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RETRATO DOS BRANCOS/AS ANTIRRACISTAS FEITO DO PONTO DE

VISTA DE UMA EDUCAÇÃO MACUMBISTA

Bas´Ilele Malomalo1

Resumo: O trabalho é parte dos Estudos de branquitude crítica que têm se dedicado a
compreender os comportamentos e as ações de brancos/as antirracistas. É uma pesquisa
teórica que problematiza o retrato destes sujeitos a partir da teoria de desenvolvimento de
identidade racial branca para educadores de adultos/as de Caroline Lund e da
hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos dos quais o autor revisita a sua
proposta de epistemologia desconstrutivista e re-construtivista de macumba no campo da
educação antirracista. Argumenta-se os/as brancos/as antirracistas são pessoas,
beneficiadas pelos privilégios que racismo fornece a sua raça, passaram pela experiência
educativa de letramento racial; e por isso são abertas ao diálogo intercultural e inter-racial
emancipatório. Por pertencer a uma identidade racial hegemônica, sujeita as contradições,
por isso vista como portadora de incompletude deve ser submetida permanentemente à
vigilância epistemológica e política pelos/as negros/as e brancos/as críticos/as.
Palavra-chaves: Braquitude antirracista. Identidade Racial Branca. Letramento Racial.
Macumba.
Introdução

Esse texto é uma singela contribuição dentro dos Estudos da branquitude crítica
que têm se dedicado a compreender os comportamentos e ações de brancos/as
antirracistas, a exemplo de trabalhos de Ana Helena Passos, Jorge Hilton de Assise
Miranda e Joyce Lopes2. De modo diferente desses trabalhos, que são resultados de

1
Doutor em Sociologia, Docente no programa de Mestrado Interdisciplinar em Humanidades, Instituto de
Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São
Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; integrante e fundador do IDDAB. Contato:
basilele@UNILAB.edu.br

2
Conheço o trabalho de Ana Helena Passos por ter participado da sua banca de defesa de tese; outros
trabalhos que cito aqui conheci via o dossiê organizado pela Associação Brasileira de Pesquisados/as
Negros/as, por exemplo o texto de Miranda que é o resultado da sua dissertação de mestrado; o trabalho de
Joyce Lopes é a sua dissertação de mestrado com qual estabeleço um diálogo direto nesse trabalho. Para
saber mais, cito as referências: PASSOS, Ana Helena Ithamar. Novas identidades brancas? Um estudo
sobre branquitude no contexto de reconfiguração das relações raciais no Brasil, 2003-2013. Tese
(doutorado), Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2013; _____. Varrendo a sala para levantar
poeira: o branco numa aula sobre a história e cultura afro-brasileira. In: SCHUCMAN, Vainer Lia;
CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13, mar.-jun. 2014, p.
223-251; MIRANDA, Jorge Hilton de Assis. Rap e branquitude. In: SCHUCMAN, Vainer Lia;
CARDOSO, Lourenço Conceição. Dossiê Branquitude. Revista da ABPN, v. 6, n. 13, mar.-jun. 2014, p.
107-120; e LOPES, Souza Joyce. Lugar de branca/o e a/o “branca/o fora do lugar”: representações sobre
a branquitude e suas possibilidades de antirracismo entre negra/os e branca/os do/no Movimento Negro em
Salvador-BA. Dissertação [Mestrado]. Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, 2016.
pesquisas de campo, o meu é simplesmente um trabalho teórico, sem perder de vista as
experiências concretas de vida do autor sobre as relações raciais e, especialmente, inter-
raciais entre brancos/as e negros/as na sociedade brasileira (2016a, 2016b).

A pergunta colocada aqui não é saber se existem broncos/as antirracistas. Pois os


trabalhos já citados respondem afirmativamente. Mas saber qual é o retrato deles; como
se desenvolvem a sua identidade branca; e como interpretá-la do ponto de vista dos
estudos do multiculturalismo ou interculturalidade progressista?

O trabalho se divide em três seções. A primeira busca compreender a identidade


racial branca antirracista como uma construção sócio-histórica; a segunda apresenta a
proposta da educadora Carole Lund que analisa o desenvolvimento da identidade racial
branca a partir do seu modelo de educadores/as de adultos; e, a última seção, faz uma
reflexão sobre o retrato dos/as brancos antirracistas do ponto de vista de uma educação
macumbista, que é uma proposta epistemológica que vem sendo desenvolvido nas
práticas investigativas e didáticas do autor; e que foi aplicada no estudo de um poema de
Solano Trindade chamado “Macumba”. Nesse texto, de novo, ele estabelece o diálogo
com a hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos para delinear alguns
elementos que compõe esse retrato dos brancos/as antirracistas.

Tornar-se branco/a antirracista: um processo sócio-histórico

O fundamentalismo que caracteriza um seguimento do senso douto, do senso


militante e do senso comum tem levado seus/suas adeptos/as a acreditar ainda ou querer
nos fazer acreditar que a “raça”, como categoria, continua a ter a mesma acepção do
século XIX: é uma realidade biológica. Essa maneira de conceber a raça já foi revogada.
Desde o advento do século XX, a maioria de cientistas sociais compreende que a raça é
uma construção social e cultural.

No meu artigo “Branquitude como dominação do corpo negro: diálogo com a


sociologia de Bourdieu”, mostrei quanto a branquitude racista através de mecanismo de
naturalização das realidades sociais, de invenção de uma sociodicéia com fins de
dominação, oculta as relações de poder, e transforma pessoas negras e suas culturas em
coisas fixas e fixadas na natureza (MALOMALO, 2014a). Entre outras ideias, discursos
e imagens que essa branquitude racista vende no mercado da economia simbólica é que
as desigualdades raciais que atingem de forma brutal os/as negros/as relacionam-se a sua
natureza inferior, isto é, ao corpo negro que eles/as carregam e que os/as transformam em
candidatos/as normais dessa realidade de subalternidade. Outros trabalhos, só para citar
um, o da Gisele Aparecida dos Santos (2005), A invenção do ser: um percurso das idéias
que naturalizam a inferioridade dos negros3, têm mostrado como opera o racismo dos/as
brancos/as para subalternizar os/as negros/as.

A identidade é umas daquelas categorias dentro de Ciências Sociais que


possibilitam desnaturalizar as realidades culturais e começar a encará-las como processos
sócio-históricos. Suficiente seria evocar o livro de Stuar Hall (2004), pais dos Estudos
culturais, A identidade cultural na pós-modernidade, que demonstra a evolução do
conceito identidade ao longo da história; e que consiste em considerar várias dimensões
da identidade do sujeito pós-moderno: dimensões históricas, culturais, psicológicas,
psíquicas e sociológicas. E ainda, as identidades não são realidades fixas ou a ser fixadas,
pelo contrário, são dinâmicas.

Para escapar do puritanismo étnico-racial dos fundamentalistas, ou não perder


tempo com eles, sempre preferi debater os problemas ligados à negritude e branquitude,
no campo cultural. Ou seja, elas nos remetem às identidades de pessoas negras e de
pessoas brancas. Assumir essa postura significa ir até últimas consequências e encarar
com seriedade o debate contemporâneo de Ciências sociais sobre identidades que são
vistas como construções históricas e sociais. Identidades, deste ponto de vista, são sempre
plurais, dinâmicas e fluidas.

Quando estava procurando um título para essa seção logo pensei no verbo “tornar-
se”. Estava de fato pensando na famosa frase de Simone de Beauvoir4: “Ninguém nasce
mulher: Torna-se mulher”; e no título do livro de Neusa Santos Souza (1983), Tornar-se
negro ou as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascensão social5. É obvio
que as duas autoras escreveram para analisar a identidades dominadas das mulheres
brancas francesas dominada pelo patriarcalismo ocidental; e das negras dominadas pelo
patriarcalismo e racismo brasileiros. O mais importante para mim é encontrar chaves de
leituras para interpretar a identidade racial branca numa perspectiva de movimento;
processos; como concebe a Psicologia social, de desenvolvimento.

