Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Bas´Ilele Malomalo1
Resumo: O trabalho é parte dos Estudos de branquitude crítica que têm se dedicado a
compreender os comportamentos e as ações de brancos/as antirracistas. É uma pesquisa
teórica que problematiza o retrato destes sujeitos a partir da teoria de desenvolvimento de
identidade racial branca para educadores de adultos/as de Caroline Lund e da
hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos dos quais o autor revisita a sua
proposta de epistemologia desconstrutivista e re-construtivista de macumba no campo da
educação antirracista. Argumenta-se os/as brancos/as antirracistas são pessoas,
beneficiadas pelos privilégios que racismo fornece a sua raça, passaram pela experiência
educativa de letramento racial; e por isso são abertas ao diálogo intercultural e inter-racial
emancipatório. Por pertencer a uma identidade racial hegemônica, sujeita as contradições,
por isso vista como portadora de incompletude deve ser submetida permanentemente à
vigilância epistemológica e política pelos/as negros/as e brancos/as críticos/as.
Palavra-chaves: Braquitude antirracista. Identidade Racial Branca. Letramento Racial.
Macumba.
Introdução
Esse texto é uma singela contribuição dentro dos Estudos da branquitude crítica
que têm se dedicado a compreender os comportamentos e ações de brancos/as
antirracistas, a exemplo de trabalhos de Ana Helena Passos, Jorge Hilton de Assise
Miranda e Joyce Lopes2. De modo diferente desses trabalhos, que são resultados de
1
Doutor em Sociologia, Docente no programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de
Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São
Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; integrante e fundador do IDDAB. Contato:
basilele@UNILAB.edu.br
2
Conheço o trabalho de Ana Helena Passos por ter participado da sua banca de defesa de tese; outros
trabalhos que cito aqui conheci via o dossiê organizado pela Associação Brasileira de Pesquisados/as
Negros/as, por exemplo o texto de Miranda que é o resultado da sua dissertação de mestrado; o trabalho de
Joyce Lopes é a sua dissertação de mestrado com qual estabeleço um diálogo direto nesse trabalho. Para
saber mais, cito as referências: PASSOS, Ana Helena Ithamar. Novas identidades brancas? Um estudo
sobre branquitude no contexto de reconfiguração das relações raciais no Brasil, 2003-2013. Tese
(doutorado), Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2013; _____. Varrendo a sala para levantar
poeira: o branco numa aula sobre a história e cultura afro-brasileira. In: SCHUCMAN, Vainer Lia;
CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13, mar.-jun. 2014, p.
223-251; MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Rap e branquitude. In: SCHUCMAN, Vainer Lia;
CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13, mar.-jun. 2014, p.
107-120; e LOPES, Souza Joyce. Lugar de branca/o e a/o “branca/o fora do lugar”: representações sobre
a branquitude e suas possibilidades de antirracismo entre negra/os e branca/os do/no Movimento Negro em
Salvador-BA. Dissertação [Mestrado]. Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, 2016.
pesquisas de campo, o meu é simplesmente um trabalho teórico, sem perder de vista as
experiências concretas de vida do autor sobre as relações raciais e, especialmente, inter-
raciais entre brancos/as e negros/as na sociedade brasileira (2016a, 2016b).
Quando estava procurando um título para essa seção logo pensei no verbo “tornar-
se”. Estava de fato pensando na famosa frase de Simone de Beauvoir4: “Ninguém nasce
mulher: Torna-se mulher”; e no título do livro de Neusa Santos Souza (1983), Tornar-se
negro ou as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascensão social5. É obvio
que as duas autoras escreveram para analisar a identidades dominadas das mulheres
brancas francesas dominada pelo patriarcalismo ocidental; e das negras dominadas pelo
patriarcalismo e racismo brasileiros. O mais importante para mim é encontrar chaves de
leituras para interpretar a identidade racial branca numa perspectiva de movimento;
processos; como concebe a Psicologia social, de desenvolvimento.
