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Resumo ● O estudo demarca uma primeira aproximação com a temática e busca compreender a relação
entre corpo e religião no campo educativo. Elege a religião católica como área de investigação. Essa relação
está envolta em intenções e manifestações corporais que implicam rituais, posturas míticas e a exaltação
do divino, cenário que é visualizado sob o véu mítico-religioso e ratifica atos e ações que vêm ao longo da
história criando a cultura do corpo submisso, o que dicotomiza o sujeito, segmentando as dimensões da
existência humana.
Palavras-chave ● educação, ensino religioso, conhecimento sensível.
Title ● The Fruits of Flesh and Spirit: Connections between Body and Religion
Abstract ● This study means the first approach of the theme, aiming at understanding the relationship
between body and religion in education. We selected the Catholic religion as a field for our investig ation.
This relationship is surrounded by body intentions and manifestation implying rituals, mythical postures,
and exaltation of the Divine we can identify under the veil of mythical and religious acts that have created,
through history, the culture of a sub missive body, which separates man int o two par ts, and turns into
segments the dimensions of human living.
Keywords ● education, religious teaching, sensitive knowledge.
auto-organizativo, não somente no que diz res- ser horizonte, com toda a magia de possibilidades
peito ao estruturalismo corporal e a mudanças a que esta visão dá oportunidade (ALVES, 1999).
biofisiológicas, mas também no que diz respeito, No entanto, nem todos os símbolos podem
como dito anteriormente, à capacidade de trans- ser reconhecidos sob a metáfora do horizonte.
formar o ambiente em volta. Isso acontece somente aos sagrados, já que os pro-
O homem, em busca de adaptação a seu meio, fanos são materializados e estão mais próximos
almeja satisfazer os desejos que o ambiente não do homem, apesar de ambos incitarem desejos.
pode propiciar e que, portanto, ele mesmo faz Portanto, os símbolos criados pelo homem po-
realizar. Esses desejos podem ou não se concre- dem ser caracterizados como sagrados ou profa-
tizar. Os realizáveis tornam-se objetos concretos nos. Sagrado é tudo o que está separado do mundo
da cultura humana, enquanto os não realizáveis comum e refere ao divino, e o profano, do latim
cristalizam-se como mitos e símbolos, também profanus, porque se opõe ao sagrado, estando à
afeitos à cultura, mas que carecem de outro olhar. sua frente, aquilo que não tem caráter religioso.
Os mitos reúnem princípios que ajudam o Entre os símbolos mais significativos ao homem,
homem a se compreender (CAMPBELL, 1992, p. 6). podemos destacar os símbolos religiosos, ou
Um mito esconde desejos, verdades e subjetivida- melhor, os símbolos sagrados. Os símbolos sagra-
des que se projetam nele, tudo o que está por trás dos não necessitam de lógica para definirem-se
do mundo visível. Os mitos constituem histórias como tal, eles assim o são por seu caráter supe-
que conferem sentido e significação na busca da rior, abstrato, invisível e sem utilidade, atribuído
verdade, ajudam na compreensão de nossa histó- pelo homem. Esses símbolos são os gestos, os
ria. E ainda os mitos correspondem às nossas templos, as cerimônias, os rituais e as orações,
experiências, em estarmos vivos em ressonância que constituem cenários mágicos e articulam
com nosso interior e realidade. elementos comuns sob uma ótica mística; assim
O relato da vida de Cristo, com passagens e o são por atribuição do homem para indicar o
cerimônias por ele realizadas durante os ensina- que eles almejam, necessitam e buscam para viver
mentos aos apóstolos, configuram situações meta- em harmonia, como nos esclarece Chaui (1994,
fóricas dos próprios ensinamentos, das mensagens p. 308):
deixadas aos homens na Terra.