3
A invenção do ser: um percurso das idéias que naturalizam a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ;
Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
4
O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, p. 9-10.
5
Tornar-se negro ou as vicissitudes de identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro:
Graal, 1983.
O tornar-se branco/a; o devir e a reprodução da identidade branca, vista pelos
Estudos da branquitude crítica como identidade hegemônica (BENTO, 2002;
CARDOSO, 2010b), são as questões que me interessa nesse estudo. Do ponto de vista da
perspectiva teórica assumida, a branquitude é uma construção histórica. Portanto, não se
nasce branco/a; torna-se branco/a e é dentro da história das relações sociais e raciais, que
são relações de poder, é que esses sujeitos aprendem a manter os privilégios da sua raça
ou a contestá-los. Dito em outras palavras, podem continuar a se manter como brancos/as
racistas ou brancos/as antirracistas, ou ainda ficar numa eterna confusão.

Interessa-me nesse trabalho indagar sobre a construção de uma identidade racial


branca antirracista. A identidade destes sujeitos é tratada por Edith Piza (2005) e Camila
Moreira (2014) como braquitude; e é diferenciada de branquidade. Essas duas autoras
fazem essa diferença para mostrar que os/as brancos/as com branquidade assumem
publicamente o seu racismo; e defendem os privilégios da sua raça; já os/as brancos/as
com branquitude são portadores/as de uma identidade branca negativa à branquidade,
uma vez que denunciam o racismo, questionam os privilégios do seu grupo de
pertencimento racial, portanto são antirracistas.

Do outro lado, Lourenço Cardo (2014b) faz o uso de categorias branquitude


acrítica para se referir a identidade racial branca que Piza (2005) e Moreira (2014)
classifica como branquidade; e branquitude crítica remete à identidade racial branca que
ambas chamam de branquitude. Cardoso mantém essa posição por entender que tanto a
branquidade acrítica e crítica oferecem aos/às brancos/as racistas ou antirracistas
privilégios e poder. Concordo com Cardoso (2010a, 2010b, 2014a) sobre a apreensão
destes detalhes que expressa de forma formidável as artimanhas da branquitude: o seu
poder simbólico (MALOMALO, 2014a). Ademais compreendo igualmente que cada
autor/a tem a liberdade de escolher as categorias que melhor traduz o campo de sua
análise.

O meu diálogo com o multiculturalismo ou interculturalidade progressista me leva


a pensar a branquitude antirracista de outra maneira (MALOMALO, 2010, 2014b,
2016a). Uma das questões que os estudos do multiculturalismo ou interculturalidade
progressista se coloca é do “vivre ensemble” (“viver juntos/as”), ou seja, quais são as
possibilidades que povos de raças e culturas diferentes têm para conviver sem conflitos,
respeitando-se e valorizando-se as diferenças? Ou ainda no caso especifico deste trabalho:
como brancos/as podem ser tornar aliados/as de negros/as na luta antirracista.
É fácil no contexto dos Estados Unidos encontrarem produções6, no âmbito da
Psicologia Social ou Ciências Sociais, estabelecer o diálogo com as teorias do
multiculturalismo e interculturalidade para tematizar sobre o desenvolvimento de
identidade racial branca antirracista.

No Brasil, existe a ideia de educar o/a branco/a para que deixasse os traços de uma
identidade racista. Tanto Guerreiro Ramos e Abdias Nascimento quanto outros/as
ativistas e intelectuais negros/as, como demostrou a Joyce Lopes (2016) na sua
dissertação, têm trabalhado com essa ideia. Em Bento (2002) a educação antirracista do/a
branco/a, numa perspectiva relacional (brancos/as-negros/as), começou a ganhar
contornos claros e tem sido uma das suas práticas pedagógicas no âmbito do Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). Aliás, quando se analisa as
práticas, projetos e os textos de Bento logo se percebe o seu diálogo com a literatura da
Psicologia social norte-americana sobre o desenvolvimento de uma identidade branca
antirracista. Por exemplo, recorre no seu texto “Branqueamento e branquitude no Brasil”
(BENTO, 2002), a Beverly Daniel Tatum e Janet Helms, duas ícones da Psicologia clínica
e social aos quais qualquer estudioso/a do assunto é obrigado passar.

A literatura científica internacional e nacional, que têm a branquitude como campo


de investigação, concordam que brancos/as racistas podem se tornar pessoas não racistas
e aliadas da luta antirracista. O material levantado me revela que a literatura internacional
tem mais trabalhados publicados no que se chama de desenvolvimento da identidade
branca não racista e ainda numa perspectiva multicultural. No Brasil, Bento (2002)
atentou-se a isso, mas sem se aprofundar, pois, parece-me que não era o objetivo do seu
texto. Por isso, vou me focar no debate internacional partindo de dois materiais que já em
si se esforçam a fazer a síntese.

O primeiro material, intitulado “White Racial Development Identity” (WRDI), é


uma postagem da consultoria de pesquisa “Psychology Research And Reference”. Como
se pode perceber trata-se de um material com uma bibliografia atualizada que apresenta
ao público o estado de arte no campo que estuda o Desenvolvimento da Identidade Racial
Branca. O segundo material, “White Racial Identity Development Model for Adult
Educators”, é a comunicação científica de Carole L. Lund, doutora em educação da
Universidade Pacífica do Alaska, nos Estados Unidos, que foi apresentada em 2009, na

6
Para tanto bastaria uma pesquisa simples na internet para encontrar os diferentes títulos.
Conferência de pesquisa sobre a educação de adultos, em Chicago, e publicada como
artigo no New Priarie Presse, da editora da Universidade Estadual do Kansas.

Psychology Research And Reference abre o seu documento com essas


considerações:

Teoria do desenvolvimento da identidade racial branca (WRID) descreve como


indivíduos brancos desenvolvem um sentido sobre si enquanto sujeitos raciais,
como reconhecem as realidades do racismo estrutural e o privilégio branco, e
chegam a aceitar a raça como parte da sua própria saúde e a dos outros.
Racismo estrutural é definida aqui como as políticas e práticas que fabricam
na sociedade dos EUAs desvantagens para não-branco; privilégio branco
refere-se aos direitos, vantagens, isenções, imunidades concedidos aos
indivíduos brancos com os quais os não-brancos não são beneficiados. A
WRID é uma derivação específica da teoria do desenvolvimento da identidade
cultural/racial. Diz respeito à teoria do desenvolvimento da identidade cultural
/ racial ao assumir que (a) as pessoas têm diferentes níveis de consciência
acerca de sua identidade de grupo, (b) o nível de consciência é influenciado
por fatores sociopolíticos, e (c) o nível de consciência tem implicações
importantes para a prática de aconselhamento e formação. (Tradução minha;
online)

O meu esforço na busca pela construção de um texto que nos auxilie a entender
como um/a branco/a pode vir a se tornar um sujeito antirracista em muito tem a ver com
a proposta de Carole L. Lund (2009) pelo fato de atuarmos no campo da educação. O que
não quer dizer que os agentes da consultoria Psychology Research And Reference não se
preocupam com a educação. Eles igualmente se ocupam com a formação de sujeitos
antirracistas, ou seja, profissionais brancos/as da psicologia. Diferente de Lund e da
Psychology Research And Reference, atuo na formação de sujeitos antirracistas,
negros/as e brancos/as que são profissionais da educação ou não, adultos/as e não
adultos/as. Deixando de fora a minha experiência e outras que acabei de citar, o campo-
da-vida e da militância nos revelam que muitas associações negras têm investido a sua
energia na formação de cidadãos/ cidadãs antirracista e, geralmente, na perspectiva da
teoria da negritude (CARDOSO, 2014a), apostando na educação formal e informal. O
que estamos reivindicando aqui é que se deve introduzir os estudos da branquitude na sua
dimensão relacional para que a luta antirracista envolva não só negros/as, mas também
brancos/as (SCHUCMAN; CARDOSO, 2014; LOPES, 2016; BENTO, 2002), para
sustentar o seu sucesso de forma douradora.