3
A invenção do ser: um percurso das idéias que naturalizam a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ;
Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
4
O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, p. 9-10.
5
Tornar-se negro ou as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro:
Graal, 1983.
O tornar-se branco/a; o devir e a reprodução da identidade branca, vista pelos
Estudos da branquitude crítica como identidade hegemônica (BENTO, 2002;
CARDOSO, 2010b), são as questões que me interessa nesse estudo. Do ponto de vista da
perspectiva teórica assumida, a branquitude é uma construção histórica. Portanto, não se
nasce branco/a; torna-se branco/a e é dentro da história das relações sociais e raciais, que
são relações de poder, é que esses sujeitos aprendem a manter os privilégios da sua raça
ou a contestá-los. Dito em outras palavras, podem continuar a se manter como brancos/as
racistas ou brancos/as antirracistas, ou ainda ficar numa eterna confusão.
No Brasil, existe a ideia de educar o/a branco/a para que deixasse os traços de uma
identidade racista. Tanto Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento quanto outros/as
ativistas e intelectuais negros/as, como demostrou a Joyce Lopes (2016) na sua
dissertação, têm trabalhado com essa ideia. Em Bento (2002) a educação antirracista do/a
branco/a, numa perspectiva relacional (brancos/as-negros/as), começou a ganhar
contornos claros e tem sido uma das suas práticas pedagógicas no âmbito do Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Aliás, quando se analisa as
práticas, projetos e os textos de Bento logo se percebe o seu diálogo com a literatura da
Psicologia social norte-americana sobre o desenvolvimento de uma identidade branca
antirracista. Por exemplo, recorre no seu texto “Branqueamento e branquitude no Brasil”
(BENTO, 2002), a Beverly Daniel Tatum e Janet Helms, duas ícones da Psicologia clínica
e social aos quais qualquer estudioso/a do assunto é obrigado passar.
6
Para tanto bastaria uma pesquisa simples na internet para encontrar os diferentes títulos.
Conferência de pesquisa sobre a educação de adultos, em Chicago, e publicada como
artigo no New Priarie Presse, da editora da Universidade Estadual do Kansas.
O meu esforço na busca pela construção de um texto que nos auxilie a entender
como um/a branco/a pode vir a se tornar um sujeito antirracista em muito tem a ver com
a proposta de Carole L. Lund (2009) pelo fato de atuarmos no campo da educação. O que
não quer dizer que os agentes da consultoria Psychology Research And Reference não se
preocupam com a educação. Eles igualmente se ocupam com a formação de sujeitos
antirracistas, ou seja, profissionais brancos/as da psicologia. Diferente de Lund e da
Psychology Research And Reference, atuo na formação de sujeitos antirracistas,
negros/as e brancos/as que são profissionais da educação ou não, adultos/as e não
adultos/as. Deixando de fora a minha experiência e outras que acabei de citar, o campo-
da-vida e da militância nos revelam que muitas associações negras têm investido a sua
energia na formação de cidadãos/ cidadãs antirracista e, geralmente, na perspectiva da
teoria da negritude (CARDOSO, 2014a), apostando na educação formal e informal. O
que estamos reivindicando aqui é que se deve introduzir os estudos da branquitude na sua
dimensão relacional para que a luta antirracista envolva não só negros/as, mas também
brancos/as (SCHUCMAN; CARDOSO, 2014; LOPES, 2016; BENTO, 2002), para
sustentar o seu sucesso de forma douradora.
Parto do texto de Lund (2009), que apresenta as diversas teorias mais importantes
sobre o desenvolvimento da identidade branca, o documento da Psychology Research
And Reference apresenta somente dois Modelos de Identidade Racial Branca, o da Janet
Helms e do Dereal Su-Davi Su, aquela autora discorre sobre cinco modelos, o de Janet
Helms, Hardiman, Sue, Myers et al. Et Howard.
