalho é resultado da expedição de pesquisa promovida em julho de


2001 pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA e outras instituições no Baixo
Amazonas2. O objetivo imediato era levantar dados sobre as comunidades ribeirinhas de
um espaço que foi e ainda é explorado há séculos pelo extrativismo. Além das pressões
externas causadas pela sociedade envolvente, a vida das populações estudadas é
fortemente marcada pela presença da empresa Jari, por empresas madeireiras e de pesca
profissional vindas de fora e pela expansão da pecuária. O objetivo maior da pesquisa era
ver as possibilidades e a vontade das comunidades em transformar aquele espaço em uma
Reserva Extrativista, a exemplo de áreas próximas, visitadas no mesmo tempo por outros
colegas pesquisadores.

PALAVRAS-CHAVE: Baixo Amazonas, Almeirim, Ribeirinhos, Jari.

INTRODUÇÃO

Nascendo nas serras que marcam a divisa brasileira com a Guiana


Francesa e o Suriname, o rio Paru3 corre paralelo ao rio Jari para o rio
Amazonas. O Jari é a divisa entre os estados do Pará e Amapá e as terras
entre ele e o Paru formam o Município de Almeirim. Os vales de ambos
foram marcados por décadas pelo domínio da empresa mercantil do
coronel José Júlio de Andrade, dominador inconteste por décadas da
exploração e da castanha, balata e borracha. Na metade do século XX a

1 Professor adjunto de Departamento de História da Universidade Federal de Roraima.


2 A pesquisa foi coordenada pela professora Ligia Simonian, do NAEA/UFPA e patrocinada pela
Fundação Ford e pelo CNPT- Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentado das Populações
Tradicionais, vinculado ao IBAMA.
3 Há dois rios com este nome na margem esquerda da Amazônia: o do Leste e o do Oeste. Aqui se trata
do primeiro, conhecido na região da pesquisa apenas como “Paru”. Seu nome deriva de aldeia
indígena que no século XVII foi transformada em acampamento militar e missão religiosa quando da
disputa que portugueses travaram com holandeses, franceses e outros adversários pela posse da
entrada do rio Amazonas.
empresa foi adquirida por um grupo comercial português. Em 1967 este
vendeu tudo ao milionário americano Daniel Ludwig, fundador da
empresa industrial, mineradora e agro-pastoril Jari, mais conhecida
como Projeto Jari. Apesar do apoio do governo federal durante o regime
militar, o projeto teve vários percalços, como a indefinição fundiária e a
forte oposição de setores nacionalistas, além de mudanças no mercado
internacional de celulose, o principal produto. O grande projeto foi
adquirido por um consórcio empresarial brasileiro, mas outros
problemas, como grandes incêndios o afetaram, até que em 2000
constitui-se a atual empresa Jari, a JARCEL Celulose S.A. Envolvidas
involuntariamente por décadas nesses processos, as populações
ribeirinhas ainda se deparam no presente com os avanços da pesca
profissional e predatória dos rios e a ação das grandes madeireiras.
Após identificar e estudar alguns dos problemas do estreitamento dos
meios de sobrevivência de populações tradicionais houve consultas às
próprias comunidades na busca de alternativas sustentáveis. Este texto é
o relato pessoal dessa experiência de campo.

A VIAGEM

Dia 12 de julho

Viagem do grupo de pesquisadores de avião de Belém do Pará


para Monte Dourado, distrito do município paraense de Almeirim.
Atravessamos o rio Jari em catraias - barcos que transportam
passageiros ali 24 horas por dia – e fomos dormir em Laranjal do Jari, no
lado do Estado do Amapá. O “dormitório” foi uma casa residencial,
aonde se chega por uma das ruas com piso de madeira sobre o rio.

Dia 13 de julho

Viagem de todo o grupo até a Cachoeira de Santo Antonio, no rio


Jari, onde a empresa Jari pretende construir uma usina hidrelétrica que
fornecerá energia para os dois estados. Visita à Vila de Santo Antonio da
Cachoeira, no lado do Amapá. Há várias casas novas na parte mais
elevada, com salão comunitário, posto de saúde, uma escola, além de um
templo da Igreja Assembléia de Deus. Máquinas motoniveladoras,
basculantes e algumas pessoas trabalham na nova vila. Na antiga casa
comercial em que se negociava a balata com os portugueses, acessada
por um trapiche, pessoas do lugar informam: a antiga igreja, católica, vai
permanecer após a construção da barragem. Ligia Simonian, nossa
coordenadora informou sobre nossos objetivos, associados à possível
criação da Reserva Extrativista do Paru e o que isso significava. João
Francisco Benício Gonçalves, 43 anos, vice-presidente da Associação
Agro-extrativista da Comunidade da Cachoeira, informa que “Quando
os portugueses venderam a empresa para a Jari, a comunidade da
Cachoeira tinha 60 famílias, hoje tem 18; foi José Júlio [de Andrade] que
vendeu tudo para os portugueses; a balata, a seringa e a castanha eram
negociados na taberna, onde não faltava nada. Era assim que os
negociantes se relacionavam com os produtores locais; a Jari mudou
isso, pois seu projeto era outro.” A presidente da Associação Agro-
extrativista da Comunidade da Cachoeira, Eludi Gonçalves, é irmã do
vice. O pai de ambos trabalhou, dizem eles, num barco de José Júlio.
Ambos queixam-se da praga da banana, que tem mercado em Laranjal
do Jari até Macapá. Há problemas de titulação de terras para
financiamento, afirmam. Houve reuniões para discutir a barragem e a
construção das novas casas e reconhecem mudanças com a construção
da estrada tendo alguém já pensado em construir pousadas. Ligia fez
alguns comentários sobre o turismo e perguntou sobre as expectativas
com a construção da usina. Em seguida, descendo o rio, visitamos o
túmulo de Joseph Greiner, integrante de uma expedição científica alemã
ao Jari, vitimado por doença repentina, no início de 1936. Chama atenção
a cruz, de 3 metros de altura, com o desenho da suástica nazista4.

Dia 14 de julho

Cada equipe segue para seu destino: Aldrin e José Bittencourt vão
para a reserva do Rio Cajari, Denise e Isabel vão para o rio Arraiolos,
Orenzio para Macapá e depois Laranjal e Vitória do Jari, enquanto nós,
Ligia, eu, Adaise e Janary seguimos para o rio Paru. Uma picape Toyota
da empresa Jarcel Celulose S.A., a Jari, nos leva por uma estrada
tortuosa, por cerca de 100 km, de Monte Dourado até a comunidade de
Panama, no Rio Paru. Ali o barco Vai com Deus N. 2A, a serviço da

4 Essa expedição científica alemã na Amazônia foi muito criticada pela imprensa brasileira na época, já
que seus integrantes eram jovens militares e se apresentavam como cientistas. Teve apoio do governo
federal, então praticando uma política de simpatia à Alemanha hitlerista, do governo paraense e apoio
logístico de navios do coronel José Júlio de Andrade. Joseph Greiner falava português e já tinha morado
no Brasil. (LINS, Cristóvão. Jari: 70 anos de história. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Orsa, 2001, p. 62-70).
Prefeitura Municipal de Almeirim nos aguardava. Com ele desceríamos
o rio até sua foz, quando desemboca no Amazonas. Junto ao rio, em
frente à escola, placa de “Propriedade particular – Empresa Jari”. D.
Francisca, moradora local, casada com o líder da comunidade, filha de
antigo vendedor de castanha, informa que houve mudanças de pessoas
de uma para outra margem do rio, inclusive por compras de terras pelo
Sr. Augusto, da Paragás. Após reunião com membros da comunidade, na
residência dos líderes, Sr. Francisco e D. Francisca, onde foi explicado o
nosso trabalho e suas finalidades, de posse dos nomes dos residentes,
realizamos sorteio e iniciamos as entrevistas. Esse procedimento foi o
padrão em todas as demais comunidades visitadas.

