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FACULDADE SANTA MARCELINA

Pós-Graduação
Violão: Pedagogia e Performance

Mateus de Lima Zacarias

Uma visão violonística acerca da ramificação da Escola Jabour


proposta por Itiberê Zwarg

São Paulo
2020
Mateus de Lima Zacarias

Uma visão violonística acerca da ramificação da Escola Jabour


proposta por Itiberê Zwarg

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


à Pós-Graduação em Violão: Pedagogia e
Performance da Faculdade Santa Marcelina

Orientadora:
Profª. Ma. Andrea Paula Picherzky

São Paulo
2020
RESUMO

Neste artigo será explorada a visão violonística dos componentes musicais e práticos
que compõem a subdivisão da Escola Jabour proposta por Itiberê Zwarg, em suas Oficinas
da Música Universal. Dentro do primeiro grupo dos itens a serem investigados, enquadram-
se ritmo, harmonia elementos melódicos e contraponto. Quanto ao segundo, será analisada a
soberania da escuta em relação à leitura musical. A partir desse universo, foi escolhido
trabalhar com o violão dentro da música de câmara na forma de um quarteto. Para realizar
essa conexão, foi feita uma análise de duas faixas do disco Cordas Cruzadas (2001), “Ilza
nº83” (autoria de Hermeto Pascoal) e “Pra Lúcia” (autoria de Itiberê Zwarg) a fim de ressaltar
as principais semelhanças e diferenças entre os dois compositores explicitando a raiz
(Pascoal) e a ramificação (Zwarg) da Escola Jabour. Além disso, foi criado um arranjo autoral
para quarteto de violões de uma composição de Itiberê Zwarg intitulada “Nikiti”. O arranjo
foi construído baseando-se em experiências vividas nas Oficinas da Música Universal em
meados de janeiro e agosto de 2019, e utilizando o caderno de partituras de Zwarg Oficinas
da Música Universal Pro Arte como material de apoio.

Palavras-chave: Violão, quarteto, Escola Jabour, arranjo autoral, Música Universal


ABSTRACT

This article will explore the classical guitar sight from the musical and practical
aspects that compose the Itiberê Zwarg’s ramification of Jabour’s School in their classes
called “Oficina da Música Universal”. Rhythm, harmony, melodic and counterpoint
elements are the first group of aspects analyzed. The second is framed by the listening
sovereignty regarding the musical reading. Inside the classical guitar universe, a guitar
quartet formation was chosen to study theses aspects. To connect this two subjects (Jabour’s
School and classical guitar), two tracks from the record “Cordas Cruzadas” (2001) from
Quarteto Maogani were analyzed: “Ilza nº 83” (Hermeto Pascoal) and “Pra Lúcia” (Itiberê
Zwarg). The analysis shows the main similarities and differences between the two composers,
turning explicit the root (Pascoal) and the ramification (Zwarg) of Jabour’s School. Further,
the article shows an authorial arrangement for a guitar quartet from Zwarg’s piece called
“Nikiti”. The composition of the arrangement was made using personal experiences lived in
two editions of Zwarg’s classes in the year 2019 and a Zwarg’s songbook called “Oficinas
da Música Universal Pro Arte”.

Key-words: Classical guitar, quartet, Jabour’s School, authorial arrengment


SUMÁRIO

1 MÚSICA UNIVERSAL, ESCOLA JABOUR E O VIOLÃO 9


1.1 MÚSICA UNIVERSAL E ESCOLA JABOUR 9
1.2 VIOLÃO NA MÚSICA UNIVERSAL 10
2 A VISÃO VIOLONÍSTICA DENTRO DA ESCOLA JABOUR:
UMA ANÁLISE PARA QUARTETO DE VIOLÕES 13
2.1 ANÁLISE DO MATERIAL FONOGRÁFICO 13
2.1.1“ILZA Nº 83” 13
2.1.2 ... “PRA LÚCIA” 15
2.2ARRANJO DA MÚSICA “NIKITI” PARA QUARTETO DE
VIOLÕES 16
2.2.1 ...OFICINA DA MÚSICA UNIVERSAL 17
2.2.2 ... ASPECTOS MUSICAIS E DE ARRANJO 18
2.2.3 ...ASPECTOS DE EXECUÇÃO (ENSAIO E GRAVAÇÃO) 22
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO 25
3.1PRINCIPAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE AS
FAIXAS “ILZA Nº83” E “PRA LÚCIA” 25
3.2 PERFORMANCE DO ARRANJO DE “NIKITI” 26
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 29
REFERÊNCIAS 31
ÍNDICE DE FIGURAS 32
ANEXO – PARTITURA DO ARRANJO DE “NIKITI” 33
8

INTRODUÇÃO
Durante minha formação musical, a Música Universal e o violão foram os grandes
divisores de águas. Este por ser o instrumento que me profissionalizou na música; aquela por
me fazer melhor compreender a prática musical. Durante as Oficinas da Música Universal
das quais participei, pude absorver muitas reflexões sobre a escuta e a importância da
autenticidade musical. Paralelamente, adquiria experiência como violonista e arranjador para
violão e grupos de violões. Como essas duas vivências aconteceram simultaneamente, tive
dificuldade para encontrar trabalhos que relacionassem os dois temas. Por isso, vi neste artigo
a oportunidade de conectar ambos assuntos de um jeito que me represente e dê materialidade
à visão que tenho em relação ao violão e à música como um todo.

O desenvolvimento do trabalho começa com uma breve contextualização da Escola


Jabour. Dessa forma, descrevo como ela foi e é aplicada nas diversas práticas musicais
relacionadas à Música Universal, bem como o lugar e a função do violão nessa prática.
Também optei por uma formação dentro da escola do violão, a fim de explorar seus recursos
e sua aplicabilidade como parte da subdivisão da Escola Jabour proposta por Itiberê Zwarg.

Para estudar a prática do violão aplicada à Escola Jabour, dei preferência a um


quarteto. Como base, foram utilizadas as composições de Hermeto Pascoal e Itiberê Zwarg
para o Quarteto Maogani, além de um arranjo de minha autoria para quarteto de violões de
uma peça do próprio Zwarg, presente em seu caderno de partituras da Pro Arte.

