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Estágio supervisionado de língua portuguesa: crenças e experiências de

professores/as em formação universitária

Hélvio Frank de Oliveira1


Universidade Federal de Goiás-FL
Universidade Estadual de Goiás

Resumo: Neste texto, discuto e reflito sobre o estágio na licenciatura em língua portuguesa
por meio da identificação de crenças de professores/as em formação universitária
provenientes de suas experiências de aprender-ensinar o idioma e de suas práticas de ensino
em escolas públicas durante o Estágio Supervisionado obrigatório. Para este estudo de caso,
cinco alunos/as concluintes do curso de Letras de uma universidade pública responderam a
questionários e a entrevistas semiestruturadas. Os resultados sinalizam a existência de
tentativas, por parte dos/as estagiários/as, de problematizar determinadas concepções de
ensino do idioma sem muito sucesso perante os professores titulares, que, por sua vez, os
julgam como inexperientes. Assim, torna-se necessário repensar as questões do estágio, da
formação e do próprio ensino da língua.

Palavras-chave: Estágio supervisionado. Língua portuguesa. Formação.

Abstract: In this paper, I discuss and reflect on Portuguese language teacher training through
identification of pre-service teachers’ beliefs originating from their experiences of learning
and teaching the mother language and from their teaching practices in public schools during
the obligatory teaching training. For this case study, five pre-service teachers from Letras
course at a public University answered questionnaires and semistructured interviews. The
results indicate the existence of attempts by the participants to problematize these teaching
conceptions without getting success in the presence of titular teacher, who, in turn, criticizes
them as if they are inexperienced. Thus, it becomes necessary to rething of questions about
teacher training, the teacher education and Portuguese language teaching by itself.

Keywords: Supervised stage. Portuguese. Formation.

Trabalhando há alguns anos diretamente com o Estágio Supervisionado no Curso de


Letras (Português/Inglês) de uma Universidade, tenho notado que as experiências dos
professores em formação inicial no que se referem à Língua Portuguesa2 (doravante LP) têm
sido cruciais para o movimento que pode se manifestar sobre dois planos. O primeiro,

1
Aluno regular do Programa de Pós-graduação em Letras e Linguística da UFG, Mestre em Linguística Aplicada
pela UnB, professor de Linguística e Língua Portuguesa e coordenador de Estágio Supervisionado do Curso de
Letras da UEG Itapuranga. Contato: helviofrank@hotmail.com
2
Independente de posicionamentos teóricos, considero a língua portuguesa, a partir do contexto de pesquisa,
como sendo a língua materna (LM) de falantes brasileiros, isto é, configurando-se como a língua adquirida por
brasileiros na infância e aprendida na escola (KRASHEN, 1982). Por essa razão, utilizo os termos
intercambiáveis neste texto.

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caracterizado pelo sucesso na ação de ensinar, que eleva a autoestima desse estagiário3 e,
consequentemente, o motiva a exercer a profissão de professor. E, por outro lado, a frustração
daqueles que se sentem fracassados com essas experiências educacionais, por faltar-lhes algo,
e esperam apenas a conclusão do curso para abandonar a carreira.
Diante dessa situação, torna-se viável repensar a prática do Estágio Supervisionado em
LP, bem como problematizar e reconstruir, em muitos casos, o que tem sido fomentado nas
licenciaturas, especialmente, em Cursos de Letras no que tange ao ensino/aprendizagem da
língua materna (LM), bem como sobre as concepções da própria língua/linguagem.
Parte dos problemas enfrentados na formação, segundo Bortoni-Ricardo (2004) e
Bagno (2002), está associada à transposição de papéis. Com a mudança de aluno para
professor, o estagiário se depara com sua cultura de aprender e molda seu ensino de acordo
com suas próprias convicções e experiências anteriores. Outrora, o problema se estende ao
fato de o estagiário adentrar à escola, cheio de novas concepções e teorias sobre o ensino da
língua e, não raras vezes, ser barrado pelo professor supervisor4, por esse julgar aquele sem a
devida experiência docente.
Diante disso, torna-se evidente a necessidade de um trabalho de (trans)formação
inicial e emergencial bem elaborado e realizado com futuros docentes (TRAVAGLIA, 2002).
Uma das alternativas viáveis, nesse caso, diz respeito à propiciação de vozes a tais agentes, os
quais têm desenvolvido sua prática nos espaços escolares e retornado à Universidade com
sérios questionamentos, muitas vezes, sem resposta. Não que exatamente existam respostas,
mas, pelo menos, questões pedagógicas complexas precisam ser discutidas nos bancos de
licenciatura, a fim de o estagiário terminar o curso ciente dos mais variados problemas de sala
de aula com os quais se deparará.
Sob essa perspectiva, pretendo discutir e trazer reflexões sobre o Estágio
Supervisionado de LP, por meio da identificação de crenças de professores/as em formação
universitária provenientes de suas experiências de aprender-ensinar o idioma materno e de
suas práticas de ensino da língua em contextos públicos durante o estágio obrigatório.