Na Santa Ceia repartir o pão e beber o vinho “A in venção cultural do sag rado se realiza como
revela sentidos maiores que o do ato de beber e processo de simbolização e encantamento do
comer, como também toda a leitura da Bíblia é mundo, seja na forma da imanência do sobre-
um discorrer de metáforas. natural no natural, seja na transcendência do
sobrenatural. O sagrado dá significação ao espa-
“Enquanto estavam comendo, Jesus pegou o pão ço, ao tempo e aos seres que neles nascem, vivem
e pronunciou a bênção, partiu-o, deu-o aos discí- e morrem”.
pulos e disse: ‘Recebei, comei, isto é meu corpo’. Em
seguida, pegou um cálice, deu graças e passou-o Portanto, os templos são espaços significativos
a e les, dizendo: ‘Bebei dele todos, pois este é o que envolvem os sujeitos em expressões gestuais
meu sangue da nova aliança, que é derramado durante as cerimônias e rituais sagrados. Assim, se
para muitos, para a remissão dos pecados’” tem espaço, tempo e seres envolvidos na relação
(Mateus 26: 26-29, N OVO TESTAMENTO, 1997). com o sagrado, como esclarece M. Chaui.
Diferentemente, os símbolos profanos podem
Ainda, a linguagem metafórica é a dos símbo- ser caracterizados como elementos concretos e
los que se assemelham a horizontes, servem de visíveis da cultura, com características utilita-
referencial a seguir, apontam caminhos e ampliam ristas e descartáveis e que, portanto, não apon-
a visão de mundo, sem, no entanto, deixar-se tam para o ideal buscado pelo homem religioso
aproximar pelo perigo de se perder o sentido de ou crente.
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Cabe aqui uma ressalva: os símbolos sagrados do Divino Espírito Santo e unidos pela fé que
não atendem as necessidades de primeira ordem, move a todos.
tais como a fome, a sede e o frio; esses são indícios Com o sentido de re-ligar, do verbo religare,
de desejos mais amplos e que geralmente dizem que quer dizer “reunir o que está separado”, a re-
respeito ao sentido da vida. ligião busca na transcendência do ser as dimen-
A crença no sagrado e em divindades passou sões humanas da carne e do espírito, em atos de
por vários momentos históricos, palco de aceita- dedicação a um culto, como na origem do latim,
ções e rejeições por diferentes organizações sociais. da palavra relegere. No entanto, esse sentido ficou
As principais entidades que negaram a existência perdido no tempo, nas diferentes concepções e
do sagrado foram o capitalismo e a ciência, basea- em diversas leituras da religião.
dos em princípios de produtividade/utilidade e E foi nesse caminho de adoração e de cultos
da explicabilidade, respectivamente. que os homens criaram seus deuses. Diferentes,
No que concerne aos símbolos sagrados, pode- porque nem todos os homens compartilham dos
mos relatar que alguns se tornam instituciona- mesmos desejos, e isto por si só justifica, ainda
lizados, passando a fazer parte de uma religião. hoje, a existência de várias religiões pelo mundo.
Esta vai além dos símbolos sagrados e aproxima- Essas construções deram-se indefinidamente, op-
se do desejo humano em seu íntimo, como um tando-se por um deus para cada desejo humano1,
espelho para a religião passa a ser um reflexo dos até que no século XIV a.C. Akhenaton pregou a
desejos humanos. Nas palavras de Feuerbach, existência de um Deus único, mais poderoso, mais
acalentador e por isto mais aceito, tanto que o
“A consciência de D eus é autoconsciência; o co- formato monoteísta impera nas grande religiões
nhecimento de Deus é o autoconhecimento. A (ARAÚJO, 2000).
religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos Além desse formato monoteísta, ainda há ou-
do homem, a revelação dos seus pensamentos tros dois tipos de religiões: as politeístas, em que
íntimos, a confissão aberta dos seus segredos de uns deuses podem ser bons e outros maus; e as
amor” (citado em ALVES, 1999, p. 13). dualistas, em que o bem e o mal se traduzem por
divindades antagônicas em permanente estado de
Essa consciência é o conhecimento e o reco- combate. No formato monoteísta, representado
nhecimento da adoção filial de Deus. Então seria pelo judaísmo, cristianismo e islamismo, o bem é
a consciência o Espírito Santo, que promove no a divindade superior, e o mal está representado
sujeito a consciência coletiva do dom da verdade por entidades demoníacas e inferiores (CHAUI,
e faz com que o homem, porque repleto do Espí- 1994). Desse modo, fica evidente que a formula-
rito Santo, identifique-se com seu próximo, com ção do número de deuses e as suas relações com
os outros homens, e se torne, em Cristo, um só o bem e o mal podem definir o perfil de uma
corpo, um só Espírito. religião.
