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CAMPINA GRANDE – PB
2017
MIRELE FERNANDA CÂNDIDO DE SOUZA
CAMPINA GRANDE – PB
2017
DEDICATÓRIA
A minha amada filha Alicia, razão do meu viver, parte de mim que me
impulsiona a todo momento seguir em frente, me fazendo sempre
lembrar que o problemas não são obstáculos, mas oportunidades para
serem superados.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que é a base de tudo em que acredito, por tudo que tem feito em minha vida,
principalmente por ter me dado o dom da vida, por cada oportunidade oferecida, por cada
recomeço, pelos dons e, principalmente por estar ao meu lado, sempre me protegendo,
guiando e me iluminando com sua presença divina no mais íntimo do meu ser, possibilitando
assim um crescimento diário.
A minha irmã Ysleny Cândido, pelo apoio e paciência.
Aos meus pais que sempre me apoiaram principalmente no auxilio com minha filha,
sempre cuidando com muito carinho e atenção para que eu pudesse dar continuidade a este
curso.
Ao meu Esposo Alisson, que me acompanhou e apoiou no decorrer do curso.
À minha Orientadora Drª. Ana Lúcia Maria de Souza Neves, pelo acolhimento,
paciência e atenção.
EPÍGRAFE
Fonte: www.facebook.com/viver-poesias
RESUMO
This monograph was carried out a study of the poetry of Roseana Murray presentin the work
Manual da delicadeza de A à Z ( 2014 ), the book is composed of 26 poems. As the title
suggests, it is a collection of words/poems in alphabetical order, which deals with affection
seeing, hearing and the relationship between the self and the other, having as a central thread
the delicacy. The research was motivated by the interest in analyzing as identity and otherness
are built and related in the poems. The main objective of this research is to give visibility to
the questions of identity and otherness present in the poetic construction of Rose Murray’s
Manual da Delicadeza de A à Z, expressed in a universe of words, images, colors and
different sensorial impression that arouse the reflection about who we are and the importance
of tenderness and solidarity in contemporary society. The methodology of the work consisted
in the analytical reading of the poems, paying attention to the aesthetic aspects of the text
without losing the historical and cultural context in which the work was produced. However,
the reflections sought to identify the mechanism of identify construction subjectivies,
relations with the induction and representation of alterity present in the poems. Therefore, it
was used to the theorical contributions of Bauman (2003, 2005, 2009) Hall (2004, 2006)
Culler (1999) Silva ( 2000), Zanella (2005), Calvino (1990), with respect to identity and
otherness as well as using the contributions of the theorists: Aguiar ( 2001 ), Bosi ( 1994),
Alves (2008), Cara (1986), for the study of characteristics aspects of the poem and poetry
written for children and youths.
1- INTRODUÇÃO……………………………………………………………………...09
2- A PRODUÇÃO DE POESIA PARA CRIANÇAS E JOVENS NO
BRASIL…………………………………..................................................................………..11
3- O UNIVERSO POÉTICO DE ROSEANA MURRAY: UMA APRENDIZAGEM
DO OLHAR, DO OUVIR E DO SENTIR A SI MESMO, O OUTRO E O MUNDO AO
REDOR...................................................................………………………………………….18
4- IDENTIDADE E ALTERIDADE NA CONSTRUÇÃO POÉTICA DO
MANUAL DA DELICADEZA DE A A Z............................................................…………...21
4.1 A construção do EU e a interação EU X Mundo a partir da leitura dos poemas
“Horizonte”, “Afago”, “Dádiva” e “Esperança”................................………………………...22
4.2 Rumo ao encontro do Outro: uma leitura dos poemas: “Fonte” e
“Gavetas”....................................................................................................…………………..32
CONSIDERAÇÕES FINAIS ………………………………………………………………35
REFERÊNCIAS……………………………………………………………………………..37
ANEXO (POEMAS SELECIONADOS PARA COMPOR O CORPUS DO ESTUDO
………………………………………………………………………………………………...43
1- INTRODUÇÃO
10
2- A PRODUÇÃO DE POEMAS PARA CRIANÇAS E JOVENS NO BRASIL
Como bem destaca Aguiar (2001, p.109), a poesia direcionada ao público infantil,
assim como as narrativas escritas para crianças, tem sua origem na tradição popular, no hábito
de fazer versos e rimas que os povos desde a antiguidade tão bem cultivaram.