3
Por questões meramente didáticas, apresento, neste texto, a referência a “estagiário” e suas derivações para
caracterizar aquele aluno concluinte de graduação, em formação, que desenvolve a atividade de Estágio docente
em escolas campo de atuação. Entretanto, tenho plena convicção da importância de se fazer valer, na prática, o
termo professor em (trans)formação inicial (GIMENEZ, 2005).
4
Neste texto, utilizo o termo para me referir ao professor titular da escola pública, que orienta os estagiários no
campo de Estágio, isto é, que lhes permite a observação de aulas, cede suas turmas para a execução das regências
e supervisiona os processos de estágio na escola a que pertence.

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É possível perceber que crenças e experiências estão imbricadas nas relações de ensino
aprendizagem e, por essa razão, investigá-las, conforme preconizam estudos recentes
desenvolvidos na área (OLIVEIRA, 2010; CONCEIÇÃO, 2005), também faz parte deste
trabalho. Refletir sobre crenças e experiências pode tornar-se uma condição plena para o
desenvolvimento do próprio agente do processo. Assim, ele reflete sobre a sua ação no
processo e permite a si próprio criar, de forma autônoma, estratégias para cobrir lacunas que
merecem ser preenchidas em relação aos fatores que influenciam (in)diretamente suas
práticas, bem como percebe a importância do diálogo, contendo as expectativas e anseios das
partes interessadas na tarefa de ensinar-aprender.
Também, oriento-me pelas postulações da teoria sociocultural de Vygotsky (1998,
1999) e os preceitos dialógicos de Bakhtin (2004), que reconhecem a importância do Outro
nas relações humanas para a construção do conhecimento, tendo em vista que, nessas
situações de ensinar e aprender, o conhecimento é perpassado por meio da língua(gem).
A seguir, faço um panorama sobre o estudo das crenças relacionado ao ensino de
línguas no Brasil, seguido de considerações em torno da importância do construto
experiências nos processos de educação e linguagem. E, por fim, traço breves esboços sobre o
ensino de LP – LM no contexto brasileiro.

Crenças de ensino aprendizagem de línguas

Embora não seja um termo específico da LA, segundo Barcelos (2004), crenças é um
construto que surge, dentro da área, após um suposto (re)direcionamento para uma nova
concepção sobre ensino, dessa vez, centrada no aluno. Nesse cenário, em que se pressupõe o
aluno como centro do processo, com papel ativo e autônomo na aprendizagem e, ainda, com
expectativas sobre essa construção, é que se tornam evidentes suas dimensões
comportamentais, cognitivas, afetivas, sociais, estratégicas, políticas e experienciais frente à
ação de aprender língua (LARSEN-FREEMAN, 1998).
As crenças movimentam-se e modificam-se conforme as práticas sociais e discursivas
vão sendo reconstruídas por meio das experiências e vivências culturais de determinado/s
indivíduo/s e/ou grupo/s inserido/s em diversos contextos. Nas palavras de Barcelos (2004, p.
132), as crenças também são sociais, “porque nascem de nossas experiências e problemas, de
nossa interação com o contexto e da nossa capacidade de refletir e pensar sobre o que nos
cerca”. E acrescento que elas, de maneira estritamente relativa, influenciam e são