Desenvolvimento de Identidade Racial Branca para Educadores/as de Adultos/as

Parto do texto de Lund (2009), que apresenta as diversas teorias mais importantes
sobre o desenvolvimento da identidade branca, o documento da Psychology Research
And Reference apresenta somente dois Modelos de Identidade Racial Branca, o da Janet
Helms e do Dereal Su-Davi Su, aquela autora discorre sobre cinco modelos, o de Janet
Helms, Hardiman, Sue, Myers et al. Et Howard.

Para Lund (2009), o desenvolvimento de modelos de identidade tem sido feito


pelo menos desde a década de 1970. Muitos deles foram concebidos especificamente para
as pessoas de cor. Um dos primeiros modelos de Desenvolvimento de Identidade Negra
foi a teoria Negrescence de Cross (1995), escrita originalmente em 1971 e revista em
1991. Os estágios do modelo incluíam: Estágio (1) Pré-Encontro; Estágio (2) Encontro;
Estágio (3) Imersão-Emersion; Estágio (4) Internalização; e Estágio (5) Internalização-
Compromisso. A teoria de Negrescence de Cross (1995) foi fundamental para os cinco
modelos de identidade racial branca investigados no seu artigo: Hardiman (1982), Myers
et al. (1991), Helms (1995), Sue (2003), e Howard (2004). Durante o mesmo período,
ambos Helms (1995) e Hardiman (1982), de forma independente, aplicaram os modelos
de estágios concebidos para o desenvolvimento da identidade racial branca, mas houve
igualmente semelhanças nos modelos de Myers et al. (1991) e Sue (2003). As orientações
ou estágios do modelo de Howard não são semelhantes a qualquer um dos outros; no
entanto, existem semelhanças nas descrições das orientações. (Ibid., 2009, p. 218-219).
Os modelos de identidade racial branca previamente descritos, Hardiman (1982), Myers
et al. (1991), Helms (1995), Sue (2003), e Howard (2004), influenciaram o modelo do
desenvolvimento de identidade racial para os educadores de Lund. Para esta, existem seis
trajetórias ou etapas que um/a educador/a de adultos poderia explorar para se tornar um/a
aliado/a na luta no combate contra o racismo. Para essa autora, o processo do
desenvolvimento racial não é linear, pelo contrário, é fluído e um educador poderia passar
por todos os caminhos, ou apenas por alguns deles, ou repetir alguns deles em algum
momento. O modelo de desenvolvimento da identidade racial branca para educadores/as
que almeja falar sobre o racismo parte do pressuposto dos estudos da branquitude crítica
de que os diferentes níveis de consciência de identidade racial branca são afetados pelo
racismo: quanto menos consciente o sujeito é de sua identidade branca, mais propenso
está para manifestar níveis acentuados do seu racismo. Apresentamos a seguir os seis
caminhos da identidade racial branca pelos quais um/a educador/a poderia estar, ou
poderia passar no seu desenvolvimento.

O status quo é um caminho de crença de que ser branco/a é certo/a e os brancos/as


são superiores/as aos outros. Normalmente, os papéis estabelecidos e a família têm
influência, nessa fase, sobre os valores e identidade e podem reforçar estereótipos. O/a
educador/a pode não ter sido exposto a outras perspectivas e ser indiferente ao racismo e
participar dele. O mundo é visto através de uma única lente com isolamento de outras
perspectivas (LUND, 2009, p. 221).

Questionando Crenças: o/a educador pode questionar as crenças de seu próprio


grupo social e rejeitar pensamentos, sentimentos e comportamentos esperados por
padrões estabelecidos e pela família. Insolúveis dilemas morais raciais forçam-no/a a
escolher entre a lealdade ao seu próprio grupo e o humanismo. Pode, então, experimentar
a ansiedade durante essa fase que envolve os dilemas raciais; pode aqui ter consciência
da branquitude junto com sentimentos de raiva, tristeza, culpa, impotência e confusão;
pode também racionalizar o seu comportamento em relação a situações raciais; pode
igualmente racionalizar alguns comportamentos referentes às situações raciais.
Momentos de reflexões podem ocorrer durante essa trajetória; experiências são
reexaminadas e uma nova consciência é desenvolvida; tem-se o reconhecimento da sua
própria identidade racial e a identidade do seu grupo racial de pertencimento (Ibid.).

Compromisso Para o Seu Grupo Racial: durante essa trajetória, o sujeito pode
desenvolver um compromisso com o próprio grupo racial e redescobrir sua herança. Um
educador pode reconhecer e tolerar as diferenças; o racismo torna-se perceptível. Esse
reconhecimento do racismo pode ocorrer junto com uma atitude paternalista e
condescendente para as pessoas de cor, seguido por um desejo de ajudar outros grupos.
Nesse momento um educador seleciona o que se aceita e se rejeita, numa perspectiva
crítica, do que se acredita ser uma identidade social. É durante essas primeiras etapas que
professores/as brancos/as perpetuam o racismo. (Ibid.).

Reconhecer Participação na Opressão: o reconhecimento de sua participação em


forças de opressão é um passo para redefinir o que significa ser branco/a. É importante
que percebe e reconhece que o racismo é uma parte da sociedade. A inclusão de outros
grupos sociais permite desenvolver a compreensão das pessoas do seu próprio grupo nas
fases anteriores de desenvolvimento. É difícil enfrentar e fazer alguma coisa em relação
a um sujeito racista quando essa pessoa se nega. (Ibid., p. 221-222).

Mais Compreensão Profunda de Si: uma compreensão mais profunda de si e paz


interior muda a forma como o sujeito vê o mundo; proporciona uma de capacidade de
abandonar os privilégios garantidos pelo racismo. A verdadeira natureza da opressão se
reflete em sua visão de mundo. Sentindo-se conectado e confortável em torno de grupos
culturalmente diversas, estudantes e colegas, permite que se envolva nas discussões sobre
raça. A identidade branca não-racista começa. Sente-se responsável por efetuar a
mudança pessoal e social sem depender de pessoas de cor, para liderar o caminho. Há
uma mudança ao tentar mudar as pessoas de cor7, para mudar a si mesmo e outros/as
brancos/as. O sujeito acredita que é possível tornar-se um aliado (LUND, 2009, p. 222).

A Busca de Alianças com Pessoas de Cor: a procura ativa de alianças com pessoas
de cor e outros/as professores/as brancos/as não-racistas caracteriza essa última etapa.
Educadores precisam de fortaleza moral e coragem para tomar medidas contra o racismo
individual, institucional e cultural. Torna-se um/a aliado/a, advogado/a não-racista.

Uma compreensão mais profunda, argumenta Lund (2009), da nossa resposta de


desenvolvimento para as pessoas de cor; como somos socializados para interagir com as
pessoas de cor; e como podemos tentar mudar a nossa identidade, como ela se reporta às
pessoas de cor, é fundamental. É uma maneira de entender

nossos sentimentos de culpa, vergonha, confusão (embarrassment) ou


inadequação acerca do racismo e a nossas respostas sobre ele [...] porque o
racismo mostra o ridículo de nossas ideais de democracia, justiça e igualdade,
nos leva a ser cínicos e pessimistas em relação à integridade humana e ao nosso
futuro. (Kivel, 1996, p. 37, Apud Ibid., p. 222).

Existem, continua explanando Lund (2009), acordos postos no lugar para manter
o status quo referente ao racismo. Se ignorarmos ou contestarmos as mensagens, papéis
e pressupostos estabelecidos no lugar, pode haver consequências para nossos colegas ou
para nós. “As pessoas que se conformam (consciente ou inconscientemente)
minimamente recebem o benefício de serem deixadas sozinhas por não fazerem barulho,
como a aceitação de seus papéis concebidos, sendo consideradas normal ou ‘um jogo de
equipe’, ou de serem autorizadas a permanecerem em seus lugares” (HARRO, 2000, p.
19, Apud Ibid.). É difícil e demorado para procurar uma compreensão de ou criar uma
nova identidade. Tatum foi eloquente ao explicar por que é importante "a nossa análise
em curso sobre o que somos na nossa humanidade completa, abrangendo todas as nossas
identidades, cria a possibilidade de construção de alianças que pode vir a libertar todos
nós" (2000, p. 14, apud Ibid.).