Na realidade brasileira, a literatura direcionada ao público infantil, desde o primeiro
momento, seguiu os moldes do projeto educativo europeu:
(...) a imagem da criança presente em textos desta época é estereotipada, quer como
virtuosa de comportamento exemplar quer como negligente e cruel. Além de
estereotipada, essa imagem é anacrônica em relação ao que a psicologia da época
afirmava a respeito da criança. Além disso, é comum também que esses textos
infantis envolvam a criança que os protagoniza em situações igualmente modelares
de aprendizagem: lendo um livro, ouvindo histórias edificantes, tendo conversas
educativas com os pais e professores... (LAJOLO; ZILBERMAM, 1986, p. 34).
Neste sentido, a Literatura infantil, durante muitos anos, seguiu rumos impostos pela
sociedade burguesa, sendo moldada pelos padrões pedagogizantes. Durante o século XVII e
meados do século XVIII, as produções literárias encontravam-se inseridas em determinados
contextos que buscavam retratar em cada produção a tomada de consciência da cultura, da
política, da economia, delineando, assim, a exaltação dos valores morais e cívicos, retratados
pela sociedade. Desta maneira, as crianças não tinham liberdade de escolha literária,
tampouco, acesso aos livros como objeto de prazer e motivação, uma vez que os livros
destinados ao público infantil eram meramente didáticos e religiosos.
A ligação com a pedagogia objetivava transmitir valores burgueses para serem
incorporados como instrumento de ensinamento educacional, com base na visão de mundo do
adulto, pois, o repertório de mensagens que os livros deveriam apresentar era comum aos
produzidos para adultos, ou seja, suas abordagens eram sujeitas aos ditames da classe
burguesa, limitadas, portanto, à área pedagógica.
No prefácio da obra Poesias infantis (1904) do poeta Olavo Bilac, o escritor
parnasiano deixa clara a intenção de educar por meio da poesia:
Quando a Casa Alves & Cia me incumbiu de preparar este livro para uso das aulas
de instrução primária, não deixei de pensar, com receios, nas dificuldades grandes
do trabalho. (...) Em certos livros de leitura que todos conhecemos, os autores,
querendo evitar o apuro do estilo, fazem períodos sem sintaxe e versos sem
metrificação. Uma poesia infantil, conheço eu, longa, que não tem um só verso
certo! (...) O livro aqui está. É um livro em que não há animais que falem, nem fadas
que protegem ou perseguem crianças, nem as feiticeiras que entram pelos buracos
das fechaduras; há aqui descrições da natureza, cenas de família, hinos ao trabalho, à
11
fé, ao dever; alusões ligeiras à história da pátria, pequenos contos em que a bondade
é louvada e premiada. (...) Fiz o possível para não escrever de maneira que parecesse
fútil demais aos artistas e complicado demais às crianças. (BILAC, 1904, p. 11).
12
O bom menino
Com vistas a tais produções literárias, que deturpavam o conceito de literatura infantil
e infantojuvenil é que Lisboa (2002), cria um estilo de escrita que revela o prazer de saborear
palavras, marcar ritmos e descobrir belezas, superando a poesia moralista e pedagógica da
época, como bem afirma sobre à necessidade de material literário adequado à escola e
acessível à infância,
13
Em longo e interessado convívio escolar, sempre me preocupou a falta de material
literário com que lutam os professores para tornarem mais atraente e, pois, mais
eficaz o ensino da língua. [...] De outro lado, em constante contato com as letras,
sempre me impressionou e encantou a literatura oral, concisa e fecunda no seu
realismo, tanto quanto ardente no seu idealismo (LISBOA, 2002, p. 13).