Segundo a religião católica, a compreensão
do Espírito Santo remete à terceira pessoa da .
Trindade, aquilo que move os homens na Terra,
que os une e que faz com que comunguem da
mesma fé. Remete à consciência de ser filho, e de Mesmo com essas considerações de desvela-
ser guiado por um Deus, pai de todos os que mento de desejos, as entidades religiosas são geral-
vivem na comunhão. mente consideradas como imaginárias. No
Nesse sentido, compreendido como consciên- sentido de abstratas e sem concretude, podemos
cia coletiva, o Espírito Santo une os homens em concordar com esta consideração, mas, por outro
torno de um querer comum, em que todos que- lado, temos de observar que é por meio de ati-
rem ser um só ser na solidariedade, em busca da tudes imaginativas e por buscas incessantes de
justiça e pela fraternidade, reunidos pelo amor mudanças que a humanidade consegue construir,
36 ● Os frutos da carne e do espírito
bem ou mal, a sua sociedade. Acreditamos ser este Nessa bipartição de saberes inscritos na história,
o motivo de não ter sentido pejorativo a religião a religião passou a ser considerada menor diante
ser considerada algo imaginário. da ciência, perdendo a sua centralidade. Os sím-
Difícil é julgar o que são imaginação, tradi- bolos científicos contendo matrizes explicativas
ção e símbolos, nessa teia de idéias na qual se criam legitimidade, enquanto os símbolos reli-
insere a religião. Formada de elementos cons- giosos carecem da fé dos homens para existir, não
truídos ao longo do tempo, a religião passou, sendo, por este motivo, considerados heresias,
como várias outras instituições sociais, por um pelo temor ao sagrado, mas sim objetos da dúvi-
processo de reificação2 e teve sua máxima acei- da. Ainda sobre a questão das peculiaridades da
tação na Idade Média, com grande demonstra- religião e da ciência, Alves (1999) chama a atenção
ção de fé pelos fiéis. No entanto, posteriormente, para o fato de que o saber religioso não pode ser
a aceitação foi convertida em questionamento mensurado a partir de sua idéia e de sua lógica,
de seus preceitos, tais como o bom-mocismo reli- por esta ser diferente da lógica científica, mas por
gioso e o conformismo. meio de sua força.
O contraponto a esses questionamentos esta- Fazendo uma analogia com o pensamento de
va na efervescência do mercado e da ciência, com Lévi-Strauss (1997, p. 26), ao tratar das diferen-
autores de uma nova fase do mundo. Nesse per- ças entre a magia e a ciência, concordamos com
curso da história a religiosidade perdeu o seu o seu ponto de vista, quando afirma que “a pri-
espaço, e essa foi a primeira instância de uma meira diferença entre magia e ciência seria, por-
guerra que dura até hoje entre o sagrado e a reali- tanto, que uma postula um determinismo global
dade, atualmente representada pela ciência, e integral, enquanto a outra opera distinguindo
como esclarece Almeida (2001, p. 53): níveis dos quais apenas alguns admitem formas
de determinismo tidas como aplicáveis a outros
“Mantidas as substanciais diferenças históricas, níveis”.
reproduz-se, hoje, o corte operado pelo Ilumi- Se com o pensamento mágico ocorre dessa
nismo: a ausência do diálogo entre a ciência e a forma, com o pensamento religioso também se
tradição dificulta a constituição de um pensa- dá assim, admitindo-se que os dois operem com
mento simultaneamente científico e cultuador das o pensamento mítico, com a projeção dos desejos
tradições manifestas na diversidade dos mitos e e com o imaginário.
