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D ia g n ó stic o psico ló g ico d o c rim in o s o :

te c n o lo g ia cio p re c o n c e ito

O objetivo deste trabalho é refletir sobre os pressupostos em que


se baseiam as avaliações, exames e procedimentos diagnósticos de
indivíduos encarcerados, considerados “criminosos” . Embora esta
reflexão diga respeito mais especificamente à avaliação ou diagnóstico
psicológico, tal restrição relaciona-se com a maior familiaridade da
autora com as técnicas psicológicas, e não com a existência de qual­
quer distinção importante, do ponto de vista de nossa análise, entre
avaliações e exames levados a efeito por psiquiatras ou assistentes
sociais, no mesmo campo de atuação.
A. partir do Código Penal de '1940, crescem em importância, no
Brasil, os procedimentos destinados a diagnosticar, analisar ou estudar
a personalidade e a história da vida dos condenados, com vistas a
prescrever adequadas técnicas de tratamento penal, assim como pre­
ver futuros comportamentos delinqüenciais. Mas esta é uma tendência
na legislação penal ocidental: a de se aplicar a pena tendo em conta
uma personalidade, muito mais que um delito cometido.
Seguindo essa tendência, o princípio de individualização das pe­
nas parece ter tomado proporções muito maiores e mais abrangentes.
Isto significa também que as instituições penais deverão transformar-
se cada vez mais em locais onde deverá ocorrer uma constante avalia­
ção do comportamento do preso, uma vez que “o mérito do sentencia­
do é o que comanda a execução progressiva” 1.
Parecem ter aumentado as ocasiões em que estará criada a ne­
cessidade de se avaliar a personalidade do preso, avaliação esta apoia­
da em procedimentos técnicos, mais do que no simples olhar leigo de
um guarda. Situações como mudança de regime penitenciário (de regi­

1Lei de Execução Penal.

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me fechado para semi-aberto), concessão de livramento condicional,
bem como a chamada “classificação” do condenado, através da qual
se buscaria adequar o tratamento penitenciário às características e
necessidades de cada preso, todas elas estariam relacionadas a exa­
mes, pareceres ou laudos formulados por “equipes interdisciplinares” .
Torna-se, pois, da maior gravidade a questão da confiabilidade que
se tem nos resultados dos referidos exames. Das duas uma: ou de fato
eles constituem uma avaliação científica e, como tai, confiável, acerca de
personalidade de alguém, ou se está diante de uma perigosa fonte de
arbitrariedade. Através de um laudo psicológico, por exemplo, emite-se
uma opinião ou julgamento que escapa ao controle do próprio examinan­
do, ou de alguém não versado nos mesmos conhecimentos. Além disso,
por se tratar de procedimento normalmente reconhecido como científi­
co, aceita-se sem muita discussão que ele cumpra realmente o que a
justiça espera dele: fornecer uma espécie de retrato fiel daquilo que se
passa no interior do indivíduo, seus desejos, tendências, os motivos que o
levaram ao ato criminoso e, ainda mais, uma previsão sobre as possibili­
dades de vir a reincidir no erro. De posse desta espécie de.“radiografia”
(ou exercício de futurologia...), a Justiça poderia enfim ter o respaldo
seguro de uma ciência.
Nosso objetivo não é o de, simplesmente, denunciar o caráter
não-científico dos exames e técnicas empregados, o que não consti­
tuiria grande novidade. Se este fosse o caso, tratar-se-ia simplesmen­
te de, demonstrado o fracasso destes instrumentos, defender que a
Justiça os pusesse de lado.
O que nos chama a tenção é, sobretudo, o grau de eficácia ou de
utilidade que os referidos exames apresentam: eles têm conseqüências
palpáveis, no que diz respeito ao futuro do condenado. Na maioria das
vezes, um resultado desfavorável lança uma desconfiança sobre a ín­
dole do preso, que poderá perdurar como uma marca indelével sobre
seu futuro no interior das instituições carcerárias, tendo como efeito
prolongar-lhe indefinidamente o tempo de reclusão ou dificultar-lhe a
concessão de benefícios.
Este tipo de avaliação do condenado goza, portanto, de elevado
grau de credibilidade junto à Justiça, trazendo efeitos concretos sobre

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o seu destino. Não se pergunta o Judiciário sobre as razões que justi­
ficam tão elevado prestígio: a engrenagem da repressão utiliza as téc­
nicas psicológicas como uma peça a mais em sua maquinaria.
Aqui, convém recordarmos que a função primordial do Judiciá­
rio é a de assegurar o domínio e a exploração de uma classe sobre a
outra. Mas, para que esse estado de coisas se perpetue, não se vale a
engrenagem estatal somente de seus meios claramente repressivos e
violentos, mas também de procedimentos técnicos aparentemente mais
humanos e modernos, que constituem apenas estratégias diversas de
dominação.
Se, de um lado, os instrumentos técnicos a que nos referimos
podem ser denunciados por sua “fraqueza” teórica, de outro sobres­
sai seu elevado grau de utilidade. O sistema repressivo pode, assim,
travestir-se de uma roupagem científica, disfarçando até certo ponto
seu papel político-ideoiógico e modernizando seus métodos.
Tomamos com ponto de partida de nossa reflexão 120 laudos do
EVCP (Exame para Verificação de Cessação de Periculosidadc) realizados
no Instituto de Classificação Nelson Hungria no período de 1968 a 1972.
Os EVCP faziam parte dos dispositivos legais do Código Penal
de 1940. Eram realizados ao final dos prazos estabelecidos para as
medidas de segurança impostas aos semi-imputáveis ou aos condena­
dos julgados especialmente perigosos. As referidas medidas de segu­
rança, impostas em combinação com as penas, deveriam ser cumpri­
das em estabelecimentos especiais, onde se processaria o tratamento
por elas pretendido. Como estes estabelecimentos não chegaram de
fato a existir, na maioriados casos, pena e medida de segurança eram
na prática a mesma coisa.
Os EVCP, que deveriam significar uma espécie de avaliação dos
efeitos do tratamento penal, na prática reduziam-se a uma tentativa de
prever a capacidade de reinserção social do preso, admitindo-se desde
já, pelas condições do sistema penitenciário, que nenhum tratamento
tivesse sido levado a efeito.
Um laudo desfavorável do EVCP significava, na maioria dos ca­
sos, um prolongamento do tempo de reclusão do condenado, a pre­
texto de um tratamento sabidamente inexistente.

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Com a entrada em vigor do Novo Código Penal e da Nova Lei de
Execução Penal, em janeiro de 1985, não há mais medida de seguran­
ça para os condenados imputáveis. Deixam também de existir os EVCP,
mas, a nosso ver, permanece muito do espírito que os criou. Continua
o Judiciário a nutrir a expectativa de que um parecer técnico possa
prever comportamentos, servindo de base para a execução penal. É de
se observar que a ênfase no diagnóstico do criminoso não pressupõe a
existência real de tratamento ou de modificações nas instituições carcerárias.
No campo penal, o diagnóstico compre antes de tudo uma função de
estigmatização e instrumentalização de procedimentos carcerários. -
O novo código ampliou as oportunidades em que um condenado
será tornado alvo de uma avaliação técnica. No início do cumprimento
da pena deverá ser submetido a um “exame criminológico”, caso te­
nha sido condenado a pena privativa de liberdade em regime fechado.
Para mudança do regime (do fechado para o semi-aberto), novo exa­
me será necessário.
O princípio de individualização da pena e. os procedimentos de
classificação ganham especial relevo com a criação de “comissões
técnicas de classificação - CTC”, de cuja composição obrigatória, re­
gulamentada por lei, farão parte um psicólogo, um psiquiatra e um
assistente social.
A classificação será feita por Comissão Técnica de Classificação
que elaborará o programa individualizador e acompanhará a execu­
ção das penas privativas de liberdade e restritivas de direito, deven­
do propor à autoridade competente as progressões e regressões
dos regimes bem como as conversões2.
Deste modo, toda a vida do condenado numa instituição prisional
passa a subordinar-se a um exame ou avaliação formulada por uma equi­
pe integrada por “cientistas humanos”. Pretende-se certamente revestir
estes procedimentos de certo grau de cientificidade, emanando daí sua
confiabilidade. Saúda-se a inovação como um considerável avanço no
sentido da humanização e da modernização do tratamento penitenciário. '