Com base nestas afirmações percebe-se, então, que as novas conceituações sobre o ser
criança estão aos poucos sendo moldadas e adequadas as necessidades do público infantil, em
relação as obras já existentes, promovendo assim, diversas transformações no entendimento
da literatura, de maneira que, a partir daí os leitores infantis passam a acompanhar por meio
dos textos as descobertas de um mundo diferente do já vivenciado até então, e por meio
destes, terão a oportunidade de adentrar em um mundo lúdico, mágico que vai de encontro
com a fantasia, estabelecendo, assim, uma linha tênue entre imaginação e realidade.
Bordini (1991, p.109) destaca outros vieses da poesia direcionada para a criança no
Brasil:
Dentro desse processo inovador, a criança é descoberta como um ser que precisava
de cuidados específicos para a sua formação humanística, cívica, espiritual, ética e
intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educação e Cultura abrem caminhos para
os novos e ainda tateantes procedimentos na área pedagógica e na literária. Pode-se
dizer que é nesse momento que a criança entra com um valor a ser levado em
consideração no processo social e no contexto humano. (...) Nos rastros dessa
descoberta da criança surge também a preocupação com a literatura que lhe serviria
para a leitura, isto é,para a sua informação sobre os mais diferentes conhecimentos e
para a formação de sua mente e personalidade.(COELHO, 1991, p.139).
É assim que se expressa Lisboa (1974, p.1) ao comentar o livro O peixe e o pássaro, de
Bartolomeu Campos de Queirós:
Para Henriqueta (1955, p.87,88), a poesia não tem destinatário, no sentido de algo
limitador, definitivo; diferentemente de Bordini, quando trata de dosar a quantidade de vazios
da indeterminação:
15
Como todas as grandes cousas verdadeiras, a poesia é uma só. Uma só cousa – vasta,
profunda, total. Que subsiste através de rótulos, desconhece divisões, emerge de
departamentos e escolhas. Que não se atém a capacidade ou incapacidade de
apreensão alheia, nem sequer a necessidades outras que não a sua própria
necessidade de existir.
Embora a autora esteja referindo-se não especificamente a poesia para criança, mas a
poesia em geral, os textos para crianças e jovens também passaram com o Modernismo por
mudanças linguísticas, estruturais e temáticas. De acordo com Aguiar (2001), no momento em
que os escritores adultos começam a entender o mundo da criança, seus textos passam a
cultivar temas e linguagens que tocam a sensibilidade infantil, sem menosprezá-la ou protegê-
la. (p. 109).
Nesta perspectiva, devemos reconhecer que a leitura de poesia é uma modalidade
singular de aprendizagem, interação e comunicação. Por meio desta, os alunos ampliam o seu
repertório de conhecimento, não apenas da escrita e da leitura, mas também em relação aos
aspectos sociais e culturais da realidade atual. De acordo com Bocheco (2002, p.33-35):
O autor afirma que é por meio de poesias que se tem a possibilidade de explorar ao
máximo a “irrealidade” do imaginário infantil, pois a poesia reconfigura o universo infantil,
17
conferindo-lhe novas formas de expressão além de contribuir para o desenvolvimento
sociointeracional.
Na poesia infantil brasileira muitos foram os meios pelos quais os poetas enveredaram,
dentre estes: o humor, a fusão prosa e poesia e o trabalho com a palavra de maneira lúdica e
inventiva. Para Aguiar (2001), a poesia infantil só está plenamente realizada quando é capaz
de se aproximar do leitor, criar imagens, sons e ritmos que façam a criança brincar com a
linguagem e descobrir novas formas de se relacionar com o mundo. (p. 131).
