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Poesias (im)popular brasileira / Julio Mendonça (organizador). - 1. ed.,


São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2012. 304p.

ISBN 978-85-64107-03-8

1.Poesia brasileira. I. Título.


CDD 869.915

Ficha catalográfica: Sandra Ap. de M. G. A. Moura CRB-8 5980

POESIA (IM)POPULAR BRASILEIRA


Organização de Julio Mendonça

Coordenação editorial: Christian Piana


Organização: Julio Mendonça
Consultoria: Reynaldo Damazio, Tarso de Melo 1ª edição
Projeto gráfico: Christian Piana
Na capa: Sem Titulo, 2012, Dumas (Antonio Carlos Dumas Seixas)

As licenças deste livro permitem copiar, distribuir, exibir, executar e fazer trabalhos
derivados somente dos textos de apresentação dos poetas, conquanto que sejam
para fins não comerciais, que dêem créditos devidos aos autores de cada texto de
apresentação e a editora Lamparina Luminosa, e que as obras derivadas sejam
distribuídas somente sob uma licença idêntica à que governa esta.
SAPATEIRO SILVA
JOAQUIM JOSÉ DA SILVA: A DESORDEM DA SAPATARIA
por Júlia Studart

Edson de Sousa, psicanalista e professor, estudioso de questões relativas


à utopia, diz em seu livro Uma invenção da Utopia que “Entrar em uma
sapataria talvez seja uma das experiências mais contundentes da imperfeição
do mundo. Os sapatos em desordem, o cenário precário e sublime resistin-
do a velocidade do capital e das mercadorias, o pó e o cheiro de graxa nos
lembram uma outra química de tempo.” Ele insiste nessa imagem para nos
indicar que os pequenos espaços das sapatarias são, sem dúvida, espaços de
resistência, porque ali podemos recuperar – no meio de tantos pedaços de
objetos e de tanta dispersão de vida – uma contra-ordem ao projeto de or-
ganização do mundo através do capital. Assim, podemos lembrar o quanto
nosso corpo reage e existe em meio às coisas abandonadas, às nossas feridas,
cicatrizes e curativos; do quanto as coisas se estragam e do quanto a história
é composta exatamente de extravio e de abandono. Diz ele que quando pen-
samos nos confrontamos com aquilo que está em falta, que ao entrar num
lugar como uma sapataria, por exemplo, podemos despertar para tocar em
algo que pode surgir dali, da precariedade dos objetos, logo da insuficiência
de nossa vida e, principalmente, de nossas categorias conceituais.
Quando ficamos diante da poesia de Joaquim José da Silva, o Sapateiro
Silva, de certa maneira, ficamos diante também do quanto uma desordem
e um abandono são importantes para que possamos reler e recompor uma
historiografia literária e, mais ainda, uma história da literatura. Sabe-se, por
exemplo, que talvez tenha nascido em 1755, no Rio de Janeiro, onde viveu. E
mais quase nada. Não à toa, o livro de Flora Süssekind e Rachel Teixeira Va-
lença, publicado em 1983, intitulado O Sapateiro Silva, único volume intei-
ramente dedicado à poesia do Sapateiro, parte de duas imagens: a primeira,
a da surpresa de uma descoberta que envolve um personagem à margem da
vida literária brasileira e que viveu ali entre os finais do século XVIII e início
do século XIX; a segunda, a da lata de lixo, porque segundo elas uma tarefa
possível ao historiador é a de romper com os mecanismos de esquecimento
que transformam alguns personagens em história e outros em lixo. Dizem