2 Lei de Execução Penal, Título II, Capítulo I, Art. 6o.

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Também nos idos da década de 30 saudou-se o código anterior
como grande inovação e os hoje tão criticados EVCP como grande
avanço científico. Na prática, no entanto, eles se converteram numa
verdadeira fonte de arbitrariedades, concorrendo em última análise para
o encarceramento prolongado ou até perpétuo de muitos prisioneiros
cuja periculosidade jamais foi dada como “cessada”3 .
Assim, a avaliação de um preso feita por um psicólogo ou equipe
interdisciplinar tem, como teve no passado, conseqüências importan­
tes sobre sua vida na instituição.
Que dizer, por outro lado, destas próprias avaliações? Quem ava­
lia os autores da avaliação em seus compromissos político-ideológi-
cos? Muitas vezes se tem apontado as falhas ou a tendenciosidade dos
dados trazidos à tona pela chamadas “ciências humanas”, em diferen­
tes campos de atuação. Apesar disso, em vários setores da sociedade,
muitas atribuições e poderes têm emigrado das mãos do homem co­
mum para o arbítrio do “especialista”. Nas sociedades industriais mo­
dernas, o cuidado com a saúde, corn os filhos, com as finanças, a
transmissão de conhecimentos, etc., são hoje atribuições de alguns
indivíduos que se encontram aparentemente “mais próximos da verda­
de” por disporem de um saber científico.
No campo da justiça penal têm-se operado transformações se­
melhantes: mais e mais pretende-se julgar e condenar um indivíduo
com o respaldo pretensamente neutro e seguro de uma ciência. Violên­
cia, repressão, punição são palavras em desuso. Trata-se hoje de cu­
rar, tratar ou recuperar o criminoso.
Neste tratíalho pretendemos mostrar que, ao invés de serem
descompromissados e neutros instrumentos científicos, as avaliações
ou exames técnicos de criminosos reproduzem todos os estereótipos e
preconceitos, em suma, toda a ideologia que permeia a questão do
crime, traduzindo-se em práticas de repressão, controle e disciplina-
rização das parcelas mais pobres da população.

3 Cristina Rauter. Críminologia e Poder Político no Brasil. Rio de Janeiro,


Departamento de Filosofia da PUC, Tese de mestrado, mimeo, 1982.

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O saber técnico, tão característico do capitalismo moderno, pe­
netra cada vez mais no campo das inter-relações humanas, instru-
mentando novas técnicas de controle sobre a população. No campo
penal e penitenciário, a adoção deste instrumental tem correspondido
a mudanças nos métodos de repressão, que não podem mais aparecer
como violentos à primeira vista, mas dotados de um cunho científico
e de métodos de atuação sobre a subjetividade do encarcerado,
Nosso objetivo prático ao escrever este trabalho foi o de fomen­
tar a discussão entre técnicos de várias especialidades (psicólogos,
psiquiatras, assistentes sociais, advogados, etc.), notadamente entre
aqueles que atuam diretamente no campo da justiça penal. Que desta
discussão possam surgir idéias transformadoras que apontem novos
caminhos no sentido da mudança social.

1. A h i s t ó r i a i n d i v i d u a l : o p a s s a d o c o n d e n a

U m d o s p rin c ip a is p ro c e d im e n to s q u e c o m p õ e m os e x a m e s re a ­
liz a d o s n o c a m p o d a Ju stiç a é o d a c o le ta d a h istó ria d o su je ito , p ro c e ­
d im e n to a liá s típ ic o e m e x a m e s p s ic o ló g ic o s e p siq u iá tric o s e m geral.

É na teoria psicanalítica que freqüentemente se pretende encon­


trar a fundamentação teórica para este tipo de estudo da personalida­
de. Grosso modo, pode-se dizer que, neste campo do conhecimento,
é a partir de Freud, de suas primeiras teorias do trauma como fator
causai da neurose, que se construiu o modelo segundo o qual a partir
dos fatos do passado é que se compreende o funcionamento psíquico
presente.
No que se refere à teoria freudiana, a concepção de história indi­
vidual evoluiu muito desde a teoria do trauma. De imediato, uma dis­
tinção importante deve ser feita: na perspectiva psicanalítica, não é a
história real que importa; não há uma preocupação com a veracidade
dos fatos narrados pelo cliente. Parte-se do princípio que essa história
se passa num outro plano que não o do real concreto. Ela remete à
vivência particular de cada indivíduo ou à “realidade psíquica” que lhe
é peculiar.
Também no campo da medicina está dado o modelo de recons­
tituição da história individual, desta vez buscando o ponto de eclosão
da doença, seus fatores desencadeantes, seus antecedentes, historiados
pelo médico numa ordem cronológica.
Nos procedimentos judiciais e policiais, busca-se também re­
constituir a história do réu ou do suspeito. Um objetivo claro deve ser
alcançado e é ele que norteia os interrogatórios, os inquéritos, a fala
das testemunhas: a reconstituição do passado “tal como ele ocorreu” .
A partir de fatos concretos “vistos” por alguém, a partir da fala do
acusado, fonte de erros e falseamentos e que deve ser deles depurada,
buscar-se-ia chegar à “verdade”. Nesta perspectiva, que chamaremos
de jarídico-policial, os “antecedentes” ou a “história pregressa” são
utilizados para condenar ou inocentar, para fornecer elementos para o
julgamento, para incriminar.
Na perspectiva psicanalítica, deve ser ressaltado que a fala do
indivíduo é tomada enquanto tal, não se levando em conta se falseia ou
não a realidade dos fatos. No que se refere, por exemplo, aos aconte­
cimentos significativos da infância, pouca importância é dada à sua
ocorrência real ou fantasiosa. O mesmo pai pode ter sido percebido
por um dos seus filhos como severo e por outro como indulgente e
afetuoso. Os acontecimentos reais têm pois uma importância relativa
no que se refere à patologia mental. Fica preservado deste modo um
certo grau de liberdade do indivíduo com relação à influência que pos­
sam ter as vicissitudes da existência sobre sua personalidade. Feliz­
mente, nem todos adoecem psiquicamente devido a um mesmo fato
traumático real: o valor que este fato terá futuramente, na determina­
ção de uma neurose ou psicose, é dado não por características intrín­
secas ao mesmo, mas por sua tradução nos termos da realidade psí­
quica individual. Ou seja, os acontecimentos têm seu valor dado pela
maneira como o indivíduo os vê, de acordo com sua realidade interior.
De que forma é colhida a história individual no campo da técnica
psicanalítica? Ela vai sendo reconstituída na fala do cliente num tempo
que lhe é próprio. O que está em jogo é o livre desejo do cliente de falar, de
silenciar, de omitir um fato, de revelar outro. Esta liberdade com relação à
própria fala, no entanto, não se deve a razões éticas apenas: ela é condição
de possibilidade para que emeqa o inconsciente. Ou seja, que o indivíduo
possa comunicar livremente o que lhe vem à cabeça: esta é uma condição
metodológica indispensável, sem a qual está invalidada qualquer utilização