saberes esotéricos”. O sagrado caracteriza-se pelo poder, e não
pelo saber, do certo ou do errado. Isso justifica
A questão do saber e da sabedoria advém o impulso de transgressão do religioso que varia
originariamente da Grécia, a partir de uma ló- do jejum até o autoflagelo, aparentemente sem
gica do sensível que comporta uma regra de vida, explicabilidade, mas com força superior ao questio-
uma vontade de lucidez e uma iniciação ao que namento. É o temor ao que se tem como sagrado
se pensa ser o bem. No entanto, com o corte ope- que faz com que a religião não desapareça. Segun-
rado pelo Iluminismo, como nos indicou do Freud, citado em Campelo (1996, p. 116), “o
Almeida, o saber e a sabedoria ficam atrelados a tabu é equivalente a um temor sagrado”. Por-
tudo o que é mensurado, auferido e comprovado, tanto, sem o mesmo respaldo social, a religião
isso e demarca o embate e a divisão dos saberes. continua a fazer parte da vida do homem sob for-
Morin (1999, pp. 49-50) afirma que o cristianis- ma de proibições, regras e disciplinas cristalizadas
mo subordina essa sabedoria à piedade, caridade nela mesma.
e santidade, as quais formam as normas da vida E aqui cabem algumas reflexões quanto a como
cristã. Para a teologia, a palavra sabedoria é atri- se exterioriza o Deus que está em cada um dos
buída à terceira pessoa da Trindade, ao conheci- homens. O Deus dos religiosos tem semblante
mento sobrenatural ou ao conhecimento das dócil e carisma inestimável; afável e de bom cora-
coisas divinas. ção, acalenta todos os fiéis segundo seus critérios
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de bondade. Severo nas falhas, mas compreensi- alcançá-lo, qual o sentimento que mais se aplica
vo nos arrependimentos, Deus é o ideal de ser a esta sensação? Esperança. Isto mesmo, é ela que
que todos nós procuramos. Talvez seja por isso nos encaminha na vida religiosa e que nos dá
que, como em qualquer instituição, na religião força diante da vida cotidiana.
católica existem as patentes ou cargos, e, entre O desejo do saber, em todos os campos do
eles, os santos. conhecimento, sempre foi a busca do homem,
Como homens comuns que chegaram perto quer seja o saber sentido das emoções, quer seja
da serenidade e bondade de Deus, os santos nos o saber epistemológico da ciência. A essência do
servem de exemplos. E por que não utilizar o conhecimento também é vislumbrada pelo ho-
próprio Deus como exemplo? Bem, isto não está mem, tanto no campo das emoções, e nesse caso
explícito, mas talvez seja pelo fato de que sua essa essência traduz-se em esperança, como no
“patente” seja inatingível. campo da ciência, com enfoque voltado para a
Para os descrentes, Deus não tem forma defi- certeza da verdade.
nida, cada um deles tem um Deus senhor de si, a
maioria se considera senhor de si mesmo, e o é. No .
entanto, nenhum descrente consegue desprender-
se do sagrado e dos símbolos, por estes já fazerem
parte da sociedade em que foram criados, no pro- No percurso da história, quando os saberes en-
cesso de reificação explicado anteriormente. trelaçam-se, é do conhecimento da ciência que se
Então, Deus é o que o homem o faz ser. Deus radicaliza a divisão corpo e espírito. De um lado,
pode ser entendido como a forma desejada do a ligação rompe-se quando Descartes, para livrar
homem, seja ela qual for. Particularmente, acre- a ciência e a pesquisa das amarras da Igreja e apro-
dita-se que na multiplicidade de Deus pregada fundar o conhecimento, propõe, em seus estudos,
pelas mais diversas religiões o que falta é admitir essa divisão. Por outro lado, o Estado imprime uma
que todos eles podem ser considerados um, só espiritualidade que não é autêntica quando adota
que com caminhos e anseios diferentes a suprir oficialmente o cristianismo, batizando toda a
e que por este motivo lhe tenham sido atribuídas tropa militar romana (ESPÍRITO SANTO, 1998, p. 104),
tantas facetas. Nas palavras de Feuerbach, citado o que não garante uma espiritualidade ou religio-
por Alves (1999, p. 95): “Deus é a mais alta subjeti- sidade que possa vir de dentro do ser ou que
vidade do homem... Este é o mistério da religião: possa ser construída conscientemente.
o homem projeta seu ser na objetividade e então Nas sociedades contemporâneas é a razão
se transforma, a si mesmo, num objeto perante instrumental que define valores e comportamen-
essa imagem, assim convertida em sujeito”. tos, conferindo maior valor ao que é utilitário e
Campbell (1990, p. XII) diz que as diferentes pragmático. Assim, o pensar sobre solidarie-
culturas têm diferentes imagens de Deus e, essas dade e bondade, incluindo todos os sentimen-
imagens são muitas em razão das diversas leituras tos e ações que não se enquadram no utilitarismo
e interpretações das diferentes culturas, que as imediato, passa a ser dispensável.