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influenciadas por manifestações e práticas discursivas de outrem, sem a necessidade de o
indivíduo ter, de fato, passado por determinada experiência vicária para legitimar e moldar tal
fato, tal circunstância. Em alguns casos, ele pode reproduzir (performativo e/ou
discursivamente) algo que não foi por ele vivenciado.
Barcelos (2006) ainda pontua que as crenças e experiências manifestadas pelos alunos
em sala de aula têm a ver com seus hábitos e valores familiares, escolarização e papéis
culturais reservados a eles e aos professores naquela sociedade. Inclusive, a autora adianta que
as crenças têm um impacto nas ações, e as ações, por sua vez, afetam as crenças. Não é uma
relação de causa e efeito, e, sim, uma relação em que a compreensão dos limites contextuais
ajuda nesse entendimento. Também, a importância de se estudar e investigar crenças,
inclusive em LP, que é uma recomendação de Barcelos (2004, 2006), reside no fato de que
elas podem exercer grande influência no ensino aprendizagem. Positivas ou negativas, elas
podem ajudar ou prejudicar o aluno no processo. Podem, ainda, conceder ao aluno coragem,
para que ele enfrente o que não conhece ou o impede de fazer algo ou, ainda, para que ele se
adapte a determinadas circunstâncias.

Experiências de ensino aprendizagem de línguas

Como vimos, os eventos sobre ensinar/aprender consolidam-se por meio de interações


entre uma infinitude de processos, entre eles, crenças e experiências. Acerca das experiências,
Dewey (1938) afirma que o processo de ensino aprendizagem consiste em ações contínuas de
reconstrução de experiências, já que essas se caracterizam pela interação e adaptação a partir
do princípio de continuidade5 dos envolvidos em seus contextos. Esse princípio de
continuidade pode se efetivar na medida em que há interação e adaptação do indivíduo ao
contexto, provocando grandes embates ao interpor, nessa atuação, valores de experiências
anteriores para a modificação das experiências futuras.
O autor compreende que conceitos de situação e interação são inseparáveis dentro do
princípio de continuidade das experiências, tendo em vista que, ao viver uma situação, o
indivíduo vive mais que uma, pois implica estar vivenciando uma série de interações entre ele

5
Princípio biológico pelo qual pressupõe que toda nova experiência é construída a partir das experiências
anteriores do indivíduo. Assim, cada experiência realizada e vivenciada modifica quem a vive e a vivencia. Tal
modificação afeta e modifica as próximas experiências, pois a vivência subsequente será experienciada por um
indivíduo um pouco diferente daquele que a realizou, isto é, a pessoa que vai vivê-la já não é a mesma, devido às
transformações resultantes das conexões entre experiências anteriores adquiridas e uma nova vivência a ser
experienciada, conforme Dewey (1938).