Para Coelho (2000)
Se partirmos do princípio de que hoje a educação da criança visa basicamente levá-
la a descobrir a realidade que a circunda; a ver realmente as coisas e os seres com
que ela convive; a ter consciência de si mesma e do meio em que está situada (social
e geograficamente); a enriquecer-lhe a intuição daquilo que está para além das
aparências e ensiná-la a se comunicar eficazmente com os outros, a linguagem
poética destaca-se como um dos mais adequados instrumentos didáticos (COELHO,
2000, p. 158).
1
Roseana Murray In: CORDEIRO, Leonor. Entrevistando Roseana Murray. 14 Abril 2007. Disponível em:
http://www.leonorcordeiro.blogspot.com.br/. Acessado em: 12 Agosto 2016.)
18
Carinho). Tem dois livros traduzidos no México (Casas, e Três Velhinhas tão velhinhas).
Seus poemas estão em antologias na Espanha. Tem poemas traduzidos em seis línguas (in Um
Deus para 2000, Juan Arias, Esta grande desconhecida, Juan Arias).2
Recebeu o Prêmio O Melhor de Poesia da FNLIJ no ano de 1986 (Fruta no Ponto),
1994 (Tantos Medos e Outras Coragens), 1997 (Receitas de Olhar) e, em 2013, (Diário da
Montanhai).
Este ano a poetisa está completando 37 anos de produção literária. A respeito da sua
poesia para criança e jovens, ela declara em entrevista a Cruz (2014, p.3)³:
Em 1979, de brincadeira, comecei a escrever para meu filho mais velho, que ficava
me rodeando, querendo ler tudo o que eu escrevia. Nessa época, ele estava na
segunda série. Fiz uns poemas para ele e enviei-os à professora. Ela me mandou um
bilhetinho dizendo que achava legal e que eu deveria tentar publicar. Levei-os para
uma amiga ilustradora e pedi sua opinião: ‘Está uma gracinha. Eu vou ilustrar e a
gente vai tentar’. Mandamos para várias editoras, em 1980. Aí, a Editora Murinho,
que estreou com meu livro, publicou e, depois de algum tempo, ela faliu.
2
Estas informações foram coletadas no site HTTP//roseanamurray.com
19
Acho que a poesia pode emocionar e tocar as pessoas e este seria o primeiro passo
para qualquer mudança. Vivemos imersos numa sociedade violenta, numa cultura da
violência, não existe no mundo uma cultura de paz. Todos brigam com todos. Hoje
temos muitas guerras, muitas, muitas mortes de crianças e jovens, mulheres, velhos,
civis, enfim. Pessoas no mundo vivem em situações terríveis. Povos inteiros fogem
de lá para cá. Alguém pode ficar imune a isso? Sou uma poeta lírica, passo muita
esperança com a minha poesia e me preocupo com o mundo. (CRUZ, 2014, p. 6).
Para Silva (2012, p.165), Roseana desde a primeira obra sempre voltou-se para o
público infantil e juvenil:
Roseana Murray, que estreou na literatura em 1980 com um livro de poemas para a
infância, inclui-se entre os primeiros poetas a contemplar o público jovem. Desde a
década de 80, ela vem construindo uma obra sólida e constante, de amplo
reconhecimento da crítica, o que se evidencia nas sucessivas premiações e nos
estudos críticos sobre sua obra, realizados principalmente nos programas de pós-
graduação em Letras.
Isto nos lembra das palavras de Lisboa (1955, p.87,88) com relação ao fato de que a
poesia não tem destinatário no sentido de algo limitador e definitivo. Além disso, mostra que
20
Roseana Murray “não subestima seu leitor com facilitações de linguagem e obviedades de
assuntos”. (SILVA, 2012, p.165).
Ainda de acordo com Silva (2012), é preciso que o leitor esteja atento as peculiaridades
da dicção poética de Roseana e, mais do que isso, o leitor “precisa desarmar-se das peias do
pensamento lógico e abrir-se à imaginação sem rédeas, como faz nos momentos de sonho ou
de devaneio. Isto porque a poesia reside no domínio da emoção.” (p.167).