7
Mantive o termo utilizado pela autora: Black people; entenda-se negros/as, a soma de pretos/as e
pardos/as.
Retrato dos/as brancos/as antirracistas do ponto de vista de uma educação
macumbista

Como se pode perceber, a busca de um retrato de brancos/as antirracistas, à


primeira vista, nos remete ao título do famoso livro do filósofo franco-tunisiano Abert
Memmi (2007), Retrato do colonizado precedido do Retrato do colonizador. A verdade
é que, como ele buscava compreender o comportamento de ambos para combater a
situação da dominação colonial, partia de uma observação atenta do mundo em que vivia.

Minhas vivências interculturais e inter-raciais, minha formação em Ciências


Humanas, minha militância antirracista e minha responsabilidade na qualidade de
educador e pesquisador nunca me deixaram me curvar perante afirmações genericamente
abusivas de que todo branco é racista. Compreendo a raiva dos/das meus/minhas perante
os fardos injustos da vida que o racismo nos impõem. Ainda, não estou aqui para fazer o
elogia à brancura; todavia a realidade humana na sua complexidade exige de nós um
pouco de humildade e de coragem para valorizar a parcela da população branca que se
compromete com a população negra no combate ao racismo.

Quando Abdias Nascimento se reporta ao sujeito branco como “inimigo e/ou


adversário” (1980, p. 265), e mais adiante se refere aos mesmos como os
“brancos não-quilombistas” (1980, p. 271), ele dá margem para o
entendimento de que possa existir outro tipo de branco, o branco quilombista,
muito embora não utilize o termo. Isto incide no fato de que há o que Lourenço
Cardoso (2014) chama de “branco genérico” – o branco moderno, que significa
a própria e mais límpida representação de branquitude, inclusive o traço racista
–, contra quem o MN de modo recorrente direciona o seu discurso público e a
sua prática política. Mas, nas inter-relações cotidianas, os diálogos expressam
a diversidade do ser branco, assim como há a diversidade do ser negro, logo,
dimensionamos a existência do “branco particular” (CARDOSO, L., 2014).
Conforme Abdias (2006), é provável a existência de uma grande colaboração
que ultrapassa a fronteira racial. Complementa: “é por isso que eu, quando falo
do sistema e dos brancos que apoiam o sistema, não é no sentido absoluto,
porque há os brancos que são realmente amigos, que vêm se solidarizar, sofrer,
lutar ao lado da gente” (NASCIMENTO & SEMOG, 2006, p. 133-134).
(LOPES, 2016, p. 126).

Esse cuidado em diferenciar os/as brancos/as racistas dos/as brancos/as


antirracistas; compreender que a branquitude é uma identidade racial plural é consenso
na literatura científica. Ainda, como mostrarei, na perspectiva da epistemologia de
macumba, é preciso perceber que mesmo entre os/as brancos/as antirracistas cada um/a
percorre o caminho de letramento racial de forma diferente. E compreender não significa
ser conivente com o racismo; mas mais humano para combatê-lo com firmeza e leveza.
O retrato que faço dos brancos/as antirracistas tem a ver com o meu jeito de
conceber as teorias das relações raciais e as vivências interculturais e inter-raciais. Muitas
colocações que desenvolvo aqui já foram ditas por mim de forma especial nas minhas
aulas na pós-graduação e graduação, nas disciplinas de “Educação e Interculturalidade”
e “Tópicos Interculturais nos Espaços Lusófonos”, entre 2012 e 20168.

Logo que me propus a escrever este texto e ao iniciar minhas leituras dos textos
escolhidos, percebi que o debate sobre os/as brancos/as antirracistas já existem no
contexto internacional e no Brasil. Nesta seção, pretendo realizar a minha reflexão com
toda autonomia intelectual, isto é, reelaborando outras reflexões existentes a partir da
proposta teórico-metodológica que vêm me movendo ultimamente e que eu chamo de
epistemologia da macumba (MALOMALO, 2016).

Trata-se de uma proposta teórico-metodológica que pertence às Epistemologias


Negras do Sul global e comporta dois passos. O primeiro é a desconstrução dos
preconceitos estabelecidos pelos poderes hegemônicos dominantes, da qual a branquitude
racista é parte. Essa fase, que chamo de desmacumbização, é vista como o momento do
enfrentamento do racismo acadêmico, econômico, político, institucional e cordial. Em
termos dos estudos da branquitude, a entendo como a fase de lavagem, da realização do
Ebó do branco/a contra o seu próprio nkindoki9, isto é, os males que ele/ela próprio
inventou contra a humanidade dos quais todos/todas aqueles/aquelas que não detêm o
poder se tornaram vítimas. Em relação ao nkindo-do-racismo tudo indica que, sendo seu
produtor, continua ainda a se beneficiar dos privilégios que proporciona.

É preciso reconhecer, reinterpretando as fases de desenvolvimento de identidade


racial branca de Lund (2009), que estas três são estruturadas dentro da brancura racista:
(1) Status Quo; (2) Questionando Crenças; (3) Compromisso Para o Seu Grupo Racial.
O seja, os/as brancas/as caíram no seu próprio nkindoki-fetiço; e afirmar isso não significa
elogio a braquitude, isto é, reestabelecer os privilégios que tanto a branquitude racista e
antirracista gozam. Pelo contrário, trata-se da sua negação.

O segundo passo da epistemologia da macumba é a macumbização. Trata-se de


uma démarche re-construtista do patrimônio estético, político, espiritual, econômico,

8
Dessa forma, por falta de espeço, não tenho com entrar em detalhes e apresentar uma bibliografia
extensa. São especialmente minhas aulas de 2016 que consolidaram a o ponto de vista que devolvo aqui.
9
Nkindo, em Lingala, uma língua da RDCongo, seria feitiçaria ou bruxaria em línguas ocidentais.
social e cultural da humanidade e do mundo africano e afrodiaspórico, que o
imperialismo, o colonialismo, produzidos pela branquitude racista, têm danificado. A
macumbização do/a branca, do ponto de vista da nossa teoria e em diálogo com Lund
(2009), começa nas três últimas fases do desenvolvimento da sua identidade: (4)
Reconhecer Participação na Opressão; (5) Mais Compreensão Profunda de Si; e (6) A
Busca de Alianças com Pessoas de Cor.

Do ponto de vista dos estudos da branquitude, a macumbização é a estetização do


mundo a partir da perspectiva africana e afrodiaspórica. Dentro das comunidades negras
trata-se de uma liturgia cósmica-intra-mundana de celebração do sentido de viver sem
pressão do racismo. Olhando a realidade do ponto de vista dos/as brancos/as, trata-se
desses/as abandonarem o seu racismo e os privilégios que esse lhes concede e tornarem-
se aliados/as, malungos/as, quilombolas na luta contra o racismo e para a restauração da
humanidade em perigo.

Tem a ver com o letramento racial que visa reestabelecer os campos das
epistemologias, saberes, conhecimentos, ciências, cosmologias, espiritualidades,
psicologias, emoções, economias, das políticas e éticas do mundo negro. Em outros
termos, restabelecer as estruturas subjetivas e objetivas e simbólicas do mundo da vida
negra e branca antirracista danificadas pela branquitude racista e encaixar cada realidade
e sujeito em seu lugar, com reconhecimento do seu valor.