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próprio, os objetos e outros indivíduos. Além disso, o ambiente, tido como “as condições em
interação com necessidades pessoais, desejos, propósitos e capacidades para criar a
experiência que se tem”6 (DEWEY, 1938, p. 6), trata-se de um elemento muito importante,
por desencadear acontecimentos em situação especifica. Para Dewey (1938), a concepção de
ser vivo é natural, relacionada com o meio em que vive, evolui e se desenvolve, por meio de
pensamentos, percepções, sentimentos, sofrimentos e ações em um processo interativo,
contínuo e transformador do meio e dos seres humanos que nele vivem. Afinal, a estreita
relação entre agir, sofrer ou vivenciar forma a experiência.
Em pesquisas atuais, Miccoli (2006) e Conceição (2005) ressaltam sobre a importância
das experiências ao se investigar crenças. Dentro ou fora da sala de aula, as experiências
possibilitam uma melhor compreensão sobre o que acontece no contexto sociocultural. E uma
reflexão sobre elas consiste em pensar em ações adequadas para cada situação, lembrando que
não existem receitas prontas, como as próprias autoras advertem. Para Miccoli (2006), cada
indivíduo vivencia uma experiência de modo diferente e conforme sua visão. Entretanto,
mesmo sendo um processo individual, as experiências se sobrepõem por meio da interação e
do compartilhar entre contextos e agentes, transpondo-se a uma ação invertida.
Associando os dois conceitos, Barcelos (2006), por sua vez, afirma que experiências
configuram-se como (re)ajustamentos de orientação de tarefas de ordem prática no esquema
ação – resposta, ao passo que as crenças dizem respeito às hipóteses e testes de ordem mental
avaliadores de uma ação e até mesmo de uma experiência. Em sua visão, crenças são “co-
construídas em nossas experiências e resultante de um processo interativo de interpretação e
(re)significação”. (BARCELOS, 2006, p. 18).
Também, Conceição (2005) avalia que as experiências de aprendizagem deveriam ser
consideradas com maior atenção nas pesquisas de aprendizagem de línguas, pois, pode ser
através da compreensão mais profunda dessas experiências que serão explicadas muitas ações
e, até mesmo, dificuldades dos alunos. Assim, conhecer as experiências também seria uma
forma de o professor se guiar a uma reflexão crítica de sua prática em relação à melhor
compreensão de seu aluno.

O ensino de língua portuguesa

6
“[...] whatever conditions interact with personal needs, desires purposes and capacities to create the
experience which is had”. (DEWEY, 1938, p. 6).

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Ao longo desses anos, é possível perceber as mudanças instauradas no ensino de LP.
Hoje, como se pode observar, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que, de certa
forma, configuram-se como um dos direcionadores de perspectivas de ensino, buscam
competências e abordagens de ensino do idioma que correspondam a uma concepção de
língua focada sobre as mais diferentes correntes linguísticas. Diferentemente, por exemplo, de
décadas passadas, quando o ensino da língua caracterizava-se por dimensões normativas e a
noção de certo e errado eram muito evidentes nas correções feitas pelo professor em sala de
aula.
Entre algumas das competências e habilidades da área de Linguagens, códigos e suas
tecnologias, esperadas pelo documento oficial (BRASIL, 2000 p. 6-12), especialmente,
direcionadas à LP, estão:

Desenvolver a competência comunicativa através do desenvolvimento da competência


lingüística, gerando seqüências lingüísticas gramaticalmente aceitáveis;
Desenvolver a competência textual de produzir, compreender, transformar, avaliar e
classificar texto;
Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e
integradora da organização do mundo e da própria identidade;
Analisar, interpretar e aplicar recursos expressivos das linguagens relacionando textos com
seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de
acordo com as condições de produção e recepção;
Utilizar-se da linguagem oral com expressão, entonação, clareza e senso crítico;

Como podemos notar, através do documento, parece consensual uma proposta de ensino
voltado, grosso modo, aos seguintes tópicos linguísticos: comunicação, adequação ao
contexto de produção e recepção, função, diferentes linguagens, tolerância linguística,
construção de identidade e reflexão por meio da língua.
Entretanto, as concepções de ensino de LP tradicionais, as quais, ainda hoje,
consagram-se por meio da prática de professores em sala de aula, parecem cristalizar-se no
meio educacional. Essas prescrições, segundo Bagno (2002), valorizam como único foco de
estudo o exame da língua, previsto pela gramática de frase.
De fato, parece não existir a concepção de entendimento dos fenômenos da interação
social via linguagem (PERRENOUD, 2000; BAKHTIN, 2004). E, nesse caminho
equivocado, conforme aquele autor pondera, são deixadas de lado: a relação entre língua e
sociedade, a forma e o contexto em que se adquire a língua, os processos que envolvem o
ensino formal da língua e da própria reflexão sobre como a sociedade controla e exerce
ideologias por meio do discurso.