fazem a partir de suas crenças e mitos, os quais O corpo, por sua vez, é tomado como instru-
acabam por ser projeções da mais íntima interiori- mento do fazer e da produção; o sentido da physis
dade, reflexo do desejo, primeiro do sujeito, para grega, em que o ser humano em sua unidade é
em seguida ser coletivizado pelos grupos sociais. harmonia com a natureza e o cosmos, fica no pas-
De modo geral, a religião fala-nos de um desejo sado, permanecendo no presente somente o des-
superior, o desejo de saber o sentido da vida. Esse frutar de horas de lazer e culto à beleza. A educação
sentido não pode ser falado ou idealizado, ele é integral e o trato do homem em sua plenitude já
sentido, e por isto se localiza no campo das emo- não fazem parte das concepções da vida moderna, o
ções. Mas, se a religião mostra-nos um mundo que promove o distanciamento da “razão” e do cor-
idealizado e por nós almejado sem perspectiva de po com a fragmentação e perda da unidade do ser.
38 ● Os frutos da carne e do espírito
utilizar essa dicotomia como forma de assegurar espontâneas. Nesse contexto, é o corpo, presencial,
seu espaço na sociedade, teria relevância social no visível, que paga pelos pecados tanto da carne como
momento em que fizesse referência à alma huma- os do espírito, pois ele é materialidade concreta,
na. Tanto que, se a sociedade de modo geral exerce perceptível, que deixa expostas as marcas do casti-
constante coerção sobre o homem, principalmen- go e punição nos indisciplinados e desobedientes
te em se tratando de corpo, a religião também das regras da Igreja.
tem os seus mecanismos de disciplina e coerção. Ora, ao pensar na Igreja Católica Apostólica
A ação da Igreja em controlar o pensar e agir Romana ao longo de sua história, observam-se
humano segue o raciocínio de exercer poder so- facilmente suplícios corporais, como na Santa
bre os homens, e foi assim descrita por Foucault Inquisição ou até mesmo no exemplo do Jesus
(1987, p. 86): crucificado que morreu por todos os homens.
Observa-se também a formulação da idéia de alma
“O espírito como superfície da inscrição para o separada, superior e salvadora do corpo, que
poder, com a se miologia por instrumento; a sub- tem atributos de pecado e impureza. Além disso,
missão dos corpos pelo controle das idéias; a também se pode constatar que, como qualquer
análise das representações como princípio, numa outra instituição, a Igreja formula alguns modos
política dos corpos bem mais eficaz que a anato- de comportamento e ação por meio de seus prin-
mia ritual d os suplícios”. cípios, gestos simbólicos, como o sinal-da-cruz, e
outros de adoração à divindade.
E nesse momento pode ser operacionalizado A gestualidade católica, fruto de uma disci-
o que esse mesmo autor chama de “tecnologia plina e treinamento do corpo, sempre esteve em
de poder”, que tem por objetivo exercer o poder de consonância com a adoração, com a proteção
punir, constituída do corpo que é supliciado, da divina e com os símbolos que envolvem essa reli-
alma que tem suas representações manipuladas gião. A gestualidade traduz-se em linguagem
e do corpo que é treinado. própria da religião católica que, por meio do
É a partir da tecnologia de poder apontada corpo, expressa suas compreensões de mundo
por Foucault que se forma o poder ideológico da com uma técnica própria, uma técnica corporal.
Igreja. Agindo por meio das manipulações de A técnica corporal, expressão inaugurada pelo
representações de um Deus onipresente, onis- antropólogo Marcel Mauss (1974), considera
ciente e onipotente, ela orienta suas ações sob a que toda ação passa por uma aprendizagem que
imagem do panóptico como “um local privile- resulta em técnica. Esse mesmo autor conceitua
giado para tornar possível a experiência com técnica corporal como o modo pelo qual a socieda-
homens, e para analisar com toda a certeza as de, os homens fazem uso de seus corpos, e assim
transformações que se podem obter neles” criam “habitus”.