A partir desses objetos de estudo, realizei análises e comparações acerca da rede


estilística desenvolvida por Pascoal e disseminada pelos músicos que tiveram algum contato
com ele. Ademais, também fiz uma análise prática da aplicabilidade da Escola Jabour dentro
da visão violonística.
9

1 MÚSICA UNIVERSAL, ESCOLA JABOUR E O VIOLÃO


Neste capítulo procuro explicar o que é Música Universal e Escola Jabour. Para tanto,
foram traçadas reflexões sobre algumas falas de Hermeto Pascoal, nas quais ele disserta sobre
sua música. Também, fiz um breve histórico da carreira do instrumentista e de sua interação
com os músicos ao seu redor, com destaque para o período de 1981 a 1993. Além disso, este
capítulo traz uma elucidação para os possíveis significados da terminologia do nome
escolhido pelo músico. Com isso, é possível compreender a existência de vários caminhos
interpretativos da Música Universal, bem como as ramificações da Escola criada por Pascoal
durante o processo de consolidação de seu projeto. Por fim, foi montado um compêndio com
as aparições do violão dentro desse estilo musical. Entre elas, destacam-se alguns nomes
influentes do violão como Marco Pereira, Sebastião Tapajós e Quarteto Maogani.

1.1 MÚSICA UNIVERSAL E ESCOLA JABOUR

“O sentir em primeiro lugar!”. Com essa frase, dita no programa Um Café Lá em


Casa1 pelo compositor Hermeto Pascoal, é possível resumir a essência da Música Universal.
Criado pelo músico alagoano, o nome define seu jeito particular de fazer música, no qual a
intuição é utilizada como principal ferramenta criativa.

A Música Universal compreende uma abstração que, segundo Pascoal, é uma abertura
para as pessoas interpretarem à sua própria maneira. Para ele: “O abstrato é uma coisa aberta
para as pessoas verem, ouvirem e sentirem cada um do seu jeito (...). Então, eu posso dizer
que o que é abstrato é universal. Não esconde a criatividade e não faz com que as pessoas se
padronizem” (A MÚSICA..., 2019).

De acordo com Costa Lima Neto (1999), esse é um pensamento que acompanha o
músico desde criança. Sendo um jovem com dificuldades de leitura, os professores de música
não tinham paciência com ele. Isso fez com que Pascoal elaborasse uma linguagem
independente da tradição erudita, enfatizando a intuição sobre o saber, e a prática sobre a
teoria. O cultivo da intuição e da abstração é algo que o acompanhou e acompanha em toda
sua vida musical.

1
“Um Café Lá em Casa” é um programa apresentado pelo músico Nelson Faria em seu canal no
YouTube, no qual ele entrevista diversos artistas da cena musical brasileira e internacional. Em um deles,
entrevistou o músico Hermeto Pascoal que apresentou, com maior proximidade, a Música Universal e sua
essência.
10

Em 1977, após iniciar sua carreira solo, o músico se estabelece na cidade do Rio de
Janeiro, no bairro do Jabour, onde reúne um quinteto sólido. Ao lado do grupo, Pascoal
amadureceu seu projeto musical e, por doze anos — de 1981 a 1993 (COSTA LIMA NETO,
1999) —, manteve uma laboriosa rotina de ensaios. Segundo Ferreira da Silva e Gimenes
(2017), essa rotina espartana “foi inédita na música popular brasileira”. Integrado por Itiberê
Zwarg (baixo, tuba, bombardino e piano), Márcio Bahia (bateria e percussão), Jovino Santos
Neto (piano, flauta e flautim), Pernambuco (percussão), Carlos Malta (saxofones, flautas e
flautim), o grupo teve a oportunidade de ser a primeira geração de músicos a vivenciar o
método de criação musical de Pascoal de modo intensivo. Posteriormente, o método seria
reconhecido como Escola Jabour.

O nome “Escola Jabour” pode ter dois significados, segundo Ferreira da Silva e
Gimenes (2017). O primeiro deles diz respeito ao grupo de Pascoal propriamente dito,
principalmente no que se refere à formação de 1981 a 1993. Isso significa que o estilo musical
desenvolvido está enraizado na associação que os músicos criaram com o compositor durante
aquele período, chamado por Ferreira da Silva e Gimenes de “relação associativa”. Quanto
ao segundo significado, o termo relaciona-se à rede estilística desenvolvida a partir das
ramificações do grupo de Pascoal, na qual os músicos atuam como mediadores e
disseminadores do conhecimento assimilado junto ao “Campeão” (como é chamado por
alguns músicos que conviveram e convivem com ele). Nesse sentido, a Escola Jabour seria
como uma planta onde a raiz está em Hermeto Pascoal e os músicos que tiverem contato com
ele em seu grupo são os ramos, justificando o uso da palavra “ramificação”.

Neste artigo, foi utilizada a segunda definição do que se refere ao termo “Escola
Jabour”. Uma vez que aqui foi estudada a Escola Jabour por meio do olhar de Itiberê Zwarg,
um músico que trabalha lado a lado de Pascoal desde 1977, e que ministra oficinas musicais
chamadas Oficinas da Música Universal.

1.2 VIOLÃO NA MÚSICA UNIVERSAL

O violão tem um papel aparentemente coadjuvante na história da Música Universal.


Uma possível hipótese para isso surge no fato de as composições da mesma terem uma
linguagem musical pensada a partir do piano. Segundo Zwarg (2006), Hermeto deu origem
a um novo olhar para os acordes e suas inversões. Para repassar esse conceito aos músicos,
ele criou um novo jeito de escrever as aberturas dos acordes feitos ao piano sob a forma de
cifras, com o objetivo de mostrar os acordes sobrepostos. O violão, por sua vez é um
11

instrumento com diversos idiomatismos que diferem da ideia pianística de se pensar os


acordes e suas inversões.

Segundo Scarduelli (2007), “idioma” na música instrumental significa o conjunto de


peculiaridades ou convenções que compõem o vocabulário de um determinado instrumento,
abrangendo alguns aspectos como os de interpretação musical; isto é: timbre, dinâmica e
articulações. Ao falar sobre idiomatismos, Scarduelli refere-se ao que é idiomático do
instrumento, ou seja, cada peculiaridade ou convenção do próprio instrumento. No caso do
violão, pode-se frisar a quantidade de cordas (seis, sete, oito, dez), a afinação entre elas e as
técnicas de mão direita e esquerda.