Compromisso Para o Seu Grupo Racial: durante essa trajetória, o sujeito pode
desenvolver um compromisso com o próprio grupo racial e redescobrir sua herança. Um
educador pode reconhecer e tolerar as diferenças; o racismo torna-se perceptível. Esse
reconhecimento do racismo pode ocorrer junto com uma atitude paternalista e
condescendente para as pessoas de cor, seguido por um desejo de ajudar outros grupos.
Nesse momento um educador seleciona o que se aceita e se rejeita, numa perspectiva
crítica, do que se acredita ser uma identidade social. É durante essas primeiras etapas que
professores/as brancos/as perpetuam o racismo. (Ibid.).
A Busca de Alianças com Pessoas de Cor: a procura ativa de alianças com pessoas
de cor e outros/as professores/as brancos/as não-racistas caracteriza essa última etapa.
Educadores precisam de fortaleza moral e coragem para tomar medidas contra o racismo
individual, institucional e cultural. Torna-se um/a aliado/a, advogado/a não-racista.
Existem, continua explanando Lund (2009), acordos postos no lugar para manter
o status quo referente ao racismo. Se ignorarmos ou contestarmos as mensagens, papéis
e pressupostos estabelecidos no lugar, pode haver consequências para nossos colegas ou
para nós. “As pessoas que se conformam (consciente ou inconscientemente)
minimamente recebem o benefício de serem deixadas sozinhas por não fazerem barulho,
como a aceitação de seus papéis concebidos, sendo consideradas normal ou ‘um jogo de
equipe’, ou de serem autorizadas a permanecerem em seus lugares” (HARRO, 2000, p.
19, Apud Ibid.). É difícil e demorado para procurar uma compreensão de ou criar uma
nova identidade. Tatum foi eloquente ao explicar por que é importante "a nossa análise
em curso sobre o que somos na nossa humanidade completa, abrangendo todas as nossas
identidades, cria a possibilidade de construção de alianças que pode vir a libertar todos
nós" (2000, p. 14, apud Ibid.).
7
Mantive o termo utilizado pela autora: Black people; entenda-se negros/as, a soma de pretos/as e
pardos/as.
Retrato dos/as brancos/as antirracistas do ponto de vista de uma educação
macumbista
Logo que me propus a escrever este texto e ao iniciar minhas leituras dos textos
escolhidos, percebi que o debate sobre os/as brancos/as antirracistas já existem no
contexto internacional e no Brasil. Nesta seção, pretendo realizar a minha reflexão com
toda autonomia intelectual, isto é, reelaborando outras reflexões existentes a partir da
proposta teórico-metodológica que vêm me movendo ultimamente e que eu chamo de
epistemologia da macumba (MALOMALO, 2016).
8
Dessa forma, por falta de espeço, não tenho com entrar em detalhes e apresentar uma bibliografia
extensa. São especialmente minhas aulas de 2016 que consolidaram a o ponto de vista que devolvo aqui.
9
Nkindo, em Lingala, uma língua da RDCongo, seria feitiçaria ou bruxaria em línguas ocidentais.
social e cultural da humanidade e do mundo africano e afrodiaspórico, que o
imperialismo, o colonialismo, produzidos pela branquitude racista, têm danificado. A
macumbização do/a branca, do ponto de vista da nossa teoria e em diálogo com Lund
(2009), começa nas três últimas fases do desenvolvimento da sua identidade: (4)
Reconhecer Participação na Opressão; (5) Mais Compreensão Profunda de Si; e (6) A
Busca de Alianças com Pessoas de Cor.
Tem a ver com o letramento racial que visa reestabelecer os campos das
epistemologias, saberes, conhecimentos, ciências, cosmologias, espiritualidades,
psicologias, emoções, economias, das políticas e éticas do mundo negro. Em outros
termos, restabelecer as estruturas subjetivas e objetivas e simbólicas do mundo da vida
negra e branca antirracista danificadas pela branquitude racista e encaixar cada realidade
e sujeito em seu lugar, com reconhecimento do seu valor.