Vera Tietzmann destaca como imagens recorrentes na poesia infantil e juvenil de
Roseana Murray:
(...) imagens impregnadas de valor simbólico buscadas na paisagem natural ou na
paisagem modificada pelo homem. São as árvores e os ninhos, os gatos, os pássaros
e cavalos, a lua e as estrelas, mas, sobretudo, as águas, as nuvens e o vento (...). De
presença forte e apelo marcante, a paisagem marinha se impõe na poética de
Roseana: barcos, navios, farol, oceano, ondas, espumas, peixes e redes são imagens
recorrentes, em que a ação do homem e da natureza se completam. Criada pela mão
humana, a casa, com suas possibilidades de abrigo ou esconderijo, com seus poços e
gavetas, ou com suas vias de acesso, suas portas e janelas, é presença insistente na
obra desta poetisa. (apud SILVA, 2012, p.169).
21
portanto, formada e transformada continuamente de acordo com a cultura na qual estamos
inseridos.
Nesta perspectiva, Bauman (2003, p. 21) define as formações identitárias como:
Identidade significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença, singular — e assim
a procura da identidade não pode deixar de dividir e separar. E no entanto a
vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da solitária construção
da identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que
possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades (...).
22
Carregado de símbolos e imagens, o poema intitulado Horizonte nos propõe pensar na
existência humana, impulsionada pelos sonhos e desejos. Para tanto, o eu poético utiliza
referências a elementos da natureza e símbolos que apontam para significados atrelados à
construção do EU:
HORIZONTE
Caminhar sobre
a fina linha
do horizonte
requer profundo
equilibro azul
e muita delicadeza.
O titulo do poema “Horizonte” nos transmite uma ideia de longitude e evoca a beleza
que está no encontro, na união entre o mar ou a Terra e o céu. Sugerindo também que
devemos buscar ver para além do que os nossos olhos conseguem alcançar.
A linguagem simbólica instiga a nossa imaginação, apontando para a necessidade de
integração e harmonia do ser humano com a natureza:
"Caminhar sobre
a fina linha
do horizonte
requer profundo
equilibro azul
e muita delicadeza."
O poema nos impulsiona a olhar para o mundo de forma mais sensível. As palavras
são carregadas de afetividade e despertam uma autenticidade na forma como podemos
enxergar o mundo: "Caminhar sobre a fina linha do horizonte".
É possível perceber, ainda, registros sensoriais, demarcados na identificação da cor
azul, os quais envolvem o sentir e o refletir, "requer profundo equilibro azul e muita
delicadeza", lembrando-nos de que as cores em seus diferentes significados podem nos
23
transmitir luz e despertar sensações. Para tanto, Murray escolhe a cor azul que está, de acordo
com o dicionário de símbolos (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2012), relacionada com a
nobreza, harmonia, tranquilidade e serenidade.
Para o eu poético, é no horizonte, espaço símbolo do lugar desejado, que tudo se torna
possível. Como podemos observar nos versos abaixo:
AFAGO
Afagar o outro
em nossa água, em nosso mel,
em nossa alma.
(MURRAY, 2014, p. 10).
Neste poema, dividido em duas estrofes, o eu poético fala do carinho por meio do
toque, do “afago”. O eu se volta para a existência do outro no sentido de estabelecer um elo
24
com o de fora, que não o próprio eu, na contramão do que Bauman (2009, p.20) enfatiza sobre
a sociedade contemporânea:
25
imediatistas de consumo. Ao contrário, o poema ressalta a importância do carinho, da fluidez
do afeto:
Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim
mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. Não se trata
absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional, quero dizer que preciso mudar
de ponto de observação, que preciso considerar o mundo sob uma outra ótica, outra
lógica, outros meios de conhecimento e controle. As imagens de leveza que busco
não devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como
sonhos…
O que o autor busca destacar é que há uma ideia de passagem, de fluidez na busca pela
identidade, a qual nos remete a uma crise do eu consigo mesmo, na busca de seus referenciais
de autoconhecimento, dando sentido à vida mediante as condições reais, marcas presentes nos
versos de Roseana.