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que é preciso revirar o lixo para que apareçam aí os restos daquilo que não de progresso, pela mercadoria que começa a se impor e pelas novas cenas
vimos ou do que, num esforço asséptico, procuramos nos livrar. urbanas. E aqui não podemos esquecer de indicar um caráter fundamental
Assim, é impossível falar qualquer coisa sobre o personagem Sapateiro nesta transformação: as perspectivas acerca do cotidiano, da vida doméstica,
Silva e sobre a sua pequeníssima produção de poesia, sem voltar a esse livri- do dia-a-dia, da rotina, do hábito. A vida na cidade passa a sugerir outra
nho fundamental de Flora e Rachel. Há nele toda a cartografia do problema: percepção, outra forma de comportamento, outro lugar de acesso a estes
estamos no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII, durante a mesmos sentimentos primitivos e a um estado ameno e contemplativo da
eclosão da estética árcade entre nós, mas que se deu praticamente no esta- relação do homem com a natureza. Por isso, a tarefa poética destes homens é
do de Minas Gerais, mais propriamente em Vila Rica. A perspectiva é a de simples: os poetas árcades queriam um ideal de vida comum, pleno, ou seja,
repensar as linhas mais tensas da história de nossa literatura como a de uma idílico e bucólico, longe da agitação citadina que é a vida nas grandes cidades,
sapataria em desordem, tal qual a imagem sugerida por Edson Sousa, e ver porque a cidade assim se impõe.
em meio a essas linhas como aparecem a figura e a poesia de Joaquim José A desordem provocada pela poesia do Sapateiro parece acompanhar as
da Silva. aventuras de um cotidiano mais citadino que começa a se desenhar e a se
Sabemos que o arcadismo brasileiro está diretamente ligado à fundação estabelecer no Brasil. Sua poesia parte dos usos mais violentos da sátira, não
das vilas, ao contato entre colônia e metrópole a partir de uma ideia da ‘vida só na recuperação de uma veia mais estridente como a de Gregório de Matos,
européia’ e a uma tentativa de aproximação entre direito natural e direito mas também da disposição em propor um tom completamente inadaptado
divino. Daí a estrutura dominante que passava pela constituição de uma au- à linguagem poética da época. Silvio Romero, rapidamente, chama atenção
toconsciência literária; de uma ideia de sistema literário como propõe Anto- para o quanto os poemas do Sapateiro conjugam o artifício da farsa, o ca-
nio Candido em seu livro fundamental a todos nós que tentamos entender o nalhismo e a grossura; mas perde de vista o quanto essa mesma linguagem
processo de nossa cultura literária, Formação da Literatura Brasileira: autor- rearma a sátira como pilhéria para interferir no que já se poderia chamar de
-obra-leitor; da composição definitiva de uma cor local com pauta no campo nosso sistema literário. A simples presença desse personagem, dessa outra
em detrimento da ideia de cidade que começa a tomar vulto; da experiência figuração do poeta totalmente contrária ao pressuposto árcade, faz com que
em torno da recuperação inventiva de um locus amoenus não só como evasão todo o panorama do arcadismo brasileiro mereça uma reavaliação. Este é o
lírica, mas também como uma vagarosa constituição de um tempo histórico primeiro impasse sugerido por Flora Süssekind e Rachel Valença. E aí, basta
para o comum e o amor terreno e, principalmente, o disfarce literário que reparar que o Sapateiro, segundo elas, é um “poeta que se recusava a recobrir
cada poeta assumia sob as bênçãos da Arcádia ao tomar para si o nome de um a própria identidade com um disfarce literário. Além de misturar aos sonetos
pastor: Termindo, Alceste, Lereno, Dirceu entre outros. e odes árcades um conteúdo prosaico e uma linguagem coloquial e bem afas-
tada das convenções pastorais.” Sua dupla identidade se arma num jogo com
Mas o fato é que a temperatura dos poemas do Sapateiro é outra, há um
a vida, mais perto da vida comezinha da rua, sem dispor de lados contrários
desvio de linguagem em relação a poesia dos poetas árcades, todos bacha-
ou disfarce: ele é, ao mesmo tempo, sapateiro e poeta, poeta e sapateiro.
réis com formação na metrópole e muito preocupados com seus bens e com
os embaraços e confusões da conjuração mineira: Tomás Antonio Gonzaga, Os dilemas em torno desse personagem se acumulam, porque toda a sua
Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Basílio da produção é uma desobediência aos métodos e modelos classificáveis da época
Gama etc. Para estes poetas, por exemplo, é a natureza que pode recuperar em que viveu. Mesmo que faça uso da forma do soneto ou de algo da mito-
uma cena aparentemente mítica e ancestral. Este convívio idealizado com o logia clássica como assunto de seus poemas, procura o tempo inteiro recons-
mundo natural é uma tentativa quase desesperada do resgate dos sentimentos tituir seus usos a partir de uma saliência de termos mais prosaicos, beirando
mais primitivos que, para eles, foram corrompidos pela ideias de civilização, o chulo, e de um humor absolutamente popular. Flora Süssekind e Rachel

