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10 Redes de indignagdo eesperanga Chock, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT), compartilhou ‘comiigo os dados de sua pesquisa inédita sobre o movimento Occupy nos Estados Unidos. Maytha Alhassen, drabe-americana que é jornalista ealuna de doutorado em etnicidade na USC, em Los Angeles, e que viajou por paises drabes na época dos levantes, trabalhou comigo em relatos sobre eventos-chave que testemunhou. em primeira mao, proporcionando-me acesso a fontes em irabe e, o que é mais, importante, me educando sobre o que realmente havia ocorrido em toda parte Evidentemente, sou 0 tinico responsivel pelos muitos erros que provavelmente ‘cometi em minha interpretacio. Mas sem sua inestimével ajuda eles seriam ‘muito mais numerosos. Foi pela qualidade de sua contribui¢do que ousei me aventurar na anilise de processos especificos dos levantes rabes. Assim, minha gratidio e meu reconhecimento vio para esse grupo bastante diversificado de individuos excepcionais que concordou em colaborar com 0 projeto deste livro, o qual se tornou um empreendimento realmente coletivo, cembora o resultado final tenha sido elaborado na solidio de minha autoria Quanto a meus livros anteriores, Melody Lutz, escritora profissional e or- ‘ganizadora pessoal deles, foi o elo-chave entre mim, o autor, ¢ voc! tornando possivel nossa comunicacdo. A Melody, meus sinceros agradecimentos. ‘A complexidade do processo de trabalho que acabei de esbogar e que levou a este livro exigit excepcionais habilidades administrativas e organizacionais, como também grande dose de paciéncia. Assim, meus mais profundos agradecimentos ‘a Clelia Azucena Garciasalas, minha assistente pessoal na Annenberg School of Communication, que dirigiu todo 0 projeto, coordenou a pesquisa ea ediglo, preen- cheu as lacunas, coletou informagSes, corrigiu equivocos e assegurou que voce tivesse em mios este volume com a plena garantia de seu controle de qualidade. ‘Também quero agradecer a contribuicio de Noelia Diaz Lopez, minha assistente pessoal na UOC, por seu constante apoio a todas as minhas atividades de pesquisa Por fim, como ocorreu com minhas pesquisas e meus textos anteriores, nada disso teria sido possivel sem o ambiente familiar favoravel de que goza o autor. Por isso, meu amor e gratiddo a minha esposa Emma Kiselyova, minha filha ‘Nuria, minha enteada Lena, meus netos Clara, Gabriel e Sasha, minha irma Irene e meu cunhado Jose. ‘Assim, foi nesse cruzamento de emogio e cognicio, trabalho e experiéncia, historia pessoal e esperanea no futuro que nasceu este livro. Para vocé. Barcelona e Santa Monica, dezembro 2o11-abril 2012 Prefacio Articular mentes, criar significado, contestar 0 poder Nincué rsperava, Num mundo turvado por afligéo econémica, cinismo politico, vazio cultural e desesperanca pessoal, aquilo apenas aconteccu. Subitamente, ditaduras podiam ser derrubadas pelas maos desarmadas do povo, mesmo que essas mios estivessem ensanguentadas pelo sacrifi- cio dos que tombaram, Os magicos das financas passaram de objetos de inveja piblica a alvos de desprezo universal. Politicos viram-se expostos como corruptos ¢ mentirosos. Governos foram denunciados. A midia se tornou suspeita. A confianca desvaneceu-se. E a confianga € 0 que aglutina a sociedade, 0 mercado e as instituiges. Sem confianca nada funciona. ‘Sem confianga 0 contrato social se dissolve ¢ as pessoas desaparecem, 20 se transformarem em individuos defensivos lutando pela sobrevivéncia. Entretanto, nas margens de um mundo que havia chegado ao limite de sua capacidade de propiciar aos seres humanos a faculdade de viver jun- tos € compartilhar sua vida com a natureza, mais uma vez os individuos realmente se uniram para encontrar novas formas de sermos n6s, 0 povo. De inicio, eram uns poucos, aos quais se juntaram centenas, depois formaramse redes de milhares, depois ganharam 0 apoio de milhées, com suas vozes e sua busca interna de esperanca, confusas como eram, ultrapassando as ideologias e a publicidade para se conectar com as preo- cupagGes reais de pessoas reais na experiéncia humana real que fora rei- vindicada. Comecou nas redes sociais da internet, jé que estas sio espagos de autonomia, muito além do controle de governos e empresas — que, 20 longo da historia, haviam monopolizado 0s canais de comunicagéo como alicerces de seu poder. Compartilhando dores e esperancas no livre