Dia 15 de julho

Visitamos os membros da comunidade de Panama da margem


esquerda. Meu entrevistado, Sr. Isidoro, contesta a legitimidade da
liderança de Francisco. É vendedor de castanha, a casa tem algum
conforto, como rádio e bateria para luz; reclama do professor da escola.
É articulado com pessoas de fora, recebendo pescadores amadores.
Próximo, reside seu concunhado, Oziel. As três casas próximas, mais
novas têm parabólica, pastagem, pomar em um campo quase plano.
É domingo e há algumas casas vazias, mas isso se repetiria em quase
todas as comunidades também nos demais dias da semana. Numa casa,
chamou a atenção um filhote de queixada selvagem, tratado, por
enquanto, como um animal doméstico entre as crianças. É o resultado de
uma caçada, atividade a que muitos se dedicam, embora por vezes o
neguem. Presença de cabras, galinhas e pequenos pomares ou árvores
frutíferas isoladas. O plantio de mandioca e o fabrico de farinha está
presente, como em praticamente todas as demais comunidades. No fim
da tarde rumamos para a Comunidade de Recreio.

Dia 16 de julho

Em Recreio, fizemos contatos com Sr. Edson, representante


Distrital, que forneceu lista de moradores e das comunidades próximas.
Alguns membros da comunidade estão trabalhando na Paragominas,
empresa paraense de madeiras, que pretende estabelecer serrarias nas
florestas próximas ao rio Paru. é o caso do marido de minha
entrevistada, D. Maria de Fátima, que participa de uma demarcação de
terras, ganhando como diarista (R$ 15 ao dia é o que se paga por diária
padrão, segundo informações de terceiros). Existe a exploração da
madeira por particulares, como o marido de D. Maria de Fátima, que
trabalha também com castanha. É forte a presença da Igreja Assembléia
de Deus e talvez uma das razões seja, no caso local, a presença do Sr.
Milton Rodrigues, dirigente local da Igreja, a quem entrevistei. É pessoa
de iniciativa, boa leitura e pelo visto dono de um certo carisma.
A assembléia de Deus está presente em todas as comunidades visitadas,
mas no geral predomina o catolicismo, conforme verificamos.
Sobressaem à primeira vista que muitos casais tem filhos de uniões
anteriores, e uma dependência da caça e da pesca. O preço dos alimentos
vindos de fora é alto. Ex.: 1 kilo de arroz custa dois reais, o dobro de
Almeirim, enquanto é baixo o preço dos produtos locais: uma barrica de
castanha é vendida no local de doze a vinte reais. O principal comprador
da castanha é o Sr. José Pompílio, comerciante de Almeirim, dono de
muitas terras próximas5. Nas casas visitadas, as mulheres eram maioria,
o oposto do que ocorre na sede do município de Almeirim.
Aparentemente, é elevado o consumo de bebidas alcoólicas. Junto às
casas, algumas cabras, aparentando mal cuidado ou problemas de
adaptação. Alguns residentes são moradores de propriedades de pessoas
ausentes, às vezes seus parentes, mas não se fala em salário.

Dia 17 de julho

Na comunidade de Cafezal seguiu-se o mesmo ritual: conversa


com o líder e entrevistas. O Sr. Teófilo Nunes mostrou a lista de
moradores que logo vimos ser quase a mesma dos dizimistas, exposta
numa parede da sala. Teófilo diz que conheceu José Júlio e os
compradores de castanha a serviço dos portugueses, identificando um
deles que atuava no Paru: Oscar dos Santos. Ao lado da casa, numa área
coberta, em construção, uma pequena quadra esportiva, para a qual: “...
a Prefeitura entrou com o material e a comunidade com o serviço”.
A comunidade tem luz elétrica, comunitária, como a maioria delas6.

5 José Pompílio, como vimos posteriormente, é um dos maiores comerciantes, político e ex-prefeito de Almeirim.
6 Os motores e parte do combustível, uma cota, são fornecidos pela Prefeitura Municipal. Os líderes de
comunidade administram o serviço através de suas famílias. O horário quase sempre é das 18:00 às
22:00 horas, mas presenciamos a ultrapassagem desse em um dia de jogo da Seleção Brasileira de
Futebol, quando vários moradores contribuíram com gasolina.
Na sala de Teófilo, muito material utilizado nas competições de futebol,
além de taças, camisas e troféus, o que veríamos em muitas casas. Muitos
rapazes e homens adultos manifestam sua simpatia pelos times dos
grandes centros, como Flamengo e Vasco, usando camisas e outros
símbolos destes. A família de Teófilo dispõe de parabólica e vários
aparelhos de som. Alguns dos vizinhos são parentes entre si, fenômeno
comum nessas comunidades. À tarde, visitamos a comunidade de Pedra
Branca, onde residem 5 famílias. Após as entrevistas, partimos para São
Raimundo, passando por “Cacau”. A paisagem a partir daqui vai se
mostrando diferente, mais ampla. Visitamos a “Ramada de São
Sebastião7”, cuja capela está em construção. Uma imagem de São
Sebastião está exposta próximo à casa do Sr. Aldo Marcos da Silva.
Aqui moram duas famílias, com 10 pessoas no total. O local chamava-se
anteriormente Mapaú e foi doado pelo Sr. Pompílio para o Santo
(S. Sebastião), segundo nos informa o Sr. Antonio dos Santos da Silva.
De tardinha, avistamos a escola de São Raimundo, fechada (é época de
férias escolares) e em seguida a residência do Sr. Carlito Roberto
da Silva, o qual informa que a comunidade tem sete anos e compõe-se de
dez famílias. Um igarapé divide S. Raimundo de Cacau.

Dia 18 de julho

Entrevistei um casal que é uma exceção: José de Jesus Ferreira e


Adalice são casados há 32 anos. Ele extrai castanha na “colocação” Serra
Verde8 e vende para vários compradores, o que sugere certa
independência, mas confessa que vendeu castanha no ano passado até a
10 reais [a barrica]. Sua moradia é conhecida como Sítio Boa Esperança,
onde criam 3 búfalos, 13 cabeças de gado branco, mais de 100 porcos,
patos e galinhas. Tem problemas com as cheias, tendo que mudar
temporariamente para terra firme no ano passado (como muitos os
moradores das várzeas próximas, segundo apuramos). José é filiado ao
Sindicato Rural de Almeirim, mas não sabia da proposta de Reserva
Extrativista do Paru, embora soubesse do problema com a Paragominas.
O casal revela o desejo de se praticar a pesca apenas por pessoas locais e
que um filho pegou ferida brava no castanhal de Serra Verde. O único

7 “Ramada” aqui, como em outras partes do Brasil, é o local onde se homenageia um santo. Este local
pode vir a ser uma capela ou igreja.
8 “Colocação” é nome comum para distinguir um local de trabalho que por vezes também é moradia.
lazer declarado, apenas para os homens, é o futebol entre comunidades.
Ao final, fala que a Reserva deve ser criada para garantir o sustento da
população local e que eles precisam de ajuda para lutar contra a Empresa
Paragominas e que o governo não deve deixar esta se apropriar dos
castanhais. Em frente a outra residência, um barco descarrega seixos
extraídos próximos à vila. Ganhamos da população um presente: carne
de porco. Algumas pessoas farinhavam. Um dos entrevistados, Alcides,
é morador, figura que encontraríamos com freqüência. Na tarde do
mesmo dia, rumamos para Paraiso.