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da teoria e da técnica psicanalítiea. Embora ao psicanalista não esteja
vedado fazer perguntas, a reconstituição da história individual não é feita
através de respostas dadas a um interrogatório, mas a partir da associa­
ção livre. As distorções ou omissões são parte do material colhido, sendo
determinadas por desejos e motivações inconscientes; ao invés de se­
rem vistas como obstáculos, elas são um material valioso para se
atingir uma compreensão do psíquismo do sujeito.
Não se trata aqui de defender a correta utilização de qualquer
teoria psicológica no campo da justiça penal para elaboração de exa­
mes de personalidade, Nosso objetivo é deixar claro que existem di­
vergências fundamentais entre métodos e técnicas empregados, por
exemplo, na teoria psicanalítica, e aqueles empregados na feitura dos
EVCP que examinamos. Entretanto, também não podem ser entendi­
dos os referidos exames como correspondendo unicamente à pers­
pectiva médica ou à perspectiva jurídico-policial. Eles constituem uma
colagem mal feita de técnicas de várias origens: psicológicas, psica-
nalíticas, judiciais e policiais, que formarão um dispositivo de caracte­
rísticas próprias.
Uma vez posto em ação, a partir da lógica interna deste disposi­
tivo pode-se afirmar que se, por exemplo, um indivíduo teve uma
infância pobre e povoada de incidentes em suas relações familiares
(mortes de parentes próximos, separações de casais, vícios como
alcoolismo, privações financeiras), ele com certeza será um crimino­
so.
Um determinismo cego, mecânico e simplista é o que caracteri­
za estes laudos de exame. E este tipo de determinismo que permite
formular equações tais como: carências familiares na infância + misé­
ria = crime.
Estamos diante de uma concepção segundo a qual o indivíduo é
escravo absoluto dos fatos concretos de sua vida pregressa, não lhe
restando senão “cumprir seu destino criminoso” já determinado pelas
vicissitudes de sua vida familiar.
Tais afirmações pretendem, evidentemente, basear-se em teorias
científicas. Entretanto, se tomarmos a teoria psicanalítica e mesmo
outras teorias psicológicas, concluiremos que, partindo-se de fatos

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isolados acontecidos na vida de alguém, não podemos tirar conclu­
sões seguras sobre seus efeitos sobre a personalidade. Tomemos, por
exemplo, um fato geralmente aceito como traumático: a morte da mãe
de uma criança na primeira infância. Como um dado isolado, nem
mesmo este exemplo extremo nos autoriza a fazer previsões sobre o
futuro psicológico do indivíduo que tivesse sofrido esta perda. Há
crianças que encontram um substituto satisfatório e, embora viven-
ciando grande perda afetiva, esta não deixa marcas duradouras em
sua personalidade. Há certamente aqueles casos em que a vivência
provavelmente contribui para a eclosão de uma psicose ou neurose
grave. Por outro lado, há também psicóticos graves em cuja história
clínica não se encontram acontecimentos familiares deste tipo.
A teoria psicanalítica, assim como qualquer outra teoria psicoló­
gica que conheçamos, não nos autoriza a fazer previsões sobre o com­
portamento ou sobre a saúde ou a doença. Através da reconstrução do
passado, tal com ele ficou inscrito na memória e nas vivências peculiares
de alguém, pode-se lançar alguma luz sobre a natureza de seus confli­
tos atuais. A psicanálise é sempre retrospectiva. O passado para elucidar
o presente. E o futuro continua pertencendo a Deus...
O processo de reconstituição da história do condenado nos EVCP
poderia ser descrito como uma mirada em direção ao passado do indi­
víduo, buscando a confirmação de que realmente existiram aconteci­
mentos em sua vida que por sua própria natureza são geradores de
crime. Circula-se tautologicamente sobre este tipo de raciocínio: se
tenho diante de mim alguém que está preso e condenado, este alguém
só pode ser criminoso e, como criminoso, só pode ter história de
criminoso. A este passado se tem acesso pela fala do preso, mas esta
não é, por certo, uma via totalmente confiável: acredita-se que, certa­
mente, ele procurará enganar, falsear a “verdade”. Lança-se mão dos
autos do processo-crime, da ficha de comportamento carcerário, etc.
Com base nestes dados considerados inquestionáveis, chega-se ao
que se desejava: vidas pontilhadas de indícios que só poderiam mes­
mo levar ao crime. Supõe-se que, sem sombra de dúvida, o crime só
pode ser uma anormalidade psicológica. Ao se historiar a vida do indi­
víduo, o que se quer é encontrar os indícios desta anormalidade desde
a infância (abandonou a escola? seus pais não o criaram? já praticava

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pequenos furtos? egresso da Funabem?), passando pela vida no cár­
cere (cometeu muitas infrações disciplinares? tentou fugir?) e assim
por diante, atentando-se para uma trilha de oposições, de pequenos
atos de indisciplina.
Na verdade, a história pregressa é uma montagem, cuja finalida­
de é confirmar no indivíduo o rótulo de criminoso.'

2. F am ília: o modelo degradado


A idéia de que as relações estabelecidas na infância, pelo indiví­
duo, com seus familiares, é de fundamental importância na formação
da sua personalidade, é largamente aceita pelos chamados profissio­
nais de saúde mental, de várias tendências.
A psicanálise, aqui também suporte para tais idéias, tem sido ques­
tionada hoje a respeito de suas teorízações sobre o complexo de Édipo,
espécie de mini-drama familiar comum, à maioria dos seres humanos.
Até que ponto seria generalizável a ocorrência do drama edipiano? Não
será cie peculiar a um certo tipo de família, localizada numa determina­
da época histórica, num determinado segmento social?
De qualquer modo, mesmo que os psicanalistas afirmem tratar-
se de “imagens parentais internalizadas” e não de personagens concre­
tos, o fato é que o modelo edipiano mais difundido é aquele que pres­
supõe a existência de uma família baseada na autoridade paterna e
composta de pai, mãe e filhos.
É a difusão deste modelo edipiano, talvez em desácordo, dirão
alguns, com a teoria “pura”, que permitirá a nossos psicólogos e psi­
quiatras forenses caracterizarem como potencialmente criminogênicas
e patogênicas situações do tipo:
* Famílias onde ocorreu a morte do pai ou o abandono precoce
por parte deste.
* Famílias onde o pai bebe, está preso ou doente.
• Famílias onde a mãe cria o filho sem o pai, ou onde a mãe tem
filhos de homens diferentes.
• Famílias onde a mãe está ausente, mesmo que seja por ter que
trabalhar.

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• Famílias onde a mãe bebe, está presa, é prostituta, etc.
Podem ser encontradas nos EVCP interpretações como “ausên­
cia da figura do pai” gerando conflitos de personalidade variados; ca­
rências afetivas gerando mecanismos de compensação que podem in­
duzir, por exemplo, à prática do roubo; identificações anômalas com
figuras parentais “não recomendáveis” ; bêbados, prostitutas, etc.. etc.
Mas o principal eixo interpretativo é aquele que reconhece no preso as
chamadas “carências infantis” , confundindo num só bloco carências
afetivas e carências materiais. Um sem-número de situações são apon­
tadas como geradoras deste tipo de carências e, quando, tentamos
listá-las, concluímos que qualquer acontecimento familiar pode ser
tomado como causa: morte de genitores, separações, brigas de mari­
do e mulher, traições, vícios e até mudanças freqüente de domicílio. O
fato de a mãe ter que trabalhar fora e deixar o filho sob os cuidados de
outrem, o fato de o pai ter que se ausentar do lar por longos períodos
devido ao trabalho, todos estes incidentes podem ser daninhos à per­
sonalidade da criança, segundo nossos peritos.
Ora, sabemos que a mobilidade ou a falta de estabilidade dos
laços familiares é uma característica das chamadas populações de baixa
renda; as uniões sexuais são efêmeras, os filhos ditos “ilegítimos”
proliferam. As mortes, tanto de genitores quanto das crianças, são
precoces e freqüentes em razão da miséria (a expectativa de vida é de
fato menor), as condições de trabalho e a extrema exploração levam a
que os pais se ausentem de casa por longos períodos.
Ter que deixar os filhos aos cuidados de outras pessoas para
poder trabalhar, freqüentemente pela semana inteira, é seguramente a
realidade da maioria das mulheres deste segmento social.
E logo nos damos conta de que todos os graves indícios de anor­
malidade mental ou de tendência a delinqüir encontrados na história
familiar dos indivíduos examinados fazem parte da realidade mais co­
mum e cotidiana vivida pela camada da população a que pertencem.
Ou seja, as condições de miséria geradas pela própria exploração capi­
talista recebem uma leitura estigmatizante, que é utilizada na constru­
ção da personalidade criminosa. Entretanto, o que é tomado por nos­
sos peritos como “anormalidade” constitui, na verdade, a regra, o re­