Lourenço Junior (2018) chama de “violonismo” a predominância marcante dessas


características idiomáticas em relação ao contexto em que o instrumento está inserido.
Portanto, é possível que o “violonismo” seja mais uma barreira na utilização do instrumento
como um reprodutor da Música Universal. Um exemplo desse efeito é a participação de
Marco Pereira e Hermeto Pascoal em um concerto do bandolinista Hamilton de Holanda,
onde os músicos performam uma obra de Pascoal intitulada “Chorinho Pra Ele”. Pelo fato de
ser um choro e pelo violão ser um instrumento amplamente utilizado no estilo, a sonoridade
de Pereira remete aos clássicos acompanhamentos da história desse gênero musical
brasileiro. Ou seja, o “violonismo” durante essa performance se fez presente, embora a obra
seja um marco da Música Universal.

Um efeito diferente é notado ao analisar algumas composições de Pascoal presentes


no disco Solos do Brasil — álbum em que o músico toca percussão, escaleta, flauta, sanfona
na faixa 11 e piano na faixa 13, e do qual participam Gilson Peranzzetta (piano), Sebastião
Tapajós (violão). Apesar de trazer consigo elementos idiomáticos do instrumento, o violão
de Tapajós, tanto em seus solos quanto nos acompanhamentos, aparenta estar bem inserido
na linguagem universal de Pascoal.

Segundo Lima do Nascimento (2013), a forma de composição de Tapajós é


totalmente empírica. Ao mesmo tempo em que respeita as tradições oriundas das diversas
linguagens musicais que teve contato, Tapajós utiliza-se de elementos harmônicos e técnicos
presentes na contemporaneidade, revelando-se um compositor em trânsito entre a tradição e
a modernidade. Essa fluidez é algo que dialoga bem com a concepção musical de Pascoal, na
qual, segundo De Siqueira Tiné e Lyra David (2017), domina as tradições musicais brasileiras
(principalmente as nordestinas) ao mesmo tempo em que preza pela inovação e
experimentação de formas, harmonias, ritmos e elementos melódicos.
12

Até então foi falado sobre violão como um acompanhador, mas ainda há a
possibilidade do violão solista e dos violões em uma formação de música de câmara (duos,
trios, quartetos). É raro de se ver manifestações do primeiro caso na Escola Jabour e suas
ramificações. No entanto, em 2018, Itiberê Zwarg convidou um jovem violonista chamado
Raphael dos Santos para participar de seu grupo e gravar o disco Intuitivo (2018).

Santos fez parte das Oficinas da Música Universal ministradas por Itiberê. Por
demonstrar grande domínio musical, foi convidado a fazer parte do grupo. Ao iniciar
oficialmente sua participação, Zwarg escreveu o que se acredita ser a primeira obra para
violão solo da Música Universal, chamada “Canguru”. Essa peça foi executada por Santos
na abertura dos concertos de lançamento do disco que havia gravado, como um ritual de
iniciação do novo integrante.

Essa não foi a única experiência que Itiberê Zwarg teve com o violão. Além de
interagir com o instrumento em suas Oficinas, o músico compôs uma obra para o Quarteto
Maogani intitulada “Pra Lúcia” presente no disco Cordas Cruzadas (2001). O próprio
Pascoal escreveu duas peças para o quarteto: “Ilza nº 83” também publicada no disco de 2001
e “Ilza nº 15”, do álbum Impressões do Choro (2007).
13

2 A VISÃO VIOLONÍSTICA DENTRO DA ESCOLA JABOUR: UMA


ANÁLISE PARA QUARTETO DE VIOLÕES

Para embasar esta pesquisa, escolhi trabalhar com uma abordagem voltada a um
grupo de violões na formação de quarteto. De modo a aprofundar essa visão, foram feitas
análises das duas faixas citadas do disco Cordas Cruzadas (2001), do Quarteto Maogani.
Essas análises têm por objetivo identificar e registrar as principais semelhanças e diferenças
musicais e estilísticas entre as composições de Itiberê Zwarg e Hermeto Pascoal, a fim de
expor as diversas vertentes que a Escola Jabour pode oferecer para além das principais
conexões entre a raiz da Escola e a de sua ramificação.

Também, neste capítulo apresento um arranjo autoral para quarteto de violões, criado
de acordo com os ensinamentos aprendidos em duas edições da Oficina da Música Universal.
A primeira delas foi realizada em janeiro de 2019, no Rio de Janeiro; a segunda, em agosto
do mesmo ano, na cidade de São Paulo, no Sesc Consolação. Para este estudo, além de
contextualizar sobre as Oficinas da Música Universal, foi feita também uma análise de
diferentes aspectos referentes à composição e execução.

2.1 ANÁLISE DO MATERIAL FONOGRÁFICO

Para realizar a análise, pautei-me principalmente nos aspectos estilísticos e de


composição dilatando o olhar para a interpretação do Quarteto. A partir disso, procurei
evidenciar os recursos idiomáticos utilizados pelo grupo e a função do violão, enquanto
mediador da Música Universal, principalmente no que tange sua harmonia.

A análise foi feita utilizando apenas o material fonográfico, sem auxílio de partituras.
Para a música “Ilza nº 83”, utilizo também um vídeo de uma performance ao vivo do Quarteto
Maogani disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=iSEvk1kK_JM>.

2.1.1 “ILZA Nº 83”

A composição de Hermeto Pascoal para o grupo, a priori, traz a imagem de um piano


solo. Nela, temos a impressão de que os quatro violões (três de seis cordas e um de oito
cordas) representam um único instrumento. Entretanto, ao ouvir com mais atenção, é
perceptível algumas características da composição responsáveis por acentuar e caracterizar
cada violão individualmente.
14

Quando ouvimos a harmonia, percebe-se que ela é dividida entre dois violões fixos e
um terceiro que ora realiza função de acompanhamento ora atua como segunda voz, em
conjunto à melodia principal. Na gravação do Quarteto Maogani, o violão de oito cordas é
responsável pelas regiões mais graves e baixaria2. Quanto aos violões de seis cordas, estes
ficam a cargo das regiões mais agudas dos acordes. Desse modo, realizam entre si as
sobreposições sugeridas pela harmonia da Música Universal.