Esse autor pensa a realização de diálogo intercultural a partir do que ele chama de
hermenêutica diatópica.
Esse princípio nos leva a reconhecer que a branquitude deve sempre ser encarrada
no plural, como viemos fazendo ultimamente. O esforço dos estudiosos/as é de descrever
os/as brancos sempre na sua heterogeneidade, por isso o esforço de alguns em diferenciar
a branquidade da branquitude (PIZA, 2005; MOREIRA, 2014), e branquitude crítica e
branquitude acrítica (CARDOSO, 2014), ou como nós aqui brancos/as racistas e
antirracistas, ou, ainda, brancos/as fora do lugar, brancos/as quilombistas (LOPES, 2016).
O respeito pelo pluralismo teórico deve caracterizar o nosso campo de estudo.
A identidade racial branca antirracista é aquela que representa o círculo de
reciprocidade mais ampla; dessa forma, é ela que deve ser a aliada da identidade racial
negra antirracista para denunciar os privilégios brancos e combater o racismo. Falando de
Ocidente, por exemplo, Boaventura de Souza Santos e Maria Meneses (2010) lembram
que dentro dele há pensadores/as eurocentristas e outros/as abertos ao pensamento do Sul.
10
Um exemplo da diferença que faz entre território e espaço: “A configuração territorial é dada pelo
conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos
que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que
sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.
(Santos, 1996, p.51)” (Apud SAQUET; SILVA, 2008, p. 22 ).
pelos seres humanos, portanto o lugar de memória, marcada pelas histórias das
comunidades humanas. Nesse sentido, o tempo como categoria de interpretação das
relações raciais, exige que olhemos a história da humanidade, para ser modesto, desde o
século XV como o momento da consolidação da hegemonia racial dos/as brancos/as
europeus/europeias (CARDOSO, 2014a; MOORE, 2007). O capitalismo escravista,
colonial e globalizado, impôs aos povos dominados a visão do tempo linear, como
resultado de uma filosofia evolucionista e racista. Impôs, igualmente, uma geografia-de-
corpos brancos aos corpos negros. Os/as negros/as, desde a implementação do
capitalismo escravista-colonial pelos/as brancos/as, foram tratados como não humanos,
meros meios de produção, coisas. Dentro do capitalismo moderno e globalizado, após a
abolição da escravatura, embora considerados como seres humanos, os/as negros/as
continuam a receber um tratamento desigual; e as desigualdades raciais existentes
continuam a revelar quanto o racismo escravista se transfigurou no período pós-abolição.
Por isso, a importância de se investigar a branquitude para superar o racismo
contemporâneo.
A reinterpretação que faço do terceiro imperativo da intercultural boaventuriana,
além dos elementos anteriormente mencionados, é que são os/as brancos/as
europeus/europeias que impuseram a visão de “tempos unilaterais”. Isto é, projetaram na
sociedade moderna a sua imagem para atender aos interesses políticos, econômicos,
simbólicos, culturais, espirituais do seu grupo racial. A visão do tempo dominante é
sustentada pela branquitude racista. Essa visão, ao longo da história, tem se manifestado
pelo imperialismo, colonialismo, patriarcalismo, machismo, racismo que se apropria dos
corpos, territórios-espaços que os/as brancos/as classificam de não-brancos; portanto,
diferentes e sujeitos a ser colonizados e dominados (LOPES, 2016; SANTOS, 2009).
As visões dos “tempos partilhados”, evocados por Boaventura de Sousa Santos
(2009), aludem às revoluções contra-hegemônicas operadas pelos povos dominados no
Norte e no Sul global. São as revoluções epistemológicas, políticas e cosmológicas feitas
por esses povos. Interessa à epistemologia de macumba tornar visível e dizível as
revoluções negras que lutam contra a hegemonia da branquitude racista.
Coloco abaixo um trecho da dissertação de Joyce Lopes (2016) para afirmar que
ter domínio sobre o seu tempo-espaço e corpos é ter domínio de sua agência, mesmo
quando os/as brancos/as antirracistas estão trabalhando junto conosco como aliados/as.