Dia 19 de julho

Paraiso tem 15 famílias. A partir dali as entrevistas e a observação


direta mostraram cada vez mais a rotatividade espacial entre os
moradores do Paru, além da maior diversidade de atividades
econômicas. Meus entrevistados fogem à regra. José Felix, 80 anos, ex-
seringueiro, balateiro, trabalhador na juta e na malva, é hoje um
agricultor aposentado. Hildebrando Dias da Silva, 49 anos, nascido no
Paru, mora em Paraiso há mais de 20 anos. É agricultor, só pescando
eventualmente, diz. Tem 8 filhos, mas só alguns moram com ele.
A próxima parada foi Acarapi, no mesmo dia. É uma comunidade
dividida em dois grupos de casas, um deles, onde reside o líder, está
situado em uma elevação só acessível por um esforço físico razoável.
Como se verificou em outros locais, a liderança é exercida por um chefe
de ou membro de uma família ampliada, onde filhos, genros e netos
residem nas casas próximas. A energia elétrica, comunitária, estava
ligada, com crianças vendo TV. O líder, Amarildo dos Santos, filho de
Raimundo dos Santos, é a favor da Reserva Extrativista e opõe-se a
ocupação das terras por madeireiras. Visitamos, nas proximidades, o
“poço”, cercado de pedras com argamassa e ao qual é atribuído data
muito antiga. O local foi também sede de fazenda, a julgar pelos indícios
e segundo informação do Sr. Raimundo.

20 de julho

Afastado do grupo central de casas, numa paisagem plana, numa


casa coberta com telhas de cerâmica, moram Manuel Moraes Caldeira,
sua esposa D. Luzia e um dos dois filhos, mas apenas ela se encontra.
Presença de búfalos e ovelhas, de um pomar e cercas de arame. O outro
filho mudou-se para o Beiradinho e fechou a casa, ao lado da dos pais.
O local é uma antiga sede de duas fazendas: Flexal e Mangueira. A família
tem ainda uma terceira propriedade, conforme documentos a nós
apresentados. D. Luzia, 82 anos, já tirou seringa [borracha] e trabalhou
com castanha com os pais, estando hoje aposentada como professora.
Queixa-se da desunião das pessoas da comunidade e revela ser, ao
contrário da família, seguidora da religião Assembléia de Deus, para a
qual cede e enfeita a casa para reuniões. O padrão econômico da família é
mais elevado que a média das demais, como demonstram a casa e os
bens. Manuel Caldeira, informa D. Luzia, é primo de Cleto Caldeira,
comerciante em Almeirim e fazendeiro no Paru. Descendo o rio,
buscamos o Igarapé Ananaí, que um morador, que nos vendeu peixe em
seu barco, informa chamar-se Sacaindeua e que mais tarde vimos tratar-
se de um paraná. É cada vez maior a presença de búfalos, o rio se alarga e
suas margens vão se tornando cada vez mais planas. Passamos por casas
e uma capela em construção, onde uma placa indica: “Comunidade Frei
Marcos”. Como não havia ninguém ali, seguimos. Numa casa estavam
apenas crianças e jovens, em outra, adiante, entrevistei Francisco
Pantoja, antigo juteiro, balateiro e castanheiro, diz ter conhecido José
Júlio. Hoje é agricultor e pequeno criador de búfalo, animal cada vez
mais presente nas margens e na água, pertencentes às fazendas
criatórias, cujos donos moram em Almeirim. Chegamos depois em
Santa Rosa, onde as entrevistas de hoje e dia seguinte confirmaram uma
forte presença de relação de parentesco em algumas famílias, como a de
Benedito de Jesus.

Dia 21 de julho

No início da manhã aporta ao nosso lado o barco da Prefeitura de


Almeirim. O prefeito, Sr. Águila, estava visitando as comunidades e
reuniu-se com a profa. Ligia e nos ofereceu um café com frutas a bordo.
Após as entrevistas, seguimos em direção a Barreirinha. No caminho
avistamos a primeira maromba9 junto a uma casa. Barreirinha é a maior
das comunidades ribeirinhas do Paru. Tem também uma estrada que
demanda ao interior, com 12 km de extensão. Entrevistei o presidente da

9 Muito comum na Amazônia, a maromba é uma embarcação temporária para isolar e transportar o
gado nas cheias. Seu feitio é de madeiras locais e por vezes se encontram algumas com capacidade de
transportar ou abrigar dezenas de animais.
Associação Comunitária do Paru, Sr. Otoniel, também delegado local do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Almeirim local. Tem 24 anos e
cursou até a oitava série, uma exceção, pelo que levantamos até então, e
tem um irmão universitário, presente na entrevista. A mãe é parteira e
auxiliar de enfermagem, aposentada como agricultora e em sua
residência funciona o rádio que permite ligações telefônicas com o
exterior. A situação da família difere das demais do local, em sua maioria
muito pobre.

Dia 22 de julho

É domingo. Chega de manhã um dos barcos-açougue, que


também vende outros produtos, como queijo e leite de búfala (a carne
era de “gado branco”, isto é, bovino). Em outro barco, jovens rapazes
bebiam cachaça. Próximo às residências centrais, há uma casa de farinha
abandonada e depredada, herança de uma administração municipal
anterior. Nunca funcionou e os motores e alguns equipamentos foram
tirados por particulares, informaram diversas fontes. Há uma escola, a
única da comunidade construída, segundo uma placa, com a
colaboração dos alunos do Colégio de East Greenbush, New York,
Estados Unidos. Em uma casa dos fundos, na entrada da floresta,
carneavam uma anta, caçada na noite anterior e que chamou nossa
atenção pelo seu tamanho. Sua carne é vendida, disseram, enquanto
observamos que farinha de mandioca e óleo diesel funcionam por vezes
como moeda nessa e outras relações de troca. A origem dispersa dos
moradores, muitas crianças e filhos de diversas uniões são comuns,
como nas demais comunidades, mas como se trata de uma comunidade
maior, a pobreza de alguns chama mais a tenção. A próxima parada foi
Carateua, com cerca de 10 casas na várzea. A ocupação é junto ao rio, sob
as águas, pois “venderam as terras de trás”, segundo o líder, Sr. Dunga,
dono da casa mais nova, dividida. Como vivem também da farinha, as
roças ficam longe, a horas de barco ou caminhada. Como em outras
localidades, tem motor e parabólica comunitários, mas rádio só o de
Barreirinha, usado nas emergências, como nos casos de saúde, quando a
lancha ambulância da Prefeitura é acionada. Nas proximidades,
fazendas de búfalos, como a “Luz de Deus”. Rumamos depois para Boa
Esperança, ou Muruã, onde tem nove famílias. Uma das casas é sede de
fazenda do Sr. Manuel Moreira, político e comerciante em Almeirim.
O informante, vaqueiro, é empregado do proprietário. Nas moradias
próximas quase todos são parentes entre si, formando uma “ilharga”.
Após as entrevistas, fomos dormir em Santa Maria.

Dia 23 de julho

O Sr. Francisco das Chagas Silva, morador de Santa Maria, é


agricultor, criador e caçador. Seu sogro, Júlio Tavares, primeiro
morador, foi juteiro e balateiro. Informa que a margem do rio em frente à
comunidade foi ocupada anteriormente por juta e o local das casa por
roças. Foi com o dinheiro da juta que Júlio foi comprando gado, segundo
Francisco. E o gado está presente por todas as propriedades próximas,
junto às águas. Percebemos também desmatamentos nas partes mais
altas. Entrando num igapó, seguimos para Paricá, onde chegamos no
mesmo dia. O líder, Sr. Manuel, antigo garimpeiro e navegador,
diz que o búfalo está aterrando a terra sob a água, mas que não acredita
que isso prejudique a reprodução dos peixes. A esposa, D. Ediana, foi
juteira, junto com a mãe, pai e um irmão. O comprador da Juta era o Sr.
Farias. A fazenda tem rádio comunitário, parabólica e motor para luz.
A fazenda tem muitos pés de açaí, plantados. O líder está se mudando
temporariamente para outra comunidade, pois as águas estão baixando
e é hora de mudar o gado, explica. Informações posteriores deram
conta que sua liderança não é oficializada nem aceita pela comunidade
como um todo.