Nesse tipo de harmonização, como foi dito anteriormente no primeiro capítulo, é


sugerida uma sobreposição de acordes divididos em regiões grave e aguda. Se pensarmos na
𝑏9
cifragem usual, tomando como exemplo um 𝐺713 , percebemos que ele é formado pelas notas
Sol, Si, Ré, Fá, Lá bemol e Mi. Utilizando a cifragem Universal, é possível dividir esse acorde
em duas regiões partindo de uma notação similar à das inversões. O mesmo acorde poderia
𝐸
ser representado por 𝐺7. Se pensarmos em cada acorde separadamente, temos na parte grave

(G7) Sol, Si, Ré e Fá. Já na parte aguda temos (E) Mi, Sol sustenido e Si (ZWARG, 2006, p.
16). Como o Sol sustenido e o Lá bemol tem o mesmo som, é possível afirmar que ambas as
configurações têm as mesmas notas. Sendo assim, pode-se pensar nas mesmas notas, porém
representadas como acordes sobrepostos.

É possível separar a peça em dois momentos, nos quais a rítmica e a condução


melódica são pontos chaves. No primeiro momento, que é retomado ao fim da música, temos
um compasso ternário com uma melodia fluida e graciosa, remetendo às valsas brasileiras.
Isso nos faz lembrar os estilos de Guinga, como nas músicas “Carta de Pedra” (GUINGA e
BLANC, 1998) e “Valsa para Leila” (GUINGA e BLANC, 2004), e ainda Francisco
Mignone, como em “Doze Valsas de Esquina” (MIGNONE, 1982). No segundo momento,
o qual ocupa a metade da peça, temos a presença de um ritmo sincopado aplicado no mesmo
compasso ternário. Este, por sua vez, nos traz à mente o mesmo compasso usado pela música
popular mineira, em especial nas canções de Milton Nascimento como “Tambores de Minas”
(NASCIMENTO e BORGES, 1997) ou “Cravo e Canela” (NASCIMENTO e BASTOS,
1972).

A melodia destaca esses dois momentos de maneiras bem características. Isso ocorre
pois, segundo Pascoal, a melodia é uma criação da harmonia e da rítmica. Conforme relembra
Zwarg na edição de agosto de 2019 da Oficina da Música Universal, Pascoal criou uma

2
Baixaria: termo comum à linguagem do choro que implica na condução melódica executada na região
grave, geralmente pelo violão de 7 cordas.
15

poesia para representar isso: “A harmonia é a mãe, a criadora, a inspiradora; O ritmo é o pai,
o coordenador, o organizador; A melodia é a filha, que é uma criação conjunta da mãe
Harmonia e do pai Ritmo. ”

Partindo desse princípio, percebe-se que a melodia da peça e a interpretação do


Quarteto Maogani seguem essa lógica. No primeiro momento, o Quarteto executa as
melodias em legatto deixando-as bem expressivas, principalmente quando um dos violões a
complementa com uma segunda voz executando cânones3.

O timbre também é um fator que contribui para os momentos da peça. Isso é


perceptível no uso de timbres com características mais dolce, na parte mais valseada. Já no
momento mais sincopado e agitado, é possível perceber a utilização de timbres de maior teor
metálico, além do uso de fraseados mais rápidos e também de stacattos que acentuam a parte
rítmica.

2.1.2 “PRA LÚCIA”

Itiberê Zwarg tem um jeito particular de compor. Por apresentarem diversas partes,
suas peças muitas vezes se assemelham a mini suítes4. Na obra “Pra Lúcia” não é diferente.
A peça dispõe de momentos diversos e curtos, com propostas harmônicas e rítmicas distintas.
No decorrer da peça, ocorrem repetições desses momentos, porém com novos arranjos a cada
uma delas.

A obra começa com um ostinato5 no qual cada violão repete a linha melódica em um
intervalo diferente, moldando assim a harmonia inicial. Essa construção acontece na forma
de pirâmide. Ou seja, primeiro tem início uma das vozes; em seguida, outras vão sendo
adicionadas a cada repetição do ostinato.

Após a introdução, a melodia marca o início do que será aqui referido como Parte A
da música. Inicialmente, essa melodia é feita em dois violões que se dividem em intervalos
de oitavas, sendo um na região dos bordões e outro na região aguda. Em seguida, os acordes
aparecem de modo arpejado, com acentuação dos baixos. Em alguns momentos, um dos
violões realça a parte aguda do acorde de forma plaqué (quando notas de um acorde são

3
Cânone é quando uma voz imita uma linha melódica principal de forma polifônica (ZIEHN, 1912).
4
Suíte é uma forma musical que reúne, em uma sequência, diversos movimentos contidos na mesma
peça (MAMEDIO BARK, 2007, p. 25).
5
Ostinato é qualquer padrão melódico ou rítmico que se repete persistentemente. No jazz é comum
encontrar ostinatos nas linhas de baixo (RAWLINS e BAHHA, 2005, p. 132).
16

tocadas simultaneamente), em conjunto com o violão de oito cordas, harmonizador da seção.


Há uma segunda exposição do tema da Parte A, na qual Zwarg cria uma segunda linha
melódica em resposta à principal, que é feita ora a uma voz ora a duas vozes em intervalos.

Seguindo para a Parte B, há a presença de um crescendo indicando mais ritmicidade


na música. Nesse momento, a harmonia passa a ser dividida entre dois violões, cirando entre
si uma dinâmica de “pergunta e resposta”. Dessa forma, desenvolve-se uma espécie de
contraponto com a melodia, como foi sugerido por Tiné e Lyra (2017) ao analisarem os
aspectos de composição e arranjo de Hermeto Pascoal. Em seguida, diversas ideias
harmônicas e rítmicas são apresentadas e costuradas pela melodia, indicando transição.

Esse momento culmina na Parte C da música, em que o arranjo se divide em linhas


de baixo feitas pelo violão de oito cordas, o qual traz peso ao arranjo. Somados a esse
instrumento, dois violões ficam responsáveis pela harmonia e pelos contrapontos rítmicos
entre si; enquanto um quarto violão encarrega-se da melodia. A nova parte assemelha-se a
uma Guarânia, principalmente pelo ostinato rítmico executado pela linha de baixos do violão
de oito cordas e pela dinâmica dos dois violões responsáveis pela harmonia.

Após a Parte C, o arranjo retorna à Parte A. No entanto, encontra-se modificado. São


acrescentados mais elementos rítmicos, que movimentam a harmonia criando os já citados
contrapontos harmônicos, assim como algumas propostas de contrapontos melódicos na
segunda voz, da mesma forma que na primeira repetição da Parte A no início da composição.
Além disso, a melodia explora novas formas de interpretação. Nota-se a preferência por uma
execução em stacatto, e também a exploração em oitavas mais agudas; ou seja, notas da
décima segunda casa do violão em diante.