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Depois desse mapeamento dado à importância apenas da polidez e correção gramatical,
fica a seguinte pergunta: como ensinar português? A priori, parece uma pergunta simples, no
entanto, a sua complexidade esbarra-se na prática docente diária, visitando os mais
divergentes pontos de vista. De um lado, linguistas, de outro, os puristas gramaticais. E, em
muitos casos, arrisco dizer: de um lado, estagiários, de outro, professores supervisores da
escola campo de Estágio.
Não obstante, o fato é que tais avanços propostos pelos PCNs, e até mesmo por outros
documentos e referenciais qualitativos da Educação, infelizmente, não ocupam espaço em
algumas salas de aula de LP. E se tais domínios não forem expostos e problematizados, por
meio da colaboração entre professor formador, estagiário e professor supervisor, a resistência
dos experientes da prática pode acabar com o desejo de mudanças, muitas vezes eficazes, dos
inexperientes teóricos.

Metodologia da pesquisa

À luz do paradigma qualitativo de pesquisa, este trabalho utiliza, como método, o


estudo de caso qualitativo-interpretativista (STAKE, 1994). A investigação foi realizada com
cinco alunos do último ano do Curso de Letras (Português/Inglês) de uma universidade
pública do Estado de Goiás. Esses participantes, quatro mulheres e um homem, com idade
entre 21 e 28 anos, após terminarem o Estágio Supervisionado obrigatório de LP em escolas
de ensino fundamental e médio da rede pública municipal e estadual em escolas de uma
cidade do interior de Goiás, responderam a questionários e a entrevistas semiestruturadas.

Análise dos dados

Os relatos de experiências de ensino dos estagiários

No contexto de investigação, foi possível, por meio dos relatos dos estagiários,
visualizar a deficiência que eles sentem no que se refere à preparação necessária para atuar
nas escolas de Estágio. Três participantes alegam que a formação universitária não lhes
proporciona condições para desenvolver habilidades e conhecimentos essenciais para a
atuação consciente. Dessa forma, cenas muito comuns nesses relatos dizem respeito à
incerteza e à insegurança sobre como agir em sala de aula com alunos reais.

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Pedro, por exemplo, observa que muito tecnicismo existe dentro da licenciatura e, por
essa razão, falta, principalmente nos estagiários, a consciência para a mudança necessária.
Segundo o participante, a formação proposta pela Universidade deve exceder os critérios
transferidos pela rasa discussão sobre os problemas de ensino e questões educacionais. De
forma crítica, ele exalta a importância de se promulgar uma concepção de ensino de língua
(trans)formadora, de modo a reduzir a vazão técnica caracterizada pelo preenchimento de
fichas e planejamentos de ensino.

[1]
[...] Alguma coisa tem que ser feita aqui na Universidade além de aprender a fazer planos,
planejar aula, fechar o diário e preencher fichas. Esse é o trabalho que falta: conscientização
e crítica nossa mesmo, para que saíamos da graduação, pelo menos, tendo consciência do
que realmente enfrentaremos quando formos professores titulares nas escolas. Precisamos
valorizar mais a atividade docente e problematizá-la, e esquecermos um pouco da fôrma
coletiva do fazer pedagógico. (Pedro, questionário)

Conforme visto anteriormente, não podemos negar a existência de um fato muito


comum nos momentos de prática de ensino na Universidade: a transposição de papéis, de
aluno para professor. Nos relatos, foi possível observar que esse fenômeno parece ser a causa
para que muitos participantes não consigam vencer os desafios encontrados na docência.
Nesse caminho, algumas das preocupações dos estagiários residem no fato sobre como aplicar
a teoria na prática.
A participante Gladis afirma que, hoje, na condição de professora, se sente insegura
para agir ao se deparar com os problemas eventuais, ocorridos durante o Estágio. Para
justificar o fato, ela avalia que, em sua época de aluna, diferente da época atual de professora,
os problemas tinham soluções. Hoje, isso não é possível devido à complexidade do sistema
educacional. Ela, ainda, parece se abastecer de certa frustração ao dizer que pensava encontrar
respostas prontas na formação universitária.
[2]
[...] Em minha época de aluna, os professores eram mais respeitados e, para qualquer
situação complicada, tinha-se um jeito de resolver os problemas pedagógicos [...] Hoje,
como estagiária, me sinto num beco sem saída: não consegui resolver todos os problemas
com os quais me deparei no Estágio. Há uma complexidade muito maior hoje nas questões
educacionais [...] não adianta, como eu fiz e muitos colegas meus pensam, achar que vai
acontecer aquilo que nós estudamos e discutimos de teorias aqui, porque nem sempre isso
vai acontecer. (Gladis, entrevista)