espago 2 Redes de indignasloeesperanca piiblico da internet, conectando-se entre si e concebendo projetos a partir de miiltiplas fontes do ser, individuos formaram redes, a despeito de suas opinides pessoais ou filiagdes organizacionais. Uniram-se. E sua unio os ajudou a superar o medo, essa emogio paralisante em que os poderes constituidos se sustentam para prosperar e se reproduzir, por intimidaco ou desestimulo ~ e, quando necessério, pela violéncia pura e simples, seja la disfarcada ou institucionalmente aplicada, Da seguranca do ciberes- paco, pessoas de todas as idades e condigSes passaram a ocupar 0 espaco piblico, num encontro as cegas entre si e com 0 destino que desejavam forjar, ao reivindicar seu direito de fazer histéria ~ sua histéria -, numa ‘manifestaco da autoconsciéncia que sempre caracterizou os grandes mo- vimentos sociais.* (Os movimentos espalharam-se por contgio num mundo ligado pela internet sem fio e caracterizado pela difusio répida, viral, de imagens ¢ ideias. Comecaram no sul e no norte, na Tunisia e na Islandia, e de lé a centelha acendeu o fogo numa paisagem social diversificada e devas- tada pela ambigo ¢ manipulagdo em todos os recantos deste planeta azul ‘Ni foram apenas a pobreza, a crise econdmica ou a falta de democracia que causaram essa rebelido multifacetada. Evidentemente, todas essas dolorosas manifestacdes de uma sociedade injusta e de uma comunidade politica nao democritica estavam presentes nos protestos. Mas foi basica- ‘mente a humilhagao provocada pelo cinismo e pela arrogancia das pessoas no poder, seja ele financeiro, politico ou cultural, que uniu aqueles que transformaram medo em indignagao, e indignacao em esperanca de uma humanidade melhor. Uma humanidade que tinha de ser reconstruida a partir do zero, escapando das miltiplas armadilhas ideolégicas e institu- cionais que tinham levado imimeras vezes a becos sem saida, forjando um novo caminho, & medida que o percorria. Era a busca de dignidade em meio ao sofrimento da humilhacio ~ temas recorrentes na maioria dos movimentos. Movimentos sociais conectados em rede espalharam-se primeiro no mundo drabe e foram confrontados com violencia assassina pelas ditadu- ras locais. Vivenciaram destinos diversos, incluindo vitorias, concessdes, Preficio B massacres repetidos e guerras civis. Outros movimentos ergueram-se contra 0 gerenciamento equivocado da crise econémica na Europa e nos Bstados Unidos, por governos que se colocavam ao lado das elites finan- spanha, Grécia, ceiras responsiveis pela crise a custa de seus cidada Portugal, Ilia (onde mobilizacdes de mulheres contribuiram para por fim | bufa commedia dellarte de Berlusconi), Gré-Bretanha (onde a ocupacio de pracas e a defesa do setor piblico por sindicatos ¢ estudantes se deram as ios) e, com menos intensidade, mas simbolismo semelhante, na maioria dos outros paises europeus. Em Israel, um movimento espontineo com ‘miiltiplas demandas tornou-se a maior mobilizacao de base da historia do pais, obtendo a satisfacao de muitas de suas reivindicagées. Nos Estados Unidos, o movimento Occupy Wall Street, tio esponta- neo quanto 0s outros e igualmente conectado em redes no ciberespaco € no espaco urbano, tornow-se 0 evento do ano ¢ afetou a maior parte do pais, a ponto de a revista Time atribuir ao “Manifestante” o titulo de ppersonalidade do ano. E 0 lema dos 99%, cujo bem-estar fora sacrificado em beneficio do 1% que controla 23% das riquezas do pais, tornou-se tema regular na vida politica americana, Em 15 de outubro de 2011, uma rede global de movimentos Occupy, sob a bandeira “Unidos pela Mudanga Global”, mobilizou centenas de milhares de pessoas em 951 cidades de 82 paises, reivindicando justica social e democracia real. Em todos os casos, (0s movimentos ignoraram partidos politicos, desconfiaram da midia, no reconheceram nenhuma lideranga e rejeitaram toda organizacio formal, sustentando-se na internet ¢ em assembleias locais para 0 debate coletivo a tomada de decisdes. Este livro busca analisar, nesses movimentos, formacio, dinimica, valores e perspectivas de transformagio social. & uma investigaco sobre (0s movimentos sociais da sociedade em rede, que, em iiltima instancia, fardo as sociedades do século XI, 20 se engajarem em priticas conflitivas cenraizadas nas contradigées fundamentais de nosso mundo. A andlise aqui apresentada baseia-se na observacao dos movimentos, mas nfo tentaré descrevé-los, nem