Dia 24 de julho

Partimos de manhã para Bananal. Nesta soubemos que a


comunidade de Paricá não está oficializada, estando na verdade
vinculada a Bananal. O líder é o Sr. Ademair Gonçalves Sarges, mora
numa casa grande pelos padrões locais. Há bastante gente trabalhando e
a criação de gado é atividade principal. As casas estão disseminadas
pelos igarapés próximos, como o Caminaú, mas nessas havia pouca gente
em casa, pois muitos permanecem essa parte do ano em Paricá.
A economia criatória faz com que muitos do Bananal tenham mais de
uma residência, embora se viva também da mandioca. O grande
fazendeiro local, dono de quatro fazendas no Paru, é o Sr. Caldeira,
comerciante que mora em Almeirim, informa o líder, seu cunhado.
À medida que nos aproximamos de Almeirim percebe-se um aumento
recente da movimentação populacional, se comparado com as primeiras
comunidades visitadas. O gado é mudado a partir dessa época para
partes mais altas. Revelam que o gado branco está se mostrando mais
resistente a doenças que o búfalo. Muitos moradores são associados a
parentes na criação, sendo que os maiores criadores moram em
Almeirim, inclusive em razão da grande cheia do ano 2000, da qual há
marcas em algumas casas.

O padroeiro da comunidade é São Benedito, a quem no final de


dezembro se oferece um búfalo para os participantes de uma festa,
informa-nos o líder. É visível o lixo industrial próximo às casas junto à da
liderança, evidenciando um padrão de consumo bem mais elevado que
a média do Parú. A diferenciação social é aqui bem mais definida
que nas comunidades rio acima, visitadas no início da pesquisa, mais
ligadas ao extrativismo.

Em seguida fomos para Uxizal, que pertence a comunidade de


Bananal, onde constatamos certa animosidade com a liderança desta,
inclusive em razão do avanço dos búfalos. Tem uma ramada com altar
de São Sebastião e imagem de São Benedito. As próximas entrevistas
foram em Serra Grande do Paru e em Cachorro Queimado. Meu
entrevistado nesta última é morador em fazenda de Nezinho Paixão, é
vaqueiro, mas caça e pesca para consumo. Encontramos ali um barco da
comunidade de Recreio, com madeira longa de cedro para canoas, indo
para Almeirim10.

Passamos em frente a fazenda de D. Marina, esposa de Nezinho


Paixão. Em seguida, fomos a Xingu. Uma entrevistada diz que não há
ganhos para os locais: “... só umas diariazinhas e pesca, mas está dando
pouco peixe, o marido há 3 dias coloca as malhadeiras e não pega nada”.
Declara ainda que os maiores fazendeiros das proximidades são
Nezinho Paixão e Cleto Caldeira. À tarde chegamos a uma casa coberta
de curuá e paredes de bambu, é também uma escola. Vemos um tipiti,
igual ao que os índios usam há séculos para fazer mandioca, e outro
instrumento de buriti para escorrer a água da mandioca, o que mostra o
nível da tecnologia. A próxima comunidade é Bela Vista, um conjunto de
casas elevadas ao largo do rio, onde pastam alguns búfalos, um de cada

10 As comunidades têm uma moto-serra comunitária para serviços de extração de madeira, recebida das
prefeituras. A extração é semi-clandestina e uma árvore serrada rende 30 reais, segundo as informações.
família, segundo o líder, Sr. Benedito Barbosa. O número de crianças
parece até mais elevado que outros locais visitados.

Dia 25 de julho

Entrevistas na escola de Bela Vista. Muitos dos moradores tinha


ido para o “centro”, o local das plantações, por vezes longe. A pesca e a
criação de búfalos são as outras atividades. A equipe dá os primeiros
sinais de cansaço, inclusive com possíveis casos de malária, mas
seguimos. Chegamos na casa dos Castro, tradicionais foliões da festa de
São Benedito, em Almeirim. Apenas dois dos onze irmãos moram ali,
numa casa grande, tendo ao lado uma outra em construção.
Muitos cartazes e imagens de santos em capelinhas. Chamou a atenção
uma caixa de abelhas (jandaíra), na cozinha da casa. Lígia entrevistou o
mais velho, ligado desde a infância às festas. Na comunidade de Itauduba
fizemos as entrevistas de praxe. Compramos açaí, vendida no barco, de
D. Maria Tereza Alves, 43 anos, da Fazenda Santa Rosa. As entrevistas
seguintes, na Comunidade de Santa Cruz foram interrompidas por
problema de saúde em membro da equipe e suspeita de malária nos
demais. Rumamos para Almeirim já de noite. E logo avistamos as luzes
da cidade, dos postos de abastecimento e da hidroviária 11 .
Desembarcamos junto a esta última, ao lado do mercado, aonde os
produtores vêm de barco vender seus produtos alguns dias por semana.

Dia 26 de julho

Passamos o dia em Almeirim. Adaise deu alta do hospital e os


exames de malária dos demais deram negativos. Todos se refizeram do
cansaço e houve ânimo para continuar. Visitamos a Prefeitura e
conversamos com o Prefeito, Sr. Águila e seu o chefe de Gabinete.
Surpreendeu que o domínio da conversa foi mais deste. O prefeito diz da
impossibilidade de fazer governo técnico em município pobre. Após o
chefe de Gabinete defendeu a pecuária bubalina em razão das várzeas
abundantes, e uma política de desenvolvimento nos moldes
tradicionais. Tentamos conversar com os padres da Igreja Católica,
norte-americanos, muito atuantes em Almeirim há décadas, mas não

11 Como muitas cidades da Amazônia, Almeirim não tem estação rodoviária e possui pouquíssimos
automóveis. Os postos de abastecimento atendem principalmente aos barcos e navios.
conseguimos encontrá-los. Conversamos com o Sr. Mimim, poeta e
escritor local, autor de livro sobre José Júlio.

À noite, entrevistamos Francisco Carlos Gualberto dos Santos,


conhecido como “Oncinha”, ex-vereador, proprietário e comerciante.
É defensor e uma espécie de intermediador da Empresa Paragominas,
madeireira que pretende estabelecer-se no Paru. Francisco afirma que a
tradição extrativista de Almeirim não tem como ser mantida, que há
problemas de documentação, apesar dos esforços de muitos e que a Jari é
um problema para Almeirim. Esse município se não mudar não tem
futuro diz, pois todos querem ser funcionários, sendo que a Prefeitura
tem cerca de 2 mil. É preciso buscar investimentos de fora e a
Paragominas vai criar empregos e as terras próximas do Paru são
devolutas, uma vez que não são ocupadas. A empresa quer documentar
a área e a parte já foi piqueteada [demarcada] e está longe do rio. Revela
que já trabalhou no Instituto de Terras do Pará -ITERPA e que o IBAMA
dá apoio à JARI e que é a favor da criação do Estado de Tapajós: “todos
são aqui”. Lígia pergunta sobre a área que a Rosa Madeireira, associada
à Paragominas pretende usar e Francisco explica que as glebas (duas)
terão 5.000 metros de frente e de fundos.

Os empresários são dois: Sidnei Rosa e Evandro. Afirma que a


exportação será conjunta, havendo o acordo de não exportar toras e que
a Prefeitura é a favor e que uma equipe de topógrafos já demarcou as
áreas. Rebate minha pergunta se a falta de empregos locais não se dá
também, porque o empresário local não aplica capital em Almeirim.
Francisco diz que a castanha não dá lucro (ao município), só para o
empresário Pompílio e que os prefeitos não tem apoiado o progresso e
não têm vontade política. Lamenta a dificuldade de mão-de-obra
citando um exemplo: plantou juta no Paru, perto de Santa Rosa, e mesmo
pagando o que era pedido, não teve trabalhadores, pois: “a natureza
acomoda o caboclo”. Não respondeu à minha indagação: o caboclo
fabrica a mandioca, por um processo trabalhoso e de tão pouco preço no
mercado e a colheita da castanha exige enormes esforços físicos e tem
igualmente pouco rendimento; o problema não é mais complexo? Lígia
pergunta sobre a pecuária e a resposta é que “há muita área de várzea
para ser ocupada ainda em Almeirim”. O encontro foi amistoso e
produtivo. Não conseguimos marcar entrevista com o Sr. José Pompílio,
que também mora em Almeirim.
Dia 27 de julho

Partimos cedo de Almeirim, passamos por Jaburu e seguimos para


Santa Cruz. A paisagem é de casas pobres, cobertas de palha na maioria,
elevadas. Uma placa na margem diz “Retiro Niteroi”, um projeto de
búfalos da empresa Jari, e logo surge Santa Cruz, onde estivemos dia 25.
Prosseguimos com as entrevistas. José Antonio Evangelista e Benedita
tem cinco filhos.