Do ponto de vista da relação de colaboração inter-racial, estas e outras falas se


relacionam sob uma lógica em que as pessoas brancas devem: 1- passar por
um processo de construção de uma identidade racial, reconhecendo os seus
privilégios a partir do lugar da branquitude e, se possível, desconstruí-los; 2-
aceitar que, no MN, as ações de organização, comando, liderança, lugar de fala,
representatividade e protagonismo devem ser de caráter exclusivo de pessoas
negras; 3- dispor os seus privilégios objetivos e simbólicos para as
necessidades e demandas do Movimento e cooperar para que os mesmos não
sejam exclusivos do seu grupo racial e; 4- constituir processos de formação e
comunicação antirracista entre o seu próprio grupo racial. A/os “branca/os fora
do lugar” podem realizar ou trair os direcionamentos do MN nesses sentidos,
mas certamente por um/a ou outra/os negra/os serão ponderada/os em
conformidade com vossos atos.
Estas indicações estão para além de uma concepção utilitarista. Muito embora,
justificável se assim fosse. A entrevistada Larissa, por exemplo, deixa
compreensível que, ainda que tenha projetado qualquer espécie de relação
utilitarista com uma pessoa branca, quando estes se projetam minimamente
para uma relação antirracista, o fato de estabelecer uma pessoalidade,
intimidade, conhecer a família, visitar a casa, criar afeto, condiciona um
respeito mútuo. Diz: “foram pessoas que eu tive uma vivência, tivemos
experiências, então não tem como tratar elas como objeto apenas” (Larissa). A
meu ver, qualquer propensão de colaboração da/os branca/os para a luta
antirracista, entre ou não o MN, deve ser compreendida antes de tudo como
reparação histórica, mas que não se limite a isto, afinal, se descolonizar-se é
possível, corroboro com Fanon que o caminho é rumo a uma autêntica
comunicação na tentativa de desalienação em prol da liberdade. Da liberdade
da pessoa negra e da pessoa branca (FANON, 2008). (LOPES, 2016, p. 140)

Essa é a forma como a educação macumbista concebe o retrato de uma


branquitude antirracista. Dito em outras palavras, sinto-me contemplado pelas colocações
de Joyce Lopes (2016). Em diálogo com outras produções, pode-se acrescentar mais
elementos. De forma geral, o retrato de brancos/as antirracistas gira em torno de alguns
elementos que é consenso entre os/as estudiosos/as da branquitude, que pretendo nas
linhas a seguir interpretar a partir da proposta epistemológica do Sul global, em diálogo
com Boaventura Souza Santos (2009).

Esse autor pensa a realização de diálogo intercultural a partir do que ele chama de
hermenêutica diatópica.

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada


cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura
a que pertencem. Tal incompletude não é visível a partir do interior dessa
cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo
todo. O objetivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude
– um objetivo inatingível – mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a
consciência de incompletude mútua por intermediário de um diálogo que se
desenrola, por assim dizer, com um pé em uma cultura e outra em outro. Nisto
consiste o seu caráter diatópico. (SANTOS, 2003, p. 444).

A hermenêutica diatópica, para Boaventura de Sousa Santos, é um meio de


realização de um diálogo intercultural digno do seu nome e preenche as condições para a
formulação de um projeto de multiculturalismo ou de interculturalidade progressista ou
emancipatória.
Nesse sentido, compreendo o campo das teorias e práticas de relações raciais
como um campo de construção e re-construção de relações interculturais e inter-raciais
emancipatórias. Em outras palavras, situo meus estudos da branquitude crítica no campo
do multiculturalismo ou interculturalidade progressista.
Dentro desse quadro, não trabalho com uma lógica dual simplista brancos/as-
negros/as. Embora tratemos, muitas vezes, os sujeitos em termos brancos/as e negros/as,
é preciso dizer que há outros sujeitos envolvidos nesse campo de racismo, os índios, por
exemplos; e ainda outros estudos, como os de gênero, por exemplo, que têm chamado a
atenção sobre a questão da interseccionalidades (LOPES, 2016; HIRATA, 2014).
Do ponto de vista da hermenêutica diatópica, para Boaventura de Sousa Santos
(2009), as seguintes orientações e imperativos transculturais devem ser aceitos por todos
os grupos sociais e culturais interessados no diálogo intercultural: (1) da completude à
incompletude; (2) das versões culturais estreitas às versões mais amplas; (3) de
concepções de tempos unilaterais a tempos partilhados; (4) de parceiros e de temas
unilateralmente impostos a parceiros e temas escolhidos por mútuo acordo; (5) da
igualdade ou da diferença à igualdade e à diferença. Como se pode perceber, trata-se de
sair de epistemologia, cosmologias e éticas fechadas, absolutistas da “Razão” indolente,
isto é, arrogante e racista, para outras mais abertas, que se pautam na lógica de valorização
de “movimentos”, diálogos. É a lógica da Razão cosmopolita subalterna.
Aproprio-me desses princípios e os reelaboro na perspectiva da teoria das relações
raciais da macumba, cujos estudos da negritude e da branquitude, no meu entendimento,
são os dois lados da mesma moeda. Assumo que sem levar em conta essa
complementaridade corre-se o risco de se criar um monstro teórico e político.
O primeiro imperativo teórico-político é a passagem (1) de uma ideia de
completude da sua cultura à compreensão da sua incompletude.

1. Da completude à incompletude. O verdadeiro ponto de partida do diálogo é


o momento de frustração ou de descontentamento com a cultura a que
pertencemos. Esse sentimento suscita a curiosidade por outras culturas. A
hermenêutica diatópica aprofunda, à medida que progride, a incompletude
cultural, transformando a consciência inicial de incompletude, em grande
medida difusa e pouco articulada, numa consciência autorreflexiva. (SANTOS,
2009, p. 17).

O princípio da incompletude pode ser reinterpretado da forma seguinte: a


pretensão da superioridade da branquitude esconde a sua normalidade, isto é, a sua
particularidade. Esse princípio nos leva a considerar ainda algumas questões sobre a
pluralidade da branquitude. Os/as brancos/as racistas continuarão se percebendo e se
impondo como superiores; enquanto os/as brancos/as antirracistas são sujeitos que,
tomando consciência da sua identidade racial relativa à sua superioridade, renunciam aos
seus privilégios, portanto ao seu racismo.
Do ponto de vista dos/as negros/as antirracistas e educadores/as, o princípio de
incompletude nos leva a ter a consciência autorreflexiva de que os/as brancos/as
antirracistas não são seres perfeitos, uma vez que há tempos que relativizamos a sua
pretensiosa superioridade, mesmo que o senso comum e fundamentalista demore a
perceber isso. O seu compromisso antirracista é uma meta; um caminho a percorrer e,
como tal, pode haver falhas, imperfeições; frustrações. O que importa para nós é apostar
e continuar a vigilância epistemológica e ética.
Dessa forma, precisamos acionar outros valores como humildade, compaixão
(MALOMALO, 2014b), compreensão ou motivar o outro, sem perder de vista a nossa
luta antirracista. É preciso continuarmos a epistemologia da aposta na branquitude
antirracista para que a nossa luta se fortaleça. Ali a importância de saber estabelecer as
táticas e estratégias com os/as brancos/as aliados/as, sem sermos ingênuos/as.

O segundo imperativo, ou princípio, é a passagem (2) das versões culturais


estreitas às versões mais amplas.

2. Das versões culturais estreitas às versões amplas. As culturas têm grande


variedade interna, e a consciência dessa diversidade aprofunda-se à medida que
a hermenêutica diatópica progride. Das diferentes versões de uma dada cultura,
deve ser escolhida para o diálogo intercultural a que representa o círculo de
reciprocidade mais amplo, a versão que vai mais longe no reconhecimento do
outro. No que respeita às duas versões da cultura ocidental dos Direitos
Humanos, a liberal e a socialdemocrática, deve ser privilegiada a última, porque
amplia para os domínios econômico e social a igualdade que a versão liberal
apenas considera legítima no domínio político. (SANTOS, 2009, p. 17-18).

Esse princípio nos leva a reconhecer que a branquitude deve sempre ser encarrada
no plural, como viemos fazendo ultimamente. O esforço dos estudiosos/as é de descrever
os/as brancos sempre na sua heterogeneidade, por isso o esforço de alguns em diferenciar
a branquidade da branquitude (PIZA, 2005; MOREIRA, 2014), e branquitude crítica e
branquitude acrítica (CARDOSO, 2014), ou como nós aqui brancos/as racistas e
antirracistas, ou, ainda, brancos/as fora do lugar, brancos/as quilombistas (LOPES, 2016).
O respeito pelo pluralismo teórico deve caracterizar o nosso campo de estudo.
A identidade racial branca antirracista é aquela que representa o círculo de
reciprocidade mais ampla; dessa forma, é ela que deve ser a aliada da identidade racial
negra antirracista para denunciar os privilégios brancos e combater o racismo. Falando de
Ocidente, por exemplo, Boaventura de Souza Santos e Maria Meneses (2010) lembram
que dentro dele há pensadores/as eurocentristas e outros/as abertos ao pensamento do Sul.