Por fim, as partes da música se repetem como são. Porém, a interpretação do quarteto
se apresenta de forma mais agressiva, culminando novamente em repetição da Parte A. Esta,
por sua vez, retorna interpretada de maneira mais sutil e expressiva, caminhando para o
encerramento da composição, que termina com acorde aberto nas quatro vozes.

2.2 ARRANJO DA MÚSICA “NIKITI” PARA QUARTETO DE VIOLÕES

Neste tópico, descrevo o processo de elaboração e execução do arranjo de minha


autoria da composição “Nikiti”, concebida por Itiberê Zwarg. A partitura da música encontra-
se em Oficinas da Música Universal Pro Arte (2006, p. 20), em formato realbook, onde
consta a melodia escrita e a harmonia cifrada.
17

Para iniciar a reflexão sobre o arranjo, descrevo, a princípio, o funcionamento da


Oficina da Música Universal, uma vez que o principal processo de aprendizagem sobre a
Escola Jabour ocorreu durante as oficinas ministradas por Zwarg.

Em seguida, apresento o processo de criação do arranjo, no que tange os aspectos


musicais (sendo eles harmonia, rítmica e contraponto); e também apresento o processo de
ensaio e gravação junto ao quarteto Camerata Camará, no que tange os aspectos de execução
(soberania da escuta em relação à leitura musical).

2.2.1 OFICINA DA MÚSICA UNIVERSAL

A Oficina da Música Universal é o método utilizado por Zwarg para difundir sua
visão da Escola Jabour. É nesse espaço onde ele transmite os conhecimentos adquiridos com
Hermeto Pascoal, em especial no período de 1981 a 1993, como ele mesmo confirma: “A
metodologia que emprego para compor, arranjar e tocar com a orquestra6 que lidero não
inventei, aprendi com Hermeto. ” (PETRINI, 2013, p. 50)

Em cada turma da Oficina, Zwarg compõe uma música para os alunos tocarem. As
músicas feitas pelo instrumentista são, como ele próprio chama, “Composições de Corpo
Presente” (PETRINI, 2013, p. 52). Ou seja, são músicas criadas durante as aulas. “Os meus
alunos vivenciam a Música Universal pela maneira como eu vou construindo os temas e
arranjos durante as aulas, tendo sempre a escuta à frente da teoria (...)” (ZWARG, 2006, p.
15).

Zwarg constrói os arranjos sem escrever qualquer partitura. Ele ensina as frases para
cada instrumentista tocando ou cantando para que os alunos exercitem a escuta e a memória
musical.

As Oficinas têm formações variadas. Como geralmente contam com muitos alunos,
cria-se um ambiente similar ao da Itiberê Orquestra Família. Sendo assim, surge mais um
desafio entre os participantes. Além da memória musical e da auto escuta, os participantes
exercitam a escuta entre eles. Ou seja, cada aluno é responsável por equilibrar seu som
perante o dos outros. “Para que o arranjo composto soe bem, é necessário que cada naipe,
contraponto e tema estejam equilibrados com o todo, isso exige atenção e principalmente que
toquem se escutando” (ZWARG, 2006, p. 15).

6
Trata-se da Itiberê Orquestra Família, criada por Zwarg. Um grupo formado pelos alunos que se
destacavam na Oficina da Música Universal (ZWARG, 2006).
18

Ao participar das Oficinas, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, pude
vivenciar a Escola Jabour com certa intensidade. Experienciei ensaios diários, de mais de
quatro horas de duração, totalmente voltados à música que estava sendo criada naquele
ambiente.

Mesmo quando Zwarg não estava compondo uma parte que eu deveria tocar, era
necessário prestar atenção em sua criação para outros instrumentos, orientação dada pelo
próprio compositor. Segundo ele, isso ajudava a escutar melhor as diversas partes do arranjo
e, dessa forma, equilibrar de forma mais precisa o som. Ao final, a música estava bem
difundida na memória de todos e se tornava fácil memorizá-la sem algum registro escrito.

É válido ressaltar também que as composições de Zwarg criadas na Oficina, bem


como todas suas criações musicais, trazem desafios de execução tanto com relação a escuta
pessoal, quanto a questões técnicas ligadas à performance com o instrumento.

2.2.2 ASPECTOS MUSICAIS E DE ARRANJO

Para a concepção do arranjo (cuja grade se encontra em anexo ao final deste artigo),
primeiramente foi estudada a harmonia da peça “Nikiti” que consta no caderno de partituras
Oficinas de Música Universal Pro Arte (ZWARG, 2006, p. 20). A música apresenta acordes
cifrados que seguem a escrita de Hermeto Pascoal, ou seja, acordes sobrepostos. Em seguida,
foi feito um estudo harmônico em torno da aplicabilidade desses acordes ao violão.

Após reconhecida a harmonia, teve início o processo de estruturação do arranjo. Nele,


aparece uma introdução e um interlúdio, presente no sétimo compasso da partitura original.
Essa introdução teve grande inspiração no arranjo da música “Pra Lúcia”, que começa com
um ostinato no qual cada violão realiza a linha melódica em um intervalo diferente,
construindo a ideia harmônica presente na primeira parte da composição (esse ostinato teve
como inspiração o primeiro compasso da música). Durante a introdução, após a entrada dos
quatro violões, há um crescendo que guia ao interlúdio com uma dinâmica forte que, por sua
vez, remete ao início da música. A Figura 1 representa o momento em que há o crescendo, o
interlúdio e o início da parte A.
19

Figura 1 - Final da introdução e início da Parte A de “Nikiti” para quarteto de violões.

A harmonia ficou dividida entre os Violões 3 e 4. Para criar uma variabilidade na


textura do acompanhamento, na Parte A da música (representada na Figura 1 no décimo
compasso) o Violão 4 executa uma linha de baixo em contraponto à melodia inspirada pela
parte grave do acorde em Lá maior. Enquanto isso, o Violão 3 toca uma tríade maior de Sol
com a sexta maior no lugar da quinta justa, formando então um acorde 𝐺6⁄𝐴. No compasso
10, no qual há a continuação da ideia melódica, repete-se a mesma dinâmica entre os Violões
3 e 4. Entretanto, a parte aguda do acorde representa um Gm6, de forma que a única alteração
se dá no Si bemol tocado pelo Violão 3.