Especialmente para a/os branca/os que resolveram aliar-se a luta antirracista a
partir de ações com/entre o MN, é preponderante entender, definitivamente,
que o seu lugar não é de protagonismo ou destaque, mas, segundo o
entrevistado DJ Branco, um lugar para aprender a ouvir e a seguir. “Primeiro,
acho que tem que escutar. Na chegada, é aliado? Existe possibilidade de atuar
junto? Existe possibilidade de atuar junto. Agora tem que ouvir e seguir os
princípios do MN”. Assim, contempla a posição de todas e todos
entrevistado/as. Primeiramente, as negras e os negros são quem ditam as
regras! No limite, é “nós por nós”. (LOPES, 2016, p. 138)
Esse quarto princípio leva-me a essas reflexões. Seria não produtivo da parte
dos/as negros/as acharem que todos/as os brancos/as, embora gozem dos privilégios da
sua identidade coletiva, são racistas. Cuidar da forma de falar desse assunto é o primeiro
caminho que os/as negros/as educadores/as devem fazer. Entre os/as estudiosos/as, saber
diferenciar o que é ser branco/a racista e o que é ser branco/a antirracista. Trata-se de um
primeiro acordo existente.
O segundo acordo sobre os temas a serem escolhidos de mútuo contrato leva-me
a falar do assunto de apropriação da cultura negra pelos/as brancos/as e da sua
legitimidade. Aqui também precisa-se diferenciar as coisas para não cair na confusão.
O primeiro ponto que vou colocar aqui é que, por ser o racismo algo que atinge
especialmente os não brancos/as, são esses/ as que têm toda legitimidade política em dizer
publicamente o que eles sentem. Portanto, deste ponto de vista não tem nada a negociar
com os/as não negros/as sobre o conteúdo do que deve ser dito à sociedade. Isso não
significa que se devam evitar as formas pedagogicamente corretas de se falar sobre o
racismo.
Os/as brancos/as estudiosos do racismo, mesmo quando bem intencionados/as,
nunca vão saber o que é vivenciar o racismo. Dito isso, não significa que elas/as não
possam investigar o racismo e tomar posições públicas na qualidade de cientistas,
educadores/as ou cidadãos/cidadãs. Em outras palavras, a agenda da política racial é
propriedade política dos movimentos negros. Dentro desses, os/as brancos/as antirracistas
só podem atuar como aliados/as, colaboradores/as e nunca como protagonistas, a exceção
dos territórios talvez onde os/as negros/as ainda não conseguiram se organizar
minimamente ou estão ausentes devido à exclusão racista. Mesmos nesses lugares, os/as
brancos que mobilizam os negros/as a se organizarem, devem fazê-lo em curto prazo para
que o protagonismo seja dos/as negros/as (LOPES, 2016).
O campo da produção científica e da cultura comportam uma outra lógica em
termos de finalidade e por isso difere do campo dos movimentos sociais. Os bens culturais
negros, embora tenham por produtores/as sujeitos que se identificam com a cultura negra,
são patrimônios históricos públicos. No caso do Brasil, a cultura negra trazida da África,
hoje em dia é parte do patrimônio nacional. Trata-se de um fato, agrade ou não aos/as
defensores/as do puritanismo étnico-cultural. Enquanto patrimônio público, brancos/as e
negros/as podem ter acesso a ele. É nessa perspectiva que vemos brancos/as tornando-se
estudiosos da cultura africana ou afro-brasileira; outros/as tornam-se praticantes das
manifestações culturais africanas, religiões de matrizes africanas, samba, maracatu,
capoeira, ou fazem uso de adereços afro. Os temas a serem apresentados publicamente,
tendo-se em conta a autonomia relativas dos campos da cultura, ou seja, a liberdade que
oferecem aos seus produtores/as e reprodutores/as (BOURDIEU, 2002; MALOMALO,
2010), podem se alinhar na perspectiva das organizações sociais de negros ou dos
movimentos negros, organizados ou não. Mesmo assim, espera-se a lealdade da parte
dos/as brancos/as aliados/as aos/às negros/as, isto é, construir suas práticas culturais e
acadêmicas sobre a cultura negra e os/as negros/as sempre no horizonte do discurso
estético, cultural, político que os/as produtores/as culturais, os/as ativistas e os/as
intelectuais negros/as produzem. Pois, uma cultura que se diz negra quando, eticamente
falando, oprime os/as negros/as deixa de ser o que pretende ou afirma ser.