pretende fornecer provas definitivas acerca dos argu- ‘mentos expostos no texto. é esta disponivel uma profusio de informacées, 4 Redes de indignasio eesperansa artigos, livros, reportagens ¢ arquivos de blogs que podem ser facilmente consultados navegando-se pela internet. cedo demais para construir ‘uma interpretacdo sistemitica, académica, desses movimentos. Assim, ‘meu propésito € mais limitado: sugerir algumas hipéteses, baseadas na observacdo, sobre a natureza e as perspectivas dos movimentos sociais em rede, com a esperanga de identificar os novos rumos da mudanca social em nossa época e de estimular um debate sobre as implicagdes priticas (, em tiltima instancia, politicas) dessas hipéteses. Essa anilise tem por base uma teoria fundamentada do poder que apresentei no meu livro Communication Power, teoria que fornece substrato ara a compreensio dos movimentos aqui estudados. Parto da premissa de que as relagdes de poder so constitutivas da sociedade porque aqueles que detém 0 poder constroem as instituicdes segundo seus valores ¢ interesses. © poder é exercido por meio da coergio (© monopélio da violéncia, legitima ou no, pelo controle do Estado) e/ ‘ou pela construcao de significado na mente das pessoas, mediante meca- nismos de manipulacZo simbélica. As relagbes de poder estio embutidas nas instituigoes da sociedade, particularmente nas do Estado, Entretanto, uma vez, que as sociedades sio contraditérias e conflitivas, onde hi poder ha também contrapoder ~ que considero a capacidade de os atores sociais, desafiarem 0 poder embutido nas instituigdes da sociedade com o objetivo de reivindicara representacio de seus proprios valores e interesses. Todos 8 sistemas institucionais refletem as relagdes de poder ¢ seus limites tal como negociados por um interminavel processo hist6rico de contflito ¢ barganha, A verdadeira configuracio do Estado e de outras instituicées que regulam a vida das pessoas depende dessa constante interacio entre poder e contrapoder. Coetgao e intimidacao, baseadas no monopélio estatal da capacidade de exercer a violencia, sio mecanismos essenciais de imposigio da vontade dos que controlam as instituigées da sociedade. Entretanto, a construgéo de significado na mente das pessoas é uma fonte de poder mais decisiva e estavel. A forma como as pessoas pensam determina o destino de insti: ‘tuigbes, normas ¢ valores sobre os quais a sociedade é organizada, Poucos Prefico 5 sistemas institucionais podem perdurar baseados unicamente na coersio. Torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades, Se a maioria das pessoas pensa de forma contraditéria em relagdo aos valores e normas ins- titucionalizados em leis ¢ regulamentos aplicados pelo Estado, o sistema vai mudar, embora nao necessariamente para concretizat as esperancas dos agentes da mudanga social. £ por isso que a luta fundamental pelo poder é a batalha pela construcdo de significado na mente das pessoas. (0s seres humanos criam significado interagindo com seu ambiente natural e social, conectando suas redes neurais com as redes da naturezae com as redes sociais. A constituigao de redes ¢ operada pelo ato da comu- nicagio, Comunicagao é o processo de compartilhar significado pela troca de informagées, Para a sociedade em geral, a principal fonte da producio social de significado é 0 processo da comunicacio socializada. Esta existe no dominio piblico, para além da comunicacio interpessoal. A continua transformagio da tecnologia da comunicagao na era digital amplia o al- social, cance dos meios de comunicagdo para todos os dominios da ‘numa rede que é simultaneamente global ¢ local, genérica e personalizada, num padrio em constante mudanga. O processo de construcao de signifi- cado caracteriza‘se por um grande volume de diversidade. Existe, contudo, ‘uma caracteristica comum a todos os processos de construgio simbélica: cles dependem amplamente das mensagens e estruturas criadas, forma- tadas e difundidas nas redes de comunicacao multimidia, Embora cada mente humana individual construa seu proprio significado interpretando ‘em seus proprios termos as informagoes comunicadas, esse processamento mental € condicionado pelo ambiente da comunicagéo. Assim, a mudanca do ambiente comunicacional afeta diretamente as normas de construcio de significado e, portanto, a producio de relagdes de poder, Nos tiltimos anos, a mudanga fundamental no domini da comuni- cacio foi