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Valença chamam atenção para o interessante propósito do desacerto de sua MOTE
glosa, numa tentativa de desfazer as hierarquias, as regras, os valores sociais e
estéticos dominantes e sugerir uma outra lógica, outro acesso, outra ordem.
Amor, busca a tua vida,
De fato, as sugestões de leitura que encontramos nos poemas do Sapateiro
são muito mais uma impossibilidade de classificação aos padrões do período
Que me resolvo a deixar-te;
por causa da constituição de uma desordem na linguagem, que tem a ver, Se até agora te sofri,
claro, com os seus usos de pulverização da língua contra a sintaxe clássica e Não posso mais aturar-te.
tradicional.
Tanto tempo jogado na lata de lixo da história de nossa literatura exa- GLOSA
tamente por causa de sua inadequação, anotado aqui e ali nos rodapés e
nas margens de nossos manuais mais completos, como os de José Veríssimo I
e de Afrânio Coutinho, por exemplo, ou citado no Florilégio da Literatura Vai inspirar teu orgulho,
Brasileira de Francisco Adolfo Varnhagen quase como um traço apagado da Ó tu rapaz malfazejo,
história – “A respeito deste versejador confessamos ter escassez completa de
A quem arde no desejo
noticias biográficas. Era sapateiro no Rio.” –, o que sobra do Sapateiro é pre-
De seguir a teu barulho.
cisamente a desordem de sua produção. Ou seja, o precário de sua sapataria
poética é que nos faz retomar o corpo da história e reposicioná-la em relação Longe de ti o engulho
à dimensão de seu próprio extravio. A poesia do Sapateiro nos faz ler/ver o De trazer-me de corrida:
que está em falta e opera agora a reformulação de alguns traços perdidos de E se alguma amante lida
nossa história literária. Acaso fazer-me intentas,
Antes que eu te chegue às ventas,
Amor busca a tua vida.

II
Das tuas setas pontudas
Meu peito não participa,
Pois que desse arco de pipa
Se despedem já rombudas.
Té não temos as mais agudas
Que teu pai costuma dar-te:
Bate as asas por descarte,
Tira a venda, dá um ai,
Vai queixar-te à tua Mãe,
Que eu me resolvo a deixar-te.

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III MOTE
Inda que vás aos Ciclopes
Pedir temperados ferros, Amei a ingrata mais bela,
Te hei de largar quatro perros, Que o mundo todo em si tem;
Que fugirás aos galopes. Eu morri sempre por ela,
Inda que o cendal ensopes Ela nunca me quis bem.
Com pranto de frenesi,
Zombarei sempre de ti, GLOSA
Pois não posso sem atalho
Aturar-te tão bandalho, I
Se até agora te sofri Quando eu era mais rapaz,
Que jogava o meu pião,
IV Andava o Centurião
Esse espírito guerreiro Dando a todos sotas e ás.
Oculta por desafogo, Nesse tempo aos Sabiás
Que não deves ter tal fogo, Armava a minha esparrela;
Sendo filho de ferreiro. Comia caldo em panela
Outra vez alcoviteiro Por ter os pratos quebrados;
Vai a ser do fero Marte; E até por mal de pecados,
Que eu posto agora de parte Amei a ingrata mais bela.
Pertendo dar de ti cabo:
Não és amor, és diabo, II
Não posso mais aturar-te. Depois de mais alguns meses
Já por baixo da sobcapa,
Pelas calçadas da Lapa
Pernoitava muitas vezes.
Não bastaram os arneses,
Que herdei de Matusalém;
Só sei que querendo bem
Me achei como Antão no ermo,
E o mais galante estafermo,
Que o mundo todo em si tem.