Em sua dissertação, Joyce Lopes (2006), abordou o que acabamos de mencionar
até aqui esclarecendo a diferença entre o que vem a ser a apropriação da cultura negra e
a sua expropriação. Essa última é o uso mercantilista, capitalista de bens culturais de um
grupo social subalternizado por um grupo social dominante que não se importa com o
bem-estar daquele; muitas vezes trabalha no sentido de manter o povo subalternizado na
situação de dominação. Os/as brancas/as que trabalham nessa lógica são os/as
reprodutores da branquitude racista. Usam meramente a cultura negra e, muitas vezes,
os/as produtores/as dessa cultura como meio de produção ou coisas, e não sujeitos, que
lhe permitem atingir seus interesses particulares, materiais, políticos e simbólicos. Nesse
campo de dominação, a branquitude racista não trata a cultura do outro e o outro grupo
social-racial como aliada e aliado, isto é, mediações para a sua própria humanização e do
mundo.
Já a apropriação é uma dinâmica que acontece no âmbito das sociedades
interculturais ou inter-raciais. Tratam-se de trocas de forma deliberada ou não deliberada
dos bens culturais ou igualmente de corpos dos produtores/as desses bens culturais. A
apropriação pode acontecer alcançando níveis complexos ou simples. Nesse último
aspecto, pode significar fazer uso de uma cultura para fins de satisfazer as necessidades
de reprodução, do turismo, de curiosidade, de estéticas, espirituais ou psicológicas ou
matérias, sem necessidade de explorar ou outro.
As trocas proporcionadas pela apropriação podem alcançar igualmente níveis
mais complexos para chegar no que se chama de mestiçagem, fusões culturais ou de
corpos biológicos em que se reconhecem ainda os elementos trocados; ou chegar no que
se chama de transculturação, fusões de elementos culturais que fazem emergir novas
culturas ou sujeitos interculturais.
A apropriação, seja ela em termos de níveis simples ou complexos; ou em termos
de forma de mestiçagem, miscigenação ou transculturação, em si, não é algo ruim. O que
nos permite emitir julgamentos éticos sobre ela é o seu contexto histórico e as formas
como seus processos atingem os sujeitos históricos envolvidos nela. Por exemplo, a lógica
da mestiçagem no Brasil como tem sido praticada pela branquitude racista tem se
estabelecido em epistemicídio, esteticídio, etnocício (SANTOS; MENESES, 2010;
NASCIMENTO, 1978). Negam as liberdades dos não brancos. Portanto, o valor ético de
uma apropriação é reconhecido pelas intenções dos seus/suas produtores/as que podemos
apreender pelas práticas de epistemologias, estéticas e política contra-hegemônicas que,
além dos conhecimentos do próprio campo, operam a partir da lógica da ética
emancipatória; isto é, de não domesticação do outro.
Já é comprovado, no Brasil, que a mestiçagem e seu ideário da democracia são
produtos da branquitude racista que visam à dominação da cultura negra e dos povos
negros (MUNANGA, 1999). Os/as negros dominados/as, do seu lado, ao lançar mão da
mestiçagem ou sincretismo ou miscigenação fazem-nos com finalidades de sobrevivência
ou resistência num mundo em que predomina o racismo estrutural (MOURA, 1995).