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sultado mesmo das condições a que são submetidos imensos setores
da população brasileira,
Nunca se pensa, por outro lado, que estas mesmas condições pos­
sam gerar fenômenos positivos, ou seja, formas diversas de organização
familiar, valores diversos dos das classes dominantes, colocando-os em
questão. Nenhuma palavra, 6 claro, sobre a luta de classes. Todas as
atenções estão voltadas para detectar carências; fenômenos de falta e
deterioração e nunca de contradição e diversidade.
O modelo fam iliar a partir do qual se mede a deterioração e a
transgressão de valores é o da fam ília conjugal. No entanto, nas
classes populares, parece haver formas de organização fam iliar de
tipo bastante diverso. Enquanto nos segmentos médio e alto da
sociedade a unidade fam iliar com posta de pai, mãe e filhos preva­
lece, nas populações econom icamente carentes as famílias se cons­
tituem em grupamentos maiores. Segundo dados do Departamento
do Sistem a Penitenciário do Rio de Janeiro, 59,13% dos presos
ingressos no sistema penitenciário em 1984 residiam com “a fam í­
lia de origem e a família constituída”4, configurando um grupamento
familiar composto também de sogro, sogra, cunhados, sobrinhos, etc.,
além de pai, mãe e filhos.
A partir do modelo conjugal e do referencial teórico edipiano, no
entanto, estes grupamentos familiares extensos são vistos freqüen­
temente como formas de anomalia familiar, como possível foco de
patologias. São pensados a partir das categorias como “promiscuida­
de”, “simbiose”, etc., são tomados como o famoso “caldo de cultura”
dentro do qual é gerado o micróbio do crime.
A partir de outro ponto de vista, poderíamos perceber esta forma
de organização familiar como ligada a pelo menos duas causas:
1. Estratégia de sobrevivência para estas populações, que desta
forma dividem entre si o custo da moradia, luz, gás, etc., bem como a
alimentação, trabalho doméstico e cuidados com os filhos.

4 Anuário Estatístico do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de


Janeiro, 1984.

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2. Presença de valores morais e formas de organização familiar
diversos daqueles das classes dominantes.
Estes dois enfoques não são excludentes, mas complementares.
De fato, numa casa onde dormem no mesmo cômodo pai, mãe, filhos,
como é freqüente nas classes populares, pratica-se por certo outras
maneiras de se relacionar com o corpo. Quantas situações e proble­
mas levantados pela psicanálise teriam que ser repensados neste con­
texto: a nudez dos pais e a tão falada “cena primária”, a informação
sexual das crianças, etc.
Esta é por certo uma questão complexa. Por um lado, é verdade
que a dominação cultural exercida pelas elites generaliza ou busca ge­
neralizar por toda a sociedade determinados padrões de moralidade e
de comportamento sexual. Porém, é verdade também que há outras
formas de comportamento sexual, de relacionamento familiar, pratica­
das na sociedade, ensejando idéias e preceitos morais diversos daque­
les difundidos pelas classes dominantes, através dc seus dispositivos
de controle social. Desse modo, podemos imaginar um sem-número
de situações que apontariam para a existência de uma moral diversa
daquela das classes dominantes, que, no entanto, será sistematica­
mente reprimida por esta, no sentido de manter sua hegemonia cultu­
ral, também neste campo, o da moral sexual5.
Ora, o discurso psicológico contido em nossos laudos claramen­
te opta pela defesa dos valores morais das elites. Lá onde seria possí­
vel ver diferentes formas de organização familiar, atenta-se para a exis­
tência de promiscuidade, de transgressão à norma. E curiosamente
este tipo de visão leva nossos peritos a considerar como anomalia e
tendência criminosa tudo aquilo que se constitui como característica
de nossas populações pobres. Ao agirem deste modo, acreditam estar,
no entanto, desvendando as causas desta grande anomalia que para
eles constitui o fenômeno do crime.

3. Guitura, subcultura ou ausência de cultura?


' Adquirindo uma feição sociológica, os laudos do EVCP relacio­
nam também a cultura do preso com o ato criminoso que cometeu.

5 Jos van Ussel. Repressão sexual. Rio de Janeiro, Campus, 1990, p. 57.
Assim, aparecem concepções de deterioração cultural, desvirtuamen-
to ou até mesmo de estados de “incultura” que levariam à produção do
fenômeno crime, Se o detento é um favelado, se provém do meio
rural, se foi criado numa instituição para menores infratores, todos
estes antecedentes.podem levar a este tipo de interpretação.
Em alguns casos, as concepções mostram-se de tal forrna auto­
ritárias e eugênicas que dispensariam uma crítica mais profunda. Evi­
dentemente, a caracterização de determinada manifestação cultural como
“subcultura” visa claramente a enaltecer e confirmar a cultura e os
valores das elites dominantes. Tal como o colonizador inglês, que olhava
as “curiosas” manifestações culturais de seus súditos africanos e hindus
com altiva superioridade, assim se comportam nossos peritos ao con­
siderarem como “subcultura” o morro carioca ou o interior do Brasil.
Além disso, toda cultura é suficiente para formação de um indivíduo,
não importando quão bizarra ela pareça ao observador. A estranheza
experimentada por quem observa decorre do choque entre a sua pró­
pria cultura e aquela que tem diante de si.
Digno de nota é o caso dos detentos que na infância estiveram ,
reclusos em algum tipo de patronato, instituição de reeducação, etc.
Neste caso costumam ser considerados “à margem” ou fora da cultu­
ra (a cultura das elites), o que levaria a um desconhecimento dos
valores da mesma. Esquece-se (sintomaticamente) que nestas insti­
tuições, como nas prisões, não se está fora da sociedade, apesar dos
muros. Em seu interior encontram-se reproduzidos os mesmos valo­
res e preconceitos “de fora”, tornando-se a distinção dentro/fora um
falso problema. Os egressos de instituição de menores que, quando
adultos, caem nas malhas da prisão, fornecem com suas tristes vidas
exemplos de como toda a engrenagem supostamente “recuperadora e
reeducativa”, na verdade, cria para o sujeito uma carreira, a de crimi­
noso crônico. Com suas histórias pessoais peculiares, suas infâncias
atípicas se comparadas às de crianças de classe média, estas crianças
por certo adquirem valores também peculiares e diversos destas. Para
um ser humano, entretanto, um fato impensável e paradoxal seria não
participar de uma cultura ou não ter uma cultura. A não ser que se
queira retornar às concepções lombrosianas de atavismo, degenera­
ção e de aproximação do criminoso ao animal.

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Cabe aqui uma reflexão sobre a questão política que permeia a
questão cultural6. É certo que existem diferenças culturais entre os
vários segmentos na sociedade, entretanto a idéia de diferença deve
ser acoplada à idéia de contradição. É verdade também que “as idéias
dominantes de uma época são as idéias da classe dominante”7, assim
a cultura da classe dominante é efetivamente hegemônica em relação
às demais classes. Por outro lado, os segmentos “dominados” da so­
ciedade não sofrem apenas passivamente a dominação. Da mesma
forma, sua produção cultural entra em contradição com as formas
culturais das elites, havendo áreas ou segmentos onde esta dominação
não consegue se efetivar. Ora, o discurso que permeia os laudos exa­
minados localiza acertadamente a existência de diferenças culturais,
mas entende-as como desvio relativamente a um padrão básico, que é
a cultura das elites. Não há enfrentamentos, não há luta, não se vê
qualquer caráter positivo na diferença cultural. A violência entre as
classes, inequivocamente expressa em muitos crimes, é escamoteada
ou aparece desqualificada como produto patológico, negativo.
Mas, vejamos que soluções são apontadas nos laudos para esta
diversificação cultural, tão nefasta, por ser a geradora de criminalidade.
Trata-se de um processo que poderíamos chamar de exercício de
dominação cultural “à força” . Encarcere-se este desaculturado!... A
prisão seria uma espécie de nivelador cultural compulsório, atuando
através da disciplina, do trabalho, do aprendizado da obediência à lei,
etc. Nestes locais de subcultura (o morro, as favelas, o sertão), impe­
rariam outras leis ou nenhuma lei: far-se-ia necessário que o crimino­
so aprendesse as “nossas leis”, por bem ou por mal. ^
O que podemos facilmente verificar é que também os exames de
cessação de periculosidade compartilham da ideologia posta em ação
desde a fase policial (no reconhecimento do crime e do criminoso) até
a fase judicial: pune-se e julga-se muito mais um indivíduo em função
de sua classe social do que em função de seu crime. Segundo tal

6 Marilena Chaui. “Cultura do povo e autoritarismo das elites”, in Cultura


e democracia, São Paulo, Moderna, 1981.
7 Karl Marx e Frederico Engels. La ideologia ale mana. Buenos Aires,
Pueblos Unidos, 1973, p.50.