Stuart Hall (2006) aponta uma crise de identidades que tem tomado conta e
ressignificado o sujeito contemporâneo. Para o autor:
26
é e de se tornar o que ainda não se é". Verifica-se, assim, que o processo de criação e
recriação de identidades nos permite a possibilidade de experimentação e fusão de diferentes
nuances da vida.
Na segunda estrofe do poema, composta de quatro versos curtos e estruturada por
meio de enjambement e da anáfora, recursos que contribuem para a musicalidade que ecoa
entre os versos, a autora destaca a necessidade de substantivação do outro, da necessidade do
toque e do acolhimento do outro no próprio íntimo:
"Afagar o outro
em nossa água, em nosso mel,
em nossa alma".
A temática abordada nesta estrofe sugere um transporta-se para o outro de tal forma
que representa um desnudar-se para o outro, tal como ele é, ao aconchegar-se nas entre as
pessoas, considerada vital para o equilíbrio interior do indivíduo.
Neste sentido, os versos de Murray denotam uma sensibilidade de alguém que corre
em busca do objeto ideal, da simplicidade encontrada nas pequenas coisas, demonstradas em
cada palavra: "Afagar o outro/ em nossa água, em nosso mel/em nossa alma". Para o eu
poético, a vida só tem sentido quando se está plenamente em paz consigo e com o outro. Ou
seja, a experiência de vida perpassa todo o ser e, por esta perspectiva, dá qualidade à
existência.
A recorrência de determinadas palavras no poema reitera o viés da delicadeza, como
por exemplo, "aconchego", substantivo abstrato que traz a ideia da aproximação com o outro,
por meio de pequenos gestos e atitudes, assim como a "água", que nos traz uma ideia de
pureza, renovação da alma e do corpo. Para tanto, as palavras evocam um clima de leveza,
que apontam para uma direção contrária à perseguida por muitos nos dias atuais. Época
proclamada pela busca de superioridade humana por meio de bens de consumo, onde os
valores são mensurados por outros valores para se obter cada vez mais satisfação própria,
desta forma a autora utiliza tal léxico como meio de transformar as palavras em significados
capazes de romper com a ideia de peso e de fracasso humano.
De acordo com Bauman (2009), a felicidade e a identidade nos dias atuais confundem-
se com bens de consumo, de manifestações convincentes de interesse pessoal e, nesta
perspectiva, o autor destaca:
27
Os bens necessários para felicidade subjetiva, e notadamente os não-negociáveis,
tem um denominador comum, é possível quantificá-los; pois nenhum aumento na
quantidade de um bem pode compensar plena e totalmente a falta do outro… (p.15).
Desta forma, observa-se no poema a necessidade do contato com o outro, por meio de
trocas de afetos, sensibilidade, comunicação, associada à representação da multiplicidade das
impressões sensoriais como tato, paladar, visão, envolvendo o leitor.
Pelo viés da delicadeza, a poetisa segue seu Manual utilizando um tom de
confidências, expresso através de sua poesia na revelação de que o ser está sempre para além
de si mesmo, inserido em uma dinamicidade de novas possibilidades e de novas identidades.
Desta maneira, o poema “Dádiva” tematiza sobre a gratuidade das coisas simples da vida.
DÁDIVA
A dádiva da vida
em suas minúcias:
lavar o rosto e as mãos,
mastigar o pão e sol,
guardar no coração
o canto raro de um pássaro
e a voz amada, como se guarda
com delicadeza,
no fundo da gaveta,
o mapa das estradas
já percorridas.
Todos os dias
novas estradas,
estrelas novas
e antigas.
todos os dias
o alfabeto da vida.
(MURRAY, 2014, p. 13).