Como podemos ver, torna-se clara a difícil adaptação a que os estagiários devem se
submeter ao vivenciar, consecutivamente, papéis de professor e de aluno. E, ao mesmo tempo,
somada a esses aspectos, a complexidade configurada pelas concepções de ensino, que são

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variadas e provocadas: por choques de geração, divergentes abordagens de ensino e/ou
formação, (des)atualização teórica, utilização/depreciação de métodos recentes ou antigos,
entre outros níveis.
Por esse motivo, é importante que, durante a formação, essas angústias sejam
convertidas ao diálogo colaborativo e tratadas às luzes de teorias. Talvez, seja essa a única
forma de o estagiário perceber que não está isolado no processo e, nesse caso, a busca por
soluções possa se transformar em encorajamento dos envolvidos para ressignificar
experiências e crenças, bem como provocar a mudança desses episódios, quando for o caso.
Inclusive, esses choques, conforme algumas menções obtidas pelos relatos, são bastante
recorrentes. Entre eles, podemos ilustrar as seguintes representações: a) o professor
supervisor, com seus muitos anos de experiência na escola e com possível
graduação/formação em outra década; b) o estagiário, prestes a se formar, com as teorias
frescas da licenciatura, sem experiência e conhecimento do contexto; e, por fim, c) o professor
formador a intermediar essa relação.
É possível caracterizar, ainda, que, no primeiro bloco, estão aqueles professores que, em
sua maioria, instalam abordagens e concepções de ensino sob uma perspectiva de ensino da
língua como sendo homogênea, pautada pelos rigores de ensino formalista e, desse modo, se
recusam a adaptar aos respaldos da Linguística contemporânea.
Em contrapartida, sob outro extremo, estão muitos professores em formação inicial,
tentado colocar em prática tudo o que viram na graduação, algumas vezes sem a avaliação
devida, e, de certa forma, provocar mudança no contexto de Estágio. Todavia, ao tentar fazê-
lo, são repreendidos pela rigidez e burocracia do sistema escolar, somadas às antigas
concepções de ensino da língua, cujo foco é a gramática delimitada pela sentença.
Diante disso, é possível perceber experiências e crenças em movimento, por meio das
práticas performativas e discursivas desses dois diferentes agentes no contexto investigado.
Por isso, mais uma vez, a importância da colaboração, diálogo e discussão entre professores e,
nesse caso, em especial, entre as três partes: professor supervisor, estagiário e professor
formador, sobre tais processos, a fim de haja problematização e construção social, cultural e
contextualmente daquilo que seja melhor e mais viável para a aprendizagem dos alunos. Se
isso acontece, mudanças interessantes poderão ser implementadas a partir desse diálogo.
Ainda, no que tange à transposição de papéis, bastante comum nos últimos anos de
licenciatura, foi detectado o apelo a modelos de ensino anteriores por parte dessa estagiária,