97
concepção, quem é o criminoso? Alguém pobre, negro, favelado, anal­
fabeto, rude e não tanto alguém que matou ou furtou, simplesmente8.
O que os laudos fazem é reproduzir o estigma do criminoso,
detectando carências familiares, subculturas, descontroles afetivos,
todos eles localizados nos segmentos mais pobres da população.

4. Funcionários do cárcere
Uma instituição n ã o é algo abstrato que paira ac im a das cabeças
daqueles que nela trabalham. Ela se reproduz c o tid ia n a m e n te n as dife­
rentes tarefas que a constituem. É assim que, cada qual a seu modo,
do guarda ao diretor do presídio, do psicólogo ao psiquiatra ou a s s is ­
tente social, todos se encontram envolvidos na tarefa última e mais
importante que é a colocação em marcha da engrenagem carcerária.
É assim que muitas afirmações contidas nos laudos examinados só
g a n h a rã o sentido se a s compreendermos enquanto evidência d e s ta
condição primordial do técnico, que, a n te s de estar compromissado
c o m p o s s ív e is id e a is d e su a p ro fis s ã o ou q u a isq u e r o u tro s, é um fu n ­
c io n á rio do c á rc e re . T o m e m o s inicialmente a p ró p ria situ a ç ã o de exa­
me que se estabelece entre um técnico e um preso. Se se tra ta s s e de
um outro contexto, o de um consultório, clínica psicológica ou psi­
quiátrica, o técnico teria como requisito básico de sua tarefa de ex a-.
minador a criação de uma atmosfera de confiança e amistosidade,
sem a qual os resultados poderiam até ser prejudicados. Vejamos o
que dizem a esse respeito os manuais de testes psicológicos, usados
com freqüência neste campo:
Especialmente importante es la llamada preparación psicológi­
ca... en todos los casos se procurará establecer un buen contacto...
debe existir una atmosfera de confianza y muy particularmente en
pacientes angustiados y temerosos9.
Ora, a situação em que se realizam exames tais como o exame
criminológico desfavorece, por si só, o estabelecimento da chamada

8 Augusto Thompson. Quem são os criminosos? Rio, Achiamé, 1983, p. 63.


9 Ewald Bohn. Manual dei psicodiagnóstico de Rorschach. Madri, Morata,
1971, p. 26.

98
"relação de confiança”. As relações estabelecidas numa instituição to­
tal entre aqueles que estão a ela submetidos e as diversas categorias
funcionais que compõem a instituição estão marcadas, de imediato,
por um desequilíbrio de poder, por uma situação de controle e opres­
são exercida pelo funcionário (técnico ou guarda) sobre o preso, que
se estabelece até mesmo independente de sua vontade. Esta situação,
que poderia ser simplificadamente descrita como uma condição fun­
damental entre os que “têm a chave” da cadeia e os que não a têm,
está presente na situação de exame.
É estabelecida uma polarização na qual um dos pólos é ocupado
por alguém que deve ser submetido e outro por alguém que deve
propiciar condições para a efetivação dos controles institucionais que
se atualizam cotidianamente.
A situação de exame é, para o preso, antes de simples oportunidade
de introspecção ou auto-conhecimento, uma situação que tem repercus­
sões palpáveis sobre a sua vida futura. Se os resultados lhe forem favorá­
veis, suas chances de passagem do regime fechado para o regime aberto
aumentam, poderá obter livramento condicional, etc. Caso contrário, seu
tempo de reclusão se prolonga, seu direito a benefícios se restringe. E, na
prática, uma situação de julgamento revestida de uma peculiaridade; sua
aptidão para o reingresso na sociedade é determinada por critérios e mé­
todos, que lhe são desconhecidos e inacessíveis, pois se referem, em
tese, a dados fornecidos independente de sua vontade, já que por defini­
ção seriam inacessíveis ao próprio sujeito, inconscientes, subjetivos, etc.
No cárcere, o emprego da noção de inconsciente tem desdobramentos
bastante peculiares: o examinador é capaz de saber coisas sobre seo exa­
minado, mesmo que este não as confesse. A veracidade ou a razão de ser
dos dados obtidos deste modo é caucionada pela existência de um saber
científico. Como se sabe, um não em psicanálise pode ser entendido
como um sim, uma discordância como mera resistência. Está montado
um sistema eficiente e imbatível na construção da personalidade crimino­
sa, ao mesmo tempo a partir e contra a fala do preso.
Com relação à ética profissional, também descobriremos inte­
ressantes questões relativas à atuação dos técnicos na prisão. Veja­
mos, por exemplo, o que reza a respeito do sigilo profissional o Códi­
go de Ética do Psicólogo:

99
Art. 24 - Somente o examinando e a critério do psicólogo pode­
rá ser informado dos resultados dos exames.
Art. 25 - Se o atendimento for realizado a pedido de outrem, só
poderão ser dadas as informações a quem o solicitou dentro
dos limites do estritamente necessário e com a anuência do exa­
minando.
§ I o - É vedado ao psicólogo remeter informações confiden­
ciais a pessoas ou entidades que não estejam obrigadas a sigilo
por código de ética ou que, por qualquer forma, permitam a
estranhos o acesso às informações.
§ 2o —Nos casos de laudo pericial, o psicólogo deverá tomar
todas as precauções a fim de que, servindo à autoridade que o
designou, não venha a expor indevida e desnecessariamente seu
examinando.
Numa situação de exame estabeleciu.'i no i'>fei sorde uma institui­
ção carcerária, '.jf.ul.v'tente os resultados mt ,mos, alguns deles
supostamente , >cl< >es “dos mais ínLm.f *>>.*■ ndiíos da persona­
lidade”, não serão matéria privativa do técnico e de seu examinando. Ao
contrário, poderão ser veiculados no interior de equipes interdisciplinares,
das quais participam inclusive elementos da segurança do estabelecimen­
to. Serão remetidos ao juiz solicitante ou a outras autoridades judiciárias.
Freqüentemente o examinado será o último a saber (ou não saberá) dos
resultados do processo a que se submeteu. Quanto a consultá-lo sobre
que informações desej a ver transmitidas, nem pensar...
E todos dirão que, obviamente, tais restrições à liberdade indivi­
dual, tais “arranhões” à ética profissional, decorrem da condição de
“condenado” do cliente em questão. Todos se apoiarão na idéia de que,
se agem de modo diverso do que reza o código de ética ou a consciên­
cia profissional, assim o fazem apenas em cumprimento à lei.
A relação entre o técnico e seu cliente, no entanto, não pode
deixar de ser marcada por este estado de coisas: de um lado um “téc­
nico” desobrigado do sigilo, com um instrumental que o preso sabe
ser capaz de decidir seu futuro e cujo funcionamento escapa à sua
compreensão, e de outro o preso, o infrator das leis, o condenado, a
quem cabe um papel apenas passivo e sem quaisquer direitos.