Ele trabalhou na antiga Jari como mecânico em máquinas de arroz


e tem boas lembranças, mostrando revistas técnicas daquela época.
A esposa tinha ido buscar um pouco de leite para a filha menor, numa
fazenda próxima, em troca de serviço doméstico. A casa é na várzea,
onde tem um quintal elevado, obra da família, onde tem açaí, abacaxi,
ingá. Planta mandioca em terra firme, mas queixa-se dos búfalos, que
sujam a água que utiliza: “há muito búfalo e pouca terra, comem a
banana e o arroz que plantamos, arrebentam as cercas de madeira”.
Os búfalos, diz, são da JARCEL, de Cleto e Pedro Caldeira [estávamos
perto da sede da Fazenda Santa Rosa]. Dois barcos com carvão vegetal
passam em direção de Almeirim; “uma maneira de se fazer algum
dinheiro”, informa.

Chegamos depois em Jaburu, onde pobreza e parabólicas se


misturam. Alguns dos moradores estavam em Almeirim, a poucos
minutos de barco. Uma das entrevistadas pescava camarão, “para dar
comida às netas” e conta uma história comum: a da filha que foi para a
cidade e volta com filhos para a avó criar. Entrevisto o casal Sr. Joaquim e
Maria Pantoja enquanto os colegas também fazem as últimas
entrevistas. Almoçamos no barco e retornamos para Almeirim.
Dormimos no Hotel, como no dia anterior.

Dia 28 de julho

Janary toma um navio para Santarém, os demais partem de kombi


para Monte Dourado, numa das poucas estradas do município. Três
horas após passamos o rio Jari e estávamos em Laranjal do Jari, mas foi
impossível dormir com o barulho eletrônico que vinha de Monte
Dourado à noite.
Dia 29 de julho

Passamos o dia em Laranjal do Jari.

Dia 30 de julho

Amanheço com febre e disenteria, passo o dia no hospital


municipal, em Monte Dourado, construído pela antiga empresa Jari.
O atendimento foi pronto e cordial. Consegui viajar à noite para Belém,
aonde chegamos às 23 horas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O extrativismo marcou fortemente, e marca ainda, a história do


rio Paru e todo o Município de Almeirim e terras próximas. O primeiro
dono da empresa Jari, proprietário nominal das terras e grande
comprador de castanha do início do século XX até 1948, o também líder
político coronel José Júlio de Andrade é hoje parte do imaginário local.
Os segundos proprietários e compradores dos produtos locais,
denominados “os portugueses”, que assumiram os negócios de José
Júlio de 1948 a 1967, são lembrados como um momento de transição.
Em 1968 começou a era da Jari de Ludwig, tido como o maior projeto
empresarial individual do planeta e que, pela grandiosidade deu fama
nacional e internacional à região. Esta convive hoje com seus
sucedâneos empresariais, e velhos e novos problemas econômicos,
sociais e ambientais.

A exploração da castanha ainda é a economia principal de muitas


comunidades no médio Paru. Mais ao sul, em direção à foz, no rio
Amazonas, a pecuária bubalina domina, sem desalojar inteiramente o
extrativismo. A lavoura permanente, quando presente, está nos quintais
e seus frutos quase nunca se destinam à venda. A farinha de mandioca e
a de tapioca são produzidas em quase todas as comunidades, sendo a
primeira utilizada por vezes como bem de troca. A lavoura é feita sem
financiamento, com pouquíssimas exceções, inclusive porque não há
titulação das terras, o que, se não impede totalmente, dificulta.
O mercado do peixe, madeira, farinha de mandioca e outros
produtos é a cidade de Almeirim, que também fornece a maioria dos
bens consumidos.
É pouco presente a figura dos regatões, os pequenos comerciantes
que percorriam de barco os rios amazônicos, vendendo e comprando. Só
um deles sobrevive negociando permanentemente no Paru, e, segundo
informações dos moradores, não tem tido grande sucesso.
Os tempos são outros, mas a empresa do Sr. José Pompílio ainda lembra
o tempo do aviamento, pois fornece qualquer mercadoria aos
moradores, com prazos e preços convidativos, com o compromisso do
pagamento em castanha. Como outros membros do que poderia chamar
classe dirigente, age por intermediários e é grande proprietário de
fazendas e político.

O grande capital é representado pelo complexo de empresas Jari,


enquanto o capital regional em expansão, está chegando na forma de
grandes madeireiras. Representando essas a Paragominas, presidida
pelo atual prefeito da cidade paraense deste nome, Sr. Sidnei Rosa.
Compradores de castanha, a Jari e madeireiras têm interesses definidos,
defensores e detratores locais. A Jari Celulose, a JARCEL, tem atividades
que abrangem parte do município paraense de Almeirim e o amapaense
de Mazagão. Em seu discurso, expresso no livro “Jari, 70 anos”, afirma
que promove um progresso limpo e colabora com o progresso local com
a construção da usina hidrelétrica de Santo Antônio, além de ofertar
centenas de empregos na região. Esse último argumento é também
utilizado pela Paragominas e seus defensores, que se opõem à Jari e aos
negócios de Pompílio. De comum, os três grupos têm a criação de gado e
uma maior ou menor fatia de poder para atuar e legalizar as terras.

Aos pequenos produtores-moradores, os ribeirinhos que não tem


título da terra, restam poucas alternativas. Aos mais distantes da foz do
Paru, some a caça, diminui o peixe, os castanhais e a floresta são
privatizados e o gado avança sobre suas plantações nos locais de roça na
terra firme. Quem mora próximo à foz está, geralmente, preso a
atividades pecuárias de proprietários ausentes, inclusive parentes.
Como são pouco remunerados e com poucas perspectivas, não é
surpresa que muitos se mudem constantemente.

Uma viagem de pouco mais de duas semanas é pouco tempo para


conclusões definitivas, mas o que foi observado é suficiente para alguma
reflexão e mesmo alguma sugestão. É provável que a médio prazo
desapareçam fisicamente muitas das comunidades e com elas todo um
repositório cultural. Mais provável ainda é a transformação e
degradação, já visível, do ambiente, pelo avanço do capital, nas suas
várias formas. Um sintoma e um alerta já existe: cidades da Amazônia,
mesmo as pequenas como Almeirim, já sofrem com o êxodo das
comunidades interioranas. Cabe à Academia apontar soluções e as
Reservas Extrativistas, experiências já testadas em outros locais
amazônicos podem ser uma solução.
RESENHA

ALBERTS-FRANCO, CRISTINA.
THEODOR KOCH-GRUNBERG.
DO RORAIMA AO ORINOCO,
VOL.1. SÃO PAULO:
EDITORA UNESP, 2006.
ERWIN HEINRICH FRANK

Em meados de 2006, noventa anos após o original (Koch-


Grünberg, 1917-1924), um quarto de século após a tradução em espanhol
de três dos seus cinco volumes (Koch-Grünberg, 1979-1982), e dois anos
após o lançamento na “Internet” de uma versão digitalizada dos seus
primeiros dois volumes1, a editora da Universidade Estadual de São
Paulo (em colaboração com o Instituto Martius-Staden) entregou
finalmente ao público interessado uma tradução ao português do
primeiro volume de Theodor Koch-Grünberg: Vom Roroima zum Orinoco
com o aviso (implícito na “Nota da Tradutora”; P.21-23) que outros
volumes seguirão. Se esta promessa se realizar, o leitor brasileiro (sem
domínio do alemão) terá finalmente a seu alcance as obras mais
importantes do célebre etnógrafo alemão; pois, já em 2005, a editora da
UFAM publicou uma tradução de Zwei Jahre unter Indianern (“Dois anos
entre os Indígenas”), relato - originalmente em dois volumes - das
extensas viagens do autor “no noroeste do Brasil; 1903-1905” (subtítulo),
concretamente: à região do alto rio Negro e Caquetá.