(FOUCAULT , 1987, p. 169), em que a constante obser- Toda ação exige uma técnica própria (ou um
vação e a culpa por atos sempre revelados ao Deus jeito de se fazer) para ser realizada. No caso das
(que tudo sabe, tudo vê e tudo pode) são as respon- técnicas corporais religiosas que, como dito ante-
sáveis pela retidão dos fiéis. riormente, remetem à adoração, à proteção divina
Também a disciplina contribui com um apa- e aos símbolos sagrados, ocorreu uma cristali-
rato de imposições para a retidão religiosa, sendo zação dos tipos de técnicas em rituais, também
responsável pela coisificação (reificação) dos sím- considerados sagrados, e esse processo desenca-
bolos religiosos que fazem a religião mantenedora deou um habitus na cultura religiosa.
de seu respaldo social. A disciplina também contri- Segundo Chaui (1994), os gestos fazem parte
bui para a Igreja com seu caráter neutralizador dos rituais religiosos, e estes, por sua fez, fazem
dos efeitos de contrapoder que dela nascem e que referência a uma ligação entre o homem e divino.
formam resistência ao poder, tais como as agi- Podemos entender os gestos nos rituais católicos
tações, revoltas e toda ordem de organizações como meio de fortalecer a fé dos fiéis em adorar e
40 ● Os frutos da carne e do espírito
reviver os momentos marcantes da história de sua como no ideal. É o ser humano nas suas dimen-
religião, evocando o sentimento de adoração em sões de existência.
que corpo e alma estão em unidade. Novamente Diante dessas constatações anteriores, e após
recorremos a Chaui para relatar os sentidos dos a enraização da racionalidade instrumental, é
ritos, em especial na religiosidade cristã: preciso recuperar, ou construir, uma concepção
de corpo que considere a multidimensionali-
“Um r ito é repetitivo em dois sentidos principais: dade da existência humana.
a cerimônia deve repetir um acontecimento es- Subentendido já nas tendências da Igreja,
sencial da história sagrada (por exemplo, no cris- ficou perceptível que há uma compreensão de
tianismo, a eucaristia ou comunhão, que repete a corpo surgindo na essência dos fatos. É provável
santa ceia); e, e m segundo lugar, atos, gestos, que ainda seja prematura e não denominada, mas
palavras, objetos devem ser sempre os mesmos, nas entrelinhas das falas e nas posições adotadas
porque foram, na primeira vez, consagrados pelo pela Igreja, mesmo que ainda não significativas,
próprio Deus” (C HAUI , 1994, p. 299). há uma concepção de corpo que remete à
corporeidade.
Nesse sentido, o habitus na gestualidade da
religião passa necessariamente por uma educação Referências bibliográficas
religiosa, que na história brasileira data da colo-
nização do Brasil, e por uma aprendizagem siste- ALMEIDA, M. da C. Comp lexidade e cosmologia da
matizada. Estes dois elementos de transmissão da tradição. Belém: Eduepa/UFRN/PPGCS, 2001.
cultura religiosa estão intimamente dependentes ALVES, R. O que é religião. São Paulo: Brasiliense, 1999.
ARAÚJO. W. T. (o rg.). Cultura local: Dis cursos e práticas.
da internalização dos dogmas religiosos e da fé
João Pessoa: EDUFPB, 2000.
em Deus, entendidos como saberes próprios da BOFF, L. O despertar da águia: O dia-bólico e o sim-bólico na
religião. construção da realidade. Petróp olis: Vozes, 1998, 17ª ed.
CAMPBELL, J. O poder do mito. Trad. de C. F. Moisés.
. São Paulo: Palas Atena, 1992.
Notas
1 Um clássico exemplo dessa forma politeísta de pensamento aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais”.N um
pode ser retirado da mitologia grega, vastamente difundida, sentido amplo, é a transformação de representações mentais
em que cada deus representava uma força sobre as emoções em coisas verdadeiras.
ou sobre os elementos da natureza, entre outros poderes. 3 A alma aqui entendida no sentido de Aristóteles, de
2 Segundo Alves (1999, p. 39), trata-se do “esquecimento de “alma racional”, princípio de pensamento no homem
que as coisas culturais foram inventadas, e, então, elas (D UROZOI & ROUSSEL , 1996).
42 ● Os frutos da carne e do espírito