a emergéncia do que chamei de autocomunicagio ~ 0 uso da internet e das redes sem fio como plataformas da comunicacio digital. ‘comunicacio de massa porque processa mensagens de muitos para mui- tos, com o potencial de aleangar uma multiplicidade de receptores ¢ dese conectar a um nimero infindavel de redes que transmitem informagées 6 Redes de indignasao eesperanga digitalizadas pela vizinhanga ou pelo mundo. £ autocomunicag3o porque a produgio da mensagem é decidida de modo auténomo pelo remetente, a designacao do receptor ¢ autodirecionada ¢ a recuperagio de mensagens das redes de comunicacao é autosselecionada. A comunicagdo de massa baseia-se em redes horizontais de comunicacao interativa que, geralmente, sao dificeis de controlar por parte de governos ou empresas. Além disso, a comunicacio digital é multimodal e permite a referéncia constante a um hipertexto global de informagies cujos componentes podem ser remixa- dos pelo ator que comunica segundo projetos de comunicagao especifi cos. A autocomunicagio de massa fornece a plataforma tecnolégica para a construgdo da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relacio as instituig6es da sociedade. & por isso que 0s governos tém edo da internet, ¢ é por isso que as grandes empresas tm com ela uma relacao de amor ¢ dio, ¢ tentam obter lucros com ela, a0 mesmo tempo que limitam seu potencial de liberdade (por exemplo, controlando o com- partilhamento de arquivos ou as redes com fonte aberta). Em nossa sociedade, que conceptualizei como uma sociedade em rede, © poder é multidimensional e se organiza em torno de redes programa- das em cada dominio da atividade humana, de acordo com os interesses e valores de atores habilitados.* As redes de poder o exercem sobretudo influenciando a mente humana (mas nao apenas) mediante as redes mul- timidia de comunicacao de massa, Assim, as redes de comunicagio sio fontes decisivas de construcio do poder. Por sua vez, as redes de poder, em varios dominios da atividade hu- mana, constituem redes entre elas proprias. As redes financeiras e as mul timidias globais esto intimamente ligadas, e essa metarrede particular detém um poder extraordinario. Mas no todo o poder. A metarrede das finangas e da midia depende, ela propria, de outras grandes redes, tais como a da politica, a da produgao cultural (que abrange todos os tipos de artefatos culturais, ndo apenas produtos de comunicagio), a militar e de seguranga, a rede criminosa e a decisiva rede global de producao ¢ aplicacao de ciéncia, tecnologia e administracio do conhecimento. Essas redes nao se fundem. Em vez disso, envolvem-se em estratégias de parce- Preficio 7 rin e competi¢ao formando redes ad hoc em torno de projetos especificos. Mas todas tém um interesse comum: controlar a capacidade de definir las regras e normas da sociedade mediante um sistema politico que res- ponde basicamente a seus interesses ¢ valores. f por isso que a rede de poder construfda em torno do Estado e do sistema politico realmente desempenha papel fundamental no estabelecimento de uma rede geral dle poder. Isso porque, em primeiro lugar, a operacao estavel do sistema, assim como a reproducdo das relagdes de poder em cada rede, depende, ‘em tiltima instancia, das fungdes de coordenacao e regulacio do Estado, como ficou demonstrado no colapso dos mercados financeiros em 2008, quando 0s governos foram chamados a efetuar o resgate no mundo todo. Além disso, ¢ por meio do Estado que diferentes formas de exercfcio do poder em distintas esferas sociais relacionam-se ao monopolio da vio- Jéncia como a capacidade de, em iiltima instancia, impor o poder. Assim, enquanto as redes de comunicago processam a construgao de significado em que se baseia o poder, o Estado constitui a rede-padrao para o funcio- namento adequado de todas as outras redes de poder. Ento, de que modo as redes de poder se interconectam, embora pre- servando sua esfera de aco? Sugiro que o fazem por um mecanismo funda- mental de construcZo do poder na sociedade em rede: aalternancia de poder. "Trata-se da capacidade de conectar duas ou mais redes diferentes no processo de construir o poder para cada uma delas em seus respectivos campos. Dessa forma, quem detém o poder na sociedade em rede? Os progra- madores com a capacidade de elaborar cada uma das principais redes de que dependem a vida das pessoas (governo, parlamento, estabelecimento militar e de