Acreditamos que a elaboração destas duas traduções (as quais se


junta ainda “A Distribuição dos Povos entre rio Branco, Orinoco, rio
Negro e Yapura”, tradução de [parte de] um importante ensaio do
mesmo autor, de 1916, que - em conjunto com a tradução de um ensaio
etnográfico do biólogo alemão, Ernst Ule de 19132, foi recentemente

1 http://caliban.mpiz-koeln.mpg.de/~stuber/koch-gruenberg
2 Entre is Índios do rio Branco do Norte do Brasil, originalmente publicado ma Zeitschrift für
Ethnologie, em 1913.
publicado. Também pela Editora da UFAM3 e elaborado pelo autor
destas linhas) refletem um novo interesse pelos trabalhos da primeira e
segunda geração de “Völkerkundler” alemães, em e sobre o Brasil;
interesse que, aliás, não se limita à antropologia brasileira, mas é
igualmente notável na Alemanha (e até nos Estados Unidos), como
mostram a recente publicação do “Forschungstagbuch” (Diário
científico) de Koch-Grünberg da sua primeira expedição no Brasil que,
como “assistente” (fotógrafo) de Herrmann Meyer, entre 1898 e 1900, o
levou ao alto Xingu (Koch-Grünberg 2004), ou também a exibição
“Deutsche am Amazonas: Forscher oder Abenteurer? – Expeditionen in
Brasilien 1800-1940 (Alemães na Amazônia: Pesquisadores
ou Aventureiros? – Expedições no Brasil 1800-1914) realizada no
Ethnologisches Museum de Berlim em 2002.

Essa re-descoberta dos Völkerkundler no Brasil (assim como no


seu país de origem) chega tarde, mas, é – mesmo assim – bem vinda, não
somente pelo rico acervo de dados etnográficos que levantaram neste
país (e o ainda mais rico acervo de objetos etnográficos que colecionaram
aqui e que, hoje, constituem parte central do acervo de vários museus
etnográficos do seu país de origem), num momento chave de um
processo de drásticas mudanças que experimentaram alguns dos povos
indígenas por eles visitados, observadas e descritos no século passado,
mas também pela influencia decisiva deles sobre a formação da
“paisagem étnica” (Frank, 2002) atual em muitas regiões,
principalmente do centro e norte do Brasil. Se, na atualidade, estudantes
indígenas (em todos os níveis e modalidades do sistema brasileiro de
educação) estão capazes de estudar o passado cultural dos seus povos,
dificilmente alcançado ainda (porem, ainda alcançável) pela memória
de alguns dos seus integrantes mais velhos, isto se deve também (e em
certas regiões, sobretudo) a estes pioneiros da etnografia.

Vom Roroima zum Orinoco é, sem dúvida, uma obra prima da


Völkerkunde alemã, além de obra chave da (etno)-história e etnografia
dos indígenas das savanas e montanhas no norte de Roraima (e regiões
adjacentes da Venezuela); - tanto que (quase) a totalidade dos autores
que, nas ultimas décadas, publicaram algo a este respeito a consultaram
e, com freqüência, a citam extensamente. Porém, por razões obvias

3 Koch-Grünberg, 2006.
particularmente os brasileiros entre estes autores costumam citar a obra
de Koch-Grünberg, não no original, mas, na já mencionada tradução de
parte dela ao espanhol. Em 2005, este fato me levou a escrever uma breve
Revisão Crítica da edição venezuelana, sob o título programático:
É mesmo confiável a tradução venezuelana de Koch-Grünberg? (Frank, 2005);
ensaio no qual concluímos que, no geral, aquela tradução podia sim, ser
aproveitada e citada sem maiores preocupações, - com a única exceção
das palavras (principalmente nomes), frases, e textos inteiros em
(diversas) línguas nativas (nela reproduzidos), por causa de “correções”
indevidas que a equipe editorial do Banco Central da Venezuela
resolveu aplicar à “grafia” de tais palavras (frases e textos), elaborada e
usada pelo autor do original.

Ora, como não temos dúvida que, no futuro, a edição da UNESP


substituirá à edição venezuelana como referencia principal daqueles
pesquisadores brasileiros, interessados na (etno)-história de Roraima,
embora, sem domínio do alemão, parece-nos oportuno levantar
novamente a mesma interrogação: Será que a tradução ao português,
agora apresentada pela Editora UNESP, é (também) “confiável”?
Na procura de uma resposta a esta questão, seguimos, uma vez mais, a
“metodologia” que detalhamos em nosso trabalho anterior4.

Na seguinte exposição de nossos resultados concentraremos


inicialmente na “felicidade” e/ou “fidelidade” da tradução
propriamente dita (de responsabilidade da tradutora, Cristina Alberts-
Franco5), para depois acrescentar algumas críticas, desafortunadamente
indispensáveis, ao projeto editorial da obra em revisão,
a responsabilidade da comissão editorial da editora da UNESP.

4 Num primeiro passo, enfrentamos a edição da UNESP “formalmente” com a já indicada versão
digitalizada do mesmo volume do original, procurando detectar mudanças na “apresentação” (projeto
editorial) e estrutura (cortes; inclusão de materiais, inexistentes no original) da obra. Num segundo
passo, comparamos – capitulo por capitulo, parágrafo por parágrafo - o texto do original com a sua
tradução para, num terceiro passo enfrentar ainda (frase por frase; palavra por palavra) a tradução do
1º e 4º capítulos, com a finalidade de avaliar a “felicidade” da tradução, em vista da semântica do texto
destes capítulos em alemão. É claro que esta ultima avaliação é eminentemente subjetiva, dependente
do meu entendimento do alemão (e do português), a semântica do seu vocabulário, a sua gramática e
sintaxe. Daí a necessidade de enfatizar que somos um alemão, há 13 anos residente no Brasil.
5 A tradução de qualquer texto, da língua em que foi originalmente composto, a outra língua
(historicamente relacionada ou não), é sempre uma tarefa delicada cujo resultado pode ser
questionado dos mais diversos ângulos. Afinal, o texto original e nunca meramente alguma “soma” de
palavras (pelas quais pode, ou não, haver “sinônimos” – ou quase - na língua da tradução) e sequer uma
totalidade de “frases” (dos mais diversos tipos/construções gramaticais) cuja “semântica” precisa ser
A nossa comparação do texto original de Koch-Grünberg6 com a
sua tradução em português, elaborada pela senhora Cristina Alberts-
Franco, nos impressionou. A versão portuguesa não somente se revelou
sumamente “fiel” ao original (em todos os detalhes), mas também (com
pouquíssimas exceções), sumamente “felizes” na escolha de termos,
expressões e as construções gramaticais etc. realizada pela tradutora.

Há de enfatizar neste contexto que se trata de um texto nada


“fácil”, nem mesmo na sua língua original, justamente pelas
peculiaridades e particularidades do “estilo” (vocabulário,
regionalismo, idiossincrasias de expressão e de gramática etc.) de um
autor que, principalmente neste primeiro volume da sua obra, nunca
perde o seu principal “leitor” de vista, - ao qual se dirige, com
freqüência, com um “piscar (literário) de olho”, que – inicialmente - nós
achamos até “irreproduzível” em português.