100
Ora, nesta relação surgirá um fenômeno interessante, referido
nos laudos. O da dúvida sempre cruel com que se debatem os técni­
cos: estará o preso dizendo a verdade? estarei diante de uma farsa ou
simulação? Por isso os laudos irão conferir significativo valor à atitu­
de do entrevistado: se colaborou, se não colaborou, se exibiu atitude
subserviente ou se, pelo contrário, procurava desafiar a autoridade do
examinador; se procurava impressionar de modo forçado, se dava
mostras de convicção, etc.
A nosso ver, a situação que se estabelece entre o técnico e o seu
examinando não pode ser outra senão a de um confronto de duas
forças em luta. O preso luta com as armas de que dispõe: jamais dirá
algo que perceba como comprometedor, procurará agradar, impressio­
nar bem. A simulação é a arma por vezes falha de que ele dispõe
contra o desmesurado poder de seu examinador.
Nos pareceres favoráveis, geratmente houve colaboração do in­
terno com o perito; ora, este colahoracionismo deve ser entendido em
seu sentido político-institucional. E, por outro lado, a não-colabora-
ção, ou a falsa colaboração, tendo como conseqüência um mau resul­
tado, evidencia o lugar do “funcionário do cárcere” neste confronto.
A defesa e a manutenção da ordem institucional é o princípio a
partir do qual é interpretado o comportamento do preso na situação do
exame. As tentativas de oposição, as manifestações de indisciplina são
vistas como indícios de não recuperação ou de distúrbio mental. A
colaboração, o respeito às normas e à hierarquia institucional, sim,
constituem sinais de normalidade e regeneração.
Uma solução parcial é encontrada no que diz respeito a saber se
o paciente diz ou não a verdade: a referência aos autos do processo.
Se a versão do preso é compatível com a dos autos, é sinal de que ele
diz a verdade. Caso contrário, “está se defendendo” (no sentido psi­
cológico) ou não está suficientemente arrependido (o que provavel­
mente implicará um resultado desfavorável).
A verdade é a verdade da instituição, é a ela que o preso deve se
adequar. A Justiça, na visão do perito, nunca falha. A fala do detento
deve ser a fala dos autos. Deve amoldar-se a ela, submeter-se a ela.

101
Mais espantosa se toma a idéia de se tomar o conteúdo dos autos
como expressão da verdade, quanto pensamos sobre as condições em
que muitas vezes terão sido julgados estes condenados: provas duvidosas
ou falsas obtidas até mediante tortura, ausência de defensor, etc. Segun­
do Augusto Thompson, “a grande maioria dos pobres é julgada sem defe­
sa, ou, o que dá no mesmo, com um simulacro de defesa” 10.
Mais realistas do que o rei, nossos peritos se conduzem corno se
de fato a justiça fosse “cega” e descompromissada. Evidencia-se, pela
leitura dos laudos de exame, a crença numa Justiça imparcial, acima
das classes, uma espécie de regulador apolítico da ordem social. Tal
crença eqüivale também a uma despolitização do próprio papel do téc­
nico, que dessa maneira atua em continuidade com o Judiciário, exer­
cendo dominação e controle sobre as populações pobres.

5. O tratamento penitenciário
Os antigos EVCP propunham-se teoricamente a avaliar os efeitos
do que se convencionou chamar “tratamento p e n ite n c iá rio ” . E n e ste
p o n to ta m b é m o c o n te ú d o d o s la u d o s q u e e x a m in a m o s e v id e n c io u o
grau de compromisso dos técnicos com a instituição carcerária. Aparece,
curiosamente, uma visão segundo a qual se crê na eficácia da prisão, nos
resultados positivos que ela pode proporcionar ao indivíduo.
A prisão é freqüentemente descrita como o lugar onde vai se operar
uma transformação na personalidade do preso. Assim, ela teria como
virtude possibilitar a reflexão, a introspecção, o arrependimento. Pela dis­
ciplina ela possibilitaria a intemalização da lei, a aquisição de valores mo­
rais, substituindo um estado de incultura ou uma subcultura por uma
cultura caracterizada pelo respeito à lei e à ordem. A pena-prisão, segun­
do opiniões expressas nos laudos, é, enfim, regeneradora.
Na construção desta imagem da prisão enquanto espaço terapêutico
aparece com insistência a referência ao trabalho. A prisão seria uma espé­
cie de oficina-escola onde os presos poderiam curar-se do mal da ociosi­
dade, admitido como fator que induz ao crime. Uma vida de trabalho e
disciplina é, no entanto, apenas uma exceção ou uma virtualidade nas

10 Augusto Thompson, op. cit., p. 96.

102
prisões. O trabalho prisional atende, além disso, a muitos interesses para
além da “recuperação” do preso. No cárcere tudo se converte em um
bem negociável e isto também ocorre com as oportunidades de trabalho.
Muitas vezes uma ocupação é o prêmio por uma cagüetagem, a oportuni­
dade de estar mais próximo da administração e com isso obter certas'
vantagens, como o acesso mais fácil ao mundo lá fora, uma classificação
melhor de comportamento, proteção contra os inimigos na cadeia, ali­
mentação melhor, etc.
Além disso, o trabalho nas prisões brasileiras chega a ser um privi­
légio: segundo dados do Desipe11, aproximadamente apenas 20% da po­
pulação carcerária trabalha. Se atentarmos, porém, para a natureza do
trabalho, concluiremos que 90% da mão-de-obra estão empregados em
atividades de manutenção do próprio sistema, ou seja, cozinheiros, bom­
beiros, eletricistas, pintores, faxineiros que trabalham na manutenção da
cadeia ou até funcionários burocráticos, em substituição a funcionários
inexistentes.
O preso que trabalha geralmente é aquele que cumpre a menor pena,
mais confiável e menos perigoso do ponto de vista da administração. O
trabalho prisional atende a uma necessidade da instituição, tanto material
(suprir o trabalho de muitos funcionários que seriam onerosos para o
Estado) quanto de segurança. O preso que trabalha pode ser usado como
um aliado na instituição: em determinadas ocasiões, o “faxina” (designa­
ção do preso que trabalha, na gíria carcerária) é geralmente escolhido por
suas características colaboracionistas, Há também aqueles que trabalham
em favor de seus companheiros como assistentes jurídicos, escrevendo
cartas para osxjue não sabem escrever, etc. Mas o que queremos ressal­
tar é que o trabalho é algo a ser compreendido no jogo das múltiplas
forças institucionais: a possibilidade de trabalhar é vista pelo preso como
um privilégio, em virtude dos benefícios secundários que acarreta. Além
disso, ela é um imperativo, do ponto de vista da preservação da sanidade
mental, para alguém mantido em confínamento por longos anos.
Este talvez seja o único “lucro” do preso que trabalha: a preservação
de sua saúde psíquica. Fora este aspecto, lucra sempre a instituição, reali­

11 Anuário Estatístico do Desipe, 1984.

103
zando um ideal antigo do capitalismo; o trabalhador barato, servil, que
deseja apenas trabalhar, exigindo muito pouco.
Assim, o fato de um preso trabalhar no cárcere diz pouco sobre
suas possibilidades de reinserção social e muito sobre sua situaçãcrno
jogo de poder institucional. Não trabalhar pode significar, por outro
lado, apenas não ter tido acesso a este privilégio. Novamente neste
ponto manifesta-se o compromisso dos técnicos do “sistema” com a
criação de uma imagem “de fachada” da prisão, quando consideram
que quem trabalha está dando mostras de recuperação, por exemplo.
A crença na eficácia do chamado tratamento penitenciário é algo
que dificilmente poderá ser compartilhado por teóricos ou mesmo
autoridades na área. Tem sido exaustivamente demonstrado que a pri­
são, ao contrário de qualquer efeito recuperador sobre o delinqüente,
parece ter sempre como subproduto indesejável a reincidência e a
preparação para uma e a n e ;ra de criminoso c*vn<eo da qual é quase
impossível escapar. •
Isolado de seus laçoa familiares, ao indivíduo preuo só resta es­
tabelecer novos laços com possíveis futuros cúmplices. Estigmatiza­
do como ex-presidiário, freqüentemente retorna ao mundo extra-mu­
ros sem esclarecimentos ou orientação sobre os documentos de que
necessita, ou sobre como conseguir emprego. É presa fácil da polícia
num país de desempregados, onde estar sem trabalho era considerado
até há pouco tempo como crime (“vadiagem”) e onde ter estado no
cárcere significa ter uma ficha “suja”.
Tudo se passa como se ajarisão produzisse exatamente o con­
trário daquilo que seria sua missão primordial, como se ao invés de
curar o criminoso ela agravasse o seu mal. Este fracasso da prisão
tem sido exaustivamente admitido até mesmo por autoridades do sis­
tema penitenciário, policiais, autoridades judiciárias. As críticas e ten­
tativas reformadoras são tão antigas quanto a própria prisão. E, no
entanto, sua realidade quase imutável tem desafiado todas elas como
se delas zombasse.
E se, aceitando a proposta de Foucault12, invertêssemos a or­