28
A experiência de se valorizar o simples redimensiona a relação do eu com o presente,
o passado e o futuro. É preciso valorizar o hoje como resultado do passado, pois o ontem não
passou e, sem dúvida, ajuda-nos a compreender melhor o hoje e abrirá perspectivas para
“novas estradas”:
O autor faz uma ponte entre a imagem poética e os sentidos, transitando paralelamente
entre o que se "é" e o que se deseja "ser", por meio da simplicidade e leveza, nos levando a
visualizar o universo poético e real:
29
"guardar no coração
o canto raro de um pássaro
e a voz amada, como se guarda
com delicadeza,
no fundo da gaveta,
o mapa das estradas
já percorridas."
"Todos os dias
novas estradas,
estrelas novas
e antigas.
todos os dias
o alfabeto da vida".
A identidade desse sujeito consiste em um resgate das suas memórias: “Faz hoje o que
se tornou possível pelo ontem” (BARRETO, 2004, p.55).
Ainda seguindo o viés da simplicidade encontra-se o poema intitulado Esperança, no
qual a poetisa busca em suas palavras a leveza, a significação da necessidade existencial do
homem em relação a valores considerados por muitos como antigos:
ESPERANÇA
Neste poema a poetisa realiza uma comparação entre o "peso", demarcado na palavra
“carregam/carregar”, e a leveza, simbolizada na imagem “água em peneira", apontando para a
realidade fragmentada em que vivemos, marcada por continuidades e descontinuidades e pela
fusão entre real e irreal.
A poetisa intitula o poema de "esperança", lembrando-nos mais uma vez das palavras
de Paulo Freire que dizia que é preciso ter esperança, mas do verbo “esperançar”. A esperança
não deve ser confundida com espera, ao contrário, esperançar é ir atrás, é não desistir. É ser
capaz de dizer não às alienações e ter a coragem de acreditar e reagir. (FREIRE, 1992).
“Esperançar” nos remete a um apelo para o reencontro e a valoração das coisas simples,
sejam elas concretas ou abstratas, que foram perdendo-se aos poucos em meio a um mundo
globalizado e elitizado. Mas, de acordo com o poema, ainda podemos ter esperança de nos
reencontrar nas pequenas minúcias que a vida oferece, por meio da harmonia de sentimentos
simples e positivos como: amor, amizade, delicadeza, paz.
O poema proporciona a reflexão de que na busca atual desenfreada por satisfação,
felicidade e sucesso terminamos esquecendo da experiência da amizade, do respeito à
diferença e da responsabilidade, valores que se integram e dependem, em certa medida, das
nossas atitudes e escolhas, dando-nos a possibilidade de reconhecer o outro e conviver com
ele, A esse respeito Bauman (2005, p. 17) afirma que:
O interessante é que o poema mostra que existem diferentes formas de ver e agir,
enquanto uns se pautam pela idealização (carregar água na peneira), outros acreditam e
buscam valores considerados “antigos”. O poema representa a possibilidade de um olhar
31
diferente a respeito das vivências de mundo na busca por novos demarcadores sociais do que
é ser feliz no mundo atual.
4.2 Rumo ao encontro do Outro: uma leitura dos poemas: “Fonte” e “Gavetas”
FONTE
Como trapezista
alcançar o outro
num salto:
mergulhar em seus olhos,
navegar até o fundo.
Alcançar o outro
no que ele tem
de mais belo,
de luz e de mel,
delicadeza e mistério.
O Trapezista
Vai e vem o trapezista
se balançando no espaço.
32
Pula a cerca que separa
o circo do céu
e com a cauda de um cometa faz um laço.
Vai e vem o trapezista
desarrumando as estrelas:
Até a lua se assusta,
esconde o rosto no regaço.
volta ao chão o trapezista
refazendo o mundo com seus passos.
Nesse aspecto, o espaço demarcado pela autora neste poema, funde-se entre um
presente marcado por movimentos corpóreos e sensoriais, que vai de encontro com o outro.