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com concepções equivocadas de ensino da língua. Ele, plasmada em sua cultura de aprender,
observa que a LP deve ser ensinada na forma padrão para que os alunos se sintam motivados.
Para Geraldi (2003), a transposição de papéis nesse caso e, a meu ver, a não reflexão sobre as
crenças e experiências por parte do professor, provoca uma série de repetições de experiências
já vivenciadas, as quais apenas são transplantadas a um novo indíviduo que as modernizam,
envernizando aulas não assumidas.
Está claro que tudo isso se deve ao fato de o professor não dialogar com suas próprias
crenças para, a partir disso, refletir sobre que concepções de ensino adotar. Do contrário, ele
repete sua práxis como se todos os alunos e todos os contextos fossem os mesmos de, pelo
menos, alguns anos atrás, quando era aluno. Inclusive, promovendo o vicioso ciclo, que, ainda
hoje, tem visitado alunos e professores em salas de aula: a falta de autonomia.
Os sintomas de falta de autonomia se posicionam no ensino à medida que não há
autorreflexão acerca do movimento das crenças e experiências que, na condição de aluno,
molda a cultura de aprendizagem do estagiário, do professor supervisor e do professor
formador. Normalmente, nessa época, enquanto alunos, como mostrou o excerto de Gladis, as
fórmulas e receitas pareciam existir, inclusive, basta avaliar que, nessa abordagem e nessa
época, possivelmente seus professores eram o centro e detinham o conhecimento.
Outro relato de uma participante bastante provocador corresponde à tamanha
valorização dada à aplicação de um ensino prescritivo-normativo de regras gramaticais em
LP. Simone, no próximo excerto, descreve uma experiência de ensino ruim efetivada no
campo de Estágio e, ao mesmo tempo, reflete sobre algumas questões.
[3]
[...] Tudo que vi nos últimos anos de língua portuguesa na universidade caiu por terra
quando desenvolvi um trabalho com a professora titular da escola. Nas observações de suas
aulas, vi que era uma professora que dava muito ênfase apenas à norma culta da língua. Foi
difícil em pouco tempo de Estágio eu “tentar” mudar aquela situação. Ao mesmo tempo,
achei que não era interessante me impor. Acabei cedendo, mas são lamentáveis esses
extremos e eles existem demais. Eu mesma demorei muito para desarraigar isso. (Simone,
entrevista)

No excerto anterior, Simone explica o choque de tensões provocados ao se relacionar no


campo de Estágio com uma determinada professora de LP. A resistência por parte da
professora supervisora para não se estender o diálogo acarretou uma suposta cessão da
estagiária e gerou, nessa agente, a fraqueza de seguir com a proposta ousada de mudar aquele
contexto.

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Concepções equivocadas sobre o que seja língua(gem) e sobre o que seja ensino da
língua podem render situações adversas nesse contexto de estagiário e professor supervisor.
Como essa mesma participante relata mais à frente, houve um dia que a professora corrigiu a
frase falada pela aluna durante a aula de LP. O resultado foi risos dos colegas pela variante
utilizada pela aluna da escola. E o mais curioso foi perceber que a participante disse ter
demorado muito para perceber que o ensino de LP não deveria ser totalmente sobre o rigor
formal.
São bastante recorrentes esses exemplos dos estagiários ao se depararem com situações
em que eles mesmos proporiam mudanças. No entanto, a condição hierárquica de “estar
estagiando” ou “ser estagiário”, diante desses professores efetivos e “experientes” e até
mesmos dos alunos da escola, parece fazer uma diferença enorme no momento de usufruir do
turno e dialogar.
Sobre a correção gramatical em sala de aula, é possível inferir, a partir da leitura dos
pressupostos estabelecidos pelos PCNs, os descompassos existentes entre esse texto e a
atitude dessa professora, cuja história foi narrada pela participante. Ao contrário, o documento
oficial considera, entre outras formas de linguagem, o fenômeno da variação linguística, bem
como a importância de se respeitar os dialetos, observando-se a diversidade linguística dos
falantes. Em outras palavras, a noção básica entre língua e fala.
Ademais, para Bagno (2002), é necessário rever as formas de ensinar língua com vistas
a criar novas exigências pedagógicas socioculturais. Nesse caso, a tarefa da Universidade é de
suma importância ao renovar e repensar, como indico nas primeiras linhas deste texto, a
formação do licenciando em Letras com vistas a tratar a LP de forma dinâmica, viva e
sociocultural. Para isso, assinala o autor, esse futuro docente deve ser exposto a resultados de
pesquisas linguísticas que o torne pesquisador e, mais do que isso, um professor em
permanente e consistente formação teórica.
Como anteriormente avaliei, a reflexão colaborativa entre professores e produtores do
ensino, de forma geral, é uma estratégia muito utilizada nos espaços de formação de
professores e Educação (PIMENTA, 2006) e deve ocupar espaço no ensino de LM. Sei, no
entanto, que, por ora, a condição de estagiário não permite confiança para investidas nessa
direção. Em alguns casos, tampouco a situação e o próprio contexto.