Uma passagem (3) de concepções de tempos unilaterais a tempos partilhados é o


terceiro imperativo. O tempo do diálogo intercultural não pode ser estabelecido
unilateralmente. Cabe a cada comunidade cultural decidir quando está pronta para o
diálogo intercultural.

3. De tempos unilaterais a tempos partilhados. Pertence a cada comunidade


cultural decidir quando está pronta para o diálogo intercultural. A cultura
ocidental, durante séculos, não teve qualquer disponibilidade para diálogos
interculturais mutuamente acordados e agora, ao ser atravessada por uma
consciência difusa de incompletude, tende a crer que todas as outras culturas
estão igualmente disponíveis para reconhecer a sua incompletude e, mais do que
isso, ansiosas para se envolver em diálogos interculturais com o Ocidente. O
direito à pausa antes de avançar para uma nova fase, bem como a reversibilidade
do diálogo são cruciais para impedir que ele se perverta e se transforme em
conquista cultural ou em fechamento cultural recíproco. A ausência ou a
deficiente explicitação de regras para o diálogo intercultural podem transformá-
lo na fachada benevolente sob a qual se escondem trocas culturais muito
desiguais. Da mesma maneira, o estabelecimento unilateral do fim do diálogo
intercultural é diferente quando tomado por uma cultura dominante ou por uma
cultura subordinada. No primeiro caso, frequentemente manifestam-se objetivos
imperiais, como a “luta contra o terrorismo”, enquanto no caso de culturas
subordinadas trata-se, muitas vezes, de autodefesa ante a impossibilidade de
controlar minimamente os termos do diálogo. A vigilância política, cultural e
epistemológica da hermenêutica diatópica é, pois, uma condição do êxito desta.
Cabe às forças, aos movimentos e às organizações cosmopolitas defender as
virtualidades emancipatórias da hermenêutica diatópica dos desvios
reacionários. (SANTOS, 2009, p. 18).

O terceiro princípio do diálogo intercultural de Boaventura de Sousa Santos


introduz a questão do tempo que, ao meu ver, deve ser interpretado sempre juntamente
com a do espaço. Dessa forma, o nosso olhar sobre os estudos da branquitude crítica deve
considerar as contribuições das disciplinas de História e Geografia numa perspectiva
renovada. Ficaria no primeiro lugar com Milton Santos (1977), que conseguiu pensar
essas duas disciplinas e outras de forma interdisciplinar. O espaço, para ele “reproduz a
totalidade social, na medida em que essas transformações são determinadas pelas
necessidades sociais, econômicas e políticas” (1977, p. 91). Nesse mesmo, texto, já se
pode apreender a abrangência que o conceito de espaço comporta ao do território 10; e a
noção da inseparabilidade entre as formações espaciais, formações sociais e o tempo ou
formações históricas (SAQUET; SILVA, 2008). Na sua obra Por uma globalização: do
pensamento único à consciência universal, Milton Santos (2008) escreve que

O território não é apenas o resultado da superposição de um conjunto de


sistemas naturais e um conjunto de coisas criadas pelo homem. O território é o
chão e mais a população, isto é, uma identidade, o fato e o sentimento de
pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da
residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi.
(p. 98).

A perspectiva da Geografia de Milton Santos nos convida em interpretar o espaço


na sua totalidade; e o território como conjunto de sistemas naturais e de coisas criadas

10
Um exemplo da diferença que faz entre território e espaço: “A configuração territorial é dada pelo
conjunto formado pelos sistemas naturais existentes em um dado país ou numa dada área e pelos acréscimos
que os homens superimpuseram a esses sistemas naturais. A configuração territorial não é o espaço, já que
sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.
(Santos, 1996, p.51)” (Apud SAQUET; SILVA, 2008, p. 22 ).
pelos seres humanos, portanto o lugar de memória, marcada pelas histórias das
comunidades humanas. Nesse sentido, o tempo como categoria de interpretação das
relações raciais, exige que olhemos a história da humanidade, para ser modesto, desde o
século XV como o momento da consolidação da hegemonia racial dos/as brancos/as
europeus/europeias (CARDOSO, 2014a; MOORE, 2007). O capitalismo escravista,
colonial e globalizado, impôs aos povos dominados a visão do tempo linear, como
resultado de uma filosofia evolucionista e racista. Impôs, igualmente, uma geografia-de-
corpos brancos aos corpos negros. Os/as negros/as, desde a implementação do
capitalismo escravista-colonial pelos/as brancos/as, foram tratados como não humanos,
meros meios de produção, coisas. Dentro do capitalismo moderno e globalizado, após a
abolição da escravatura, embora considerados como seres humanos, os/as negros/as
continuam a receber um tratamento desigual; e as desigualdades raciais existentes
continuam a revelar quanto o racismo escravista se transfigurou no período pós-abolição.
Por isso, a importância de se investigar a branquitude para superar o racismo
contemporâneo.
A reinterpretação que faço do terceiro imperativo da intercultural boaventuriana,
além dos elementos anteriormente mencionados, é que são os/as brancos/as
europeus/europeias que impuseram a visão de “tempos unilaterais”. Isto é, projetaram na
sociedade moderna a sua imagem para atender aos interesses políticos, econômicos,
simbólicos, culturais, espirituais do seu grupo racial. A visão do tempo dominante é
sustentada pela branquitude racista. Essa visão, ao longo da história, tem se manifestado
pelo imperialismo, colonialismo, patriarcalismo, machismo, racismo que se apropria dos
corpos, territórios-espaços que os/as brancos/as classificam de não-brancos; portanto,
diferentes e sujeitos a ser colonizados e dominados (LOPES, 2016; SANTOS, 2009).
As visões dos “tempos partilhados”, evocados por Boaventura de Sousa Santos
(2009), aludem às revoluções contra-hegemônicas operadas pelos povos dominados no
Norte e no Sul global. São as revoluções epistemológicas, políticas e cosmológicas feitas
por esses povos. Interessa à epistemologia de macumba tornar visível e dizível as
revoluções negras que lutam contra a hegemonia da branquitude racista.
Coloco abaixo um trecho da dissertação de Joyce Lopes (2016) para afirmar que
ter domínio sobre o seu tempo-espaço e corpos é ter domínio de sua agência, mesmo
quando os/as brancos/as antirracistas estão trabalhando junto conosco como aliados/as.
Especialmente para a/os branca/os que resolveram aliar-se a luta antirracista a
partir de ações com/entre o MN, é preponderante entender, definitivamente,
que o seu lugar não é de protagonismo ou destaque, mas, segundo o
entrevistado DJ Branco, um lugar para aprender a ouvir e a seguir. “Primeiro,
acho que tem que escutar. Na chegada, é aliado? Existe possibilidade de atuar
junto? Existe possibilidade de atuar junto. Agora tem que ouvir e seguir os
princípios do MN”. Assim, contempla a posição de todas e todos
entrevistado/as. Primeiramente, as negras e os negros são quem ditam as
regras! No limite, é “nós por nós”. (LOPES, 2016, p. 138)