12 Michel Foucault. Vigiar e punir, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 243-7.

104
dem lógica de nossa análise e ao invés de fracasso (um fenômeno
negativo) enxergássemos um fenômeno positivo, ou seja, entendêsse­
mos que o fracasso da prisão tem uma utilidade? Pois cie se liga a uma
de suas funções políticas, que é a “produção da delinqüência’',
Não que haja um interesse direto, personi ficatU’ num uoa u n o ou
autoridade determinada na produção de um fenômeno que. em última
análise, seria contra seus próprios interesses. O que a prisão tem como
função reproduzir, enquanto sistema, são estigmas sociais que permi­
tem confundir crime e pobreza, colocando sob suspeição e vigilância
permanente parcelas despossuídas da população.
Através da produção destes estigmas, o crime pode aparecer
como produto de uma individualidade especial, selvagem, animal, ca­
rente afetiva e materialmente, sem cultura, etc. O criminoso seria um
anormal, quase sempre doeníe. Slii mal seria, no entanto, incurável,
já une unoin i icpetidas vezes ã prisão. Despoíiliza-se desfe modo a
questão do s' m i " , pois em úliiina nnáíne o que sc qu * r -'pagar são os
parente a', s «u mesmo com as revoltas popuiaies, com as ruttas
formas de ilegalidade que configuram oposição ao listado burguês e
suas instituições. São os parentescos do criminoso “comum” com o
chamado criminoso “político”, ou, o que seria mais terrível, com o
homem comum, que, embora vivendo as mesmas condições de ex­
ploração, talvez não tenha tido coragem ou força para se revoltar.
Apesar de tudo isto, o perito encontra razões para afirmar a efi­
cácia da prisão em seus pareceres - em algum nível o sistema carcerário
precisa desta imagem de eficácia para que se mantenha em funciona­
mento. O técnico é, pois, o funcionário encarregado de fabricar este
sonho: o da eficácia da prisão em fazer de um criminoso um homem
de bem. A fabricação desta imagem da prisão eficaz aparece aqui
como uma das funções do técnico enquanto funcionário da instituição
carcerária. Uma função complementar às funções carcerárias mais
ligadas à repressão propriamente dita. A função dos sempre fracassa­
dos projetos de reforma prisional é também esta, perante a opinião
pública “mais esclarecida” ou perante a boa consciência dos psicólo­
gos, psiquiatras, etc. É como se dissessem: na prisão, trata-se de
reprimir, mas estamos fazendo o possível para fazer alguma outra
coisa mais digna, mais edificante: tratar, recuperar, etc. M isteriosa­

105
mente, sempre fracassamos e acabamos encarcerando simplesmente.
Mas fazemos o possível...
Tal necessidade de mascarar a violência exercida pelo Judiciário,
pelo Estado em última análise, articula-se com uma estratégia política
mais ampla; nas sociedades capitalistas modernas os mecanismos re­
pressivos são mais e mais substituídos por mecanismos de controle
internalizados pelos indivíduos. Os controles institucionais podem ser
menos violentos e mais sutis, pois agem sobre o indivíduo previamen­
te disciplinarizado, desde a família, a escola, etc.
Que dizer sobre os efeitos da experiência carcerária sobre o indi­
víduo que a sofre? Sabemos que uma vida exemplar no cárcere pode
apenas significar adequação às normas disciplinares, nada tendo a ver
com a saúde psíquica que certamente seria necessária para que um
indivíduo pudesse, à saída da prisão, reorganizar sua vida, vencer o
estigma do criminoso e do ex-presidiário, arrumar um emprego, “re­
generar-se” enfim.
G offm an13 denomina ‘‘mortificação do eu” a conseqüência
psicológica da permanência em instituições totais, aquelas instituições
onde estão presentes as formas mais acabadas de controle sobre os
indivíduos. Nestas instituições a intimidade, a privacidade são siste­
maticamente violadas em razão dos objetivos institucionais, através,
por exemplo, da censura da correspondência, da impossibilidade de o
indivíduo ter padrões pessoais de conduta (os horários e locais de
refeições, de dormir, acordar, por exemplo, são coletivos). Restam ao
indivíduo poucas possibilidades para manifestação do seu eu (que é
algo não uniformizável), o que não se dá sem uma conseqüência so­
bre a personalidade, a “mortificação do eu”.
E no caso da prisão, qual será o preso cujo eu está morto? É justa­
mente o preso bem comportado. É aquele preso que nada mais sabe fazer
do que obedecer e perpetuar a rotina do cárcere. E aquele preso que
reúne em si a contradição de ser um ótimo preso, imprestável, porém
para a vida extra-muros, onde teria novamente que lutar por si próprio,
algo que há muito desaprendeu.

13 Erving Goffman. Manicômio, prisões e conventos. São Paulo, Perspec­


tiva, 1974.

106
Felizmente, nem todos os indivíduos se submetem à disciplina
carcerária, tomando-se mortos-vivos, autômatos que apenas cum­
prem ordens,
Apesar de toda a pressão institucional em contrário, existem for­
mas infinitas de resistência individual e coletiva, que podem ser vistas
como formas de preservação da vida, ou, se quisermos chamar assim,
da saúde psíquica.
Seria de se esperar que todos os profissionais envolvidos com a
promoção da chamada saúde mental encontrassem meios de solidarizar-
se com estas manifestações, ou, ao menos, de não atuarem contra elas,
superando sua condição de “funcionários do cárcere” e, como tais, en­
volvidos na reprodução e atualização de seus mecanismos mortificadores.

6. Conclusão
Gostaria de encerrar convidando os leitores a uma reflexão a partir
desta espécie de “colagem” que fizemos co m nosso material de análise,
agrupando trechos cie laudos de EVCP segundo sua relação co m os te­
mas tratados nos capítulos. Uma tentação que logo se apodera de psicó­
logos, psiquiatras, assistentes sociais, etc., ante a leitura deste material, é
pensar: ora, mas estes são exemplos de mau uso da ciência, ou de erros,
deficiências conceituais ou de formação, etc. Eu não faria isso... A meu
ver, não se trata aqui de apontar erros deste tipo, o que reduziria nosso
trabalho a mero inventário crítico. Trata-se sim de restabelecer as cone­
xões entre nossas tão “humanas” ciências e os mecanismos de controle,
mortificação, sujeição dos indivíduos. As conexões existem. Com a pala­
vra, os laudos.

I, A história individual: o passado condena


A reconstituição da história é uma montagem, cuja finalidade é con­
firmar no indivíduo o rótulo de criminoso...
“Totalmente abandonado pelos familiares... aos 15 anos inicia-se na
prostituição... mantém uma conduta uniforme desde a infância*, mos­
trando-se pessoa de fácil sugestibilidade com tendências à delinqüência”
(EVCP 270-1972).

' Os grifos são meus.