Na segunda exposição dessa melodia, o Violão 2 executa uma segunda voz em


contraponto com uma rítmica que será repetida pelo Violão 4 — válido ressaltar que a rítmica
do Violão 4 na segunda exposição não é a mesma. Apesar da segunda voz estar em uma
altura contraposta à melodia principal, ela dialoga com a harmonia designada ao Violão 4,
ou seja, Lá maior.
20

Em seguida o Violão 2 toca escalas a fim de criar uma segunda voz que, além de
funcionar como contraponto em resposta à melodia principal, enriquece a harmonia presente
no trecho. Simultaneamente, os violões realizam uma dinâmica rítmica entre si. Enquanto
um cria uma rítmica em torno das colcheias no contratempo, o outro subdivide a fórmula de
compasso de 7/4 em 4/4 e 3/4 como mostra a Figura 2. Após esse trecho, temos o final da
frase melódica principal onde os violões 3 e 4 subdividem juntos o compasso de 7/4 e o
interlúdio do compasso 9 sendo repetido no compasso 18, indicando uma transição para uma
nova parte do arranjo.

Figura 2 - Sistema dos Violões 3 e 4, nos compassos 15 e 16, do arranjo da música "Nikiti"

Nessa nova parte, o violão 3 executa insistentemente as colcheias de contratempo


enquanto o violão 4 subdivide o 7/4 em 3/4 e 4/4, ao contrário do que foi feito na parte
anterior. Ou seja, nesse momento, o Violão 3 funciona como um metrônomo para a melodia
principal, que é dividida entre os Violões 1 e 2.

De forma a incentivar a escuta entre os Violões 1 e 2, foi criada uma dinâmica na qual
o final da frase de um é o início da frase de outro. Na Figura 3 está representada essa dinâmica
através das setas vermelhas que indicam o final das frases.

É válido salientar que as frases em colcheia estão escritas na partitura original, e as


frases em semínima representam uma criação do autor do arranjo para representar uma nota
longa. Com o intuito de valorizar a nota do violão — instrumento com capacidades limitadas
para sustentar uma nota ao longo de um extenso período de tempo — foi criada uma frase
simples de semínimas com um par de colcheias ao final.
21

Figura 3 - Grade dos Violões 1 e 2, nos compassos 19 ao 24, no arranjo da música “Nikiti”

Posteriormente, há um compasso que indica uma ponte. Esta funciona para retornar
ao início da música, representando a repetição pelo comando D.S (Dal Segno), sendo que o
Segno está localizado no compasso 10. Essa ponte também foi usada para levar à seção de
solos improvisados e, em seguida, ao fim da música.

Para a seção de solos, utilizou-se a harmonia da parte final da música de forma cifrada.
Sendo uma seção de improvisos, quis dar a liberdade dos acompanhadores montarem os
acordes do jeito que quisessem, dando assim mais independência tanto para o improvisador
quanto para o acompanhador. Não foi indicado na partitura qual dos violões irá acompanhar
nem qual fará o solo. Isso ficou em aberto para ser combinado entre os intérpretes.

O fim dos solos é marcado pela ponte que liga ao começo da música. Porém, dessa
vez, ela leva ao final. Na partitura original, o fim é representado na melodia com uma nota
Dó natural longa, que tem a duração de dois compassos de 7/4 e que depois repete-se por
mais dois. A fim de representar esse efeito ao violão, utilizou-se a técnica de trêmolo em
fusas. Enquanto isso, a harmonia foi dividida entre três dos violões que se complementam de
forma piramidal. Ou seja, um violão toca uma parte do acorde e deixa soar e os outros dois
vão entrando em momentos rítmicos distintos. Essa dinâmica está representada na Figura 4,
na qual é mostrada a grade dos quatro violões ao fim da música.
22

Figura 4 - Grade da parte final do arranjo da música "Nikiti"

2.2.3 ASPECTOS DE EXECUÇÃO (ENSAIO E GRAVAÇÃO)

O arranjo foi ensaiado e gravado pelo quarteto do qual faço parte, chamado Camerata
Camará. Formado por mim (violão, guitarra e cavaquinho), Caio Lopes (guitarra, violão e
violino), Guilherme Goto (violão e guitarra) e Wilton Carvalho (violão, viola de arco e
saxofones), o grupo foi criado primeiramente com uma proposta didática. Funcionava como
uma prática de conjunto ministrada pelo professor e multi-instrumentista Wilton Carvalho.
Com o tempo, o grupo ganhou autonomia e se profissionalizou, deixando de ter o propósito
didático.

A proposta do grupo é a de apresentar arranjos originais com instrumentação e


repertório diverso, porém sempre enfatizando a música popular brasileira. A maioria dos
arranjos foi feita da forma “Corpo Presente”, técnica discutida anteriormente neste artigo e
que faz parte do método de composição de Itiberê Zwarg (PETRINI, 2013, p. 52). Portanto,
o grupo está familiarizado com a ideia da Escola Jabour e busca exercitar a característica
livre ligada à Músical Universal.

O processo de ensaio do arranjo aconteceu primeiramente com uma leitura em


conjunto. Como estavam previamente escritas, as partituras foram distribuídas entre nós para
que estudássemos nossas partes individuais antes de tocar coletivamente.

Ao questionar o grupo sobre os desafios de tocar o arranjo, percebemos que a


principal dificuldade foi a leitura da grade para compreender as dinâmicas entre os violões.
Para os harmonizadores (Violões 3 e 4), as partes individuais foram mais simples de leitura,
pois apresentavam elementos característicos das levadas do instrumento. O Violão 4
responsabilizou-se pelos baixos que marcam o tempo forte, e o Violão 3 pelos contratempos
23

— como se o Violão 4 exercesse o papel de polegar, e o Violão 3, dos dedos indicador, médio
e anelar do instrumentista. No entanto, havia um desafio em relação ao entrosamento com as
vozes melódicas ao tentarmos colocar em prática nos ensaios iniciais.

Para as vozes melódicas (Violões 1 e 2), ocorreu o contrário. A leitura individual se


apresentou como a principal dificuldade, motivo oposto ao que se apresentou para os Violões
3 e 4. As vozes melódicas são marcadas por dinâmicas que não fazem sentido se forem
tocadas isoladamente, o que dificultou a leitura individual e a performance nos primeiros
ensaios.