Para alcançar tais objetivos, a autora segue seu percurso semeando movimentos de suavidade
e encantamento, na busca pelos espaços almejados.Enveredando pelas metáforas, podemos
identificar ainda a fusão dos sentidos (visual, paladar, tato), revelador do envolvimento
exterior e interior do eu em busca do outro:
"Alcançar o outro
no que ele tem
de mais belo,
de luz e de mel,
delicadeza e mistério."
Na última estrofe do poema a palavra “fonte” é retomada e pode ser lida como uma
referência a este encontro do eu com o outro.
O poema Gavetas é outra composição de Roseana em que o eu se dirige ao outro:
GAVETAS
Com delicadeza
abrir as gavetas
que guardam
as palavras de seda.
Deixá-las sempre
ao alcance
de um sopro,
prontas para o vôo,
para o ouvido,
para a boca.
Palavras de sedas
são como borboletas
douradas
quando pousam
no coração do outro.
(MURRAY, 2014, p. 16).
33
A poetisa mais uma vez traz uma linguagem que nos remete a um afago na alma, à
delicadeza do ser e do existir, nos convidando a adentrar no mundo das sensações, do bem-
estar e dos sentimentos agradáveis.
O poema é dividido em três estrofes. Sendo a primeira uma quadra, a segunda uma
sextilha e a última uma quintilha. Este poema, de certa forma, sintetiza o cuidado com o
outro presente na maioria dos poemas do livro. De caráter metalinguístico, há nos versos a
preocupação por encontrar as palavras que, cuidadosamente selecionadas e combinadas,
possam sugerir uma situação de leveza que contrarie o peso do viver e estabeleça o elo entre o
eu e o outro.
Todo o poema parece tocado pelo rico campo semântico relativo aos significados de
leveza (“palavra de seda”, “sopro”, “voo” e “borboletas”).
Outro símbolo presente no poema que chama a atenção é o da borboleta, mas
especificamente o da “borboleta dourada”. De acordo com o dicionário de Símbolos, a
borboleta é considerada o símbolo da transformação, felicidade, beleza, inconstância,
efemeridade da natureza e da renovação. No caso da borboleta amarela, ela simboliza uma
nova vida, numa analogia às flores da primavera, cuja cor predominante é o amarelo.
Assim, o poema Gavetas trata desta renovação da vida gerada pelo encontro entre o Eu
e o Outro, tornando este outro não como um objeto para minha posse, mas um ser cuja
importância é reconhecida.
Percebemos assim que a poesia de Roseana desperta a reflexão sobre a importância da
alteridade, mostrando a relevância do reconhecimento do Outro para uma vida mais humana
no mundo contemporâneo. Para tanto, seus versos tratam de uma integração harmoniosa com
o Outro que se revela na cotidianidade.
Conforme lembra-nos o filósofo Emmanuel Lévinas em seu livro Humanismo do outro
homem (Apud, COSTA &CAETANO, 2014, p.201), na sociedade ocidental atual “o ser
humano não está preocupado com o face-a-face, nem muito menos com o rosto do próximo.
O que tem poder e domínio nesse mundo contemporâneo é a questão econômica e política,
esquecendo-se muitas vezes da qualidade de vida do ser humano.”. É sobre esta realidade que
a poesia de Roseana trata.
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5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como
cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com os precedentes e manter-se
fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis
e de curta duração, não constituem opções promissoras. Se outras pessoas as adotam
(raramente de bom grado, pode-se estar certo!), são prontamente apontadas como
sintomas da privação social e um estigma do fracasso na vida, da derrota, da
desvalorização, da inferioridade social.
Neste sentido, as identidades passam a ser concebidas como uma trajetória a ser
percorrida por meio de grupos que se excluem ou se misturam a partir da definição de
interesses, coordenando valores e status. "Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo
continuamente deslocadas." (HALL, 2006, p.13).
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ANEXOS
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