107
“A personalidade rude do interno atribuímos ao ambiente agrí­
cola em que se criou, local onde desde cedo as crianças habituam-se
ao' trabalho, não sobrando tempo para folguedos, Não teve tempo
para uma vida afetiva pois ainda menor conheceu as celas do presídio
policial” (EYCP 24-1968).
“Algumas passagens por instituições governamentais para onde
era levada por estar totalmente desamparada e pela prática de atos
anti-sociais repetidos... nas três vezes em que esteve na Funabem
sempre se destacou por atos anti-sociais... comportamento irregular,
desobediências, tentativas ou pseudo-tentativas de suicídio, agressões,
sempre que era mandada para ura lar substituto fugia... gosta de liber­
dade e não suporta receber ordens de ninguém...” (EVCP 208-1971).

2. Família: o modelo degradado


As carências e vícissitudes da vida familiar são relacionadas ao
crime, num determinismo cego...
“Os filhos de casais desarmônicos geralmente sofrem ue carên­
cia afetiva devido a serem a válvula de escape dos país... este desejo
de retaliação pelas perdas sofridas agia no interno como móvel de
suas ações...” (EVCP 45-1969).
“A história psico-evolutiva mostra que o periciado teve urna for­
mação de personalidade com carência de um lar onde pudesse introjetar
os costumes da sociedade. Teve um pai irresponsável que maltratava
os filhos e a esposa. Isto incutiu-lhe a revolta contra a autoridade, pois
em nossa sociedade é a figura paterna o primeiro exemplo de autori­
dade. As carências afetivas por que passou desenvolveram-lhe propó­
sitos de retaliação, o que motivou sua impulsão a apropriar-se dos
bens alheios...” (EVCP 70-1969).
“O interno formou sua personalidade num ambiente carente de
pai e mãe... a presença de pai e mãe é importante para um jovem que
se desenvolve... outro fator foi o fato de seus pais terem constituído
novas famílias. A vivência de rejeição deve ter sido intensíssima...
Sua queda na vida delinqüencial pode estar ligada ao desejo de atrair a
atenção dos pais para si... com sua vinda para o cárcere mobilizou a
atenção dos pais” (EVCP 39-1968).

108
“O perieiado teve uma infância muito atribulada, precisando cons­
tantemente mudar de cidade... é comum sofrer a criança com as m i­
grações de sua família: a mudança de ambiente, os gastos econômi­
cos produzem períodos de desadaptação na família... É evidente o
ambiente de insegurança em que formou sua personalidade, sendo
fácil presa da contravenção e do crime” (EVCP 52-1969).

3. Cultura, subcultura ou ausência de cultura?


Ás favelas, o interior agrícola, o sertão nordestino podem ser
vistos como o “caldo da cultura” gerador do crime. As diferenças e
peculiaridades culturais são vistas como sinal de inferioridade, anor­
malidade...
“Trata-se de pessoa pobre globalmente... era matutão e muitas
desavenças deve realmente ter criado antes de vir preso e àquela altura
já devia ter absorvido boa parte da subcultura emanada do morro ca­
rioca. As condições sociais eram as piores possíveis. Esta equação
termina em ilícitos penais, é claro” (EVCP 20 3 -! £>71).
“Os anos de cárcere, o confronto com a Justiça lhe mostraram
que a sociedade tem outro padrão de masculinidade, diferente daquele
que aprendeu no ambiente da fa vela ’" (EVCP 26-1968).
“Ao trocar a vida da roça pela vida da grande cidade, perdeu as
possibilidades de controlar sua agressividade, que até então utilizava
nos rudes misteres de lavrar a. terra" (EVCP 1-1968).

4. Funcionários do cárcere
As atitudes do preso, de colaboração ou de oposição, de rebeldia
ou subserviência, são determinantes para os resultados dos exames.
Admitir como verdadeira a versão dos autos pode contar pontos a
favor...
“A apresentação displicente, esparrama-se sobre a cadeira em
que o convidamos a sentar. Gestos e trejeitos acompanham as respos­
tas do perieiado. Tom de voz firme, rápido no fluir, erros gramaticais
em abundância, predomínio acentuado da gíria carcerária, às vezes
acrescida de explicações para que possamos entender. O humor é
basicamente alegre. Os conceitos são medíocres, incapaz de boas

109
respostas, quando inquirido sobre sentimentos espirituais superiores...”
(EVCP 254-1972).
“Respondeu-nos com evasivas quando lhe perguntamos se esta­
va envolvido na revolta... ” (EVCP 42-1968).
“Confirma a versão dos autos com serenidade, dizendo-se arre­
pendido'” ( EVCP 252-1972).
“O periciado era elemento pertencente a uma quadrilha de assal­
tantes, tendo cometido bárbaro latrocínio, como tornam inequívoco
os autos. Todavia, ele nega a autoria dos crimes...'’’ (EVCP 42-1968).
“Paciente simulador-dissimulac/or... ocultou a verdade... a ver­
são que dá de seus crimes foge flagrantemente dos autos. Isto deve
resultar de seu não-arrependimento” (EVCP 30-1968).
Os exames podem até prescindir de toda a lógica. Sua função
principal é a produção de estigmas...
“Primarismo, regressão emocional e intelectiva ao índice infantil,
depressão, esquizotimia, estereotipia, fixado na situação atual, falta de
capacidade expressiva, infradotado, realismo estreito, insegurança. Na
relação eu-mundo, apresenta sinais de ressentim ento da pressão
ambiental” (EVCP 34-1968).

5. O tratamento penitenciário
Alguns efeitos da prisão sobre os condenados, tal como apare­
cem nos laudos...
“Embora o periciado tenha começado sua vida no mundo do cri­
me, da ociosidade, vemos que sua conduta modificou-se dentro do
ambiente penitenciário. Deixou sua vida de contendas, desavenças,
para trilhar a do respeito à ordem” (EVCP 106-1970).
“Vinte e dois anos de cárcere ajudam a resolução de alguns pro­
blemas psicológicos, mas podem também criar novos... Na penitenciária
não consegue relacionar-se, jáganhou apelidos por causa de ma apro­
ximação com homossexuais. Nenhuma perspectiva de futuro. Nota-se,
portanto, que ainda não foi beneficiado pela terapêutica penitenciária”
(EVCP 207-1971).

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“Há quase oito anos e meio no cárcere, permanece como ele­
mento trabalhador... acha-se totalmente adaptado à penitenciária,
onde trabalha como cozinheiro... o tempo é suficiente para uma nova
colocação e adequação da agressividade, reflexão. Está pronto. Ces­
sada a periculosidade” (EVCP 255-1972).
“Fez uma crítica razoável d e .seu passado irregular, tecendo con­
siderações sobre viciados e boêmios, colocando-os como inconse­
qüentes e alheios à realidade da vida” (EVCP 267-1972).
“O homicídio em apreço parece não ter vinculações com traços
de personalidade... decorreu mesmo das condições culturais, da esca­
la de valores, onde o interno formou seu código de honra... sua expe­
riência carcerária lhe deu um lastro de controle sobre sua cultura...”
(EVCP 250-1968).
“Aprendeu que existe uma justiça, que deve ser respeitada, à qual
podemos recorrer toda vez que nos sentimos ofendidos em nossos
direitos” (EVCP 28-1968).

Bibliografia

ANUÁRIO Estatístico do Departamento do Sistema Penitenciário do Rio


de Janeiro, 1984.
BOHN, Ewald. Manual deipsicodiagnóstico de Rorschach. Madri, Morata,
1971.
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. São Paulo, Moderna, 1981.
CÓDIGO de Ética Profissional do Psicólogo.
GOFFMAN, Erving. Manicômio, prisões e conventos. São Paulo, Perspec­
tiva, 1974.
FOUCAULT, Michel. Vigiar epunir. Petrópolis, Vozes, 1977.
LEI de Execução Penal.
MARX, Karl & ENGELS, F. La ideologia alemana. Buenos Aires, Pueblos
Unidos, 1973.
THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos ? Rio de Janeiro, Achiamé,
1983.
VAN USSEL, Jos. Repressão sexual. Rio de Janeiro, Campus, 1980.

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