A saída dessas contradições seria abandonar a expropriação de bens culturais e
corpos negros numa lógica preestabelecida pela branquitude racista. Abandonar a
mestiçagem colonialista para considerar a mestiçagem emancipatória (MALOMALO,
2010), isto é, promover uma lógica de apropriação, de antropofagia da cultura do/a outro/a
racialmente ou culturalmente diferente, sem sujeitar ou ignorar os/as seus/suas
produtores/as. Trata-se de reconhecer a cultura e a sociedade brasileiras como moldadas
pelo pluralismo cultural e racial; e criar mecanismos políticos, epistemológicos e
educativos para que os/as brasileiros/as subalternizados/as pela branquitude racista
reconheçam isso, valorizem-nas e, consequentemente, sejam valorizados/as. Essa tem
sido a missão dos movimentos negros que trabalham no campo da cultura (D´ADESKY,
1995)
Tudo o que foi mencionado só vai nos auxiliar na educação dos/as brancos/as
antirracistas quando começarmos a tratar a branquitude numa perspectiva do
multiculturalismo progressista. Esse, no nível da micro-política, a exemplo da agenda da
política antirracista dos movimentos sociais, exige que os/as negros sugiram à sociedade
brasileira temas a serem abordados; e, quando necessário, até a sua didática. Os casos de
sucessos têm sido as novas práticas que os/as educadores/as e ativistas negros/as
introduziram no campo dos debates sobre a política de ações afirmativas, cotas e a Lei
10.639/03, que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Já no nível
de macro-política, que visa à construção de uma sociedade multicultural, todos os grupos
sociais que formam uma nação multirracial são convidados a negociar e construir,
coletivamente, as agendas de forma democrática. Um exemplo histórico, seria a forma
como a Secretaria Especial de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) foi criada e
gerenciada no âmbito dos Governos federais, entre 2003 e 2016 (MALOMALO, 2010;
LOPES, 2016).
O que nos leva ao quinto princípio de Santos: a passagem (5) da igualdade ou da
diferença à igualdade e à diferença. Esse princípio é de suma importância, pois insiste
no foco: não perder de vista a agenda dos grupos subalternos. O que prevalece é o
multiculturalismo emancipatório subalterno e não o multiculturalismo dos dominantes.
Considerações finais
Macumbizar o/a branco/a, nesse texto, significou levá-lo/la a passar pelo processo
de letramento racial, a apropriar-se do ponto de vista da cultura negra, ser seu/ sua aliado/a
na luta antirracista. A branquitude antirracista, para mim, é uma postura epistemológica,
política, estética e ética que se opera no campo da interculturalidade e da interracialidade
libertadoras. Como qualquer empreendimento humano, e tendo em conta o poder
hegemônico da branquitude – crítica ou acrítica – no mundo, precisa ser vigiada pelos/as
negros/as e brancos/as antirracistas.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
LOPES, Souza Joyce. Lugar de branca/o e a/o “branca/o fora do lugar”: representações
sobre a branquitude e suas possibilidades de antirracismo entre negra/os e branca/os do/no
Movimento Negro em Salvador-BA. Dissertação [Mestrado]. Universidade Federal de
Pelotas: Pelotas, 2016.
LUND, Carole L. (2009). White Racial Identity Development Model for Adult Educators.
In: Adult Education Research Conference. Kansas State, 2009, p. 217-223. Disponível
em: http://newprairiepress.org/aerc/2009/papers/38. Acessado em 10 jan. 2017.
MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Rap e branquitude. In: SCHUCMAN, Vainer Lia;
CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13,
mar.-jun. 2014, p. 107-120.
MOURA, Clovis. Dialética radical do negro no Brasil. São Paulo: Anita Ltda, 1994.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999.
_____. Varrendo a sala para levantar poeira: o branco numa aula sobre a história e cultura
afro-brasileira. In: SCHUCMAN, Vainer Lia; CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê
Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13, mar.-jun. 2014, p. 223-251.
SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e método. Boletim
Paulista de Geografia, 54, jun. 1977, p. 81-100.
_____. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 16 ed.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008.