“Nós por nós” aponta a vontade da liberdade e de autonomia que muitas


organizações negras brasileiras vêm buscando e que, em parte, já conquistaram referente
à sua agenda.
Os povos negros exigiram o direito de elaborar novas narrativas do ponto de vista
da visão do seu tempo. Para eles, o seu tempo não é do homem/mulher branco/branca que
os explora. Os negros/as, que não foram contaminados pelo fetiche da brancura racista,
reivindicam um tempo ancestral e a reinvenção desse tempo em diálogo com outros
tempos mítico-ancestrais. Esse tempo aqui, diferente do tempo branco-ocidental, tende a
ser circular, espiral. A vida é vista como um círculo; os seres humanos não podem ser
coisificados pelo tempo; e o tempo que eles mesmos inventam é que deve se colocar ao
seu serviço (MALOMALO, 2016a).
Quando se afirma que o tempo negro-africano é mítico-ancestral, não significa
que os/as negros/as não seguem o tempo cronológico materialista. O seguem sim, mas
sabem que o material coexiste igualmente com o mundo imaterial; há uma
complementaridade entre o mundo visível e invisível. O tempo os leva a definir as coisas
na sua complexidade, complementariedade e solidariedade, numa perspectiva de Ubuntu
ou Bisoidade: o Nós-Cósmico em que participa a Comunidade-do-Sagrado-
Ancestralidade, Comunidade-dos-Seres-Humanos e Comunidade-Natureza-Universo
(MALOMALO, 2014b).
Como já apanharam tanto ao longo da história conduzidos pelos/pelas brancos/as,
os negros/as lutam para ser protagonistas do seu tempo, seus territórios, seu patrimônio
histórico. Buscam praticar a vigilância epistemológica e política para que a branquitude
racista não continue a oprimi-los/as.
A noção do tempo exige de nós a prática da ética do cuidado com o tempo de cada
um/a quando tratamos do desenvolvimento da identidade racial; e pretendo me focar
somente na identidade racial branca antirracista. Significa que o tempo nos remete ao
movimento; algo dinâmico e fluído (LUND, 2009). Os/as brancos/as que querem se tornar
antirracistas entraram num processo de mudança; alguns/algumas deles/as podem sair do
estado do nkindoki-racismo para chegar ao estado de aliados/as: mundo de macumba-
feitiço, do encanto para com o/a outro/a e a sua cultura; ou simplesmente permanecer no
meio, por exemplo, na terceira fase onde se perpetua o racismo: o Compromisso Para o
Seu Grupo Racial.
Mesmo aqueles/as que se tornam antirracistas não nos dão garantias, como já
vimos, de que se tornaram “santos/as”, perfeitos/as. Por isso, a vigilância epistemológica
e ética por parte dos movimentos negros e a autovigilância dos/as próprios/as negros/as e
brancos/as antirracistas é de suma importância para que a emancipação contra o racismo
siga o seu curso.
O quarto princípio do diálogo intercultural de Boaventura de Souza Santos exige
a passagem (4) de parceiros e de temas unilateralmente impostos a parceiros e temas
escolhidos por mútuo acordo.

4. De parceiros e temas unilateralmente impostos a parceiros e temas escolhidos


por mútuo acordo. Talvez a condição mais exigente da hermenêutica diatópica
seja a ideia de que tanto os parceiros como os temas do diálogo devem resultar
de acordos mútuos. No que respeita aos temas, a convergência é muito difícil de
alcançar, porque a possibilidade de tradução intercultural dos temas é
inerentemente problemática e porque em todas as culturas há temas
demasiadamente importantes para ser incluídos no diálogo com outras culturas.
Ainda assim, o importante para a hermenêutica diatópica é a direção, a noção e
o sentimento de incompletude da cultura. (SANTOS, 2009, p. 18).

Esse quarto princípio leva-me a essas reflexões. Seria não produtivo da parte
dos/as negros/as acharem que todos/as os brancos/as, embora gozem dos privilégios da
sua identidade coletiva, são racistas. Cuidar da forma de falar desse assunto é o primeiro
caminho que os/as negros/as educadores/as devem fazer. Entre os/as estudiosos/as, saber
diferenciar o que é ser branco/a racista e o que é ser branco/a antirracista. Trata-se de um
primeiro acordo existente.
O segundo acordo sobre os temas a serem escolhidos de mútuo contrato leva-me
a falar do assunto de apropriação da cultura negra pelos/as brancos/as e da sua
legitimidade. Aqui também precisa-se diferenciar as coisas para não cair na confusão.
O primeiro ponto que vou colocar aqui é que, por ser o racismo algo que atinge
especialmente os não brancos/as, são esses/ as que têm toda legitimidade política em dizer
publicamente o que eles sentem. Portanto, deste ponto de vista não tem nada a negociar
com os/as não negros/as sobre o conteúdo do que deve ser dito à sociedade. Isso não
significa que se devam evitar as formas pedagogicamente corretas de se falar sobre o
racismo.
Os/as brancos/as estudiosos do racismo, mesmo quando bem intencionados/as,
nunca vão saber o que é vivenciar o racismo. Dito isso, não significa que elas/as não
possam investigar o racismo e tomar posições públicas na qualidade de cientistas,
educadores/as ou cidadãos/cidadãs. Em outras palavras, a agenda da política racial é
propriedade política dos movimentos negros. Dentro desses, os/as brancos/as antirracistas
só podem atuar como aliados/as, colaboradores/as e nunca como protagonistas, a exceção
dos territórios talvez onde os/as negros/as ainda não conseguiram se organizar
minimamente ou estão ausentes devido à exclusão racista. Mesmos nesses lugares, os/as
brancos que mobilizam os negros/as a se organizarem, devem fazê-lo em curto prazo para
que o protagonismo seja dos/as negros/as (LOPES, 2016).
O campo da produção científica e da cultura comportam uma outra lógica em
termos de finalidade e por isso difere do campo dos movimentos sociais. Os bens culturais
negros, embora tenham por produtores/as sujeitos que se identificam com a cultura negra,
são patrimônios históricos públicos. No caso do Brasil, a cultura negra trazida da África,
hoje em dia é parte do patrimônio nacional. Trata-se de um fato, agrade ou não aos/as
defensores/as do puritanismo étnico-cultural. Enquanto patrimônio público, brancos/as e
negros/as podem ter acesso a ele. É nessa perspectiva que vemos brancos/as tornando-se
estudiosos da cultura africana ou afro-brasileira; outros/as tornam-se praticantes das
manifestações culturais africanas, religiões de matrizes africanas, samba, maracatu,
capoeira, ou fazem uso de adereços afro. Os temas a serem apresentados publicamente,
tendo-se em conta a autonomia relativas dos campos da cultura, ou seja, a liberdade que
oferecem aos seus produtores/as e reprodutores/as (BOURDIEU, 2002; MALOMALO,
2010), podem se alinhar na perspectiva das organizações sociais de negros ou dos
movimentos negros, organizados ou não. Mesmo assim, espera-se a lealdade da parte
dos/as brancos/as aliados/as aos/às negros/as, isto é, construir suas práticas culturais e
acadêmicas sobre a cultura negra e os/as negros/as sempre no horizonte do discurso
estético, cultural, político que os/as produtores/as culturais, os/as ativistas e os/as
intelectuais negros/as produzem. Pois, uma cultura que se diz negra quando, eticamente
falando, oprime os/as negros/as deixa de ser o que pretende ou afirma ser.
Em sua dissertação, Joyce Lopes (2006), abordou o que acabamos de mencionar
até aqui esclarecendo a diferença entre o que vem a ser a apropriação da cultura negra e
a sua expropriação. Essa última é o uso mercantilista, capitalista de bens culturais de um
grupo social subalternizado por um grupo social dominante que não se importa com o
bem-estar daquele; muitas vezes trabalha no sentido de manter o povo subalternizado na
situação de dominação. Os/as brancas/as que trabalham nessa lógica são os/as
reprodutores da branquitude racista. Usam meramente a cultura negra e, muitas vezes,
os/as produtores/as dessa cultura como meio de produção ou coisas, e não sujeitos, que
lhe permitem atingir seus interesses particulares, materiais, políticos e simbólicos. Nesse
campo de dominação, a branquitude racista não trata a cultura do outro e o outro grupo
social-racial como aliada e aliado, isto é, mediações para a sua própria humanização e do
mundo.
Já a apropriação é uma dinâmica que acontece no âmbito das sociedades
interculturais ou inter-raciais. Tratam-se de trocas de forma deliberada ou não deliberada
dos bens culturais ou igualmente de corpos dos produtores/as desses bens culturais. A
apropriação pode acontecer alcançando níveis complexos ou simples. Nesse último
aspecto, pode significar fazer uso de uma cultura para fins de satisfazer as necessidades
de reprodução, do turismo, de curiosidade, de estéticas, espirituais ou psicológicas ou
matérias, sem necessidade de explorar ou outro.
As trocas proporcionadas pela apropriação podem alcançar igualmente níveis
mais complexos para chegar no que se chama de mestiçagem, fusões culturais ou de
corpos biológicos em que se reconhecem ainda os elementos trocados; ou chegar no que
se chama de transculturação, fusões de elementos culturais que fazem emergir novas
culturas ou sujeitos interculturais.
A apropriação, seja ela em termos de níveis simples ou complexos; ou em termos
de forma de mestiçagem, miscigenação ou transculturação, em si, não é algo ruim. O que
nos permite emitir julgamentos éticos sobre ela é o seu contexto histórico e as formas
como seus processos atingem os sujeitos históricos envolvidos nela. Por exemplo, a lógica
da mestiçagem no Brasil como tem sido praticada pela branquitude racista tem se
estabelecido em epistemicídio, esteticídio, etnocício (SANTOS; MENESES, 2010;
NASCIMENTO, 1978). Negam as liberdades dos não brancos. Portanto, o valor ético de
uma apropriação é reconhecido pelas intenções dos seus/suas produtores/as que podemos
apreender pelas práticas de epistemologias, estéticas e política contra-hegemônicas que,
além dos conhecimentos do próprio campo, operam a partir da lógica da ética
emancipatória; isto é, de não domesticação do outro.
Já é comprovado, no Brasil, que a mestiçagem e seu ideário da democracia são
produtos da branquitude racista que visam à dominação da cultura negra e dos povos
negros (MUNANGA, 1999). Os/as negros dominados/as, do seu lado, ao lançar mão da
mestiçagem ou sincretismo ou miscigenação fazem-nos com finalidades de sobrevivência
ou resistência num mundo em que predomina o racismo estrutural (MOURA, 1995).
A saída dessas contradições seria abandonar a expropriação de bens culturais e
corpos negros numa lógica preestabelecida pela branquitude racista. Abandonar a
mestiçagem colonialista para considerar a mestiçagem emancipatória (MALOMALO,
2010), isto é, promover uma lógica de apropriação, de antropofagia da cultura do/a outro/a
racialmente ou culturalmente diferente, sem sujeitar ou ignorar os/as seus/suas
produtores/as. Trata-se de reconhecer a cultura e a sociedade brasileiras como moldadas
pelo pluralismo cultural e racial; e criar mecanismos políticos, epistemológicos e
educativos para que os/as brasileiros/as subalternizados/as pela branquitude racista
reconheçam isso, valorizem-nas e, consequentemente, sejam valorizados/as. Essa tem
sido a missão dos movimentos negros que trabalham no campo da cultura (D´ADESKY,
1995)
Tudo o que foi mencionado só vai nos auxiliar na educação dos/as brancos/as
antirracistas quando começarmos a tratar a branquitude numa perspectiva do
multiculturalismo progressista. Esse, no nível da micro-política, a exemplo da agenda da
política antirracista dos movimentos sociais, exige que os/as negros sugiram à sociedade
brasileira temas a serem abordados; e, quando necessário, até a sua didática. Os casos de
sucessos têm sido as novas práticas que os/as educadores/as e ativistas negros/as
introduziram no campo dos debates sobre a política de ações afirmativas, cotas e a Lei
10.639/03, que obriga o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. Já no nível
de macro-política, que visa à construção de uma sociedade multicultural, todos os grupos
sociais que formam uma nação multirracial são convidados a negociar e construir,
coletivamente, as agendas de forma democrática. Um exemplo histórico, seria a forma
como a Secretaria Especial de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) foi criada e
gerenciada no âmbito dos Governos federais, entre 2003 e 2016 (MALOMALO, 2010;
LOPES, 2016).
O que nos leva ao quinto princípio de Santos: a passagem (5) da igualdade ou da
diferença à igualdade e à diferença. Esse princípio é de suma importância, pois insiste
no foco: não perder de vista a agenda dos grupos subalternos. O que prevalece é o
multiculturalismo emancipatório subalterno e não o multiculturalismo dos dominantes.