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Para a participante Joyce, a maioria dos professores titulares das escolas, normal e
infelizmente, vê os estagiários como aqueles que não têm experiência, por isso, não têm voz
para propor nada.
[4]
[...] Às vezes, quero muito tentar problematizar o quadro de ensino de português para
alguns daqueles professores lá, mas sei que, eles não falam isso, mas demonstram
claramente essa atitude quando vamos tentar dialogar com eles. Devem pensar: são
inexperientes! (Joyce, questionário)

Na verdade, o trabalho de colaboração entre o professor-supervisor da escola campo e o


estagiário é imprescindível para uma formação que alcance resultados positivos. É a partir das
vivências contextuais e a dialogia entre essas partes que, nesse momento, melhor conhecem o
contexto, que o processo pode ser refletido de forma proveitosa e, automaticamente,
estratégias de mudanças, quando for o caso, avaliadas, ressignificadas, para que a formação na
universidade garanta o dinamismo prático. Para isso, é preciso parceria sempre.
Sobre a importância da formação, vale ressaltar que uma das participantes valoriza o
que Pimenta (2006) estabelece como primordial: a percepção da formação como processo
contínuo, nunca acabado. Nessa perspectiva, qualquer licenciado precisa libertar-se da
concepção de que ao término de um curso de formação ele estará pronto, que a formação
plena será concretizada com o findar do curso. A autora estabelece que, por se tratar de um
processo, ela precisa ser o tempo todo (re)pensada, (re)formulada e (re)construída.
Por meio do relato de Jaque, é possível supor que a participante tenha, durante muito
tempo do curso, pensado que, com a conclusão da licenciatura, sua formação estaria completa.
Ela mesma segue dizendo que, agora, ela percebe que se trata de um processo permanente.
[5]
[...] Demorou muito para eu entender que o Curso de Letras é apenas o primeiro passo para
a minha permanente formação. (Jaque, entrevista)

A concepção atual de Jaque, na realidade, deve brotar na ação de qualquer professor que
queira mudar e transformar a sua prática e o seu ensino. Não é possível, ainda que a carga
horária do professor, hoje, não seja favorável, pensarmos em uma docência sem atualização. É
no momento de atualização que o professor faz visita constante às suas crenças e experiências
e as levam a uma balança de juízo. É por meio da prática que a teoria é bem-vinda.

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Considerações finais

As representações aqui expostas colaboraram no apontamento de necessidade de um


espaço coletivo, cooperativo e colaborativo para construir reflexões, conforme sinaliza
Geraldi (2003). Torna-se plausível, pois, desprender-se da concepção errônea de que apenas o
professor titular, por “conhecer a turma”, será aquele que planejará e criará, de forma
individual, estratégias para melhor construir o conhecimento juntamente com seus alunos. E,
ainda, observar que doses de teorias fariam toda a diferença nessa correlação.
Nesta pesquisa, os estagiários tentaram mudar e/ou questionar as ações de ensino dos
professores supervisores sem muito êxito. Tudo isso porque eles se sentiram privados, por
justamente serem os estagiários, de provocar uma prática pedagógica diferenciada. Um
movimento que pode ser endossado apenas pela própria crença ou por experiências e ações
efetivadas nesse sentido. Entretanto, acredito que o diálogo, ainda, seja a melhor solução. E,
durante esse momento interativo entre professor supervisor e estagiário, a presença do
professor formador seja a garantia de reflexões e inquietações teóricas para instigar a
mudança no que se fizer necessário.
Como salienta Travaglia (2002), para o ensino de LP, não há receitas prontas e, a meu
ver, a solução para uma prática de ensino de sucesso efetivo é a investigação seguida do
diagnóstico contextual. Para isso, é necessária a característica de pesquisador presente na vida
de todo professor. Esse exame investigativo da própria prática e/ou das práticas de outrem se
converte incidentemente nas ponderações feitas sempre quando uma nova estratégia de ensino
é cogitada.

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