Conforme a música foi ensaiada, a intuição agiu com mais intensidade do que a leitura
na execução da peça. Como o arranjo foi escrito criando interações com os outros violões, a
escuta e a intuição foram um fator determinante, fazendo com que a leitura entrasse apenas
como ferramenta primária para a execução.

Ensaiada a música, a Camerata Camará gravou sua performance a fim de registrá-la


oficialmente no repertório do grupo. A gravação foi feita no estúdio pessoal do Carvalho,
utilizamos apenas a captação de um celular para gravar áudio e vídeo. O registro está
disponível no canal do YouTube do grupo, podendo ser acessado pelo link
<https://www.youtube.com/watch?v=6DI-294nYbw>.
25

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Após apresentar a análise e as pesquisas sobre os objetos estudados, neste capítulo
busco levantar as principais reflexões acerca da visão violonística sobre a ramificação da
Escola Jabour proposta por Itiberê Zwarg.

As reflexões foram pensadas em três aspectos. Primeiro, procuro esclarecer como a


raiz (Hermeto Pascoal) e a ramificação (Itiberê Zwarg) da Escola Jabour são transmitidas
através de um quarteto de violões. Em segundo lugar, pretendo mostrar as características
estilísticas da Escola Jabour abordadas no arranjo autoral de “Nikiti”. E, por fim, buscar e
apontar as características da ramificação da Escola Jabour proposta por Zwarg e sua
aplicabilidade no arranjo de “Nikiti”, utilizando como padrão de comparação a música “Pra
Lúcia”.

3.1 PRINCIPAIS SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE AS FAIXAS “ILZA


Nº83” E “PRA LÚCIA”

As duas propostas trazem abordagens diferentes para o conceito do arranjo para


quarteto de violões. Primeiramente, explicarei como elas dialogam com a personalidade de
cada arranjador. Em seguida, apontarei regiões de convergência entre ambas.

Zwarg está acostumado a criar arranjos com diversos timbres e texturas, herança de
sua experiência nas Oficinas da Música Universal. Pascoal, também tem essa capacidade,
além de estar acostumado a construir arranjos para diversas texturas — basta acompanhar a
carreira do músico para comprovar sua pluralidade. Porém, ao ouvirmos “Ilza nº 83”, a
imagem que relacionamos é a de Pascoal sentado ao piano compondo a música na forma de
melodia cifrada.

Na primeira parte da música “Ilza nº 83”, o arranjo traz uma melodia acompanhada.
por acordes bem trabalhados. Sua sonoridade é bastante característica da Música Universal,
trazendo a impressão de que um único instrumento é tocado. Em contrapartida, na música
“Pra Lúcia”, Zwarg explora as possibilidades de aberturas de vozes para cada instrumentista,
criando diferentes texturas para cada região da composição.

No entanto, é unânime que as duas músicas não recorrem a nenhum tipo de


“violonismo”, mesmo que os intérpretes utilizem os idiomatismos do violão para valorizarem
cada momento nas músicas. Assim, os idiomatismos tornam-se recursos que valorizam o
arranjo sem que a música perca a característica da Música Universal.
26

É possível afirmar que, apesar de apresentarem propostas diferentes, os arranjos estão


conectados pela Escola Jabour no aspecto estilístico de cada arranjo. Dessa maneira, as
características marcantes voltam-se para a Música Universal, entre as quais destaca-se a
proposta harmônica, dividida entre dois violões a fim de obter o efeito da sobreposição de
acordes, sugerindo a “cifragem universal”. Também vale mencionar, entre as características
marcantes, a melodia desenvolvida simultaneamente com a harmonia, bem como a rítmica
do acompanhamento, que além de carregar as características da música brasileira cria
contrapontos com as vozes melódicas.

3.2 PERFORMANCE DO ARRANJO DE “NIKITI”

No vídeo em que consta a performance da Camerata Camará, notamos que a partitura


não foi o ponto central. O grupo sentiu-se à vontade para criar linhas de interpretação que
não estavam escritas na partitura. As únicas indicações preservadas foram os crescendos e a
dinâmica forte nas frases que marcam as mudanças de seção.

A escolha de timbres feita por cada violão foi bastante particular, evidenciando a
autonomia entre os músicos e conferindo uma característica específica para cada voz. Além
disso, a postura de cada violonista no vídeo mostra a diversidade no jeito que cada integrante
tem de tocar. É possível ver que dois deles estão com o violão apoiado na perna esquerda e
os outros dois na perna direita, sendo que um deles utiliza-se da postura popular entre os
violonistas de choro (lateral inferior do violão apoiada na perna direita, fundo apoiado no
peito e braço direito abraçando o corpo do instrumento).

No momento dos solos, o grupo escolheu fixar um ritmo de samba no compasso em


7. Todos os músicos fizeram um solo que durou quatro repetições da série harmônica
destinada aos improvisos. O jeito que cada um conduziu a levada também mostrou-se
bastante particular de cada músico. Fator esse que contribuiu ainda mais para a autenticidade
de cada instrumentista durante a performance.

Ao fazer uma análise geral da performance, é possível afirmar que a leitura do arranjo
foi apenas uma dificuldade inicial para sua execução. Após isso, o desafio voltou-se à auto
escuta e à intuição, deixando a leitura apenas como um “prelúdio” para o ensaio e a
performance como um todo.

No que diz respeito à sonoridade do arranjo de “Nikiti”, é possível dizer que ele traz
elementos bastante similares à música “Pra Lúcia”. As duas peças são do mesmo compositor,
27

portanto carregam as características estilísticas de Zwarg. A forma de ambas as composições


assemelha-se a de uma mini suíte, e nos dois arranjos ocorre uma repetição dela.

A separação da harmonia em dois violões, assim como as vozes melódicas em


contrapontos, também foram pontos convergentes entre os dois arranjos. Além disso, vale
citar o uso do ritmo do acompanhamento como contraponto de uma das vozes melódicas
como outra semelhança.

Apesar de ser amplamente utilizado e incentivado na Escola Jabour e em suas


ramificações, a improvisação não foi utilizada na música “Pra Lúcia”. Porém, no arranjo de
“Nikiti”, foi sugerido um espaço destinado a solos em uma sequência harmônica contida na
partitura original.
29

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao pensar em uma visão violonística da Escola Jabour, abrem-se algumas


possibilidades. Afinal, o violão é um instrumento que possibilita diversas perspectivas
musicais. No entanto, existem poucos casos nos quais o violão se fez presente na Música
Universal, uma vez que esta traz uma linguagem musical capaz de misturar várias referências,
além de ser pensada ao piano com harmonias repletas de extensões.