5. Da igualdade ou diferença à igualdade e diferença. O multiculturalismo


progressista pressupõe que o princípio da igualdade seja prosseguido de par com
o princípio do reconhecimento da diferença. A hermenêutica diatópica pressupõe
a aceitação do seguinte imperativo transcultural: temos o direito a ser iguais
quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a
igualdade nos descaracteriza. (SANTOS, 2009, p. 18).

Gosto desse último princípio boaventuriano por sua radicalidade e flexibilidade


ou ginga. O interpreto na perspectiva da branquitude crítica macumbizada da forma
seguinte: os/as negros/as têm o direito de serem iguais quando a diferença os inferioriza;
têm o direito de serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza. Isso significa em
outras palavras que não podemos exigir, necessariamente, dos outros/as o que não
queremos para nós. Se a branquitude racista nos impôs, ao longo da história, o tempo
unilateral; transformou nossas estruturas subjetivas e objetivas em estruturas branco-
cêntricas, não podemos exigir que os/as brancos/as aliados/os transformem sua identidade
racial em identidade racial negra. O que os estudos da branquitude crítica exigem é que
os/as brancos/as assumam primeira e publicamente a sua identidade racial branca e,
consequentemente, lutem contra o racismo e renunciem aos privilégios que a sua condição
lhes concede.
Ser branco/a aliado/a é assumir, além de outros elementos que já mencionei, o
ponto de vista “do negro desde dentro”, proposto por Ramos (1995), de forma
colaborativa a sua agenda política. É lutar junto com os/as negros/as pelos direitos de
redistribuição e de reconhecimento, isto é, pela justiça econômica, política e simbólica e
pela igualdade racial.
O retrato da branquitude antirracista, do ponto de vista da epistemologia de
macumba, significa uma postura epistemológica, política, estética e ética dos/das
brancos/as em diálogo com a perspectiva negra. O diálogo intercultural e inter-racial aqui
sugerido significa o estabelecimento de compromissos para se tornar defensores/as dos
direitos de negros/as e aliados/as na luta contra o racismo; sem com isso, virar
protagonista da luta dos/as negros/as; e sem ser paternalistas.

Considerações finais

Nesse trabalho, prefiro falar dos/as brancos/as racistas e antirracistas para me


referir aos sujeitos históricos; ou de branquitude racista e branquitude antirracista para
me referir à identidade racial desses sujeitos, compreendendo que se tratam de identidades
plurais e opostas. Ou seja, percebeu-se que embora os/as brancos/as antirracistas sejam
diferentes dos/as brancos/as racistas, ambos gozam dos privilégios que o racismo
estrutural concede ao seu grupo racial.
Os Estudos da branquitude crítica são unanimes em afirmar que o fato de
brancos/as nascerem em sociedades racistas não significa que estão condenados/as a
serem racistas. A através de uma educação antirracista podem desenvolver uma
identidade racial não racista. Os diálogos da educação macumbista junto com Lund
(2009) e Santos (2009) apontaram alguns princípios para a realização de um diálogo inter-
racial entre brancos/as e negros/as antirracistas a ser processado no campo do
multiculturalismo emancipatório.

Macumbizar o/a branco/a, nesse texto, significou levá-lo/la a passar pelo processo
de letramento racial, a apropriar-se do ponto de vista da cultura negra, ser seu/ sua aliado/a
na luta antirracista. A branquitude antirracista, para mim, é uma postura epistemológica,
política, estética e ética que se opera no campo da interculturalidade e da interracialidade
libertadoras. Como qualquer empreendimento humano, e tendo em conta o poder
hegemônico da branquitude – crítica ou acrítica – no mundo, precisa ser vigiada pelos/as
negros/as e brancos/as antirracistas.

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