É claro que as freqüentes ironias, as alusões a valores (éticas e


estéticas) e ao hábito, assim como as (raras e bastante cuidadosas)
tentativas de “corrigir” certos preconceitos do seu “leitor imaginado”,
principalmente com relação à “natureza” dos índios e a “vida nos
trópicos” em geral, passarão, não obstante desta tradução bastante
atenta a eles, despercebidas por qualquer leitor, sem conhecimento
íntimo do “etos” daquela classe social, pela qual Koch-Grünberg
escreveu (e a qual ele mesmo pertencia); - mas, não pela “tradução
(propriamente dita)” aqui sob escrutino!

Como já enfatizamos em outra publicação (Frank, 2005), Koch-


Grünberg era um típico “Bildungsbürger” da sua época e país e escrevia
para os demais integrantes desta classe social. Produto de um
mantida numa tradução que, obrigatoriamente segue regras (gramaticais) distintas. Há ainda as
questões do “estilo”, da intrincada expressão do texto original como tal (e de todas as suas partes
constitutivas), para nem falar da sua imersão dele no contexto cultural e temporal do seu autor, o “leitor
imaginado” por este, ou (ainda mais complexo) a relação entre a visão do mundo de um autor e o seu
“jeito” de escrever, que levou Theodor W. Adorno a postular que depreciar a linguagem de um autor é
banalizar o seu pensamento. Enfim, estamos conscientes que qualquer tradução é resultado de uma
extremamente delicada “negociação de significados” e que inexiste um critério absoluto para realizar o
propósito deste ensaio. Há de enfatizar, pelo tanto, que a avaliação a seguir do esforço da tradutora é
propriamente nossa avaliação que se fundamenta, centralmente, no fato de o autor destas linhas ser
alemão, de nascimento, com 30 anos de vida em América Latina, e 13 anos no Brasil, ensinando
antropologia em cursos de graduação e pós-graduação em duas universidades do norte deste país.
6 Usamos a já indicada versão “escaneada” da Internet, além das nossas anotações acima do exemplar
do original que encontramos na Biblioteca do INPA, em Manaus.
“Altsprachliches Gymnasium7”, nacionalista (mas não xenofóbico, -
nem “racista”), Koch-Grünberg era “progressista” (mas não
“evolucionista”, como o tacham Paulo Santilli e Nadia Farage, numa
“Introdução” demasiadamente infeliz8), “idealista” na sua visão do
mundo que conhecia os “seus” clássicos (os filósofos gregos e romanos,
assim como as obras de Goethe e Schiller e dos filósofos alemães, de Kant
a Dilthey), aos quais alude constantemente.

Não detectamos qualquer “omissão” (corte) na tradução, nem de


parágrafos, nem de frases, e sequer de partes importantes de frases
(frases subordinadas etc.); embora, há sim umas poucas
“reestruturações” de parágrafos (junções, ou a apresentação do
conteúdo de um parágrafo do original em dois), por certo, pouco
significativas, mas, também, nunca avisadas nem justificadas.
Descobrimos poucos termos e/ou expressões, digamos, discutíveis;
mas, nada que considerássemos simplesmente uma tradução errada,
plenamente contrário ao original, ou até mesmo “distante demais” dele.

Enfim, há de parabenizar à senhora Cristina Alberts-Franco pelo


seu trabalho sério e responsável. É preciso enfatizar particularmente que
a tradutora (ao contrario da [s] tradutora [s] da edição venezuelana)
resistiu firmemente à tentação de apresentar uma tradução, digamos:
“literal demais”. Na versão de Caracas, justamente este erro resultou
em algumas expressões e frases até “esquisitas”. Em vez disso, ela
compôs um texto em português que até permite ao leitor brasileiro,
saborear muitas das ironias do autor, re-encontrar o seu “ductus” (ritmo)
particular, e se maravilhar com o profundo “romanticismo” (a poesia)
de certas partes da obra.

Respondendo, pois, a pergunta levantada no inicio deste ensaio, a


nossa resposta só pode ser: Sim, a tradução (como tal) do 1º volume da

7 Escola secundaria alemã da época, com ênfase no ensino das línguas (e da “cultura”) “clássicas”
do grego e latim.
8 Em vista da finalidade deste ensaio, não comentaremos esta parte da edição sob revisão em extenso.
Mas, não podemos deixar de lamentar que, em meramente nove páginas, seus autores (que atuaram
também como “revisores técnicos” da edição) logram chamar Koch-Grünberg e a escola a qual
pertenceu, de quase tudo que ele/ela, com certeza, nunca foi/foram; - entre outros: “evolucionista” e
“racista”! Em vez de – devidamente - contextualizar a obra e o seu autor no seu tempo e a escola
antropológica de origem. Esta “Introdução” só documenta (uma vez mais) que, com poucas exceções,
referencias francesas seguem uma péssima escolha, quando se trata de entender e avaliar o pensamento
alemão do século XIX.
obra “Vom Roroima zum Orinoco”, de Theodor Koch-Grünberg,
recentemente lançado pela editora da Universidade do Estado de São
Paulo, pode sim ser aproveitada sem qualquer preocupação.
Desafortunadamente, não é possível, estender estes parabéns à equipe
editorial da UNESP, - por razões que detalharemos em seguida.

Como já enfatizamos em nosso trabalho anterior (Frank 2005),


qualquer tradução/(re)-edição de um documento histórico da
importância de “Vom Roroima zum Orinoco” precisa se mostrar “fiel”,
não somente ao “conteúdo” (strito senso) do original, isto é, às
“informações” veiculadas pelo texto, assim como ao ductus [estilo] da
narrativa e linguagem (retórica) do seu autor, mas também, ao seu
“caráter” atual inquestionável de documento chave da “Völkerkunde”
alemã da qual o seu autor fez parte.

A Völkerkunde foi uma versão regional9 da antropologia que


surgiu na primeira metade do século XIX, como um entre vários projetos
científicos alternativos, no interior de uma definição “neo-kantiana” das
assim chamadas “ciências culturais ou sociais”. Ao longo da década de
60 do século XIX, se mostrou o único deste projeto que logrou “se
institucionalizar” firmemente no campo acadêmico alemão,
inicialmente em vários “museus etnográficos” e, da década de 1880 em
diante, também nas universidades de língua alemã. Como projeto
científico, a Völkerkunde entrou em declínio, em conseqüência da 1ª
guerra mundial, e praticamente desapareceu duas décadas depois, em
conseqüência da cooptação de vários dos seus representantes tardios
pelo fascismo.

Na primeira década do século XX, Theodor Koch-Grünberg, se


tornou um dos principais representantes deste projeto, devido ao êxito
espetacular de duas (de quatro) “expedições” por ele idealizadas: aquela
que (de 1903 a 1905) o levou ao alto Rio Negro e ainda outra que
(entre 1911 e 1913) o levou “do (norte do atual Estado de) Roraima ao
(alto rio) Orinoco”.

9 Preferimos não chamar a Volkerkunde uma versão nacional da antropologia; em primeiro lugar,
porque ela surgiu mesmo antes do Estado Nacional alemão e, em segundo lugar, porque ela nunca se
restringiu ao território da Alemanha, como definido em 1870, incluindo “austríacos”
(até 1918: cidadãos do Império Úngaro-Austríaco) e “suíços”, até mesmo alguns antropólogos
dinamarqueses e suecos.
Como mostramos em outro trabalho (Frank 2005), a publicação
dos resultados destas duas façanhas espetaculares o transformou um
filólogo provinciano desconhecido num dos “Mandarins” da
antropologia alemã da época, capaz de fazer e desfazer “carreiras”,
na sua área de especialização, via cartas de recomendações dadas ou
negadas, recensões (também: dados ou negados) e indicações (na sua
maioria: não oficiais) de candidatos a vagas vacantes.