seguranga, finangas, midia, instituicdes de ciéncia e tecnologia etc). E os comutadores que operam as conexGes entre diferentes redes (ba- es da midia introduzidos na classe politica, elites fnanceiras que bancam clites politicas, elites politicas que se socorrem de instituigSes financeiras, empresas de midia interligadas a empresas financeiras, instituigdes aca- démicas financiadas por grandes empresas etc). Se 0 poder ¢ exercido programando-se ¢ alternando-se redes, entio ‘0 contrapoder, a tentativa deliberada de alterar as relagoes de poder, é 8 Redes de indignagio eesperanga desempenhado reprogramando-se as redes em torno de outros interes- ses e valores, e/ou rompendo as alternancias predominantes, ao mesmo tempo que se alteram as redes de resisténcia e mudanca social. Os atores da mudanca social sfo capazes de exercer influéncia decisiva utilizando mecanismos de construcio do poder que correspondem is formas e aos processos do poder na sociedade em rede. Envolvendo-se na producio de mensagens nos meios de comunicagio de massa e desenvolvendo redes auténomas de comunicagao horizontal, os cidadaos da era da informacio tornam:se capazes de inventar novos programas para suas vidas com as ‘matérias-primas de seu sofrimento, suas lagrimas, seus sonhos e esperan- «8. Elaboram seus projetos compartilhando sua experincia. Subvertem a pritica da comunicacio tal como usualmente se dé, ocupando o veiculo criando a mensagem. Superam a impoténcia de seu desespero solitirio colocando em rede seu desejo, Lutam contra os poderes constituidos iden- tificando as redes que os constituem. ‘Ao longo da historia, os movimentos sociais sio produtores de novos valores ¢ objetivos em torno dos quais as instituigdes da sociedade se trans- formaram a fim de representar esses valores criando novas normas para organizar a vida social. Os movimentos sociais exercem contrapoder construindo-se, em primeiro lugar, mediante um processo de comuni- cago auténoma, livre do controle dos que detém o poder institucional. Como os meios de comunicagao de massa sio amplamente controlados por governos ¢ einpresas de midia, na sociedade em rede a autonomia de comunicacio € basicamente construida nas redes da internet € nas plataformas de comunicacio sem fio. As redes sociais digitais oferecem a possibilidade de d mente desimpedida, Entretanto, esse é apenas um componente do processo comunicativo ar sobre e coordenar as aces de forma ampla- pelo qual os movimentos sociajg se relacionam com a sociedade em geral. Eles também precisam construir um espaco piiblico, criando comunidades livres no espaco urbano. Uma vez que espaco piiblico institucional 0 espaco constitucionalmente designado para a deliberacio —est ocupado pelos interesses das elites dominantes ¢ suas redes, 0s movimentos sociais Preface 9 ptecisam abrir um novo espaco piblico que nao se limite a internet, mas se torne vi nos lugares da vida social. & por isso que ocupam 0 espago lurbano e 0s prédios simbélicos. Os espacos ocupados tém desempenhado papel importante na historia da mudanga social, assim como na pritica contemporanea, por trés motivos basicos: 1, Bles criam uma comunidade, e a comunidade se bascia na proximidade. A proximidade & um mecanismo psicolégico fundamental para superar © medo. E superar 0 medo é 0 limiar fundamental que os individuos devem ultrapassar para se envolver num movimento social, a que esto bem conscientes de que, em tiltima instancia, terdo de confrontar a violencia caso transgridam as fronteiras estabelecidas pelas elites do- minantes para preservar sua dominacio. Na historia dos movimentos sociais, as barricadas erigidas nas ruas tiveram pouco valor defensivo; na verdade, tornaram-se alvos faceis, fosse para a artilharia, fosse para as brigadas antidistiirbios, dependendo do contexto. Mas sempre de- finiram um “dentro € fora’, um “nés versus eles”, de modo que, a0 se juntar a uma area ocupada e ao desafiar as normas burocraticas sobre ‘0.uso do espaco, outros cidadaos podem participar do movimento sem aderir a nenhuma ideologia ou organizacZo, apenas estando li por suas proprias razbes. 