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III MOTE
Com os anos, com a idade,
Na festa e seu oitavário, Alminhas do purgatório,
Só em passo imaginário, Que estais na beira do rio,
Andava pela Cidade. Virai-vos da outra banda
Se é mentira, ou se é verdade, Que vos dá o sol nas costas.
Diga-o a minha mazela,
Que não sendo bagatela
GLOSA
Bem mostra de cabo a rabo,
Que por artes do diabo
Atrás da Porta Otomana
Eu morri sempre por ela.
Se conserva um bacamarte,
Com que Pedro Malasarte
IV
Depois de velho caduco, Defende a cúria romana.
Já cheio de barbas brancas, Nas margens do Guadiana
Eu bispei-a dando às trancas Dá Castela o repertório:
Nos sertões de Pernambuco. Um tal frade frei Gregório
Ali trabalho e trabuco Nas ventas do seu nariz
Por lhe abrandar o desdém; Tem um letreiro que diz:
Mas o mau modo, que tem, Alminhas do purgatório.
Procedido da vil prole,
Faz crer que nem a pão mole No passar do Helesponto,
Ela nunca me quis bem. Esta nossa atmosfera
O seu ambiente altera,
Por não achar barco pronto;
Em falsete ou contraponto
O tempo passa de estilo;
O mestre inverno com frio
Manda ascender o farol,
Pois vê de ré-mi-fá-sol
Que estais na beira do rio.

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Depois do geral dilúvio,
Inda nos ficaram mágoas,
Porque no tempo das águas
Inunda mais o Danúbio.
Qualquer átomo ou eflúvio
Sempre fede que tresanda;
Renasce o mal de Luanda
Na cidade de Guiné; Senhor Mestre Alfaiate, este calção
Se quereis tomar café, Está como os sapatos, que eu lhe fiz?
virai-vos da outra banda. De que serve o dedal, tesoura e giz,
Se não sabe pagar-lhe com a mão?
Raia agora a lua cheia,
A nova faz eu eclipse: Você não é alfaiate, é remendão,
É galante parvoíce Eu bem podia crer o que se diz;
Deitar-se a gente sem ceia. Porém como por asno nunca quis,
Junto da Palma Iduméia Justo é sinta o mal sem remissão.
Estão as cousas dispostas
Para evitar as propostas Já outro que ali mora junto à Sé
Em que estão sobre a vindima: Bem conhecido, Antônio Marroquim,
Ponde a barriga pra cima Me deitou a perder um guarda-pé.
Que vos dá o sol nas costas.
Se eu daqui a dez anos, para mim,
Não fizer um calção de sufulié,
Não me chamem jamais Mestre Joaquim.

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Um batuque se fez em São Gonçalo Não se enfade, menina, dessa sorte,
Das moçoilas do Rio de Janeiro, Por São Paulo me espere mais uns dias,
Onde foi Frei Tobias pasteleiro, Que os sapatos irão nas noites frias,
E escamador, Pai Paulo, de um robalo. Pois não quer São Crispim que agora os corte.

Eis o grande Camões em seu cavalo, Praza a Deus que eu de todo vença a morte,
Todo torto, mui feio, e mui feceiro, Que verá como em três Ave-Marias
Conduzia a função de um candieiro, Lhe faço pra estragar as francesias
Três tainhas, seis pargos, e um galo. Sapatos de cetim com sola forte.

Por não perder da Festa a grande manja Mas se os quer com mais pronta raridade,
Também se achou um certo salafrário, Requeira a Solimão na Mauritânia
Com cara mais inchada que turanja Que servida a de ser com mais vontade.

Porém com não era batucário, Pois ele pela ver na nova Albânia,
Apenas o brindaram com laranja Lhe trará pra que traje à divindade,
Serenada no ilhós do seu Vigário. As botas do Grão-Duque de Aquitânia.

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Eu queria, mas eu tenho vergonha
De dar e conhecer a minha tolice;
Deixamos de fazer a parvoíce,
Que havia de feder mais do que a peçonha.

Mas que importa que outro se me oponha


Por querer ser pateta, ou ser felice,
Se comigo assentei por fanforrice
Ser hoje o grande Duque de Borgonha?
SEBASTIÃO NUNES
Já contente no meu gaudério estado
Tenho fardas, palácios, e dinheiro:
Já não peço a ninguém nada emprestado.

Porém leve o diabo o meu roteiro,


Que apesar das farófias do Ducado,
Todos me lêem nas costas - sapateiro.

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