O violão, por sua vez, tem escolas muito bem difundidas na história da música. Assim,
as tentativas de implementação do instrumento na Música Universal, por ser um gênero
musical que aborda ritmos brasileiros, podem levar ao que Lourenço Júnior (2018) chama de
“violonismo”: quando o idiomatismo do instrumento é utilizado em determinado contexto
que acentua certas características musicais que se tornam marcantes. Algo que pode ser
notado no caso da participação de Marco Pereira, em “Chorinho Pra Ele”. Isso pode ocorrer
pois a Música Universal consolida-se no momento em que a Escola Jabour é criada e
difundida. Portanto, é necessário passar pela vivência da mesma para que seja possível
compreender a Música Universal e saber manifestá-la.

Ao se propor a tocar composições inéditas de Hermeto Pascoal e Itiberê Zwarg, o


Quarteto Maogani passou pelo processo de vivência da Escola Jabour, uma vez que as peças
foram compostas unicamente para o quarteto. Sendo assim, os fonogramas “Pra Lúcia”
(Zwarg) e “Ilza nº83” (Pascoal), gravados pelo quarteto para o disco Cordas Cruzadas
(2001), tornaram-se objetos de estudo desta pesquisa, orientando a visão violonística para a
formação em quarteto.

A partir da análise dos fonogramas, foram observados diversos aspectos musicais que
fazem parte tanto da raiz (Pascoal) quanto da ramificação (Zwarg). São eles: as características
harmônicas de sobreposição de acordes divididos entre dois violões, a rítmica de
acompanhamento em contraponto com as vozes melódicas e o uso de contrapontos na forma
de uma segunda voz melódica atuando em cima da melodia principal.

A diferença aconteceu na abordagem estilística de arranjo entre os dois compositores.


Pascoal, em “Ilza nº 83”, pensou no arranjo como uma melodia acompanhada e uma voz que
ora complementa a harmonia ora atua em contraponto à melodia principal. Já Zwarg optou
pela exploração de diferentes texturas entre os quatro violões em “Pra Lúcia”. Uma opção de
arranjo comum para o músico, uma vez que seu projeto musical foi consolidado com a
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Oficina da Música Universal e a Itiberê Orquestra Família. Nesses ambientes, Zwarg depara-
se com uma formação ampla de instrumentos que oferecem diversas possibilidades de
exploração de texturas sonoras.

Ao frequentar as edições de janeiro e agosto de 2019 da Oficina da Música Universal


de Itiberê Zwarg, senti-me motivado a criar o arranjo da música “Nikiti”, presente no caderno
de partituras Oficinas de Música Universal Pro Arte (2006), utilizado como objeto de estudo
para esta pesquisa. O arranjo pensado para quarteto de violões foi escrito de modo a transmitir
os principais ensinamentos da Escola Jabour, mantendo-se fiel à Música Universal em termos
estilísticos.

No arranjo, escolhi trabalhar com diferentes texturas e vozes em cada violão, de modo
a explorar a ramificação da Escola Jabour proposta por Itiberê. Apesar de ser um arranjo
previamente escrito, vimos que a leitura da partitura foi uma ação preliminar para os ensaios
da Camerata Camará. Após as primeiras leituras em conjunto, a intuição e a escuta
sobressaíram-se como os principais guias para a performance do arranjo.

Assim, foi possível vivenciar a ramificação da Escola Jabour proposta por Zwarg por
meio do violão na forma de um quarteto. Mesmo com a partitura em mãos, foi respeitada e
comprovada a soberania da escuta em relação à leitura musical. Também, foram utilizadas
as referências de arranjo para a valorização da harmonia universal, com as sobreposições de
acordes divididas entre os violões. Além do mais, pode-se notar que o “violonismo” não se
fez presente, apesar dos idiomatismos do violão terem aparecido. Em vista do que foi
mencionado, este fato nos leva a afirmar que a sonoridade do arranjo se manteve fiel à Música
Universal.
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REFERÊNCIAS
FERREIRA DA SILVA, R.; GIMENES, M. "Escola Jabour" Hermeto Pascoal &
Grupo e suas ramificações. Vórtex, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 25, 2017.

GUINGA; BLANC, A. Carta de Pedra (Igreja da Penha). [S.l.]: Núcleo


Contemporâneo, 1998.

GUINGA; BLANC, A. Valsa Pra Leila. [S.l.]: EGEA, 2004.

HERMETO Pascoal em: A Música Universal. Direção: Antonio Torriani. Produção:


Fábio Pascoal e Flavio de Abreu. Intérpretes: Hermeto Pascoal. [S.l.]: Puma Brasil. 2019.

LIMA DO NASCIMENTO, I. O idiomatismo na obra para violão solo de


Sebastião Tapajós. UNESP. São Paulo, p. 153. 2013.

LOURENÇO JÚNIOR, L. O violão e seus idiomatismos junto à música vocal.


SIMPOM, São Paulo, 2018. 742-752.

MAMEDIO BARK, J. Radamés Gnattali: "Suíte para quinteto de sopros" -


estudo analítico e interpretativo. Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 146. 2007.

MIGNONE, F. 12 Valsas de Esquina. [S.l.]: Kuarup Discos, 1982.

NASCIMENTO, M.; BASTOS, R. Cravo e Canela. [S.l.]: Odeon, 1972.

NASCIMENTO, M.; BORGES, M. Tambores de Minas. [S.l.]: Warner Music,


1997.

PETRINI, P. Hermeto Pascoal musicalmente falando. Maringá: Sinergia, v. I,


2013.

RAWLINS, R.; BAHHA, N. E. Jazzology: The encyclopedia of jazz theory for all
musicians. [S.l.]: Hal Leonard, 2005.

SCARDUELLI, F. A obra para violão solo de Almeida Prado. Unicamp.


Campinas, p. 228. 2007.

ZIEHN, B. Canonical Studies. [S.l.]: [s.n.], 1912.

ZWARG, I. Oficinas da Música Universal Pro Arte. Rio de Janeiro: Grupo


Editorial Humaitá, 2006.
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ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1 18
FIGURA 2 19
FIGURA 3 20
FIGURA 4 21
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ANEXO – PARTITURA DO ARRANJO DE “NIKITI”


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