2. Os espacos ocupados nao carecem de significado: sio geralmente car- regados do poder simbélico de invadir éreas do poder de Estado ou de instituigbes financeiras, Ou entao, reportando-se a histéria, evocam me- ‘mérias de levantes populares que expressaram a vontade dos cidadios ‘quando foram fechadas outras vias de representacao. Frequentemente, prédios so ocupados, seja por seu simbolismo, seja para afirmar o di- reito de uso piblico de propriedades ociosas, especulativas. Ao assumir € ocupar o espaco urbano, os cidadaos reivindicam sua propria cidade, uma cidade da qual foram expulsos pela especulacdo imobilidria e pela burocracia municipal. Alguns movimentos sociais historicamente impor- tantes, como a Comuna de Paris de 1871 0u as greves de Glasgow em 1915 (na origem da politica de habitacdo piblica na Gri-Bretanha), comegaram 20 Redes de indignapdo eesperanca como boicotes aos aluguéis contra a especulacdo na érea da moradia* O controle do espaco simboliza o controle da vida das pessoas, 3. Construindo uma comunidade livre num espaco simbélico, os movi- ‘mentos sociais criam um espago piblico, um espaco de deliberacao que, ‘em diltima instincia, se torna um espago politico, para que assembleias so- beranas se realizem e recuperem seus direitos de representacio, apropria- dos por instituigées politicas ajustadas as conveniéncias dos interesses € valores dominantes. Em nossa sociedade, o espaco publico dos movimen- tos sociais é construido como um espaco hibrido entre as redes sociais da internet e 0 espaco urbano ocupado: conectando o ciberespaco com ‘© espaco urbano numa interacio implacével e constituindo, tecnologica e culturalmente, comunidades instantaneas de pratica transformadora. ‘A questo fundamental é que esse novo espaco piiblico, o espaco em rede, situado entre os espacos digital e urbano, é um espaco de comunica- ‘¢io auténoma. A autonomia da comunicagio é a esséncia dos movimentos sociais, ao permitir que o movimento se forme e possibilitar que ele se relacione com a sociedade em geral, para além do controle dos detentores do poder sobre o poder da comunicacao. De onde vém os movimentos sociais? E como sio formados? Suas . esto na injustica fundamental de todas as sociedades, implacavel- ‘mente confrontadas pelas aspiragdes humanas de justiga. Em cada con: raf texto especifico, os usuais cavaleiros do apocalipse da humanidade caval- gam juntos sob uma variedade de formas ocultas: exploragao econémica; pobreza desesperancada; desigualdade injusta; comunidade politica antide- ‘mocritica; Estados repressivos; Judicidrio injusto; racismo, xenofobia, ne- gacdo cultural; censura, brutalidade policial, incitagdo a guerra; fanatismo religioso (frequentemente contra crencas religiosas alheias); descuido com o planeta azul (nosso ‘inico lay); desrespeito a liberdade pessoal, violacio da privacidade; gerontocracia; intolerdncia, sexismo, homofobia e outras atrocidades da extensa galeria de quadros que retratam os monstros que somos nés, Evidentemente, sempre, em todas as instancias ¢ em todos os contextos, isso representa a dominagio pura ¢ simples de homens e mu- Preficio a Iheres, assim como de seus filhos, como alicerce bisico de uma (injusta) fordem social, Assim, os movimentos sociais tém um conjunto de causas estruturais € motivos individuais para se erguer contra uma ou varias dimensdes da dominagio social. Mas conhecer suas raizes nao responde ‘questo de seu nascimento, Uma vez que, em minha opinio, os movi 1entos sociais sio a fonte da mudanga social, e portanto da constituigao da sociedade, essa questo é fundamental. To fundamental que bibliotecas inteiras sGo dedicadas a uma abordagem experimental de sua resposta~e assim, consequentemente, ndo vou tratar dela aqui, ja que este livro nd pretende ser outro tratado sobre movimentos sociais, mas uma pequena janela para um mundo nascente Mas dire isso: 0s movimentos sociais de hoje, e provavelmente aqueles que ocorreram ao longo da hist6ria (0 que esta além do dominio da minha competéncia), s¥o constituidos de individuos. Digo isso no plural porque, nna maior parte do que li das anilises sobre esses movimentos em todas as épocas e sociedades, eu encontrei poucos individuos, as vezes apenas um. \inico her6i, acompanhados por uma multidao indiferenciada, chamada classe social, etnia, género, nacio, féis ou quaisquer outras denominagdes coletivas dos subconjuntos da diversidade humana, No entanto, embora agrupar a experiéncia de vida das pessoas em convenientes categorias analiticas da estrutura social seja um método itl, as praticas reais que permite que os movimentos sociais surjam, transformem as instituicdes, ¢, em diltima instancia, a propria estrutura social si desenvolvidas por individuos, em seus corpos ¢ em suas mentes. Desse modo, a questio-chave para esse entendimento € quando, como € por que uma pessoa ou uma centena de pessoas decidem, individualmente, fazer uma coisa que foram repetidamente aconselhadas a nao fazer porque seriam punidas. Hi geralmente um punhado de pessoas, as vezes apenas uma, no inicio de um movimento. De habito, os tebricos sociais chamam essas pes: soas dle agéncias. Eu as chamo de individuos. Entio, temos de entender a ‘motivagdo de cada individuo: como esses individuos constituem uma rede conectando-se mentalmente com outros individuos e por que sio capazes de fazé-1o, num processo de comunicagio que, em dltima instincia, leva » Redes de indignagto eesperanca 4 ago coletiva; como essas redes negociam a diversidade de interesses € valores presente em cada uma delas para se concentrar num conjunto de objetivos comuns; como essas redes se relacionam com a sociedade em {geral e com muitos outros individuos; e como € por que essa conexio funciona em grande mimero de casos, estimulando individuos a ampliar as redes formadas na resisténcia a dominago e a se envolver num ataque multimodal a uma ordem injusta No plano individual, os movimentos sociais sio emocionais. A insur- _géncia ndo comeca com um programa ou uma estratégia politica. Isso pode vir depois, quando surge a lideranga, de dentro ou de fora do movi ‘mento, para fomentar agendas politicas,ideolbgicas e pessoais que podem ou nio relacionar-se as origens e motivagies dos participantes do movi ‘mento. Mas o big bang de um movimento social comesa quando a emo: fo se transforma em ago. Segundo a teoria da inteligéncia afetiva,‘as, emogies mais relevantes para a mobilizacio social ¢ 0 comportamento po- litico s40 0 medo (um afeto negativo) ¢ 0 entusiasmo (um afeto positive)” Afetos positivos e negativos ligamse a dois sistemas motivacionais basicos resultantes da evolugio humana: aproximagio € evitagio. O sistema de aproximagio esta ligado ao comportamento voltado para objetivos, que leva o individuo a experiéncias gratificantes, Os individuos entusiasmam- se quando sio mobilizados para um objetivo que apreciam. E por isso que 0 entusiasmo esta diretamente relacionado a outra emogio positiva: a esperanca. A esperanca projeta 0 comportamento no futuro. De vez que ‘uma caracteristica distintiva da mente humana é a capacidade de imaginar © futuro, a esperanca é um ingrediente fundamental no apoio a aco com vistas a um objetivo, Contudo, para que surja o entusiasmo e aflore a esperanca, 0s indi viduos precisam superar a emocio negativa resultante do sistema moti vacional de evitacio, a ansiedade. A ansiedade é a reagio a uma ameaca externa sobre a qual a pessoa ameacada nao tem controle. Assim, a ansie- dade leva 20 medo e tem sobre a acio um efeito paralisante. A superagio da ansiedade no comportamento sociopolitico frequentemente resulta de outra emogio negativa, a raiva, Esta aumenta com a percepcio de uma Preficio 2 ago injusta e com a identificagdo do agente por ela responsivel. A pes- quuisa neurolégica mostra que a raiva esté associada ao comportamento de assuncio de riscos. Quando 0 individuo supera 0 medo, emogdes po- sitivas assumem 0 controle, a medida que o entusiasmo ativa a agdo, € a fesperanga antecipa as recompensas por uma aco arriscada. Entretanto, para que se forme um movimento social, a ativagio emo- ional dos individuos deve conectar-se a outros individuos. Isso exige um processo de comunicago de uma experiéncia individual para outras. Para que 0 processo de comunicacdo opere, ha duas exigéncias: a consonincia cognitiva entre emissores € receptores da mensagem € um canal de comu: hnicagZo eficaz. A empatia no processo de comunicacao é determinada por experiéncias semelhantes as que motivaram o acesso emocional inicial Em termos concretos, se muitos individuos se sentem hurnilhados, explo: rados, ignorados ou mal representados, eles esto prontos a transformar sua raiva em ago, to logo superem o medo. E eles superam o medo pela expressio extrema da raiva, sob a forma de indignago, ao tomarem co: nhecimento de um evento insuportavel ocortido com alguém com quem se identificam, Essa identificacao mais bem atingida compartilhando: se sentimentos em alguma forma de proximidade criada no proceso de comunicacio, Assim, a segunda condigao para que as experiéncias individuais se encadeiem € formem um movimento a existéncia de um proceso de comunicagdo que propague