Em vista destes fatos, parece-nos não somente “legitimo”, mas


absolutamente imprescindível, exigir de qualquer tradução/(re-)edição
de Vom Roroima zum Orinoco (ou qualquer outra obra deste autor, ou de
outro autor de igual importância) que ela permita, não somente “saber”
(sem modificação ou “cortes”) todos os “fatos” veiculados no original
(aquilo que o texto efetivamente afirma, no próprio “ducto” o “estilo”
pessoal do autor), mas também que respeite a obra como documento
histórico; - no caso que aqui nos importa, como obra paradigmática de
todo um projeto científico (“escola” ou tradição “nacional”); isto é, de
uma concepção historicamente específica do “fazer antropologia”.
Lamentavelmente, a edição aqui sob escrutínio, se esquiva desta
obrigação. Pois, por razões desconhecidas, os responsáveis por ela
decidiram simplesmente ignorar o “projeto editorial” do próprio Koch-
Grünberg (e sua editora original), impondo a esta tradução um projeto
completamente “novo”, norteado por critérios (a que tudo parece:
principalmente estéticos) que pouco ou nada tem a ver com a obra.

Para deixar nossa queixa bem clara: nós não nos opomos ao “re-
dimensionamento” do original, nem a uma “capa”, cujo design lembra
(vagamente) o “mundo indígena”, mas ignora a iconografia que o
próprio Koch-Grünberg “inventou”, aliás: com a mesma intenção. Não
temos também nada contra a inclusão (sem aviso) de uma fotografia
(P.28) que mostra Theodor Koch-Grünberg, sentado no canto de uma
mesa, vestido “a moda de campo”, com um enorme bigode que estica
horizontalmente por vários centímetros além das bochechas, o seu “fiel
servo” [treuer Diener], Hermann Schmidt, um catarinense, de
descendência alemã, assim como o “wapishana Romeu10”; os dois

10 Romeu acompanhou Koch-Grünberg da aldeia macuxi de “Koimélmong” até Manaus. Para o


etnógrafo alemão, Romeu foi “wapishana” por ser filho de uma wapishana, casada com um macuxi,
mesmo que, segundo o próprio Koch-Grünberg, Romeu falava macuxi, conhecendo meramente
poucas palavras da língua da sua mãe.
últimos em pé, detrás de Koch-Grunberg; fotografia que aparece na
edição da UNESP entre a “Apresentação” da edição (de autoria de José
Mindlin), sua (infeliz) “Introdução”, de autoria de Nadia Farage e Paulo
Santilli, a “Nota da Tradutora” e, finalmente, o “Prefácio” do próprio
Koch-Grunberg e o primeiro capítulo11. Mas, consideramos intolerável o
brutal empobrecimento desta tradução/(re-)edição, em conseqüência
da exclusão arbitrária de 51 (cinqüenta e uma) das 115 (cento cinqüenta)
“ilustrações” (fotografias) do original (sem qualquer aviso, nem
justificativa), pois, as fotografias de Theodor Koch-Grünberg, na sua
totalidade, alem de valiosas fontes de informações etnográficas e
históricas adicionais ao texto, constituem parte integral do projeto
editorial do original, ou seja, elas constituem parte substancial do
documento histórico que a UNESP “diz” que está ofertando ao público
brasileiro, traduzido ao português.

Mas, as “inovações” editoriais da edição da UNESP não param


por aí. Pois, contrario ao original, ela também não proporciona qualquer
“Índice”, sequer daquelas fotografias que, por razões desconhecidas,
sobreviveram à censura. Há de lamentar ainda que a tradução dos
títulos daquelas fotografias efetivamente reproduzidas, a que tudo
parece, foi realizada por alguém (estamos convencidos que não foi a
senhora Cristina Alberts-Franco) em base da edição venezuelana. Pois:
como explicar de outra maneira o fato que palavras em línguas
indígenas portam na edição aqui sob escrutinio as mesmas “correções”
que já os editores venezuelanos a eles aplicaram indevidamente?12

Finalmente, a edição da UNESP repete também a mesma


tergiversação do próprio título da obra, já cometida pelos editores
venezuelanos. Pois, o termo usado pelo autor do original como “nome”
da famosa montanha no extremo norte do atual estado de Roraima não é
“Roraima”, senão Roroima. Afinal, Koch-Grünberg (ainda) sabia que a
palavra é de origem “Pemon” (para ele: “Taurepang”), onde “roro”
significa “verde-azul”, e “ima” é um sufixo, indicador de “grandeza13”.

11 Desafortunadamente, este foto, obra do fotógrafo alemão Georg Huebner, realizada no seu
“Atelier”, em Manaus (1913), carece da devida indicação do seu autor.
12 Por exemplo: p.57, “Wapischána” em vez de “Wapischana”, “Taulipáng” em vez de “Taulipang”,
etc,; campare: p.s 49 e 50 da edição venezuelana e p.32 do original; igualmente: p.64, Ed. Unesp:
“Koimélemong”; p.57, ed. venezuelana “Koimélemon”; original (p.40): Koimelemong”.
13 Por boa sorte (e exemplo da fidelidade da sua tradução), a tradutora, Sra, Cristina Alberts-Franco
não cometeu o mesmo erro.
Em vista de tudo isso, já não surpreende a ninguém,
provavelmente, que a edição da UNESP segue a venezuelana também,
em simplesmente ignorar diversos mapas que, no original, se encontram
anexos ao 1º volume da obra.

Sabemos, é claro, das estreitas limitações financeiras aos quais


projetos editoriais como este, costumam serem submetidos. Mas, neste
caso, parece que havia recursos financeiros o suficiente para transformar
uma obra etnográfica (relato de viagem científico, equivalente àquilo
que, hoje, chamamos de “trabalho de campo” na antropologia) numa
“obra de arte” tipográfica. Talvez, um papel menos “pesado” (Couché
fosco 115 g/m2) teria permitido lançar uma edição menos mutilada da
obra aqui em questão?

Resumindo: há de constatar que – tomando todos os fatos


mencionados em conjunto, estamos frente a uma obra no
mínimo duvidosa.

Por um lado, é – sem dúvida – louvável que exista, finalmente,


uma (deveras excelente) tradução do texto-mestre de Koch-Grünberg,
em língua portuguesa; - entre outros, porque, desta maneira, a obra se
torna acessível, finalmente, também para muitos dos descendentes
atuais daqueles homens, mulheres e crianças que, neste livro, o seu autor
descreveu com tanta simpatia. Por outro lado, só pode ser lamentado
que, em muitos dos seus aspetos formais, esta tradução/(re-)edição nem
chega perto do que se pode, e até é preciso exigir dela - E nem falamos
ainda do seu preço exorbitante!
NORMAS PARA PUBLICAÇÃO

A Revista de Estudos e Pesquisa do NUHSA publicará, de início,


anualmente, artigos de pesquisadores que realizam trabalhos dentro
das linhas de pesquisa do Núcleo: História, Ambiente e Sociedade e
Etnias/Cultura.
Os trabalhos completos, deverão ser encaminhados ao
coordenador do Nuhsa em disquete ou CD, impressos (duas cópias) no
formato A4, espaçamento 1,5, margem de 3cm, justificados, letra corpo
12 em Times New Roman, digitados em editor Word for Windows;
Os textos devem conter, preferencialmente, o máximo de 30
laudas; devem estar acompanhados de resumo, contendo 150 palavras, e
palavras-chave - no máximo 6.
O texto deve conter informações sobre a formação acadêmica,
título e vinculação institucional do autor;
As citações bibliográficas no texto e a respectiva refenciação
bibliográfica devem estar de acordo com as normas da ABNT
(Associação de Normas Técnicas);
As resenhas serão de livros publicados nos últimos três anos.
A cada edição, O Conselho Editorial da revista selecionará, dentre
os artigos recebidos, aqueles que serão publicados.

A Coordenação.

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