os eventos e as emogbes a eles associadas. Quanto mais rapido ¢ interativo for 0 processo de comunicacio, maior seri a probabilidade de formagio de um processo de aco coletiva enrai- zado na indignacao, propelido pelo entusiasmo e motivado pela esperanca. Historicamente, os movimentos sociais dependem da existéncia de mecanismos de comunicacao especificos: boatos, sermdes, panfletos e ma- nifestos passados de pessoa a pessoa, a partir do pélpito, da imprensa ou por qualquer meio de comunicacao disponivel. Em nossa época, as redes Aigitais, multimodais, de comunicacéo horizontal, sio os veiculos mais rapidos e mais auténomos, interativos, reprogramaveis e amplificadores de toda a historia. As caracteristicas dos processos de comunicacao entre 4 Redes de indignago esperanca individuos engajados em movimentos sociais determinam as caracteris- ticas organizacionais do proprio movimento: quanto mais interativa e autoconfigurével for a comunica¢o, menos hierdrquica seré a organizacio Gano uesticipas ies comcerimacin Eapieantoameionancrrimeamoepocieia cem rede da era digital representam uma nova espécie em seu género.* Se a origem dos movimentos sociais deve ser encontrada nas emo: ‘Ges dos individuos em sua constituiggo de redes com base na empatia cognitiva, qual o papel de ideias, ideologias e propostas programiticas tradicionalmente consideradas a propria esséncia de que éfeita a mudana social? Elas sio de fato substdncias indispensaveis para a passagem da ago impulsionada pela emocio & deliberac3o e & elaboracio de projetos. Sua insergao na pritica do movimento 6 também um processo de comunica- ‘¢lo, € 0 modo como esse processo ¢ construfdo determina o papel dessas substincias ideacionais no significado, na evolugao € no impacto desse movimento, Quanto mais as ideias sio geradas de dentro do movimento, ‘com base na experiéncia dos participantes, mais representativo, entusiés- tico € esperangoso seré ele, € vice-versa, Ocorre frequentemente que os ‘movimentos se tornem matérias-primas para a experimentacio ideologica ‘0u a instrumentagao politica, ao definir objetivos e representagoes que pouco tém a ver com sua realidade. Por vezes até no legado histérico a experiéncia humana do movimento tende a ser substitufda por uma imagem reconstruida para a legitimacio de lideres politicos ou a justificac2o das teorias de seus lideres organicos. Um exemplo € 0 modo como a Comuna de Paris veio a se constituir, em seu processo de reconstrugao ideol6gica, a despeito dos esforgos dos his- toriadores para restaurar sua realidade, uma revolucdo protoproletaria numa cidade que na época tinha poucos trabalhadores industriais entre seus habitantes. motivo pelo qual uma revolugdo municipal deflagrada por um boicote aos aluguéis e,parcialmente liderada por mulheres veio 4 ser representada equivocadamente relaciona-se & imprecisio das fontes de Karl Marx em seus textos sobre a Comuna, baseados principalmente em sua correspondéncia com Elizabeth Dmitrieva, presidente da Unio das Mulheres, communard ¢ comprometida com 0 socialismo que s6 via 0 Preficio 2s ‘que ela e seu mentor queriam ver’ A representacdo equivocada dos movi- entos por seus lideres, idedlogos ou cronistas tem de fato consideraveis ‘consequéncias, jé que introduz uma clivagem irreversivel entre os atores lo movimento € os projetos elaborados em seu nome, muitas sem seu conhecimento ou concordancia. A questao seguinte, no que se refere a compreensio dos movimentos sociais, relaciona-se & avaliagao do verdadeiro impacto da aco conjunta des- sas redes de individuos sobre as instituig6es da sociedade, assim como sobre si mesmos. Iss0 vai exigir um diferente conjunto de dados e instrumentos analiticos, jf que as caracteristicas das instituigbes e das redes de dominacio devem ser confrontadas com as caracteristicas das redes de mudanca social Em resumo, para que as redes de contrapoder prevalecam sobre as redes dle poder embutidas na organizacio da sociedade, elas tém de reprogramar a organizacio politica, a economia, a cultura ou qualquer dimensio que pre- tendam mudar, introduzindo nos programas das instituig6es, assim como em suas proprias vidas, outras instrugdes, incluindo, em algumas verses utépicas, a regra de niio criar regras sobre coisa alguma. Além disso, devem acionar a conexao entre diferentes redes de mudanca social, por exemplo, entre redes pro-

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